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2014 Curitiba Coleção CONPEDI/UNICURITIBA Organizadores PROF. DR. ORIDES MEZZAROBA PROF. DR. RAYMUNDO JULIANO REGO FEITOSA PROF. DR. VLADMIR OLIVEIRA DA SILVEIRA PROFª. DRª. VIVIANE COÊLHO DE SÉLLOS-KNOERR Vol. 30 JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: VERDADE, MENÓRIA E JUSTIÇA Coordenadores PROFª. DRª. SAMANTHA RIBEIRO MEYER PFLUG PROF. DR. MARCOS AUGUSTO MALISKA 2014 Curitiba

Justica de transicao vdd memoria e justica

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2014 Curitiba

Coleção CONPEDI/UNICURITIBA

Organizadores

Prof. Dr. oriDes Mezzaroba

Prof. Dr. rayMunDo Juliano rego feitosa

Prof. Dr. VlaDMir oliVeira Da silVeira

Profª. Drª. ViViane Coêlho De séllos-Knoerr

Vol. 30

JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: VERDADE, MENÓRIA E JUSTIÇA

Coordenadores

Profª. Drª. saMantha riBeiro Meyer Pflug

Prof. Dr. Marcos augusto MalisKa

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Nossos Contatos

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Equipe Editorial

EDITORA CLÁSSICA

Allessandra Neves FerreiraAlexandre Walmott Borges Daniel Ferreira Elizabeth Accioly Everton Gonçalves Fernando Knoerr Francisco Cardozo de Oliveira Francisval Mendes Ilton Garcia da Costa Ivan Motta Ivo Dantas Jonathan Barros VitaJosé Edmilson Lima Juliana Cristina Busnardo de Araujo Lafayete PozzoliLeonardo Rabelo Lívia Gaigher Bósio Campello Lucimeiry Galvão

Luiz Eduardo GuntherLuisa Moura Mara Darcanchy Massako Shirai Mateus Eduardo Nunes Bertoncini Nilson Araújo de Souza Norma Padilha Paulo Ricardo Opuszka Roberto Genofre Salim Reis Valesca Raizer Borges Moschen Vanessa Caporlingua Viviane Coelho de Séllos-Knoerr Vladmir Silveira Wagner Ginotti Wagner Menezes Willians Franklin Lira dos Santos

Conselho Editorial

H673Justiça de transição: Verdade, memória e justiça

Coleção Conpedi/Unicuritiba.Organizadores : Orides Mezzaroba / Raymundo Juliano Rego Feitosa / Vladmir Oliveira da Silveira / Viviane Coêlho Séllos-Knoerr.Coordenadores : Samantha Ribeiro Meyer Pflug / Marcos Augusto Maliska.Título independente - Curitiba - PR . : vol.30 - 1ª ed. Clássica Editora, 2014.383p. :

ISBN 978-85-8433-018-8

1. Direitos humanos. 2. Ditadura. 3. Anistia.I. Título. CDD 320.981

Editora Responsável: Verônica GottgtroyCapa: Editora Clássica

Editora Responsável: Verônica GottgtroyCapa: Editora Clássica

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MEMBROS DA DIRETORIA Vladmir Oliveira da Silveira

Presidente Cesar Augusto de Castro Fiuza

Vice-Presidente Aires José Rover

Secretário Executivo Gina Vidal Marcílio Pompeu

Secretário-Adjunto

Conselho Fiscal Valesca Borges Raizer Moschen

Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa João Marcelo Assafim

Antonio Carlos Diniz Murta (suplente) Felipe Chiarello de Souza Pinto (suplente)

Representante Discente Ilton Norberto Robl Filho (titular)

Pablo Malheiros da Cunha Frota (suplente)

Colaboradores

Elisangela Pruencio Graduanda em Administração - Faculdade Decisão

Maria Eduarda Basilio de Araujo Oliveira Graduada em Administração - UFSC

Rafaela Goulart de Andrade Graduanda em Ciências da Computação – UFSC

DiagramadorMarcus Souza Rodrigues

XXII ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI/ UNICURITIBACentro Universitário Curitiba / Curitiba – PR

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Sumário

APRESENTAÇÃO ........................................................................................................................................

REFLEXÕES SOBRE O USO DO DIREITO DE RESISTÊNCIA EM FACE DA DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA(Ana Maria D´Ávila Lopes e Isabelle Maria Campos Vasconcelos Chehab) ...............................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

DELIMITAÇÃO CONCEITUAL .....................................................................................................................

FUNDAMENTOS JURÍDICOS .....................................................................................................................

SOBRE A PLAUSIBILIDADE DO USO DO DIREITO DE RESISTÊNCIA NO CURSO DA DITADURA CIVIL-MILITAR .....................................................................................................................................................

CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

AUTORITARISMO: A RELAÇÃO ENTRE OS MILITARES E OS JUÍZES DURANTE O REGIME INSTALADO EM 1964 (Grijalbo Fernandes Coutinho) ....................................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

GOLPE MILITAR DE 1964 NO BRASIL E O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO ...............................................

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL DE CONFIANÇA DO REGIME E JUSTIÇA MILITAR DOS MILITARES .....

PARADIGMA LIBERAL POSITIVISTA DO DIREITO E O CONSERVADORISMO DA MAGISTRATURA .........

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

ANTECEDENTES HISTÓRICOS DA LEI DE ANISTIA E DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL (Gabriela Natacha Bechara) ........................................................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

A ANISTIA E SEUS ANTECEDENTES HISTÓRICOS .....................................................................................

ANISTIA E A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO ......................................................................................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

A PARTICIPAÇÃO SOCIAL NA CONSTITUIÇÃO DA VERDADE SOBRE AS VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS NOS REGIMES MILITARES DA AMÉRICA LATINA (Tais Ramos) ...........................................

CONSIDERAÇÕES INICIAIS ........................................................................................................................

A PARTICIPAÇÃO SOCIAL NA CONSTITUIÇÃO DA VERDADE SOBRE AS VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS NOS REGIMES MILITARES DA AMÉRICA LATINA ..................................................................

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A PARTICIPAÇÃO SOCIAL NA CONSTITUIÇÃO DA VERDADE SOBRE AS VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS NO REGIME MILITAR BRASILEIRO: A EXPERIÊNCIA DA COMISSÃO DE ANISTIA BRASILEIRA E DA COMISSÃO DOS MORTOS E DESAPARECIDOS POLÍTICOS .........................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE NO BRASIL: NOTAS SOBRE UM DEBATE NECESSÁRIO PARA O CAMPO DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO (Carlos Bolonha e Vicente Rodrigues) ...........................................

CONSIDERAÇÕES INICIAIS ........................................................................................................................

JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO COMO NOVO CAMPO DOS DIREITOS HUMANOS ..........................................

MEMÓRIA E VERDADE: CAMINHOS PROPOSTOS ...................................................................................

DO RECONHECIMENTO DO DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE NO BRASIL ........................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

A HERANÇA DA FALTA DE MEMÓRIA E AS VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS: A CONSTRUÇÃO DO DIREITO À VERDADE NA AMÉRICA LATINA E NO BRASIL (Daniela de Oliveira Lima Matias e Mayara de Carvalho Araújo) .......................................................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

DO TERCEIRO MUNDO AOS REGIMES BUROCRÁTIO-AUTORITÁRIOS NA ERA DOS EXTREMOS ...........

JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO, MEMÓRIA E VERDADE ....................................................................................

A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E SUA CONDENAÇAO AO ESTADO BRASILEIRO

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

A TORTURA DOS TEMPOS DA DITADURA MILITAR NO BRASIL E A CORRUPÇAO DOS DIAS ATUAIS FRENTE AO DIREITO À VERDADE E À MEMÓRIA (Diana Uchoa Torres Lima e Janaína Alcântara Vilela)

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

A TORTURA NA DITADURA MILITAR ........................................................................................................

CORRUPÇÃO: A TORTURA CONTEMPORÂNEA .......................................................................................

O QUE FICA PARA A SOCIEDADE? .............................................................................................................

O DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE .....................................................................................................

CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

CONSTITUIÇÃO DA VERDADE: EFEITOS DA MEMÓRIA NO “GRANDE ACORDO” DA TRANSIÇÃO (ARTHUR MAGNO E SILVA GUERRA) ...........................................................................................................

INTRODUÇÃO: MEMÓRIA E HISTÓRIA CONSTITUCIONAL .....................................................................

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A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E A “HERANÇA SEM TESTAMENTO” .............................................

EFEITOS DA TRANSIÇÃO NO TEXTO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO ....................................................

CONCLUSÃO PARCIAL ...............................................................................................................................

REFERÊNCIA ..............................................................................................................................................

O DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE COMO DIREITOS ESSENCIAIS AO PROCESSO DE DEMOCRATIZAÇÃO DO PAÍS (Andrea Tourinho Pacheco de Miranda e Ezilda Claudia de Melo) ................

A HERMENÊUTICA E A VERDADE: O DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE COMO DIREITOS FUNDAMENTAIS ........................................................................................................................................

MEMÓRIA, VERDADE E JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO ....................................................................................

AS PRIMEIRAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL ......................................

O TRABALHO DA COMISSÃO DA VERDADE .............................................................................................

CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO E RECONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA: UMA ANÁLISE SOBRE O PAPEL DAS “COMISSÕES DE VERDADE” NA CONSOLIDAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À VERDADE E À MEMÓRIA NOS PAÍSES DO MERCOSUL (Fernando Horta Tavares e Larissa Maria da Trindade) ..............

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

CONSTITUCIONALISMO E DEMOCRACIA: AS BASES PARA O PROCESSO TRANSICIONAL .......................

BREVE PANORAMA DOS PROCESSOS DE JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NOS PAÍSES DO MERCOSUL ..........

A INSTITUIÇÃO E O PAPEL DAS COMISSÕES NACIONAIS DA VERDADE NA GARANTIA E PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ...............................................................................................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL E A LEI DA ANISTIA: SUPERAÇÃO VERSUS ESQUECIMENTO (Luciana Carrilho de Moraes) ......................................................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

PANORAMA HISTÓRICO DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL ..........................................................

A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO E A ANISTIA ....................................................................................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

A DECISÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS NO CASO DA GUERRILHA DO ARAGUAIA A LEI DE ANISTIA BRASILEIRA E A OBRIGAÇÃO DE INVESTIGAR E PUNIR AS VIOLAÇÕES AOS DIREITOS HUMANOS RATICADAS PELA DITADURA MILITAR NO BRASIL (Samyra Naspolini e Marcio de Sessa) ......................................................................................................................

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INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

A IMPORTÂNCIA HISTÓRICA DA DECISÃO DA CORTE .............................................................................

COMPETÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA ........................................................................................

LEI DE ANISTIA BRASILEIRA E CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE ...................................................

OBRIGAÇÃO DE INVESTIGAR E PUNIR GRAVES VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS ..............................

CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

DITADURA E LUGARES DE MEMÓRIA: AS DIRETRIZES DO MERCOSUL E O DIREITO AO PATRIMÔNIO CULTURAL (Leandro Franklin Gorsdorf) .....................................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

MEMÓRIA E DITADURA:DISPUTAS PELA SIGNIFICAÇÃO DA HISTÓRIA .................................................

LUGARES DE MEMÓRIA:EM BUSCA DE UM CONCEITO ..........................................................................

LUGARES DE MEMÓRIA COMO EXERCÍCIO DO DIREITO AO PATRIMÔNIO HISTÓRICO ............................

MERCOSUL, DITADURA E DIREITOS HUMANOS .....................................................................................

MERCOSUL E AS POLÍTICAS PÚBLICAS DOS LUGARES DE MEMÓRIA ....................................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

A (DES)CONSTRUÇÃO DE UM DIREITO AGRÁRIO PELO DITADURA MILITAR BRASILEIRA (GUILHERME MARTINS TEIXEIRA BORGES) .................................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

O PANORAMA JURÍDICO AGRARISTA PRÉ ESTATUTO DA TERRA ...........................................................

A NECESSIDADE DE UM ESTATUTO AGRÁRIO .........................................................................................

A DESCONSTRUÇÃO DO ESTATUTO DA TERRA PELOS GOVERNOS MILITARES .....................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

REFERENCIAIS ...........................................................................................................................................

O ABOLICIONISMO BRASILEIRO E A IDENTIDADE CONSTITUCIONAL DOS NEGROS LIBERTOS NA LITERATURA (Rafael Henrique Guimarães Teixeira de Freitas) ..................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

A ESCRAVIDÃO NO BRASIL E O ABOLICIONISMO ....................................................................................

A IDENTIDADE CONSTITUCIONAL DOS NEGROS APÓS O FIM DA ESCRAVIDÃO ...................................

A IDENTIDADE CONSTITUCIONAL DOS NEGROS APÓS O FIM DA ESCRAVIDÃO SOB A PERSPECTIVA DE JOAQUIM NABUCO ..............................................................................................................................

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CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

DIREITOS HUMANOS NO ESTADO DE MATO GROSSO E O TRABALHO DA ORGANIZAÇÃO NÃO GOVERNAMENTAL CENTRO DE DIREITOS HUMANOS HENRIQUE TRINDADE (CDHHT): UM ESTUDO DE CASO (Edna Soares da Silva) ..................................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

CONSTITUIÇÃO DO CENTRO DE DIREITOS HUMANOS HENRIQUE TRINDADE .....................................

VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS ACOMPANHADAS PELO CENTRO DE DIREITOS HUMANOS HENRIQUE TRINDADE ..............................................................................................................................

A PERCEPÇÃO DOS ATORES DO CENTRO DE DIREITOS HUMANOS HENRIQUE TRINDADE: ANOS OITENTA E NOVENTA ................................................................................................................................

A CATEGORIA DIREITOS HUMANOS: TOLERÂNCIA E RECONHECIMENTO DA DIGNIDADE HUMANA

CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

ENTRE O PASSADO E O FUTURO: O ATUAL ENFRENTAMENTO DOS CRIMES PERPETRADOS NA DITADURA (Evandro Charles Piza Duarte) .................................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

O GOLPE DE 1964 E A DITADURA MILITAR BRASILEIRA ..........................................................................

ADPF 153 E A LEI DA ANISTIA ....................................................................................................................

CRIMES PERMANENTES E A VIRADA ARGUMENTATIVA – UMA ANÁLISE DO CASO SEBASTIÃO CURIÓ...

CONCLUSÃO – SE MEMÓRIA DE UM LADO, ESQUECIMENTO DO OUTRO ............................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA E VITALICIEDADE DOS MINISTROS DO STF: UMA ABORDAGEM A PARTIR DE ESTUDOS DE OSCAR VILHENA E GERMANO SCHWARTZ (Roberto Carlos Rocha Kayat e Gabriela Vieira Leonardos) .........................................................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: 1964/1988 .........................................................................................

A INADEQUAÇÃO DO SISTEMA DE COMPOSIÇÃO E DA VITALICIEDADE DOS MINISTROS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS .................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

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Caríssimo(a) Associado(a),

Apresento o livro do Grupo de Trabalho Justiça de Transição: Verdade, Memória e

Justiça, do XXII Encontro Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em

Direito (CONPEDI), realizado no Centro Universitário Curitiba (UNICURUTIBA/PR), entre

os dias 29 de maio e 1º de junho de 2013.

O evento propôs uma análise da atual Constituição brasileira e ocorreu num ambiente

de balanço dos programas, dada a iminência da trienal CAPES-MEC. Passados quase 25 anos

da promulgação da Carta Magna de 1988, a chamada Constituição Cidadã necessita uma

reavaliação. Desde seus objetivos e desafios até novos mecanismos e concepções do direito,

nossa Constituição demanda reflexões. Se o acesso à Justiça foi conquistado por parcela

tradicionalmente excluída da cidadania, esses e outros brasileiros exigem hoje o ponto final do

processo. Para tanto, basta observar as recorrentes emendas e consequentes novos

parcelamentos das dívidas dos entes federativos, bem como o julgamento da chamada ADIN

do calote dos precatórios. Cito apenas um dentre inúmeros casos que expõem os limites da

Constituição de 1988. Sem dúvida, muitos debates e mesas realizados no XXII Encontro

Nacional já antecipavam demandas que semanas mais tarde levariam milhões às ruas.

Com relação ao CONPEDI, consolidamos a marca de mais de 1.500 artigos submetidos,

tanto nos encontros como em nossos congressos. Nesse sentido é evidente o aumento da

produção na área, comprovável inclusive por outros indicadores. Vale salientar que apenas no

âmbito desse encontro serão publicados 36 livros, num total de 784 artigos. Definimos a

mudança dos Anais do CONPEDI para os atuais livros dos GTs – o que tem contribuído não

apenas para o propósito de aumentar a pontuação dos programas, mas de reforçar as

especificidades de nossa área, conforme amplamente debatido nos eventos.

Por outro lado, com o crescimento do número de artigos, surgem novos desafios a

enfrentar, como o de (1) estudar novos modelos de apresentação dos trabalhos e o de (2)

aumentar o número de avaliadores, comprometidos e pontuais. Nesse passo, quero agradecer a

todos os 186 avaliadores que participaram deste processo e que, com competência, permitiram-

nos entregar no prazo a avaliação aos associados. Também gostaria de parabenizar os autores

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

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Page 10: Justica de transicao vdd memoria e justica

selecionados para apresentar seus trabalhos nos 36 GTs, pois a cada evento a escolha tem sido

mais difícil.

Nosso PUBLICA DIREITO é uma ferramenta importante que vem sendo aperfeiçoada

em pleno funcionamento, haja vista os raros momentos de que dispomos, ao longo do ano, para

seu desenvolvimento. Não obstante, já está em fase de testes uma nova versão, melhorada, e

que possibilitará sua utilização por nossos associados institucionais, tanto para revistas quanto

para eventos.

O INDEXA é outra solução que será muito útil no futuro, na medida em que nosso

comitê de área na CAPES/MEC já sinaliza a relevância do impacto nos critérios da trienal de

2016, assim como do Qualis 2013/2015. Sendo assim, seus benefícios para os programas serão

sentidos já nesta avaliação, uma vez que implicará maior pontuação aos programas que

inserirem seus dados.

Futuramente, o INDEXA permitirá estudos próprios e comparativos entre os

programas, garantindo maior transparência e previsibilidade – em resumo, uma melhor

fotografia da área do Direito. Destarte, tenho certeza de que será compensador o amplo esforço

no preenchimento dos dados dos últimos três anos – principalmente dos grandes programas –,

mesmo porque as falhas já foram catalogadas e sua correção será fundamental na elaboração da

segunda versão, disponível em 2014.

Com relação ao segundo balanço, após inúmeras viagens e visitas a dezenas de

programas neste triênio, estou convicto de que o expressivo resultado alcançado trará

importantes conquistas. Dentre elas pode-se citar o aumento de programas com nota 04 e 05,

além da grande possibilidade dos primeiros programas com nota 07. Em que pese as

dificuldades, não é possível imaginar outro cenário que não o da valorização dos programas do

Direito. Nesse sentido, importa registrar a grande liderança do professor Martônio, que soube

conduzir a área com grande competência, diálogo, presença e honestidade. Com tal conjunto de

elementos, já podemos comparar nossos números e critérios aos das demais áreas, o que será

fundamental para a avaliação dos programas 06 e 07.

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

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Page 11: Justica de transicao vdd memoria e justica

Com relação ao IPEA, cumpre ainda ressaltar que participamos, em Brasília, da III

Conferência do Desenvolvimento (CODE), na qual o CONPEDI promoveu uma Mesa sobre o

estado da arte do Direito e Desenvolvimento, além da apresentação de artigos de pesquisadores

do Direito, criteriosamente selecionados. Sendo assim, em São Paulo lançaremos um novo

livro com o resultado deste projeto, além de prosseguir o diálogo com o IPEA para futuras

parcerias e editais para a área do Direito.

Não poderia concluir sem destacar o grande esforço da professora Viviane Coêlho de

Séllos Knoerr e da equipe de organização do programa de Mestrado em Direito do

UNICURITIBA, que por mais de um ano planejaram e executaram um grandioso encontro.

Não foram poucos os desafios enfrentados e vencidos para a realização de um evento que

agregou tantas pessoas em um cenário de tão elevado padrão de qualidade e sofisticada

logística – e isso tudo sempre com enorme simpatia e procurando avançar ainda mais.

Curitiba, inverno de 2013.

Vladmir Oliveira da Silveira

Presidente do CONPEDI

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Page 12: Justica de transicao vdd memoria e justica

Apresentação

A obra “Justiça de transição: verdade, memória e justiça” é fruto do rico debate

ocorrido no grupo de trabalho “Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça” realizado

no dia 31 de maio de 2013 no “XXII Encontro Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e

Pós Graduação em Direito” na Universidade Curitiba em Curitiba, Paraná.

Os artigos apresentados no Grupo de Trabalho são dotados de grande qualidade

cientifica e densidade jurídica, e abordam temas importantes e também controvertidos da

justiça de transição, do Conselho Nacional da Verdade e do direito à verdade e à memória

histórica. Vale dizer que o Conselho Nacional de Verdade criado pelo governo brasileiro já

possui um ano de existência e trabalho o que enriqueceu sobremaneira a discussão acerca do

tema.

O debate sobre os artigos e ideias apresentadas foi bastante rico, intenso e proveitoso o

que motivou a criação dessa obra que contempla os textos apresentados no grupo de trabalho,

acrescidos das contribuições oriundas da discussão realizada.

Ana Maria D´Ávila Lopes e Isabelle Maria Campos Vasconcelos Chehab abordam em

seu texto, aspecto relevante no tocante à justiça de transição no Brasil, qual seja, o direito de

resistência, mais especificamente a plausibilidade do seu uso em face da ditadura civil-militar

brasileira instaurada em 1964. Já a relação entre os militares e os juízes durante o regime

instalado em 1964 é enfrentada por Grijalbo Fernandes Coutinho. Ele trata da predominante

harmonia existente entre a cúpula da Justiça e o governo dos generais legitimou a prática de

atos cruéis contra militantes de esquerda, trabalhadores, estudantes e personagens moderados

da cena política nacional, indo dos expurgos às torturas, aos desaparecimentos e aos

assassinatos.

No tocante aos antecedentes históricos da lei de anistia e da justiça de transição no

Brasil Gabriela Natacha Bechara analisa detidamente o período histórico que deu origem à

ditadura militar e a lei de anistia brasileira, que por sua vez impactou na efetivação da Justiça

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

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Page 13: Justica de transicao vdd memoria e justica

de Transição no país. De igual modo Tais Ramos examina a participação social na constituição

da verdade sobre as violações de direitos humanos nos regimes militares da América Latina

considerando o paradigma democrático de inclusão dos cidadãos nos processos de exames e

esclarecimento dos atos de desaparecimentos, sequestros, mortes e torturas, praticados nesses

Regimes.

No que se refere ao direito à memória e à verdade no Brasil Carlos Bolonha e Vicente

Rodrigues investigam o conceito e o reconhecimento do chamado “direito à memória e à

verdade”, identificando-o como um dos elementos-chave da justiça de transição brasileira.

Nesse sentido, Daniela de Oliveira Lima Matias e Mayara de Carvalho Araújo abordam a

herança da falta de memória e as violações de direitos humanos na construção do direito à

verdade na América Latina e no Brasil. Elas analisam a peculiaridade das ditaduras que

fizeram parte da história da América Latina nas décadas de 70 e 80 do século XX e o seu

legado para a realidade atual, em particular a do Brasil.

No tocante à tortura dos tempos da ditadura militar no Brasil Diana Uchoa Torres Lima

e Janaína Alcântara Vilela estudam a tortura instaurada nos tempos da ditadura militar, bem

como demonstram como a corrupção dos dias atuais pode ser tão parecida com a aquela figura

dos anos de chumbo. Destarte, Arthur Magno e Silva Guerra analisam os efeitos da memória

no "grande acordo" da transição. Eles levam a efeito um debate sobre um dos cruciais pontos

de fundamentação teórica e histórica do direito à memória e à verdade no Brasil e a incidência

desses “traumas” e “complexos” no Texto Constitucional que restaura a Democracia,

especialmente, depois das lutas políticas ocorridas, entre os anos de 1964 e 1985, contra a

Ditadura Militar.

O direito à memória e à verdade como direitos essenciais ao processo de

democratização do país são detidamente estudados por Andrea Tourinho Pacheco de Miranda e

Ezilda Claudia de Melo que demonstram a importância da consolidação do direito à memória e

à verdade no processo de democratização do nosso país, como direitos fundamentais, bem

como a instauração da Comissão da Verdade no Brasil, após o período ditatorial, marcado por

graves violações aos direitos humanos.

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

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Page 14: Justica de transicao vdd memoria e justica

O papel das “Comissões de verdade” na consolidação do direito fundamental à verdade

e à memória nos países do MERCOSUL é objeto de um exame detalhado e crítico de Fernando

Horta Tavares e Larissa Maria da Trindade. Já o período ditatorial, especificamente o golpe

militar do ano de 1964 e suas influências, com ênfase nos ideais de Francisco Campos, que,

almejam a instituição de um regime antiliberal, centralizador e autoritário é examinado por

Luciana Carrilho de Moraes.

A decisão da corte interamericana de direitos humanos no caso da guerrilha do

Araguaia a Lei de anistia brasileira e a obrigação de investigar e punir as violações aos direitos

humanos ratificadas pela ditadura militar no Brasil são estudadas por Samyra Naspolini e

Marcio de Sessa. O objeto do artigo é a decisão da Corte em paradigmática sentença proferida

em 24 de novembro de 2010, no caso Lund e outros versus Brasil, a qual condenou o Estado

brasileiro a implementar uma série de medidas com vistas a indenizar os familiares das vítimas

dos fatos ocorridos na Guerrilha do Araguaia e esclarecer e evitar que novos fatos similares

aconteçam.

Outro aspecto relevante da justiça de transição diz respeito aos lugares de memória, tal

tema é enfrentado por Leandro Franklin Gorsdorf que examina as diretrizes do MERCOSUL e

o direito ao patrimônio cultural. Já a (des)construção de um direito agrário pela ditadura militar

brasileira é estudado por Guilherme Martins Teixeira Borges que leva a efeito uma reflexão

sobre as consequências da promulgação do Estatuto da Terra, Lei Federal nº 4504, de 30 de

novembro de 1964 em relação à própria estruturação de um Direito Agrário.

O tema do abolicionismo brasileiro e a identidade constitucional dos negros libertos na

literatura é discutido por Rafael Henrique Guimarães Teixeira de Freitas, que faz uma análise do

abolicionismo e da identidade constitucional dos negros brasileiros no contexto histórico da

proibição da escravidão, sob a perspectiva de Joaquim Nabuco. Os direitos humanos no

estado de Mato Grosso e o trabalho da organização não governamental centro de direitos

humanos Henrique Trindade (CDHHT) criada a partir das articulações do Movimento Popular

em Cuiabá/MT nos anos oitenta, como instrumento mobilizador de luta contra a violação

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

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Page 15: Justica de transicao vdd memoria e justica

sistemática dos direitos humanos no Estado de Mato Grosso é analisado por Edna Soares da

Silva.

Evandro Charles Piza Duarte estuda o passado e o futuro no atual enfrentamento dos

crimes perpetrados na Ditadura Militar, questionando a interpretação dada à Lei nº 6.683/79,

Lei da Anistia, pelo Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da ADPF nº 153.

Por fim, a legitimidade democrática e vitaliciedade dos ministros do STF, sob a ótica

dos estudos de Oscar Vilhena e Germano Schwartz é estudada por Roberto Carlos Rocha Kayat e

Gabriela Vieira Leonardos, com vistas a aferir eventual descompasso entre o decidido pelos

ministros de então e o momento político vivido à época, a refletir grave problema de

legitimidade na atuação da Corte.

Tenho a certeza que a obra será de grande valia para todos aqueles que se interessam

sobre tão relevante tema.

Coordenadores do Grupo de Trabalho

Professora Doutora Samantha Ribeiro Meyer Pflug – UNINOVE

Professor Doutor Marcos Augusto Maliska – UNIBRASIL

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REFLEXÕES SOBRE O USO DO DIREITO DE RESISTÊNCIA EM FACE DA DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA

REFLECTIONS ON THE USE OF THE RIGHT OF RESISTANCE IN FACE OF CIVIL-

MILITARY DICTATORSHIP BRAZILIAN

Ana Maria D´Ávila Lopes1 Isabelle Maria Campos Vasconcelos Chehab2

RESUMO

O presente trabalho discorrerá sobre o direito de resistência, mais especificamente sobre a plausibilidade do seu uso em face da ditadura civil-militar brasileira instaurada em 1964. Para tanto, foi utilizada pesquisa bibliográfica e documental. Inicialmente, foi apresentada uma delimitação conceitual do direito de resistência, partindo do pensamento de Santo Tomás de Aquino, Maquiavel, Locke e Rousseau. Em seguida, foram comentados alguns dos fundamentos jurídicos – nacionais e internacionais – do direito de resistência. Posteriormente, analisou-se a (possível) plausibilidade do uso do direito de resistência pelos grupos de esquerda durante a ditadura civil-militar brasileira. Ao final, concluiu-se que o direito de resistência teve sua matriz teórica constituída ao longo dos últimos séculos, sempre com o firme propósito de oportunizar defesa à opressão – individual e/ou coletiva - promovida por soberanos, independentemente da forma pela qual alcançaram o poder. Ainda, verificou-se que tanto a Declaração Universal dos Direitos Humanos, com o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos estabeleceram parâmetros mínimos para o respaldo da democracia, ou, em caso contrário, para a efetivação do direito de resistência. Igualmente, observou-se a fundamentalidade do direito de resistência, em razão da sua consonância com o regime democrático, os princípios e os tratados de que o Brasil é parte, além da sua relevância como instrumento na construção de uma sociedade livre e justa. Por derradeiro, comprovou-se por razoável o uso do direito de resistência em face da ditadura civil-militar brasileira, especialmente devido à sua inobservância – sistemática e institucional - ao ordenamento jurídico e ao bem comum.

PALAVRAS-CHAVE: Direito de resistência; Ditadura civil; Ditadura militar; Direitos fundamentais; Direitos humanos. ABSTRACT This article will discuss the right of resistance, more specifically about the plausibility of its use against of Brazilian civil-military dictatorship. For this purpose, we used bibliographic and documentary research. Initially, we presented a conceptual delimitation of the right of resistance, from the thought of Machiavelli, Locke and Rousseau. Then, we pointed some of the reviews - 1 Mestre e Doutora em Direito Constitucional pela Universidadade Federal de Minas Gerais - UFMB. Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. 2 Mestra e Doutoranda em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Professora do Curso de Direito da Faculdade Integrada do Ceará – FIC.

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national and international – of the right of resistance. Subsequently, we analyzed the Brazilian civil-military dictatorship and the (possible) use of the right of resistance to face it. At the end, it was concluded that the right of resistance had its theoretical matrix formed over the past centuries, always with the purpose of defense to create opportunities against oppression - individual and / or conference - sponsored by sovereigns, regardless of the manner in which reached the power. Still, it was found that both Universal Declaration of Human Rights and International Covenant on Civil and Political Rights established minimum standards for the support of democracy, or otherwise, for the realization of the right of resistance. Also, we observed the fundamentality of the right of resistance, due its consonance with the democratic regime, the principles and treaties to which Brazil is a party, in addition to its relevance as a tool in building a free and just society. Finally, it was shown as reasonable the use of the right of resistance against the Brazilian civil-military dictatorship, especially due to its disobey - systematic and institutional – to the legal system and the welfare of the community. KEYWORDS: Right to resistance; Civil dictatorship; Military dictatorship; Fundamental rights. Human rights. INTRODUÇÃO

A outorga de poder ao soberano pressupõe sua observância ao bem comum e ao

ordenamento jurídico vigente. Por este motivo, a sua desobediência - ou mera desconsideração -

permite ações políticas de resistência dos cidadãos, no sentido de coibir as práticas corrompidas

dos seus mandatários.

Ratifica-se, assim, a tese da soberania popular, qual seja, de que o poder é exercido em

nome do povo. Ao príncipe, são outorgados poderes limitados, que, se infringidos, devem ser

realinhados ou – se necessário for – extirpados. Desta feita, pode-se afirmar que a continuidade

do soberano no poder está diretamente vinculada a ideia de obediência aos limites da sua outorga,

sem os quais não há fundamentação, nem legitimidade para o seu exercício.

Nesse contexto, insurgir-se contra um poder arbitrário, não se apresenta como

improvável, tampouco ilegal, na medida em que o fundamento daquela soberania fora rompido

justamente pela não observância do governante aos limites que lhe foram impostos, o que lhe

torna ilegítimo e passível de um enfrentamento formal e/ou fático pelo povo. Eis, portanto, o que

se intitula como direito de resistência.

O presente artigo visa, pois, discorrer, através de pesquisa bibliográfica e documental,

sobre o direito de resistência. Em específico, acerca da plausibilidade dos atos de resistência

implementados por grupos de esquerda durante o período da ditadura civil-militar brasileira

(1964-1985).

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Nesses termos, apresentou-se, no tópico inicial, a delimitação conceitual da expressão

direito de resistência, trazendo-se à lume as primeiras reflexões sobre a sua aplicabilidade,

vinculadas ao âmbito eminentemente individual, para, em seguida, tecer comentários sobre o

pensamento desenvolvido por Santo Tomás de Aquino, Maquiavel, Locke e Rousseau.

No tópico seguinte, foram colacionados os fundamentos jurídicos do direito de

resistência, iniciando-se pelas normas internacionais, tais como o Preâmbulo e artigos 28 e 29, da

Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), assim como os artigos 4º. e 5º., do Pacto

Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP). Posteriormente, explicitaram-se, também, o

parágrafo 2º., do art. 5º., da Constituição Federal.

Já no terceiro tópico, fez-se um breve arrazoado sobre a origem e os fundamentos

jurídicos da ditadura civil-militar brasileira para, em seguida, discorrer-se sobre a (possível)

plausibilidade dos atos de resistência implementados pelos grupos de esquerda em desfavor

daquele regime de exceção.

Ao final, concluiu-se que o direito de resistência está diretamente ligado à ideia de

soberania, que deve ser exercida em prol do bem comum e em consonância com o ordenamento

jurídico vigente.

Por semelhante modo, observou-se, desde Locke, a existência de uma sistematização –

mesmo que embrionária - do direito de resistência, que teve sua práxis aperfeiçoada através dos

escritos de Rousseau.

Igualmente, verificou-se que o direito de resistência tem seus fundamentos jurídicos

esposados tanto em diplomas internacionais – a exemplo da Declaração Universal dos Direitos

Humanos (DUDH) e do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) – como na

Constituição Federal de 1988.

Ainda, demonstrou-se que as ações políticas promovidas por grupos de esquerda no curso

da ditadura brasileira podem ser caracterizadas como atos inerentes ao direito de resistência, haja

vista que estavam pautados na insurgência ao golpe militar de 1º. de abril de 1964, o qual depôs

o legítimo Presidente João Goulart.

Por derradeiro, explicitou-se que o governo militar não gozava de ilegalidade apenas na

sua origem, mas, sobretudo no seu exercício, o qual era pautado na violência institucionalizada

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em face dos seus próprios cidadãos e na inobservância contínua às normas fundamentais

brasileiras, conforme se explicitará nas linhas seguintes.

1. DELIMITAÇÃO CONCEITUAL

Já no século XIII, Santo Tomás de Aquino (1225-1274), nas obras Suma Teológica,

Regime dos Príncipes e Comentários às Sentenças de Pedro Lombardo, defendeu o direito à

resistência dos súditos em face de um governo tirânico, notadamente quando houvesse defeito no

modo como foi adquirido o poder, exacerbação nas atribuições concedidas ou perigo no exercício

daquele governo para o bem comum.(SANTOS, 2007, p. 49).

É importante esclarecer que – inicialmente - Tomás de Aquino condenava a insurreição

popular, excetuando-se, segundo Santos (2007, p. 54), nos casos em que o soberano não fosse

justo por não promover o bem da coletividade, ocasião em que seria plausível a rebelião em

desfavor do tirano.

Por seu turno, Nicolau Maquiavel (1469-1527), nos idos de 1532, em seu clássico O

Príncipe, Capítulo IX, intitulado Do Principado Civil, descreveu as relações e os embates pelo

poder soberano, nos termos seguintes:

[...] em toda cidade se encontram essas duas tendências opostas: de uma parte, o povo não quer ser comandado nem oprimido pelos poderosos, de outra, os poderosos querem comandar e oprimir o povo; desses dois desejos antagônicos advém das cidades um das três conseqüências: principado, liberdade ou desordem. (MAQUIAVEL, 2010, p. 77)

Malgrado o esboço de Maquiavel seja deveras assemelhado às disputas cotidianas pelo

poder, foi somente com os contratualistas, a começar por John Locke (1632-1704), em sua obra

Dois tratados sobre o governo, que foi sistematizado um pensamento acerca do direito de

resistência. Primeiramente, ao disciplinar os fundamentos do poder soberano:

Todavia, porquanto ao governo, seja em que mãos estiver, o poder foi confiado – conforme demonstrei anteriormente – sob essa condição e para esse fim, que os homens pudessem ter e garantir suas propriedades. (LOCKE,1998, p. 511) (grifo nosso)

Em seguida, Locke clarifica os limites da obediência dos súditos ao soberano, in verbis:

Porém, deve-se observar que ainda que, embora os juramentos de fidelidade e lealdade sejam dirigidos a ele, não o são por ser ele o legislador supremo, mas sim o supremo executor da lei formulado por um poder conjunto dele próprio com outros. Não sendo a fidelidade nada além da obediência segundo a lei, que, quando violada por ele, leva-o a perder todo o direito à obediência, tampouco pode ela exigi-la a não ser como a pessoa pública investida contra o poder da lei, devendo, portanto,ser considerada como a imagem, o espectro ou o representante do corpo político, agindo pela vontade da sociedade, declarada em suas leis. (LOCKE, 1998, p. 520) (grifo nosso)

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E para que não houvesse dúvidas, arrematou: Quando, porém, deixar essa representação, essa vontade política, e passar a agir segundo sua própria vontade particular, degrada-se e não é mais que uma pessoa particular sem poder e sem vontade, sem direito algum à obediência, pois que não devem os membros obediência senão à vontade pública da sociedade. (LOCKE, 1998, p. 520) (grifo nosso)

Observa-se, portanto, que Locke não desconsidera os poderes do soberano, ou quem em

seu nome exerça a soberania, entretanto, estabelece limites para sua implementação, frisando que

a origem de todo poder repousa na vontade pública da sociedade, sem a qual impossível se faz a

governança.

Nessa esteira, merecem ser apresentados, também, os seus comentários sobre quais seriam

as diferenças entre o poder legítimo e ilegítimo, a saber:

Pois reconheço que o ponto principal e essencial de diferença entre um rei legítimo e um tirano usurpador é que enquanto o tirano orgulhoso e ambicioso pensa de fato que seu reino e povo destinam tão somente à satisfação de seus desejos e apetites desarrazoados, o rei justo e legítimo, ao contrário, reconhece ser ordenado para promover a riqueza e a propriedade de seu povo. (LOCKE, 1998, p. 220)

Locke reafirma aqui as obrigações do soberano para com o seu povo, especialmente com

a sua propriedade, diferentemente do poder que venha a ser exercido pelo tirano usurpador. Note-

se que o autor traz à lume não apenas a forma como soberano alcançou o poder, mas também faz

jus ao modo pelo qual se dá o exercício da soberania. Senão vejamos:

No entanto, segundo Locke, o que motivou os homens a celebrarem o contrato social foi o sentimento de estarem correndo perigo em caso de eclosão de algum inesperado conflito. Se a autoridade a quem o povo confiou a tutela dos direitos utilizar de arbítrio, automaticamente retoma ele a sua soberania originária. (...) Perceba-se: para Locke, o governante deveria ter não só legitimidade de investidura (como queria Hobbes), mas também legitimidade de exercício. (ROCHA, 2010, p.34)

Destarte, a soberania que restar pautada na vontade pessoal e nos interesses privados do

governante, pode ser alvo de insurgência popular, haja vista o seu desrespeito ao fundamento do

governo, qual seja, o pacto firmado no bem estar da coletividade, que em Locke, é expressa pelo

resguardo à propriedade.

Em seguida, Rousseau (1712-1778) inicia o seu Contrato Social discorrendo sobre o

direito de resistência, mais especificamente sobre a sua práxis:

Quando um povo é obrigado a obedecer e o faz, age acertadamente; mas logo que possa sacudir esse jugo e o faz, age ainda melhor pois, recuperando sua liberdade pelo mesmo direito com que esta lhe foi roubada, ou ele tem o direito de retomá-la ou não o tinham de subtraí-la. (ROUSSEAU, 2006, p. 214)

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Page 21: Justica de transicao vdd memoria e justica

Para o genebrino, o pacto social não suprime a liberdade dos homens em sociedade, mas

promove o seu redimensionamento, passando de liberdade natural em liberdade convencional

(ROCHA, 2010, p.35).

É também Rousseau quem inova ao expor uma proposta de liberdade vinculada à vontade

geral pactuada pelos cidadãos, que se desrespeitada é passível de insubordinação legítima.

Nessa perspectiva, mas em séculos posteriores, Bobbio (2000, p. 253-254) urdirá o seu

entendimento sobre resistência como sendo: “todo comportamento de ruptura contra a ordem

constituída, que coloque em crise o sistema por seu próprio produzir-se, como acontece em um

tumulto, em uma sublevação, em uma rebelião, em uma insurreição, até o caso limite da

revolução (...)”

Por sua vez, Buzanello (2002, p. 22) advoga que o direito de resistência se constitui no

“direito de cada pessoa, grupo organizado, de todo povo, ou de órgãos do Estado, de opor-se com

os meios possíveis, inclusive a força, ao exercício arbitrário e injusto do poder estatal”.

Em tempos modernos, entretanto, notadamente nos regimes caracterizados como

democráticos, há que se sublinhar, consoante o pensamento de Rocha (2010, p. 81), que “(...) não

é qualquer injustiça que autoriza a resistência, mas somente aquelas que criem uma justificativa

capaz de remover o dever de todos para com as instituições democráticas”.

Assim, o autor apregoa que a etapa inicial da resistência deve ser pautada na própria

sobrevivência do Estado democrático, entretanto, em não sendo possível - seja magnitude, seja

pela relevância da injustiça – enseja-se, pois, o direito de resistência em face de quem exerça a

soberania.

Conclui-se, pois, que a tessitura do direito de resistência foi sendo constituída ao longo

dos últimos séculos, sempre com o firme propósito de oportunizar defesa à opressão – individual

e/ou coletiva - promovida por soberanos, independentemente da forma pela qual alcançaram o

poder, mesmo que legítima. De modo que, esta sua inobservância ao ordenamento jurídico e ao

bem-estar coletivo já se constitui como elemento suficiente para o uso do direito de resistência

pelos cidadãos oprimidos.

2. FUNDAMENTOS JURÍDICOS:

O direito de resistência tem seu esteio em diversas normas internacionais, dentre as quais,

são citadas: Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e Pacto Internacional de Direitos

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Civis e Políticos (1966). Merece igual destaque o seu embasamento constitucional, notadamente

no art. 5º, §2º conforme adiante será declinado.

2.1 Das normas internacionais

A primeira norma a dispor – genericamente – sobre o direito de resistência foi a

Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), que no seu Preâmbulo estabeleceu:

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo. Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum. Considerando essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra tirania e a opressão. Considerando essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações. Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla. Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a desenvolver, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos humanos e liberdades fundamentais e a observância desses direitos e liberdades. Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso [...] (grifo nosso) (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, ON-LINE, 1948).

Por semelhante modo, nos seus artigos 28 e 29 a DUDH sublinhou que:

Art. 28 - Toda pessoa tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados. Art. 29. 1. Toda pessoa tem deveres para com a comunidade, em que o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível. 2. No exercício de seus direitos e liberdades, toda pessoa estará sujeita apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer às justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática. 3. Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma, ser exercidos contrariamente aos propósitos e princípios das Nações Unidas. (grifo nosso) (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, ON-LINE, 1948).

Destarte, pode-se afirmar que a DUDH, já a partir do seu Preâmbulo, concedeu

significativa importância para o direito à resistência, na medida em que o formalizou como

direito e universalizou a obrigatoriedade de sua observância.

Por seu turno, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), editado no

ano de 1966, dispôs indiretamente sobre o direito à resistência, nos seguintes termos:

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Art.4º. 1. Quando situações excepcionais ameacem a existência da nação e sejam proclamadas oficialmente, os Estados partes do presente Pacto podem adotar, na estrita medida exigida pela situação, medidas que suspendam as obrigações decorrentes do presente Pacto, desde que tais medidas não sejam incompatíveis com as demais obrigações que lhes sejam impostas pelo Direito Internacional e não acarretem discriminação alguma apenas por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião ou origem social. [...]

Art. 5º. - 1. nenhuma disposição do presente pacto poderá ser interpretada no sentido de reconhecer a um Estado, grupo ou indivíduo qualquer direito de dedicar-se a quaisquer atos que tenham por objetivo destruir os direitos ou liberdades reconhecidos no presente Pacto ou impor-lhes limitações mais amplas do que aquelas nele prevista. 2. Não se admitirá qualquer restrição ou suspensão dos direitos humanos fundamentais reconhecidos ou vigentes em qualquer Estado Parte do presente pacto em virtude de leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob pretexto de que o presente pacto não os reconheça ou os reconheça em menor grau. (grifo nosso) (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, ON-LINE, 1966).

Observa-se que o PIDCP clarificou sobre a possibilidade de vigência de situações

excepcionais, entretanto, declinou que nem mesmo estas situações devem ser suficientes para

suspender as obrigações ali contidas.

Por semelhante modo, o art. 5º. do PIDCP afiançou como inadmissível toda e qualquer

restrição ou suspensão dos direitos humanos fundamentais reconhecidos pelo presente pacto, o

que ratifica a ideia de que as medidas tomadas por soberanos em sentido contrário – para fins de

opressão e violência - deverão ser prontamente enfrentadas, inclusive, pelos próprios cidadãos.

Resta patente que tanto a DUDH, como o PIDCP defendem a democracia em sua

essência, inclusive, já fixando no Preâmbulo do primeiro diploma a possibilidade de insurgência,

quando houver opressão e tirania. Pode-se concluir, então, que em todos os dispositivos aqui

elencados – direta ou indiretamente – são estabelecidos parâmetros mínimos para a observância e

o respaldo da democracia, ou, em caso contrário, para a efetivação do direito de resistência.

2.2 Da fundamentalidade do direito de resistência A fundamentalidade do direito à resistência pode ser vislumbrada a partir da cláusula de

abertura firmada no art. 5o, § 2o, da CF/88, que permite a inclusão, no rol constitucional, de

direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios adotados (LOPES; CHEHAB, 2008, p.

8).

A inclusão formal no catálogo dos direitos fundamentais, graças à norma prevista no art.

5º, § 2°, não é o único, nem talvez o mais forte argumento para afirmar a sua natureza de direito

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Page 24: Justica de transicao vdd memoria e justica

fundamental. Pelo contrário, o mais sólido deles é sua correspondência substancial com a

definição de direitos fundamentais, entendidos estes como princípios jurídicos positivos, de nível

constitucional, que refletem os valores mais essenciais de uma sociedade, visando a proteger

diretamente a dignidade humana, na busca pela legitimação da atuação estatal e dos particulares

(LOPES; CHEHAB, 2008, p. 9)

Desta definição, infere-se que os direitos fundamentais são normas positivas do mais alto

nível hierárquico, visto sua função de preservar a dignidade de todo ser humano, tarefa que deve

ser o centro e fim de todo agir. Aliás, a proteção da dignidade humana é o elemento essencial

para a caracterização de um direito como fundamental. É verdade que todo direito, toda norma

jurídica, tem como objeto a salvaguarda e bem-estar do ser humano - ou pelo menos assim

deveria ser - mas, no caso dos direitos fundamentais, essa proteção é direta e sem mediações

normativas (LOPES; CHEHAB, 2008, p. 10).

O caráter principiológico dos direitos fundamentais deriva, por sua vez, da estrutura

abstrata do seu enunciado, conforme os ensinamentos do jurista alemão Alexy (1993, p.105-108).

Por outro lado, afirma-se, também, que os direitos fundamentais buscam legitimar o Estado, na

medida em que o grau de proteção desses direitos permitirá definir o grau de democracia vigente.

Contudo, não apenas o Estado está submetido aos limites impostos pelas normas dos direitos

fundamentais: os particulares também devem obediência aos seus ditames (LOPES; CHEHAB,

2008, p.10).

Verifica-se, portanto, que o direito de resistência é merecedor do caráter de

fundamentalidade, na medida em que anuncia norma de importância suprema, que delineia

direito indispensável à concretização da dignidade pessoa humana, sendo ratificado, inclusive,

por diversos documentos internacionais, dos quais o Brasil é signatário.

Inconteste é, também, a identidade do direito em apreço para com o princípio da dignidade

da pessoa humana, que, embora não expresso no seio constitucional, encontra guarida no próprio

senso de efetivação dos direitos fundamentais, razão pela qual deve ser entendido de modo a

acolher todos os direitos e garantias que consigo se coadunem.

O que se percebe, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos

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fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana. (grifo nosso). (ROCHA, 1999, p. 60)

Não se pode olvidar, ainda, que a fundamentalidade do direito de resistência pode ser

justificada por dimanar de tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, como o

Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, bastando, para tanto, que o Brasil seja signatário

do documento e obedeça ao regramento do art. 5o, § 3º, da Constituição Federal.

Desta feita, resta indubitável o acolhimento do direito de resistência pelo ordenamento

jurídico brasileiro e, em especial, da sua fundamentalidade, considerando sua formalização

decorrente do regime, da sua presença em diversos dispositivos constitucionais, dos princípios e

dos tratados de que o Brasil é parte, além da sua relevância como instrumento na construção de

uma sociedade livre, justa e democrática.

3. SOBRE A PLAUSIBILIDADE DO USO DO DIREITO DE RESISTÊNCIA NO CURSO DA DITADURA CIVIL-MILITAR

A ditadura militar, estabelecida com o golpe de 31 de março de 1964, e vigente até as

eleições indiretas de 1985, promoveu uma das maiores agressões institucionais perpetradas pelo

Estado brasileiro. Conforme dados do Programa Nacional de Direitos Humanos III (PNDH-3),

estima-se que 50.000 pessoas tenham sido presas somente nos primeiros meses de 1964, 20 mil

brasileiros tenham sido submetidos a torturas, 300 cidadãos tenham sido mortos e/ou

desaparecidos (BRASIL, 2010, p. 173).

Em 1979, com o advento da Lei nº 6.683, o Estado brasileiro - pressionado pela crise

econômica, pela perda de legitimidade na classe média e pela reorganização progressiva da

sociedade civil organizada, especialmente dos movimentos estudantis e dos familiares e parentes

de presos, desaparecidos e exilados políticos - concedeu anistia a todos quantos, no período

compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos

ou conexos com estes, crimes eleitorais, ou tiveram seus direitos políticos suspensos. Assim

também, concedeu anistia aos servidores da administração pública direta e indireta ou de

fundações vinculadas ao poder público, aos servidores dos poderes Legislativo e Judiciário, aos

militares e aos dirigentes e representantes sindicais punidos com fundamento em atos

institucionais e complementares editados nesse período.

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A partir do término formal do regime de exceção, no ano de 1985, os outrora presos e

torturados, além dos familiares de mortos e desaparecidos políticos, passaram a reivindicar,

inclusive judicialmente, a abertura dos registros e arquivos da repressão militar, no intuito de que

o Estado apresentasse para toda a coletividade a verdade sobre as graves violações de direitos

humanos cometidas durante a ditadura e, assim, fizesse jus à memória individual e coletiva do

país, reparando simbólica e economicamente todos os cidadãos atingidos pelo regime.

Passados vinte oito anos, tais reivindicações jamais foram cumpridas em sua integralidade.

Esta ineficácia deve-se, dentre outros fatores, à pressão exercida, junto ao governo federal, por

alguns segmentos da sociedade - especialmente pelos quadros remanescentes da ditadura militar e

por alguns partidos políticos conservadores - que, com o discurso de que a lembrança poderia

colocar em risco a estabilidade democrática, bem como de que os grupos de esquerda que

praticaram atos de resistência são tão culpados pela ditadura quanto os agentes do Estado que

mataram e/ou torturaram, têm conseguido silenciar as discussões mais complexas a esse respeito.

Nesse contexto, a pergunta que persiste é a seguinte: será que os atos perpetrados pelos

indivíduos e/ou grupos que enfrentaram a ditadura civil-militar estão jungidos ao direito de

resistência? Ou seriam, como alguns apregoam, assemelhados aos atos de violência praticados

pelo Estado, e, por isto, plenamente ilegítimos?

Para uma análise mais objetiva dos fatos aqui relacionados, faz-se necessário apresentar o

contexto histórico da ditadura civil-militar, sobre o qual se passa a expor.

A ditadura civil-militar foi iniciada por um golpe de Estado contra um governo

legitimamente eleito, qual seja, do Presidente João Goulart, que há tempos, desde quando foi

titular do Ministério do Trabalho, durante o governo de Getúlio Vargas, já era alvo de críticas

pelos setores elitistas, em razão do seu alinhamento com as forças de esquerda (PRESOT, 2010,

p.72) e do caráter populista ( AMBOS et. al., 2010, p.140)

Em contrapartida, sabe-se que alguns militares - e simpatizantes do regime- costumam

dizer que a tomada do poder somente se deu em razão de uma potencial ameaça comunista no

Brasil, bem como em decorrência de uma reiterada solicitação popular, que, dentre outros

eventos, ganhou vulto com as Marchas da Família com Deus pela Liberdade. (SAFATLE, 2010,

p. 247)

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Malgrado não seja este o objeto do presente, cumpre ser destacado, para fins de

esclarecimento geral da temática, que, conforme Safatle (2010, p. 248):

[...] não havia luta armada de esquerda antes do golpe militar. Não há nenhum caso registrado de grupo guerrilheiro atuante antes do golpe, embora houvesse de maneira reiterada, sublevações militares conservadoras contra governos eleitos que não tinham vínculo algum com a esquerda revolucionária (como as sublevações de Jacarecanga e Aragarças no governo Juscelino Kubitschek) e tentativas de golpe desde o segundo governo Vargas. Isso demonstra como a luta armada esteve vinculada primeiramente à recusa legítima ao regime militar, ao caráter insuportável que ele adquiriu para vários setores da população nacional. (grifo nosso)

Observa-se, portanto, que não havia objetivamente qualquer ameaça comunista no Brasil,

exceto às que foram disseminadas no imaginário popular, no mais das vezes, pelos próprios

setores golpistas, o que findou por incitar, dentre outros expedientes, as supramencionadas

Marchas, posteriormente tidas como elementos de legitimação da ditadura.

Mas, mesmo que assim o fosse, ou seja, que o golpe tenha ocorrido devido ao clamor

popular e, por isto, supostamente seria patente a sua legitimidade, cumpre aqui lembrar as lições

de Friedrich Muller (2003, p.107), para quem a legitimidade é alcançada por meio de um

processo.

Nesta esteira, pode-se até tentar afirmar que os militares alcançaram o poder com certa

legitimidade, mas não seria plausível conceber que a ditadura tenha sido legitimada no seu

transcurso. De fato, a ditadura se encerrou, porque aos poucos, a diminuta legitimidade que

supunha ter, fora desfalecendo, o que resta inequívoco, em razão das seguidas vitórias do partido

de oposição consentida – MDB, durante os seus últimos anos de vigência.

Como se não bastasse a falta de legitimidade comprovada, deve-se destacar que a ditadura

tampouco fora submissa, como deveria sê-lo, ao ordenamento jurídico pátrio. Diz-se isto porque

a Carta Constitucional de 1946 estipulava claramente, em seu art. 79 e parágrafos, um plano de

sucessão para a Presidência da República, em caso de vacância, o que não fora respeitado.

Ademais, na mesma Carta Política, em seu Título IV, Capítulo II, estava firmado um vasto rol de

direitos e garantias individuais, os quais também foram progressivamente desrespeitados e/ou

suprimidos pelos setores militares aliados ao golpe de 1964.

Nessa esteira, é de bom grado frisar que o desrespeito em comento não se configurava em

situação isolada, uma vez que em 1967, três anos depois do Golpe Militar, foi outorgada uma nova

Constituição, já com traços eminentemente centralizadores e limitadores dos direitos individuais,

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Page 28: Justica de transicao vdd memoria e justica

tornando-se conhecida por ser instrumento de suplantação da legalidade e da dignidade da pessoa

humana, forjada em um período de elevada concentração de renda pelas oligarquias regionais e

partidárias da ditadura e de endividamento do país para com organismos financeiros estrangeiros.

(SKIDMORE, 1982, p.383). A despeito disto, esta mesma Carta Política, elaborada pela própria

ditadura, foi objeto de reiterados atos de inobservância por todos os poderes constituídos,

irregularidades que se formalizaram por meio do Ato Institucional nº.5/1968.

Por seu turno, a Emenda Constitucional nº. 1, de 17 de outubro de 1969, acolhida como

instauradora de uma nova ordem, e, portanto, recepcionada como Constituição, não suprimiu os

direitos e garantias fundamentais, contudo, deles não se propôs a fazer uso (BARROSO, 2006,

p.39), mantendo o aparato de violência institucionalizada do governo contra os seus próprios

cidadãos, inclusive, com o uso da execução sumária, leia-se: pena de morte, para alguns dos seus

supostos inimigos capitais, como Carlos Lamarca (MIRANDA; TIBÚRCIO, 2008, p. 500-501).

Destarte, olvidou-se o regime ditatorial de uma premissa básica dentro da Teoria Geral do

Estado, a saber: há que se respeitar – mesmo que minimamente - as regras sobre as quais tal

Estado foi fundado, o que inclui o uso da força, para que não alcance o arbítrio, senão vejamos:

Na medida em que há uso de armas pelos contrários à nova ordem estabelecida, como na guerrilha, há uma série de medidas legais, previstas no ordenamento jurídico do momento para que estes agentes possam ser punidos. Punidos, nunca extintos. A ordem, tendo o direito ao seu lado, jamais pode utilizar-se dos meios, especialmente quando os considere tipicamente terroristas, de seus opositores. Esses podem ser presos, jamais torturados, por um simples motivo de ordem jurídica: quem detém a prerrogativa de delimitar o direito não pode agir contra os parâmetros jurídicos postos. O poder não pode fazer uso de força desproporcional, já que o direito é a própria medida e a adequada proporção da força entre os civilizados. Se aqueles que são contrários a ordem tudo é dado fazer. Aos que detém o poder, e são responsáveis pela manutenção da ordem, somente é dado (sic) a utilização do direito, pelo qual é, em especial nos moldes em que se processou o fenômeno em 1964, responsável. (CORREIA, 2010, p.143-144)

Volvendo-se à ideia originária do presente artigo acerca do direito de resistência, que

estabelece que o soberano não adstrito ao ordenamento jurídico, tampouco ao bem comum, pode

ser submetido a atos de resistência dos seus cidadãos, tem-se por inequívoca a plausibilidade do

uso do direito de resistência pelos grupos de esquerda, durante a ditadura civil-militar brasileira,

haja vista que, como dissertado, ali não houve respeito ao ordenamento jurídico – posto ou

elaborado pela própria ditadura – nem observância ao bem comum.

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Page 29: Justica de transicao vdd memoria e justica

Tais argumentos podem ser exemplificados ainda pelos atos de opressão e violência

cometidos pelo próprio Estado ditatorial em detrimento dos seus cidadãos. Em números, pode-se

afirmar que a ditadura civil-militar brasileira foi responsável por – pelo menos - “10 mil exilados,

7.387 acusações formalizadas por subversão; 4.682 cassados e cerca de 300 mortos e

desaparecidos” (LIRA NETO, 2004, p. 419)

Por tudo isto, pode-se concluir que o uso do direito de resistência, notadamente por grupos

de esquerda, durante o período de exceção militar, fora plausível porque se deu em face de um

governo ilegítimo, que desconsiderou o ordenamento jurídico, a promoção e defesa da

coletividade, tanto na sua origem, quanto no seu exercício.

CONCLUSÃO

Diante do todo exposto, pode-se concluir que:

I - O direito de resistência está diretamente ligado à ideia de soberania, que deve ser exercida em

prol do bem comum e em consonância com o ordenamento jurídico vigente;

II –Por semelhante modo, observou-se que o direito de resistência teve sua matriz teórica

constituída a partir do século XIII, com os escritos de Santo Tomás de Aquino, e aperfeiçoada

com Maquiavel, Locke e Rousseau, sempre com o firme propósito de oportunizar a defesa à

opressão – individual e/ou coletiva - promovida por soberanos, independentemente da forma pela

qual alcançaram o poder;

III - Igualmente, verificou-se que o direito de resistência tem seus fundamentos jurídicos

esposados tanto em diplomas internacionais – a exemplo da Declaração Universal dos Direitos

Humanos (DUDH) e do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) – como na

Constituição Federal de 1988;

IV - Ainda, demonstrou-se que as ações políticas implementadas pelos grupos de esquerda

durante o período de exceção brasileiro podem ser caracterizadas como atos inerentes ao direito

de resistência, haja vista que pautados na insurgência à ditadura civil-militar brasileira, que

alcançou o poder por meio de um golpe militar, em 1º. de abril de 1964, contra o Presidente –

legitimamente eleito - João Goulart;

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Page 30: Justica de transicao vdd memoria e justica

V – Por fim, explicitou-se que o governo militar não gozava de ilegalidade apenas na sua origem,

mas, sobretudo no seu exercício, o qual era pautado pela violência institucionalizada em face dos

seus próprios cidadãos e pela inobservância às normas fundamentais brasileiras.

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Page 31: Justica de transicao vdd memoria e justica

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Page 32: Justica de transicao vdd memoria e justica

AUTORITARISMO: A RELAÇÃO ENTRE OS MILITARES E OS JUÍZES

DURANTE O REGIME INSTALADO EM 1964

Grijalbo Fernandes Coutinho*

RESUMO

Este artigo focaliza o papel do Poder Judiciário brasileiro durante o período da ditadura

militar brasileira (1964-1985). A predominante harmonia existente entre a cúpula da Justiça e

o governo dos generais legitimou a prática de atos cruéis contra militantes de esquerda,

trabalhadores, estudantes e personagens moderados da cena política nacional, indo dos

expurgos às torturas, aos desaparecimentos e aos assassinatos. Dos pilares da democracia e do

Estado Democrático de Direito, o Poder Judiciário não foi simplesmente o mais frágil dos

elos da cadeia, senão verdadeiro legitimador, no tempo do arbítrio, das práticas opressoras e

cerceadoras das liberdades individuais da sociedade brasileira. As reações isoladas, no seio da

magistratura, contra a violência institucional adotada pelo Estado como lema e ação

repressiva contundente, foram objeto de expurgos e aposentadorias compulsórias, sem que

houvesse gestos efetivos de solidariedade por parte do conjunto de juízes e de suas entidades

de classe. Essa adesão silenciosa aos métodos autoritários dos governantes que tomaram o

poder político de assalto em 1964, com uma ou outra insurgência dos homens e mulheres de

toga avessos ao comodismo, resta suficientemente comprovada no último governo militar, a

partir da escolha do presidente da maior associação de juízes brasileiros para ocupar o cargo

de ministro do Supremo Tribunal Federal, conforme ato monocrático do General João

Baptista de Oliveira Figueiredo, chefe ilegítimo da República. Há inúmeras razões capazes de

justificar a apatia do Poder Judiciário. Entre outras, o presente trabalho aponta o perfil político

da magistratura daquela época como sendo a causa mais evidente da decantada neutralidade

assumida pela coletividade dos juízes diante da violência política institucionalizada pelos

autores da quartelada de 1964. Também não é possível relegar a falta de coragem em enfrentar

ditadores armados e seus seguidores agindo como cães ferozes, prontos, por isso mesmo, para

torturar, perseguir, sequestrar e matar insurgentes, sejam eles detentores ou não de alguma

fração de poder na República.

Palavras-chave: História. Direito. Regime militar de 1964. Arbítrio. Direitos Humanos.

Autoritarismo e Poder Judiciário. Positivismo. Constitucionalismo liberal. Conservadorismo.

* Mestrando em Direito pela UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais, juiz do trabalho, titular de Vara do

Trabalho em Brasília-DF, do TRT 10- Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região.

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AUTHORITARISM: THE RELATION BETWEEN MILITARIES AND JUDGES

DURING THE 1964 REGIME

ABSTRACT

This article focuses on the role of the Brazilian Judiciary during the Brazilian military

dictatorship (1964-1985). The prevailing harmony between the higer judges and the

government of generals legitimized the practice of cruel acts against leftists, workers, students

and even moderates in the national political scene, the purges going to torture, disappearances

and killings. One of the pillars of democracy and the democratic rule of law, the judiciary was

not simply the weakest links in the chain, but it truly try to legitimize, in a time of

arbitrariness, oppressive practices that reduced civil rights in the Brazilian society. Isolated

reactions within the judiciary, against institutional violence adopted by the state as a motto,

and as a forceful repression, subject the judges that resited to the regime to compulsory

retirement and purges, without any actual gestures of solidarity from the set of judges and

their associations . This silent alignment to authoritarian methods of rulers who took power

political assault in 1964, with an occasional insurgency of men and women of toga that

repudiated commodity, remains sufficiently proven in the last military government, from the

choice of the president of the largest association Brazilian judges to fill the position of Justice

of the Supreme Court, according the the single wish and act of the tyrannical General João

Baptista de Oliveira Figueiredo, an illegitimte head of Republic. There are numerous reasons

that justified the apathy of the Judiciary. Among others, this paper points out the political

profile of the judges of that time as being the most evident cause of celebrated neutrality

assumed by the community of judges facing the institutionalized political violence by the

authors of the 1964 military uprising. It should also be taken in consideration the lack of

courage in facing dictators and their armed followers acting like vicious dogs, ready,

therefore, to torture, persecute, kidnap and kill insurgents, whether or not holders of some

fraction of power in the Republic.

Key words: History. Law. Military Government of 1964. Dictatorship and the judiciary.

Human rights. Positivism. Liberal constitutionalism. Political conservatism.

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1 INTRODUÇÃO

O regime autoritário brasileiro mais próximo, vigente durante 21 anos, nasceu a

partir de golpe planejado nos quartéis com o apoio de expressivas frações da burguesia,

nacional e estrangeira, e também da nação imperialista norte-americana, cuja execução deste

ato agressivo se deu no dia 31 de março de 1964, havendo, desde então, a quebra da

institucionalidade democrática, com a consequente montagem gradual de novo aparato

jurídico capaz de dar suporte ao conjunto de violações aos direitos humanos.

Numa época marcada pela valorização do Estado constitucional que tem como um de

seus protagonistas o Poder Judiciário, é necessário indicar como os juízes brasileiros lidaram

com a ordem autoritária instaurada em 1964 e os seus comandos presentes em instrumentos

montados pelo arbítrio, sem descuidar, no entanto, da tentativa de localização das causas mais

evidentes de uma postura dos juízes, política e judiciária, refratária ou não à cartilha dos

militares brasileiros que tomaram o poder político de assalto.

Tem relevância para o direito, e sobretudo para a história, avaliar o papel

desempenhado por instituição do poder público concebidas para garantir primordialmente o

exercício dos direitos fundamentais, numa época de flagrante rompimento com a ordem

constitucional e de completo obscurantismo estatal.

O artigo busca, em síntese, indicar o tipo de relação existente entre militares e juízes

na época do arbítrio e algumas das razões para determinadas posturas serem assumidas pelo

Poder Judiciário brasileiro.

2 GOLPE MILITAR DE 1964 NO BRASIL E O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO

Ainda é reduzida a investigação realizada pelo mundo acadêmico a respeito do

efetivo papel exercido pelo Poder Judiciário durante o período do regime autoritário

brasileiro. Mesmo desprezando esse elemento de caráter científico, ninguém ousou até agora

descrever ou defender a tese da resistência, política ou judiciária, ao arbítrio instalado no País

em 1964, por parte dos juízes ou de suas entidades de classe. E aqui, cabe dizer, não serve

para materializar insurgência coletiva ou majoritária os eventuais atos isolados de insatisfação

contra as ações dos golpistas, inclusive pela falta de real solidariedade ou de respaldo aos

gestos de poucos magistrados afetados diretamente ou indignados com o quadro cerceador de

liberdades visto a partir de 31 de março de 1964.

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Page 35: Justica de transicao vdd memoria e justica

Com o propósito de verificar, entre outros aspectos, a intensidade da opressão

presente nos regimes autoritários vigentes no Brasil, no Chile e na Argentina, Anthony Pereira

(2010), numa pesquisa que resultou em livro, defende a teoria de que o grau de violência, em

cada uma dessas nações, foi definido pelo nível de cooperação, consenso e integração

existente entre as elites militares e judiciárias. Para tanto, nota o brasilianista que na Argentina

não houve entrosamento entre os dois segmentos, daí porque os militares portenhos

simplesmente ignoraram o direito e o Poder Judiciário, passando a resolver o confronto

mediante o massacre dos adversários, institucionalizando-se, assim, a violência, a ponto de

eliminar, contando mortos e desaparecidos, 30 mil pessoas, de 1976 a 1983.

No caso do Chile, Pereira assinala que, embora houvesse algum tipo de

entrosamento, definido como moderado, Pinochet não confiava tanto na eficiência do Poder

Judiciário no exame de suas práticas políticas de forte repressão aos opositores do golpe de

1973, motivo pelo qual adotou-se ali a via simples da usurpação das funções judiciárias pelo

comando militar. A corte militar legitimou, em última análise, o assassinato de 7.004 pessoas

e tantas outras opressões e perseguições.

Com especial atenção para a situação brasileira, Anthony Pereira, em vários capítulos

do livro Ditadura e repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na

Argentina (2010), sustenta que, ao contrário dos demais países, no Brasil havia total

entrosamento entre as forças militares e o Poder Judiciário, tendo o autoritarismo, por isso

mesmo, utilizado a estrutura jurídica existente antes do golpe para legitimar os seus atos, com

modificações ao longo do tempo, tal era a confiança depositada pelo regime nos magistrados,

criando, assim, um cenário de suposta normalidade e de respeito às regras do direito. Por

força de tal aliança, principalmente, o grau de violência adotado pelos militares brasileiros

teria sido menor, com 364 vítimas fatais, quando comparado com os extermínios de

adversários políticos vistos na Argentina e no Chile.

O pesquisador norte-americano anota o seguinte:

Onde existia consenso, cooperação e integração entre as forças armadas e o Judiciário, a repressão praticada pelo regime foi em boa medida judicializada, e o sistema judicial foi gradualmente alterado numa direção conservadora. Onde houve um rompimento entre os militares e as elites judiciárias, a repressão transformou-se num ataque radical em grande parte extrajudicial aos procedimentos legais tradicionais. Onde havia uma nítida separação entre as forças armadas e o Judiciário, e a cooperação era limitada, a repressão tomou uma forma intermediária entre esses dois polos. (PEREIRA, 2010, p. 286)

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Em outras palavras, Pereira compreende que a repressão extrajudicial, na ditadura,

aumenta quando o Judiciário não compactua, ainda que de forma velada, com o autoritarismo

(Argentina). Por mais paradoxal que seja a relação, é certo que a existência de tribunais de

confiança do arbítrio é fator de preservação de algumas garantias físicas dos presos políticos

(Brasil). Na dúvida, porém, sobre o respaldo aos atos de violência estatal, usurpam-se as

funções judiciárias para o corpo militar investido agora da condição de julgador, tudo a

configurar quadro intermediário entre a violência institucionalizada e o Estado autoritário

travestido de direito (Chile).

Por outro lado, a tentativa de imprimir algum caráter de legalidade aos atos da

ditadura militar brasileira, na leitura de Anthony Pereira, além do aspecto relativo ao

entrosamento com o Poder Judiciário, também tem suporte na tomada do poder por parte de

militares considerados moderados, na organização mais débil da esquerda brasileira,

especialmente dos grupos armados, e no afastamento de alguns juízes e ministros do STF não

alinhados à doutrina de segurança nacional.

Citado por Renato Lemos (2011), Emir Sader afirma que

Foi mais fácil para a ditadura, após depurar o Legislativo e o Judiciário, conviver com eles, sem necessidade de fechá-los, como aconteceu nos outros países do Cone Sul. Não foi um sinal de “liberalismo” do regime militar, mas de fraqueza das forças democráticas e de ambiguidade acentuada dos liberais: aquelas poderiam ser derrotadas, mantendo-se a fachada das instituições, e esses compactuaram com o regime de força.

Na verdade, os militares brasileiros pretendiam passar para o público a falsa imagem

de ter havido heroico levante contra o marxismo já instalado em algumas nações, mesclando,

por isso mesmo, elementos autoritários com instrumentos próprios de um Estado de Direito.

Tanto é assim que atribuíram ao golpe o significativo nome de “revolução”. O propósito era

escamotear a natureza golpista e autoritária do regime para adquirir a maior carga de

legitimidade possível entre os setores da sociedade desinformados ou simpáticos ao fervoroso

combate aos comunistas, além de esfriar eventual resistência por parte de governos e

organizações internacionais. E para a dissimulação perpetrada um ator era importante na mera

encenação democrática de exercício do poder político, qual seja, o Judiciário dócil e afinado

com a nova ordem e com a doutrina de segurança nacional das forças armadas. Embora

coadjuvantes no script geral, os juízes acabam tendo um papel importante no sentido de

legitimar as atrocidades dos gestores de plantão, especialmente na aplicação das políticas e

regras ditadas no curso da fase autoritária do Estado brasileiro.

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O trabalho investigativo de Pereira tem o notável mérito, entre outros, de expor a real

atitude do Judiciário brasileiro frente ao golpe militar e à ditadura instalada no País em 1964.

Tanto se pode conferir ao referido poder, naquela época, o título de aliado, colaborador e

complacente com o arbítrio ou, de maneira mais suavizada assim vista a ausência de reação

dos juízes, dar-lhe a qualidade de ator omisso, uma espécie de alienado político no processo

de escancarada violência condutora da tritura dos mais elementares direitos humanos durante

duas décadas.

Jamais podem ser relegadas as reações isoladas de juízes e ministros do STF contra o

regime autoritário brasileiro e suas despóticas ordens presentes na maioria das vezes nos atos

institucionais dos anos 1960. Há registro no sentido de que logo no início do autoritarismo 49

juízes sofreram algum tipo de expurgo (FAUSTO, 2000). Com o AI-5 outros magistrados,

inclusive no STF e na Justiça Militar, caíram na inatividade, com destaque para as

aposentadorias compulsórias dos ministros Victor Nunes Leal, Evandro Lins e Silva e Hermes

Lima, e voluntárias de Gonçalves de Oliveira e Lafaiete Andrade, além da compulsória

aplicada ao ministro Peri Constant Bevilacqua, do STM. Também é digna de nota a altivez do

juiz federal Márcio José de Morais ao responsabilizar civilmente a União pela prisão ilegal,

tortura e morte do Vladimir Herzog nas dependências do DOI-CODI, além de determinar a

remessa de cópias dos autos à Procuradoria Militar, para fins penais, conforme sentença

proferida no dia 25 de outubro de 1978, nos autos da Ação Declaratória nº 136/76 (Autores:

Clarice Herzog, Ivo Herzog e André Herzog. Ré: União Federal, da 7ª Vara Federal de São

Paulo).

As eventuais dissidências no âmbito do Judiciário não comprometiam a busca

incessante das forças armadas na perspectiva de legitimar a ditadura sob o manto da

democracia. Para o professor Renato Lemos,

O STF desempenhou um importante papel nestas estratégias, como espaço atenuador de práticas policiais e jurídicas tendentes a aprofundar o caráter ditatorial do regime. É inegável que em muitas ocasiões o tribunal foi determinante para a garantia de respeito a direitos políticos e individuais. Mas essa evidência não invalida a hipótese, apenas indica o conteúdo contraditório das relações entre o Executivo e o Judiciário. O lugar reservado a este, na medida em que o mantinha em funcionamento, implicava o risco de que os juízes, ao menos alguns, votassem contra os interesses dos militares no poder. Como isso acontecesse esporadicamente, ou em relação a questões sem transcendência política, podia ser encarado com um preço razoável a ser pago para reforçar a ideia de uma ditadura provisória claramente comprometida com o restabelecimento da democracia. (LEMOS, 2011, p. 15)

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O juiz federal aposentado Vladimir Passos de Freitas indica algum tipo de resistência

dos juízes ao regime ditatorial instalado em 1964, segundo consta de artigo recentemente

publicado: O Brasil mudava. Atos Institucionais suspendiam direitos constitucionais. O AI 2, em 1965, elevou o número de ministros do STF de 11 para 16, com o intuito de alterar os posicionamentos. O AI 5, em 1968, suspendeu os direitos e garantias individuais, iniciando as cassações. O AI 6, de 1969, excluiu da apreciação judicial uma série de atos. O AI 13, de 1969, dispôs sobre o banimento dos considerados nocivos à segurança nacional. O AI 14, em 1969, instituiu a pena de morte para os casos de guerra psicológica revolucionária ou subversiva. É desta época a cassação de vários juízes. Talvez o primeiro caso tenha sido o do juiz de Direito José Francisco Ferreira, da comarca de Pacaembu (SP), que no dia 31 de março de 1964 mandou hastear a bandeira do Brasil a meio-pau no fórum. Entre tantos, a cassação do desembargador Edgard Moura Bitencourt (TJ-SP), autor do excelente livro O Juiz, do grande José de Aguiar Dias (TJ-DF, então no RJ), autor do ótimo Da Responsabilidade Civil e do juiz federal Américo Masset Lacombe, de São Paulo, que foi preso, cassado e voltou, anistiado, à magistratura, onde chegou à presidência do TRF-3[...]. Em conclusão abreviada pelo limite máximo de duas folhas, na visão minha que pode ser diferente de quem tenha tido outras experiências, penso que no regime militar o Judiciário, na esfera política e institucional, não tinha liberdade de agir, e os que ousassem enfrentar o regime corriam o risco da cassação. Na área das relações entre particulares, Justiça Estadual, não existia qualquer tipo de interferência, sendo plena a liberdade dos Juízes. E quem mais souber que o diga. Vamos construir nossa história. (FREITAS, 2011)

Pode se cogitar, como faz Vladimir Passos de Freitas, da provável cassação do

magistrado caso tivesse ele a ousadia de enfrentar o regime autoritário. Mas o que ocorreu no

Brasil não foi apenas a falta de enfrentamento senão uma adaptação do Poder Judiciário ao

figurino político e jurídico ditado sob a batuta dos quartéis, seja pela legitimidade conferida

ao arbítrio e aos personagens que tomaram o Estado por intermédio de golpe, seja pela

majoritária jurisprudência respaldadora de normas e atos injurídicos, nitidamente ofensivos

aos direitos humanos.

Os militares e o judiciário brasileiro, a exemplo das demonstrações públicas de

arrependimento externadas pelos golpistas argentinos, verdadeiras ou não, deveriam ter a

humildade e a hombridade de reconhecer cada um a sua responsabilidade pelas consequências

do autoritarismo vigente durante mais de 20 anos no país.

Definitivamente, as destemidas reações de alguns juízes naquela época são

fragmentos relevantes, cujo impacto, no entanto, foi reduzido, do ponto de vista de expressão

política, quando consideradas as insatisfações dentro do conjunto de medidas adotadas pelo

Poder Judiciário na análise dos atos arbitrários do regime.

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E assim atesta Theodomiro Romeiro dos Santos, preso político condenado à morte

pela Justiça Militar da época do arbítrio, conforme declaração por ele enviada por meio

eletrônico, em 2011, senão vejamos: A característica principal das auditorias militares foi a de uma estreita vinculação com a extrema direita dos quartéis e a subordinação ao que era decidido nos órgãos de repressão. Para você ter uma ideia, três meses antes do meu julgamento, o então Capitão Hemetério Chaves Filho, comandante da PE em Salvador e que dividia o comando das torturas na Bahia, com o Coronel Luís Arthur de Carvalho, Superintendente da Polícia Federal na Bahia e Sergipe e Chefe do DOI-CODI na mesma região, foi até a frente da minha cela e anunciou que eu seria condenado à pena de morte e Paulo Pontes à prisão perpétua, o que de fato aconteceu logo depois. A condenação foi tão absurda que gerou protestos no Brasil e no mundo, tendo sido pouquíssimo tempo depois reformada, com a conversão (ou comutação) da pena de morte em prisão perpétua, no meu caso, e a absolvição de Paulo Pontes. A situação era semelhante em São Paulo onde o Juiz Auditor de uma das Auditorias Militares chamado Aírton, quando os presos políticos não confessavam em juízo, ameaçava devolvê-los ao DOI-CODI, para novos "interrogatórios". Isso em plena audiência.Reafirmo também o que lhe disse sobre o papel "moderador" do STM. Registro que essa moderação se limitava a instituir um "que" de racionalidade nas decisões do Judiciário Militar, marcadas pela completa injuridicidade das decisões de primeiro grau. Lembro que alguns companheiros do PCBR, do interior da Bahia, foram condenados a penas altíssimas, acusados de tentar desmembrar Jequié (imagine) do território nacional. Pontuo que a Lei de Segurança Nacional (que merece um estudo bem detalhado seu e dos seus professores) apenava com prisão perpétua quem liderasse uma greve no serviço público que durasse mais de trinta dias. Uma loucura! Compareci à auditoria, no mais das vezes, com as mãos algemadas nas costas. Tudo diante dos advogados e da imprensa, que não podia fazer grande coisa. O papel do judiciário e do Supremo, em especial, foi lastimável e de completa subserviência. A Corte Suprema respaldou todos os atos de arbítrio, de violência e de arbitrariedade cometidos contra os presos políticos, de forma muito especial contra aqueles que escolheram a resistência armada contra a ditadura. Menção especial, Grija, a alguns pouquíssimos juízes auditores antifascistas, que nunca sucumbiram aos desmandos ditatoriais. Presto homenagem especial a Ramiro Teixeira da Mota, que nos visitava frequentemente na Penitenciária Lemos Brito e que findou sendo cassado pelo AI-5.

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Em outra mensagem eletrônica, a fim de dissipar qualquer dúvida a respeito do

caráter da Justiça Militar, Theodomiro assinala que

Depois de postar a mensagem, no dia seguinte, fui relê-la e fiquei pensando que posso ter transmitido uma impressão pouco adequada do tal "papel moderador" do STM. Concretamente, a nomeação para o cargo de Ministro do STM era um regalo somente oferecido para os oficiais generais, das três armas, mas afinados e fiéis ao regime militar. Era um presente e tanto. Nenhum trabalho (que era feito por assessores), bom salário, cargo vitalício e proventos no mesmo valor dos vencimentos. Foram para lá Bizarria Mamede e Orlando Geisel (irmão de Ernesto), e tantos outros do mesmo tipo. Nem o cargo de adido militar numa embaixada do circuito Elizabeth Arden era tão bom, porque a exoneração podia acontecer a qualquer hora. O problema é que a base do Judiciário Militar estava tão próxima da extrema direita do regime militar, dos órgãos de repressão política, que as decisões das Auditorias Militares frequentemente replicavam suas convicções nos julgamentos proferidos. Mesmo porque os Conselhos de Sentença só tinham um Juiz Auditor, sendo os demais militares, um Conselho para cada uma das três armas. Veja o meu caso. O Conselho que me julgou e condenou à pena de morte era formado pelo Juiz Auditor e por outros quatro, (nesse caso, de possibilidade de condenação à pena de morte), oficiais superiores da arma do militar morto. Ainda que se desse para qualquer um deles o benefício da dúvida (que eu não tenho nenhum motivo para dar), imagine a pressão que eles não sofriam dentro dos quartéis para apenar o acusado com a pena mais grave... Por isso, se pode falar do papel, modus in rebus, moderador do Tribunal.

A cúpula do Poder Judiciário e a Justiça Militar não foram entraves à consolidação

do golpe militar, muito menos às práticas gerais de opressão e de aniquilamento dos direitos

humanos vistas com a tomada do poder pelos homens dos quartéis em 1964.

De igual modo, a base da magistratura, organizada em associação de classe, também

deixou de expressar eventual descontentamento com o regime autoritário. O silêncio quase

inexplicável por parte de quem tem a missão constitucional de assegurar o exercício dos

direitos civis e políticos mitigados pela ditadura, no mínimo, importou em conformação com

o arbítrio. Não é possível dizer, sem uma investigação mais profunda, se foi mera

conformação ou velada adesão ao regime de exceção. Talvez a escolha direta e nomeação pelo

último general no poder, em 1984, do presidente da maior associação de magistrados do

Brasil (AMB), naquela época congregando juízes de todos os segmentos do Poder Judiciário,

para o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal, possa indicar ao menos a completa

omissão da entidade dos juízes quanto à necessária crítica ao Estado autoritário vigente desde

31 de março de 19641. Isso porque as entidades de classe da magistratura normalmente

1 Sydney Sanches, juiz de carreira do Estado de São Paulo, foi diretor da APAMAGIS (Associação Paulista de Magistrados Estaduais), de 1970 a 1971, e de 1980 a 1981, presidente da AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros), eleito por voto direto, nos biênios 1982-1983 e 1984-1985, e escolhido pelo General Figueiredo para ocupar o cargo de Ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), cujo ato de nomeação foi

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assumem uma voz bem mais ativa e contundente do que aquela manifestada pelos seus

integrantes nos pronunciamentos judiciais, dadas as limitações impostas inclusive por uma lei

da ditadura (Lei Orgânica da Magistratura Nacional – Loman, de 1979) e o recato que alguns

julgadores têm como predicado indissociável para o exercício da função com imparcialidade.

Sem ignorar o natural receio com as perseguições próprias dos regimes autoritários e

da consequente comodidade política provocada pela omissão frente ao arbítrio da ditadura, há

outros componentes determinantes de uma conservadora postura majoritária assumida pelos

diversos segmentos do Poder Judiciário – STF, Justiça Militar e juízes de base organizados em

associação de classe. É o que se tentará demonstrar a seguir.

3 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL DE CONFIANÇA DO REGIME E JUSTIÇA

MILITAR DOS MILITARES

A forma de seleção dos ministros do Supremo Tribunal Federal, desde a sua criação,

com pequenas variações, é marcada pela prerrogativa conferida ao presidente da República

quanto ao ato da escolha livre entre juristas para depois receber a medida presidencial

chancela meramente formal do Senado. O referido modelo secular, inspirado nos sistemas de

escolha da França e do EUA, além de pouco permeável à democracia, estabelece radical

separação entre a cúpula e a base da Justiça. São dois segmentos bem distintos do Judiciário,

com visões e aspirações quase sempre diferentes a respeito de questões políticas e jurídicas.

Não é possível tomar o STF como expressão do conjunto da magistratura, embora o tribunal

tenha de fato o privilégio constitucional de ser a voz com maior definitividade no

proferimento de sentenças judiciais.

Por outro lado, diante do último aspecto descrito e do viés hierárquico presente no

sistema de criação da jurisprudência, as decisões tomadas pelo STF repercutem com

extraordinária força no seio de todos os segmentos e instâncias do Poder Judiciário. Trata-se

de uma espécie de entrosamento compulsório, isto quando as entidades de classe não

conclamam os seus membros a desafiar a autoridade do órgão máximo de cúpula.

É por isso que tanto na época do regime militar quanto hoje, na análise do perfil do

Judiciário, é fundamental ter em conta as diferenças marcantes entre os membros do STF e os

integrantes das demais instâncias, inclusive porque os primeiros, como regra, não possuem

publicado em 13 de agosto de 1984. É o que revela a sua biografia presente na página do STF (www.stf.jus.br). Acesso em 28 mar. 2011.

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origem na carreira da magistratura.

Atenta ao corpo de integrantes do Supremo Tribunal Federal, para onde seguiam, em

última instância, os processos movidos contra os presos políticos, a ditadura militar brasileira

tratou, em um primeiro plano, de ampliar o número de ministros daquele tribunal, de 11 para

16, por intermédio do Ato Institucional nº 2, de 1965, com a finalidade de obter maioria

capaz de referendar os atos de arbítrio. Em face da ausência da maioria tranquila,

especialmente porque permaneciam no STF magistrados escolhidos dentro de outro contexto

político, não alinhados, portanto, ao regime de força, os expurgos foram inevitáveis depois da

edição do AI-5 em 1968, com a saída, compulsória ou não, de 5 ministros.

Quatro anos depois do golpe, o caminho estava pavimentado para a ditadura sofrer

apenas derrotas pontuais no âmbito do STF, as quais não comprometeriam a essência da

doutrina de segurança nacional dos militares. Havia, com o sistema de alteração gradual na

estrutura jurídica e na composição do órgão de cúpula do Judiciário, um Supremo Tribunal

Federal de confiança dos governantes de plantão.

Quanto à Justiça Militar, as palavras de Theodomiro Romeiro dos Santos, transcritas

no item 2 deste artigo, conseguem resumir a falta de independência judicial do referido

segmento do Poder Judiciário, em relação aos militares. Eram órgãos de primeira instância –

Circunscrições Militares Judiciárias (CJMs) – compostos por ampla maioria de militares

(leigos), escolhidos criteriosamente pelo regime, não sendo muito distinto o perfil do

STM(Superior Tribunal Militar), onde também houve expurgo de um dos seus ministros.

A existência de jurisdição militar, por si só, já configura flagrante aberração em

qualquer Estado constitucional. Durante o arbítrio dos militares, então, ter uma justiça militar

é mais ou menos como conferir poder aos juízes padres da Santa Inquisição Católica

Medieval para julgar e queimar vivos cientistas, hereges, protestantes, bruxas e sujeitos outros

dotados de ideias renascentistas.

Enfim, a Justiça Militar da época da ditadura era a justiça dos militares.

4 PARADIGMA LIBERAL POSITIVISTA DO DIREITO E O CONSERVADORISMO

DA MAGISTRATURA

Ora, partindo da premissa de que o Supremo Tribunal Federal e a Justiça Militar

representavam frações políticas bem distintas dos demais segmentos e instâncias do Poder

Judiciário, deve haver, sem nenhuma dúvida, outra explicação diferente daquela relatada no

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quadro exposto no tópico anterior, capaz de justificar a apatia do conjunto da magistratura de

base, frente à ditadura militar que se instalou no Brasil no dia 31 de março de 1964, aos seus

desmandos institucionais e ao processo de redemocratização do País.

Não se tem notícia, por exemplo, do engajamento de qualquer entidade nacional de

juízes no movimento das diretas-já2, numa época em que a ditadura agonizava

profundamente, vivendo os seus últimos dias de arbítrio muito mais sufocada pela opinião

pública. Ao contrário do que se espera da sociedade civil organizada, o que inclui os

magistrados em suas associações de classe, temos logo depois da derrota da emenda “Dante

de Oliveira” (25 de abril de 1984) a nomeação do presidente da AMB para o cargo de ministro

do Supremo Tribunal Federal (13 de agosto de 1984), pelo último ditador brasileiro. O ato é

sintomático para definir o papel predominante dos juízes durante o regime autoritário.

Anthony Pereira fornece algumas pistas gerais motivadoras da falta de reação dos

juízes aos atos dos militares. Indica ele o conservadorismo da tradição jurídica no âmbito da

América Latina e da própria sociedade brasileira, conforme trechos a seguir transcritos:

Além disso, na tradição do direito civil latino-americano, os juízes eram vistos não como criadores de leis através de interpretação, como no direito consuetudinário anglo-saxão, mas como aplicadores das leis formuladas com exclusividade pelo Executivo ou pelo Legislativo. Não se trata aqui de um viés meramente filosófico inerente ao sistema de direito civil, mas de um fato sociológico. O papel dos juízes na América Latina, muitas vezes, era visto como “o de servidor público que desempenha funções importantes, embora essencialmente pouco criativas, o que refletia a relativa fraqueza do Judiciário frente ao Executivo. Executivos fortes, Judiciários fracos, sistemas inquisitoriais de direito penal, massas privadas de direitos civis e elites temerosas da subversão consistem assim nos antecedentes dos casos aqui discutidos. [...] A sociedade brasileira, com sua história de escravatura e da manutenção do império até 1889, era mais hierárquica e conservadora que as de seus vizinhos do Cone Sul, que haviam passado por grandes mobilizações de massa durante as guerras de independência, sendo mais fortemente influenciados pelas ideias republicanas. (PERERIRA, 2010, p. 82 e 84)

2 A campanha das Diretas-Já foi a potencialização da luta contra a ditadura militar de toda a sociedade civil brasileira organizada e também dos desorganizados. Um marco da batalha pacífica do povo brasileiro contra a intolerância, a violência e o autoritarismo. E ainda serve como antídoto contra quaisquer intenções golpistas que porventura estejam camufladas nos setores conservadores e reacionários das elites nacionais. Não obstante a rejeição da emenda das Diretas-Já no dia 25 de abril de 1984, pelo Congresso Nacional, que tanta frustração causou ao povo brasileiro naquela noite de praças públicas lotadas e irmanadas do sentimento de altivez democrática, a ditadura militar passou a ter os dias contados a partir daquele evento.

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Com o advento das grandes revoluções burguesas nos séculos XVII e XVIII, o antigo

regime tem as suas estruturas destruídas no âmbito econômico para dar lugar aos vetores

liberais nos mais diversos espaços das relações humanas. A liberdade agora, no espectro

jurídico, passa pela obediência severa à lei contra o despotismo visto antes. Nesse sentido, o

código napoleônico de 1804 foi o instrumento jurídico mais importante para marcar uma nova

era nesse campo.

Não bastava, porém, fixar paradigma novo sem alterar o perfil dos sujeitos

incumbidos de julgar os conflitos.

Nos dizeres de Dalmo Dallari,

Nessa fase histórica, referida pelos teóricos franceses como ancien régime, o ofício dos juízes, que integravam os Parlaments, era considerado um direito de propriedade, tendo a mesma situação jurídica das casas e terras. Em tal situação, a magistratura podia ser comprada, vendida, transmitida por herança, ou mesmo alugada a alguém quando o proprietário não se dispunha a exercer a magistratura mas queria conservá-la,para futura entrega a um descendente que ainda era menor de idade. O ofício era rendoso, pois a prestação de justiça era paga, havendo muitos casos de cobrança abusiva(...) Por todas essas características, os magistrados acabaram sendo vistos com temor pelos particulares que, a qualquer momento, poderiam ser envolvidos num litígio, tendo de pagar muito caro pela interferência do juiz. Mas também os que participavam do governo ou das atividades políticas viam os juízes como pessoas perniciosas, que se interessavam mais por seus proveitos pessoais do que pelo direito, pela justiça e pelo bem do povo. Tudo isso contribuiu para que a Revolução Francesa punisse muitos juízes e procurasse adaptar o Judiciário aos princípios republicanos e aos sistemas de proteção de Poderes. (DALLARI, 1996, p. 14-15)

Era imprescindível, por conseguinte, ter juízes afinados com o espírito liberal das

revoluções burguesas e com os textos jurídicos produzidos pelo Parlamento. Nessa época, em

oposição ao modelo nada confiável de magistratura do antigo regime, nasce o juiz boca-da-lei

como expressão de um positivismo jurídico exacerbado, na qualidade de um dos sustentáculos

ou expressões do liberalismo econômico reinante, confirmando, em certa medida, a teoria

marxista do aparato jurídico como mero epifenômeno da infraestrutura econômica.

As raízes liberais, dotadas de conteúdo revolucionário, em relação ao momento

econômico, político e cultural anterior, foram fincadas no mundo inteiro, ainda presentes na

atualidade sob outra roupagem para assegurar a vitalidade do regime capitalista. E o

positivismo incrustou-se nas mentes ao longo dos dois últimos séculos como verdadeiro

cimento quase impenetrável a qualquer tipo de nascimento de novas árvores jurídicas mais

sensíveis à vida humana.

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Como anuncia Dallari,

Por influência do positivismo jurídico passou-se a considerar que só é “direito” o que está contido na lei. E esta, no mundo atual, é feita segundo o jogo das forças políticas, sem qualquer consideração pela realidade social ou por aquilo que na linguagem de Montesquieu e dos teóricos do direito natural seria a “natureza das coisas”. De qualquer modo, o direito seria sempre político, mas a partir da concepção do Poder Legislativo como um órgão ou conjunto de órgãos em que são produzidas as leis, essa politicidade passou a caminhar muito próxima da natureza político-partidária. Desse modo foi estabelecida uma ambiguidade, pois a lei pode ser a expressão do direito autêntico, nascido das relações sociais básicas e expressando os valores de um grupo social, mas, geralmente, passou a expressar apenas a vontade do grupo que predomina em determinado momento da vida de um provo, sendo muitas vezes um instrumento de interesses individuais ou grupais contrários aos de todo o povo. (DALLARI, 1996, p. 57)

Para Roberto Lyra Filho, o positivismo

Sempre capta o Direito, quando já vertido em normas; o seu limite é ordem estabelecida, que se garante diretamente com normas não-legisladas (o costume da classe dominante, por exemplo) ou se articula, no Estado, como órgão centralizador do poder, através do qual aquela ordem e classe dominante passam a exprimir-se (neste caso, ao Estado é deferido o monopólio de produzir ou controlar a produção de normas jurídicas, mediante leis, que reconhecem os limites por elas mesmas estabelecidos). (FILHO, 1982, p. 40)

Mas surgiram reações filosóficas aptas a desvendar os verdadeiros propósitos do

positivismo e do direito como fenômeno metafísico. Nietzsche desmontou a estrutura do

racionalismo metafísico vigente durante séculos, ao proclamar com autoridade filosófica que

não há neutralidade nas palavras, nem mesmo nas teorias sustentadas a partir de princípios

aparentemente isentos. Tudo demanda interpretação, inclusive a mais genuína palavra criada e

proferida depois por inúmeras pessoas. Marx, na ponta esquerda do ataque ao racionalismo

iluminista burguês, não despreza a racionalidade de modo tão radical como fazia Nietzsche,

embora seja mais ácido na crítica à metafísica desafiada pela teoria do materialismo histórico

dialético. O racional de Marx é o caminho natural da luta sem tréguas do proletariado para

alcançar o socialismo científico.

As concepções de Marx e Nietzsche influenciaram o pensamento jurídico, com

destaque para a manifestação dos autores da contemporânea modernidade, aqui sintetizadas

as referidas inspirações no reconhecimento das gritantes desigualdades materiais entre o

capital e o trabalho, como também no papel jamais neutro da linguagem e da hermenêutica.

Somente com a tragédia do holocausto, o positivismo, como uma das expressões do

liberalismo também colocado em xeque, entra em franco declínio, ao menos do ponto de vista

da doutrina internacional. É que o direito posto aplicado sem tomar em conta os direitos

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humanos não conseguia resposta suficiente para ao menos dizer que a legislação de Hitler

violava normas fundamentais asseguradoras da vida digna.

As duas correntes de maior embasamento teórico no campo do Direito Constitucional

revelaram-se ineficazes para negar validade ao genocídio perpetrado pelo nazi-fascismo. Carl

Schmitt, teórico do regime, concentrava-se na descrição do papel Führer (comandante

supremo) como único interprete da vontade do povo. Hans Kelsen, embora perseguido pelo

regime, enfatizava uma obediência estrita à norma jurídica positivada, independentemente do

modo de sua formulação e do seu conteúdo, sem atribuir ele qualquer papel aos princípios,

cujo formalismo exacerbado do jurista alemão importava no cumprimento a qualquer custo da

norma fundamental, a ponto de declarar que a interpretação não é um problema da ciência do

direito (jurídico) (BARBOSA, 2010).

A interpretação constitucional fundada em princípios pode ser eficaz contra

retrocessos políticos, econômicos e sociais, populismos e eventuais medidas autoritárias

tomadas em nome da vontade do soberano eleito e consagrado pelo povo , assim como é viva

e mutante para rejeitar a mera aplicação do direito sem questionar o seu conteúdo ético e

humanista

Parece ser inquestionável, desde então, o avanço das ações de combate às verdades

absolutas antes anunciadas pela metafísica e, para o nosso campo de observação, no

protagonismo judicial avesso às soluções fiéis exclusivamente aos aspectos literais do objeto

investigado. Diante do quadro substancialmente alterado em relação ao mundo da ciência,

coloca-se em xeque, assim, conduta avalizadora de decisões anunciadas por certo positivismo

jurídico limitador da esfera crítica e reflexiva por parte dos operadores do direito.

Para representar uma nova fase do direito avesso ao positivismo insensível e capaz

de ignorar a violência respaldada em norma jurídica, são aprovados diversos tratados

internacionais, com destaque para a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948

(ONU), e criadas as cortes regionais de direitos humanos.

Embora o positivismo tenha se enfraquecido como doutrina jurídica no mundo do

pós-guerra, os efeitos daí decorrentes não se fizeram sentir tão rapidamente, inclusive no

Brasil, onde a cega obediência à literalidade da lei e o caráter não axiológico do direito

integravam a rotina dos magistrados por ocasião do golpe militar de 1964. E outra vertente

desse verdadeiro vício hermenêutico que contamina mentes 200 anos depois de seu

surgimento como fenômeno revolucionário repousa na equivocada recomendação de que a

teoria de tripartição de poderes impede a emissão de juízo de mérito, pelo Judiciário, a

respeito da tomada de poder político por um ou outro grupo da sociedade, seja qual for o

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método utilizado.

Sobre o perfil da magistratura do século XX, José Eduardo Faria pontua que Graças a essa estratégia seletiva, expressa pelas categorias normativas forjadas pelo Estado liberal (como as noções tradicionais de contrato, legalidade, constitucionalidade, hierarquias das leis etc.) e operacionalizada pelo Judiciário nos casos de conflito concreto, esta concepção de direito atribui às regras jurídicas a responsabilidade de articular relações formalmente “igualitárias” entre os “sujeitos de direito”, garantindo o valor da segurança jurídica e, ao mesmo tempo, tornando tão previsíveis quão controláveis os atos de autoridade emanados dos diferentes órgãos decisórios do sistema legal. Em nome de uma concepção legal-racional de legitimidade, que despreza as determinações genético-políticas de suas categorias, preceitos e procedimentos, este sistema é autolimitado para resolver os conflitos jurídicos a partir de decisões estritamente legais – o que faz com que a ordem institucional seja encarada como uma estrutura formalmente homogênea, exclusiva e disciplinadora do comportamento dos cidadãos e do funcionamento do Estado. (FARIA, 1995, p.29)

Não pode ser relegado também o componente ideológico presente na falsa afirmação

de que não há direito sem normatividade e sem positivismo. Como dizia Roberto Lyra Filho,

“a ideologia é cegueira parcial da inteligência entorpecida pela propaganda dos que a

forjaram” (FILHO, 1981, p. 29).

Hermético, o Poder Judiciário brasileiro não tomou conhecimento da experiência

hitlerista na Alemanha, fechando os olhos para o golpe militar e as ações autoritárias da

ditadura instaurada em 1964. É provável que a cultura jurídica das próprias universidades

tenha persistido na linha positivista adotada na primeira metade do século XX.

A veia conservadora do Poder Judiciário e de seus juízes foi a chave para o regime

autoritário legitimar a ditadura disfarçada de Estado de direito. E assim seguiu sobretudo pelo

paradigma normativista prevalecente no seio da magistratura, numa equivocada crença de que

a imparcialidade ou a neutralidade somente pode ser alcançada pela via do exercício da matriz

positivista. O paradoxal é que o liberalismo esteve praticamente ausente do cenário

econômico no pós-guerra, mas um de seus vetores continuou firme no mundo jurídico do

capital que não pretendia desmontar a totalidade da engrenagem do sistema. O

constitucionalismo liberal valorizador da individualidade e da mitigação dos direitos humanos

jamais foi abolido da academia e dos diversos espaços jurídicos.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A postura complacente do Judiciário com o regime militar brasileiro gerou

consequências danosas das mais variadas ordens, marcando uma época de funcionamento da

instituição repleta de casos notoriamente ofensivos aos direitos humanos, sem, contudo, haver

reação adequada por parte dos juízes – julgadores e ativistas políticos –, salvo raras e

honrosas exceções.

É inegável que o aparato ideológico do sistema capitalista teve função relevante na

apatia da magistratura com o golpe e a ditadura militar, ao sedimentar falsa concepção a

respeito dos temas e atores envolvidos na disputa anterior ao triste desfecho de 31 de março

de 1964. Aliás, é muito mais longo o período e são mais profundas as raízes definidoras do

perfil político de uma determinada sociedade. Nesse sentido, pode-se dizer, precipitadamente,

que o comportamento dos magistrados apenas reflete a opinião predominante do conjunto da

sociedade. O problema é que ao corpo judiciário confere-se atributo especial para assegurar o

pleno funcionamento do Estado de direito e o exercício das garantias fundamentais contra

quaisquer tentativas autoritárias. Os juízes, por formação ético-moral e dever constitucional,

não podem ser alienados políticos, e muito menos estão autorizados a fechar os olhos diante

do arbítrio para salvar a própria pele.

O conteúdo ideológico de maior expressão para revelar a face conservadora do

Judiciário esteve presente, sem nenhuma dúvida, no apego a uma doutrina jurídica superada,

apesar de ainda hoje encontrar respaldo em alguns segmentos. É necessário romper com o

paradigma positivista. Interpretar textos e contextos não constitui algo simples, fácil e

burocrático, muito menos é medida resguardada por neutralidade, também ausente quando da

concepção de normas variadas. Se o ato fosse mecânico, insensível do ponto de vista

humanístico e social, fundado na concepção de ser por demais “clara a regra” posta, com o

alto grau de aperfeiçoamento contínuo dos sofisticados aparelhos da revolução cibernética em

curso, qualquer eficiente programa de computador conseguiria decidir os conflitos entre os

humanos de forma mais célere, econômica, “racional” e imparcial do que os homens e

mulheres hoje incumbidos dessa tarefa.

Com a transição moderada feita no Brasil e o Judiciário imune à crítica contundente

da sociedade pela sua atuação durante a época do arbítrio, não será fácil obter justiça

transicional, direito à verdade e à memória, reparação e condenação dos agentes do Estado

responsáveis por torturas, perseguições e assassinatos. O Supremo Tribunal Federal, por

enquanto, recomenda absoluta amnésia, no esquecimento definitivo da ditadura e de todos os

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seus violentos atos contra os direitos humanos durante mais de duas décadas.

Muitos não esquecerão, por outro lado, da postura até agora manifestada pelo STF a

respeito da anistia concedida aos militares golpistas, assassinos e torturadores de 1964, bem

como não compreendem, muito menos se conformam, com a interpretação reacionária dada a

uma lei aprovada sob a direção política da cruel ditadura brasileira.

REFERÊNCIAS

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SANTOS, Theodomiro. Depoimento. Mensagens recebidas por [email protected], em 11 de julho de 2011 e 13 de julho de 2011. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Pastas dos Ministros – Ministro Sydney Sanches. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=bibliotecaConsultaProdutoBibliotecaPastaMinistro&pagina=SydneySanchesDadosDatas> Acesso em: 28 mar. 2011. TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO-TRF-1. 7ª Vara Federal da cidade de São Paulo. Ação declaratória. Processo nº 136/1976, 3 volumes, entre partes: Clarice Herzog, Ivo Herzog e André Herzog X União Federal. Prolator da decisão monocrática de primeira instância: Juiz Federal Márcio José de Morais. Sentença proferida em 25 out. 1978.

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ANTECEDENTES HISTÓRICOS DA LEI DE ANISTIA E DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL

ANTECEDENTES HISTÓRICOS DE LA LEY DE AMNISTÍA Y DE LA JUSTICIA DE TRANSICIÓN EN BRASIL

Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar o período histórico que deu origem à ditadura militar e a lei de anistia brasileira, que por sua vez impactou na efetivação da Justiça de Transição no país. Dentro dessa perspectiva, faz-se necessário abordar os diferentes fatores históricos que deram origem ao golpe militar, contemplando o período do pré-golpe e o estabelecimento do regime de opressão, cuja resistência deu ensejo a campanha empreendida pela sociedade em prol da promulgação de uma lei de anistia. O objetivo é possibilitar uma maior compreensão a respeito da organização da sociedade brasileira que possibilitou a conquista da lei e cujos desdobramentos deram origem a redemocratização do país. Palavras-chave: golpe de 1964; ditadura militar; anistia; justiça de transição. Resumen: Este artículo tiene como objetivo analizar el periodo histórico que dio origen a la dictadura militar y la ley de amnistía brasileña, que a su vez impactó en la eficacia de la justicia transicional en el país. Dentro de esta perspectiva, es necesario abordar los diferentes factores históricos que condujeron al golpe militar, que abarca el período anterior del golpe y el establecimiento del sistema de opresión, lo que dio lugar a la campaña de resistencia llevada a cabo por la sociedad para la promulgación de una ley de amnistía. El objetivo es permitir una mayor comprensión de la organización de la sociedad brasileña que permitió la conquista de la ley y cuyos avances han dado lugar a la redemocratización del país. Palabras clave: golpe de 1964; dictadura militar; amnistía; justicia transicional.

1 INTRODUÇÃO

A lei de anistia brasileira é um tema atual e cogente, que apesar de suas décadas

de existência contrapõe ideologias e continua a suscitar grandes divergências e acalorados

debates. Questões como a apuração de responsabilidades, punição aos torturadores, reparação

as vitimas e a abertura dos arquivos das forças armadas jamais foram esquecidas, continuam a

emergir no cenário jurídico-político nacional.

Dentro desse escopo, tem-se que o processo que deu origem a campanha nacional

pela anistia foi reflexo de um período totalitário e opressor, onde um verdadeiro terrorismo de

estado foi imposto à população. As forças armadas, em nome da segurança nacional e

proteção da sociedade frente ao estabelecimento de um suposto comunismo, passam a

caracterizar como subversivos determinados segmentos da sociedade. Inseridos na lógica

repressora, os militares estabelecem política de eliminação de qualquer ameaça ao regime,

Gabriela Natacha Bechara

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seja ela real ou imaginária. O cidadão comum torna-se suspeito. Qualquer pessoa pode vir a se

tornar um inimigo interno que as forças armadas deveriam eliminar.

O período que compreendeu a ditadura militar (1964 - 1985) é considerado o

período mais negro da história do país. Brasileiros de todas as classes e credos foram mortos,

seqüestrados, presos, torturados. Inúmeros “desapareceram”. Os direitos humanos foram

sistematicamente violados em seus mais básicos aspectos.

Em contrapartida as atrocidades cometidas, surgiram ensaios de uma resistência

política, cultural, armada. Todas rechaçadas pelos militares.

Doravante, a partir de uma conjuntura nacional mais favorável a resistência ao

regime, a sociedade começa a reagir, mobilizando-se na luta contra as arbitrariedades

cometidas. A luta foi empreendida pela sociedade como um todo, dando origem a um

movimento nacional e diversificado, cujo mote consistia em uma anistia “ampla, geral e

irrestrita”. A campanha nacional pela anistia surge como um objetivo agregador, pacificador

das diferenças sociais.

Apesar da luta empreendida, a lei de anistia aprovada condizia com os desejos dos

militares, que se auto-anistiaram, ou seja, retiraram o caráter punitivo de certos atos

praticados por agentes públicos durante o regime militar.

A lei é fruto da configuração de forças da época, única possível dentro do

contexto histórico da distensão política delineada pelo general Geisel e levada adiante pelo

general Figueiredo.

Ainda que parcial, a conquista da lei representou importante passo na retomada da

democracia. A questão da anistia possui notável influência sob a história política recente do

país, e é o resultado de um esforço da sociedade civil nunca visto e cujo esforço culminou na

redemocratização da sociedade brasileira.

A Justiça de Transição vem para auxiliar na compreensão do processo de

redemocratização, oferecendo subsídios a respeito de como promover a mudança de um

regime totalitário para um regime democrático. Seus pilares, ou dimensões, foram

influenciados diretamente pela forma como se deu o processo de anistia no Brasil.

Assim, o presente artigo tem por objetivo fazer um levantamento histórico acerca

do período imediatamente anterior ao golpe militar de 1964, a deflagração do golpe, o período

que compreendeu a ditadura militar no país e a luta da sociedade brasileira pela lei de anistia e

redemocratização do país.

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2 A ANISTIA E SEUS ANTECEDENTES HISTÓRICOS

2.1 PERÍODO DO PRÉ-GOLPE MILITAR

Os anos que antecederam a ditadura militar no Brasil foram de intensa atuação

política entre as forças que disputavam o poder no país. Ao mesmo tempo, o mundo passava

por um período de divisão em dois blocos com a ocorrência da guerra fria, conflito entre as

duas potências dominantes na época, Estados Unidos e União Soviética e suas diferentes

concepções ideológicas1.

Como o restante da América Latina, o Brasil permanece sob a órbita da política

externa norte-americana, voltada a manutenção de sua influência na região.

Nesse ínterim, ocorre nas Américas a Revolução Cubana liderada por Fidel

Castro, que passa a organizar sua política de forma a exportar sua revolução. Por sua vez, na

busca pelo apoio e disseminação de sua própria política, os Estados Unidos estavam

determinados a impedir o avanço comunista através de Cuba no restante dos países latino-

americanos. A respeito de suas conseqüências na América Latina, tem-se que

A partir de 1959, a Revolução Cubana marcou profundamente a política exterior dos Estados Unidos, que anunciaram não mais tolerar insurgências desafiando sua hegemonia na região, logo após ter ficado clara a aproximação entre Cuba e União Soviética. Para garantir que os governos da região permanecessem como aliados, os Estados Unidos apoiaram ou patrocinaram golpes militares de exacerbado conteúdo anticomunista. (BRASIL, 2007, p. 19)

Como maior país da América do Sul, o Brasil passa a ser um dos alvos naturais

dos diferentes interesses em conflito. Americanos, soviéticos e cubanos enviam representantes

e estabelecem determinadas estratégias no intuito de influenciar a política interna do país, cuja

posição estratégica era fundamental para a contenção ou uma possível expansão do

comunismo na região.

Dessa forma, dado os interesses em jogo, não só o Brasil, mas a América Latina

como um todo, torna-se campo de manobra da política exterior americana, principalmente,

que passa a interferir na política interna de todos os países do bloco.

Corroborando nesse sentido, observa-se um incremento no poder (político e

econômico) dos grupos políticos opositores aos governos mais nacionalistas e com possíveis

                                                                                                                         1 A Guerra Fria tem sua origem na divisão ocorrida quando da vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial. Refere-se ao período de disputas e conflitos indiretos ocorridos entre os Estados Unidos e a União Soviética e suas zonas de influência.

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simpatizantes de esquerda que se multiplicavam pelo continente sul-americano. Isso porque

tal política era associada ao comunismo colocado em prática na União Soviética que os

Estados Unidos queriam expurgar, evitando uma possível onda comunista que assolasse o

continente vizinho.

Dentro desse contexto, assim como seus vizinhos latino-americanos, devido a

pressões externas e a configuração de poder na política interna, o Brasil sofreu ruptura em sua

ordem constitucional com a instauração do regime militar, verdadeiros anos de chumbo e

aborto democrático na história brasileira.

O cenário interno que deu ensejo ao golpe militar ocorrido em 1964 começa a se

delinear, resumidamente, a partir das décadas de 50 e 60, com o um aumento das pressões

sociais e o surgimento de novas organizações populares. Peculiaridades regionais, a situação

política e a disputa de poder acabaram por resultar em inquietações sociais generalizadas.

Com o passar do tempo, o aumento da população urbana em conjunto com o êxodo rural, o

endividamento externo, o déficit orçamentário da União, os elevados índices de inflação e o

aumento da concentração de renda resultam em uma onda de reivindicações sociais.

Portanto, as mudanças ocorridas no período aliadas com o subseqüente

desenvolvimento econômico e as mudanças sociais geram uma necessidade de modificações

profundas. (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1986, p. 56) Relativamente as

reivindicações sociais, tem-se que os tradicionais grupos da elite que disputavam o poder na

época não mostravam-se dispostos a implementar tais reformas.

É nesse cenário de inquietações sociais generalizadas que surge a figura de Jânio

Quadros, político carismático e de carreira fulminante, que criticava a corrupção no governo,

a desordem financeira e as negociações. Sua personalidade popularesca reunia no imaginário

popular todas as esperanças do país. Sua popularidade era tal que atingia diferentes camadas

da população, abrangendo desde a classe média e antigetulistas até os trabalhadores rurais e

operários urbanos. Sobre sua ascensão política:

Jânio Quadros era um político solitário que havia construído uma carreira política sobre seu carisma no estado de São Paulo. Começara como professor de ginásio, mais tarde vendendo sua história da gramática portuguesa de porta em porta, mas sua verdadeira vocação era convencer os eleitores da classe média de que ele podia limpar a política. Era uma figura desgrenhada – alto e magro, com os cabelos caindo sobre o cenho e um olho ruim (resultado de um acidente de infância). Era especialmente adepto de manter os holofotes sobre si soltando trechos saborosos de uma história enquanto postergava com sucesso o desfecho. Sua campanha para a presidência em 1960 exibia esse talento. O símbolo de sua campanha era uma vassoura – para

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varrer os políticos corruptos. Jânio atraía um apoio tão amplo e entusiástico que chegava ao público como uma espécie de messias. Ele foi a escolha da UDN, que o nomeou na esperança de finalmente ter um vencedor. Mas Jânio dava pouca importância à fidelidade partidária. No meio da campanha renunciou à indicação da UDN para caracterizar sua independência. (SKIDMORE, 2000, p. 208).

O Candidato a presidência nas eleições de 1960 Jânio Quadros é eleito

representando a União Democrática Nacional - UDN, e João Goulart2, candidato do Partido

Social Democrático – PSD, para vice. Quadros foi eleito com 48% dos votos, derrotando seu

principal adversário, o General Henrique Teixeira Lott3.

Ao assumir o poder, Jânio passa a implementar uma política interna controversa e

autoritária, optando por uma pacote ortodoxo de estabilização que acaba por reduzir o poder

aquisitivo dos salários recebidos pela população, dada, entre outros, a desvalorização cambial

e o corte dos subsídios do trigo e do petróleo.

Em sua política exterior4, Jânio estabelece uma política de independência em

relação a política norte-americana, condecorando Che Guevara com a Ordem do Cruzeiro do

Sul e apoiando a independência das colônias portuguesas na África.

Seu carisma passa a desvanecer perante a população, principalmente devido a seu

personalismo, comportamento pessoal esdrúxulo, tendências sensacionalistas e recusa em

negociar sua política, caminhando para o isolamento político, sem apoio ou aliados. Avesso a

negociações, Jânio, sem aviso, renuncia em 25 de agosto de 1961. Ainda restam dúvidas sobre

suas razões5, mas

Ele evidentemente supunha que a renúncia não seria aceita e que forçaria o Congresso a dar-lhe poderes de emergência – como ocorrera com o general de Gaulle na recente crise francesa precipitada pela independência da Argélia. (SKIDMORE, 2000, p. 209-210)

Sua estratégia de renúncia mostra-se por demais ineficiente6 pois não consegue

angariar o apoio previsto. João Goulart, seu vice e quem legitimamente deveria sucedê-lo,

                                                                                                                         2 A legislação eleitoral da época permitia que o eleitor votasse no candidato a presidente de uma determinada chapa e no vice de outra, não existindo o chamado voto casado. 3 Lott foi um dos responsáveis pelo contra-golpe militar de 1956 que conseguiu garantir a posse de Juscelino Kubitschek. 4 A política externa de Jânio Quadros era posta em prática pelo seu ministro do Exterior, Afonso Arinos de Melo Franco. Sua política de independência consistia muito mais na busca por um caminho alternativo para o país entre os dois grandes blocos em confronto do que uma efetiva aproximação com o comunismo. 5 Hipótese mais corrente é a que combina sua personalidade instável e um cálculo político equivocado, uma vez que se considerava imprescindível para o país e esperava com essa estratégia obter mais poderes para governar. Em novembro de 1959 Jânio já havia lançado mão do expediente, com sucesso. 6 Jânio não conseguiu fortalecer-se ou angariar o apoio das massas como ocorrera com Fidel Castro na Revolução Cubana.

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encontrava-se em visita a China, o que não foi bem visto pelos partidos liberais e de direita.

Sua volta ao país e sua posse só foram possíveis com o apoio da mobilização conhecida como

Campanha pela Legalidade, que visava assegurar a posse de Goulart.

Apontado como radical pela alta hierarquia das Forças Armadas, o vice-presidente João Goulart, principal herdeiro do nacionalismo getulista da década de 50, teve seu nome impugnado pelos três ministros militares. Contra esse veto, levantou-se uma ampla mobilização popular em todo o país. A reação mais enérgica partiu do Rio Grande do Sul, onde o governador Leonel Brizola comandou uma forte pressão, nas ruas, para que fosse assegurada a posse de Goulart. Receosos da guerra civil que se esboçava, os militares novamente recuaram, impondo, no entanto, o estabelecimento do sistema parlamentarista de governo, que retirava poderes do presidente. (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1986, p. 57)

João Goulart assume a presidência com poderes limitados pelo parlamentarismo

imposto pelos militares e num contexto de mobilizações e pressões sociais até então

desconhecidas. Como plano de governo, Goulart estabelece como ideologia básica o

nacionalismo e as chamadas reformas de base, que incluem reforma agrária, urbana, bancária,

fiscal e educacional, além do direito de voto aos analfabetos. Tais reformas incluíam também

medidas de cunho nacionalistas como uma maior intervenção por parte do Estado e a

nacionalização de algumas empresas. (FAUSTO, 2003, p. 447-448)

Em plebiscito nacional ocorrido em janeiro de 1963 os brasileiros votam pela

revogação da emenda que impusera o parlamentarismo. Deflagrada a crise econômica oriunda

de outros governos, movimentos sociais passam a se organizar e reivindicar seus direitos.

Ocorrem manifestações do Movimento Nacional dos Sargentos, das Ligas Camponesas e

algumas greves, inspiradas pelo próprio governo para aumentar a pressão por reformas.

Jango passa a organizar uma série de comícios populares em diferentes cidades do

país onde anuncia o lançamento de decretos que dariam início às reformas de base. Seu

primeiro comício acontece em 13 de março de 1964, no Rio de Janeiro, e foi o início do fim

de seu governo. As medidas presidenciais colocavam em risco o controle da elite, que vê seus

privilégios ameaçados pelas manifestações populares com a incorporação das massas à

política do país e começam a se organizar para opor uma forte resistência e derrubar o

presidente.

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No dia 19 de março, em protesto ao comício presidencial, setores mais

conservadores, contando com o apoio de empresários7 e da Igreja Católica8, organizam em

São Paulo a primeira “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”9, pregando o perigo da

postura anticristã, contra a família e comunista do governo federal10.

A respeito das tendências golpistas da direita, tem-se que “O golpismo tornava-se

um recurso que setores da direita lançavam mão para deter o avanço popular e compensar

suas perdas eleitorais.” (DOLHNIKOFF, 2001, p. 265). Tentativas anteriores já haviam

acontecido, como para impedir a posse de Vargas e Juscelino Kubitschek, a crise em 1954,

sublevações militares em 1956 e 1959.

O golpe militar passar a ser estimulado abertamente pela CIA, Agência Central de

Inteligência Americana, que financia entidades como o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação

Democrática) e o IPES (Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais), que veiculavam violenta

propaganda contra o governo. Armas também são oferecidas ao general Carlos Guedes, um

dos deflagradores do golpe.

Segundo a estratégia anti-comunista adotada pelo governo americano, além da

articulação, propaganda e participação de setores abastados do país, a participação militar era

essencial na suposta luta contra o comunismo, pois garantiria uma efetiva tomada do controle

do país. Assim como a direita, os militares estavam preocupados com o alastramento da

esquerda no Brasil, mas algumas de suas alas se mostravam relutantes em atuar. O pretexto

para a ação dos militares ocorre quando da revolta dos marinheiros e fuzileiros navais por

melhores condições de trabalho, posteriormente conhecida como Levante dos Marinheiros11.

Os revoltosos são anistiados pelo governo, o que é visto como um ato de agressão a hierarquia

das forças armadas, ensejando o fim da indecisão entre alguns setores militares,

oportunizando a ação por parte dos militares.

                                                                                                                         7   Interesses do capital nacional e estrangeiro ameaçado leva o empresariado a apoiar econômica e politicamente. 8  Setores da ala mais conservadora da Igreja Católica tiveram papel fundamental na mobilização que antecedeu o golpe de 1964.  9 Segundo estimativas existentes na época, a Marcha do Rio de Janeiro contou com a participação de 500 mil pessoas, tendo sido organizada em diferentes cidades do Brasil. Seu fundo estratégico consistia na manipulação dos sentimentos religiosos da população, majoritariamente católica. 10 As tentativas de reforma passam a ser encaradas como tentativas de implantar o comunismo no país, quando na verdade tratava-se apenas da modernização necessária para reduzir as desigualdades sociais, tão exacerbadas no país. 11 Ocorrida na sede do sindicato dos metalúrgicos do Rio de Janeiro, no dia 25 de março de 1964. Seu líder era José Anselmo dos Santos, o cabo Anselmo, mais tarde identificado como informante do Centro de Informações da Marinha (Cenimar) e agente da CIA. (CARVALHO, 2004, p. 143)

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2.2 O GOLPE

O golpe foi deflagrado de forma eficiente e rápida. Em 31 de março tropas

militares deslocam-se de Minas Gerais para o Rio de Janeiro, sendo logo seguidas pelas de

São Paulo. Sobre o apoio americano:

O apoio dos EUA foi dado de forma prática, com a aproximação de navios da Frota do Atlântico Sul, com o desembarque de armas nas costas de Santa Catarina com submarinos sem identificação e com o fornecimento de informações do serviço secreto americano aos golpistas. (SEIXAS; POLITI, 2009, p. 39)

Ao deslocamento de tropas contra o governo não foi oposta resistência

significativa. João Goulart prefere o exílio12 a provocar uma guerra civil. Assim, sem

resistência popular ou militar o presidente legitimamente constituído do Brasil é deposto.

Após a derrubada de Jango, seguiu-se um período de repressão violenta, com

prisões e torturas, estabelecendo um clima de medo e delações entre a população. Figuras

importantes de esquerda e pessoas que haviam tomado posições nacionalistas, bem como

todos que poderiam oferecer alguma resistência ao estabelecimento do novo regime, foram

presas. A sede da União Nacional dos Estudantes- UNE, foi incendiada. As ligas camponesas

perseguidas. Intervenções em sindicatos e federações eram rotineiras.

Aparentemente imposto para livrar o país da desordem, da ameaça do comunismo

e da corrupção e com o fim maior de restaurar a democracia, o golpe militar passa a adquirir

diferentes contornos com a promulgação dos Atos Institucionais e a adoção da Doutrina de

Segurança Nacional.

A promulgação de Atos Institucionais13 foi a maneira encontrada pelos militares

de burlar a Constituição, conferindo legitimidade ao novo regime. O alto comando emitiu o

primeiro decreto legitimador em 9 de abril de 1964 denominado Ato Institucional n. 1, que

reforçava o Poder Executivo, reduzia o campo de ação do Congresso, conferia ao presidente a

iniciativa de projetos de lei referentes ao orçamento, suspendia imunidades parlamentares e

direitos políticos, cassando mandatos e expurgando funcionários públicos e juízes, que

perdem a estabilidade e a vitaliciedade. (FAUSTO, 2003, p. 466-467)

Na mesma época, os políticos de direita que haviam apoiado o golpe são

surpreendidos pelos militares, “que decidem assumir diretamente o poder.” (CARVALHO,                                                                                                                          12  Assim  como  Jango,  outras  personalidades  políticas  de  peso  procuram  refúgio  no  exterior.  13  Ao  todo  foram  17  Atos  Institucionais,  sendo  os  mais  importantes  o  AI-­‐2  e  o  Ai-­‐5.  

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2004, p. 158) Com o Congresso e a população em choque, o general Humberto de Alencar

Castelo Branco 14, escolhido por meio de votação indireta no Congresso em 16 de abril, é

imposto como presidente.

Num primeiro momento a intervenção militar foi anunciada como passageira,

saneadora das mazelas sociais e da infiltração comunista no país.

Logo, no entanto, começaram as cassações, os desaparecimentos e o início das

torturas em nome da segurança nacional. Dentro das forças armadas ainda existiam diferentes

alas de influência, que apesar de não divergirem entre si a respeito da necessidade do golpe,

possuíam diferentes pontos de vista acerca de como deveria se dar a intervenção:

Os militares distinguiam-se ainda em dois agrupamentos: a chamada “Sorbonne”, como eram conhecidos os ideólogos da Escola Superior de Guerra (ESG), que forneceriam as bases doutrinárias para a intervenção político-social, e os representantes “linha-dura” que comandavam as principais unidades militares. Durante os vinte anos de ditadura, esses dois grupos disputaram o controle político do país e compuseram o núcleo do poder. (CAMPOS; DOLHNIKOFF, 2001, p. 271)

As eleições estaduais de 1965 concedem importantes vitórias a oposição,

alarmando os militares da linha-dura, que passaram a exigir um controle maior das eleições.

Em 17 de outubro de 1965, dias após as eleições, o General Castelo Branco baixa o AI-2,

estabelecendo, entre outros, a extinção dos partidos políticos existentes na época. Institui-se o

bipartidarismo, com a criação da Aliança Renovadora Nacional (Arena), agrupando os

partidários da ditadura, e do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que reunia a

oposição consentida.

Em outubro de 1966 o Congresso é fechado e reconvocado pelo AI-4 para aprovar

a nova Constituição Federal, que legalizava o governo ilegítimo dos militares.

Dias antes de deixar o governo, Castelo Branco promulga a Lei de Segurança

Nacional, que determina que toda ação possivelmente desestabilizadora do regime, passava a

ser alvo de punições.

Com o fim do governo de Castelo Branco, representantes dos linha-dura

conseguem articular a eleição do general Artur da Costa e Silva, que toma posse em março de

1967.

A partir de 1966 ocorre o início de uma rearticulação por parte da oposição:

setores mais liberais da Igreja Católica passam a se fazer ouvir, estudantes voltam a se

                                                                                                                         14 O General Castelo Branco era chefe do Estado-Maior das Forças Armadas.

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manifestar ruidosamente contra a repressão, forma-se a Frente Ampla, composto por

Juscelino, Carlos Lacerda e Jango. Em 1968 as manifestações ganham ímpeto. A morte do

estudante Edson Luís de Lima Souto pela Polícia Militar durante protesto no Rio de Janeiro

choca a sociedade, acarretando na famosa passeata dos 100 mil.

A essas manifestações o governo reage com destempero e de forma violenta, com

prisões, assassinatos, “desaparecimentos” e torturas, baixando o infame AI-5 em dezembro de

1968, considerado o golpe dentro do golpe, pois suspendia os direitos civis e políticos,

estabelecia a censura prévia dos veículos de comunicação e suprimia o mandado de segurança

e o habeas corpus. O AI-5 consolidava a Doutrina da Segurança Nacional15 que identificava

como inimigos internos determinados setores da sociedade como agentes do comunismo

internacional.

Com a edição do AI-5, houve início de período de prisões indiscriminadas,

torturas sistemáticas, estupros, fazendo com que as pessoas começassem a se organizar para

resistir a essas práticas bárbaras. Num primeiro momento, familiares, amigos e advogados das

vítimas começam a criar redes de distribuição de informação e proteção. Focos de resistência

a abusividade da ditadura passam a surgir nos mais variados cantos do país. Artistas e

intelectuais unem suas vozes contra a ditadura.

Como fruto da repressão e da impossibilidade de oposição legal e de resistência

civil, surgem os primeiros grupos de luta armada no país, influenciados pela formação de

guerrilhas nos países latino-americanos vizinhos.

Em resposta à falta de alternativa para a oposição legal, grupos de esquerda começaram a agir na clandestinidade e adotar táticas militares de guerrilha urbana e rural. Em setembro de 1969, houve o primeiro ato espetacular da guerrilha urbana, o seqüestro do embaixador norte-americano. Daí até o final do governo Médici, em 1974, forças da repressão e da guerrilha se enfrentaram em batalha inglória e desigual. Aos seqüestros e assaltos a bancos dos guerrilheiros, respondia a repressão com prisões arbitrárias, tortura sistemática de presos, assassinatos. Opositores assassinados eram dados como desaparecidos ou mortos em acidentes de carro. A imprensa era proibida de divulgar qualquer notícia que contrariasse a versão das forças de segurança. (CARVALHO, 2004, p. 162-163).

                                                                                                                         15  A  Doutrina  da  Segurança  Nacional  foi  desenvolvida  no  Brasil  pela  Escola  Superior  de  Guerra,  criada  em  1949,  sob  influência  norte-­‐americano,  no  intuito  de  afastar  a  onda  vermelha  do  ocidente.  

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Curiosamente o PCB, Partido Comunista Brasileiro, era contra a luta armada.

Foram seus dissidentes que se organizaram em diferentes grupos e introduziram a guerrilha no

país16.

Esses grupos, em sua maioria, não contavam com mais de quinhentos

guerrilheiros, com idade em torno dos 20 anos. A atuação mais consistente desses grupos

ocorreu entre 1969 e 1972, com ações ousadas que impuseram derrotas táticas e publicitárias

a ditadura, numa estratégia de guerra de desgaste e desestabilização do regime.

Suas ações consistiam basicamente em assalto a bancos para angariar fundos para

a sobrevivência da resistência, as chamadas expropriações, e o seqüestro de diplomatas, como

o do embaixador americano17, a fim de trocá-lo por presos políticos, entre outros.

Um grande aparato repressivo foi montado para combater a oposição armada. Ligado diretamente ao Conselho de Segurança Nacional, o poderoso Serviço Nacional de Informações (SNI) subordinava todas as Secretarias Estaduais de Segurança e seus respectivos Departamentos de Ordem Política e Social (DOPS), além de coordenar os serviços secretos e centros de operações das três armas. No Exército foram criados dois organismos de operações especiais: o Centro de Operações de Defesa Interna (Codi) e o Destacamento de Operações e Informações (DOI). Vinculando as ações das polícias e do Exército financiadas por industriais brasileiros e multinacionais, foram organizadas operações de varredura de militantes de esquerda, denominadas Operações Bandeirantes (Oban). (CAMPOS; DOLHNIKOFF, p. 276, grifo nosso)

O fato de as guerrilhas serem isoladas politicamente e divididas, além das

sucessivas mortes e desaparecimentos dos militantes que as compunham, fizeram com que os

grupos de luta armada começassem a desaparecer. Em 1972 a maioria dos grupos armado já

não existia. Seus líderes morreram em confronto com as forças militares ou sob tortura.

Historiadores do período elencam ainda duas razões principais para o declínio das

guerrilhas. A primeira diz respeito a eficácia do aparato militar na repressão, que dizimou os

militantes e o grupos de apoio a causa. A segunda tem a ver com o isolamento dos grupos

guerrilheiros da massa da população, que em sua maioria, não se identificava ou se

solidarizava com a luta empreendida.

                                                                                                                         16 Pode-se citar a Aliança Libertadora Nacional (ALN), liderada por Carlos Marighella, assassinado em 1969; Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), liderada por Lamarca, assassinado em 1971; Vanguarda Armada Revolucionária – Palmares (VAR – Palmares); Comando de Libertação Nacional (COLINA); Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8) 17 Charles Burke Elbrick foi sequestrado quando ia para casa almoçar. Foi trocado por outros 10 militantes, que se encontravam presos.

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Essa última razão explica-se ainda pelas condições econômicas favoráveis geradas

durante o governo do general Emílio Garrastazu Médici, no poder desde outubro de 1969. Em

seu governo houve o auge da repressão, com o silenciamento da oposição legal, o

desbaratamento das guerrilhas e a euforia vivida pela ocorrência do “milagre econômico”18.

Ainda, para neutralizar a população o governo utilizava uma campanha de propaganda

intensa, o que acarretava na não percepção da ditadura com o que ela de fato era, um regime

de exceção, que feria os direitos e liberdades da sociedade. Dessa maneira, a situação

econômica e a intensa propaganda oficial acabaram por ampliar a aceitação do regime militar

durante o período do milagre.

A propaganda veiculada pelo governo foi beneficiada com o aumento de

televisores nos lares brasileiros. O apoio da Rede Globo, maior beneficiária entre os veículos

de comunicação pelo regime militar, foi crucial:

A mais famosa beneficiária do favoritismo do governo foram as Organizações Globo, o conglomerado de mídia e editora que entrou na área da TV em 1965 e inicialmente obteve ajuda técnica e financeira do grupo Time-Life para se desenvolver. A corporação logo se desfez desse vínculo e emergiu por si mesma como a mais agressiva e profissional rede de TV. Sua expansão foi abertamente favorecida pelos governos militares, que lhe garantiram as melhores localizações e facilitaram a importação do equipamento mais atualizado. Em troca, a TV Globo seguia uma política de programação estritamente pró-governo, um poderoso trunfo para os generais, uma vez que o telejornal noturno da TV Globo alcançava 80% da audiência, além de suas taxas de audiência no geral superarem de longe a soma das taxas de todas as outras redes. (SKIDMORE, 2000, p. 241)

O último grande foco de resistência das guerrilhas ocorreu na Bacia do Araguaia,

no estado do Pará, onde um grupo de guerrilheiros treinados infiltraram-se no local e

ganharam a simpatia da população. Resistindo bravamente as incursões do Exército, o grupo

só foi dizimado anos depois quando um corpo de elite de 10 mil soldados capturou e

assassinou os militantes.

Ainda sobre o Araguaia:

Restou um foco de guerrilha rural que o PC do B começou a instalar em uma região banhada pelo Rio Araguaia, próxima a Marabá, situada no leste do Pará – o chamado Bico do Papagaio. Nos anos 1970 – 1971, os guerrilheiros em número aproximado de setenta pessoas estabeleceram ligações com os camponeses, ensinando-lhes métodos de cultivo e cuidados com a saúde. O Exército descobriu o foco em

                                                                                                                         18 O milagre econômico ocorreu entre 1969 a 1973, durante o governo do general Médici e combinava um extraordinário crescimento econômico com uma inflação relativamente baixa.

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1972, mas não se revelou tão apto na repressão como fora com a guerrilha urbana. Foi só em 1975, após transformar a região em zona de segurança nacional, que as forças do Exército conseguiram liquidar ou prender o grupo do PC do B. Tudo isso não chegou ao conhecimento do grande público, pois a divulgação do assunto era proibida. Quando muito, corriam boatos desencontrados sobre a guerrilha do Araguaia. (FAUSTO, 2003, p. 483-484)

Todos os grupos que optaram pela luta armada, cedo ou tarde acabaram

esfacelados pelos militares, resultando na prisão, tortura, morte, “desaparecimento” e

banimento de centenas de militantes envolvidos. Na verdade, dada a falta de preparo da

maioria dos jovens envolvidos, bem como a diferença de recursos disponíveis, revelam que a

esquerda armada jamais constituiu ameaça política significativa ao regime, mas seus ataques

deram argumentos aos militares linha-dura, fortalecendo a opinião dos que defendiam uma

maior repressão. (SKIDMORE, 1989, p. 249)

Em 1973 o general Ernesto Geisel toma posse, prometendo o início de uma

distensão19 política, verdadeira liberalização do regime com uma abertura “lenta, gradual e

restrita”. Durante todo o seu governo Geisel sofreu fortes pressões dos militares da linha-dura,

que não concordavam com a retomada da democracia, pois ainda acreditavam na ameaça

comunista e na existência de subversivos em meio a nação.

Mesmo não fazendo parte de grupos de esquerda, sindicatos ou associações,

simples suspeitas poderiam levar qualquer cidadão a ser alvo de torturas por parte dos

militares, que ainda acreditavam na existência de inimigos internos.

Com a repressão indiscriminada por parte do regime, a elite passa a ter o mesmo

tratamento que as demais parcelas da população. Nesse primeiro momento o medo cala. No

entanto, lentamente a sociedade passa a reagir às barbaridades cometidas pelo regime,

retirando, mesmo que gradualmente, o apoio dado ao golpe.

2.3 O MOVIMENTO PELA ANISTIA

Apesar da repressão, uma nova conjuntura nacional começa a se caracterizar com

o crescimento das lutas populares e o isolamento político do regime, ao mesmo tempo em que

se agrava a situação econômica. O cenário político favorável começa a se delinear com a

promessa de distensão por parte do general Geisel e com as vitórias do MDB nas eleições de                                                                                                                          19 A estratégia da distensão foi formulada pelo general Golbery. Quanto as razões de Geisel e Golbery para promoverem a abertura provavelmente dizem respeito ao desgaste enfrentado pelo governo e os reflexos negativos da Ditadura Militar nas forças armadas.

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1974, que apesar de configurarem uma oposição consentida, mostram a rearticulação política

da sociedade.

A morte do jornalista Vladimir Herzog20 em outubro de 1975 causa verdadeira

comoção social. Em janeiro do ano seguinte, a morte do operário Manoel Fiel Filho21 dá

continuidade à indignação. As torturas e outras violações aos direitos humanos passam a ser

veiculadas pela imprensa. As mortes de Herzog e Fiel Filho representam um estopim,

disseminando no imaginário popular o repúdio pelas arbitrariedades cometidas e o sentimento

abertamente hostil quanto aos métodos utilizados pelos repressores. Amplos setores da

sociedade passam a se manifestar, o que acaba tendo impactos sem precedentes nos rumos do

regime, pois a campanha que se inicia em prol da anistia dá sustentação as reivindicação

relativas a redemocratização do país.

Impende ressaltar que a luta pela anistia é anterior ao movimento deflagrado na

década de 70, mas foi nesta última que se passou a ter um movimento efetivamente

organizado.

Logo após a deflagração do golpe, o escritor Alceu Amoroso Lima, também

conhecido pelo pseudônimo de Tristão de Athayde e o jornalista Carlos Heitor Cony

defendiam a anistia veementemente.

Dentro do próprio Superior Tribunal Militar - STM22, surgiam vozes em prol da

anistia. Um exemplo é o General Pery Constant Bevilacqua, que se manifestava favorável ao

instituto, citando célebre frase do Duque de Caxias, que também era a favor da Anistia. Outro

o do próprio general Olímpio Mourão Filho23, futuro ministro do STM, que também se

manifestava a favor.

Nesse primeiro momento, a idéia de Anistia surge como forma de conciliação

nacional. Sobre o assunto, em apresentação do livro Liberdade para os Brasileiros, Anistia

Ontem e Hoje, de Roberto Ribeiro Martins, Hélio Silva relembra aos leitores a tradição

brasileira da pacificação da sociedade e da família através do ato de anistia. (SILVA, 1978, p.

12)

                                                                                                                         20 Vladimir Herzog era diretor do Canal Cultura de São Paulo, lecionara na USP e fora correspondente da BBC, sendo conhecido por seus muitos contatos no exterior. Herzog se apresentou voluntariamente quando soube que estava sendo procurado pelo Segundo Exército. No dia seguinte, informou-se que Herzog havia cometido suicídio depois de ter confessado ser membro do Partido Comunista. 21 Manoel Fiel Filho fazia parte do sindicato dos metalúrgicos de São Paulo. 22 Dizia-se que o STM era mais liberal do que a justiça civil. Quando do governo do general Médici, alguns generais mais liberais foram nomeados ministros do STM, justamente para afastá-los dos comandos ativos. (SKIDMORE, 1989, p. 262) 23 Olímpio Mourão Filho foi um dos generais que deflagrou o golpe de 1964.

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Em meados de 1966 a 1967, forma-se a Frente Ampla, composta por lideranças

como Carlos Lacerda, Juscelino e João Goulart que exige a redemocratização e a realização

de eleições diretas e livres, além de também pregar a concessão da anistia. A respeito de suas

reivindicações:

Desde fins de 66 que se articula um movimento que procura unir setores de oposição até elementos provenientes do golpe de 64. A Frente Ampla procura apresentar uma alternativa civil para o regime, através da aglutinação das principais lideranças dos antigos partidos: Juscelino Kubitschek, pelo PSD e João Goulart, pelo PTB, ambos já cassados, e Carlos Lacerda (que então já caracterizava o regime como antidemocrático e neofascista), pela UDN. A Frente defende em seu programa “Anistia Geral para que se dissipe a atmosfera de guerra civil que existe no país” e critica a “idéia de revisão dos atos de suspensão de direitos políticos”. Depois de “incomodar” o governo e “irritar” os seus elementos mais radicais, a Frente é fechada em abril de 68 e, com o AI-5, Lacerda é cassado. (MARTINS, 1978, p. 124)

A Constituição de 1967 muda a competência para concessão da anistia, cabendo

exclusivamente ao Presidente a iniciativa, sendo ouvido o Conselho de Segurança Nacional,

mantendo a competência de aprovação do Congresso Nacional.

A partir de 1968, com a volta das manifestações estudantis, ocorre, em março, a

morte de Edson Luís em passeata que protestava contra o fechamento de restaurante

estudantil. As manifestações passam a ocorrer no Brasil todo, e a Passeata dos 100 mil reúne

diferentes setores da sociedade em prol de reivindicações.

Aproveitando-se de uma brecha legal, o primeiro projeto concedendo anistia é

apresentado pelo deputado Paulo Macarini24, e visava conceder o instituto a todos os

envolvidos em atos relacionados com as manifestações populares a partir da morte de Edson

Luís. A votação do projeto, apesar de ameaçada pelo governo, aconteceu em agosto do

mesmo ano e a medida, não surpreendentemente, foi rejeitada dada a forte pressão militar:

Preocupada com a questão, a liderança do governo na Câmara buscou traçar normas de ação para impedir o que o noticiário da época classificou como possível “surto de anistia”. Afinal, embora rejeitado por 198 votos, o projeto de Macarini obteve mais de 140 votos favoráveis, com pelo menos 35 deles saídos da própria bancada do governo. Além disso, em agosto de 1968 tramitavam, na Câmara Federal, outros dez projetos de anistia, todos de iniciativa da oposição. (MEZAROBBA, 2007, p. 34)

                                                                                                                         24 Paulo Macarini fazia parte do MDB-SC e foi cassado pelo AI-5.

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A repressão por parte do regime se torna mais dura. Intimidações, perseguições,

prisões e torturas tornam-se lugar comum na sociedade brasileira. A instituição do AI-5 e os

anos de repressão mais violenta do governo Médici acentuam a necessidade da anistia,

embora não possa ser abertamente reivindicada. Dada essa impossibilidade, passa-se a

reivindicar o respeito aos direitos humanos como um todo, com o fim das arbitrariedades,

torturas, prisões, seqüestros e desaparecimentos.

No programa partidário do MDB, elaborado em 1972, reclama-se a anistia. Outros

projetos beneficiando com a anistia os envolvidos na oposição ao regime são apresentados,

mas rejeitados, na Câmara Federal. Destaca-se os projetos de Florim Coutinho (MDB-RJ),

apresentados em 1975 e 1977, para a concessão da anistia aos banidos e posteriormente, para

os cidadãos envolvidos em delitos de natureza política. Também em 1974 a Ordem dos

Advogados do Brasil - OAB aprova moção de apoio a anistia aos presos políticas em sua V

Conferência Nacional.

Marco nas mudanças que ocorrem na situação política do país, as eleições de 1974

impõem ao governo flagrante derrota. Entre as bandeiras mais levantadas nas plataformas

eleitorais dos candidatos do MDB eram a retomada dos direitos civis e políticos, a anistia, a

defesa dos direitos humanos e a retomada da democracia.

As torturas, prisões arbitrárias e os desaparecimentos continuam a acontecer, mas

o clima de medo já não cala mais, fazendo crescer a oposição ao regime. Começam os

primeiros gestos de resistência, principalmente pelas mulheres, mães e filhas, pioneiras na luta

pela anistia:

Tais gestos, de acordo com Danyelle Nilin Gonçalves consistiam em ir às prisões,

arrecadar dinheiro aos que precisavam; visita aos presos doentes e aos que não tinham

parentes próximos e trazer notícias aos presos. (GONÇALVES, 2009, p. 273)

Em 1975 ocorre passo decisivo na luta pela anistia. Surge o Movimento Feminino

pela Anistia - FMPA de São Paulo, sob a liderança da advogada Terezinha Godoy Zerbini25,

que entrega um abaixo-assinado contendo 20 mil assinaturas de mulheres de todo o país em

Conferência da ONU no México. Terezinha Zerbini também fica famosa quando entrega carta

a primeira-dama dos Estados Unidos Rosalynn Cartes durante visita ao Brasil, saudando o

país pela concessão de anistia aos resistentes de guerra. (MEZAROBBA, 2007, p. 26).

Dentro da lógica da conciliação, o movimento feminino propunha a anistia como

perdão e esquecimento. Essa visão inicial da anistia, só lhe trouxe benefícios, já que

                                                                                                                         25 Esposa do general Euriale Zerbini, cassado em 1964.

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O Movimento Feminino pela Anistia, no seu primeiro momento, numa conjuntura de grande repressão aos movimentos sociais pelas políticas, por defender a anistia como perdão, conciliação e paz, não parecia tão ameaçador à ditadura. [...]

Foi essa concepção machista que levou os militares a não reprimir os jornais feministas ou pelo menos não fazê-lo da mesma forma que faziam com a imprensa alternativa dirigida por homens. (LEITE, 2009, p. 115)

Nesse contexto, é criado o jornal Brasil Mulher, defendendo os direitos humanos e

anistia, que recebe o apoio de escritores, intelectuais e entidades de destaque, recebendo

manifestações de solidariedade por parte da Associação Brasileira da Imprensa – ABI.

A luta pela anistia ganha adeptos no exterior, principalmente por parte dos

exilados. Comitês pró-anistia no Brasil formam-se em diversos países, que protestam contra a

falta de respeito aos direitos humanos no Brasil, exigindo a anistia e o fim das torturas.

Com o crescimento da oposição, a luta pela Anistia toma as ruas, levada pelos

estudantes, que apesar de se manifestarem a favor da anistia desde 1975, passam a partir de

1977, a se manifestar publicamente. Surgem comitês de proteção aos Direitos Humanos,

setores mais progressistas da Igreja Católica se envolvem na luta e os metalúrgicos do ABC

paulista aderem a campanha pela anistia.

Em 1978 são criados os Comitês Brasileiros pela Anistia (CBAs), formado por

advogados, familiares e amigos de presos e exilados políticos dispostos a lutar pela causa de

uma forma a implementar políticas mínimas de ação e ir além do perdão e do esquecimento.

Apesar da negativa por parte dos militares, multiplicaram-se os comitês

brasileiros pela anistia estimulados pelos familiares de presos e desaparecidos políticos, dos

exilados e pelas organizações populares que passam a se mobilizar em nome da anistia ampla,

geral e irrestrita. Os comitês reuniam também advogados, membros da Igreja Católica,

estudantes, dirigentes sindicais e representantes de associações de bairro.

A mobilização popular conta agora com o apoio não só das vítimas, familiares e

amigos, mas também com a Igreja, a OAB, a SBPC, a ABI, estudantes, artistas, intelectuais e

trabalhadores que passaram a assumir a luta como sua, como um necessário passo para a

redemocratização do país.

Sobre a mudança de perspectiva acontecida dentro da Igreja, fazendo-a tornar-se o

principal foco de oposição legal tem-se que:

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Dentro da Igreja Católica, no espírito da teologia da libertação, surgiram as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). A Igreja começou a mudar sua atitude a partir da Segunda Conferência dos Bispos Latino-Americanos, de 1968, em Medellín. Em 1970, o próprio Papa denunciou a tortura no Brasil. A hierarquia católica moveu-se com firmeza na direção da defesa dos direitos humanos e da oposição ao regime militar. Seu órgão máximo de decisão era a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). A reação do governo levou a prisões e mesmo assassinato de padres. Mas a igreja como um todo era poderosa demais para ser intimidada, como o foram os partidos políticos e sindicatos. Ela se tornou um baluarte da luta contra a ditadura. (CARVALHO, 2004, p. 183)

Assim, apesar do apoio inicial ao golpe, a Igreja Católica começa a se sentir

incomodada com os sucessivos episódios de desrespeito aos Direitos Humanos, além de

passar “[...] por profundas transformações e começar a enfrentar dificuldades crescentes em

suas relações com o Estado, tornando-se também vítima dos atos repressivos [...]”.

(ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1986 p. 63)

O Cardeal de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, encaminha ao regime militar um

pedido de ampla e generosa anistia para os presos políticos, sinalizando posição oficial

adotada pela Igreja Católica em prol da Anistia.

Os advogados, apesar de timidamente atuantes em alguns casos envolvendo

opositores ao regime, começam a se manifestar publicamente pela anistia.

Sob a presidência de Raimundo Faoro, a OAB tornara-se altamente agressiva na disseminação de sua mensagem, revivendo seu ativismo do início da década de 70. Mesmo assim, os líderes pró-liberalização de dentro do governo pediam mais pressão pública para ficar bem claro por que as mudanças "tinham" que ser realizadas. Foi o caso, por exemplo, do ministro da Justiça Petrônio Portella, que pediu a Faoro que intensificasse a publicidade em favor da anistia. Faoro concordou, a OAB redobrou seus esforços e as reformas foram feitas para facilitar mais adiante a concessão da importante medida. (SKIDMORE, 1988, p. 391)

A Associação Brasileira de Imprensa - ABI, apesar do interesse corporativo, pois

apenas sem censura e com a liberdade de imprensa os jornalista podem atuar com plenitude,

passa a também atuar em prol da causa da Anistia, através de notícias e manifestações

públicas de apoio.

Por sua vez, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência - SBPC também

apóia o movimento, já que muitas das mentes mais brilhantes do país foram obrigadas a se

exilar. Havia que se considerar também o prejuízo da sociedade como um todo causado pela

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perseguição do regime a cientistas, intelectuais, professores e o fechamento de universidades

e aposentadorias precoces.

Artistas e intelectuais, apesar de menos organizados, também se engajam na luta

pela anistia e redemocratização do país.

Também mudando sua postura outrora em conformidade com o regime,

empresários passam a se fazer ouvir em prol da liberalização da economia, com uma

conseqüente redução do papel do Estado na economia brasileira, tornando-se mais um ator na

causa da anistia.

Sobre a movimentação

Os entusiastas da anistia apareciam onde quer que houvesse uma multidão. Nos campos de futebol suas bandeiras com a inscrição Anistia ampla, geral e irrestrita eram desfraldadas onde as câmaras de TV pudessem focalizá-las. Esposas, mães, filhas e irmãs se destacavam de modo especial pelo seu ativismo, o que tornava mais difícil o descrédito do movimento por parte da linha dura militar. O Cardeal Arns chamou mais tarde a luta pela anistia "a nossa maior batalha". (SKIDMORE, 1988, p. 423)

O movimento se espalhou pelas principais cidades do país. A atuação de

diferentes atores em diferentes cenários em prol da mesma causa potencializa a luta da

sociedade, nascendo em 1978 o movimento nacional pela “Anistia Ampla, Geral e Irrestrita”,

tornando-se palavra de ordem nacional e unindo diferentes ideologias e convicções.

Em outubro de 1978, o general Geisel revoga o AI-5, o que é considerado uma

vitória para uma futura redemocratização do país e um passo fundamental para o fim da

repressão. O abrandamento da censura abre caminho para a informação da sociedade, que

passa a ter acesso as denúncias e críticas, que generalizam-se.

As eleições de 1978 representam mais uma derrota para os militares. No mesmo

ano acontece o I Congresso de Anistia. Em dezembro de 1978 o governo revoga decreto de

banimento de mais de 120 exilados26.

Panfletagens, debates em salões paroquiais, mesas-redondas, peças teatrais,

passeatas com palavras de ordem e cartazes espalhados pela cidade. A luta ganha a adesão das

massas. Sindicatos, associações de bairro, organizações estudantis, entidades profissionais,

mães, mulheres e filhos mostravam através de marchas, comícios, cartazes, faixas, adesivos e

panfletos a adesão popular ao movimento.

Sobre a reivindicação da sociedade, Martins:                                                                                                                          26  Ficaram  excluídas  do  decreto  pessoas  consideradas  indesejáveis,  como  Leonel  Brizola,  Luís  Carlos  Prestes  e  Francisco  Julião.  

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Transformada numa exigência nacional, a anistia não é uma reivindicação apenas dos que foram atingidos pelos atos de exceção, nem uma bandeira de luta de pequenos grupos. A cada dia é maior o número de entidades e personalidades que se incorporam na sua reivindicação. Mesmo no partido do governo muitas vozes tem surgido a apoiá-la, levando o debate para dentro das hostes dos que respaldaram os atos de exceção. A maioria esmagadora do povo brasileiro reclama hoje a anistia. (MARTINS, 1978, p. 171)

Passeatas e greves gerais são organizadas pelos metalúrgicos de SP. Os presos

políticos rompem seu silêncio e passam a ser ouvidos e terem suas idéias veiculadas na

imprensa.

Sucessor escolhido por Geisel, o general João Batista Figueiredo assume o poder

em 1979, prometendo redemocratizar o país. Não obstante suas promessas e a luta

empreendida pela sociedade, os militares se recusam a tratar o tema da anistia, sinalizando na

imprensa censurada apenas que admitiriam, no máximo, revisões caso a caso.

Foi apenas em 1979 quando a conjuntura econômica, política e social não era

mais favorável a ditadura que os militares são forçados a começarem os diálogos com os

setores da sociedade para a aprovação de uma lei de anistia no espírito de uma transição

“lenta, gradual e segura”.

O debate agora gira em torno da amplitude da futura lei de Anistia, que passa a ser

considerada de vital importância para o abandono do regime autoritário e o retorno de

milhares de exilados políticos ao país, impulsionando a discussão sobre a abertura do regime e

popularizando a figura de Figueiredo.

Atendendo ao clamor público, Figueiredo e o chefe de seu gabinete civil, o

general Golbery criam o projeto do governo para a concessão da Anistia. Sobre sua

apresentação no Congresso:

No dia 27 de junho de 1979 cerca de 300 pessoas assistiram, no salão leste do Palácio do Planalto, o presidente João Baptista Figueiredo assinar o projeto de anistia que logo em seguida enviaria ao Congresso Nacional, mas que naquela manhã já estampava as páginas de O Globo, em um furo de reportagem. De acordo com jornais e revistas da época, Figueiredo estava exultante e chegou a chorar. Ao abraçar o irmão, o teatrólogo Guilherme Figueiredo, declarou: “eu não disse que fazia? Eu não disse que fazia? E vou fazer mais!”. Referia-se a um indulto posterior, que deveria beneficiar os que ficariam de fora da Lei da Anistia, ou seja, os condenados pela prática de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal. (MEZAROBBA, 2007, p. 37)

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A sociedade civil organiza-se na tentativa de se fazer ouvir e contribuir com

modificações e melhorias, o que é fortemente desencorajado por parte do governo.

No intento de uma maior proximidade com as aspirações populares que deram

origem a campanha pela anistia, o presidente da Comissão Mista do Congresso que debatia a

lei, o senador Teotônio Vilela (MDB-AL) percorre o país visitando presos políticos,

emocionando-se e engajando-se ainda mais ferrenhamente na luta pela anistia. Em uma de

suas visitas, interpelado por um jornalista, Teotônio passa a ser conhecido nacionalmente por

suas palavras:

Ao sair do presídio do Barro Branco, em São Paulo, Teotônio Vilela foi abordado por uma jornalista da Rede Globo, que perguntou sobre os terroristas. Teotônio foi direto: — "Não encontrei nenhum terrorista. Encontrei jovens idealistas que entregaram a vida pela liberdade no Brasil. Convidaria todos para se hospedar em minha casa, convite que não faço a muitos ministros do atual Governo" (VIANA; CIPRIANO, 1992, p. 25)

Presos políticos fazem greve de fome, demonstrando descontentamento com o

projeto apresentado pelo governo. Durante toda a tramitação do projeto de lei os militantes do

movimento, incansáveis em sua luta, jamais deixaram de requerer às mudanças que achavam

necessárias para a obtenção de uma efetiva lei de anistia ampla, geral e irrestrita, criticando o

projeto do governo e sugerindo pontos de aprimoramento.

Alguns deputados oposicionistas propuseram mudanças como a previsão do

pagamento de pensões mensais, sindicâncias para apurar casos de desaparecimento e

inquéritos policiais para investigar os sumiços, mas que invariavelmente acabaram rejeitadas,

pois em desconformidade com a vontade dos militares.

Em 28 de agosto de 1978 a Lei 6.683/78, em votação apertada27, é aprovada no

Brasil.

3 ANISTIA E A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO

3.1 ANISTIA DESFIGURADA

                                                                                                                         27  A  Emenda  que  propunha  alteraçõas  no  texto  original  foi  rejeitada,  fazendo  com  que  o  projeto  de  lei  do  governo  recebesse  206  votos  a  favor  e  201  contra.  

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Page 72: Justica de transicao vdd memoria e justica

 

Como pode-se observar, a lei da anistia foi fruto de um contexto histórico

favorável, numa situação de amadurecimento e de um processo de rearticulação da sociedade.

Aclamada pelas massas e imposta ao regime, que já não pode mais se imiscuir da questão, a

Campanha pela Anistia demonstra a capacidade de mobilização e solidariedade da sociedade

brasileira em prol dos direitos humanos, agregando, trazendo o povo às ruas, configurando

verdadeira palavra de ordem que uniu diferentes classes sociais e diferentes ideologias.

O mote da campanha, a “Anistia Ampla, Geral e Irrestrita”, tinha como objetivo

abranger entre os beneficiados de uma futura lei todas as vítimas do período de exceção, sem

restrições e reintegrando-os plenamente as suas funções. Sua importância tinha ainda a ver

com o desejo de incluir dentro de seu escopo os militantes que cumpriam pena por terem

cometido crimes de sangue quando da colocação em prática direito de resistência ao regime

ilegítimo imposto pelos militares.

Ambiciosa, a campanha ainda exigia a punição dos torturados, esbarrando no

medo já arraigado dos militares de algum dia serem punidos pelos atos cometidos durante o

regime. A respeito, excetuando-se o período imediatamente posterior ao golpe, a participação

direta dos militares no interrogatório dos presos políticos passa a acontecer a partir de 1968

com a criação da OBAN, posteriormente sucedida pelo DOI-CODI, que combinava forças

policiais com oficiais de segurança militares. A Oban, além do apoio governamental, recebia

também apoio financeiro de conhecidos empresários e firmas multinacionais, além de

conhecidas figuras políticas, que mais tarde juntaram-se ao coro pela anistia bilateral.

Firmas brasileiras também foram pressionadas a contribuir com dinheiro, carros, caminhões e outras formas de ajuda em espécie [...]. Alguns empresários aderiam com entusiasmo, outros somente sob coação. Certos comerciantes, por exemplo, com filhos na cadeia, sofriam intimidação para contribuir. O governador Abreu Sodré ajudou a levantar fundos privados para a entidade, também apoiada pelo prefeito Paulo Maluf que considerava a OBAN um importante projeto cívico. (SKIDMORE, 1989, p. 254)

O medo dos militares era justificável, uma vez que apesar de agirem de acordo a

uma defesa da segurança nacional acima dos direitos humanos, a maioria dos torturadores

sabia-se errada, usando capuzes e máscaras para não serem identificados no futuro. Quando

da instituição do terror por parte do estado, os militares passaram a sofrer com severa crítica

estrangeira, pois em sua luta contra o comunismo, as forças armadas do país traíram seu

compromisso maior, que era com a democracia e com o império da lei. Endossando ainda o

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Page 73: Justica de transicao vdd memoria e justica

 

medo das forças armadas, o fato de que no início da década de 70, todos os oficiais superiores

haviam exercido comandos onde se praticava a tortura:

Mas houve um fato que ameaçou a função dos torturadores: a escassez de suspeitos plausíveis. Com a liquidação da guerrilha urbana no início de 1972, o DOI-CODI saiu à procura de novos inimigos. Ante o seu pequeno número, os homens da segurança, no seu fanatismo, alegavam que a inatividade dos subversivos era apenas aparente. E se gabavam de que fora por causa de sua vigilância que o Brasil estava agora livre de assaltos a bancos e de sequestros. Finalmente, a tortura sob o comando do Exército tornou-se tão disseminada e institucionalizada que nenhuma alta pa tente podia afirmar não se ter envolvido com ela. Virtualmente todos exerceram um comando onde os torturadores operavam. Como "resultado, os generais e os coronéis ficaram implicados, mesmo que indiretamente. (SKIDMORE, 1989, p. 260 – 261)

Com efeito, a irrefreável pressão da sociedade e o objetivo do início da distensão

política aliado com o medo de punição por parte das forças armadas, fez com que os militares

assumissem a necessidade de criação da lei, manipulando o processo para que a lei aprovada

fosse a que lhes conviesse. Destarte, isso só foi possível porque malgrado a crescente

oposição, a presença dos militares e seus apoiadores ainda era significativa, forte o suficiente

para impor uma anistia que não lhes trouxesse repercussões negativas no futuro.

Por isso empreenderam esforços no sentido de impedir uma discussão livre e

popular sobre a lei, que não foi negociada com quem de fato deveria ser. O acordo obtido

ocorre entre os próprios militares, contando com a participação ativa da elite que deu apoio ao

golpe e a repressão que se seguiu.

Dentro dessa lógica, quando do envio do projeto de lei por parte de Figueiredo, o

governo já tinha ciência de suas limitações e não escondia o seu caráter restrito. Os militares

sustentavam que as restrições se deviam ao fato de que o governo não podia reconhecer o

terrorismo como instrumento de resistência. Para eles, os crimes de sangue cometidos pelos

opositores ao regime não foram contra o estado, mas sim contra a humanidade e não poderiam

ser contemplados pela lei por não serem crimes estritamente políticos.

O projeto do governo foi recebido com inúmeras críticas, pois segundo os

militantes do movimento pela anistia, era eivado de contradições, discriminações e

deficiências. Era parcial, não libertava os presos políticos e ainda descriminava os que haviam

sido formalmente condenados e cumpriam pena dos que haviam se exilado para não

responderem aos seus “crimes”, desrespeitando o princípio da igualdade.

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No movimentação que se seguiu a apresentação do projeto, várias figuras políticas

de renome e setores demonstraram seu descontentamento. Defendia-se que à sociedade cabia

fixar os parâmetros e precisar o alcance da lei. Corroborando a necessidade de mudança do

projeto, foram apresentadas 305 emendas de 134 parlamentares, sendo que destes, 49

parlamentares faziam parte da bancada do governo.

Todas as tentativas de sugestões e/ou emendas foram classificadas como

impertinentes, inconvenientes, impossíveis de serem acrescidas e sumamente rejeitadas. Uma

emenda de autoria do MDB, assinada por Ulysses Guimarães, Freitas Nobre e Paulo Brossard

concedia a anistia ampla, geral e irrestrita tão reivindicada pela sociedade. No entanto, o

governo mobiliza suas lideranças para evitar dissidência da bancada na votação da emenda,

que acabou sendo rejeitada por 205 votos contra, e 201 a favor, acarretando na aprovação do

projeto de lei dos militares.

Portanto, não obstante o início de seu crepúsculo, o regime consegue aprovar uma

Lei de Anistia muito restrita, que obedece a um suposto caráter conciliatório, com o fim maior

de trazer paz e perdão para a sociedade brasileira. E assim a anistia veio,

desfigurada, imperfeita, inconclusa, mutilada pelos vetos, distante da anistia ampla, geral e irrestrita que a sociedade demandou nas ruas. Foi aprovada [...] a Lei de Anistia imposta pela ditadura a um parlamento submetido por medidas de força, sem pactos, sem acordos. ( BRASIL; Anistia 30 anos)

O medo maior dos militares foi resolvido com a inclusão dos chamados crimes

conexos, pois apesar de negarem veementemente a ocorrência de torturas em seus quartéis, a

tortura era verdadeira política de Estado, tornando-se prática recorrente, mas sempre negada.

Acerca do medo dos militares, oportuna a fala de Skidmore

A questão de uma possível ação contra os torturadores foi de fato resolvida pela inclusão na lei de anistia de uma definição que incluía os praticantes tanto de “crimes políticos” quanto de “crimes conexos”, este último eufemismo em geral entendido como um artifício para dar cobertura aos torturadores. Foi uma transação política. Os líderes da oposição sabiam que só podiam passar a um regime aberto com a cooperação dos militares. Poderia haver futuras tentativas de reabrir a questão, especialmente por parte daqueles mais próximos das vítimas da tortura. Mas por enquanto os políticos brasileiros receberam uma lição, para o melhor ou para o pior, sobre a arte da “conciliação”. (SKIDMORE, 1989, p. 426)

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Page 75: Justica de transicao vdd memoria e justica

 

A inclusão dos crimes conexos também preocupa os militantes em prol da anistia,

pois antevia-se possível desdobramento na interpretação dada ao termo, que poderia acoberta

os crimes cometidos pelos militares:

A anistia concedida pela Lei 6.683 aos crimes conexos, aprovada pelo voto das lideranças dentro de um parlamento sob os limites da tortura, foi imediatamente interpretada como uma anistia de dupla mão, anistiando as vítimas e ao mesmo tempo seus carrascos. A interpretação de quais são os crimes conexos aos crimes políticos anistiados distorceu o entendimento a ponto de interpretar a tortura como um crime conexo ao crime político. Uniu em um mesmo laço o crime político e um crime imprescritível, a tortura. (ARANTES, 2009, p. 99)

Apesar de tratar-se de uma conquista, a anistia aprovada não era ampla nem geral,

pois não englobava todos os punidos pelo regime, muito menos irrestrita, pois o retorno as

antigas atividades dependia de aprovação. Sobre suas limitações, tem-se que

A Anistia – “limitada, restrita e recíproca” – correspondia antes aos ideais da descompressão “lenta, segura e gradual” do regime militar. Além de não ser “ampla, geral e irrestrita”, ela contrariava ainda as reivindicações de apuração das responsabilidades pelas torturas, mortes e “desaparecimentos” realizados pelo regime e da inclusão de todos os punidos, mesmo os envolvidos em luta armada e “crimes de sangue”, uma vez que estes eram também imbuídos de motivação política. (DEL PORTO, 2009, p. 66)

A exclusão dos crimes de sangue manteve muitos presos políticos em

confinamento mesmo quando depois da promulgação da lei. Ao fim do processo, mesmo

depois de toda a luta empreendida, o projeto aprovado tinha cunho diverso ao pretendido pela

campanha nacional pela anistia. A indignação sentida e compartilhada pelos militantes da

época pode ser demonstrada pelas palavras de Rossi, que desabafa

Nesse processo da Anistia é curioso observar que os que foram roubados em seus mais elementares direitos e punidos por exigir o retorno dos seus direitos é que tiveram de pedir anistia e não os reais criminosos, os militares golpistas e assassinos. Como se pode entender isso? Um grupo, com o poder das armas, violenta e trai toda uma nação, prende, tortura, e mata e ainda deve dar perdão? (ROSSI, 2009, p. 128)

A aprovação da lei também contou com fortes críticas e objeções por parte dos

militares da linha dura, que davam claros sinais de resistência e descontentamento com a

flexibilização do regime, chegando até mesmo a ameaçar o andamento da distensão política

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Page 76: Justica de transicao vdd memoria e justica

 

com alguns atentados isolados. Em contrapartida a explosão reacionária, o general Figueiredo

e a redemocratização passam a contar com o apoio insuspeito dos jovens oficiais das forças

armadas:

Uma nova geração de oficiais do exército havia emergido, graduando-se na academia militar desde 1964. Não mais necessariamente ativistas anti-Getúlio ou mesmo anti-Jango, estavam agora preocupados com a imagem de sua profissão entre seus compatriotas. As histórias chocantes de torturas atingiam agora todo o exército. Alguns oficiais chegaram a parar de usar seus uniformes em público por medo do ridículo. Eles viam a linha dura como tendo maculado sua profissão. Tampouco eram estes oficiais suscetíveis à psicologia do “perigo vermelho” como foram seus predecessores. A linha dura estava perdendo apoio onde ele mais contava – nas fileiras dos oficiais do exército. (SKIDMORE, 2000, p. 259-260)

Apesar das oposições enfrentadas e das incongruências verificadas, a lei

representou passo significativo na superação do autoritarismo e repressão do regime,

permitindo a volta dos cassados, banidos, foragidos, exilados e clandestinos.

Cumpre ressaltar que a campanha nacional pela anistia caracterizou-se por em

verdadeiro esforço da sociedade civil organizada, cujo resultado foi obtido em agosto de

1979 com a promulgação da lei da anistia. A campanha refletiu a vontade popular, obrigando

o regime a dar vazão ao clamor popular, dando caráter único a campanha pela anistia no

Brasil, pois

[...] enquanto em países como a Argentina e Chile a anistia foi uma imposição do regime contra a sociedade, ou seja, uma explícita auto-anistia do regime; no Brasil a anistia foi amplamente reivindicada socialmente, pois se referia originalmente aos presos políticos, tendo sido objeto de manifestações históricas que até hoje são lembradas. (ABRÃO; TORELLY, 2010, p. 32)

A lei foi conquista do povo, foi o resultado de luta e mobilização intensa, e não

dádiva ou benesse militar. Significou o início da saída, ainda que controlada, dos militares do

poder. Também significou a reintegração de milhares de militantes na política do país e

configurou importante instrumento de luta para a conquista de novos direitos, pois teve

desdobramentos posteriores, repercutindo no desenrolar dos acontecimentos.

A anistia do governo não atendeu às pessoas que foram condenadas por terrorismo, assalto ou seqüestro e àquelas que cometeram os chamados “crimes de sangue” e que somente foram libertadas sob condicional ou mediante cumprimento integral da pena. Por outro lado, a lei teve o propósito político de favorecer militares e demais agentes públicos embora este propósito não estivesse explícito na lei.

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De toda forma, preponderou historicamente a idéia de que os agentes da repressão também estavam anistiados, incluindo os responsáveis pelas práticas de tortura, tornando amplíssima e deformada a bandeira popular. Apesar disso, revelou-se um marco importante de abertura política do país, permitindo a volta de clandestinos e exilados à cena pública, o ressurgimento de organizações políticas e a atuação política pública dos trabalhadores, intelectuais e estudantes. (ABRÃO et al, 2010, p. 63)

Considerada como o ato fundante do processo de transição política no Brasil, a

Lei de Anistia abre caminho para as eleições diretas de 1985, quando o regime de exceção é

abandonado e o Estado Democrático de Direito é restabelecido.

Com a retomada da democracia, o desafio brasileiro passa a ser o da correta

transição democrática, colocando em prática mecanismos que auxiliem essa transição e que

tratem adequadamente o legado histórico de violência deixado pelo regime militar. É assim,

portanto, que a Justiça de Transição insere-se no cenário nacional, uma vez que seu maior

objetivo é a construção de uma paz sustentável em Estados que, como o Brasil, sofreram com

regimes de exceção. Para o alcance dessa paz sustentável e para uma efetiva transição para

uma democracia, deve-se respeitar os chamados pilares da Justiça de Transição, quais seja,

verdade, memória, justiça, reparação e reforma das instituições. O processamento dos

criminosos, a revelação da verdade, o fornecimento de reparações as vítimas, a reforma de

instituições e da promoção da reconciliação entre os envolvidos nos conflitos, são essenciais

para que um estado antes autoritário atinja concretamente o ideal de um estado de regime

democrático e de direito.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em períodos de transição democrática, costuma-se adotar certas medidas, que

conferem legitimidade ao processo de transição democrática. Nesse sentido os Estados devem

apurar a verdade dos fatos, estabelecer processos penais para o julgamento e a punição dos

envolvidos, reconhecer oficialmente o período de repressão ocorrido e, na medida do possível,

instituir medidas que promovam a verdade e a reconciliação, normalmente através de

comissões de anistia e da verdade.

Isso porque o Estado não deve promover simplesmente o esquecimento. A

transição pacífica não pode ocorrer em detrimento da cidadania, da transição democrática

legítima, do respeito aos direitos humanos. Nesse sentido, faz-se necessária a apuração da

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verdade dos fatos, indenização das vítimas e familiares e a punição dos autores dos crimes no

período de exceção, visando garantir uma transição democrática segura e genuína, de acordo

com a nova ordem legal instituída.

Leis de anistia apelam para o esquecimento e para o fato de que a curto e médio

prazo não refletem negativamente dentro do escopo político-social de um povo. A longo

prazo, no entanto, as leis de auto-anistia trazem as mais abjetas consequências, pois leis de

anistia não curam feridas e não garantem o estabelecimento de uma democracia permanente,

justa e legítima. Configuram um auto-perdão, o que reforça o falseamento da história e das

versões parciais, da persistência de valores autoritários, de uma sociedade marcada pelo

autoritarismo, da participação social criminalizada e da tradição patrimonialista, entre outros.

Com o auto-perdão, há violação sistemática da memória, da verdade e da justiça, assim como

dos direitos humanos, o que impacta, positiva ou negativamente, na formação da sociedade.

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A PARTICIPAÇÃO SOCIAL NA CONSTITUIÇÃO DA VERDADE SOBRE AS VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS NOS REGIMES MILITARES DA

AMÉRICA LATINA 1

PARTICIPACIÓN SOCIAL EN LA CONSTITUCIÓN DE LA VERDAD SOBRE

DELIBERANTE VIOLACIÓNES DERECHOS HUMANOS EN LOS SISTEMAS DE

MILITARES EN AMÉRICA LATINA

Tais Ramos2

RESUMO

O presente trabalho apresenta a participação social na constituição da verdade sobre as violações de Direitos Humanos nos Regimes Militares da América Latina, considerando o paradigma democrático de inclusão dos cidadãos nos processos de exames e esclarecimento dos atos de desaparecimentos, sequestros, mortes e torturas, praticados nesses Regimes. Atendendo a possível relação entre o Estado, o Regime Militar e a Sociedade Civil, o problema central deste trabalho consiste na verificação da participação social nos espaços públicos de investigação da verdade. Para isso o trabalho pretende averiguar, em linhas gerais, os mecanismos instaurados para constituir a verdade nos países da Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai e Peru, analisando-se os trabalhos das Comissões da Verdade oficiais e não oficiais e a participação social em cada uma delas, bem como pretende analisar como se deu a participação da sociedade brasileira na Comissão da Anistia e na Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos. Para isso, o método de abordagem para o desenvolvimento da pesquisa será o hipotético-dedutivo, considerando a discussão teórica e sua natureza bibliográfica. Como método de procedimento se trabalhará o método histórico-crítico e o comparativo.

PALAVRAS-CHAVE: Democracia – Direito à Verdade – Participação Social – Regime Militar 1 Este texto é fruto das pesquisas desenvolvidas no Grupo de Pesquisa “VERDADE, MEMÓRIA E JUSTIÇA:

análises da experiência das políticas públicas reparatórias do governo no Rio Grande do Sul envolvendo os atos de sequestro, morte, desaparecimento e tortura de pessoas no regime militar brasileiro (1964/1985) estudos de caso”, junto ao Programa de Mestrado e Doutorado em Direitos Sociais e Políticas Públicas da Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC, e vinculado ao Diretório de Grupo do CNPQ intitulado “Estado, Administração Pública e Sociedade”, coordenado pelo Prof. Dr. Rogério Gesta Leal. 2 Mestre em Direito. Graduada em Direito e Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade de Santa

Cruz do Sul - UNISC. Professora na Faculdade Palotina – FAPAS, Santa Maria-RS. Integrante do Grupo de Pesquisa “VERDADE, MEMÓRIA E JUSTIÇA: análises da experiência das políticas públicas reparatórias do governo no Rio Grande do Sul envolvendo os atos de sequestro, morte, desaparecimento e tortura de pessoas no regime militar brasileiro (1964/1985) estudos de caso”, coordenado pelo Professor Dr. Rogério Gesta Leal, vinculado ao Diretório de Grupo do CNPQ intitulado “Estado, Administração Pública e Sociedade”. Pesquisa elaborada ainda na condição de Bolsista CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) do Programa de Mestrado e Doutorado em Direitos Sociais e Políticas Públicas da Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC. Advogada OAB/RS. E-mail: [email protected].

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RESUMEN En este trabajo se presenta la participación social en la constitución de la verdad acerca de violaciónes de derechos humanos en los regímenes militares en América Latina, teniendo en cuenta el paradigma de la inclusión democrática de los ciudadanos en el proceso de examen y esclarecimiento de los actos de desapariciones, secuestros, asesinatos y torturas cometidos estos esquemas. Teniendo en cuenta la posible relación entre el Estado, el régimen militar y la Sociedad Civil, el problema central de este estudio es la evaluación de la participación social en espacios públicos de investigación de la verdad. Para este trabajo tiene como objetivo determinar, en general, los mecanismos puestos en marcha para establecer la verdad de los países de Argentina, Bolivia, Chile, Paraguay y Perú, analizando el trabajo de comisiones de la verdad y la participación social oficial y no oficial en cada ellos, y tiene la intención de analizar cómo ha sido la participación de la sociedad brasileña en la Comisión de Amnistía y de la Comisión sobre Muertos y Desaparecidos Políticos. Para ello, el método de enfoque para el desarrollo de la investigación será el hipotético-deductivo, teniendo en cuenta la literatura teórica y la naturaleza. Como método de procedimiento funcionará si el método histórico-crítico y el comparador. PALABRAS CLAVE: Democracia - Derecho a la Verdad - Participación Social - Régimen Militar

1 Considerações Iniciais

A partir de 1960 a América Latina mudou seu cenário político, as oligarquias

conservadoras foram consolidadas; terminaram gradativamente os regimes populistas; e os

golpes civil-militares iniciaram por todo o subcontinente, implementando métodos de

repressão para conter qualquer forma de expressão e oposição. O resultado dessa repressão foi

um grande número de mortos, desaparecidos e torturados. Após esse período, os países da

América Latina transitaram de suas ditaduras militares para regimes democráticos liberais,

reconhecendo esse processo de democratização por meio de alguns direitos políticos.

Entretanto, em alguns países os atos e fatos dessa repressão ainda são desconhecidos

pela sociedade, ainda restam dúvidas, incertezas sobre as violações de Direitos Humanos

ocorridas nesse período. Nessa perspectiva, as pessoas que sofreram tal repressão, bem como

seus familiares, devem ter condições de possibilidade de conhecerem a verdade, quais as

causas e como ocorreram tais atrocidades.

Além das pessoas afetadas diretamente e seus familiares, a sociedade em geral deve ter

a possibilidade de tornar-se informada e ainda, deve ela mesma, constituir a verdade para a

construção de sua identidade coletiva. Ademais, o direito fundamental à verdade é importante

para possibilitar a cada cidadão a formação de sua identidade individual, respeitando a sua

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

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privacidade, honra, imagem e as liberdades e garantias individuais, em harmonia com a

construção dessa identidade coletiva.

2 A participação social na constituição da verdade sobre as violações de Direitos Humanos nos Regimes Militares da América Latina

Existem várias possibilidades de debate e esclarecimento sobre violações de Direitos

Humanos e Fundamentais decorrentes de estados de exceção, dentre eles o da justiça de

transição, que diz respeito à justiça dos fatos ocorridos nos períodos políticos e ao confronto

entre justiça e verdade, dando destaque à investigação, documentação e divulgação pública

dessas violações em busca de uma memória voltada à pacificação e reconciliação, nas

palavras de Tietel: “La justicia transicional puede ser definida como la concepción de

justicia asociada con períodos de cambio político, caracterizados por respuestas legales que

tienen el objetivo de enfrentar los crímenes cometidos por regímenes represores anteriores”3

A justiça de transição vai além da reparação e punição dos responsáveis pelos atos de

tortura, sequestro, desaparecimento e mortes, pois busca a verdade e resgata a memória, visto

que está relacionada com perdão e reconciliação. No que diz respeito à memória, Sylvas

destaca que “El proceso de construcción de la memoria se relaciona con la identidad

individual y colectiva, con la recuperación de un pasado histórico y con la defensa de los

Derechos Humanos”4

O objetivo principal da justiça transicional é de construir uma história dos abusos que

ocorreram no passado em busca da verdade e da justiça, para uma memória coletiva, através

do mecanismo institucional das Comissões da Verdade. A Comissão da Verdade é um

organismo oficial, criado por um governo nacional para investigar, documentar e tornar

público abusos de direitos humanos em um país durante um período específico.5

As Comissões da Verdade além serem mecanismos de investigação criados para ajudar

as sociedades que enfrentaram situações de violência política, tem o objetivo de superar as

3 TEITEL, Ruti G. Genealogía de la Justicia Transicional. Disponível em:

<http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital>. Acesso em: 24 out. 2012, p.01. 4 SYLVAS, Graciela Aletta. Memória para armar. In: Revista de História Social y Literatura de America Latina.

Vol. 8, nº 3, 2011, 140 – 162. Disponível em: <www.ncsu.edu/project/acontracorriente>. Acesso em 24 out. 2012, p. 01. 5TEITEL, Ruti G. Genealogía de la Justicia Transicional. Disponível em: <http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital>.

Acesso em: 24 out. 2012, p.11.

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Page 84: Justica de transicao vdd memoria e justica

crises e traumas gerados pela violência e evitar que estas se repitam no futuro. Para isso as

Comissões da Verdade buscam: as causas da violência; identificar os elementos do conflito;

investigar as graves violações de direitos humanos. Os trabalhos das Comissões da Verdade

permitem também identificar as estruturas e as ramificações das diversas instâncias da

sociedade (Forças Armadas, Polícia, Poder Judicial, Igrejas, instituições em geral) e outros

fatores envolvidos nessa problemática.6

De acordo Tóit, as Comissões da Verdade refletem uma dupla preferência pela

“Verdade” em lugar da justiça (retributiva e social). Assim, primeiro: as Comissões da

Verdade conferem prioridade a graves violações dos direitos humanos e diagnosticam a

necessidade moral principal como aquela que tem que tratar com as vítimas e os que

vitimaram. E em segundo lugar: as comissões da verdade diferem dos tribunais no

ortogamento de prioridade das audiências onde as vítimas podem contar suas histórias, mais

que buscar o processamento e um castigo dos agressores.7

Os fundamentos morais das Comissões da Verdade devem ser diferenciados de uma

quantidade de considerações relacionadas, porém distintas, incluindo: as circunstâncias

históricas relevantes, as condições políticas facilitadoras, os mandatos legislativos específicos

e os marcos conceituais disponíveis.8

Para Tóit as Comissões da Verdade podem ser vistas como projetos históricos

fundacionais num contexto transicional de introdução e consolidação de uma nova

administração democrática e/ou cultura de direitos e responsabilidades de um período de

violações de direitos humanos sob um regime anterior. Refere o autor que as Comissões da

Verdade não estão preocupadas com os detalhes de estabelecer o marco legal e institucional

para uma nova ordem política, e servem para gerar e consolidar concepções novas e distintas

de moralidade política que podem daí em diante conformar a cultura política.9

No que se refere à metodologia de trabalho das Comissões da Verdade Nürnberger

esclarece que:

6 NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In

http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em 24 out. 2012, p.6 7 TOIT, Andre Du. Los Fundamentos Morales de las Comisiones de Verdad La Verdad como Reconocimiento y la

Justicia como Recognition. Disponível em: http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 24 out. 2012, p.1. 8 TOIT, Andre Du. Los Fundamentos Morales de las Comisiones de Verdad La Verdad como Reconocimiento y la

Justicia como Recognition. Disponível em: http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 24 out. 2012, p.1. 9 TOIT, Andre Du. Los Fundamentos Morales de las Comisiones de Verdad La Verdad como Reconocimiento y la

Justicia como Recognition. Disponível em: http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 24 out. 2012, p.4.

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

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Page 85: Justica de transicao vdd memoria e justica

Buscar la verdad de las violaciones a los derechos humanos, cuando los acontecimientos están aún muy cercanos, por cierto implica muchos riesgos, tanto para los investigadores, como para los informantes, testigos, familiares. La injustificada sospecha de que los activistas de derechos humanos apoyan a la subversión, así como el temor de que sus organismos cuenten en su archivo con materiales relacionados a la historia de la violencia policial y militar, muchas veces ha llevado a las autoridades militares a precipitados allanamientos de las sedes de estos organismos y a la detención, o desaparición de los luchadores de derechos humanos. Esta agresión directa contra los organismos de derechos humanos fue una norma de casi todos los gobiernos en América Latina.”10

Alguns dos países renunciaram as persecuções penais e viabilizaram processos de

transição pacificadora, pois as Comissões da Verdade com a justiça de transição não

focalizam suas discussões em natureza penal, no âmbito da responsabilidade das pessoas por

atos de tortura sequestro, morte e desaparecimento de pessoas, mas na responsabilidade do

estado enquanto promovedor de políticas públicas revitalizadoras do regime democrático.

Na América Latina e em outros países foram formadas Comissões da Verdade, todas

com apoio internacional, na busca em conhecer as causas das violências ocorridas nos

períodos de ditaduras. Alguns países da América Latina já implementaram Comissões da

Verdade e já identificaram seus conflitos e casos de violação dos Direitos Humanos, outros

ainda, a exemplo do Brasil, recém implementaram suas Comissões ou mecanismos similares

para constituição da verdade sobre as violações de Direitos Humanos.

Essa constituição da verdade possibilita a cada cidadão a formação de sua identidade

individual, mas devendo respeitar a sua privacidade, honra, imagem e as liberdades e

garantias individuais, em harmonia com a construção de uma identidade coletiva democrática.

Essa construção coletiva baseia-se no respeito e reconhecimento do outro, envolvendo a

participação de todos os cidadãos na garantia do direito à verdade e à memória.

Vejamos como se deu essa participação da sociedade na constituição da verdade sobre

as violações de Direitos Humanos em alguns países da América Latina:

Na Argentina um dos primeiros atos constitucionais do presidente Alfonsín foi criar a

Comissão da Verdade, chamada de Comissão Nacional de Investigação sobre o

Desaparecimento de Pessoas (CONADEP) que ficou encarregada de investigar as violações

de direitos humanos ocorridas entre 1976 e 1983 no período de sua ditadura militar.11

10

NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 24 out. 2012, p.7. 11

NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p.10.

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Page 86: Justica de transicao vdd memoria e justica

A CONADEP foi criada pelo Decreto Lei 187/83 de 15 de dezembro de 1983 e seu

período de investigação foi de 9 meses.12 Teve como objetivo intervir ativamente no

esclarecimento dos fatos os quais foram remetidos à justiça. A justiça receptora do material

adquirido pela Comissão em suas investigações e procedimentos seria encarregada de

delimitar responsabilidades, e decidir sobre os culpados.13 Ou seja, a Comissão da Verdade da

Argentina não usou só o método de reconciliação e perdão, mas condenou vários de seus

repressores.

Para garantir e afirmar o objetivo, o Poder Executivo resolveu integrar a Comissão com

pessoas de dentro e fora do país, elegidas por suas firmes atitudes em desefa dos Direitos

Humanos, bem como por sua representação nas várias atividades na vida social. Através do

Decreto Lei, as Câmaras do Congresso Nacional também foram convidadas a enviar três

representantes para compor a Comissão. Mas somente a Câmara dos Deputados respondeu ao

convite. Em votação foi escolhido por unanimidade o Presidente da Comissão Ernesto

Sabato.14

Desde o início de seu trabalho a CONADEP enfrentou muitas dificuldades, e pode

superá-las graças ao forte apoio de entidades nacionais e internacionais de Direitos

Humanos.15 Com o progresso das pesquisas, os membros foram insultados e ameaçados por

agentes da repressão.

Graças aos esforços de Ernesto Sabato e a pressão de organismos de Direitos Humanos,

alguns membros da Comissão tiveram a possibilidade de viajar para o exterior e receber

denuncias de exilados argentinos nos Estados Unidos, França, Suíça, Espanha, México, entre

outros países. A CONADEP ganhou o apoio do Ministério das Relações Exteriores, o que

permitiu a criação do "escritório de reclamações" de desaparecimentos durante a ditadura

militar, na maioria das embaixadas espalhadas por todo o mundo. O impacto do trabalho da

Comissão nos jornais e na televisão incentivou muitos exilados europeus a cooperar com as

investigações.16

12

NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p.11 13

CONADEP. COMISIÓN NACIONAL SOBRE LA DESAPARICIÓN DE PERSONAS. Nunca Más. 6 ed. Buenos Aires: Eudeba, 2003, p.443. 14

CONADEP. COMISIÓN NACIONAL SOBRE LA DESAPARICIÓN DE PERSONAS. Nunca Más. 6 ed. Buenos Aires: Eudeba, 2003, p.443. 15

NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p.11 16

NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p.12.

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Page 87: Justica de transicao vdd memoria e justica

A CONADEP, depois de nove meses de trabalho, reuniu mais de 50 mil páginas de

depoimentos e relatórios, publicados em novembro de 1984 em seu relatório intitulado

"Nunca Más: Informe de la Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas". Eles

registraram o desaparecimento de 8,960 pessoas, que foram denunciadas e devidamente

documentadas. O relatório observa que na Argentina haviam 340 centros clandestinos de

prisão, liderados por oficiais superiores das Forças Armadas e Segurança, entre outras

informações importantes do período.17

A CONADEP tomou a iniciativa de apresentar várias recomendações para diferentes

ramos do governo, "a fim de prevenir, reparar e finalmente evitar violações repetidas em

direitos humanos." Suas propostas incluem: a continuação da investigação pela via judicial, a

entrega de ajuda financeira, bolsas de estudo e trabalho aos familiares de pessoas

desaparecidas, e a aprovação de normas legais que declaram como crime de lesa humanidade

o desaparecimento forçado de pessoas. A CONADEP recomendou também o ensino

obrigatório de Direitos Humanos nos centros educativos do Estado, tanto civis como militares

e policiais, com o apoio dos organismos de apoio de Direitos Humanos, e à revogação de toda

a legislação repressiva existente no país. Muitas dessas recomendações ainda precisam ser

implementadas. E a dolorosa verdade continua aflorando, como um trauma coletivo, o que

exige uma terapia global e integral.18

A Comissão da Verdade da Bolívia, assim como algumas outras da América Latina, é

uma Comissão Não Oficial, pois surgiu por iniciativa não governamental, sem mandato legal

específico.

As vítimas de violações de Direitos Humanos na Bolívia, entre assassinados, torturados,

desaparecidos entre 1965 e 1982 foram numerosos. O golpe militar, liderado pelo general

Hugo Banzer Suárez, em agosto 1971, foi uma das histórias mais sangrentas do país. Foram

relatados mais de 14.000 detenções ilegais de pessoas, muitas das quais foram submetidas à

tortura cruel; mais de 6.000 exilados, massacres, desaparecimentos forçados de mais de 70

pessoas.19

Após esse período foi discutido o que fazer com os crimes da ditadura, mas não houve

consenso sobre como os casos deveriam ser investigados. Como o poder judiciário e os

17

NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p.13. 18

NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p.12-15. 19

NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p.33.

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

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Page 88: Justica de transicao vdd memoria e justica

líderes dos partidos políticos, em sua maioria, eram os mesmos que atuaram durante a

ditadura militar, não houve vontade suficiente para punir todos os responsáveis por violações

de direitos humanos.20

O presidente Hernán Siles Suazo assinou em 28 de Outubro 1982 o Decreto Supremo N.

241, que criou a Comissão Nacional de Desaparecidos. Nos primeiros meses de transição para

a democracia, o consenso foi alcançado apenas na necessidade de investigar os crimes

cometidos pelo regime de General Luis García Meza, onde foram praticados massacres de

opositores políticos, desaparecimentos forçados, tortura, e despejos ilegais no país.21

A Central dos Trabalhadores da Bolívia, a igreja Católica e Metodista, a Universidade

San Simon da Paz, os sindicatos de jornalistas, os grupos de Direitos Humanos, os familiares

de vítimas da ditadura, com o apoio de alguns políticos começaram um processo de

impeachment contra o general Luis García Meza e 55 de seus principais assessores. A decisão

do Congresso, em 25 de fevereiro de 1986, excluiu das investigações dos fatos ocorridos antes

do golpe de Garcia Meza, protegendo especialmente o ditador Hugo Banzer. 22

A influência de vários órgãos representativos da sociedade, e a longa tradição de luta

como a Universidade, a Igreja, juntamente com grupos de Direitos Humanos na denúncia e

ajuizamento do regime de Garcia Meza, assegurou um importante apoio institucional e

popular no processo de investigar a verdade e punir os responsáveis pelas violações dos

Direitos Humanos e abusos do Estado de Direito. Um grupo de advogados e estudantes de

direito, jornalistas, bem como famíliares das vítimas da ditadura trabalharam no Comitê do

julgamento, por cinco anos, para coletar mais de 30 mil páginas acumuladas sobre os fatos da

ditadura e desenvolver as alegações e acusações.23

O Comitê julgador das responsabilidades, apesar das ameaças, continuou seu trabalho,

elaborando recursos acusatórios e difundindo maciçamente em jornais, rádio e na televisão

relatórios das informações sobre o julgamento. E depois de mais de seis anos de julgamento,

em 1992 o Poder Judiciário da Bolívia conseguiu condenar o general Luis García Meza e Luis

Arce Gómez a 30 anos de prisão. Outros 50 envolvidos também receberam suas condenações.

20

NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p.33. 21

NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p.33. 22

NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p.33-34 23

NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p.34.

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Page 89: Justica de transicao vdd memoria e justica

Os advogados que representaram a sociedade civil afetada pela ditadura, declararam o

seguinte à Suprema Corte:

Estuvimos motivados por la búsqueda de la verdad desde el primer momento; y cuando en ese primer momento la principal defensa apareció siendo la mentira, nos volvimos incansables en esa búsqueda de la verdad... había que probar que se delinquió bárbaramente contra el país, desde el aparato mismo del Estado... a la notoria verdad histórica había que adjuntar la verdad jurídica.24

Embora o Comité Diretor das responsabilidades ter sido uma Comissão da Verdade não

criada por lei, o trabalho da sociedade civil boliviana foi eficaz, conseguindo comprometer a

maioria das organizações do país na busca da verdade sobre o período crítica de sua história.

No Chile, após a derrota moral e política de Pinochet, a sociedade chilena elegeu como

Presidente um membro da oposição, que havia anunciado seu compromisso com a defesa dos

Direitos Humanos. Fiel à sua promessa, o presidente Patricio Aylwin, mediante o Decreto n º

355, de 24 de abril de 1990, criou a Comissão Nacional da Verdade e Reconciliação, com

objetivo de contribuir para o esclarecimento da verdade sobre as graves violações de Direitos

Humanos a fim de colaborar para a reconciliação de todos os chilenos.25

As tarefas confiadas à Comissão da Verdade foram:

Establecer un cuadro, lo más completo posible, sobre los graves hechos de violación a los derechos humanos, sus antecedentes y circunstancias. Reunir información que permita individualizar a sus víctimas y establecer su suerte o paradero. Recomendar las medidas de reparación y reivindicación que estimara de justicia, y Recomendar las medidas legales y administrativas que a su juicio deberían adoptarse para impedir o prevenir la comisión de nuevos atropellos graves a los derechos humanos.26

Foi determinada, com o prazo de nove meses, a investigação dos fatos que levaram à

morte ou ao desaparecimento de pessoas que ocorreram entre 11 de setembro de 1973 e 11 de

março 1990, seja dentro do país ou no exterior.27 Mais de 60 pessoas de diversas organizações

nacionais e internacionais de Direitos Humanos colaboraram e trabalharam em tempo integral

para o processamento das informações obtidas pela Comissão.

A Comissão consultou mais de 100 arquivos de organizações de Direitos Humanos,

acadêmicas, políticas e religiosas. Membros da Comissão, além de investigar dentro do país,

tiveram a oportunidade de viajar para o exterior, com a finalidade de entrevistar as vítimas da 24

NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p.36. 25

NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p15. 26

CHILE. Corporación Nacional de Reparación y Reconciliacón. Informe de la Comissión Nacional de Verdad y Reconciliacón. 1996, p.20. 27

CHILE. Corporación Nacional de Reparación y Reconciliacón. Informe de la Comissión Nacional de Verdad y Reconciliacón. 1996, p.19.

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Page 90: Justica de transicao vdd memoria e justica

repressão, bem como familiares das vítimas desaparecidas. Muitos estudantes de cursos de

Direito trabalharam de forma muito eficaz para assessorar as famílias das vítimas nos seus

depoimentos. Também houve necessidade de contratar assistentes sociais para auxiliarem nas

crises emocionais dos familiares das vítimas.28

O resultado final das investigações da Comissão foi um informe com três partes:

Primera parte: Relación de los hechos de violaciones de los derechos humanos, hasta la página 1094. Segunda parte: Recomendaciones para reparar el daño: Págs. 1,096 hasta 1,168. Tercera parte: "Víctimas", Volumen de 635 páginas, con una reseña biográfica de las 2,279 personas respecto de las cuales la Comisión se formó una Convicción de que murieron o desaparecieron como víctimas de la violación a sus derechos humanos, entre ellos 132 miembros de las fuerzas del orden.29

Depois de sua meticulosa investigação sobre os desaparecidos e mortos, a Comissão

recomendou a reparação pública da dignidade das vítimas, e diversas medidas de bem estar

social, pensão, com atenção especial na saúde, educação, habitação, e reivindicações de

isenção de prestação de serviço militar obrigatório para os filhos das vítimas. A Comissão

apresentou também recomendações no plano jurídico e administrativo, como a adequação da

legislação nacional ao direito internacional sobre os Direitos Humanos e a ratificação de

tratados internacionais de Direitos Humanos. Também propôs várias medidas para reformar o

sistema judicial e as forças armadas, bem como a continuação das investigações sobre o

destino dos desaparecidos.30

A Comissão da Verdade e Reconciliação recomendou a penalização no caso de

ocultação de informação a respeito das exumações ilegais, já que muitos familiares das

vítimas continuaram a reivindicar os restos mortais de seus entes queridos. Em janeiro de

1992 o governo chileno, através da lei 19.123 criou a Corporação Nacional de Reparação e

Reconciliação para executar as recomendações da Comissão da Verdade e Reconciliação,

especialmente na reparação material dos danos causados pela ditadura de Pinochet.31

As violações de Direitos Humanos no Paraguai afetaram, além se seu próprio povo,

centenas de estrangeiros fugidos da perseguição da Argentina, Brasil, Chile, Bolívia e

28

NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p15. 29

CHILE. Corporación Nacional de Reparación y Reconciliacón. Informe de la Comissión Nacional de Verdad y Reconciliacón. 1996. 30

NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p.18. 31

NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p.15-19.

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Page 91: Justica de transicao vdd memoria e justica

Uruguai. Em troca, a Argentina, durante a sua guerra suja, desapareceu com 54 paraguaios

que estavam na capital federal Buenos Aires.

A Comissão da Verdade do Paraguai, assim como a da Bolívia, é uma Comissão não

oficial. Em 1976 foi criado o “Comitê de Iglesias para Ayudas de Emergência” (CIPAE),

desde então, com o apoio de várias organizações internacionais, desenvolveu um processo

sistemático de registro e documentação dos fatos de violência no país. Como vários locais

religiosos tinham sofrido ataques por parte das forças de segurança, o CIPAE, desde a sua

origem, tomou a precaução para proteger a maioria dos arquivos em casas seguras, obter

cópias duplas, microfilmes e até mesmo a documentação. Em 1984 o CIPAE encarregou seus

colaboradores de sistematizar informações sobre a violência e seus efeitos sobre o Paraguai.

Havia muito medo de que forças repressivas tentassem silenciar completamente corpos

direitos humanos. 32

O resultado da pesquisa foi publicado de maio de 1990 em uma série de quatro volumes

sob o título geral "Paraguai: Nunca Mais", onde ficou registrado numerosos fatos de violação

de direitos humanos durante a ditadura Stroessner. No Volume I do Paraguai Nunca mais,

indicava que 360.000 pessoas, de um total de três milhões habitantes, passaram por prisões.

Similarmente estimava em 1 milhão e meio o número de paraguaios forçados ao exílio.33

No final de 1993, foi descoberto no Paraguai, por acaso, arquivos dos governos dos

sistemas repressivos do Cone Sul da América, que foram classificados como "arquivos do

terror". Foi encontrado abundante documentação que explica milhares de casos de exilados e

presos políticos da Argentina, Uruguai, Bolívia, Paraguai, Chile, Brasil, Paraguai, muitos dos

quais desapareceram nas mãos de serviços de segurança desses países.34

Desde 1980, após 12 anos de governo militar, o Peru experimentou uma situação de

guerra interna, na qual o movimento subversivo do Partido Comunista do Peru enfrentou o

Estado peruano. O movimento transitou da sua prática subversiva ao terrorismo, causando

milhares de vítimas, não só de membros das forças, mas, principalmente, camponeses, líderes

trabalhistas e populares; autoridades comunitárias, profissionais e população em geral. Forças

estaduais também cometeram atos graves e numerosas prisões em massa, torturas,

32

NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p. 40-41. 33

NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p. 41. 34

NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p. 40-43.

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

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Page 92: Justica de transicao vdd memoria e justica

desaparecimentos e genocídios. Esse período produziu cerca de 30.000 mortos e mais de

5.000 desaparecidos.35

Por várias vezes, o Estado através do Congresso da República e o Poder Executivo,

criaram Comissões da Verdade para determinar responsabilidades frente as denúncias de

graves violações de direitos humanos. A maioria das comissões que foram criadas, nasceram

com o objetivo político claro: "contra subversivos" oficial. Assim aconteceu com a "Comissão

Uchuraccay", uma das primeiras a investigar casos de violações de direitos humanos no país.

Poucas vezes as investigações no Peru tiveram efeito pacificador e restaurador da justiça. A

impunidade para violadores de direitos humanos é quase norma oficial. 36

Por falta de uma clara compreensão do fenômeno da violência, assim como do apoio do

Poder Judiciário e recursos materiais as diversas Comissões investigadoras do Peru, não

puderam, na maioria dos casos, levar a um bom resultado nas investigações, nem proteger as

testemunhas de castigos. Muitas pessoas, depois de apresentar seus testemunhos e denúncias,

desapareceram ou foram assassinadas pelas forças do Estado.37

Diante dessas conclusões, realmente podemos afirmar que as Comissões na America

Latina tiveram diferentes processos de desenvolvimento, que trouxeram a verdade à sua

sociedade, abrindo possibilidades de sancionar os responsáveis. Mas o que realmente chama

atenção é que, para uma Comissão obter êxito, é importante a participação de organismos de

Direitos Humanos, das organizações políticas, religiosas, acadêmicas, sindicais entre outras, e

da sociedade em geral.

3 A participação social na constituição da verdade sobre as violações de Direitos Humanos no Regime Militar brasileiro: a experiência da Comissão de Anistia brasileira e da Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos

A Comissão da Anistia procurou cumprir a função pública na busca dos valores

próprios da Justiça de Transição, quais sejam: o direito à verdade, à memória, à justiça e à

reparação, aprofundando no processo democrático brasileiro. Mas para além do debate

35

NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p. 23. 36

NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p. 23. 37

NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p. 24.

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

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Page 93: Justica de transicao vdd memoria e justica

reparatório, o Ministério da Justiça, por meio da Comissão de Anistia, exerceu o papel

concretizador dos valores da Justiça de Transição.38

Um dos grandes enfoques da Comissão de Anistia foi o diálogo e parceria estabelecidos

com os mais variados setores da sociedade civil comprometidos com a luta pela democracia.

Exemplo desse diálogo foi a realização das Caravanas da Anistia e demais projetos educativos

de incentivo à apropriação social e política do tema. A Comissão de Anistia também priorizou

a busca pelo direito à memória e à verdade, resgatando a importância da luta pela democracia

no projeto do Memorial da Anistia. 39

O Memorial da Anistia Política do Brasil é resultado do trabalho da sociedade brasileira

na busca da constituição da verdade, pois envolveu familiares, associações dos anistiados,

imprensa, os parlamentares, os conselheiros, os servidores da Comissão de Anistia, a União

Nacional dos Estudantes, a Associação Brasileira de Imprensa, a Congregação Nacional dos

Bispos do Brasil, a Ordem dos Advogados do Brasil e do Ministério Público Federal. Ele é

fruto de sentimento e valores da justiça. Esse projeto não só valorizou e reconheceu a

relevância de todos os sujeitos históricos que dedicaram suas vidas à resistência contra a

ditadura militar, mas também consolidou uma das principais características para a

constituição de um verdadeiro projeto de nação: “a de que a memória é a base identitária para

a construção e inspiração de novas lutas por uma sociedade que pode ser sempre mais justa e

democrática.”40

Desde a sua instituição, a Comissão da Anistia, passou por vários ajustes. Esses ajustes

foram elaborados para aumentar a capacidade operacional do órgão, como inovações no

funcionamento administrativo, nova metodologia de apreciação dos requerimentos,

aperfeiçoamento da atividade julgadora, aumento do acesso da sociedade civil e da imprensa

às informações e às decisões.41

As Caravanas da Anistia, na busca da ampliação do diálogo com a sociedade,

realizaram julgamentos da Comissão em outras cidades fora da capital federal, aumentando

assim o impacto social. Com a apreciação de processos no local aonde os requerentes foram 38

BRASIL. Ministério da Justiça. Relatório Anual da Comissão da Anistia. Brasília. Ano 2007. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 20 nov. 2012, p.5. 39

BRASIL. Ministério da Justiça. Relatório Anual da Comissão da Anistia. Brasília. Ano 2007. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 20 nov. 2012, p.5. 40

PISTORI, E.C, SILVA FILHO, J.C.M. Memorial da Anistia Política no Brasil. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Ministério da Justiça. Nº 1. Jan-Jun.2009. Brasília: Ministério da Justiça, 2009, p. 115-116. 41

BRASIL. Ministério da Justiça. Relatório Anual da Comissão da Anistia. Brasília. Ano 2007. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 20 nov. 2012, p.7.

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

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Page 94: Justica de transicao vdd memoria e justica

perseguidos ou vítimas da arbitrariedade do Estado, pode-se resgatar de maneira mais

profunda a dignidade das pessoas, por meio do pedido oficial de perdão as ofensas no local

em que ocorreram. Essas Caravanas além de ampliar o potencial de reparação das decisões

aos anistiados, aumentaram a proximidade da população com os casos julgados e geraram

mais oportunidades de reflexão, por parte da sociedade, quanto às conseqüências do regime

militar na vida dos cidadãos e o valor da democracia.42

A Comissão de Anistia adotou uma visão abrangente na sua atuação, resgatando o

direito à verdade, à memória, à justiça e à reparação, que desencadearam em ações como:

tratamento dos arquivos e preservação do acervo, em especial o icnográfico e audiovisual,

passando a serem consideradas prioridades devido a sua relevância para a consolidação dos

direitos humanos e da cidadania do país.43

Também foram criados grupos de trabalho diante do acúmulo de requerimentos em

trâmite na Comissão. Com objetivo de resolver estes déficits, foram constituídos dez grupos

de trabalho, com destaque de tempo para adequada análise de situações fáticas e de Direito,

com finalidade de análise dos problemas administrativos. As propostas de encaminhamento

oriundas destes passaram a nortear os trabalhos internos da Comissão, agregando subsídios

para formação de juízo dos Conselheiros.44

No que diz respeito a participação da sociedade na Comissão em busca da verdade, a

realização de sessões plenárias temáticas oportunizou-se espaço a Anistia(n)dos, para

apresentar suas teses aos Conselheiros da Comissão e a sociedade civil, bem como divulgar

documentos e opiniões que consideram relevantes ao julgamento de seus requerimentos. O

presidente da Comissão recebeu Anistia(n)dos em seu Gabinete, em audiências previamente

agendadas, oportunidade em que foram detectados temas merecedores de debate mais

ampliado e direto.45

A Comissão de Anistia também promoveu ações educativas com os seguintes objetivos:

42

BRASIL. Ministério da Justiça. Relatório Anual da Comissão da Anistia. Brasília. Ano 2007. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 20 nov. 2012, p.9. 43

BRASIL. Ministério da Justiça. Relatório Anual da Comissão da Anistia. Brasília. Ano 2007. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 20 nov. 2012, p.18. 44

BRASIL. Ministério da Justiça. Relatório Anual da Comissão da Anistia. Brasília. Ano 2007. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 20 nov. 2012, p.18. 45

BRASIL. Ministério da Justiça. Relatório Anual da Comissão da Anistia. Brasília. Ano 2007. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 20 nov. 2012, p.22.

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

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Page 95: Justica de transicao vdd memoria e justica

• desenvolver políticas públicas de memória, concebidas numa perspectiva voltada para a educação em direitos humanos; • resgatar, preservar e divulgar os temas da anistia política, da democracia e da justiça de transição, por meio de ações educativas e culturais; • diversificar e potencializar as funções da Comissão, conferindo a ela caráter educativo e sensibilizador; • enfatizar os aspectos simbólicos, históricos e educativos da reparação, para além do seu caráter econômico.46

Com esses objetivos foram desenvolvidas as ações direcionadas a oportunizar o

conhecimento, a reflexão e o debate referente à verdade do período histórico da ditadura

militar: “1) Caravanas da Anistia; 2) Anistias Culturais; 3) Seminários, Oficias, Cursos e

afins; 4) Publicações de Materiais Educativos e de Divulgação.”47

As Caravanas da Anistia consistem na realização de sessões públicas itinerantes de

apreciação de requerimentos de anistia política acompanhadas por atividades pedagógicas e

culturais. As Caravanas têm como objetivo descentralizar as sessões regulares da Comissão de

Anistia ocorridas ordinariamente na Capital Federal, de modo a garantir ampla participação da

sociedade civil; propiciar o debate e a reflexão sobre o período da ditadura; valorizar e

difundir sobre a verdade da história das pessoas que foram perseguidas e torturadas; dar

visibilidade à luta política e ao papel desempenhado pelos ex-perseguidos, partidos e

organizações clandestinas em prol da democracia e da anistia política; e divulgar o trabalho

desenvolvido pela Comissão de Anistia.48

Durante as Caravanas, os testemunhos dos perseguidos políticos ou de seus familiares e

procuradores, diante de um público plural de estudantes, população local, profissionais da

imprensa, familiares, representantes de órgãos públicos - Ordem dos Advogados do Brasil, a

Confederação Nacional de Bispos do Brasil, a União Nacional dos Estudantes, a Associação

Brasileira de Imprensa, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República,

universidades, governos estaduais e municipais, entidades de direitos humanos e grupos de

ex-presos e perseguidos políticos -, tornam de domínio público, as histórias de perseguição

46

BRASIL. Ministério da Justiça. Ações Educativas da Comissão de Anistia. Relatório de Gestão 2007-2010. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 20 nov. 2012, p.15. 47

BRASIL. Ministério da Justiça. Ações Educativas da Comissão de Anistia. Relatório de Gestão 2007-2010. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 26 nov. 2012, p.15. 48

PAULO, Abrão. Caravanas da Anistia: um mecanismo privilegiado da Justiça de Transição no Brasil. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Ministério da Justiça. Nº 2. Jul-Dez.2009. Brasília: Ministério da Justiça, 2009, p. 114-115.

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

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Page 96: Justica de transicao vdd memoria e justica

muitas vezes desconhecidas, disponibilizam os relatos e visibilizam as sequelas oriundas das

perseguições, formando uma consciência social sobre o legado autoritário.49

Assim percebeu-se que o encontro promovido nas Caravanas, consequência da troca de

experiências e do processo de escuta coletiva, surtiu efeitos subjetivos que intensificaram o

sentimento de solidariedade entre as gerações, em um despertar de uma postura autor e

constituidor da própria história, da própria verdade. Desta forma, foram realizadas diversas

Caravanas da Anistia em parceria com Universidades e com a UNE (União Nacional dos

Estudantes).50

Já as Anistias Culturais constituem-se em atividades reflexivas desenvolvidas por meio

de uma abordagem cultural e pedagógica, a partir de fatos históricos e datas marcantes no

processo de luta pela redemocratização do país, com o objetivo de realizar Ciclos de Debates

e Mostras Culturais. Os Ciclos foram desenvolvidos mensalmente e foram relacionados a

temas relativos ao período de repressão política no país e temáticas afins, discutidos por ex-

perseguidos políticos, acadêmicos, advogados, e demais pessoas imbuídas pela temática.51

Assim, de 2008 a 2010, a Comissão de Anistia realizou as Anistias Culturais em

parceria com diferentes atores. Dentre os parceiros destacam-se “a Secretaria Especial de

Políticas para as Mulheres, a Universidade de Brasília, o Fórum de Expressos e Perseguidos

Políticos de São Paulo, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e a

Ordem dos Advogados do Brasil.”52

Além das Caravanas e Anistias Culturais, foram realizadas outras atividades educativas

como oficinas temáticas, audiências públicas, cursos e seminários. A realização das Oficinas

Temáticas teve como referencia a educação em direitos humanos. Este referencial requereu

metodologias de trabalho de grupo que estimulassem a construção coletiva do saber e a

análise da realidade, promovendo a confrontação e o intercâmbio de experiências. Estas

oficinas tiveram o intuito de sensibilizar os diferentes atores sociais para os assuntos relativos

49

PAULO, Abrão. Caravanas da Anistia: um mecanismo privilegiado da Justiça de Transição no Brasil. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Ministério da Justiça. Nº 2. Jul-Dez.2009. Brasília: Ministério da Justiça, 2009, p. 116. 50

BRASIL. Ministério da Justiça. Ações Educativas da Comissão de Anistia. Relatório de Gestão 2007-2010. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 26 nov. 2012, p.17. 51

BRASIL. Ministério da Justiça. Ações Educativas da Comissão de Anistia. Relatório de Gestão 2007-2010. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 26 nov. 2012, p.17. 52

BRASIL. Ministério da Justiça. Ações Educativas da Comissão de Anistia. Relatório de Gestão 2007-2010. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 26 nov. 2012, p.18.

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Page 97: Justica de transicao vdd memoria e justica

à justiça de transição, com vistas a possibilitar uma leitura crítica da realidade a partir do

contexto histórico e atual.53

Em relação as Audiências Públicas, essas contribuíram para a democratização das

relações entre Estado e sociedade, de modo a fortalecer a participação popular na esfera

pública. Revestiram-se, assim, em espaços de escuta coletiva e de abertura para as

manifestações sociais de movimentos e associações de perseguidos políticos sobre temas de

relevante interesse social.54

Todas essas ações foram planejadas e desenvolvidas pela Coordenação das Ações

Educativas da Comissão de Anistia, de acordo com o procedimento administrativo adotado

pela estrutura ministerial somada às experiências diárias obtidas através das atividades

realizadas. Anualmente a Coordenação de Ações Educativas elabora um planejamento das

atividades no âmbito dos “Encontros sobre Estratégias de Preservação e Divulgação da

Memória”. A metodologia de trabalho adotada tem sido realizada em duas frentes estratégicas

que compreendem atividades de mobilização e atividades de disseminação de informações.

Tais atividades buscam fortalecer a Comissão de Anistia, a fim de obter êxito na execução de

suas políticas públicas de justiça de transição, sensibilizar, discutir e informar sobre anistia

política, e resgatar a memória e a verdade relativas ao período de repressão ditatorial por meio

de ações educativas.55

Nesse sentido, a mobilização tem sido promovida visando dois segmentos:

o primeiro relacionado ao mapeamento de parceiros para a promoção conjunta de atividades educativas a respeito do tema da anistia política, e à elaboração de agenda para firmar novas parcerias e consolidar as já em andamento. O segundo, relacionado ao mapeamento, divulgação e sensibilização do público, buscando atingir diversos setores da sociedade civil.56

A partir da divulgação e disseminação de todas essas atividades realizadas pela

Comissão, da realização de seminários, audiências públicas, debates, do estímulo à pesquisa e

53

BRASIL. Ministério da Justiça. Ações Educativas da Comissão de Anistia. Relatório de Gestão 2007-2010. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 26 nov. 2012, p.16-17. 54

BRASIL. Ministério da Justiça. Ações Educativas da Comissão de Anistia. Relatório de Gestão 2007-2010. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 26 nov. 2012, p.19. 55

BRASIL. Ministério da Justiça. Ações Educativas da Comissão de Anistia. Relatório de Gestão 2007-2010. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 26 nov. 2012, p.46. 56

BRASIL. Ministério da Justiça. Ações Educativas da Comissão de Anistia. Relatório de Gestão 2007-2010. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 26 nov. 2012, p.46.

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Page 98: Justica de transicao vdd memoria e justica

à produção acadêmica, bem como por meio do registro das atividades, composição de acervo

documental e relatórios de análise e avaliação das ações desenvolvidas, enriquece-se o debate

atinente ao tema da justiça de transição. Com esse viés, foram realizados estudos teóricos a

respeito das atividades educativas demonstrando sua relevância para a implantação do

processo justransicional brasileiro, promovidos cursos sobre anistia política e concebidas

diretrizes conceituais e propostas de novas ações. Assim, As atividades de disseminação de

informações têm-se revelado importante instrumento para a concepção de estratégias de

mobilização de novos públicos. Ademais, a execução de estudos teóricos implica, em muitos

casos, trabalhos de mobilização junto a parceiros.57

Houveram também atividades promovidas pela Comissão em parceria com outras

instituições, a exemplo do Projeto “Marcas da Memória: história oral da anistia no Brasil” que

foi firmado a partir de um convênio entre a Comissão de Anistia e três universidades federais:

a de Pernambuco (UFPE), a do Rio Grande do Sul (UFRGS) e a do Rio de Janeiro (UFRJ). O

objetivo do convênio era mobilizar professores, pesquisadores e alunos das universidades a

produzirem acervos de fontes orais e visuais, refletirem sobre a história e a memória da anistia

no Brasil e divulgarem essas reflexões em fóruns acadêmicos. Ampliando, assim, o espaço da

discussão crítica e da produção de fontes primárias e de conhecimento sobre o período da

ditadura militar no Brasil, o processo de redemocratização e a justiça de transição que vem

sendo implantada no país.58

No que condiz esses trabalhos realizados pela Coordenação das Ações Educativas, este

está intrinsecamente associado a parceria interna e externa:

A parceria interna refere-se à interface necessária com os outros setores da Comissão de Anistia. No caso da realização de uma edição da Caravana da Anistia, o apoio vai desde a Secretaria do Gabinete, que realiza a solicitação de passagens e diárias, passando pelas Coordenações de Análise, Julgamento e Finalização, até a Presidência e Vice-Presidência e Conselheiros. A parceria externa refere-se, por sua vez, ao estreito contato com os parceiros das localidades onde as atividades serão realizadas, necessário para um resultado satisfatório.59

A Coordenação elaborou uma forma para manter o fluxo de informações.

Disponibilizou todos os documentos em pasta compartilhada na intranet. Com isto objetivou-

57

BRASIL. Ministério da Justiça. Ações Educativas da Comissão de Anistia. Relatório de Gestão 2007-2010. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 26 nov. 2012, p.46-47. 58

ARAUJO, Maria Paula. Marcas da Memória: história oral da anistia no Brasil. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição. N. 6. Jul-dez.2011, p. 174. 59

BRASIL. Ministério da Justiça. Ações Educativas da Comissão de Anistia. Relatório de Gestão 2007-2010. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 26 nov. 2012, p.47.

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se o uso produtivo das informações e documentos gerados pelos integrantes, a fim de permitir

acessibilidade prática e rápida a toda equipe, baseado num sistema colaborativo, em que todos

participam da inserção e atualização dos dados. Para além da documentação em meio digital,

as atividades estão disponíveis em meio impresso, no arquivo físico da Coordenação.60

A Coordenação das Ações Educativas não trabalhou sozinha, teve interface com outros

setores da Comissão de Anistia: a Presidência e Vice-Presidência; Secretaria Executiva;

Secretaria Geral; Coordenação de Comunicação; Coordenação de Cooperação Internacional;

Coordenação de Percerias e Convênios; Coordenação de Orçamento e Finanças; Coordenação

de Análise; Coordenação de Julgamento; Coordenação de Contadoria e Finalização.61

Entre esses setores, o da Coordenação de Parcerias e Convênios está diretamente ligado

a participação da sociedade nas Ações Educativas. Exemplo disso é a elaboração de edital

público que selecionou 10 projetos de preservação, memória, divulgação, difusão e de

incremento do acervo material e imaterial, com ênfase em atividades temáticas sobre o

processo de Anistia Política e Justiça de Transição no Brasil. Por meio destas contratações,

estão sendo apoiadas financeiramente a produção de dois documentários, duas exposições,

duas publicações, um material didático e seminários, além do apoio à itinerância de um show

musical e de uma peça de teatro. Entre estes projetos, quatro estão vinculados diretamente às

Caravanas da Anistia: dois registros históricos e duas atividades artísticas que irão

acompanhar a programação das Caravanas.62

Para contribuir à reflexão e ampliação das atividades, foi contratado consultoras

externas para realizar estudos, ações de mobilização nacional e internacional e disseminação

de informações relativas às atividades desenvolvidas pela Comissão de Anistia. Os produtos,

frutos desta contratação, contribuíram para a reflexão e o conhecimento mais aprofundado das

atividades realizadas e sua relevância sociopolítica no contexto justransicional brasileiro.63

Percebe-se que realmente o grande enfoque da Comissão de Anistia foi o diálogo e

parceria estabelecidos com os mais variados setores da sociedade civil comprometidos com a

60

BRASIL. Ministério da Justiça. Ações Educativas da Comissão de Anistia. Relatório de Gestão 2007-2010. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 26 nov. 2012, p.48. 61

BRASIL. Ministério da Justiça. Ações Educativas da Comissão de Anistia. Relatório de Gestão 2007-2010. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 26 nov. 2012, p.48-50. 62

BRASIL. Ministério da Justiça. Ações Educativas da Comissão de Anistia. Relatório de Gestão 2007-2010. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 26 nov. 2012, p.49. 63

BRASIL. Ministério da Justiça. Ações Educativas da Comissão de Anistia. Relatório de Gestão 2007-2010. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 26 nov. 2012, p.60.

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luta pela democracia. Apesar das decisões sobre como e quais atividades deveriam ser

lançadas à sociedade na busca da verdade serem tomadas pela própria Comissão, essa

organizou diversas atividades que envolveram a sociedade. Um exemplo é o Memorial da

Anistia Política do Brasil, pois envolveu familiares, associações dos anistiados, imprensa, os

parlamentares, os conselheiros, os servidores da Comissão de Anistia, a União Nacional dos

Estudantes, a Associação Brasileira de Imprensa, a a Congregação Nacional dos Bispos do

Brasil, a Ordem dos Advogados do Brasil e do Ministério Público Federal.

As Caravanas da Anistia também buscaram a ampliação do diálogo com a sociedade,

realizaram julgamentos da Comissão em várias cidades do Brasil, aumentando assim o

impacto social. Além disso, a realização de sessões plenárias temáticas oportunizou-se espaço

a anistiados e anistiandos, para apresentar suas teses aos Conselheiros da Comissão e a

sociedade civil, bem como divulgar documentos e opiniões que consideram relevantes ao

julgamento de seus requerimentos.

No que diz respeito a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, a

busca da verdade pelos familiares das pessoas que morreram na luta contra o regime militar é

uma história longa e repleta de obstáculos. De início, as famílias e seus advogados tinham em

mãos apenas uma versão falsa ou simplesmente um vazio de informações. Há mais de 35

anos, seguem batendo em todas as portas, insistindo na localização e identificação dos corpos.

Tiveram sucesso em poucos casos. Mas alcançaram êxito num primeiro objetivo importante: o

Estado brasileiro reconheceu sua responsabilidade pelas mortes denunciadas.64

A legítima pressão exercida por militantes dos Direitos Humanos, ex-presos políticos,

exilados, cassados e familiares de mortos e desaparecidos a favor da Anistia e do direito à

verdade adquiriu vigor em meados da década de 1970, até resultar na conquista da Lei nº

6.683, de 28 de agosto de 1979, conhecida como Lei da Anistia.65

Mais tarde, com o fortalecimento da luta dos familiares das vítimas do regime militar

abriu-se caminho para a conquista da Lei nº 9.140, essa lei trata da responsabilidade do

Estado pelas mortes, garantiu reparação indenizatória e, principalmente, oficializou o

64

BRASIL. SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à Verdade e à Memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2007, p. 31. 65

BRASIL. SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à Verdade e à Memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2007, p. 31.

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Page 101: Justica de transicao vdd memoria e justica

reconhecimento histórico de que esses brasileiros não podiam ser considerados terroristas ou

agentes de potências estrangeiras, como sempre martelaram os órgãos de segurança.66

A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), instituída

então pela lei, era composta de sete integrantes: um deputado da Comissão de Direitos

Humanos da Câmara, uma pessoa ligada às vítimas da ditadura, um representante das Forças

Armadas, um membro do Ministério Público Federal e três pessoas livremente escolhidas

pelo presidente da República. A composição inicial, bem como as sucessivas alterações

ocorridas ao longo desses 11 anos de sua existência, já foram apresentadas no início deste

livro-relatório.67

Os trabalhos começaram no dia 8 de janeiro de 1996, na sala 621 do prédio anexo ao

Ministério da Justiça, sob a presidência de Miguel Reale Junior. A partir desse dia, começou a

contagem regressiva para revisar duas décadas de história deliberadamente escondidas. Houve

embates e discussões acirradas na CEMDP. Os familiares nunca aceitaram a indicação do

general Oswaldo Pereira Gomes, pelo fato de seu nome estar citado como participante dos

aparelhos de repressão no Brasil Nunca Mais, livro que se tornou uma espécie de bíblia sobre

os crimes cometidos durante a ditadura militar.68

O general, que deixou a Comissão em 2003, orgulha-se de sua participação, embora

defenda que as indenizações também deveriam ser destinadas às famílias de militares e civis

mortos na defesa do regime. “Minha presença representava o contraditório, os embates eram

travados com base jurídica, eu atuava como advogado indicado pelas Forças Armadas”,

argumenta o militar da reserva. Para ele, um dos julgamentos mais simbólicos foi o de Zuzu

Angel. De início, foi negado o reconhecimento da responsabilidade do Estado por sua morte e

a consequente indenização. Em seguida, houve revisão do processo e a família obteve os

direitos, contra o seu voto. O general também não concordou com o reconhecimento das

mortes e com a indenização às famílias de Carlos Marighella e Carlos Lamarca.69

66

BRASIL. SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à Verdade e à Memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2007, p. 31. 67

BRASIL. SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à Verdade e à Memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2007, p. 38. 68

BRASIL. SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à Verdade e à Memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2007, p. 38-39. 69

BRASIL. SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à Verdade e à Memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2007, p. 39.

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Pressionados pelo prazo exíguo e pelo surgimento de muitos casos novos devido à

divulgação pela mídia, o trabalho teve de ser acelerado. Os requerimentos foram distribuídos

entre os integrantes, que tinham a missão de montar os processos, anexando documentos e um

relatório com explicações sobre as circunstâncias da morte.70

Sempre foi muito difícil o acesso a documentos probatórios. Aqueles obtidos para

comprovar que o Estado era responsável pelas mortes foram procurados nos arquivos

estaduais já abertos, livros dos cemitérios clandestinos, registros municipais e também

aproveitando testemunhos de sobreviventos. Fragmentos foram recolhidos e juntados

minuciosamente para reconstruir o histórico das mortes, mas o número de desaparecidos cujos

corpos puderam ser localizados e identificados ainda é considerado ínfimo.71

Os pesquisadores procuraram também a documentação do Superior Tribunal Militar

(relativa aos processos formados na Justiça Militar) e ali localizaram dados importantes. Um

exemplo foi o de Luiz José da Cunha, que segundo os autos ingressou na prisão apenas de

cuecas e meias e, portanto, não poderia ter morrido em tiroteio. Com lupas, respirando o ar

viciado e o mofo dos arquivos, os parentes dos mortos reviravam papéis amarelados,

garimpando detalhes perdidos em caudalosos textos de linguagem técnica ou dissimulada, em

especial nos arquivos do DOPS de Pernambuco, do Rio de Janeiro e de São Paulo. Também

as fotos dos corpos coletadas no Instituto Médico Legal (IML) foram fundamentais para que

médicos legistas emitissem laudos comprovando as marcas de tortura.72

Na opinião de Francisco Helder Macêdo Pereira, que atuou como assessor

administrativo da Comissão, entre 1996 e 2004, o início não foi tão difícil, pois os primeiros

casos a ser indenizados já constavam no Anexo I da Lei nº 9.140, embora houvesse resistência

da Polícia Federal e das Forças Armadas em fornecer informações. Mesmo com as

informações preliminares constando no anexo da lei, o excesso de trabalho, o tempo exíguo e

a dificuldade de obtenção de documentos refletiam-se no clima das reuniões da Comissão. Os

70

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integrantes discutiam com freqüência e os embates mais acirrados ocorriam com o

representante das Forças Armadas.73

Miguel Reale Junior, que presidiu a comissão durante cinco anos, confirma que houve

momentos de confronto, quando teve de impor ordem nas discussões mais acaloradas,

“sobretudo durante análise dos casos de Marighella, Lamarca e Zuzu Angel, os mais

emblemáticos”. O jurista, que seria ministro da Justiça entre abril e julho de 2002, compara os

trabalhos do período em que esteve à frente da CEMDP com um contínuo filme de terror.

Destaca como importante avanço a ampliação do conceito de localidade em que a vítima está

sujeita ao poder do Estado. “Não apenas em quatro paredes se dava o reconhecimento da

responsabilidade do Estado, mas mesmo na rua ou no campo, quando a submissão à força

policial era evidente e massiva, como nos casos de Marighella e Lamarca, entre outros”.74

O coronel João Batista Fagundes, que entrou na Comissão em 2003, concorda com seu

antecessor, general Oswaldo Pereira Gomes, no sentido de que suas presenças tiveram

significado especial por permitirem o exercício do contraditório. “Tal fato demonstra também

que a Comissão não se destina a hipertrofiar erros e violências cometidos por autoridades

policiais ou militares, mas à apuração da verdade que possa ensejar um ressarcimento moral e

material às vítimas de tais violências”, assinala, ressaltando que a CEMDP é uma instância de

Estado, e não de governo.

Ele acredita que a força da Comissão reside na heterogeneidade da origem de seus

integrantes, credenciando-a a julgar os casos com isenção:

Ela é um colegiado que tem opiniões muito próprias, que às vezes são divergentes. Alguém já disse que da discussão nasce a luz. E temos discussões acaloradas mesmo. Evidentemente, eu, como integrante das Forças Armadas, não penso da mesma forma que pensam outros integrantes. Mas eles têm todo o direito de pensar daquela maneira, até porque nós vivemos a plenitude de um Estado Democrático de Direito. Tenho procurado interpretar o pensamento da Forças Armadas. Temos algumas falhas no nosso passado, alguns períodos de turbulência, em que determinados movimentos de força eram justificados. E que hoje não são mais justificados. As Forças Armadas têm o maior interesse em restabelecer a verdade dos fatos e, se possível, quando for o caso, até promover o ressarcimento do dano. Agora, nós não podemos é atribuir ao Exército e às Forças Armadas determinados erros e exageros dos quais participaram no passado”.75

73

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Para ele, o trabalho da CEMDP registra para a posteridade um período nebuloso da

história do Brasil, “que, esperamos, não volte nunca mais, para que possamos viver

pacificamente em um Brasil com respeito à cidadania e onde todos sejam iguais perante a lei,

mediante o fiel cumprimento do preceito constitucional”. O coronel Fagundes lembra também

o processo sobre o jornalista Alexandre Von Baumgarten, do qual foi relator. A filha requereu

o pagamento de indenização, com base nas versões de que ele teria sido assassinado a mando

do general Newton Cruz. Houve um rumoroso processo à época, Newton Cruz foi submetido

a julgamento na Justiça Criminal do Rio de Janeiro, sendo absolvido por unanimidade,

inclusive em segunda instância. “E eu disse, ao indeferir o processo, cujo relatório foi

aprovado por unanimidade, que não poderia aplicar o princípio do ‘in dubio, pro reo’. O

jornalista era um homem de múltiplas inimizades. Ele estava escrevendo um livro, ‘Yellow

Cake’, no qual alegava o interesse de Israel e do Iraque na compra de urânio brasileiro. E

também era muito polêmica a idéia de que pretendia recuperar, com o patrocínio da Capemi, a

revista ‘O Cruzeiro’ para fazer propaganda do regime. Por que razão o Exército o mataria?

Matar um amigo? Ele inclusive teria recebido a Medalha do Pacificador”, conta o oficial da

reserva.76

Os envolvidos na criação da CEMDP e seus integrantes são unânimes em afirmar que o

momento de maior exasperação foi quando se decidiu acatar os pedidos das famílias de Carlos

Lamarca e Carlos Marighella. Um senador chegou a telefonar dizendo que o governo estava

passando dos limites. “O deferimento de indenizações nesses dois casos submeteu nossa

incipiente democracia a mais um teste e ela resistiu bem”, opina Belisário dos Santos Junior.

Elder Macêdo lembra que o voto de Paulo Gonet no processo de Carlos Lamarca tinha 38

laudas e muitos tópicos foram até mesmo usados como referência em outros processos. “No

geral, tivemos uma postura equilibrada das Forças Armadas, com pouquíssima oposição de

alguns oficiais da reserva, mas creio que houve um entendimento superior de que era

necessário que o Estado assumisse a responsabilidade”, analisa José Gregori, que lembra,

ainda, a atuação sempre serena de Miguel Reale Junior como primeiro presidente da

Comissão.77

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Page 105: Justica de transicao vdd memoria e justica

Belisário dos Santos Junior também avalia a Comissão como um órgão de Estado, e não

de governo, o que facilita a melhor compreensão de seu papel para a sociedade. “Assim, os

membros da CEMDP sempre procederam com independência total. Jamais, em qualquer

gestão, houve tentativa de decidir neste ou naquele sentido. Sei que houve embates verbais

muito duros com o primeiro representante das Forças Armadas, o general Oswaldo Pereira

Gomes. O coronel João Batista, da atual representação militar, é um homem com imenso

respeito pelos Direitos Humanos, cujos votos têm honrado a tradição desta Comissão. Ele

sabe que as Forças Armadas não se confundem com os torturadores que se esconderam em

passado recente atrás de uma farda. E que a tortura, sob qualquer forma, deve ser punida, e

suas vítimas devem ser reconhecidas e indenizadas pelo Estado”, diz Belisário.78

Cada processo concluído pela Comissão Especial era apresentado e votado, mas, como

regra geral, o veredicto não era decidido por consenso, e sim por votação, após longos

debates. Por determinação da lei, as indenizações não ocorriam automaticamente. Os

familiares precisavam solicitá-las mediante requerimento. Na fase inicial foram protocolados

373 processos, referentes a 366 pessoas – sendo 132 de desaparecidos mencionados no Anexo

I da Lei. Dos 234 restantes, 166 eram mortos referidos no dossiê original e 68 eram casos

novos. A diferença numérica ocorreu pela duplicidade de pedidos ou pela existência de

processos repetidos, quando duas pessoas solicitavam indenização pela mesma vítima ou uma

única pessoa solicitava duas ou mais indenizações porque em sua família havia mais de uma

vítima. Dos processos apreciados, foram aprovados, de início, 148 nomes, 130 deles contidos

no dossiê e 18 casos novos. Os indeferimentos somaram 86 processos, sendo 36 do dossiê.79

Para o atual presidente da CEMDP, Marco Antônio Rodrigues Barbosa, os mortos e

desaparecidos políticos da ditadura sempre retornam, não descansam. “O que não é

assimilado pela História reaparece como sintoma”, diz. Para ele, em primeiro lugar, o trabalho

da Comissão Especial é a possibilidade, com a resposta do Estado, da restauração da justiça e

da paz, para que perseguições, mortes e desaparecimentos forçados nunca mais voltem a

acontecer neste país. Depois, esses trabalhos possibilitam a cicatrização de feridas: a luta dos

familiares constitui uma decisão com força de um destino trágico grego, “pois, como

Antígona em sua luta para dar sepultura ao irmão, assim eles fazem com relação aos seus

78

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BRASIL. SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à Verdade e à Memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2007, p. 41.

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Page 106: Justica de transicao vdd memoria e justica

entes queridos mortos e desaparecidos, muitos deles assassinados pela ditadura e enterrados

como indigentes”.80

Em síntese, a Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos foi a Comissão que

menos houve participação social. A Comissão é composta de um deputado da Comissão de

Direitos Humanos da Câmara, uma pessoa ligada às vítimas da ditadura, um representante das

Forças Armadas, um membro do Ministério Público Federal e três pessoas livremente

escolhidas pelo presidente da República.

Os debates aconteciam, os integrantes discutiam com frequência e os embates mais

acirrados ocorriam com o representante das Forças Armadas. Além disso cada processo

concluído pela Comissão Especial era apresentado e votado, mas, como regra geral, o

veredicto não era decidido por consenso, e sim por votação, após debates.

Assim, percebe que também não houve deliberação pública. A democracia deliberativa

é uma composição estrutural de condições sociais e institucionais que torna mais provocante e

fácil o discurso livre entre cidadãos iguais. Ou seja, ela proporciona condições favoráveis de

participação, associação e expressão, além disso vincula a autorização para exercer o poder e

o próprio exercício do poder público, o que não ocorreu em nenhum dos casos.

4 Considerações Finais

O trabalho analisou a história da América Latina para comparar o trabalho e a

participação da sociedade brasileira na constituição da verdade sobre as violações de Direitos

Humanos do Regime Militar, apresentando assim, os mecanismos instaurados para constituir

a verdade nesses países, analisando-se os trabalhos das Comissões da Verdade oficiais e não

oficiais da América Latina e a participação social em cada uma delas, bem como se deu a

participação da sociedade brasileira na Comissão da Anistia e na Comissão dos Mortos e

Desaparecidos Políticos.

Nas Comissões da America Latina constituídas para a construção da verdade, verificou-

se, durante a pesquisa, que existiram diferentes processos de desenvolvimento que abriram

possibilidades, em alguns casos, de sancionar os responsáveis por violações de direitos

humanos. Mas o que realmente chama atenção é que, para uma Comissão obter êxito, é

80

BRASIL. SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à Verdade e à Memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2007, p. 42.

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Page 107: Justica de transicao vdd memoria e justica

importante a participação de organismos de Direitos Humanos, das organizações políticas,

religiosas, acadêmicas, sindicais entre outras, e da sociedade em geral.

Na Argentina a comissão da verdade ocorreu com maior participação do poder público,

revestindo-se de um caráter formal e oficial. Através de seu Poder Executivo, aquele país

resolveu constituir sua comissão com as câmaras do Congresso Nacional e com outras

pessoas de dentro e fora do país.

Por outro lado, dentre as comissões investigadas durante a pesquisa, foi na Bolívia em

que se verificou a maior participação da sociedade no processo de constituição da verdade,

discutindo-se, inclusive, assuntos relacionados ao que fazer com os crimes da ditadura e seus

responsáveis. Apesar de ser uma Comissão não oficial, foi a única que procurou um consenso

sobre como os casos deveriam ser investigados. A força da sociedade boliviana, a Central dos

Trabalhadores da Bolívia, a igreja Católica e Metodista, a Universidade San Simon da Paz, os

sindicatos de jornalistas, os grupos de Direitos Humanos, os familiares de vítimas da ditadura,

com o apoio de alguns políticos conseguiram o impeachment contra o general Luis García

Meza.

No Chile também houve participação social intensa. Mais de sessenta pessoas de

diversas organizações nacionais e internacionais de Direitos Humanos colaboraram e

trabalharam em tempo integral para o processamento das informações obtidas pela Comissão

da Verdade. E o Paraguai foi outro país que teve o apoio de várias organizações

internacionais.

Em todos esses casos, em maior ou menor medida, vê-se a participação social nas

comissões da verdade. Contudo, para uma Comissão da Verdade ser realmente bem sucedida,

além do envolvimento de organizações de direitos humanos e de instituições sociais oficiais,

verificou-se a necessidade de um amplo movimento de apoio da sociedade, em que as

organizações políticas, religiosas, acadêmicas, sindicatos e outros unam forças. A chance de

constituir a verdade, desse modo, é maior quando a sociedade parte de um esforço.

Entretanto, dentre as comissões analisadas, não se verificou em nenhuma delas, seja

oficial ou não oficial, uma deliberação pública efetiva. Ou seja, não se verificou a

concretização da democracia deliberativa, através da qual se vislumbra a abertura de um

debate público. Em todas as comissões analisadas, os indivíduos não tiveram acesso igual às

condições necessárias para tomar boas decisões em relação em como constituir a verdade. Na

sociedade política, onde existem divergências consideráveis sobre quais são os interesses dos

indivíduos, sejam eles individuais ou coletivos, a principal incorporação pública da

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Page 108: Justica de transicao vdd memoria e justica

consideração igual de interesses está em instituições que asseguram que cada um tenha voz

igual na tomada de decisão coletiva.

Em suma, muito embora nos países da América Latina a constituição da verdade tenha

se dado por meio de suas respectivas Comissões, sejam elas oficias ou não oficiais, com

maior ou menos participação da sociedade, em nenhum caso se vislumbrou uma efetiva

participação.

No Brasil, a Comissão Oficial da Verdade ainda não concluiu seus trabalhos. A despeito

disso, é perfeitamente possível averiguar a participação social na constituição da verdade nas

Comissões da Anistia e Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos por meio de seus

relatórios. Pode-se perceber que realmente há um grande destaque no diálogo e na parceria

estabelecidos com os mais variados setores da sociedade civil comprometidos com a luta pela

democracia. Apesar das decisões sobre quais atividades, e de que forma, deveriam ser

lançadas à sociedade na busca da verdade, serem concentradas na própria comissão, a sua

grande virtude está na organização de diversas atividades que envolveram a sociedade

brasileira. Um exemplo disso é o Memorial da Anistia Política do Brasil, pois envolveu

familiares, associações dos anistiados, imprensa, os parlamentares, os conselheiros, os

servidores da Comissão de Anistia, a União Nacional dos Estudantes, a Associação Brasileira

de Imprensa, a Congregação Nacional dos Bispos do Brasil, a Ordem dos Advogados do

Brasil e do Ministério Público Federal.

As Caravanas da Anistia também buscaram a ampliação do diálogo com a sociedade,

realizaram julgamentos da Comissão em várias cidades do Brasil, aumentando assim o

impacto social. Além disso, a realização de sessões plenárias temáticas oportunizou-se espaço

a anistiados e anistiandos, para apresentar suas teses aos Conselheiros da Comissão e a

sociedade civil, bem como divulgar documentos e opiniões que consideram relevantes ao

julgamento de seus requerimentos.

Por outro lado, a Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos foi a Comissão que,

no Brasil, houve menos participação social. Essa Comissão é composta de um deputado da

Comissão de Direitos Humanos da Câmara, uma pessoa ligada às vítimas da ditadura, um

representante das Forças Armadas, um membro do Ministério Público Federal e três pessoas

livremente escolhidas pelo presidente da República. As decisões emanas desta comissão eram

tomadas através do voto e não por consenso após os debates. Assim, percebe-se que também

não houve deliberação.

A democracia deliberativa é uma composição estrutural de condições sociais e

institucionais que torna mais provocante e fácil o discurso livre entre cidadãos iguais. Ou seja,

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ela proporciona condições favoráveis de participação, associação e expressão, além disso

vincula a autorização para exercer o poder e o próprio exercício do poder público, o que não

ocorreu em nenhum dos casos que foram analisados na presente pesquisa.

Desse modo, as perspectivas de efetividade de uma democracia, calcada em seus

fundamentos teóricos e práticos, ainda que necessária para a constituição da verdade histórica,

enfrenta uma série de entraves que precisam ser superados para a construção de um Brasil

verdadeiramente democrático.

5 Referências ARAUJO, Maria Paula. Marcas da Memória: história oral da anistia no Brasil. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição. N. 6. Jul-dez.2011. BRASIL. Ministério da Justiça. Ações Educativas da Comissão de Anistia. Relatório de Gestão 2007-2010. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 26 nov. 2012. BRASIL. Ministério da Justiça. Relatório Anual da Comissão da Anistia. Brasília. Ano 2007. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 20 nov. 2012. BRASIL. SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à Verdade e à Memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2007. CHILE. Corporación Nacional de Reparación y Reconciliacón. Informe de la Comissión Nacional de Verdad y Reconciliacón. 1996. CONADEP. COMISIÓN NACIONAL SOBRE LA DESAPARICIÓN DE PERSONAS. Nunca Más. 6 ed. Buenos Aires: Eudeba, 2003. GUAZZALLI, Cesar B. História Contemporânea da América Latina: 1960-1990. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1993. NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em 24 out. 2012.

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DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE NO BRASIL: NOTAS SOBRE UM DEBATE

NECESSÁRIO PARA O CAMPO DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO

RIGHT TO MEMORY AND TO TRUTH IN BRAZIL: NOTES ON A NECESSARY

DEBATE FOR THE TRANSITIONAL JUSTICE FIELD

Carlos Bolonha e Vicente Rodrigues

RESUMO O presente artigo tem por objetivo contribuir para o debate sobre a justiça de transição no Brasil buscando, para tanto, investigar o conceito e o reconhecimento do chamado “direito à memória e à verdade”, identificando-o como um dos elementos-chave da justiça de transição brasileira. Para tanto, parte da análise histórica do regime civil-militar brasileiro (1964-1985), identificando a justiça de transição como um novo campo de estudo que tem por objetivo o enfrentamento de um legado de violações dos direitos humanos. Em particular, centra-se numa reflexão sobre o conteúdo e o reconhecimento do direito à memória e à verdade. Este direito é aqui entendido como uma dimensão fundamental para a consecução dos objetivos da justiça de transição no Brasil, por intermédio de dois mecanismos recentemente criados, a Comissão Nacional da Verdade e a nova Lei de Acesso a Informações. PALAVRAS-CHAVE: Justiça de transição; Direito à memória e à verdade; Direitos Humanos; Regime civil-militar brasileiro.

ABSTRACT This article aims to contribute to the debate on transitional justice in Brazil, investigating both the concept and the recognition of the so-called “right to memory and to truth”. To this end, seeks to promote a historical analysis of the Brazilian civil-military regime (1964-1985) identifying transitional justice as a new field of study that aims to deal with a legacy of human rights violations. In particular, it focuses on the discussion of the content and the recognition of the right to memory and to truth as a fundamental dimension to achieve the goals of the Brazilian transitional justice. In Brazil the right to memory and truth has two recently created mechanisms: the National Commission of Truth and the new law on access to information. KEYWORDS: Transitional justice; Right to memory and to truth; Human rights; Brazilian civil-military dictatorship.

1 Considerações iniciais

O Brasil, como outros países da América do Sul, passou pela experiência de um

regime ditatorial na segunda metade do século XX, especificamente entre os anos de 1964-

1985, tempo de violações sistemáticas e maciças dos direitos humanos1, de negação de

valores democráticos e de arbítrio do Estado.

1 A expressão “direitos humanos” é aqui compreendida, de forma geral, como um grupo de direitos historicamente construídos que têm como destinatários todos os seres humanos. Isto é, representa posições

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Page 112: Justica de transicao vdd memoria e justica

Em breve resumo, que não pretende dar conta de toda a complexidade da experiência

brasileira, cabe rememorar que, em 1961, assumiu a presidência da República o político

conservador Jânio Quadros, cujo governo foi breve e errático, tanto do ponto de vista interno

quanto de sua política externa (MARKUN e HAMILTON, 2001). Em seu lugar, e após um

conturbado processo político, no qual sua posse chegou a ser impedida por setores das Forças

Armadas Brasileiras (FAB), assumiu o então vice-presidente2 do Brasil, João Goulart (1961-

1964), popularmente conhecido como “Jango”.

Com o objetivo de fortalecer o seu governo e promover uma agenda política

reformista, Jango realizou um grande comício, em 13 de março de 1964, na Central do Brasil,

na cidade do Rio de Janeiro, que ficaria conhecido como o “Comício das Reformas de Base”,

quando anunciou que o governo adotaria uma série de ações e projetos que levariam a

mudanças radicais nas estruturas agrária, econômica e educacional do Brasil sem, contudo,

afastar o país do marco legal e democrático.

Essas reformas jamais seriam levadas a cabo, pois em 31 de março de 1964, deu-se o

golpe de estado que selaria o fim do governo de Jango. Por outro lado, o golpe-civil militar3

teve como resultado mais do que a derrubada do presidente, levando ao estabelecimento, em

1º de abril do mesmo ano, de um “governo revolucionário” comandado por uma junta militar,

representando, ademais, a demolição do sistema constitucional democrático estabelecido após

o fim do Estado Novo (1937-1945).

Mal tinha se instalado no Palácio do Planalto, a junta militar decretou o Ato

Institucional (AI) nº-1, primeiro de uma série de seis normativas que buscavam

institucionalizar a “legalidade autoritária do regime”. Com apenas onze artigos, o AI-1 deu ao

executivo federal o poder de alterar a constituição e cassar mandatos legislativos e direitos

políticos, além da faculdade de demitir, colocar em disponibilidade ou aposentar

compulsoriamente qualquer adversário do regime “revolucionário”, sem “apreciação judicial

desses casos”. Da mesma forma, estabeleceu eleições indiretas para a presidência da

República. Portanto, embora a Constituição de 1946 somente tenha sido oficialmente

jurídicas ativas de direitos comuns a todas as pessoas, pelo simples fato de serem humanas (COMPARATO, 2010). 2 De acordo com o art. 81 da Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de setembro de 1946, o presidente e o vice-presidente da República deveriam ser eleitos simultaneamente, mas não havia a obrigação de pertencerem ao mesmo partido ou coligação. 3 Referimo-nos à caracterização do golpe, e da própria ditadura, como “civil-militar” e não, apenas, “militar”. A sucessão de “presidentes-generais”, bem como o papel de destaque das Forças Armadas parece, a princípio, indicar como correta esta última definição. Contudo, sobre o caráter civil-militar desse movimento, há que se considerar, como esclarece Silva (2003, p. 271), as “íntimas e complementares relações entre empresários e militares na conspiração contra o regime constitucional no Brasil”.

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substituída em 1967, não se encontrava mais em vigor, mutilada pelos atos institucionais do

regime civil-militar. Ao AI-1 sucederam-se mais cinco atos institucionais, dentre os quais o

mal afamado AI-5 (1968), que determinou o fechamento do Congresso Nacional e inaugurou

o período mais brutal da repressão política no Brasil, caracterizado pelos “desaparecimentos”

forçados, assassinatos e tortura generalizada ocorridos nos aparelhos policiais, oficiais e

extraoficiais, do Estado brasileiro.

Por outro lado, o período da ditadura civil-militar também demarcou, dentro da lógica

do sistema capitalista de produção, uma fase de grandes transformações na economia do

Brasil, de modernização da indústria e dos serviços, de concentração de renda, de abertura ao

capital estrangeiro e do endividamento externo. Nesse sentido, cabe apontar que a ditadura

civil-militar brasileira deve ser compreendida no contexto das ditaduras que foram

implantadas na América do Sul na segunda metade do século XX. Os Estados Unidos da

América do Norte (EUA), a pretexto de “proteger” os demais países americanos da

“infiltração comunista” financiada pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS),

e de evitar, assim, a ocorrência de “outras Cubas4”, apoiou, direta ou indiretamente, golpes

militares como os que aconteceram no Brasil em 1964, na Argentina em 1976, e no Chile em

1973.

Nessa perspectiva, os regimes repressivos sul-americanos chegaram ao fim, um após o

outro, quando as condições políticas e econômicas que os sustentavam, tanto interna quanto

externamente, deixaram de existir. Nesse processo, desempenhou papel importante o fim da

Guerra Fria (1990), bem como fatores peculiares, como é exemplo a derrota da Argentina na

chamada “Guerra das Malvinas”5.

De toda forma, as transições políticas em direção a regimes democráticos, tanto no

Brasil, como na Argentina, Chile e Uruguai, completaram-se entre as décadas de 1980 e 1990,

com a passagem do poder para presidentes eleitos pelo voto popular, adoção de novas leis, e

até de novas constituições nacionais, fortemente influenciadas pela temática dos direitos

humanos.

Contudo, restava – e ainda resta – resolver determinadas questões fundamentais, um

“mal estar”, por assim dizer, das novas democracias, inclusive no Brasil, que poderia ser 4 Em 1959, o Movimento 26 de Julho (M-26-7), liderado por Fidel Castro, derrubou o ditador cubano Fulgencio Batista (1952-1959). Posteriormente, em 1960, o caráter socialista da revolução cubana ficou evidente. Os EUA reagiram decretando o bloqueio econômico contra Cuba (1960) e rompendo relações diplomáticas com o país (1961), situação que perdura até os dias de hoje. 5 Conflito armado que contrapôs a Argentina à Inglaterra, em 1982, pela soberania das Ilhas Malvinas (Falklands, em Inglês). O conflito, iniciado pela Argentina, é visto hoje como uma tentativa de garantir a sobrevida do regime militar naquele país. Ocorreu precisamente o contrário: com a derrota, a ditadura caiu no ano seguinte, em 1983.

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Page 114: Justica de transicao vdd memoria e justica

expresso a partir de perguntas muito diretas. Como conhecer e enfrentar o legado das graves

violações dos direitos humanos praticadas nos períodos repressivos? Como fazer justiça às

vítimas de tortura e aos familiares de desaparecidos políticos? Como e quando responsabilizar

os perpetradores de violações dos direitos humanos? E, principalmente, como evitar que as

atrocidades ocorram novamente?

A rigor, o campo da justiça de transição não possui respostas prontas a essas

perguntas. Contudo, por intermédio de determinados mecanismos, pretende oferecer

caminhos para que seja possível responde-las. Um desses caminhos envolve a promoção do

chamado “direito à memória e à verdade”, que visa (re)construir a história recente do país, a

partir de uma série de mecanismos e estratégias.

No Brasil, a justiça de transição encerra determinados desafios, assim como

potencialidades, tendo em vista a notória permanência da tortura como prática sistemática,

bem como de execuções extrajudiciais operadas pelo aparelho repressivo do Estado brasileiro.

É nesse contexto, portanto, que buscaremos discutir e caracterizar o direito à memória e à

verdade como elemento-chave da justiça de transição no Brasil.

2 Justiça de transição como novo campo dos direitos humanos

De acordo com Call (2004, p.101), uma das mais dramáticas transformações da

política global em anos recentes deu-se com o surgimento de um novo campo de estudos na

área dos direitos humanos, denominado de justiça de transição que, ainda segundo o autor,

“tem capturado muita atenção dos estudos sobre direitos humanos”.

Sua relevância pode ser explicada, a princípio, porque um grande número de países

foram, em anos recentes, “sociedades de transição” – inclusive o Brasil, após 1985, com o fim

do regime civil-militar. Por outro lado, ao contrário do que ocorre, atualmente, no Brasil,

muitas dessas sociedades puderam responsabilizar judicialmente os perpetradores de

violações dos direitos humanos.

O conceito de justiça de transição emergiu, internacionalmente, a partir de análises

feitas sobre contextos nacionais de transição política, em sociedades que experimentaram

violações maciças dos direitos humanos na segunda metade do século XX. Como exemplo

desses contextos, podemos citar o caso da Argentina que, em 1983, criou a Comisión

Nacional sobre la Desaparición de Personas (CONADEP) com o objetivo de esclarecer os

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desaparecimentos forçados durante a ditadura militar de 1976-19836, e a experiência da África

do Sul no processo de transição deflagrado com a queda do regime de Apartheid7.

De forma complementar ao que foi dito acima, Van Zyl (2011, p. 48) afirma que,

desde a década de 1990, o desenvolvimento da justiça de transição vem se dando, dentro da

área dos direitos humanos, sob dois aspectos importantes. Em primeiro lugar, porque a justiça

de transição deixou de ser uma “aspiração do imaginário”, passando a representar “a

expressão de obrigações legais vinculantes” a partir do seu progressivo reconhecimento por

parte de tribunais nacionais, bem como de sua positivação na ordem internacional. Em

segundo lugar, porque tem sido destacada a sua participação no processo democrático em

muitos lugares do mundo, em especial na América Latina, na África e na Ásia.

Nesse sentido, cabe apontar que entendemos como a justiça de transição como o: Amplo espectro de processos e mecanismos utilizados pela sociedade para que esta chegue a um determinado acordo sobre violações de direitos humanos ocorridas no passado, de forma a garantir a responsabilização dos culpados, promover a justiça e alcançar a reconciliação. Isso pode incluir tanto mecanismos judiciais como extrajudiciais, com diferentes níveis de participação da comunidade internacional (...) (ONU, 2004, p. 4).

Com base nessa definição, Soares (2010) formulou verbete no Dicionário de Direitos

Humanos da Escola Superior do Ministério Público da União, disponível na Internet8, no qual

define a justiça de transição como o:

(...) conjunto de abordagens, mecanismos (judiciais e não judiciais) e estratégias utilizados para enfrentar o legado de violência em massa do passado, atribuir responsabilidades, exigir a efetividade do direito à memória e à verdade, fortalecer as instituições com valores democráticos e para garantir a não repetição das atrocidades.

Por seu turno, Teitel (2011, p. 135), ao propor uma “genealogia” da justiça de

transição, defende que ela pode ser definida como “a concepção de justiça associada a

períodos de mudança política, caracterizados por respostas no âmbito jurídico que têm por

objetivo enfrentar os crimes cometidos por regimes opressores do passado”. Pouco difere esta

definição da proposta por Van Zyl (2011, p. 47), segundo a qual a justiça de transição é “o

6 A ditadura de 1976 autodenominava-se “Proceso de Reorganización Nacional”, e foi comprovadamente responsável pelo desaparecimento de pelo menos 8.961 pessoas, conforme apontado no relatório final da CONADEP (1984), disponível em http://www.desaparecidos.org/. 7 Em Africâner, “Separação”. Refere-se à política oficial de segregação racial adotada, entre 1948 e 1994, pelo governo de minoria branca da África do Sul. 8 Disponível em http://www.esmpu.gov.br/dicionario/tiki-index.php. Acesso em 02 de setembro de 2012.

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esforço para a construção da paz sustentável após um período de conflito, violência em massa

ou violação sistemática dos direitos humanos”.

A partir dessas definições, pode-se extrair que a justiça de transição não é uma

justiça especializada9, ou temática, com competência exclusiva para tratar de casos que

envolvam violações maciças de direitos humanos. Antes, trata-se de um conjunto de

“mecanismos, abordagens e estratégias” ou de “processos e mecanismos” utilizados em

períodos de mudança política para enfrentar um legado histórico de violações de direitos

humanos. Nessa direção, Mezarobba (2009) afirma que os “mecanismos, abordagens e

estratégias” consistem em iniciativas tais como:

(...) processar criminosos; estabelecer comissões de verdade e outras formas de investigação a respeito do passado; esforços de reconciliação em sociedades fraturadas; desenvolvimento de programas de reparação para aqueles que foram mais afetados pela violência ou abusos; iniciativas de memória e lembrança em torno das vítimas; e a reforma de um amplo espectro de instituições públicas abusivas (como os serviços de segurança, policial ou militar) (p. 37).

Por outro lado, a partir da análise dos bens jurídicos tutelados por esses mecanismos, é

possível identificar certas dimensões específicas da justiça de transição, relacionadas aos

objetivos que essas dimensões pretendem alcançar. Como exemplo, as ações penais que visam

à punição de torturadores estão vinculadas à dimensão da “responsabilização”, no sentido

clássico de identificação e punição de culpados, da mesma forma que se pode falar em uma

dimensão de “justiça restaurativa” no caso das iniciativas voltadas à reconciliação nacional.

Para a presente discussão, interessa-nos, sobretudo, identificar que as “comissões da

verdade” (truth commissions), bem como as iniciativas voltadas à abertura de arquivos de

polícia política, têm vinculação direta com a dimensão do direito à memória e à verdade, no

sentido de garantir, em primeiro lugar, que a verdade sobre as violações sistemáticas dos

direitos humanos venha à tona e, em sequência, que os fatos relacionados a essas violações

não sejam esquecidos e jamais repetidos, o que pressupõe a adoção de uma série de iniciativas

destinadas a garantir a preservação dessa memória.

Contudo, cabe apontar que essas dimensões não são estanques, uma vez que a punição

de culpados por violações de direitos humanos também é forma de promoção do direito à

memória e à verdade, ao passo que a responsabilização de perpetradores de violações de

9 Nesse sentido, a justiça de transição não se assemelha, por exemplo, à Justiça Eleitoral ou à Justiça Militar, que são especializadas em determinados temas.

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direitos humanos também pode ser instrumentalizada pela liberação de informações contidas

em arquivos de polícia política ou, ainda, a partir das revelações de uma comissão da verdade.

Por outro lado, conforme aponta Zallaquett (1989, p.26), a experiência internacional

também vem demonstrando que “tratar de situações de transição política é uma nova área da

prática dos direitos humanos, que apresenta algumas questões éticas, legais e práticas

complexas – questões que ninguém está em posição de responder ainda”. Isto é, que a justiça

de transição suscita desafios substantivos quanto à demonstração do binômio

validade/utilidade.

No Brasil, os primeiros mecanismos de justiça de transição foram criados entre a

segunda metade dos anos de 1990 e o início dos anos 2000, apresentando caráter reparatório e

investigativo. São exemplos desses mecanismos a Comissão de Mortos e Desaparecidos

Políticos, prevista pela Lei nº 9.140, de 04 de dezembro de 1995, e instituída pelo Decreto

sem número de 18 de dezembro de 1995, e a Comissão de Anistia, criada com a aprovação da

Lei 10.559, de 13 de novembro de 2002, que regulamentou o art. 8º do Ato das Disposições

Constitucionais Transitórias (ADCT), garantindo o direito de reparação àqueles que, no

período que vai de 18 de setembro de 1946 até 05 de outubro de 1988, sofreram violações de

direitos por motivação política.

Contudo, foi somente entre os anos de 2009 e 2012 que mecanismos especificamente

dedicados à promoção do direito à memória e à verdade foram estabelecidos pelo Estado

brasileiro, com a criação do Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil – Memórias

Reveladas (Portaria nº. 204, de 13 de maio de 2009, da Ministra Chefe da Casa Civil), e

aprovação das leis nº. 12.527, de 18 de novembro de 2011 (Lei de Acesso a Informações), e

nº 12.528, também de 18 de novembro de 2011, e que criou a Comissão Nacional da Verdade.

Portanto, se o debate público sobre a justiça de transição em geral é recente, a

discussão sobre o direito à memória e à verdade é ainda mais jovem e, como tal, suscetível a

certo grau de imprecisão. Por outro lado, tendo em vista que, no Brasil, a responsabilização

de perpetradores de violações dos direitos humanos durante o período do regime civil-militar

(1964-1985) ainda é uma impossibilidade, como será mais bem discutido adiante, as ações

voltadas especificamente para a recuperação de fatos históricos relevantes, e para a

(re)construção da memória sobre a história recente do país, têm merecido destaque nos

últimos anos.

Por essa razão, ao longo deste artigo, buscaremos investigar o conceito de direito à

memória e à verdade no âmbito do debate sobre a justiça de transição. Isso porque, conforme

aponta Hohfeld (1923, apud ALEXY, 1997, p. 41), “para qualquer análise racional de um

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dado problema, seja ele jurídico ou não, palavras camaleônicas são um perigo tanto para o

pensamento lúcido quanto para a clareza de expressão”.

3 Memória e verdade: caminhos propostos

Sustentar a possível existência, no Brasil, de um direito à memória e à verdade

requer esclarecer, tão precisamente quanto for possível, o que se tem por “memória” e por

“verdade”, no sentido de se buscar tentar revelar o conteúdo material desse direito.

Da mesma forma, faz-se necessário demonstrar a possibilidade jurídica de se

reconhecer o direito à memória e à verdade como um direito fundamental, tendo em vista a

sistemática da Constituição Federal de 1988 em relação aos direitos fundamentais, bem como

o atual estágio desse reconhecimento em nosso país.

Antes de abordarmos essas questões, contudo, cabe referir que estudos10 promovidos

pela Organização das Nações Unidas (ONU) já vêm reconhecendo, desde a segunda metade

da década de 1990, a existência do direito à memória e à verdade, ainda que sob a

denominação de right to truth (direito à verdade) ou, ainda, right to seek the truth (direito de

buscar a verdade). Observe-se que embora o componente “memória” não apareça expresso, é

possível abstraí-lo de uma série de princípios que a própria ONU estabeleceu como sendo

necessários para que seja alcançado o direito à verdade.

Tais princípios podem ser sumarizados como o inalienável direito que toda a

sociedade tem de saber a verdade; o dever de lembrar visando a não repetição; o direito das

vítimas de saber a verdade; e, principalmente, a tomada de ações efetivas visando promover a

verdade, o que compreende o estabelecimento de comissões da verdade e, também, a proteção

dos registros sobre as violações dos direitos humanos.

Diante do exposto, cabe apontar que ao discutirmos o direito à memória e à verdade

no âmbito da justiça de transição, estamos partindo da acepção comum do termo “memória”.

Isto é, entendemos a memória como “a capacidade de reter ideias, impressões e

conhecimentos adquiridos” ou, ainda, no sentido mais geral de “lembrança”11. Contudo, como

o termo está sendo aqui debatido na perspectiva de iniciativas de recuperação da história

recente do Brasil, não estamos nos referindo a uma memória particular ou pessoal, mas sim à

memória como um “bem público, que está na base do processo de construção da identidade

política, cultural e social de um povo” (STAMPA, 2011).

10 Um dos primeiros estudos a apontar nessa direção foi o Questions of Impunity of Perpetrators of Human Rights Violations, publicado pela ONU em 1997. 11 Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Curitiba: Objetivo, 2007.

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Conforme apontam Abrão e Torelly (2010), a memória é um meio de significação

social e temporal de grupos e instituições, o que implica em reconhecer sua importância para

a geração do senso comum, ou seja, para a compreensão coletiva da sociedade sobre

determinados eventos do passado. Dessa forma, a memória joga papel fundamental no

processo de auto-reconhecimento de um povo, ao embasar o processo de construção de sua

identidade12.

Dessa forma, a adoção de políticas de memória específicas para enfrentar o legado

histórico de violações sistemáticas dos direitos humanos, como aquelas que ocorreram no

período do regime civil-militar brasileiro, tem por objetivo não somente garantir a

compreensão do que ocorreu, mas, também, reforçar o entendimento coletivo de que são

necessárias reformas para combater as violações em tempo presente.

Portanto, resta claro que a memória é objeto de construções e reconstruções, uma vez

que é suscetível a seletividades, sejam elas acidentais ou estimuladas. Sobre este último

aspecto, Carbonari (2010) defende que, no Brasil do século XXI, setores financeiros e

políticos da sociedade brasileira sempre atuaram no sentido de preservar a imagem de

“próceres do autoritarismo”, o que compreende esconder e até mesmo apagar a história das

violações de direitos.

Defender que a memória é um bem público não significa, portanto, deixar de

reconhecer que ela mesma é resultado dos contextos e dos agentes13 que a constroem

(CARBONARI, 2010). Assim, a memória pode ser apropriada e transformada para cumprir

diferentes objetivos e agendas.

Por outro lado, cabe apontar que a memória pode ser construída e reconstruída a

partir de fontes diversas, como, por exemplo, os documentos textuais recolhidos aos arquivos

brasileiros, os livros de uma determinada biblioteca pública, os registros audiovisuais de um

colecionador particular ou, ainda, os relatos orais de pessoas que viveram ou testemunharam

acontecimentos, conjunturas, modos de vida etc. Nesse sentido, a todos cabe o “dever cívico”

de promover a discussão crítica do passado14.

12 De acordo com Abrão e Torelly (2010, p. 107): (...) lembrar ou esquecer, individual e/ou coletivamente, implica em alterar os elementos que dão significado e sentido ao futuro, uma vez que o que lembramos do passado é fundamental para que possamos refletir sobre quem somos no mundo e onde nos encontramos no tempo. Mais ainda: nossas lembranças são determinantes para a orientação de nosso agir (...). 13 Sobre este aspecto, cabe lembrar a afirmação de Marx & Engels (1998, p. 41) de que as “As idéias da classe dominante são, em cada época, as idéias dominantes, isto é, a classe que tem a força material na sociedade é, ao mesmo tempo, a sua força intelectual dominante”. Extrapolando a afirmação de Marx & Engels, é possível afirmar que a memória de uma época também é a memória da classe dominante, daí a importância de disputá-la. 14 Coimbra (2010, p. 94), referindo-se expressamente aos arquivos, afirma que (...) nas sociedades democráticas, e a propósito da história recente, a todos cabe o dever cívico de promover a discussão crítica do passado, de forma serena e sem revanchismos, buscando a verdade e a justiça e, sobretudo, exigindo responsabilidade aos

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Esse dever cívico, como lhe chama Coimbra (2010), ganha urgência no que se refere

à memória de períodos nos quais ocorreram violações maciças dos direitos humanos, seja

porque se trata de uma memória disputada entre vítimas e perpetradores de violações dos

direitos humanos, seja porque se trata de uma memória em risco, pelo interesse que

determinados grupos têm no aniquilamento dos registros históricos da época15.

Por sua vez, no que se refere ao termo “verdade”, as dificuldades de conceituação

aumentam sobremaneira, por três razões principais.

Em primeiro lugar, por envolver a própria discussão sobre a existência ou não do

direito à memória e à verdade, uma vez que, rigorosamente, não se pode admitir sua

existência se adotamos, sem concessões, o ponto de vista de que a verdade é “inalcançável”,

pois sua forma arquetípica16 jamais se realizará ou, ainda, de que a verdade “é completamente

relativa” e que, portanto, não vale a pena ser discutida. Em segundo lugar, pela dificuldade

técnica de apreender o conteúdo de um objeto imaterial de contornos tão amplos. E, por fim,

pela constatação de que a multiplicidade de teorias acerca do conceito revela – além de

dificuldades naturais de definição – que o conceito de verdade, assim como o de memória, é

tensionado por conflitos e interesses.

Reconhecidas essas dificuldades, afinal, o que é a verdade?

Conforme registra a literatura ocidental, essa pergunta vem sendo feita, pelo menos,

desde a antiguidade clássica por filósofos como Sócrates (c. 469 a.C. – c. 399 a.C) e Platão (c.

427 a.C. – c.348 a.C). Por outro lado, mesmo uma simples revisão das principais teorias

filosóficas formuladas, digamos, nos últimos duzentos anos, representaria desafio invulgar17.

poderes públicos pela preservação do legado documental histórico, criando e apoiando os “repositórios das memórias nacionais”. 15 Um exemplo dramático do risco que correm os registros da época deu-se em 2005, quando foi descoberto, nas cercanias da Base Aérea de Salvador, um lote de documentos oficiais queimados. Os documentos datavam do período do regime civil-militar, e se constituíam de prontuários, fichas e relatórios. Foi aberto o competente Inquérito Policial Militar (IPM), mas este concluiu que os documentos “não apresentam sinais de fogo”. Laudo posterior, elaborado por perito comissionado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH-PR), atestou que os documentos foram queimados na própria Base Área de Salvador. Desse episódio, restaram alguns poucos documentos, parcialmente destruídos, que se encontram, atualmente, sob a guarda do Grupo Tortura Nunca Mais da Bahia (GTMN-BA). 16 Segundo a concepção de Platão (c. 427 a.C – 348 a.C.), refere-se a ideias que funcionariam como “modelos ideais” de todas as coisas existentes. Por exemplo, o arquétipo da verdade seria o modelo para todas as coisas verdadeiras existentes. 17 Apenas a título de referência, ao lado das contemporâneas “teorias correspondentistas”, que falam da verdade como resultado da correspondência entre realidade e o que se passa na mente das pessoas (“portadores-de-valor-verdade”), podemos falar também em “teoristas coerentistas”, para as quais a verdade é uma relação coerente estabelecida entre os próprios “portadores-de-valor-verdade”; “teorias pragmáticas” que sustentam que algo é verdadeiro quando a crença na sua verdade for útil; e “teorias deflacionárias”, que apontam que a verdade não é uma propriedade substancial e que, portanto, não está à espera de ser revelada.

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Por outro lado, como estamos aqui tratando não de uma verdade pessoal ou, ainda, de

uma verdade sobre fatos quaisquer, mas sim sobre a verdade histórica e sobre fatos históricos

ocorridos em um período de tempo determinado (1964-1985), cabe apontar que nossa posição

é diversa da chamada "epistemologia prática" que vem sendo adotada, majoritariamente, pela

historiografia contemporânea (REIS, 2000). Segundo a referida corrente, não há que se

prescrever fórmulas para a verdade, mas sim praticar determinados critérios, sob o crivo da

própria comunidade de historiadores, que atuaria como filtro “competente e autocontrolável

para decidir entre o relevante” (Ibidem). Tal posição, em que pese sua respeitabilidade e

reconhecimento na historiografia nacional, representa, a nosso ver, um atalho por intermédio

do qual se busca contornar o debate necessário sobre a memória e a verdade histórica.

Assim, feitas as ressalvas de que a formulação de um conceito de verdade é tarefa

dificílima, e de que adotamos um dos vários caminhos possíveis, optamos, nesta abordagem,

por um conceito de verdade que pode ser identificado com a tradição aristotélica, cujos

méritos buscaremos demonstrar a seguir.

Aristóteles (c. 384 a.C. - c.322 a.C) enxergava a verdade como uma correspondência

entre a) o que a coisa é; b) como a coisa é na mente humana, isto é, como a correspondência

que se dá entre portador-de-valor-de-verdade e a realidade (PEREIRA, 2011). Por essa razão,

a teoria aristotélica sobre a verdade foi denominada de “correspondentista”, por indicar que a

verdade não depende somente do objeto a ser conhecido, mas da correspondência entre o que

ocorre na mente do portador-de-valor-de-verdade e o que ocorre na realidade.

Mais recentemente, a teoria correspondentista foi retomada criticamente pelo filósofo

e matemático britânico Bertrand Russell (1872-1970), que buscou, de forma original,

encontrar “um lugar para a falsidade” no contexto da filosofia aristotélica. Sustenta Russell,

em sua obra Problemas da Filosofia, publicada originalmente em 191218 que a teoria da

verdade deve, necessariamente, admitir o seu contrário, isto é, a falsidade19.

Nesse sentido, o filósofo britânico aponta para a existência de um dualismo em

relação ao conhecimento de verdades, uma vez que devemos admitir que, em nossa

experiência cotidiana, defrontamo-nos tanto com “crenças verdadeiras” como com “crenças

falsas”. Da mesma forma, é induvidoso que, às vezes, as crenças falsas podem ser sustentadas

de modo tão firme, e com tanto brilho, que “podemos crer no falso como se verdadeiro fosse”. 18 Utilizamos a tradução de Jaimir Conte, de 2005, disponível no portal da Universidade Federal de Santa Catarina no endereço <http://www.cfh.ufsc.br/~conte/russell.html>. Acesso em 11 de dezembro de 2012. 19 “A teoria da verdade deve ser tal que admita o seu contrário, a falsidade. Alguns filósofos, e não poucos, deixaram de satisfazer adequadamente a esta primeira condição: construíram teorias segundo as quais todo o nosso pensar deveria ser verídico, o que os pôs nas maiores dificuldades para arranjar um lugar para a falsidade (....) (Russell, 2010. Capítulo 12).

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Portanto, em determinados casos não será sem dificuldades que se distinguirá uma crença

falsa de uma crença verdadeira.

Como é possível observar, Russell retomou a ideia aristotélica de correspondência

entre “portador-de-valor-de-verdade” e a realidade, mas não se limitou a reproduzir o

pensamento aristotélico, avançando na formulação de um critério que pudesse explicar como

se dá essa correspondência. Diz o filósofo que a mente não “cria a verdade ou a falsidade”, e

sim determinadas crenças. Dessa forma, não é a mente humana que pode tornar determinadas

crenças verdadeiras ou falsas, “exceto no caso especial onde elas dizem respeito às coisas

futuras que estão dentro do poder da pessoa acreditar, como tomar o trem”. De forma geral,

contudo, o que torna uma crença verdadeira é a ocorrência de um fato, e este não envolve, de

modo algum (exceto em casos excepcionais), a mente da pessoa que tem a crença.

Assim, a correspondência com o fato (realidade) assegura a verdade, e sua ausência

acarreta a falsidade. “Deste modo explicamos simultaneamente dois fatos: (a) que as crenças

dependem da mente para sua existência, (b) que não dependem da mente para sua verdade”

(Russell, 2010, capítulo 12). A mente, portanto, é hábil em produzir crenças, mas a verdade

ou falsidade dessas crenças não depende da mente, mas sim do fato.

Constata-se, dessa maneira, que a dificuldade não reside tanto em definir o termo

“verdade”, e sim em diferenciar, na prática, o que é verdadeiro e o que é falso, pelo desafio

que representa o conhecimento do fato. Essa questão é de difícil superação, uma vez que a

palavra fato corresponde, também, ao que é verdadeiro.

Por outro lado, devemos evitar, de início, supor identificar uma relação necessária

entre conhecimento do fato e verdade, uma vez que mesmo uma crença verdadeira não revela,

necessariamente, que possuímos conhecimento sobre o assunto, uma vez que uma crença

verdadeira não é um conhecimento quando é deduzida de uma crença falsa20. Da mesma

forma, uma crença verdadeira não pode ser denominada de conhecimento se é deduzida por

um método de raciocínio falacioso, como em falsos silogismos, ainda que baseados em

premissas corretas e que apresentem conclusões verdadeiras21.

Contudo, o pensamento de Russell conduz a afirmação de que quando acreditamos

firmemente na nossa crença, e a mesma não se encontra eivada de falácias ou contradições, ou

não deriva ela própria de uma crença falsa, podemos sim denominá-la de “conhecimento”. 20 Exemplifica Russell: (....) se um jornal, por uma antecipação inteligente, anuncia o resultado de uma batalha antes de receber qualquer telegrama informando o resultado, pode anunciar por acaso o resultado que em seguida se confirmará, e produzir uma crença em alguns de seus leitores menos experientes (Capítulo 13). 21 Se sei que todos os gregos são homens e que Sócrates era homem, e infiro que Sócrates era grego, não se pode dizer que sei que Sócrates era grego, porque, embora as premissas e a conclusão sejam verdadeiras, a conclusão não se segue das premissas (Capítulo 13).

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Quando, contudo, acreditamos firmemente em algo que não se revela verdadeiro, por não

corresponder ao fato, estaremos em “erro”. Na maioria dos casos, porém, a demonstração

cabal do “conhecimento” ou do “erro” não será possível e, portanto, teremos apenas uma

“opinião provável”.

Diante do exposto, é forçoso reconhecer que a filosofia de Russell não nos conduz a

um método que permita processar, na mais absoluta segurança, a separação entre o que é

verdadeiro e o que é falso – tal método, aliás, não existe. Em lugar dele, devemos trabalhar

com operações lógicas visando identificar contradições, falácias, falsas intuições ou

inferências, de forma a alcançarmos uma opinião provável sobre a verdade.

Esse proceder, como é natural, não nos livra da possibilidade de erro, embora, em

alguns casos, diminua o risco a tal ponto que ele se torne praticamente desprezível. Nesse

sentido, aponta Russell que “não é possível fazer mais que isso num mundo onde devem

ocorrer erros; e nenhum defensor prudente da filosofia pretenderá ter feito mais que isso”

(Capítulo 15).

Outro aspecto de interesse para a compreensão do conceito de verdade refere-se à

constatação de que a verdade, assim como a memória, também é um campo tensionado por

conflitos e interesses22.

Ou seja, se a memória, conforme já apontado, desempenha um papel basilar na

construção da identidade social, cultural e política - e, portanto, no próprio auto-

reconhecimento de um povo, nação, grupo ou classe enquanto tais - é a verdade, ou melhor, o

“conjunto de regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao

verdadeiro efeitos específicos de poder”, que qualifica e garante o reconhecimento da

memória.

Diante do exposto, é possível sumarizar o que entendemos como o conteúdo material

do direito à memória e à verdade.

A memória é um bem público que está na base do processo de construção da

identidade de um povo, é a capacidade que esse mesmo povo tem de reter ideias, impressões e

conhecimentos. Leva ao reconhecimento do que esse próprio povo é, e de como chegou a sê-

lo. A memória é composta de fatos selecionados de forma deliberada ou acidental.

22 Sobre esse aspecto, Foucault (2003, p. 13) revela que Há um combate “pela verdade” ou, ao menos, “em torno da verdade” – entendendo-se, mais uma vez, que por verdade não quero dizer o conjunto das coisas verdadeiras a descobrir ou a fazer aceitar”, mas o “conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder”; entendendo-se também que não se trata de um combate “em favor” da verdade, mas em torno do estatuto da verdade e do papel econômico-político que ela desempenha.

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Page 124: Justica de transicao vdd memoria e justica

Por seu turno, a verdade é aqui compreendida como o produto da relação que a

mente humana estabelece com a realidade a partir de um conjunto de regras (lógicas) por

intermédio das quais se busca o conhecimento. A aplicação desse conjunto de regras nos

conduzirá, na maior parte dos casos, a uma opinião provável sobre o fato, uma vez que não

existe uma teoria ideal que possa nos conduzir, com absoluta certeza, à verdade.

Portanto, é por meio da relação estabelecida entre memória e verdade que esta se

qualifica como verdadeira e pode ser reconhecida como tal. Ou seja, ao falarmos de um

“direito à memória e à verdade”, tratamos aqui de um direito cujo todo (“à memória e à

verdade”) é mais do que a soma de suas partes individualmente consideradas (“à memória” e

“à verdade”).

Por fim, cabe apontar que, curiosamente, não obstante o interesse óbvio que a

discussão sobre o conceito de “verdade” tem para o debate sobre a justiça de transição, a

literatura especializada é tímida na abordagem do problema23– talvez pelas dificuldades

inerentes a essa conceituação.

4 Do reconhecimento do direito à memória e à verdade no Brasil

Ao tratarmos da possibilidade jurídica de se reconhecer, no Brasil, a existência de um

direito à memória e à verdade, cabe apontar, inicialmente, que o conceito de verdade tem

especial interesse para o campo jurídico, uma vez que os tribunais operam a partir da lógica

de que o Poder Judiciário resolve os conflitos que lhes são postos por intermédio de operações

lógico-jurídicas e ritos processuais que têm por fim último descobrir a verdade.

No mínimo, o senso comum espera que o Poder Judiciário se utilize da verdade para

compor interesses em disputa24. Nesse sentido, De Plácido e Silva (2008, p. 1478) defende

que, do ponto de vista jurídico, algo é “verídico” quando é “exato ou conforme a realidade”.

Assim, a veracidade de um documento, por exemplo, é “a sua própria autenticidade” ou

exprime “a sua própria qualidade de verdadeiro, fiel ou exato” (Ibidem).

Observe-se, contudo, que no exemplo acima referido, é possível que o documento em

questão seja, ao mesmo tempo, formalmente verdadeiro (autêntico quanto à sua autoria) e

materialmente falso (inverídico quanto ao seu conteúdo). Essa distinção será retomada 23 Nenhum dos textos especializados sobre o tema justiça de transição citados neste trabalho aborda diretamente o problema de conceituar a verdade. Foi possível, contudo, ter acesso à definição proposta por Javier Ciurlizza, durante sua participação, em 2009, no Curso Essencial de Justiça de Transição. Para o especialista peruano, “a verdade é um relato intersubjetivo, cientificamente articulado e que denota um certo consenso social”. Nesse sentido, trata-se de uma definição “coerentista” da verdade. 24 O próprio juiz comunica a resolução da questão por intermédio do “veredito”, palavra que vem do Latim “vero” (verdade) e “dictus” (que foi dito). Assim, o veredito é, etimologicamente, aquilo que “foi dito com verdade”.

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adiante, ao tratarmos da nova Lei de Acesso a Informações e da Comissão Nacional da

Verdade.

Por outro lado, é importante reconhecer que, na Constituição Federal de 1988, não há

previsão expressa do direito à memória e à verdade. De fato, no Título II (“Dos Direitos e

Garantias Fundamentais”) não são referidas as expressões “memória” ou “verdade”. Apenas

no seu art. 216, a Constituição faz referência “à memória dos diferentes grupos formadores da

sociedade brasileira”, ao passo que o termo verdade sequer aparece no texto constitucional.

Essa ausência não deve causar surpresa uma vez que, conforme apontado

anteriormente, o debate sobre a justiça de transição é recente, e o próprio conceito de direito à

memória e à verdade somente foi consolidado a partir de estudos produzidos na segunda

metade da década de 1990, isto é, após a promulgação, em 05 de outubro de 1988, da atual

Constituição Federal brasileira.

Nesse sentido, ao discutirmos o possível reconhecimento de um direito fundamental

à memória e à verdade, estamos falando de um direito atípico, isto é, de um direito não escrito

na Constituição Federal de 1988, mas que pode ser abstraído do regime democrático e dos

princípios adotados na própria Constituição, de acordo com o § 2º do seu art. 5º25.

O citado dispositivo constitucional estabeleceu a denominada “cláusula de abertura

material dos direitos fundamentais”, o que significa dizer que não somente aqueles direitos

típicos constantes no Título II são direitos fundamentais, mas também os “direitos

fundamentais atípicos”, não previstos pelo legislador constituinte de forma expressa, mas que

decorrem do próprio regime e dos princípios estabelecidos na Constituição Federal de 198826.

Da mesma forma, a Constituição Federal de 1988 estabelece uma série de princípios

e garantias inteiramente compatíveis e, por vezes, complementares ao conceito de direito à

memória e à verdade. Como exemplo, podemos citar: a proibição da tortura e do tratamento

desumano ou degradante (art. 5º, III); a inviolabilidade da liberdade de consciência (art. 5º,

VI); o acesso à informação (art. 5º, XIV).

25 Diz o § 2º do art. 5º da CF/88: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Por outro lado, o § 3º do mesmo dispositivo prevê, também, que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, nos quais o Brasil seja parte, equiparam-se ao patamar de normas constitucionais. 26 Conforme lição de José Afonso da Silva (1997, p. 197), que se referiu expressamente à classificação dos direitos individuais: (1) direitos individuais expressos, aqueles explicitamente enunciados nos incisos do art. 5º; (2) direitos individuais implícitos, aqueles que são subentendidos nas regras de garantias, como o direito à identidade pessoal, certos desdobramentos do direito à vida, o direito a atuação geral (art. 5º, II); (3) direitos individuais decorrentes do regime e de tratados internacionais subscritos pelo Brasil, aqueles que não são nem explícita nem implicitamente enumerados, mas provêm ou podem vir a provir do regime adotado, como o direito de resistência, entre outros de difícil caracterização a priori.

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Page 126: Justica de transicao vdd memoria e justica

Diante do exposto, é possível configurar o direito à memória e à verdade nos termos

propostos por Silva Filho (2009, p. 78-79), que entende tratar-se de um direito transindividual

que alcança “os mais diversos grupos da sociedade civil”. Por outro lado, trata-se de um

direito que representa “as mais diversas formas de reivindicação e concretização, não estando

necessariamente preso à legislação estatal”, tendo em vista que “sua formulação e

reivindicação continuam a existir mesmo que a legislação imponha políticas de

esquecimento” (Idem, p. 79).

Nesse sentido, se há clara compatibilidade entre o direito à memória e à verdade com

os princípios e garantias expressos na constituição democrática de 1988, da mesma forma a

questão do seu reconhecimento e efetivação permanece em aberto. Isso ocorre,

principalmente, em virtude do que Silva Filho denominou de “políticas de esquecimento”

(Ibidem), conceito que abrange não somente ações que visam apagar ou reescrever a história

do regime civil-militar27, como também a falta de políticas de memória para o período

(dimensão negativa).

Como esse exemplo de ação que teria por objetivo apagar a história das violações de

direitos humanos, temos, no Brasil, que a questão da responsabilização dos agentes públicos

responsáveis por “graves violações”28 dos direitos humanos durante o período de 1964-1985

permanece, ainda, uma impossibilidade. Sobretudo após o Supremo Tribunal Federal (STF),

nos autos da ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº

15329, proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), ter decidido que a vigência da

Lei nº. 6.683, de 28 de agosto de 1979, denominada de “Lei de Anistia”, impede qualquer

persecução judicial em relação a esses agentes do Estado.

A polêmica que se seguiu a essa decisão, contudo, acabou por ofuscar outro aspecto

do julgamento que merece ser destacado: pela primeira vez, o Supremo Tribunal Federal

(STF) reconheceu30 a existência do direito fundamental à memória e à verdade, denominado

27 Como exemplo desse tipo de ação destinada a apagar a memória do período ou, ainda, de reescrevê-la ao ponto de ficar irreconhecível, cite-se que, em 17 de fevereiro de 2009, o jornal Folha de S. Paulo publicou editorial no qual se referiu à ditadura militar brasileira como uma "ditabranda”, comparando-a positivamente em relação ao governo de Hugo Chávez, presidente eleito da Venezuela. 28 O conceito de “graves violações dos direitos humanos” é aberto, contudo, o art. 3º, I, da Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011, cita especificamente a tortura, o assassinato, o desaparecimentos forçado e a ocultação de cadáveres. 29 A ADPF nº 153 Distrito Federal (2010) buscava a declaração de não-recebimento, pela Constituição do Brasil de 1988, do disposto no § 1º do artigo 1º da Lei n. 6.683, de 19 de dezembro de 1979: “Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”. 30 O acórdão está disponível na base de dados de jurisprudência do STF, no endereço: www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/visualizarEmenta.asp?s1=000168467&base=baseAcordaos. No item 10, dispõe que (...) Acesso a documentos históricos como forma de exercício do direito fundamental à verdade (...)

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pelo tribunal, simplesmente, de “direito fundamental à verdade”, a exemplo da conceituação

proposta pela ONU.

Interessante observar que tal reconhecimento foi feito, especificamente, no que se

refere ao acesso de documentos históricos do período do regime civil-militar. Em seu voto, o

relator do caso, ministro Eros Grau (2010, p. 20), acatou parecer da Procuradoria Geral da

República (PGR), que se pronunciou sobre a necessidade de se concretizar o “direito

fundamental à verdade histórica”31. No mesmo sentido, o ministro concluiu o seu voto

reconhecendo não somente a dimensão da verdade, mas também à da memória, ao afirmar

que “é necessário não esquecermos, para que nunca mais as coisas voltem a ser como foram

no passado” (Ibidem, p. 73).

Da mesma forma, juízos de 1ª instância brasileiros já vêm reconhecendo, e

fundamentando decisões, com base no direito à memória e à verdade, principalmente no

âmbito de ações que visam à retificação de registros oficiais falsificados pelo regime civil-

militar brasileiro32. Essas ações vêm sendo propostas pelo Ministério Público Federal e por

familiares de desaparecidos.

Contudo, cabe lembrar que o Estado brasileiro, apesar de ter reconhecido o “direito

fundamental à verdade”, especialmente no que se refere ao acesso de documentos históricos,

acabou por ser condenado, em novembro de 2010, na Corte Interamericana de Direitos

Humanos (Corte IDH), nos autos do caso “Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”)

vs. Brasil”.

A condenação deu-se em virtude do entendimento do Estado brasileiro, conforme

exarado na ADPF nº 153, sobre a impossibilidade de responsabilização dos perpetradores de

violações maciças dos direitos humanos. Ao mesmo tempo, a Corte estabeleceu uma

vinculação clara entre o direito à memória e à verdade e a dimensão da justiça

(responsabilização)33. E mais. Quase como se admoestasse o Supremo Tribunal Federal pelo

10. Impõe-se o desembaraço dos mecanismos que ainda dificultam o conhecimento do quanto ocorreu no Brasil durante as décadas sombrias da ditadura (ADPF 153, Relator(a): Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 29/04/2010, DJe-145 DIVULG 05-08-2010 PUBLIC 06-08-2010 EMENT VOL-02409-01 PP-00001 RTJ VOL-00216- PP-00011). 31 Conforme consta na ementa do julgamento: “É evidente que reconhecer a legitimidade da Lei da Anistia não significa apagar o passado. Nesse sentido, o estado democrático de direito, para além da discussão acerca da punibilidade, precisa posicionar-se sobre a afirmação e concretização do direito fundamental à verdade histórica”. 32 Exemplo desse fenômeno ocorreu em São Paulo, em 16/04/2012. A 2ª Vara de Registros Públicos da capital acolheu pedido formulado por M.E.C.D. para retificar certidão de óbito de seu marido, J.B.F.D. No documento, passou a constar que o falecimento ocorreu nas dependências do DOI/Codi do II Exército, e que a morte foi decorrente de torturas físicas. Fonte: TJ/SP. 33 “As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem

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resultado do julgamento da ADPF nº 153, o juiz Roberto de Figueiredo Caldas, da Corte IDH,

conclui o seu voto afirmando ser

(...) preciso ultrapassar o positivismo exacerbado, pois só assim se entrará em um novo período de respeito aos direitos da pessoa, contribuindo para acabar com o círculo de impunidade no Brasil. É preciso mostrar que a Justiça age de forma igualitária na punição de quem quer que pratique graves crimes contra a humanidade, de modo que a imperatividade do Direito e da Justiça sirvam sempre para mostrar que práticas tão cruéis e desumanas jamais podem se repetir, jamais serão esquecidas e a qualquer tempo serão punidas (OEA, 2010b, p.9).

Por outro lado, se é bem verdade que não há previsão expressa do direito à memória

e à verdade no plano constitucional brasileiro, coisa diferente se dá com a legislação

infraconstitucional. Desde a promulgação do Decreto nº 7.037, de 21 de dezembro de 2009,

que estabeleceu o 3º Plano Nacional dos Direitos Humanos (PNDH-3), o direito à memória e

à verdade encontra-se formalmente reconhecido pelo Estado brasileiro34. De fato, o PNDH-3

prevê, de forma compreensível, um conjunto de medidas programáticas em favor da

efetivação do direito à memória e à verdade.

Entre essas medidas, incluem-se a criação de determinados mecanismos de justiça de

transição, como a Comissão Nacional da Verdade (CNV), bem como ações visando à

proteção dos registros do período do regime civil-militar. Dessa forma, é possível afirmar que

a dimensão do direito à memória e à verdade vem se destacando, em anos recentes, no âmbito

da justiça de transição brasileira.

5 Considerações finais

Em breve síntese, os elementos apresentados neste artigo permitem afirmar que o

debate sobre o direito à memória e à verdade é de fundamental importância para a justiça de

transição no Brasil, cujo desenvolvimento vem sendo impulsionado por pressões exercidas

por familiares de vítimas do regime ditatorial estabelecido em 1964, articuladas a movimentos

organizados da sociedade civil e, até mesmo, à atuação de organismos multilaterais.

seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil” (OEA, 2010a, p. 114). 34 Conforme consta no “eixo orientador VI” do PNDH 3: “Diretriz 23: Reconhecimento da memória e da verdade como Direito Humano da cidade e dever do Estado. Objetivo Estratégico I: promover a apuração e o esclarecimento público das violações de Direitos Humanos praticadas no contexto da repressão política ocorrida no Brasil no período fixado pelo artigo 8º do ADCT da Constituição, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade e promover a reconciliação nacional.

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Page 129: Justica de transicao vdd memoria e justica

Ao compreendermos a justiça de transição como o um determinado conjunto de

estratégias, abordagens e mecanismos, tanto judiciais como não judiciais, utilizados para

enfrentar o legado de violência em massa do passado, identificamos no direito à memória e à

verdade um elemento-chave para a consecução de seus objetivos.

Essa constatação é especialmente importante para a experiência brasileira da justiça

de transição, uma vez que, em nosso país, a questão da responsabilização dos agentes públicos

responsáveis por graves violações dos direitos humanos durante o período de 1964-1985

permanece, ainda, uma impossibilidade. Sobretudo após o Supremo Tribunal Federal (STF),

nos autos da ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº

153/2010, proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), ter decidido que a vigência

da Lei nº. 6.683, de 28 de agosto de 1979, denominada de “Lei de Anistia”, impede qualquer

persecução judicial em relação a esses agentes.

Contudo, para que se possa sustentar a existência, no Brasil, de um direito

fundamental à memória e à verdade, é preciso buscar esclarecer, tão precisamente quanto for

possível, o que se tem por “memória” e por “verdade”, no sentido de se tentar revelar o

conteúdo material desse direito. No debate sobre a verdade histórica, essa perspectiva

pretende servir de contraponto à chamada "epistemologia prática”, segundo a qual não há que

se “prescrever fórmulas para a verdade”, mas sim praticar determinados critérios, sob o crivo

da própria comunidade acadêmica. Tal posicionamento, embora popular, afigura-se, em nossa

perspectiva, como um atalho teórico que visa contornar a necessidade de análise detalhada de

conceitos centrais para o debate sobre a justiça de transição.

Em sentido contrário, compreendemos, compreendemos a memória como um bem

público que está na base do processo de construção da identidade de um povo, isto é, a

memória permite, dentre outras coisas, o auto-reconhecimento desse povo. Por seu turno, a

verdade foi entendida como o produto da relação que a mente humana estabelece com a

realidade a partir de um conjunto de regras cuja aplicação conduz, na maior parte dos casos, a

uma opinião provável sobre o fato, uma vez que não existe uma teoria ideal que possa nos

conduzir, com absoluta certeza, à verdade. É por meio da relação estabelecida entre a

memória e a verdade que esta se qualifica como verdadeira e pode ser reconhecida como tal.

Em ambos os casos, tanto a memória quanto a verdade são campos intensamente tensionados

por conflitos e interesses.

No que se refere à possibilidade jurídica desse reconhecimento, salientou-se a

importância da chamada “cláusula de abertura material dos direitos fundamentais” para o

reconhecimento de direitos fundamentais atípicos, não expressos no texto constitucional, mas

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Page 130: Justica de transicao vdd memoria e justica

decorrentes do regime e dos princípios consignados na Constituição Federal de 1988. Da

mesma forma, foram apresentados elementos que nos permitem afirmar que o Poder

Judiciário brasileiro, notadamente o Supremo Tribunal Federal, já vem reconhecendo a

fundamentalidade do direito à memória e à verdade.

Diante do exposto, ganha importância a discussão sobre o conteúdo do direito à

memória e à verdade, ainda mais quando tomamos em conta a infeliz permanência, no Brasil,

de violações sistemáticas dos direitos humanos praticadas por agentes do Estado, como são

exemplos a utilização generalizada da tortura no sistema carcerário e a ocorrência de

execuções extrajudiciais.

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Page 133: Justica de transicao vdd memoria e justica

 

A HERANÇA DA FALTA DE MEMÓRIA E AS VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS: A CONSTRUÇÃO DO DIREITO À VERDADE NA AMÉRICA

LATINA E NO BRASIL

THE LEGACY OF FORGOTTEN HUMAN RIGHTS VIOLATIONS: THE CONSTRUCTION OF RIGHTS TO THE TRUTH IN LATIN AMERICA AND

BRAZIL  

Daniela de Oliveira Lima Matias1 Mayara de Carvalho Araújo2

     

RESUMO  O presente artigo tem por objetivo analisar a peculiaridade das ditaduras que fizeram parte da história da América Latina nas décadas de 70 e 80 do século XX e o seu legado para a realidade atual, em particular a do Brasil. Passando por um contexto de justiça de transição, portanto, pretende abordar o direito à memória e à informação, em contraposição às leis de anistia aprovadas naquele período, entendendo que talvez essenciais em determinado espaço de tempo e de negociação, quando da consolidação das respectivas democracias, estas tornam-se incompatíveis com a situação atual e os princípios que norteiam os Estados democráticos de direito. Atentos à importância destes fatos para a consolidação da cidadania e a segurança dos seus protegidos, alguns países investigaram e puniram os crimes cometidos durante o período ditatorial, enquanto outros, dentre eles o Brasil, optaram pelo esquecimento sob argumentos duvidosos. Fato que, todavia, tem sofrido algumas pequenas modificações, destacando-se a criação da Comissão da Verdade pelo atual governo, com o objetivo de resgatar a identidade nacional e investigar as violações de direitos humanos ocorridas em épocas de repressão. Este artigo pretende, por fim, analisar o teor da condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e o respectivo cumprimento das obrigações internacionais por ele adquiridas, passando por uma breve reflexão acerca da importância dos sistemas regionais de direitos humanos e a superação do conceito tradicional de soberania como entrave para a efetivação de situações jurídicas há muito já acordadas e aceitas.  Palavras-chave: Justiça de transição. Direito à memória. Corte Interamericana de Direitos Humanos.  

 ABSTRACT  The essay herein intends to analyse the specificities of the dictatorships that took place in Latin America during the decades of 1970-1980 and its legacy to the current situation in these countries, mainly in Brazil. After a period of time which was conventioned to be referred to as transitional justice, the present article intends to study the right to memory, which contrasts with the amnesty laws that were approved in that period, always taking into account that even though they might have been a                                                                                                                1 Mestranda em Ciências Jurídicas, com ênfase em direitos humanos, pela Universidade Federal da Paraíba; bolsista Capes; advogada; e bacharel em direito pela Universidade Federal da Paraíba. 2 Mestranda em Ciências Jurídicas, com ênfase em direitos humanos, pela Universidade Federal da Paraíba; bolsista Capes; advogada; e bacharel em direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.  

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necessary step towards negotiation and democracy, they no longer represent the reality and the principles of Rule of Law, frontly coliding with its core ideas. Having in mind the importance of these facts to the development of citizenship and the safety of the population, some countries decided to investigate and punish the crimes committed during the dictatorial context, while others, amongst Brazil, still prefer to forget the dark times. We must take into consideration, though, the creation of the Thuth Commission by the current brazilian government, which shows an important step in this direction, aiming to rescue the national identity and to investigate human rights violations that occurred during repression. In its last part, the article analyses Brazil’s condemnation by the Interamerican Court of Human Rights and its respective due to implement its sentences as part of the international obligations previously taken by this country, who should not utilise the sovereign argument in order to put aside the effectiveness of a juridical system accorded and accepted a long ago.  Key-words: Transitional Justice. Right to memory. Interamerican Court of Human Rights.  

   

“Como os repressores e os reprimidos podem viver no mesmo país, compartilhar a mesma mesa? Como curar um país que foi traumatizado pelo medo, se aquele mesmo

medo continua a operar em silêncio? E como chegar à verdade quando nos acostumamos a mentir? Podemos manter o passado vivo sem que nos transformemos

em seus prisioneiros? E podemos esquecer o passado sem arriscar sua futura repetição? É legítimo sacrificar a verdade para assegurar a paz? E quais são as

consequências para a comunidade se as vozes daquele passado são reprimidas? É possível que uma comunidade busque a justiça e igualdade se a ameaça de uma

intervenção militar persiste para sempre? E, nessas circunstâncias, como a violência pode ser evitada? Em que sentido somos todos em parte responsáveis pelo sofrimento

de outros, pelos grandes erros que levaram a uma colisão tão terrível? E talvez o maior dilema de todos: de que modo tais questões devem ser confrontadas sem

destruir o consenso nacional, que constitui a base de qualquer estabilidade democrática?”  

DORFMAN, Ariel. La doncella y la muerte. Buenos Aires: Ediciones de la Flor, 1993, p. 96.      

1 INTRODUÇÃO    

Durante a segunda metade do século XX, as ditaduras militares fizeram parte

do contexto dos países da América Latina. O receio de uma possível expansão do

comunismo pelo continente, a exemplo da Revolução Cubana, de 1959, levou ao

financiamento de regimes ditatoriais por parte de lideranças capitalistas locais, unidas

ao empresariado, que temiam uma provável retração de seus negócios.  

Na década de 1980, com a redemocratização desses Estados, leis de anistia

foram aprovadas com o objetivo de auxiliar o período de transição, tendo, contudo,

sido revistas em decorrência da conscientização acerca do direito à verdade, à

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informação e à memória. O Brasil, no entanto, apesar de ter vivido os horrores desta

época e ao contrário de alguns de seus vizinhos, parece optar pelo esquecimento da

sua história, fato que tem reflexos ainda nos dias atuais.  

O país vive as consequências da não apuração dos acontecimentos daquele

momento. O sentimento de impunidade, a corrupção, a relação entre autoritarismo e

subdesenvolvimento, enfim, muito ainda pode ser identificado como decorrente de

uma história ainda não investigada.  

Este artigo, pois, propõe-se a estudar estas relações e a peculiaridade das

ditaduras do cone sul, o processo de redemocratização pelo qual estes Estados

passaram, seu neoconstitucionalismo, além de abordar a questão do papel da

cidadania nesta realidade.

Em sua parte final, traz à discussão a condenação do Brasil pela Corte

Interamericana de Direitos Humanos, decorrente da decretação da

Constitucionalidade da Lei da Anistia (Lei Nº 6.683/79) pela Suprema Corte deste

país, no ano de 2010, fato que impossibilita até então a investigação e punição dos

desaparecimentos forçados e torturas que aconteceram na região do Araguaia, durante

a ditadura militar brasileira (1964-1985).

 

 

2 DO TERCEIRO MUNDO AOS REGIMES BUROCRÁTIO-AUTORITÁRIOS NA ERA DOS EXTREMOS  

Um dos aspectos caracterizadores do breve século XX3 foi o surgimento da

compreensão da existência de países pertencentes ao chamado terceiro mundo4, o que

se tornou possível, principalmente, em razão da explosão demográfica ocorrida nesses

Estados sem que, contudo, esse mesmo crescimento fosse refletido em modificações

no âmbito da economia e das instituições (HOBSBAWN, 2011, p. 339).  

                                                                                                               3 Para fins deste artigo, o termo “breve século XX” será utilizado no sentido a ele atribuído por Eric Hobsbawn, em a “Era dos extremos” (2011).  4 A compreensão da existência do terceiro mundo chegou a inspirar alguns teóricos pertencentes ao dito primeiro mundo acerca da teoria do “terceiro-mundismo”, a saber: a crença na possibilidade de melhorar a realidade a partir da libertação dos primeiros da sua condição de subjugados. Nesse sentido, Hobsbawn (2011, p. 431) enfatiza que “se, como sugeriam os teóricos do ‘sistema mundial’, as raízes dos problemas estavam não na ascensão do capitalismo industrial moderno, mas na conquista do Terceiro Mundo por colonialistas europeus no século XVI, então a inversão desse processo histórico no século XX oferecia aos impotentes revolucionários do Primeiro Mundo uma saída de sua impotência”.  

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Embora a relação de ambos não seja analisada costumeiramente, outro

aspecto relevante desses Estados, durante a era dos extremos, foi a predominância ou,

ao menos, a inclinação a regimes militares de cunho autoritário. Essa é também uma

característica idiossincrática ao terceiro mundo do século XX, em razão de constituir

verdadeira inovação desse período. Isso porque, apesar de termo-nos acostumado à

possibilidade da existência de governos militares, estes são um fenômeno recente e

peculiar, com origem ligada a uma experiência mexicana ocorrida no século passado

(HOBSBAWN, 2011, p. 340 e p. 422).  

É nesse sentido que Hobsbawn (2011, p. 341) ressalta que  

 A política de golpes militares foi portanto produto da nova era de governo incerto ou ilegítimo. A primeira discussão séria do assunto, Coup d’état, de Curzio Malaparte, um jornalista italiano com lembranças de Maquiavel, foi publicada em 1931, na metade dos anos de catástrofe. Na segunda metade do século, quando o equilíbrio de superpotências pareceu estabilizar fronteiras e, em menor medida, regimes, foi cada vez mais comum os homens de armas irem se envolvendo na política, quando mais não fosse porque o globo agora continha até duzentos Estados, a maioria dos quais novos e, portanto, sem qualquer legitimidade tradicional e em sua maior parte onerados por sistemas políticos mais propensos a produzir colapso político do que governo efetivo. Em tais situações, as Forças Armadas eram muitas vezes os únicos corpos capazes de ação política, ou qualquer outra ação, em base estatal ampla. Além disso, como a Guerra Fria entre as superpotências se dava em grande parte através das Forças Armadas dos Estados clientes ou aliados, elas eram subsidiadas e armadas pela superpotência apropriada, como na Somália. Havia mais espaço na política para os homens dos tanques do que jamais antes.  

 

Foi esse contexto que proporcionou a eclosão de regimes burocrático-

autoritários responsáveis pela transição para a economia de cunho industrial em países

onde até então havia predominância do modelo agrário. No que pese o característico

crescimento econômico, no caso brasileiro, o governo militar produziu burocracia,

corrupção, desperdício, desigualdade e descumprimento de direitos humanos

(HOBSBAWN, 2011, p. 344).  

Assim como em terras canarinhas, os governos militares deixaram um legado

de violações de direitos humanos em quase toda a extensão da América Latina. O

Cone Sul vivenciou, no decorrer do século XX, ditaduras brutais que foram

responsáveis por assassinatos, massacres, torturas e desaparecimentos forçados que

restaram, em grande medida, impunes (REÁTEGUI, 2011, p. 37).  

Esses regimes, em sua maioria, baseavam-se na Doutrina da Segurança

Nacional (DSN), teoria oriunda das academias militares estadunidenses do pós

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segunda guerra, que sustentava a vulnerabilidade dos Estados ocidentais frente à

ideologia comunista. Dessa forma, defendia-se o papel das Forças Armadas na

contenção do perigo vermelho ainda que, para tanto, fosse necessário fazer as vezes

do governo e sacrificar a democracia (AVILA; JOO, 2010, p. 25-26).  

Nas palavras de Avila e Joo (2010, p. 26)  

  [...] para os adeptos da DSN, as questões e desafios da cidadania e dos

direito humanos – eram bastante relevantes em todos os países da região – pareciam ser muito menos relevantes do que o suposto perigo vermelho. Eles ignoravam ou não aceitavam que normalmente eram os desequilíbrios estruturais vinculados à exploração, à exclusão social, à miséria e a outros problemas socioeconômicos semelhantes – e não necessariamente a filosofia marxista – os verdadeiros impulsionadores das reivindicações para a mudança, a reforma e, em casos excepcionais, para a revolução.  

 

Isso foi possível, dentre outras razões, pelo fato do discurso dos direitos

humanos ser recente na América Latina, motivo pelo qual não se trata do debate em

torno da perda de algo já garantido, mas apenas da compreensão de algo essencial que

não era reconhecido previamente (RONIGER; SZANAJDER, 2004, p. 43).  

 

2.1 A redemocratização brasileira: Constituição Cidadã e neoconstitucionalismo  

Como visto, o Brasil dos anos 60, 70 e 80 do século passado não construiu

uma história menos triste do que a dos países fronteiriços. Foram cerca de 20 (vinte)

anos de graves violações aos direitos humanos, perseguições políticas, torturas,

concentração de renda e de administração pública sem transparência.  

Passados os tempos cinzentos do regime burocrático-autoritário pós-64, o

Brasil experimentou uma leva de redemocratização e de lutas em prol da efetivação

dos direitos de cidadania no país. O entusiasmo foi tamanho que proporcionou uma

cara cidadã à nova Constituição.

A “Constituição Cidadã”, como ficou conhecida a Lei Fundamental de 1988,

tentou refletir um pouco das expectativas que compõem o miscigenado e heterogêneo

povo5 brasileiro. Foi assim que, como diria José Murilo de Carvalho (2004, p. 7), “a

cidadania virou gente”. Por óbvio, a Constituinte não foi isenta de pressões de grandes

empresas ou de bancadas mais conservadoras, mas a Constituição Federal de 1988,

                                                                                                               5 Sobre a formação do povo brasileiro, recomendamos a leitura de RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia de bolso, 2006.  

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sem dúvidas, representou um grande passo democrático para o país.

Todavia, a democracia política não foi suficiente para resolver alguns

problemas crônicos do Brasil, como a pungente desigualdade social e o alarmante

índice de analfabetismo.

Nesse contexto, percebeu-se que seria necessário atualizar a própria

compreensão de direitos e de cidadania que repetíamos irrefletidamente desde a

declaração de independência (CARVALHO, 2004, p. 1999)   . No entanto, como

atualizar a compreensão da cidadania no país se sequer temos dado a chance do povo

brasileiro conhecer e entender sua história recente?

Sobre esse aspecto, é relevante o papel desempenhado pelo

neoconstitucionalismo, que almeja alinhar progressivamente o direito público sob

bases democráticas. Essa etapa emergente do constitucionalismo se diferencia por

buscar a aproximação dos diversos Estados e sistemas constitucionais, que pode

acontecer por dois caminhos: universalização ou internacionalização, ou seja, através

da difusão do ideal democrático e da projeção, no cenário internacional, de elementos

do direito constitucional6.  

 

2.2 Dos elementos dos direitos de cidadania  

 

A cidadania compõe o núcleo essencial dos direitos humanos, uma vez que

consiste no direito de ter direitos e deveres7 reconhecidos na comunidade jurídica

(SORTO, 2009, p. 43). Não só, sua extensão excede os limites do próprio Estado8.  

                                                                                                               6 Sobre o tema, cf.: ARAÚJO, Mayara de Carvalho; FERREIRA, Siddharta Legale. Transferência supranacional de competências: parâmetros para implementação. Revista Jurídica In Verbis, Natal, n. 25, p.249-262, jan. 2009. Semestral.  7 Embora o objeto específico desse trabalho gire entorno dos direitos de cidadania, faz-se importante destacar o papel ocupado também pelos deveres no conceito de cidadania que, frise-se, não existe sem obrigações (SORTO, 2011, p. 103). Quanto a estes, podem ser representados pelo elemento da fraternidade na célebre trilogia da Revolução Francesa, uma vez que é justamente a fraternidade o contraponto aos direitos de liberdade e igualdade. Assim, os deveres de cidadania são praticados sem a espera de recompensas e não são realizados tendo em conta a nacionalidade, o sexo ou qualquer outro elemento distintivo da pessoa, mas o indivíduo em si e enquanto seres humanos. Sobre o tema, cf. SORTO, Fredys Orlando. La compleja noción de solidaridad como valor y como Derecho: la conducta de Brasil em relación a ciertos Estados menos favorecidos. In: LOSANO, Mario G. (Comp.). Solidaridad y derechos humanos en tiempos de crisis. Madrid: S. E., 2011. p. 97-122.  8 A esse respeito, importante salientar a distinção entre nacionalidade e cidadania. Segundo Fredys Sorto (2009, p. 42), “a nacionalidade refere-se ao vínculo que a pessoa tem com determinada comunidade política organizada soberana e estatalmente num dado território. A cidadania refere-se, por sua parte, ao exercício de determinados direitos e deveres, dentro e fora do espaço estatal”.  

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Em seu “Cidadania, classe social e status”, Marshall (1963, p. 63) defende

uma compreensão dos direitos de cidadania a partir de três elementos que lhe seriam

intrínsecos, a saber: os direitos civis, políticos e sociais.  

Segundo o autor, o elemento civil corresponde aos direitos relacionados à

liberdade individual e ao direito à justiça. Sua compreensão, por isso, excede a noção

tradicional de direitos civis, à medida que não só contempla o direito à justiça, mas

também confere a este um patamar diferenciado.  

O elemento político, por sua vez, equivale ao direito de participar das

decisões políticas, seja na condição de membro de alguma instituição dotada deste

poder (MARSHALL, 1963, p. 63), seja por intermédio do voto e dos demais meios de

participação democrática semidireta, como plebiscitos, referendos e legislação

participativa.  

Por fim, o elemento social representaria o que concebemos hoje por direitos

sociais. Segundo o autor (1963, p. 63-64), “o elemento social se refere a tudo o que

vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de

participar, por completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado, de

acordo com os padrões que prevalecem na sociedade”.  

A evolução dos direitos de cidadania, portanto, envolveu um duplo processo

de fusão geográfica e de separação funcional da estrutura do Estado, que teve início

no século XII, quando a justiça real foi efetivamente estabelecida para defender os

direitos civis dos indivíduos com base no direito consuetudinário inglês

(MARSHALL, 1963, p. 64).  

 

2.3 Da construção da cidadania no Brasil  

 

No Brasil, a história do desenvolvimento dos elementos de cidadania sofreu

uma inversão substancial se comparado ao modelo inglês, tanto no aspecto da

sequência dos fatos, quanto no tocante à ênfase atribuída a cada um desses direitos.  

Aqui, não só foi atribuído primazia aos direitos sociais, como estes também

precederam os demais, o que acarretou uma compreensão do cidadão brasileiro

bastante distinta da do cidadão inglês (CARVALHO, 2004, p. 11-12).  

Conforme observa José Murilo de Carvalho (2004, p. 219-220)  

 

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Aqui, primeiro vieram os direitos sociais, implantados em período de supressão dos direitos políticos e de redução dos direitos civis por um ditador que se tornou popular. Depois vieram os direitos políticos, de maneira também bizarra. A maior expansão do direito do voto deu-se em outro período ditatorial, em que órgãos de representação política foram transformados em peça decorativa do regime. Finalmente, ainda hoje muitos direitos civis, a base da sequência de Marshall, continuam inacessíveis à maioria da população. A pirâmide de direitos foi colocada de cabeça para baixo.  Na sequência inglesa, havia uma lógica que reforçava a convicção democrática. As liberdades civis vieram primeiro, garantidas por um Judiciário cada vez mais independente do Executivo. Com base no exercício das liberdades, expandiram-se os direitos políticos consolidados pelos partidos e pelo Legislativo. Finalmente, pela ação dos partidos e do Congresso, votaram-se os direitos sociais, postos em prática pelo Executivo. A base de tudo eram as liberdades civis.  

 

O próprio José Murilo de Carvalho (2004, p. 220-221) ressalta que não há

um só caminho para a cidadania, mas que a inversão deste no Brasil afeta o tipo de

cidadão e de democracia que se desenvolverão em solo tupiniquim.  

Dentre as importantes consequências apontadas pelo autor (2004, p. 221 ss.)

estão a excessiva valorização do Executivo, centralizada principalmente em âmbito

federal; a permanente defesa de um Executivo forte e a esperada vitória do

presidencialismo no plesbiscito de 1993; a cultura da “estadania9” no país; o culto a

políticos messiânicos populistas; a desvalorização do Legislativo e de seus titulares; a

ótica corporativista dos interesses coletivos10; e a redução da atividade dos

legisladores aos interesses da maioria dos votantes.  

Para aperfeiçoar a cidadania no país, portanto, faz-se necessário consolidar

nossa jovem democracia e incentivar uma maior participação da sociedade civil em

prol de seus direitos, mas também contra o Executivo clientelista messiânico

(CARVALHO, 2004, p. 227).  

Para tanto, todavia, faz-se imprescindível a solidificação das bases da

cidadania no Brasil, o que pode ser alcançado, dentre outras formas, pela                                                                                                                9 A expressão é do próprio José Murilo de Carvalho (2004, p. 221) e contrapõe-se à cidadania. Com ela, o autor pretende referir-se à cultura de orientação da ação política mais voltada para a negociação direta com o Estado em si do que para a representação popular.  10 Sobre o corporativismo no país, importante repetir as palavras de José Murilo de Carvalho (2004, p. 222-223): “O grande êxito de Vargas indica que sua política atingiu um ponto sensível da cultura nacional. A distribuição dos benefícios sociais por cooptação sucessiva de categorias de trabalhadores para dentro do sindicato coorporativo achou terreno fértil em que se enraizar. Os benefícios sociais não eram tratados como direitos de todos, mas como fruto da negociação de cada categoria com o governo. [...] A prática política posterior à redemocratização tem revelado a força das grandes corporações de banqueiros, comerciantes, industriais, das centrais operárias, dos empregados públicos, todos lutando pela preservação de privilégios ou em busca de novos favores. Na área que nos interessa mais de perto, o corporativismo é particularmente forte na luta de juízes e promotores por melhores salários e contra o controle externo, e nas resistências das polícias militares e civis a mudanças em sua organização”.  

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compreensão do passado nacional e de suas repercussões no presente e futuro

brasileiros, o que se torna possível a partir do reforço da memória baseada na verdade

e da opção pela justiça transicional.  

 

3 JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO, MEMÓRIA E VERDADE  

 

A compreensão de história remete a uma imagem do passado distinta da do

presente, ao passo que o conceito de memória transpõe o passado para o presente,

como parte indissociável e reformulada deste (NORA, 1989, apud RONIGER;

SZNAJDER, 2004, p. 224).  

O direito à memória no Cone Sul, todavia, tem cedido, muitas vezes, à

negação ou minimização dos fatos históricos, uma vez que o mito nacionalista e

conservador de “salvador da pátria” foi empregado, sem maiores pudores, por um sem

número de regimes autoritários.  

Todavia, uma concepção da memória baseada na verdade é fundamental para

a solidificação da paz após períodos de conflitos ou de violações de direitos humanos.

É nesse sentido que se insere a necessidade da justiça transicional, que visa revelar a

verdade sobre crimes passados, proporcionar a reparação às vítimas ou de seus

parentes, promover a reconciliação11 e reformar as instituições infratoras de direitos

humanos a fim de legitimá-las democraticamente (REÁTEGUI, 2011, p. 47).  

Com isso, pretende-se, simultaneamente, enfrentar o passado e evitar novas

violações no futuro, garantindo, assim, uma paz sustentável12. A partir da coleta de

depoimentos e análise de dados, as comissões da verdade são capazes de identificar a

imagem das violações de direitos humanos durante dado período. Conhecidas suas

nuances, causas e estrutura, há condições de esclarecer os fatos e atores que

possibilitaram ou legitimaram essas violações e, por isso, de diagnosticar suas razões

e combatê-las no futuro.  

                                                                                                               11 A respeito da reconciliação, importante ressaltar que esta não é sinônimo de perdão puro e simples ou com impunidade, embora seja com ele muitas vezes confundida. Através dela, ao contrapasso, o que se busca é permitir a convivência harmônica no seio da sociedade, diluindo a possibilidade de eventual retorno ao conflito ou ao estado de violência anterior. Isso é particularmente relevante quando o conflito é motivado por questões pessoais como religião, língua ou etnicidade (REÁTEGUI, 2011, p. 54).  12 Nesse contexto, importante ressaltar o papel do Direito Internacional no tocante à atuação da Corte interamericana de Direitos Humanos (CIDH), do Tribunal Europeu de Direitos humanos e do Comitê de Direitos Humanos, que estabelecem os padrões para enfrentamento das questões atinentes a violações de direitos humanos.  

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Dessa forma, acaba também por afastar a cultura da impunidade e favorecer

a prestação de contas com a sociedade, bem como incentivar a reconciliação e a

restauração da confiança e legitimidade do Estado Constitucional de Direito

(REÁTEGUI, 2011, p. 64).  

Por essa razão, faz-se imprescindível que, a partir da justiça de transição, seja

perseguida a consolidação democrática, a abertura dos arquivos do período de

violações de direitos humanos e o julgamento moral dos seus repressores (AVILA;

JOO, 2010, p. 29 ss.).

 

4 A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E SUA CONDENAÇAO AO ESTADO BRASILEIRO    

Os sistemas regionais de direitos humanos foram desenvolvidos

paralelamente ao sistema universal proposto pela Organização das Nações Unidas

(ONU) com o objetivo de perseguir a evolução e o cumprimento dos direitos humanos

de modo mais próximo às respectivas realidades locais.

Um sistema global deve lidar com a coexistência pacífica de Estados

pertencentes a conjunturas socioeconômicas (CANÇADO TRINDADE, 2003, p. 79)

e culturas distantes, demonstrando uma universalidade muitas vezes pretenciosa,

incapaz de enfrentar problemas específicos e pontuais, concernentes a uma

determinada localidade.  

Sem prescindir do sistema universal da ONU, de relevância ímpar e

conquistas únicas para o Direito Internacional dos Direitos Humanos, principalmente

se levado em consideração o momento histórico a partir do qual fora criado, os

ordenamentos regionais desenvolveram-se paralelamente, com a característica de

ocupar uma posição privilegiada em relação àquele, mais perto das realidades as quais

pretende monitorar.  

Dessa forma, o sistema Interamericano foi concebido nas Américas,

composto pela Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA–1948), a

Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem (1948), a Convenção

Americana de Direitos Humanos (1969), também conhecida como Pacto de San José

da Costa Rica, a Comissão (1959) e a Corte (CIDH - 1978) Interamericana de direitos

Humanos.  

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Costuma-se dizer que o âmbito americano engloba um duplo sistema de

proteção dos direitos humanos, quais sejam, o sistema geral, baseado na Carta da

OEA e na Declaração, além daquele que abarca os Estados signatários da Convenção

(GUERRA, 2011, p. 167), o qual contempla a Comissão e a Corte.  

Declarações, como o próprio nome transparece, não são objeto de assinatura

e ratificação. Seu papel consiste tão somente em enumerar condutas e princípios os

quais considera que devam ser obedecidos. Em sentido contrário, as Convenções

passam a ser válidas e passíveis de cobrança somente após o processo que inicia-se

com o ato soberano de um Estado em sua assinatura, e que culmina em sua publicação

no âmbito interno.  

Como membro deste sistema, a República Federativa do Brasil ratificou a

Convenção Interamericana aos dias 07.09.1992 e aceitou a competência da respectiva

Corte em 12.10.199813, tendo em vista que sua jurisdição depende de declaração

prévia (SHAW, 2010, p. 295). Uma vez reconhecendo-a, o ordenamento jurídico

interno deve respeitar suas decisões, podendo também recorrer à sua competência de

emitir pareceres consultivos acerca da interpretação da Convenção Americana e de

outras convenções que tratem da proteção dos direitos humanos no Estados

Americanos (SHAW, 2010, p. 296).  

A Comissão Interamericana teve sua função desenvolvida e ampliada ao

longo dos anos. Originalmente, foi concebida como órgão de observação e

recomendação, com vistas à promoção dos dos direitos humanos. Em momento

posterior, no final dos anos 60, passou a atuar como órgão de ação, e já na década de

1970 engajou-se na coleta de dados, visita e missões de investigação in loco, além da

preparação de relatórios e recebimento de denúncias de violações dos direitos

humanos (CANÇADO TRINDADE, 2003, pp. 460/461).  

Desaparecimentos forçados, mortes, leis de anistia e assuntos afins têm feito

parte da agenda da Comissão desde a década de 1970, e da Corte desde 1980

(STEINER; ALSTON; GOODMAN, 2007, p. 1020). Em Chumbipuma Aguirre v.

Peru, conhecido como caso Barrios Altos14, o Tribunal enfrentou a questão das leis

                                                                                                               13 Dados coletados no site da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Disponíevl em: <http://www.cidh.oas.org/annualrep/2002port/anexo.1.htm>. Acesso em: 22.10.2012.  14 Disponível no site da Corte Interamericana de Direitos Humanos: < http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_75_ing.pdf>, acesso em 22.10.2012.

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internas de anistia e declarou que as leis de anistia peruanas eram incompatíveis com

a Convenção Americana e, portanto, legalmente nulas (SHAW, 2010, p. 298).  

Nesse mesmo sentido, a CIDH condenou o Brasil, em novembro de 2010,

pelo desaparecimento de sessenta e duas pessoas, entre os anos de 1972 e 1974, na

região do Araguaia15, indo de encontro ao julgamento do Superior Tribunal Federal

(STF) brasileiro, ocorrido em Abril do mesmo ano, acerca da constitucionalidade da

Lei nº6.683/197916.  

Na sentença da CIDH, destaca-se o posicionamento da Corte no que diz

respeito à incompatibilidade da acima referida Lei com as obrigações internacionais

assumidas pelo Brasil quando da ratificação da Convenção Americana de Direitos

Humanos. Na nota para a imprensa17, publicada no dia 14 de Dezembro de 2010, o

Tribunal expressou ter baseado sua decisão nos princípios do direito Internacional e

na Jurisprudência. Asseverou que impedir ou obstacular a investigação e punição dos

crimes cometidos durante o período com base na anistia conferida pela Lei Nº

6.683/79 não tem efeito legal.  

O Brasil foi ainda condenado pela violação do direito à integridade física e à

informação, tendo falhado em proporcionar acesso aos arquivos relativos aos

desaparecimentos, possíveis pontos de partida para a investigação e consequente

punição dos responsáveis pelo ocorrido.  

A Comissão Interamericana já havia referido-se à incompatibilidade das leis

de anistia em seus informes sobre casos individuais, anuais e por países em ocasiões

anteriores. Seu primeiro pronunciamento neste sentido deu-se no Informe Anual

1985-1986, época em que havia começado a transição democrática em alguns países

da região e, consequentemente, apareciam os primeiros obstáculos à investigação das

graves violações dos direitos humanos (CANTON, 2011, p. 263).  

É sabido que, em decorrência da bipolarização conjuntural da época da

Guerra Fria, alguns países da América latina passaram por períodos ditatoriais,

financiados por aqueles receosos de um possível levante comunista. Nesses Estados, o

conceito de democracia foi relativizado, e a repressão aos rebeldes que lutavam por

                                                                                                               15 Disponível no site da Corte Interamericana de Direitos Humanos: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf>, acesso em 22.10.2012. 16 Disponível em: <http://www.sbdp.org.br/arquivos/material/1253_153_gilmar.pdf>, acesso em 22.10.2012. 17 Disponível no site da Corte Interamericana de Direitos Humanos: < http://www.corteidh.or.cr/docs/comunicados/cp_19_10_esp.pdf>, acesso em 22.10.2012.

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144

Page 145: Justica de transicao vdd memoria e justica

 

esta causa ocorreu de forma desleal e autoritária, sob o argumento de defesa da

democracia.  

Após a queda dessas ditaduras civil-militares, houve um processo de

redemocratização das instituições e dos próprios Estados. Com o objetivo de facilitar

o período de transição, leis de anistia foram aprovadas com vistas a absolver os

crimes praticados durante os anos de repressão, de ambos os lados.

Desta forma, exilados puderam retornar a seu país de origem, por outro lado,

torturadores tiveram suas condutas esquecidas, não penalizadas. Parecia uma solução

conveniente à época, capaz de responder aos anseios da maioria dos envolvidos nas

convulsões políticas instaladas naquele determinado contexto histórico.  

Todavia, Comissões da verdade foram instaladas em diversos países após a

transição democrática, como na Argentina e Chile, demonstrando a necessidade da

busca de uma nação pela sua história com o objetivo de promover a justiça e evitar a

repetição dos erros cometidos no passado.

Nesse contexto, o Brasil até então caminhou em sentido contrário, negando

sempre o desejo de investigação dos acontecimentos decorrentes de uma época

peculiar, não aceitando que a Lei de 1979, em verdade, consolidara a autoanistia, e

afirmando com igual veemência que a construção de um futuro não se faz com olhos

no passado.  

Este pensamento teve sua afirmação constitucional validada pela Corte

Suprema brasileira no ano de 2010, o que resultou em uma condenação por parte de

um Tribunal Internacional meses depois, qual seja, a Corte Interamericana de Direitos

Humanos. O Brasil, de forma soberana, reconheceu a competência desta Corte através

do Decreto Legislativo 89/98, devendo, portanto, respeito à Instituição e às sentenças

que porventura venham a condená-lo, sem que esta obediência seja considerada como

algum tipo de abuso ou interferência demasiada em questões internas.  

Para que um determinado caso seja levado à da Corte Interamericana, faz-se

necessário, dentre outros requisitos de admissibilidade, o esgotamento dos recursos

internos disponíveis no direito brasileiro (CANÇADO TRINDADE, 1997), o que

demonstra o respeito primordial ao ordenamento jurídico e à soberania dos Estados

sob sua tutela, que de maneira voluntária e no exercício do seus poderes consideraram

razoável e prudente a aceitação da sua jurisdição, em conformidade com a realidade

cada vez mais comum de criação de Cortes Internacionais.  

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145

Page 146: Justica de transicao vdd memoria e justica

 

Dessa maneira, a desobediência das sentenças proferidas pelo referido

Tribunal torna-se explicitamente contraditória. Como já mencionado, o Estado

brasileiro possuiu a prerrogativa de reconhecer a competência da referida Corte, não

sendo, de forma alguma, obrigado a aceitá-la. Uma vez a reconhecendo, contudo, a

não observância das sentenças condenatórias por ela emitidas enfraquece a posição do

Brasil no cenário internacional, país comumente reconhecido por sua colaboração e

respeito aos Tratados Internacionais por ele ratificados.

Em reportagem no dia 05.03.2013, a Cable News Network (CNN) noticiou o

início do julgamento de vinte e cinco ex oficiais responsáveis pela operação Condor,

momento sombrio de colaboração entre os regimes ditatoriais latino-americanos18. O

julgamento acontece na Argentina e deve levar cerca de dois anos para ser concluído,

no qual mais de quinhentas vítimas devem ser ouvidas. Dos vinte e cinco acusados,

vinte e quatro são argentinos e um deles é uruguaio, o ex Maj. Juan Cordeiro

Piacentini. Observam-se, portanto, esforços no sentido da punição dos responsáveis

pelas violações aos direitos humanos decorrentes das ditarduras civil-militares no

cone sul, posição da qual o Brasil parece se afastar.  

O Brasil costuma ser bem quisto na seara internacional por suas atitudes em

prol do desenvolvimento dos direitos humanos, autorizando visitas permanentes em

seu território de missões especiais da ONU, sendo reconhecido como um Estado ativo

e tido como um bom exemplo no que concerne ao respeito dos instrumentos

internacionais. Em sua política externa, opta sempre por soluções diplomáticas e

negociadas, posicionando-se constantemente contra a sobreposição do uso da força

em detrimento do diálogo.  

Assim, espera-se coerência por parte dos operadores do direito interno

brasileiro no que se refere ao cumprimento da sentença proferida pela Corte

Interamericana de Direitos Humanos, que de maneira alguma viola a soberania do

ordenamento jurídico deste Estado mas, ao contrário, reforça o poder das suas

instituições, que de forma voluntária e em consonância com a realidade de

colaboração regional que vem se consolidando ao longo dos anos, decidiu dela fazer

parte.  

                                                                                                               18 Reportagem completa disponível em: <http://edition.cnn.com/2013/03/05/world/americas/argentina-operation-condor-trial>, acesso em 05 mar. 2013.

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Page 147: Justica de transicao vdd memoria e justica

 

A autoanistia não é reconhecida pela jurisprudência do referido Tribunal e o

Brasil, como Estado-Parte do sistema que o engloba, deve adaptar-se à realidade

moderna que evoca a relevância e a necessidade do direito à memória e à verdade

como meio de evitar o cometimento dos mesmos erros do passado, sem que, para

tanto, haja um enfraquecimento da soberania interna dos Estados, teoria há muito

superada no âmbito do direito internacional.

Sem minimizar a importância e os méritos da criação da Comissão da verdade

pelo Estado brasileiro, a resposta pontual à condenação da Corte não pode ser

interpretada como outra, senão a revogação da Lei de Anistia e a consequente

persecução penal dos oficiais e daqueles que de alguma forma patrocinaram a

manutenção do regime autoritário no Brasil.  

 

 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS  

 

As ditaduras militares na América Latina das décadas de 70 e 80 do último

século deixaram sequelas físicas e psicológicas não só naqueles que participaram da

luta armada contra o regime, mas também em suas nações. Apesar de alguns países

terem rejeitado suas respectivas leis de anistia em momento posterior à transição

democrática por eles atravessada, outros sofrem até hoje consequências decorrentes

da impunidade daqueles que promoveram o terror.  

A ferida permanente que constitui a não apuração dos crimes praticados

naquela época encontra-se ainda aberta e capaz de encorajar atitudes autoritárias na

certeza da impunidade, ainda que dentro de Estados democráticos de direito. Em

verdade, um país que não é capaz de enfrentar o passado com coragem, tende

fatalmente a permanecer envergonhado, a encontrar-se ainda na escuridão e na certeza

da incapacidade de transmitir segurança aos seus cidadãos.  

Dessa maneira, o direito à memória e à justiça, respeitados em determinados

Estados, carecem ainda de efetividade em outros. O Brasil insere-se no grupo destes

últimos, apesar do grande progresso alcançado no atual governo com a instalação da

Comissão da Verdade, com o escopo de investigar as violações aos direitos humanos

cometidos durante o período de repressão. O órgão, mesmo não possuindo caráter

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Page 148: Justica de transicao vdd memoria e justica

 

punitivo, mas tão somente investigativo, constitui imenso avanço, posto que

possibilitará, de certa forma, o encontro do país com seu passado.  

Por fim, frisa-se a necessidade da observância ao cumprimento da sentença

condenatória proferida contra o Brasil pela Corte Interamericana de Direitos

Humanos, Tribunal ao qual o estado brasileiro soberanamente reconheceu a

competência e que, portanto, deve respeito. Sua política externa, fonte de constante

admiração pelas posições tomadas sempre em prol da promoção e proteção aos

direitos humanos e do diálogo pacífico, deve assim permanecer, tendo em vista que o

discurso e as atitudes autoritárias nunca constituíram fonte de democracia.  

Encoraja-se, assim, não somente a investigação dos crimes ocorridos no

contexto ditatorial, mas também sua devida punição. Pensar no passado apenas com o

sentimento de atraso leva à perpetuação de situações que poderiam ser modificadas

em um futuro não tão distante, e o desconhecimento de um país quanto à sua história

tende a educar uma população alienada, à margem da política e sem a capacidade e a

devida coragem para enfrentar os desafios à sua frente.

 

 

REFERÊNCIAS  

 ARAÚJO, Mayara de Carvalho; FERREIRA, Siddharta Legale. Transferência supranacional de competências: parâmetros para implementação. Revista Jurídica In Verbis, Natal, n. 25, p.249-262, jan. 2009. Semestral.      AVILA, Carlos Frederico Dominguez; JOO, Carlos Ugo Santander. Auge e declínio dos governos autoritários na América Latina: reflexões em perspectiva comparada. In.: SANTANDER, Carlos Ugo. Memória e direitos humanos. Brasília: LGE, 2010.      CANTON, Santiago. Leis de Anistia. In.: REÁTEGUI, FÉLIX (org). Justiça de transição: manual para a América Latina. Brasília: Comissão de Anistia, Ministério da Justiça, 2011.      CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2004.      CASTILLO, Mariano. Trial over terrifying ‘Operation Condor’ under way. Cable News Network, Estados Unidos da América. 05 mar. 2013. Disponível em:

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<http://edition.cnn.com/2013/03/05/world/americas/argentina-operation-condor-trial>. Acesso em: 05 mar. 2013 DORFMAN, Ariel. La doncella y la muerte. Buenos Aires: Ediciones de la Flor, 1993.    GUERRA, Sidney. Direito Internacional dos Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2011.    HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: O breve século XX. 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.      REÁTEGUI, FÉLIX (org). Justiça de transição: manual para a América Latina. Brasília: Comissão de Anistia, Ministério da Justiça, 2011.      RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia de bolso, 2006.      RONIGER, Luís; SZNAJDER, Mario. O legado de violações dos direitos humanos no cone sul: Argentina, Chile e Uruguai. São Paulo: Perspectiva, 2004.      SHAW, Malcolm N. Direito Internacional. São Paulo: Martins Fontes, 2010.      STEINER, Henry J., ALSTON, Philip, GOODMAN, Ryan. International Human Rights in Context. Oxford University: 2007.      SORTO, Fredys Orlando. Cidadania e nacionalidade: institutos jurídicos de Direito interno e de Direito internacional. Verba Juris: Anuário da pós-graduação em Direito, João Pessoa, n. 8, p.41-64, 2009.      ______. La compleja noción de solidaridad como valor y como Derecho: la conducta de Brasil em relación a ciertos Estados menos favorecidos. In: LOSANO, Mario G. (Comp.). Solidaridad y derechos humanos en tiempos de crisis. Madrid: S. E., 2011. p. 97-122.      TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. O esgotamento dos recursos internos no Direito Internacional. Brasília: Unb, 1997.      

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Page 150: Justica de transicao vdd memoria e justica

 

______. Direito das Organizações Internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.  

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A TORTURA DOS TEMPOS DA DITADURA MILITAR NO BRASIL E A

CORRUPÇAO DOS DIAS ATUAIS FRENTE AO DIREITO À VERDADE E À

MEMÓRIA

TORTURE OF TIMES OF MILITARY DICTATORSHIP IN BRAZIL AND

CORRUPTION OF THE PRESENT DAY FRONT RIGHT TO THE TRUTH AND

MEMORY

Diana Uchoa Torres Lima1

Janaína Alcântara Vilela2

RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo apresentar a tortura instaurada nos tempos da ditadura

militar, bem como demonstrar como a corrupção dos dias atuais pode ser tão parecida com a

aquela figura dos anos de chumbo. Procura-se traçar um enfoque comparativo entre a tortura e

a corrupção, analisando seus efeitos, características e como a corrupção atua no mundo

contemporâneo. Busca-se também abordar quais as consequências que estas duas figuras

trazem para a sociedade, principalmente no que tange ao direito à verdade e à memória

relacionadas aos fatos e acontecimentos das diferentes épocas. Por fim, analisa-se o papel da

narrativa e da linguagem no estudo da tortura e da corrupção, bem como o direito à memória,

englobando aí a memória coletiva e histórica de um país e ainda o direito à verdade,

analisando a anistia e os benefícios que a instituição da Comissão da Verdade criada no Brasil

pode trazer ao país.

Palavra-chave: Tortura; Ditadura Militar; Corrupção no Brasil; Direito; Memória; Verdade.

ABSTRACT

This paper aims to present the torture introduced in times of military dictatorship as well as

demonstrate how the corruption of the present day can be so similar to that figure the years of

lead. It seeks to draw a comparative approach between torture and corruption, analyzing its

effects, features and how corruption works in the contemporary world. Search also address

1 Mestranda em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da PUC/Minas. Pós-graduada em Direito de Empresa pela UGV. Pós-graduada em Administração de Empresa pela FGV. Advogada. 2Mestranda em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da PUC/Minas. Especialista em Direito de Empresa pelo IEC – Instituto de Educação Continuada da PUC/Minas. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela FGV. Advogada.

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Page 152: Justica de transicao vdd memoria e justica

what consequences these two figures bring to society, especially in regard to the right to truth

and memory-related facts and events from different eras. Finally, we analyze the role of

narrative and language in the study of torture and corruption, as well as the right to memory,

encompassing around collective memory and history of a country and even the right to truth,

analyzing and amnesty benefits that the institution of the Truth Commission created in Brazil

can bring to the country.

Keyword: Torture; Military Dictatorship; Corruption in Brazil; Right; Memory; Truth.

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objetivo analisar a tortura instaurada nos tempos da

ditadura militar, bem como demonstrar como a corrupção dos dias atuais pode ser tão

parecida com aquela figura dos anos de chumbo. Para tanto, apresenta breves considerações a

respeito da tortura, bem como traz um breve resumo desta figura, desde os tempos da ditadura

militar até os dias atuais, demonstrando como a corrupção pode ser uma tortura com novas

vestes.

Aborda ainda a corrupção no seio dos agentes de segurança pública do país, enfocando

os possíveis pontos comuns entre ambas as figuras. Discorre sobre como os fins justificam os

meios para se conseguir atingir a corrupção e a tortura. Aborda o modo como o desempenho

administrativo pode ser afetado, bem como pontua quais as consequências que a tortura e a

corrupção podem ocasionar na fase de crescimento econômico e nas relações internacionais

do país. Ainda se reporta sobre a questão do prejuízo causado quanto à publicidade dos atos

no tocante a essas figuras.

Menciona, outrossim, as consequências nefastas deixadas, tanto pela tortura, quanto

pela corrupção, na sociedade em que se vive.

Por fim, o trabalho demonstra como a tortura e a corrupção relaciona-se com o direito

à memória e à verdade, bem assim como o papel da narrativa e da linguagem mostram-se

relevantes no estudo de ambas as figuras. O direito à memória descreve como se comporta a

memória coletiva e histórica de um país, marcado pela tortura no passado e pela corrupção

nos dias atuais. Já o direito à verdade aborda a importância de se revelar os documentos, fatos

e narrativas que compuseram todo um período da história do Brasil, assim como analisa a

questão da anistia e da instituição da Comissão da Verdade criada no país.

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Page 153: Justica de transicao vdd memoria e justica

Percebeu-se que a memória adormecida da época de barbárie do país precisa ser

revivida pela sociedade e pelos cidadãos, reconstruída pelos familiares dos presos políticos da

ditadura militar, para que assim se reconstrua a memória coletiva de um país. Não se pode

deixar lacunas, incertezas e falta de memória como legado para as futuras gerações.

O trabalho trouxe reflexão importante sobre o estudo da tortura e corrupção no país,

demonstrando como a figura da corrupção no mundo moderno pode ser tão similar à tortura

na ditadura militar, e também como o direito à memória e à verdade está intrinsecamente

ligado no tocante ao resgate do Brasil com o seu passado. Aliás, isso é o que se espera: que o

Brasil se reconcilie com seu passado.

2 A TORTURA NA DITADURA MILITAR

2.1 Breves considerações sobre a Tortura

A tortura sempre existiu desde os primórdios da história universal. As guerras civis ou

militares, as desordens sociais, ocasionadas por diferentes motivos, tornaram a prática da

violência uma rotina. É quando a força prevalece sobre a razão, de forma oficial ou não. A

tortura foi uma forma que se desenvolveu para extrair depoimentos de oposicionistas do

governo, intimidar a população e consolidar os governos ilegítimos, construídos sem a

participação ou o consentimento popular.

Como explica Valdir Sznick:

A tortura, em sua evolução histórica, foi empregada, de início, como meio de prova, já que, através da confissão e declarações, se chegava à descoberta da verdade; ainda que fosse um meio cruel, na Idade Média e na Inquisição, seu papel é de prova no processo, possibilitando com a confissão a descoberta da verdade. (SZNICK,1998, p.14).

A tortura foi praxe no Brasil no século XX, durante o período de regime militar (1964-

1985), banalizando-se e revelando-se com um método eficaz de garantir um Estado de

ilegalidade. No entanto, também existiu no período ditatorial do Estado Novo (1937-1945).

Em 1964, quando os militares chegam ao poder, a tortura é institucionalizada. Ela

passa a ser um poderoso instrumento a serviço dos detentores do poder, a fim de que

pudessem obter das vítimas informações relevantes, tendo como objetivo a total extinção dos

opositores políticos.

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Page 154: Justica de transicao vdd memoria e justica

Durante a ditadura militar as maiores atrocidades foram cometidas contra estudantes,

intelectuais e todos aqueles que se opunham aos líderes da época.

No entanto, para viabilizar esta barbárie instalada no governo militar foi necessário

criar 242 centros secretos de detenção, muitos mantidos pelas Forças Armadas, como o DOI-

CODI (Departamento de Operações de Informações/Centro de Operações de Defesa Interna) e

o DOPS (Departamento de Ordem Política Social) que efetuava investigações políticas no

plano estadual. (COIMBRA,ROLIM, 2001, p.15).

Em fins de 1968, o governo de Costa e Silva fechou o Congresso Nacional, O AI-5

foi decretado, dando plenos poderes ao presidente e, entre outras coisas, abolindo o habeas

corpus aos presos políticos, legalizando a tortura. Várias foram as pessoas torturada no país

durante a ditadura militar, entre as formas cruéis de tortura estão o uso da palmatória,

esmagamento de dedos com barra de metal, o pau-de-arara, choques elétricos, entre outros

métodos terríveis que agridem de forma brutal o ser humano.

Mesmo diante de tantas evidências, o governo militar jamais admitiu que houve

tortura no Brasil, o presidente Castelo Branco chegou a negar publicamente a existência de

truculência em seu governo.

Nota-se, portanto, que a tortura é uma prática social solidamente incorporada à

tradição cultural do país, com única diferença de que é tolerada, muitas vezes exigida,

amparada culturalmente, a depender do perfil daqueles que serão vitimados. (COIMBRA,

ROLIM, 2001, p.06).

2.2 A tortura: breve relato dos anos de Ditadura Militar no Brasil até os tempos de hoje

Complicado se faz reportar aos dias de hoje um pouco do que se passou na época da

Ditadura Militar no Brasil. Não só pelo fato da grande ausência de fatos concretos, narrados e

documentados, mas, acima de tudo, pela dificuldade de se imaginar a figura da tortura entre

seres de uma mesma nação, dotados de racionalidade e discernimento, dentro de um Estado

Democrático de Direito.

Em tempos em que a prática da tortura é tida como crime contra a humanidade,

passível das maiores penalidades possíveis que um homem possa sofrer, sendo esta uma visão

mundial diante da Declaração dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas –

ONU (PARIS, 1949) que em seu artigo 5º declara que “ninguém será submetido a tortura,

nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”, como se explicar que fatos e

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Page 155: Justica de transicao vdd memoria e justica

acontecimentos ocorridos nos chamados Anos de Chumbo estão, até hoje, à margem da

sociedade brasileira?

Vive-se na atualidade no Brasil um Estado Democrático de Direito (ou, quem sabe, em

busca de um) e, em contrapartida, tem-se a história de um período de Governo Ditatorial

negativada, ou melhor, omitida da sociedade e, consequentemente, das sanções cabíveis

perante as leis brasileiras e soberanas.

A divulgação de acontecimentos que possam remeter a um crime hediondo não pode

ser deixada de lado.

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF de nº. 153,

impetrada pela Ordem dos Advogados do Brasil, a fim de promover a revisão da Lei de

Anistia no país, foi rejeitada pelo Supremo Tribunal Federal. Tal decisão foi atacada pela

Organização das Nações Unidas, esperando que o Brasil consiga livrar-se desta questão de

total impunidade.

Em que pese discussão acerca da prescrição dos crimes de tortura, sendo defendido

por alguns a impossibilidade de imputação de penalidades aos agressores por ato ilícito

cometido há mais de 50 anos, ou ainda, discursos vinculados à subordinação dos agressores a

superiores hierárquicos, no intuito de demonstrar que estariam os mesmos cumprindo ordens

legais, não se pode, de forma alguma, deixar que a história mantenha-se encoberta.

Vê-se uma real necessidade de transcrever partes da história do Brasil nas páginas em

branco deixadas pela Ditadura Militar. A memória de um país não deve deixar de ser

retratada, seja ela qual for, em prol da defesa de alguns ou de possíveis penalidades impostas

aos autores dos delitos praticados naquela época. Deve-se haver uma separação entre o direito

à memória e a real exposição da narrativa dos fatos daquela época, com a possibilidade, ou

não, de tipificação dos crimes ali reconhecidos, bem como a imputação destes aos agressores

ou um provável perdão.

A figura da tortura não está tão longe do alcance dos olhos da geração contemporânea,

principalmente em países afastados de um Estado Democrático de Direito. Sua existência

ainda nos tempos de hoje é incontestável, mesmo que vista pelo mundo com enorme

assombro.

Remeter-se aos tempos passados, a uma transição de sistemas, quebras e golpes, se

mostra tão longe e distante como imaginar os horrores de uma guerra mundial ocorrida em

outro continente, ou, ainda, práticas nazistas contra povos de outras nações.

Entretanto, a história vivida na época da Ditadura Militar no Brasil se mostra,

novamente, presente na atualidade, em um molde diferenciado, com outra roupagem. É

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passível de aceitação por alguns, os que a cometem, sem o peso de um crime hediondo. Uma

versão sem abusos físicos, mas de semelhante consequência e, o que é pior, de iguais

características e efeitos para a sociedade.

Em analogia feita por Frei Betto, mas contrastando a tortura com a pobreza, sábias são

suas palavras quando narra que “haveremos um dia de considerar a pobreza crime tão

hediondo quanto à tortura e a escravidão, outrora aceitas como licitas e legais, embora ainda

praticadas.” (BETTO, 2006, p. 158).

Nitidamente, as palavras do autor se encaixam exatamente na comparação das figuras

tortura e corrupção.

3 CORRUPÇÃO: A TORTURA CONTEMPORÂNEA

Estranho se faz uma comparação entre figuras particularmente tão distantes. Afinal, a

corrupção envolve a vontade de ambas as partes em voga, não se alinhando com lesões físicas

ou emocionais do agressor contra a vítima e nem sequer vinculando-se à morte ou tentativas

revolucionárias de parte da sociedade, como se viu pela guerrilha armada na época da

Ditadura Militar no Brasil.

Nos dias atuais, a tortura institucionalizada da época da ditadura militar mudou suas

vestes e seus alvos, segundo relato de Elzira Vieira, presidente do Grupo Tortura Nunca Mais,

de São Paulo. Para ela:

O modo de agir dos integrantes da ditadura, o arbítrio, a violência que se dirigia contra os opositores do regime passa a se voltar contra a população mais pobre, negra, analfabeta, que se concentra, sobretudo, nas favelas,cortiços e periferias da cidade.A ação dos agentes de segurança é discriminatória e depende da pessoa contra a qual é dirigida. (REVISTA Superinteressante, 2004, p.54).

Nota-se, portanto, que a tortura reveste-se agora de sutilezas, é feita através da lei do

custo-benefício que domina os agentes públicos que fazem a segurança dos cidadãos. Aqui,

interessa saber qual a classe social e o benefício que se vai receber em troca da prática ou não

de determinado ato. É a corrupção corroendo justamente aqueles que deveriam zelar pelo

cumprimento da lei.

Vê-se que a proximidade entre tortura, ocorrida há mais de 50 anos no país, e

corrupção, nos moldes atuais, é incontestável. Os pontos comuns é o que se passa a debater.

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3.1 Os fins justificam os meios e a funcionalidade

Frase célebre de Nicolau Maquiavel3, representando o maquiavelismo e demonstrando

que os poderes devem estar acima da ética e moral, a fim de se alcançar seus objetivos.

Na tortura, a frase se aplica, como retrata Alfredo Sirkis, como justificativa para a

polícia torturar, matar, agredir os considerados pelo Governo como guerrilheiros e

subversivos.

O objetivo maior era manter a segurança pública, a defesa da sociedade contra

qualquer tipo de tentativa de revolução, pois, conforme emblema da Polícia Paulista à época,

“contra a pátria não há direitos”.

O país estaria acima de tudo e todos, valendo-se, portanto, qualquer prática contra

aqueles que o ameaçassem (GASPARI, 2002).

É esta, também, a frase que justifica a prática de atos corruptos. A ambição ao se

almejar o objetivo final, seja ele funcional, econômico ou político, estaria acima de qualquer

meio ou instrumento utilizado no percurso. Estaria acima da moral, ética e das leis de um

povo.

Percebe-se que há em ambas as épocas um envenenamento da conduta dos

encarregados da Segurança Pública. As atividades dos militares e políticos demonstram-se

totalmente desvirtuada de sua real função.

O proveito pessoal do agente, seja ele na vertente funcional, com méritos burocráticos,

seja ele econômico, de forma imediata, faz com que o risco assuma a característica do mais

vantajoso.

Há nítida decadência moral dos agentes públicos o que resulta em uma descrença da

população nas instituições, pois o Estado passa a acobertar seus agentes, detendo ciência dos

fatos e os omitindo ou se mostrando em total desconhecimento das ações promovidas por seus

representantes.

No âmbito do Poder Judiciário, este será sempre o primeiro a se tornar cúmplice dos

maus feitos. É o primeiro atingido, pois para a total omissão dos acontecimentos, necessário

se faz a participação judicial de forma a prevenir denúncias e anular provas. A prática na

clandestinidade torna-se reiterada, diante de total impunidade.

3 Nicolau Maquiavel, historiador italiano, nascido em Florença em 3 de maio de 1469, onde morreu no dia 21 de junho de 1527, autor da obra O príncipe.

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Atrativa, assim, se torna a prática da tortura e da corrupção, não só por atingir seus

fins e alcançar seus objetivos, mas também pela impunidade dos seus sujeitos ativos.

Inegável, portanto, a funcionalidade das duas figuras.

Nas palavras de Elio Gaspari, tem-se um resumo do que ora se expõe:

A centralização das atividades de policia política pelo CIE4 e pelos DOIS5 feriu a estrutura das Forças Armadas e subverteu a hierarquia no Exército. As conexões com o submundo corromperam alguns de seus quadros e obrigaram ministros, generais e juízes a acumpliciar-se com bandidos. A adoração da funcionalidade da tortura envolveu a máquina repressiva num mito de eficiência, escondendo fracassos e inépcias, ao mesmo tempo, que se passou a exagerar o tamanho da ameaça para adaptá-la ao tamanho da cobiça liberticida. (GASPARI, 2002, p.190)

As duas figuras passam a ser uma política de Estado, uma arma política, a fonte de

poder para quem as exerce.

3.2 O desempenho administrativo afetado

Indiscutivelmente a corrupção afeta o desempenho administrativo de um país,

principalmente no que tange à questão orçamentária. Recursos que deveriam ser investidos na

população, nos direitos fundamentais do cidadão, na melhoria da qualidade de vida, da saúde

e da segurança são desviados em jogadas políticas, transações econômicas fraudulentas e

tratativas ilegais.

O país deixa a população à margem diante de ausência de recursos que possam levá-la

a um crescimento. Do que se arrecada através de tributos, parte, a grande parte, pode-se assim

dizer, não é utilizada da forma como planejado e orçamentariamente vinculado.

As atividades parlamentares, ao serem tomadas por investigações, deixam de exercer

os serviços a que lhe foram conferidos. Passa-se à realização de Comissões de Investigações

com maior frequência do que estudos e discussões de normas necessárias para o andamento e

desenvolvimento da sociedade como um todo.

O mesmo se pode dizer da tortura, que desvia funcionários públicos de suas reais

atividades para a prática de atrocidades. Valores altíssimos eram gastos com as estruturas das

salas de tortura, até porque não era interessante ao Governo que tal prática deixasse vestígios

e provas. A máquina do Estado passou a girar em torno da perseguição aos subversivos, em

detrimento da sua real função na qualidade de Poder.

4 Centro de Informação do Exército 5 Destacamento de Operações de Informações

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Page 159: Justica de transicao vdd memoria e justica

Inegável, em ambos os períodos, a participação das empresas privadas como

financiadoras das práticas de tortura e corrupção, pois acima de tudo tratam-se de institutos

caros, onde há necessidade de altos investimentos, seja para sua construção, seja para sua

manutenção.

3.3 Fase de crescimento econômico e relações internacionais

Época de crescimento econômico, esta era a situação do Brasil nos Anos de Chumbo,

bem como é a situação atual.

Hoje, tem-se a valorização do real, bem como do país na esfera internacional. Os

Estados Unidos e a Europa passam por grandes crises.

Internamente, a economia está aquecida, o salário mínimo detém os maiores valores da

história, possibilitando um maior acesso da população, uma circulação monetária que

alavanca a economia nacional.

O Brasil, cada vez mais, estreita suas relações internacionais e se impõe como um país

promissor, respeitado e com voz ativa, inclusive perante a Organização das Nações Unidas.

Quando da Ditadura Militar, o Brasil encontrava-se na época do “Milagre Brasileiro”.

Inéditas taxas de crescimento passaram a ser vistas na economia do país; no futebol, a seleção

canarinha tornava-se tricampeã mundial na Copa do Mundo de 1970; a televisão em cores

tomava conta dos lares; vivia-se o Regime do “Pleno Emprego”; investimentos estrangeiros,

principalmente dos Estados Unidos, eram celebrados; e a imagem do Brasil no exterior

tomava forma.

Nelson Rodrigues citado por Elio Gaspari (2002, p.336) pronuncia-se em sua coluna

no Jornal O Globo “aí está por que emudeceram todas as piadas, porque o próprio Brasil deixa

de ser uma piada. Quando reconhece o Milagre Brasileiro, Richard Nixon6 ensina o Brasil a

ver Emilio Garrastazú Medici7 como o nosso maior presidente”.

6 Richard Milhous Nixon, 37º presidente dos Estados Unidos da América, no período de 1969 a 1974. 7 Emílio Garrastazu Médici, nascido em 4 de dezembro de 1905 e morto em 9 de outubro de 1985, foi militar e político brasileiro, tendo se tornado presidente do Brasil durante a Ditadura Militar, de 1969 a 1974.

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3.4 A publicidade dos atos

Este, certamente, se faz como o ponto mais crítico desta análise comparativa: a

publicidade dos atos praticados na Ditadura Militar e no mundo atual. Fato é que se a tortura

não era de conhecimento público, omitida e velada, a corrupção também assim não se faz.

Pouco se sabe, até hoje, sobre os reais casos de tortura no Brasil. O que se tem notícia

são bibliografias de quem viveu dentro de todo o sistema da época e conseguiu se livrar da

morte ou de um desaparecimento eterno e, ainda, ter coragem de abrir parte de sua vida à

leitura de outras pessoas. São experiências de vida, como narra Alfredo Sirkis: O ano de 1968 e os anos de chumbo que a eles sucederam são como cenas de um filme antigo, histórias desbotadas, quase implausíveis, conquanto deveras acontecidas àquela outra pessoa que fui. Sinto-me a muitos anos-luz do guerrilheiro Felipe com seus 19 anos e sua intrincada mescla de revolta e pulsão de ser herói, viver a aventura da nossa geração, que depois, como disse Alex Polari, se cortou com cacos de sonho. Não me desconforta esse passo, também não me enaltece. (SIRKIS, 2008).

A ausência de publicidade dos fatos leva, inegavelmente, a uma imprensa parcial,

formadora de opinião, não vinculada à verdade dos fatos que se propõe a narrar. Nítidos

traços de censura, mesmo que velada, pois a imprensa também passa a ser controlada pelos

órgãos de comunicação dos dominantes.

Em épocas de ditadura, poucos ainda buscavam eclodir no mundo a realidade vivida

internamente no país. Dom Helder Câmara, bispo auxiliar da arquidiocese do Rio de Janeiro

na década de 60, citado por Elío Gaspari, falando para mais de 10 mil pessoas reunidas no

palácio dos Esportes, em Paris, relatou: A tortura é um crime que deve ser abolido. Os culpados de traição ao povo brasileiro não são os que falam, mas sim os que persistem no emprego da tortura. Quero pedir-lhes que digam ao mundo todo que no Brasil se tortura. Peço-lhes porque amo profundamente a minha pátria e a tortura a desonra. (CÂMARA apud GASPARI, 2002, p. 292).

O que se vê, majoritariamente, é a extorsão de informações, histórias desencontradas,

falsas e incorretas suposições de fatos e atos. Uma total incoerência entre o real e o narrado,

retirando de um povo o seu direito à verdade e à memória.

Apenas nos últimos anos no Brasil, têm-se engatinhado as primeiras tentativas reais de

trazer a público os fatos e acontecimentos relacionados à corrupção através de uma Polícia

Federal preparada e um Ministério Público autônomo.

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Page 161: Justica de transicao vdd memoria e justica

Várias são as Comissões de Investigação instaladas pela Câmara dos Deputados em

Brasília com o intuito de apurar denúncias de corrupção contra autoridades políticas, agentes

públicos e funcionários ligados ao governo.

Nota-se, portanto, que a corrupção, assim como a tortura ainda são praticadas nos dias

atuais de diferentes formas, em diferentes setores dos órgãos do país, sendo a publicidade

desses atos ainda situada na clandestinidade. O pouco que se vê nos jornais e revistas são

denúncias realizadas graças ao direito à informação, e a extinção da censura, que existiu nos

anos da ditadura militar.

Assim, forçoso concluir que mesmo diante da corrupção, os atos praticados são

ocultados da sociedade e dos cidadãos. A verdade também aqui é omitida pelo governo.

Necessário, então, dar-se publicidade ampla aos atos praticados durante o império da

tortura no Brasil, bem como revelar e apresentar a sociedade brasileira os atos de corrupção,

pois somente dessa forma o país poderá se reencontrar com o seu direito à verdade e à

memória.

4 O QUE FICA PARA A SOCIEDADE?

Repassadas algumas comparações entre as duas figuras, tem-se, agora, a análise de

seus efeitos.

Diante de tamanha seriedade do se que se viveu há tempos atrás, através da prática da

tortura e ao que se passa na atualidade sob o enfoque da corrupção, resta à sociedade

consequências nefastas, mas acima de tudo, visíveis a todos.

Vê-se a existência de uma sociedade silenciosa, que muitas vezes sabe dos fatos, mas

lhe falta coragem ou provas que possam fundamentar suas acusações. Passa-se, então, a

tolerar o intolerável, aceitar o inaceitável e calar-se diante dos acontecimentos. Talvez por

medo, talvez por culpa, mas acima de tudo por falta de solidariedade e coletivismo.

A sociedade já não luta unida, como uma mesma nação. Os interesses individuais se

sobrepõem aos interesses coletivos. A percepção de cidadania se altera, trazendo uma enorme

desmoralização da sociedade, que passa a ver tudo apenas como telespectador e não como

parte integrante de um sistema, de um país corrupto e torturador.

Nítida é a perda das referências, contesta-se o que realmente é moral e ético, caindo,

assim, em uma decadência do ser humano ao não saber distinguir o certo e o errado.

Envenena-se a vida nacional com a descrença nas Políticas Públicas.

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Page 162: Justica de transicao vdd memoria e justica

As duas figuras em questão tornam-se consequências de si mesmas, uma vez que a

prática da tortura leva a uma corrupção, ao passo que os atos de corrupção podem alcançar

ritos de tortura.

Ainda, nas palavras de Lucas de Alvarenga Gontijo “a corrupção vista nos dias de hoje

está intimamente ligada à tortura do passado, sendo que os principais nomes políticos

envolvidos em escândalos são aqueles de pessoas envolvidas no Governo Militar.” (aula

mestrado PUC/Minas, 2012).

Conclui-se, portanto, que as figuras aqui estudadas estão intimamente ligadas, assim

como seus algozes e vítimas, sendo que as consequências que deixam para a sociedade em

que se vive perpetuam no tempo, caso nada se faça a respeito.

5 O DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE

5.1 O importante papel da narrativa e da linguagem no estudo da tortura e corrupção

O Direito à memória e à verdade se faz presente, principalmente, no intuito de evitar

que acontecimentos passados se repitam de modo a prejudicar uma sociedade.

Utilizando-se dos pensamentos de Paul Ricoeur, através da narrativa e da linguagem

é que o homem passa a contar sua temporalidade em forma de história, com a devida seleção,

disposição e reorganização dos acontecimentos.

Mas não se deve esperar que as narrativas sejam parciais e neutras, pois elas contém

as percepções de cada um, influenciadas pela cultura, pela tradição, pelos valores, bem como

pela forma de lembrança dos fatos narrados.

A narrativa nada mais é do que a identidade do homem, estando, as mesmas, ligadas,

completando-se e unindo-se no decorrer do tempo. Assim: A narrativa é o instrumento que permite que o sujeito reavalie as possibilidades de sua vida ao olhar para trás, atribuindo-lhe uma qualificação ética e um sentido para o futuro. O conjunto de sua vida, reunida em termos narrativos, permite que as experiências passadas sejam depuradas e examinadas como “boas” ou “ruins”, ‘bem-sucedidas’ ou “mal-sucedidas”, orientando as ações humanas ainda porvir. (COSTA JUNIOR, 2011).

Nota-se, pois, quando do estudo da tortura na ditadura militar, a narrativa dos fatos

daquela época deve ser estudada pelas atuais e futuras gerações, visto que a partir dos relatos

das vítimas de tortura, seus familiares e política utilizada pelo governo militar são possíveis

reconstruir a história do passado. Os atores sociais da tortura no país – vítimas, torturadores,

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governo – podem repensar e refletir sobre as atitudes e experiências vividas, depurando o

futuro. O mesmo vale também para a corrupção, que não deixa de ser uma forma

contemporânea da tortura. Claro que com vestes menos truculentas, mas que podem produzir

um estrago enorme no futuro do país caso não analisado as narrativas em que se passaram.

Adotando o pensamento de Dartigues, Ernani Salles da Costa Junior traz a seguinte

ideia: A compreensão do si, então, perpassa pelo tecido do reconhecimento em uma complexa trama que interconecta as esferas da singularidade, da alteridade e das instituições jurídicas e democráticas. Por essa razão, a narrativa que permite ao sujeito identificar-se não é somente sua narrativa autobiográfica, mas toda narrativa histórica, fictícia, normativa, que ele interroga como um espelho, devolvendo-lhe uma imagem de si próprio; a identidade buscada nessas narrativas não é a de um “eu isolado”, mas a de um “si” que interfere com uma identidade coletiva e se amplia, pois, à de “nós”, o da comunidade étnica, política, jurídica, etc. (DARTIGUES apud COSTA JUNIOR, 2011, p. 32)

Citador por Ernani Salles, Paul Ricoeur, ao confirmar não ser o homem um ser

“solista”, mas sim influenciado por sua cultura – politica, jurídica ou poética, passa a pensar

na construção da ação humana não apenas de cunho pessoal, mas também institucional. Só

com o conhecimento do passado que a sociedade poderá se abrir ao futuro. Pois, nas palavras

de Daniel Vieira Sarapu, sob enfoque de Ernani Salles, “carente desse elo com o passado, a

construção do direito estaria, assim, submetida a uma amnésia continuada da sua própria

existência história” (SARAPU apud COSTA JUNIOR, 2011, p. 82).

Ainda, dentro da obra de Ernani Salles, algumas citações de Ricoeur se fazem de

grande valia:

As histórias da vida estão a tal ponto imbricadas umas das outras, que a narrativa que cada um faz e recebe de sua própria vida se torna o segmento das outras narrativas que são narrativas dos outros. Podemos então considerar as nações, os povos, as classes e as comunidades de todos os tipos como instituições que se reconhecem, cada uma por si e umas às outras, por sua identidade narrativa (RICOEUR apud COSTA JUNIOR, 2011, p. 33). Essa noção de identidade narrativa é da maior importância para a pesquisa da identidade dos povos e das nações; pois ela contém o mesmo caráter dramático e narrativo que frequentemente podemos confundir com a identidade de uma substância ou de uma estrutura. No nível da história dos povos, assim como no dos indivíduos, a contingência das peripécias contribui para o significado global da história contada e para o significado de seus protagonistas. Esse reconhecimento implica desfazer-se de um preconceito referente à identidade reivindicada pelos povos sob a influência da arrogância, do medo ou do ódio. (RICOEUR apud COSTA JUNIOR, 2011, p. 38).

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O homem recorre ao passado e à memória para avaliar suas possibilidades e

expectativas futuras, motivo pelo qual o direito à verdade dos reais acontecimentos do

passado e do presente se faz tão necessário para uma sociedade.

Em que pese os acontecimentos do passado serem inapagáveis, devem primeiramente

ser trazidos ao conhecimento de todos, para que a sociedade possa tirar seus ensinamentos,

dar sentido ao presente e assumir responsabilidade por seus erros. (OST, 2005, p.28).

Assim é como deve se fazer com o estudo da tortura e corrupção no país. A

sociedade necessita saber da história de tortura e corrupção porque passou e passa ainda hoje

o país, para que tenha conhecimento absoluto e real da situação e possa assumir o controle dos

rumos da história e poder escolher qual direção seguir.

5.2 O direito à memória

A memória lida com quatro paradoxos segundo François Ost. Para ele, o primeiro

paradoxo: a memória é social, e não individual. (OST, 2005, p.59). Segundo ele, as nossas

recordações, mesmo as mais pessoais e mais íntimas só conseguem se expressar nos termos

da tradição e só fazem sentido se forem partilhadas por uma comunidade efetiva e social, que

não tarda em retrabalhá-las. (OST, 2005, p.59-60).

O segundo paradoxo da memória: a memória opera a partir do presente. Assim, a

recordação não só é social, como ainda resulta, em larga medida, de uma reelaboração com a

ajuda de dados retirados do presente e do passado próximo, isto é, das reconstruções

intermediárias que já reinterpretaram consideravelmente o material original, por meio de

sedimentações sucessivas. Não há, pois, memória sem reinterpretação coletiva. (OST, 2005,

p.60).

O terceiro paradoxo da memória situa-se no prolongamento direto do precedente: se a

memória opera a partir do presente e não do passado é porque ela é uma disposição ativa, até

voluntária, e não uma faculdade passiva e espontânea. (OST, 2005, p. 61).

Por fim, o quarto paradoxo da memória liga-se ao esquecimento. A memória

pressupõe o esquecimento. Qualquer organização da memória é igualmente organização do

esquecimento. Não há memorização sem triagem seletiva, não há comemoração sem invenção

retrospectiva. O tempo, mesmo passado, nunca é adquirido, pede sempre para ser instituído e

reinstituído. (OST, 2005, p. 63).

Percebe-se, com isso, que a memória da tortura e da corrupção precisa do passado para

ser trabalhada no presente. Ou seja, é necessário voltar no tempo e trazer à tona toda a época

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de barbárie vivida nos porões da ditadura militar, assim como se necessita denunciar e

relembrar a memória da corrupção ocorrida, pois somente farão sentido se estudadas,

conhecidas e debatidas por toda a sociedade. Afinal, só fazem sentido se retrabalhadas numa

sociedade efetiva.

Deve-se, também, fazer a distinção entre memória coletiva e memoria histórica, que

na visão de OST, pode-se assim concluir: a primeira trata daquela existente e construída

dentro da sociedade, da comunidade, enquanto a segunda reflete os acontecimentos e as

compilações dos fatos (OST, 2005, p. 53).

Assim, imperioso se faz observar que tanto a memória da tortura, quanto a da

corrupção existente e construída na sociedade, muitas das vezes se mistura e amolda-se àquela

refletida nos acontecimentos e fatos históricos. Tornando-se difícil a identificação da memória

coletiva e histórica dessas figuras.

Para Maurice Halbwachs, as lembranças podem se organizar de duas maneiras: tanto

se agrupando em torno de uma determinada pessoa, que as vê de seu ponto de vista, como se

distribuindo dentro de uma sociedade grande ou pequena, da qual são imagens parciais.

Portanto, existiriam memórias individuais e, por assim dizer, memórias coletivas. Em outras

palavras, o indivíduo participaria de dois tipos de memórias. Por um lado, suas lembranças

teriam lugar no contexto de sua personalidade ou de sua vida pessoal – as mesmas que lhes

são comuns com outras só seriam vistas por ele apenas no aspecto que o interessa enquanto se

distingue dos outros. Por outro lado, em certos momentos, ele seria capaz de se comportar

simplesmente como membro de um grupo que contribui para evocar e manter lembranças

impessoais, na medida em que estas interessam ao grupo. (HALBWACHS, 1997, p. 71).

Diante disso, reforça-se a importância de se trazer à tona todos os documentos,

relatos e provas que permearam os anos de tortura no Brasil, assim como imperioso se torna

também relatar e evidenciar os casos de corrupção vividos no país. Isto porque as lembranças

pessoais ou dos familiares ocorridas durante a tortura ou a corrupção são fundamentais para se

reconstruir a memória coletiva destes episódios e, assim, reelaborá-las para que se tenha um

futuro diferente.

O direito vem, então, assumir o papel de guardião da memória social, enfrentando os

riscos do esquecimento, a fim de que a vida social se desenvolva e mantenha continuidade,

estando os dados acessíveis a todos. (OST, 2005, p. 84).

Assim, a fim de manter a segurança jurídica, a continuidade das instituições e a paz

social, o direito, através da memória jurídica, busca garantir os direitos fundamentais do

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homem. Tais direitos estão estipulados na Declaração de Direitos de 16898, sendo os mesmos

“imemoriais”, “inalienáveis” e “sagrados”.

Dentre eles, o que remete toda a discussão ora exposta, é a proibição da tortura e dos

tratamentos cruéis, desumanos e degradantes.

A proibição da tortura está dentro do núcleo rígido dos direitos intangíveis do ser

humano, bem como a proibição da retroatividade da pena, da escravidão e da servidão,

considerados, portanto, como uma ameaça à vida da nação.

5.3 O direito à verdade

A Comissão Nacional da Verdade foi instalada em 16 de março de 2012. Ela terá o

prazo de dois anos para apurar violações aos direitos humanos ocorridos no período entre

1946 a 1988, que inclui a ditadura militar (1964-1985). Foi passo importante para a

consolidação da sociedade democrática brasileira contra a violência política.

O objetivo maior dessa comissão será apurar os casos de desaparecidos políticos.

Não há registros de prisão deles e os advogados e familiares até hoje procuram

esclarecimentos sobre onde se encontram os corpos das vítimas.

A presidente Dilma Rousseff destacou na abertura da instalação da Comissão da

Verdade que:

O Brasil merece saber a verdade, as novas gerações merecem a verdade e, sobretudo, merecem a verdade factual. Aqueles que perderam amigos e parentes e que continuam sofrendo, é como se eles morressem de novo e sempre a cada dia. É como se disséssemos que, se existem filhos sem pais, se existem pais sem túmulos, se existem túmulos sem corpos, nunca, nunca mesmo, pode existir uma história sem voz. E quem dá voz à história são os homens e mulheres livres que não têm medo de escrevê-la. (ROUSSEFF, 2012).

A Comissão da Verdade implantada no país é um compromisso real com a defesa dos

direitos humanos, com a memória das vítimas e das suas famílias.

Ademais, a Comissão da Verdade e Reconciliação instalada na África do Sul através

de uma lei de 1995, tendo como objetivo dar conhecimento a todos dos acontecimentos no

período do Aparthaid, trouxe a verdade ocorrida no passado, por pior que ela se mostrasse. As

vítimas foram ouvidas e indenizadas, os agressores identificados com suas confissões

publicadas e as ofensas ocorridas devidamente entabuladas. Na esfera da reconciliação,

8 A Declaração de Direito de 1689 (em inglês Bill of Rights of 1689) foi um documento redigido pelo Parlamento da Inglaterra.

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concedeu-se anistia civil e penal aos crimes reconhecidos, teve-se, assim, uma anistia sem

amnésia.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos entende correta uma lei de anistia

caso a mesma coloque o passado a limpo, podendo as vítimas ser indenizadas, alcançando,

também, a restauração de sua dignidade (OST, 2005, p. 133).

Nas palavras de Carmem Castillo, relembradas na obra de François Ost, “a máquina

do esquecimento da ditadura que apaga a existência dos assassinados” (CASTILHO apud

OST, 2005, p. 135). Com a criação do Tribunal Penal Internacional, viu-se a possibilidade dos

direitos humanos se imporem à razão dos Estados, tornando assim imprescritíveis os crimes

contra a humanidade, tal como a tortura o é, o que possibilitaria o direito à memória,

excluindo-se, assim, os privilégios de imunidade e o esquecimento dos fatos do passado.

Citado pelo autor, Bourget, em sábias palavras, reflete: “entre a referência ao

imprescritível que se recusa a nada esquecer e o uso da anistia que tende a tudo esquecer”

(BOURGET apud OST, 2005, p. 168).

O perdão, aposta na liberdade dos interlocutores: o ofendido, que através de seu gesto imprevisto e gratuito renuncia a reclamar o que lhe é devido, e o ofensor, que afastando-se da lógica do pior, solicita o perdão e se compromete a restaurar a relação comprometida. Assim, o homem do ressentimento (a vítima), e o homem do remorso (o culpado), se libertam juntos de um passado obsessivo e se tornam disponíveis para um futuro novamente promissor” (OST, 2005, p. 164).

Nas palavras de Ricoeur, citadas por François Ost, “o perdão é uma espécie de cura

da memória liberado do peso da dívida, a memória é libertada para grandes projetos. O perdão

oferece um futuro à memória” (RICOEUR apud OST, 2005, p. 164).

As anistias pontuais, como denominada por Ost, são de caráter político, sendo

classificadas em anistia de penas e anistia de fatos. A primeira versa sobre a existência de um

processo, já em fase de condenação, vindo a anistia a interromper a execução da pena. A

segunda extingue uma ação pública, fazendo com que os fatos imputados ao agressor deixem

de ser delituosos (OST, 2005, p. 172).

Deve-se, contudo, pontuar a diferença entre anistia e prescrição, pois esta procede de

uma lei, adotada antes do delito se concretizar, enquanto aquela procede de lei ou decisão

casual que intervêm no ato, após sua ocorrência, ou seja, após a infração.

De forma conclusiva, pode-se aqui utilizar as palavras de Ost ao dizer que “alguns

veem a anistia uma forma de esquecimento forçado ou de conspiração do silêncio, outros, ao

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contrário, interpretam-na como ‘o perdão por excelência’, o gesto de misericórdia da

sociedade”. (OST, 2005, p. 173).

Adentrando, ainda, nos pensamentos de Ost, a anistia não deve ser confundida com

esquecimento, pois anistia não significa amnésia, “nenhuma sociedade se acomoda com seus

temores; tanto que todas elas elaboram mecanismos destinados, pelo menos parcialmente, a

desligar o passado e ligar o futuro” (OST, 2005, p. 38).

Utilizando-se das palavras de Hannah Arendt, François Ost traz duas instituições: a

promessa e o perdão. Entende o autor:

dois polos essenciais de regulação jurídica do tempo social: o perdão, entendido no sentido amplo, como essa capacidade que tem a sociedade para “soldar o passado”, ultrapassá-lo trazendo-o à tona, liberá-lo, rompendo o ciclo sem o fim da vingança e do ressentimento; a promessa, por outro lado, entendida em sentido amplo como capacidade que tem a sociedade para “creditar o futuro”, comprometer-se com ele através de antecipações normativas que irão balizar de um momento em diante seu desenvolvimento. (ARENDT apud OST, 2005, p.39)

O perdão deve estar associado à memória e não desvinculado dela, dando ênfase ao

esquecimento, pois neste caso será visto como um perigo para a sociedade, como se tem visto

através de algumas Leis de Anistia, inclusive a brasileira. Assim: Sem memória, uma sociedade não se poderia atribuir uma identidade, nem ter pretensões a qualquer perenidade, mas, sem perdão, ela se exporá ao risco de repetição compulsiva de seus dogmas e de seus fantasmas. Em troca, já o vimos, o perdão sem memória remete-se ao caos inicial dos cálculos de interesse ou nos leva à tendência confusa do esquecimento. Enfim, necessita-se de mais um esforço, coragem sem dúvida, para aceitar a prova da retomada da discussão assim que nos retenham os laços do hábito e o medo do desconhecido. (OST, 2005, p.42).

Nota-se, portanto, que a verdade deve ser apurada durante o período de tortura pelo

qual passou o país, assim como a ocorrência da corrupção também deve ser devidamente

questionada, impedindo, desse modo, que o país volte aos tempos fúnebres da tortura, bem

como evite a fácil estrada da corrupção. Espera-se que através do direito à verdade o Brasil se

reconcilie com seu passado.

6 CONCLUSÃO

O presente estudo teve como objetivo principal fazer uma análise da tortura e

corrupção, apresentando como podem ser similares tais figuras, sendo a corrupção a forma

pela qual a tortura se mostra nos dias atuais.

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Num primeiro momento o trabalho esteve associado a tecer comentário sobre o

conceito e características da tortura ocorrida no Brasil. Viu-se que a prática da tortura sempre

esteve presente na história do país. Com o estabelecimento do Estado Novo em 1937 e a

implantação da ditadura getulista, que duraria até 1945, a tortura ganhou contornos e

regulamentação institucionais.

Em que pese ser a tortura considerada crime contra a humanidade, muitos fatos e

acontecimentos daquela época encontram-se perdidos no tempo e na história do país, sendo

necessário o resgate desses episódios para se preencher a lacuna deixada na memória do

Brasil. Ademais, não se pode deixar que a tortura institucionalizada anos atrás, seja vivida nos

dias atuais através da corrupção. Figura que com roupagem nova, traz implícita os mesmos

malefícios da tortura.

A corrupção encontrada na sociedade contemporânea é muito similar àquela figura dos

anos de chumbo. Isto porque, utiliza-se dos fins para justificar os meios, tal qual foi

protagonizado pela tortura. Em ambos os estudos, ainda que visitados em épocas distantes, há

um envenenamento da conduta dos encarregados da Segurança Pública. As atividades dos

militares e políticos demonstram-se totalmente desvirtuada de sua real função.

Além disso, tem-se que o desempenho administrativo fica comprometido, uma vez que

na corrupção o dinheiro que deveria ser gasto com melhoria nas condições de vida dos

cidadãos era utilizado em prol da vantagem obtida pelos agentes públicos. Já com relação à

tortura o alto gasto para financiar as salas e porões onde eram torturadas as vítimas também

afetava o desempenho administrativo do governo. Isso sem falar na influência que tanto a

corrupção quanto a tortura fizeram na fase de crescimento econômico e nas relações

internacionais do país.

Outro aspecto comum às duas figuras situa-se na publicidade dos atos, haja vista que

em ambas tais atos vivem, ainda hoje, na clandestinidade. A procura pelos algozes e culpados

da prática de tortura, assim como pelos corruptos nos dias de hoje tornaram-se um dos

objetivos do governo deste século.

Percebeu-se ao longo do trabalho que as consequências deixadas pela tortura e

corrupção na sociedade atual são nefastas, sendo o silencio e o trauma de se remexer no

passado, algumas delas.

Todavia, o direito à memória e o direito à verdade se faz imperioso nesta nova época

da história do Brasil, uma vez que as lacunas deixadas no passado necessitam ser reescritas

pelo seu povo. Também é preciso que se cure das feridas do passado, lembrando-se dele e

imprimindo uma nova história para o futuro do país.

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Page 170: Justica de transicao vdd memoria e justica

O direito à memória não deve ser sacrificado ou prejudicado por disputas contrárias a

respeito de se repudiar ou se punir crimes contra direitos humanos, que a Lei da Anistia

considerou como uma página virada da história do Brasil.

O conceito da anistia deve ser cautelosamente estudado, porque a sociedade quer

descobrir a verdade que ocorreu no período de ditadura militar do país e, ainda que anistiado o

culpado, o direito à verdade deve ser apurado e resguardado.

Os acordos políticos nacionais não podem estar acima da defesa incondicional dos

cidadãos contra Estados que torturam. Lembrando, ainda, que a redação da Lei da Anistia, em

seu parágrafo segundo, é clara ao dizer que os benefícios da anistia não se aplicam aos

condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal.

Espera-se que, com a Comissão da Verdade instalada em março de 2012, apure-se as

atrocidades cometidas pela prática da tortura durante a ditadura militar.

Isto se aplica analogicamente aos atos de corrupção que aos olhos da sociedade não

estão sendo retratados de forma real e verdadeira. Não é trazida ao conhecimento do povo a

realidade dos acontecimentos, os reais envolvidos, todos os que se beneficiam de uma ação

imoral, ilegal e antiética, em prol da manutenção de um sistema, de um governo, de um poder.

Repete-se nos dias de hoje a presença da figura da tortura vivida durante a Ditadura

Militar no Brasil. Desta vez, em um molde diferenciado, através das vestes da corrupção. O

silêncio, a desmoralização da sociedade, a impunidade dos agentes agressores, o Estado como

partícipe, a violência contra os que buscam a verdade, a ausência de publicidade e, acima de

tudo, a negativa de memória e verdade sobre os acontecimentos, passam a fazer parte também

do período contemporâneo. E isso não se pode deixar acontecer. O Brasil precisa resgatar o

seu passado. O Brasil merece a verdade, assim como as futuras gerações. Aliás, isso é o que

se espera.

REFERÊNCIAS BETTO, Frei. A mosca azul: reflexão sobre o poder. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. COIMBRA, Cecília Maira Bouças. ROLIM, Marcos. Tortura no Brasil como herança cultural dos períodos autoritários. Revista CEJ. Brasilia, nº 14, ago.2001. COSTA JUNIOR, Ernani Salles. O tempo da constituição: lineamentos para uma teoria narrativa do direito à luz do pensamento de Paul Ricoeur. 2011. 109 f. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Direito, Belo Horizonte.

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Page 171: Justica de transicao vdd memoria e justica

FARIAS, Maria Eliane Menezes de. Por uma maior eficácia no combate à tortura. Revista CEj. Brasília, n.14. p.73-77, ago, 2001. GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia de Letras, 2002. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1997. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em http://www.onu.org.br/a-onu-em-acao/a-onu-e-os-direitos-humanos. Acesso em: 20 jun. 2012. OST, François. O tempo do direito. Tradução Élcio Fernandes; revisão técnica Carlos Aurélio Mota de Souza. Bauru: Edusc, 2005. RICCEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução Alain François. Campinas: Editora da Unicamp, 2007. ROUSSO, Henry. A memória não é mais o que era. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (orgs). Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996. SIRKIS, Alfredo. Os carbonários. Rio de Janeiro: Bestbolso, 2008. SZNICK, Valdir. Tortura: histórico, evolução, crime. São Paulo: Leud, 1998.

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Page 172: Justica de transicao vdd memoria e justica

CONSTITUIÇÃO DA VERDADE:

EFEITOS DA MEMÓRIA NO "GRANDE ACORDO" DA TRANSIÇÃO.

THE TRUTH CONSTITUTION:

THE MEMORY EFFECTS DURING THE “BIG AGREEMENT” OF TRANSITION.

ARTHUR MAGNO E SILVA GUERRA

Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG;

Doutorando em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas;

Professor de Direito Constitucional do Curso de Graduação e Pós-Graduação da Faculdade de Direito Milton Campos – FDMC;

Resumo: O presente ensaio irá debater sobre um dos cruciais pontos de fundamentação teórica e histórica do Direito à Memória e à Verdade no Brasil: a incidência desses “traumas” e “complexos” no texto Constitucional que lhe restaura a Democracia, especialmente, depois das as lutas políticas ocorridas, entre os anos de 1964 e 1985, contra a Ditadura Militar; mas sem ignorar outros caminhos de acordos traçados, passando por uma transição pacífica de um Regime Político ao outro. Com um método de análise histórica bibliográfica e de notícias da época, serão enfrentadas as conexões entre os acontecimentos ocorridos e o aparecimento de alguns institutos, justificados, especialmente, pelo temor de retrocesso aos tempos de outrora, ensejando o aparecimento de institutos, v.g., como direitos individuais (contra tortura, liberdade de expressão, liberdade de imprensa), Imunidades parlamentares e um estatuto próprio aos militares.

PALAVRAS-CHAVE: Constituição; Memória Coletiva; Ditadura Militar; Estado Democrático Brasileiro.

Abstract: This paper will discuss one of the main axes of historical and theoretical fundamentation of the right to memory and truth in Brazil: the incidence of these "traumas" and "complexes" in the constitutional text which restores the Democracy, specially, after political clashes, against Military Dictatorship, occurred between the years 1964 and 1985; but without ignoring other paths form agreements traced, passing through a peaceful transition, from authoritarian past to democratic government. With a method of analyzing historical literature, doctrine and news of the that time, in it will be facing the connections between the historical events and the appearance of some institutes, justified, especially for fearing the old days, enabling the emergence of some institutes, as individual rights (against torture, freedom of speech, freedom of press), legislative protections and the military prerogatives.

KEYWORDS: Constitution; Collective Memory; Military Dictatorship; Brazilian‟s Rule of Law.

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1. INTRODUÇÃO: MEMÓRIA E HISTÓRIA CONSTITUCIONAL

A Constituição brasileira de 1988 é frequentemente apontada como um

instrumento de libertação democrática, resultante de movimentos de forte adesão popular pós-

ditadura militar. Assim, recebe diversos desígnios, como “Constituição Cidadã”, “do Futuro” e

“de vanguarda”. Ao analisar o texto, contudo, é possível perceber a incidência de influência

desse “período de trevas” da Democracia pátria, decorrente, especialmente, de um “grande

acordo”, formulado entre os que, à época, estavam à frente da transição de poder. Mas a

exposição desses institutos decorre, sobretudo, de uma incidência memorial que torna o texto,

ademais, num instrumento repositório de sintomas, aspirações, máculas e esperanças de um

povo, até o momento de sua promulgação, orpimido e ansioso por liberdades.

Para compreender esses efeitos no constitucionalismo brasileiro e suas

“inspirações”, faz-se necessária uma análise preparatória acerca da noção de “memória”, em

seus diversos aspectos e aparições. Preliminarmente, é possível dizer que diversos institutos

servem como mecanismos de defesa traumática, a fim de que atrocidades do passado não se

venham a repetir; mas, ao mesmo tempo, é possível notar a presença de “blindagens” e

proteções desarrazoadas que coincidem com interesses dos antigos gestores do poder

ditatorial.

Os institutos do Direito Constitucional brasileiro atual e a reflexão atual sobre

sua inclusão no texto da Constituição Federal de 1988 são pontos cruciais que se analisam no

presente estudo. Por isso mesmo, a essa altura, entende-se importante a conexão entre a

memória coletiva e a história constitucional brasileira.

1.1. Compreensão da memória e do esquecimento: direito, imposição ou conseqüência?

A concepção de memória, atualmente analisada, busca libertar-se da mera

noção de “imaginação”, de “transcendência”, com um sentido falacioso, fantástico, fictício ou

irreal. Paul Ricoeur é um dos que compreeendem a memória, como a capacidade de poder

alcançar o passado (“fazer-se remeter”), através de dados que estão “armazenados”, de certo

modo, na mente humana. As reflexões acerca da ars memoriae (arte da memória) são bastante

importantes, no que tange ao referencial de algum dado passado (RICOEUR, 2007).

Buscar conceber, no hoje, algo que é dado passado (inexistente no presente)

carece de uma análise filosófica, quando não, psicológica, do suejito que usa de sua memória,

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par recordar ou retomar algo. Nesse intento, calha a compreensão de Paul Ricoeur, que inicia

sua análise, a partir do pensamento da Filosofia Antiga1, passando, mais adiante, por Husserl,

até alcançar, pelas mãos, especialmente de Bergson, a “vertente contemporânea”. Para

Ricoeur: “... não temos nada melhor que a memória para significar que algo aconteceu,

ocorreu, se passou antes que declarássemos nos lembrar dela” (RICOEUR, 2007, p. 40).

A memória pode ser encarada não somente como uma ferramenta de guardar dados mnemônicos, mas, sobretudo, como uma capacidade de (re)significação das coisas e de si mesmo; trata-se de uma representação das coisas já apresentadas anteriormente para si, uma possível reconfiguração de tais dados guardados na memória que são despertados pela rememoração. (KUSSLER, 2009, p. 1929)

Para “relembrar”, é necessário exercer a ars memoriae (esforço) de buscar o

conhecimento anteriormente obtido e que está, agora, guardado na memória. Daí, porque

memorizar é, a um só tempo, uma forma de poupar esforço, já que o sujeito não terá que

reaprender algo; bem como, uma maneira de evitar que caia em esquecimento, pela falta de

memorização.

Com fulcro no autor, é que se pode dizer que, para alcance da memória não é

suficiente a busca de alguma imagem do passado. Essa, muitas das vezes, é deturpada ou

falseada. Melhor que se lha compreenda como a busca de algum dado “guardado”, cuja

representação, tão somente, é desvelada. “Memória não somente se liga à imaginação

enquanto fantasia, mas enquanto representação de coisas reais que, de fato estão aí.”

(KUSSLER, 2009, p. 1929)

Outro aspecto que merece destaque, no que tange à abordagem da memória, é o

fato de que ela pode ser entendida como a “defesa do esquecimento”2. Nesse sentido,

desenvolve-se para assegurar os dados na memória com os exercícios que visam garantir que

os fatos trágicos do passado (e não as “lembranças ruins”) não venham a ocorrer novamente.

Afinal de contas, “o lembrar-se é uma experiência de (re)significação, (re)conhecimento,

(re)criação das coisas e de si”. (KUSSLER, 2009, p. 1929).

1 Nela, por sinal, já é possível detectar debates, acerca da memória. 2 Ricoeur aborda, dentre seus estudos, a história sob uma perspectiva filosófica. Isso não se confunde, porém, com a “Filosofia da História”. Em Histoire et vérité, de 1955, ele busca definir a natureza do conceito do que seja a verdade em História, diferenciando a objetividade dessa ciência da objetividade nas Ciências Exatas. Posteriormente, o autor passa a centrar atenção em questões culturais e históricas, a partir de uma perspectiva fenomenológica e hermenêutica. É a partir daí que a memória e a memória cultural em La mémoire, l'histoire, l'oubli (op. cit. 2000) passam a ser a atenção primordial de Paul Ricoeur.

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A polêmica trazida por Paul Ricoeur centra-se, especialemente, no fato de

mencionar o perdão na História. Isso, porque discutir a imposição de limites para a memória

social não significa, necessariamente, vangloriar o esquecimento.

“Perdão” não é sinônimo de “Impunidade”. Para que se tenha idéia, na lição do

Paulo Renato Silva que, abordando procesos históricos traumáticos, aborda o Holocausto3, nos

seguintes termos:

Retornando ao exemplo do Holocausto, o debate cresce, pois responsáveis pelo genocídio foram julgados e punidos e a maior parte dos que conseguiram fugir já faleceu. Assim, o amplo espaço destinado ao Holocausto, por exemplo, nos currículos escolares alemães, não representaria uma descrença na capacidade de discernimento dos mais jovens, como se naturalmente fossem propensos a um discurso como o nazista? (SILVA., 2010, p. 342)

A memória em eventos dessa natureza, acaba servindo como benchmark, para

as condutas futuras não incorrerem nos mesmos erros e desvios do passado. Paulo Renato

Silva revela o diálogo entre Martin Walser, esquerdista, e Jacy Alves de Seixas: lembrar o

Holocausto representa a “instrumentalização da vergonha com fins contemporâneos”

(WALSER apud SEIXAS, 2000, p. 76). Completa Silva, dizendo que essa lembrança “foi

apropriada para objetivos alheios, particulares, não necessariamente relacionados ao ocorrido.”

(SILVA, 2010, pp. 342-343)

A partir daqui, importa destacar a “memória coletiva”. Se é possível discernir

entre uma idéia de “memória quente” (que é coletiva) e uma “fria” (a história), pode-se dizer

que a história é uma seleção de assuntos em que há um distanciamneto. No caso da memória

coletiva não há essa seleção, porque ela é experimentavel. Ela se traduz como a identidade de

um povo-nação.

Mencionar a “ditadura brasileira”, por exemplo, significa abordar a memória

coletiva; e não a história em si. Traduz-se como a identidade brasileira, dentro da qual o povo

– ou sua nação – é formado. Como visto acima, a identidade do alemão ainda é formatada na

Segunda Guerra Mundial. Por óbvio que o sujeito alemão se sente ofendido se for chamado de

“nazista”. Isso, ainda, é-lhe latente, donde se conclui que a memória coletiva é passional.

3 Cf. a propósito: SILVA, Paulo Renato. Processos históricos traumáticos: deve haver limites para lembrá-los? Disponível em <http://unilahistoria.blogspot.com.br/2011_04 _01_archive.html>. Acesso em 12 abr. 2011.

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Para que se tenha uma idéia, um pouco mais apurada ainda, de que o saber

selecionável, filtrado é histórico e distanciado, basta analisar, para os brasileiros, o epísódio da

“Guerra do Paraguai”. Esta não existe mais.

Daqui, surge a necessidade de perceber que “toda memória é coletiva”, embora

alguns contestem essa noção, como se cada indivíduo não fosse capaz de pensar

individualmente. Ora: em verdade, toda memória é temporizada, está dentro de determinado

tempo. A memória do sujeito é, sim, um processo interativo. Existe, ainda, uma memória

coletiva, derivada de uma relação. Toda memória é social. É que, aos poucos ela se vai

amoldando aos conceitos coletivos.

No momento em que se iniciou e transcorreu um grande conflito armado entre

dois países (Inglaterra e Alemanha), no séc. XX, aqueles que ali estavam não perceberam

tratar-se da “Segunda Guerra Mundial”. Só depois é que isso foi “desvelado”. Naquele

momento, por exemplo, Hitler não era um tido como um “monstro”... Até porque, não se

conheciam, ao certo, os campos de concentração, as câmaras de gás, as experiências científicas

com seres humanos, o Holocausto, como um todo.

A memória coletiva vai unificando entendimentos e contaminando a forma de

pensar. Se hoje, o auge das discussões sobre a consolidação da Democracia brasileira se dão,

especialmente, através da repulsa a um recente período de ditadura militar, vivida nas décadas

de 60 a 80; certamente, chegará o momento em que esse “Golpe Militar” será discutido no

Brasil, como, hoje, discute-se a “Guerra do Paraguai”. Esse espaço passado se vai

homogenizando, assim como acontece com a própria memória familiar.

Disso decorre a impossibilidade de se impor o esquecimento, de cima para

baixo, como algo compulsório e instituído pelo Estado ou por governantes temporais. O

esquecimento, muito menos, é um processo inevitável; é, muito mais, uma opção ou, até

mesmo, um direito.

Contrario sensu, entender o esquecimento não como um direito, mas como

dever, traduzir-se-ia na repetição incessante da experiência lembrada, aos indivíduos e grupos.

“A memória viraria uma „prisão‟. O nazismo, por exemplo, não se alimentou do ressentimento

que se propagou entre os alemães após a derrota na 1ª Guerra Mundial?” (SILVA, 2010, p.

343-344).

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[...] Trata-se um debate antigo, que se articula em torno de dois pontos principais. O ressentimento pode unir um grupo e ajudá-lo a se afirmar? Ou o ressentimento paralisa os indivíduos e os grupos? O ressentimento, quando exteriorizado, ajuda a superar ou alimenta ódios? Nietzsche já destacava a necessidade de equilíbrio entre a memória e o esquecimento dos ressentimentos. (SILVA, 2010, p. 343)

Uma parte da memória tem que ser esquecida... É um “direito a esquecer”. Se,

de um lado, o “esquecer” é um direito, “lembrar” é igualmente importante. Para o sujeito

viver, não lhe é possível lembrar tudo. Assim que, para construir uma sociedade, ao mesmo

tempo, seus sujeitos têm que esquecer e lembrar. Lembra-se de tudo que vem na mnesis,

sabido que os indivíduos possuem, também, a anamneses (construir uma memória que tem que

ser lembrada). Para que fatos sejam lembrados com maior frequência e acionados do interior

mental com maior facilidade, é que os “símbolos” e “mitos” são conclamados, para

“concretizar” eventos, em torno de determinada ideologia ou intenção política.

Para que se tenha uma idéia, cumpre destacar o processo de Independência do

Brasil. Ora... Sabe-se, com perfeição que, ao contrário do que doutrinam os livros

introdutórios de História, nas Escolas infantil e fundamental, a Independência do Brasil não se

deu, estritamente, no dia 07 de Setembro de 1822... Esta data, talvez, seja o resultado de uma

série de fatores que lha precederam; bem como não pode funcionar como o último liame entre

um status anterior e o que lhe sucedeu. O processo emancipatório pátrio e de instituição de um

Estado independente brasileiro decorreu de um acúmulo de lutas políticas, guerrilhas e

movimentos que pruriram em diversas regiões do território nacional (e, não, apenas, às

“margens do Ipiranga”): expulsão dos holandeses (séc. XVII) e a “Batalha dos Guararapes”,

na Insurreição Pernambucana; Guerra dos Mascates, Sabinada, Inconfidência Baiana; Revolta

de Vila Rica, a Conjuração Mineira (Inconfidência Mineira), a Revolução de 1817, dentre

tantos outros acontecimentos rebeldes foram contribuintes inevitáveis ao desemboco da

Independência brasileira.

Enfim, precisamos enxergar a independência brasileira, não como um resumido acordo político, mas como um momento de grande relevância, pois a luta por uma nação livre, ja estava na pauta de alguns grupos políticos e no discurso de outros intelectuais que viviam em nossas terras, assim, ao contrário do que se propaga, nossa independência não foi criada pela conveniência da família real portuguesa, mas por conjunturas sociais, políticas e econômicas anteriores ao heróico grito de independência proferido por D. Pedro. (BARBOSA, 2011)

Élcio Fernando (2010, s.p.), especialista em Marketing e Comunicação Social,

mostra como os “símbolos” revelam essa carência de mitos em torno das reflexões. Sobre a

simbologia em torno da narrativa do “07 de setembro”, “Dia da Independência” ou “Grito do

Ipiranga” o autor chama atenção:

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“O que marca o ser humano é justamente sua particularidade de possuir e organizar símbolos que se tornam linguagens articuladas, aptas a produzir qualquer tipo de narrativa” (ROCHA, p. 4. 1996). A essas narrativas são somados os mitos, ou seja, alegorias narradas que externam verdades mas escondem algo. Os mitos podem até mesmo representar o pensamento de uma sociedade, ainda conforme Rocha (1996). Consequentemente, se o mito é construído com representações fantasiosas ou não, do pensamento humano, na propaganda (propagare: propagare uma idéia ou ideal) também há, e muito. Na verdade o mito representa uma das bases do discurso da propaganda e tal, como sua definição, também foi representada em nosso país, com a utilização mais veemente de símbolos (cores, música e linguagem) após a Independência. Até mesmo na composição do Hino da Independência havia o mito do poder atribuído à D. Pedro I, em evidente articulação política, e representada na letra de forma alegórica.

1.2. A reprogramação do direito: análise da compreensão de François Ost

O Direito não é ciência estática, infalível, diante das novas conjunturas e

anseios sociais. Ciência social aplicada que é, não tem o condão de regular o comportamento

humano; mas, pode, sim, ser reprogramado, o tempo todo, para o futuro. Para compreender a

idéia de reprogramação, interessante a abordagem do estudo de François Ost (2001), em “O

Tempo do Direito”. Na obra, o filósofo belga analisa a relação existente entre “Tempo” e

“Direito”, introdutoriamente, por meio de recorrência à Mitologia Grega, à Filosofia e às

Ciências Sociais e Políticas. Mais adiante, apresenta a sedimentação que o tempo confere à lei.

Esta, por seu turno, delineia caminhos norteadores do próprio futuro, ampliando a discussão

histórico-social a respeito das convenções temporais e legais que fundamentam e dão as

características sutentáculas de cada civilização.

O autor introduz sua obra, narrando a história de Krónos. A recorrência existe

para demonstrar o aspecto negativo do tempo, já que, em síntese, quando Krónos se coloca na

posição de “Deus-Tempo”, separando o Céu (Urano, seu pai) da Terra (Gaia, sua mãe),

bloqueia passado do futuro. A simbologia se traduz no corte do elo com o passado, através da

castração de seu pai; seguido do bloqueio do futuro, na medida em que engolia todos os seus

filhos, com exceção de um que se lhe escapou desse destino: Zeuz (OST, 1999).

Tanto Urano (pai), quanto Krónos (filho dele) chegam ao poder de governar,

utilizando-se da violência e, especialmente, pela negação do tempo. Sempre que buscaram

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impedir que seus filhos se desenvolvessem4, acabaram sendo punidos por eles mesmos, de

forma bastante semelhante.

É a conseqüência na própria história da humanidade: os responsáveis por

comportamentos violentos e arbitrários são vítimas de idêntica violência: “o tempo dos tiranos

esgota-se num presente estéril, sem memória nem projeto”. (COUTO, 2007).

Não se pode perder de vista, dessa maneira, que, do mesmo modo que na

Mitologia, Zeus destitui a tirania de seu pai (Krónos, o Deus do Tempo) e, com isso, rompe a

cadeia de violência, é possível, nas sociedades, que os indivíduos invertam a não aceitação do

tempo. Ost (1999) exemplifica com a “Comissão da Verdade e Reconciliação”, da África do

Sul, que “promove a anistia garantindo a possibilidade e a esperança em desenvolver um

futuro de paz, mas sem olvidar o passado”. Exemplifica, mais, manifestações de não-aceitação

do poder do tempo na atualidade:

a) o passado que não passa: em países como a Ruanda onde a ocorrência de

genocídio impune compromete qualquer esperança de reconciliação;

b) o presente eternizado e a ausência do futuro: os países satélites da União

Soviética.

c) o futuro abafado: pela proliferação de medidas jurídicas incapazes de

disciplinar o futuro de forma segura. A agitação civil dos jovens excluídos na França (que

buscam o direito a ter direito).

A Mitologia traz mais contribuições à reflexão de Ost... Lembra que Zeus e

Themis têm três filhas (as “Horai”, ou seja, horas), denominadas, na vertente política

Eunomia, Diké e Eirenie, respectivamente, a disciplina, a justiça e a paz. A metáfora

mitológica tem uma razão de ser. Especialmente, se se buscar compreender a simbologia das

Horais:

4 Urano devolvia os filhos que nasciam ao interior do ventre materno de Gaia. Esta, incitou o filho mais novo, Krónos, a castrar o pai. Sendo bem sucedido, esse filho toma o lugar do pai. Por sua vez, Krónos, quando assume o poder, escuta em uma profecia da “Idade Dourada” que um de seus filhos lhe tomaria o poder. Para tanto, passa a se alimentar de todos eles quando nasciam. Sua esposa, Reia, porém, cansada disso, dá-lhe de comer, no lugar de um de seus filhos, uma pedra enrolada em faixas, fazendo-lhe crer que eliminara mais um de sua prole. Contudo, esse filho cresce, desenvolve-se e lidera uma revolta que deu fim ao reinado de seu pai. Esse filho era exatamete Zeus, considerado, na Mitologia Grega, o “Senhor dos Céus”.

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As Horais personificavam as estações e, também, simbolizavam as virtudes cívicas. Elas expressam o início de um novo tempo: dialético, aberto − o equilíbrio das estações, a pluralidade das estações ou do tempo, a alternância dos períodos, a harmonia da natureza, simbolizando uma vida social portadora de sentido − rompendo radicalmente com o tempo monolítico e violento de Cronos. As Horas eram originalmente deusas das estações que asseguravam o curso harmonioso de tudo. (COUTO, 2007)

Daqui, a percepção da relação entre o tempo e a justiça ou, até, entre a

„temperança‟ (sabedoria do tempo) e „justiça’ (a sabedoria do direito). Logo, a obra

desenvolve a contribuição dessa relação, para o bom governo.

1.2.1. Idéias centrais do autor

A contribuição especial, de Ost (1999) para o presente estudo é a configuração

de três idéias primordiais que ora se passam a analisar. São essenciais, para a compreensão

final, acerca de como a Constituição brasileira de 1988 não se descola dos fatos antecedentes,

dos dogmas político-jurídico vigentes no entorno de seu surgir, mas, essencialmente, de outros

elementos, muita vez, omitidos na história perfunctória. Assim, Ost, em “O tempo do direito”,

explica:

a) O tempo é uma “instituição social”; não um fenômeno físico ou uma

experiência psíquica. Isso, se concebido o tempo como fenômeno físico, no sentido da singela

sucessão do dia e da noite, o curso das estrelas e o envelhecimento dos seres vivos.

O tempo físico tem a seu favor sua evidência irrecusável: a do movimento dos astros no céu a s dos ritmos biológicos em nossos corpos, sugerindo de forma irresistível a imagem de um tempo exterior e homogêneo, espaço de vasto continente formal enquadrando qualquer espécie de acontecimento – como um dado englobante no interior do qual seríamos mergulahdos e do qual nos caberia somente recortar o desenvolvimento em períodos fixos. (OST, 2001, p. 22)

Já o tempo como uma experiência psíquica (experiência subjetiva de uma

vivência individual) faz entender que “o curso do tempo depende da experiência íntima e da

consciência individual” e é por isso que “um minuto do relógio, pode ser um tempo

interminável ou apenas um instante fugaz” (COUTO, 2007).

Ao entender o tempo como instituição social (tempo “sócio-histórico”), o autor

o compreende como “produto de construção social denominada „temporização‟. Logo, o

tempo é “uma questão de poder”, uma “exigência ética” e um “objeto jurídico”. O tempo

“sócio-histórico”, para OST (2001, p. 23):

É antes, uma operação sempre em curso de elaboração – daí a utilização do verbo “temporalizar” para dar conta dele. Sem dúvida, tendemos a objetivar e exeriorizar a medida

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que assim construímos, (daí o sentimento de que a hora não é construída, mas dada), mas isso não autoriza, em consequência que se sustente, como fazia Kant, que a síntese desse modo operada seja inata ou a priori: muito antes disso ela é o fruto de um aprendizado histórico muito longo e de elaborações diferenciadas de uma sociedade para outra, cada sociedade desenvolve seu “tempo próprio” [...]

“O tempo não é exterior às situações, ele participa da sua própria natureza,

assim, neste contexto podemos, por exemplo, esperar, tomar, perder, passar, encontrar, matar

ou ganhar tempo” (COUTO, 2007). Assim sendo, a segunda idéia é de que o Direito contribui

para a instituição do social: além de leis e sanções é um discurso que exprime o sentido e o

valor da vida em sociedade.

b) A idéia de que o Direito contribui para a instituição do social: além de

leis e sanções é um discurso que exprime o sentido e o valor da vida social.

François Ost (2001) entende que Direito vem da “tradição”. Mas os indivíduos

têm grande habilidade de “mudar de tradição”. Assim, é que se dá fundamento à idéia de que é

certo que, se constitucionalmente válidos os Princípios “da legalidade” e “da anterioridade da

lei penal”; a “Lei de Anistia”, igualmente, encontra fundamento no ordenamento supremo.

Contudo, hodiernamente, seria possível “mudar a tradição”, para uma outra,

voltada à “tradição dos direitos humanos” e, assim, abandonar a tradição anterior.

c) Existe uma correlação entre temporalização social do tempo e

instituição jurídica da sociedade. Isso, porque o direito acaba por interferir na forma de

criação do tempo (“temporalização”) e, por sua vez, o tempo determina o elemento fundante

(força instituinte) do direito. Para OST (2001), “o direito temporaliza ao passo que o tempo

institui”.

COUTO (2007) acresce que do mesmo jeito que a “temporalização” foi

instituída pelo direito, surge a “destemporalização”, ou seja, a saída do tempo comum

instituinte.

1.2.2 Anistia, Memória, Perdão e Esquecimento

Quando o Direito institui, ele atua, a um só tempo, como rompimento e ligação

com o tempo. Uma vez que as forças instituintes (o tempo) moldar-se-ão às formas instituídas

(o direito) e estas, por seu turno, adequar-se-ão, em cadeia, com o desenvolvimento social (ao

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passar do tempo), “pedirão para ser substituídas por novos modelos instituintes” (COUTO,

2007). É dessa conjugação que se pode extrair e alcançar: a) a “temperança” que é a sabedoria

do tempo; b) a justa medida da continuidade; e a justa medida, também, da mudança. Tudo

isso vai possibilitar o equilíbrio das relações sociais.

1.3. As quatro categorias de tempo jurídico de François Ost

Assim, ainda com sustento na tese de François Ost (2001), observam-se quatro

categorias de tempo jurídico instituinte (normativas e temporais), duas delas primeiras,

remetenes ao passado; as outras duas pro futuro: memória, perdão, promessa e

requestionamento.

O primeiro tempo, ligado ao passado, é a Memória – tem missão precípua de

ligar o passado, com asseguramento da identidade histórica: registro, fundação e a

transmissão.

A memória lembra que existe “o dado e o instituído”. Por isso mesmo, cabe ao

direito o papel de instituir uma memória da coletividade, entendendo-se esta memória coletiva

como verdadeiro elemento essencial à própria coletividade. “Instituir o passado”, com a

respectiva certificação dos fatos vivenciados, garantindo “a origem dos títulos, das regras, das

pessoas e das coisas” é importante para que se evite o risco da anomia. Dessa maneira, a

sociedade encara seu passado composto, escrito a partir do presente (OST, 2001, p. 49-50):

Esta missão de guardião da memória social foi, todos os tempos, confiada aos juristas. Não tanto, ou não somente, a título de arquivistas ou notários, conservadores dos atos passados; não tanto, ou não somente, como cérebros ciumentos das portas da legalidade; não tanto, ou nçao somente, como servidores apressados dos príncipes: o direito, bem sabemos, nunca causou repugnância, nem à reescrita dos textos, nem ao deslocamento das fronteiras do proibido, nem mesmo à fabricação de novas legitimidades. Muito mais fundamentalmente os juristas assumem seu papel de guardiães da memória, lembrando que, aravés mesmo de todas operações de deslocamento, opera alguma coisa como uma lei indisponível que foi utilizada num dado momento do passado.

Fica claro que a instituição de algo “novo” pelo Direito, não terá um aspecto,

necessariamente, “inédito” e que a fundamentação da lei advém de algo já vivenciado,

desconhecendo-se algo desvinculado do que já instituído. Contudo, se hoje se percebe uma

“decadência” da memória, isso se deve ao fato do excesso de informações, aliado ao declínio

da memória coletiva em detrimento da individual.

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O segundo aspecto temporal relacionado ao passado é o Perdão. Este desliga o

passado inovando o sentido das cosias. (OST, 2001, p. 137-147). As perguntas a serem feitas,

nessa superação, são “como desligar o passado sem aboli-lo? Como ultrapassar a vingança

sem afundar na injustiça e na desonra?”5

A idéia de realização da justiça, dessa maneira, estaria relacionada,

inicialmente, às de “vingança” e da própria “Lei de Talião”. Mas assim não pode permanecer

(rápida e demasiadamente imediata), vez que traduziria, apenas, uma pretensão mínima do que

seja justiça. Não seria capaz de “elevar-se acima do cara a cara das reivindicações opostas”, no

dizer do OST (2001, p. 139-140):

Se cada um pode, com todo direito, invocar a justiça de seu lado sem elevar-se á terceira instância, quem poderia separá-los, onde está a diferença entre esta ustiça e a violência nua?

[...] Uma saída completamente diferente para o conflito, de uma novidade radical: a justiça, enfim, substitui a vingança, a deliberação ultrapassa a violência, enquanto o tempo da memória é substituído pelo perdão.

A idéia de perdão está ligada à inversa de memória e o inverso da tradição. No

perdão se opera “outra forma de interpretação do passado”. Contudo, no que tange à anistia,

esta se liga ao esquecimento, uma espécie de “mal necessário”. Entendida por OST (2001, p.

171-172), como “a mais importante e a mais controvertida”, dentre as figuras do perdão social,

está o mecanismo das leis de anistia. Sobre ela, aponta:

Considerada como uma medida de exceção que inspira o silêncio à lei penal, a anistia é uma prpatica frequente de múltiplas faces. Encontramos de fato, formas de anistia menores (anistia das penas) e formas maiores (anistia dos fatos); ora ela intervém nas circunstâncias políticas específicas como uma medida puramente circunstancial, ora, ao contrário, será o caso de anistias periódicas e tradicionais pronunciadas por ocasião de aniversários, festas nacionais ou eleições presidenciais. (OST, 2001, p. 172)

Não... Não se trata, legitimamente, de um “esquecimento forçado”, de “perdão

deliberado”, “conspiração do silêncio” ou “gesto de reconciliação nacional”... A anistia é não

deixar que o direito exista. E o risco está no fato de aliá-la à noção pura de singelo

esquecimento.

5 Na busca das resposatas a esses questionamentos, OST (2001) remete à história das Erínias, “deusas de longa memória” (p. 138). Em seguida, o autor traz crítica à tradição (“fazer tábula rasa do passado”?) e defende que é necessária uma discussão entre outras tradições num apropriado espaço público. (p. 146) A questão já não é “liquidar a tradição, mas submetê-la a um processo permanente, crítico e reflexivo, de revisão que, ao mesmo tempo, lhe garanta uma consciência mais exata da sua singularidade e lhe organize uma abertura dialógica com as outras tradições num espaço público de discussão – científico, artístico ou político – que continua em grande parte a se construir”. (p. 147).

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Os exemplos históricos da Truth Commission, no Chile (1990), em El Salvador

(1991), bem como da „Comissão da Verdade e Reconciliação‟, na África do Sul, ao fim do

Apartheid, demonstram como se procurou estabelecer os fatos e atos ocorridos em regimes

pretéritos, para, em seguida, não visionar a mera punição dos culpados e (ir)responsáveis; mas,

para, puramente, trazer a verdade de seus direitos: “Assim, ninguém ignora o que aconteceu e

quem aí tomou parte; o passado não é manipulado e o silêncio não é imposto à história.

Acontece apenas que, por razões superiores, o perdão é concedido aos responsáveis, pelo

menos em certas condições” (OST, 2001, p. 176).

O perdão está, por conseguinte, depois do direito, além dele. Ao perdoar,

também há um processo de justiça cumprido, porque houve a exata caracterização da vítima e

do culpado. O perdão se destaca da ordem jurídica, não sendo uma medida coletiva, até

porque, ele não possui mecanismos para ser imposto. Perdão deve ser entendido como uma

aposta no futuro. O importante para que haja justiça é a possibilidade de se ter o

reconhecimento de uma vítima e do culpado. Depois – aí já é outra questão – ele deverá pagar

a pena tipificada ou ser perdoado.

Para OST (2001), a sanção é um tipo de perdão. Há uma dose dele dentro dela.

A punição separa a pessoa humana do seu erro e a faz sentir a dor, no que é possível punir, a

fim de redignificar a pessoa humana. No momento em que o sujeito está no Tribunal, na

humilhante posição de „réu‟, de alta pressão, diante da esposa, mãe, filhos é o centro de todas

as atenções. Ele está sendo exumado, tendo sua dignidade sendo retomada, em certa medida.

Mas é somente quando vem a sanção que ele está sendo perdoado de fato.

Agora ele sabe que tem algo a pagar e readquirirá sua integridade e

contextualização social (cidadania). A sociedade mantém o estigma; mas ele é um sujeito que

não mais precisa viver na fuga. Existe, de fato, uma “remissão” e – por que não dizer? – uma

redenção? Assim, é importante que a vítima seja reconhecida como vítima e, portanto,

reconheça-se a culpa. “Anistiar” é confundir vítima e culpado. Seria um “mal” muito grande,

porque os valores se acabam perdendo. O que é certo e o que é errado se confunde.

O direito não é capaz de perdoar (ele é público). Ele não é a própria vítima e

esta é a única pessoa que pode perdoar, de fato. Se um juiz perdoa, sua conduta se traduz em

traição à vítima. Se ele age como jurista, ele trai o direito. Assim, que “o perdão é o futuro da

memória”.

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O primeiro aspecto temporal remetente a futuro é a Promessa. Esta liga o

futuro pelos compromissos normativos.

OST (2001, p. 191) caracteriza Prometeu como rebelde e instituidor a um só

tempo, quando recorre, novamente, a episódios da Mitologia Grega, para raciocinar. Descreve

como o fogo celeste é furtado (o rebelde) e entregue aos homens (o instituidor), com uma

intenção louvável: colocar a história e movimento, mediante lições passadas, sobre como

manusear o fogo e como ficar ereto. Disso, decorre a bifurcação do tempo prometêico: o

tempo da rebelião e o da instituição.

A promessa tem um significado voltado à noção de uma figura dialética de

mediação, capaz de possibilitar ao sujeito subsumir suas intenções voluntárias à luz de

princípios éticos prévios. Só assim, é que se mobilizam e regeneram estruturas preexistentes

de cooperação. “Cada promessa [...] dá vida a uma confiança preexistente sem a qual, no

entanto, ela nada seria”. (OST, 2001, p. 204).

Por seu turno, a concepção de Estado de Direito pressupõe o “respeito desta

confiança mútua”, pois que, no Rule of Law prevalece um “contrato tácito”, em que se acorda

que o respeito à autoridade dos governantes só se legitima, na medida em que esses respeitem

as regras por eles mesmos adotadas. (OST, 2001, p. 205).

Por fim, o 4° Tempo (segundo que remete ao futuro) é o do Questionamento.

Este desliga o futuro com um objetivo específico de assegurar as revisões necessárias para

que, na hora da mudança, as promessas sobrevivam. Neste ponto é possível perceber uma das

linhas mestras da obra como um todo: a noção de que “a temporalidade que se absolutiza é

virtualmente desinstituinte; isto também é válido para o tempo do questionamento”: libertado

da dialética que o liga à memória e à promessa, em breve se torna inútil e se encerra num

instantâneo insignificante (OST, 2001, p. 307). Mas como possibilitar questionamento, sem

que isso signifique, necessariamente, ruptura com promessas já feitas ou a credibilidade no

momento de se fazer promessas?

A resposta reside na epistemologia da incerteza que possibilita a extrapolação

da racionalidade do universo a partir de raras “ilhotas de certeza”. Em verdade, as leis

universais da natureza podem explicar o movimento dos pêndulos e predizer a trajetória das

bolas de canhão. Contudo, não são capazes de desentrelaçar sistemas abertos que se conduzem

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de forma complexa e dão provas de autoorganização. Só excepcionalmente o real se revela

racional (OST, 2001, p. 310).

A ordem é, pois, excepcional: o caos é a regra e quando surgem localmente ilhotas de informação e de ordem no fundo de desordem e de entropia, é o acaso, mais de causalidade, é que o princípio de emergência destas formas de organização superior.

Dessa maneira, é que se pode dizer que a produção de conhecimento submete-

se a um movimento permanente, exigido pelo questionamento, assim como acontece com o

tempo do mundo que se torna incerto.

Pelo que se percebe, o OST, ao concluir sua obra traz três palavras que balizam

seu caminho: compasso, presente e responsabilidade, donde confessa que o livro se dedica a

tomar a „medida‟ do Direito (2001, p. 399). De fato, o que se percebe é que o direito se

mostrou „medido‟ em quatro sentidos temporais, que vão desde a norma até o tempo.

Mas, como “ser responsável pelo tempo”? Hoje a responsabilidade assume uma

forma muito explícita: o “desejo de um futuro durável”. Assim, uma vez que do passado são

herdadas instituições justas mas perfectíveis, resta à atual sociedade transmitir esses dados

para que sejam reconstruídos sem cessar: é essa a responsabilidade.

2. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E A “HERANÇA SEM TESTAMENTO”

2.1. Antecedentes históricos desvelados

Abril de 1964: a Democracia brasileira se vê assolada por um “Golpe Civil-

Militar” que encerrou a „República Populista‟. Uma nova ordem político-institucional foi

instaurada, a partir da atuação de um Governo Militar que, em sua convicção instaurava a

“contra-Revolução em defesa da Nação brasileira. Tanto assim, que as palavras de

„encorajamento‟ daquele que, futuramente, seria Ministro do Exército do governo do General

Figueiredo (1979-1985), como que em um rescaldo de consolo e de afago contra retaliações:

“Estaremos sempre solidários com aqueles que, na hora da agressão e da adversidade,

cumpriram o duro dever de se opor a agitadores e terroristas de armas na mão, para que a

Nação não fosse levada à anarquia” (USTRA, 2006, p. 07).

O autointitulado „Comando Supremo da Revolução‟, formado pelo General

Costa e Silva, pelo vice-almirante Augusto Hademaker e pelo brigadeiro Francisco de Mello

editou, aos nove dias do mês de abril o Ato Institucional de n° 01 (num total de 17), declarou-

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se novo Governo brasileiro, embora, em Brasília existisse outro constituído, sob comando do

Presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzili (VILLA, 2011, p. 93).

Golpe? No entendimento daqueles que participaram do movimento, a seleção

histórica pretensiosa é nítida. A exemplo, pode-se colacionar a posição do General Carlos

Alberto Brilhante Ustra: “É desconhecimento, memória fraca ou conveniência classificar de

golpe o que na realidade foi apenas a interrupção de um processo revolucionário de tomada de

poder pelos comunistas, iniciado antes de 1960 e intensificado no governo Jango” (USTRA,

2006, p. 119).

Sua posição não é isolada... Tanto que busca sustentar-se em historiadores e

noticiários, numa busca insustentável pela legitimação do ilegitimável. Rebela-se contra

Professores de História e Sociólogos, usando-lhes textos, para tentar dar força à tomada de

poder no Brasil. Segundo entende aquele militar, não haveria qualquer sustentação na história

ou nos documentos da esquerda capazes de comprovar algum “golpe da direita” ou um “golpe

militar”:

Tais conceitos fazem parte da mesma orquestração em que se inclui a falácia de que a esquerda revolucionária pós 1964 lutava contra a “ditadura”. Não tenho idéia de quem urdiu essas mentiras, mas com muita convicção afirmo que tudo faz parte de um processo para desmoralizar o movimento de 31 de março de 1964 e de mitificar os “heróis” das esquerdas. (USTRA, 2006, p. 122)

A história, entretanto, não permite fraudes quanto a seus elementos e seus fatos.

Omissões e desvirtuamentos conceituais não são suficientes ao esquecimento de um período

iniciado pela deposição de um Presidente da República, eleito como „vice‟, mas legitimado

constitucionalmente a suceder seu antecessor que renunciara. “Golpe de Estado”, com início

marcado, em 31 de março de 1964, sem nenhum grande foco de resistência pela população.

São mais de vinte anos de agonia do poder civil. Um ciclo politicamente marcado pelo autoritarismo militar, redução ou supressão de direitos constitucionais, repressão policial, censura à imprensa, controle casuístico do processo político, esvaziamento do Poder Legislativo, limitação do Judiciário e domínio arbitrário do Poder Executivo. (COUTO, 2003, p. 41)

Diversas são as justificativas históricas apontadas, para desencadeamento da

atuação dos golpistas: o tenentismo dos anos vinte, intervenções em 1945 (deposição de

Vargas), 1954 (suicídio de Getúlio Vargas), crise que antecede o Governo Kubitschek (1955) e

1961, com a renúncia de Jânio Quadros e veto dos ministros militares à posse de seu vice

(João Goulart). Há quem busque na „Guerra Fria‟, em tentativa do Imperialismo Norte-

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americano na América Latina, ou, até, a “crise econômica combinada com excessos populistas

e retóricos do governo João Goulart, visto pelos adversários como instrumento de

“comunização” do país, corrupção, ameaça À democracia e à disciplina e hierarquia das

Forças Armadas”. (COUTO, 2003, p. 42-43)

VILLA (2011, p. 93) lembra que, naquele momento histórico, o termo

“revolução” tinha uma enorme positividade. Tanto que os militares se intitularam

“revolucionários” e “se proclamaram no exercício do „poder constituinte‟”. Com dezenas de

parlamentares cassados, a ordem do art. 2° do AI-1 efetivou-se, realizando-se as Eleições

Presidenciais Indiretas, de 11 de abril, com um Congresso esfacelado, elegendo-se o Marechal

Castelo Branco.6 Daí por diante, os Atos Institucionais, cada vez mais, foram mutilando a

Constituição de 1946, com determinações que já fazem entender diversos dos atuais

dispositivos constitucionais:

Foram suspensas por seis meses as garantias constitucionais de vitaliciedade e estabilidade e, por meio do artigo 11, buscaram dar legitimidade aos processos de suspensão dos direitos políticos pelo prazo de dez anos, casando mandatos legislativos federais, estaduais e municipais, “no interesse da paz e da honra nacional, e sem as limitações previstas na Constituição”. De imediato casaram 41 deputados. Seis meses depois, os casados chegaram a 4.454, dos quais 2.757 eram militares. (VILLA, 2011, p. 94)

A nova forma de tramitação dos projetos de lei, de iniciativa do Executivo,

agora, colocando prazo de noventa dias, para que o Congresso, através de suas duas Casas, os

pudessem aprovar (Do contrário, haveria uma espécie de „aprovação tácita‟), juntamente, com

a idéia geral de „paralisia‟ do Legislativo, foram ao encontro dos ideais de quem defendia o

„Executivo forte‟.

Extinguiu-se a eleição presidencial direta, sendo que a eleição do Presidente e

do Vice-Presidente, da República se daria pela maioria absoluta dos membros do Congresso

Nacional, em sessão pública e votação nominal. Se não fosse obtido o quorum na primeira

votação, repetir-se-iam os escrutínios até que ele fosse atingido, eliminando-se,

sucessivamente, do rol dos candidatos, o que obtivesse menor número de votos. Quando,

finalmente, limitados a dois os candidatos, a eleição se daria mesmo por maioria simples.7

Agora, em definitivo, foram suspensas as garantias constitucionais ou legais de

vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em funções por tempo

6 O eleito recebeu 361 votos, dos 438 presentes. 7 Art. 9° do AI-2

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certo. Não bastasse, os titulares daquelas garantias poderiam ser “demitidos, removidos ou

dispensados, ou, ainda, com os vencimentos e as vantagens proporcionais ao tempo de serviço,

postos em disponibilidade, aposentados, transferidos para a reserva ou reformados”, desde

que, para tanto, demonstrassem incompatibilidade com os objetivos da Revolução.8

A liberação para o Presidente da República suspender Direitos Políticos de

quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 (dez) anos e cassar mandatos legislativos federais,

estaduais e municipais (sem direito à ocupação por suplentes), veio, fundada no interesse de

preservar e consolidar a Revolução. Para tanto, poderia fazê-lo, “sem as limitações previstas

na Constituição”.

Concomitante à suspensão de direitos políticos, o cidadão, ainda, sofreria, uma

série de sanções9:

I - a cessação de privilégio de foro por prerrogativa de função; II - a suspensão do direito de votar e de ser votado nas eleições sindicais; III - a proibição de atividade ou manifestação sobre assunto de natureza política; IV - a aplicação, quando necessária à preservação da ordem política e social, das seguintes medidas de segurança: a) liberdade vigiada; b) proibição de freqüentar determinados lugares; c) domicílio determinado.”

Cerceando a pluralidade de ideologias no Estado, o art. 18 do AI-2 veio para

extinguir os 13 Partidos Políticos da época, que tiveram cancelados os respectivos registros.

Interessante que pelo Ato Complementar n° 04/65, para que um partido fosse criado, a partir

de então, deveria ter, no mínimo, 120 Deputados e 20 Senadores, num empenho óbvio de

conduzir o país ao Bipartidarismo, num curto prazo de 45 dias para conseguir essa filiação dos

adeptos.

O partido do governo – a Aliança Renovadora Nacional (Arena) – rapidamente conseguiu um número muito superior ao mínimo exigido. Já o partido oposicionista – o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) – patinava. Teve de receber um discreto apoio do próprio governo, que pediu que alguns parlamentares desistissem de fazer parte do partido oficial e se filiassem ao MDB. Castelo Branco descumpriu o uramento de posse; aroveitou uma ocasição favorável e estendeu seu mandato por cerca de 14 meses: de 30 de janeiro de 1966 para 15 de março de 1967. (VILLA, 2011, p. 95)

Com a eleição indireta de Costa e Silva, este, por meio do AI-4 convocou o

Congresso Nacional para, entre 12 de dezembro de 1966 e 24 de janeiro de 1967, período de

8 Art. 14, do AI-2 9 Art. 16, do AI-2

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óbvio esvaziamento das Casas Legislativas, apreciar o “projeto de Constituição” enviado pelo

Executivo. VILLA (2011, p. 97) chama atenção:

Diferente das Constituições Republicanas anteriores, a de 1967 não determinou claramente a denominação do Brasil. Desapareceu a designação Estados Unidos do Brasil. Contudo não há outra definição clara. Só é definido, no artigo 1°, que o Brasil é uma república federativa. Pressupõe-se, portanto, que a denominação tenha-se resumido a “Brasil”.

Um ponto que chama atenção, na Constituição de 1967, além da eleição

indireta para Presidente e da reserva de uma longa seção especial para “Forças Armadas” e

outra para “Segurança Nacional”, é a ampliação do número de membros do Supremo Tribunal

Federal.

O que poderia parecer uma forma de dar agilidade aos processos, na verdade,

significava um mecanismo ardiloso de o governo manter confortável maioria entre seus

Ministros nomeados, sob a batuta do Regime.

Após a redemocratização de 1946, coube ao movimento militar e gol pista de 1964 procurar interferir na independência e na autonomia de nossa Suprema Corte. Não bastassem as aposentadorias compulsórias de diversos membros da magistratura de primeiro e segundo graus, o regime da ditadura militar, ao ampliar a composição do Supremo Tribunal para 16 membros, buscava, desse modo, garantir para si uma pretensa e confortável maioria. Mas a Justiça não se dobra a interesses políticos ocasionais. O Supremo Tribunal Federal permaneceu altivo em defesa da legalidade e dos direitos fundamentais do Estado de Direito e das liberdades democráticas. Apesar das mudanças no sistema constitucional, operadas em 1965 e 1967, tantos foram os reveses sofridos pelo regime autoritário nesse período que o Poder Executivo, em janeiro de 1969, brandindo o instrumento autoritário do Ato Institucional nº 5, voltou a reduzir a composição do Supremo para 11 membros e ousou aposentar compulsoriamente três dos mais destacados de seus Ministros, Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva. Em solidariedade, repetiu-se o gesto do Barão de Monserrat, mediante os pedidos de aposentadoria, a pedido, de seu Presidente, Antonio Gonçalves de Oliveira e de outro Ministro, Antonio Carlos Lafayette de Andrada. (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1992, p. 42)

Se for possível determinar o mais afrontoso dos Atos Institucionais, certamente,

destaca-se o AI-5, decretado aos 13 de dezembro de 1968, pelo governo Arthur Costa e Silva,

que vigorou até dezembro de 1978. Caracteriza-se, comumente, como o momento mais “duro”

do Regime Militar, tendo em vista os poderes dados aos governantes, a fim de punir os

inimigos políticos do regime.

O ano de 1968, conhecido como "o ano que não acabou", marcou-se nas

histórias do Brasil e do Mundo, como um momento de grande contestação da política e dos

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costumes.10 Foi a partir dele, também que se noticia uma ação mais expressiva da Igreja, em

favor dos Direitos Humanos, bem como da junção de lideranças políticas cassadas

anteriormente, com intuito de retornar à política Nacional, na luta contra a Ditadura.

A marginalização política que o golpe impusera a antigos rivais - Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek, João Goulart - tivera o efeito de associá-los, ainda em 1967, na Frente Ampla, cujas atividades foram suspensas pelo ministro da Justiça, Luís Antônio da Gama e Silva, em abril de 1968. Pouco depois, o ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho, reintroduziu o atestado de ideologia como requisito para a escolha dos dirigentes sindicais. Uma greve dos metalúrgicos em Osasco, em meados do ano, a primeira greve operária desde o início do regime militar, também sinalizava para a "linha dura" que medidas mais enérgicas deveriam ser tomadas para controlar as manifestações de descontentamento de qualquer ordem. Nas palavras do ministro do Exército, Aurélio de Lira Tavares, o governo precisava ser mais enérgico no combate a "idéias subversivas". O diagnóstico militar era o de que havia "um processo bem adiantado de guerra revolucionária" liderado pelos comunistas. (D‟ARAÚJO, 2012)

Segundo consta, o açoite final, ensejador da decretação do AI-5 teriam sido

dois discursos de Deputados do MDB: Márcio Moreira Alves e Hermano Alves.

O primeiro deles se pronunciou às vésperas da comemoração do “Dia da

Independência”, atiçando a população, para que não comparecesse aos desfiles do 07 de

setembro, bem como apelando às moças "ardentes de liberdade" que se recusassem a sair com

oficiais. O segundo parlamentar escreveu artigos para o Jornal Correio da Manhã tidos como

provocações ao governo instituído. Costa e Silva, Ministro do Exército, então, “declarou que

esses pronunciamentos eram „ofensas e provocações irresponsáveis e intoleráveis‟”, o que

ensejou pedido da cassação de mais esses parlamentares. (D‟ARAÚJO, 2012)

No dia 12 de dezembro daquele ano, enfim, no pedido de licença para o

processo de cassação, faltaram 75 votos (incluindo membros do Arena), para que se

conseguisse retirá-los da vida política. Uma derrota para o Governo Militar.

No dia seguinte foi baixado o AI-5, que autorizava o presidente da República,

em caráter excepcional e, portanto, sem apreciação judicial, a:

[...] decretar o recesso do Congresso Nacional; intervir nos estados e municípios; cassar mandatos parlamentares; suspender, por dez anos, os direitos políticos de qualquer cidadão; decretar o confisco de bens considerados ilícitos; e suspender a garantia do habeas-corpus. No preâmbulo do ato, dizia-se ser essa uma necessidade para atingir os objetivos da revolução,

10 O movimento estudantil celebrizou-se como protesto dos jovens contra a política tradicional, mas principalmente como demanda por novas liberdades. O radicalismo jovem pode ser bem expresso no lema "é proibido proibir". Esse movimento, no Brasil, associou-se a um combate mais organizado contra o regime: intensificaram-se os protestos mais radicais, especialmente o dos universitários, contra a ditadura. Por outro lado, a "linha dura" providenciava instrumentos mais sofisticados e planejava ações mais rigorosas contra a oposição. (D‟ARAÚJO, 2012)

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"com vistas a encontrar os meios indispensáveis para a obra de reconstrução econômica, financeira e moral do país". No mesmo dia foi decretado o recesso do Congresso Nacional por tempo indeterminado - só em outubro de 1969 o Congresso seria reaberto, para referendar a escolha do general Emílio Garrastazu Médici para a Presidência da República.

Ao fim do mês de dezembro de 1968, 11 deputados federais foram cassados, entre eles Márcio Moreira Alves e Hermano Alves. A lista de cassações aumentou no mês de janeiro de 1969, atingindo não só parlamentares, mas até ministros do Supremo Tribunal Federal. O AI-5 não só se impunha como um instrumento de intolerância em um momento de intensa polarização ideológica, como referendava uma concepção de modelo econômico em que o crescimento seria feito com "sangue, suor e lágrimas. (D‟ARAÚJO, 2012)

Outras medidas do AI-5: impedia o direito dos presos políticos a recorrerem

ao habeas corpus; controle mais intenso sobre os órgãos de imprensa e entretenimento,

estabelecendo a censura prévia aos jornais, revistas, letras de música, peças de teatro e falas de

cinema. “Com o AI-5, a repressão se tornaria mais sangrenta e punitiva àqueles que

manifestassem oposição ao Regime Militar, suscitando nos anos mais violentos do período,

conhecido como „anos de chumbo‟”.11

Esse foi o ritmo que ditou a condução da vida política do país, até meados dos

anos 80. É que com a realização de eleições para Governadores dos Estados, em 1982,

concluindo um roteiro iniciado pelo AI-5, especialmente, com anistia dos perseguidos pelo

Regime Militar em 1979, os anseios da população começam a se acirrar, no sentido de uma

abertura democrática. (VILLA, 2011, p. 111): “A oposição venceu em estados-chave. Mesmo

assim, o Partido Democrático Social (PDS) ainda mantinha uma pequena maioria no Colégio

Eleitoral que elegeria indiretamente o presidente da República em janeiro de 1985”.

Antes disso, porém, importa destacar o papel desempenhado pela „Emenda

Dante de Oliveira‟, apresentada por Deputado mato-grossense (PMDB) de mesmo nome que

visava alterar o texto constitucional, para restabelecer as eleições presidenciais diretas. Aqui,

cabe apontar testemunho daquele momento de frustração da Democracia brasileira, vivenciado

por ROSSI (1984):

A emenda Dante de Oliveira, que prevê eleições diretas já para a Presidência da República, foi rejeitada esta madrugada pela Câmara dos Deputados, embora tivesse recebido maioria de votos a favor (298 a 65), insuficiente, entretanto, para se atingir o quórum de dois terços exigido para alterações da Constituição. Faltaram 22 votos.

A emenda recebeu substancial apoio da bancada do PDS (54 votos), o que demonstra o quanto a tese das diretas-já penetrou no partido oficial, como reflexo da mobilização popular. Com esse resultado, fica evidentemente mais fácil prosseguir, daqui para a frente, na campanha pelas diretas, na qual a oposição promete continuar engajada. Prova disso foi a reafirmação pública,

11 http://www.historiabrasileira.com/ditadura-militar/atos-institucionais/

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ontem, da posição assumida na véspera pelos governadores do PMDB, transmitida à imprensa por Franco Montoro: "Esta luta não pode cessar senão com a conquista das eleições diretas".

A idéia dos oposicionistas é tentar encaixar na própria emenda do governo - que joga em diretas para 1988 - a tese das diretas-já, por meio de uma subemenda. O que ainda não está definido, entre os oposicionistas, é como dar prosseguimento à campanha no intervalo entre a votação da Dante de Oliveira e a apreciação da emenda governamental.12

Mas isso não foi um golpe mortal à esperança dos brasileiros... Sociólogos,

como Elimar Nascimento (1997, p. 50), percebem que as eleições diretas estaduais

significaram uma diacronia insustentável aos opositores da abertura democrática. Isso, porque

se havia, por de lado, “um governo central nascido de eleições indiretas e de um processo já

contestado, cuja legitimidade, débil, esfacela-se com a explosão da recessão econômica em

1981”; por outro, surgiram “diferentes governos estaduais da oposição, legitimamente eleitos,

cujas bandeiras de luta têm em comum a reinstalação da democracia no país”. Nascimento

(1997, p. 51) complementa a lição, ao perceber as conseqüências políticas:

Agora, soma-se à negatividade da contestação e rejeição do antigo regime, que se manifestara desde 1974, a positividade de uma alternativa real de poder, articulando políticos de tradições e partidos políticos diferentes (Leonel Brizola do PDT, Franco Montoro do PMDB e Tancredo Neves do então PP).

Calha, ademais, lembrar que foram essas mesmas forças populares que

conseguiram lançar e apoiar a candidatura de Tancredo Neves (à época Governador de Minas

Gerais) para o cargo da Presidência da República. Desde sua campanha, o candidato

demonstrava anseios de mudança pela instalação de uma “Nova República”.

A eleição de Tancredo ocorrera aos 15 de janeiro de 1985, significando, para

muitos, “o início de um novo período na história das instituições políticas brasileiras, e que ele

próprio denominara de a Nova República” (SILVA, 2003, p. 88).

12 O colunista ainda retratou o sentimento daquele instante (ROSSI, 1984): A rejeição da emenda Dante de Oliveira ocorreu em clima de acentuada vergonha, de parte dos pedessistas que votaram não ou ausentaram do plenário (113).Vergonha refletida no fato de que a maioria dos que votaram contra preferiu fazê-lo de suas próprias bancadas, ao invés de se dirigir ao microfone de aparte, ao qual compareciam todos os que diziam sim. Houve ainda três abstenções. A discussão e votação da emenda se arrastou das 9h07 da manhã de ontem até duas horas da madrugada de hoje, seguindo estratégia combinada entre as lideranças do PDS e dos partidos oposicionistas. A idéia, de elementar bom senso, era a de dar a conhecer o resultado apenas tarde da noite (ou mesmo na madrugada), de forma a permitir que se dispersassem as multidões que, durante o dia, se concentraram nos grandes centros urbanos e mesmo em cidades do interior. Temia-se, tanto na oposição como na situação, que a frustração popular pela rejeição da emenda desaguasse em tumulto de proporções, o que todos estavam interessados em evitar. Outro fator de tensão era a presença, em toda a Esplanada dos Ministérios, de um impressionante dispositivo policial, que restringiu o acesso ao Congresso, em cujos gramados e rampas um grupo de estudantes se manifestava alegremente, inclusive desenhando com seus próprios corpos um enorme "diretas-já" (à noite, o slogan era iluminado por tochas). Rejeitada pela Câmara, a emenda Dante de Oliveira sequer precisou passar pelo Senado.

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O candidato eleito já prometera os novos preceitos desse Brasil nascente:

democrático e social. Para tanto, percebera a necessidade de instalação – assim que assumisse

a Presidência – de uma Assembléia Nacional Constituinte, para elaborar a nova Constituição.

Instalaria, ademais, uma Comissão de Estudos Constitucionais, com competência de

elaboração de estudos capazes de contribuir, a título de sugestão, com a nova Carta.

(GUERRA, 2006)

O Editorial da Folha de São Paulo do dia 16 de janeiro de 1985 anunciou e advertiu a um só tempo: “que seja uma democracia melhor”. Por 480 votos contra 180, Tancredo Neves (PMDB) venceu Paulo Maluf, nas eleições indiretas à Presidência da República, já deixando claro a que vinha: "Esta foi a última eleição indireta do País; venho para realizar urgentes e corajosas mudanças políticas, sociais e econômicas, indispensáveis ao bem-estar do povo." Acrescentou o candidato eleito seu empenho no combate à inflação, observância de deveres sociais por parte do governo, bem como desenvolvimento econômico e crescimento. Seu comprometimento com o combate às desigualdades, também, demonstrou-se notório: "Enquanto houver, neste país, um só homem sem trabalho, sem pão, sem teto e sem letras, toda a prosperidade será falsa”. As promessas incentivaram o povo brasileiro e seus representantes...

Inobstante, em 21 de abril de 1985 o candidato eleito à Presidência da

República, Tancredo Neves, faleceu aos 75 anos, após 38 dias de sua internação no Hospital

de Base de Brasília. As últimas palavras do líder dirigiram-se a seu neto, Aécio Neves, num

tom de despedida: “Eu não merecia isto”.

O Vice-Presidente da República, recém-eleito, José Sarney, chorou

copiosamente ao receber a notícia, às 22h25, no Palácio do Jaburu (Brasília), de onde se

dirigiu para o Palácio do Planalto, onde, em rede nacional, falou às “brasileiras e brasileiros”,

que continuaria firme em processo de abertura democrática, prometendo empenhar-se nas

mudanças reivindicadas: "Nosso programa é o de Tancredo Neves”.

À noite do dia 14 de março de 1985, estava oferecendo um jantar a amigos meus, entre eles os deputados Carlos Wilson, Heráclito Fortes, e o advogado Pedro Grossi, quando recebi telefonema do general Ivan Mendes, que já havia sido convidado por Tancredo Neves para chefiar o SNI (Serviço Nacional de Informações). Ivan me comunicava que, naquele instante, 21 horas, o presidente eleito, sofrendo crise aguda de apendicite, estava sendo removido da Granja do Riacho Fundo, onde se hospedara com a família, para o Hospital de Base. Assim, Tancredo achava-se impedido de tomar posse, no dia seguinte, na Presidência da República. O general Ivan Mendes, meu amigo pessoal, indagava-me quem deveria assumir, se o presidente da Câmara dos Deputados, Ulysses Guimarães, se o vice-presidente da República eleito, José Sarney. Opinei que, nos termos da Constituição (Emenda Constitucional no 1, de 1969), o vice-presidente da República deveria tomar posse. (OLIVEIRA, 2009, p. 139)

O Congresso Nacional se reuniu na manhã seguinte, em sessão extraordinária,

para declarar vacância no cargo da Presidência e, por conseguinte, confirmar José Sarney

como novo Chefe do Executivo nacional. Porém, desde aqui, cumpre esclarecer que a decisão

não foi plenamente pacífica. Isso, porque a interpretação acerca de quem deveria assumir o

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cargo passou por percalços e reuniões na calada da noite. Chega-se a afirmar, até mesmo um

ex-ministro do STF, que os seus pares se teriam reunido na casa do Ilustre Min. Oscar Dias

Corrêa e, em consenso, teriam acordado no entendimento constitucional de que José Sarney

era mesmo quem deveria assumir.

Em face da controvérsia surgida horas antes da posse, dia 15 de março, alguns oficiais-generais, à frente o general Leônidas Pires Gonçalves, virtualmente escolhido ministro do Exército, fizeram uma visita, na noite do dia 14 de março de 1985, ao ministro Cordeiro Guerra, presidente do Supremo Tribunal Federal, que chamou mais três ministros para um exame conjunto da situação. Após cerca de duas horas de conversa, todos se manifestaram a favor da posse do vice-presidente Sarney. (OLIVEIRA, 2009, p. 139)

Assim, o primeiro na linha sucessória presidencial passaria a ser o presidente da

Câmara dos Deputados, Ulysses Guimarães. Este falou à nação do plenário da Câmara às

23h20 e garantiu que "a homenagem sincera e conseqüente dos que choram Tancredo será

impedir qualquer recuo na caminhada pelas instituições livres que se consolidarão através da

Assembléia Nacional Constituinte" (FOLHA de São Paulo, 1985).

Com o intuito de manter a normalidade da caminhada democrática, portanto,

tomou posse, mesmo, como presidente da República, no dia 15 de março de 1985 o candidato

a Vice-Presidente eleito na chapa de Tancredo Neves: José Sarney. Este revelou conselhos do

companheiro Tancredo Neves, durante a transição (SENADO FEDERAL-2, 2005):

Tancredo me transmitiu duas regras básicas na relação com as Forças Armadas, que foram seguidas à risca, e garantiram a volta aos quartéis e a profissionalização dos nossos militares, de acordo com a Constituição: 1) a abertura democrática seria COM as Forças Armadas, e não CONTRA elas. Não haveria qualquer revanchismo; 2) Não haveria mais as Ordens do Dia, em que os militares tomavam posição sobre todos os assuntos.

O evento, traumático ao povo brasileiro, mostrou-se como episódio de temor a

que tudo até então conquistado derrocasse. Isso, porque o candidato à Vice-Presidência, José

Sarney foi quem assumiu no lugar de Tancredo, aos 15 de março de 1985. Sarney,

reconhecido como filiado às “forças autoritárias e retrógradas” (SILVA, 2003, p. 89) era visto

como o fracasso de toda a evolução até então alcançada pelo povo. Acreditava-se que as

reformas não seriam efetuadas. Até mesmo ele, o próprio Sarney, chegou a duvidar. Tanto que

chegou a afirmar, recentemente, por ocasião da comemoração dos vinte anos da

redemocratização: “Achei que a democracia poderia morrer em minhas mãos. Não morreu; ao

contrário, floresceu” (SENADO FEDERAL-2, 2005).

Não obstante, Sarney surpreendeu: nomeou a „Comissão de Estudos

Constitucionais‟. Esta, inicialmente, foi criticada pelos progressistas; mas, ao começar e

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apresentar seus projetos, passou a ser atacada pelos então conservadores, justamente por se

demonstrar demasiado “avançada” (GUERRA, 2006).

Posteriormente, José Sarney enviou proposta de Emenda Constitucional,

aprovada sob o nº 26 (27/dez/85), convocando Assembléia Nacional Constituinte. Esta, na

realidade tratou-se da reunião dos então deputados federais e senadores13, para que, em

reunião, no dia 01 de fevereiro de 1987, começassem os trabalhos de elaboração de uma nova

Constituição, na sede do Congresso Nacional. A emenda Constitucional estabeleceu, dentre

outros: a) instalação da Assembléia Nacional Constituinte sob presidência do Presidente do

STF; b) aprovação do texto, mediante dois turnos de discussão e votação, pela maioria

absoluta dos membros da ANC;

3. EFEITOS DA TRANSIÇÃO NO TEXTO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

Ao se analisar o texto da Constituição brasileira de 1988, poderia ser singelo o

estudo romântico que o glorifica como uma “Constituição Cidadã”. Inegável o progresso à

Democracia brasileira que o texto trouxe, mas sua construção se dá no dia-a-dia, através da

sociedade aberta que o concretiza, não apenas, através das instituições, mas, principalmente,

através de reivindicações de um regime político que, embora jovem, amadurece

paulatinamente.

Nesse sentido, é importante apontar, de que modo alguns dos institutos

constitucionais pátrios significam alguma espécie de memória: a) traumático-social; ou b)

protetiva dos antigos detentores do poder.

3.1. Memória traumático-social

Aqui, podem ser enumerados institutos que, de algum modo, significam

exatamente, alguma forma de constitucionalização de proteções e defesas, contra aquilo que já

foi impingido em desfavor do povo brasileiro nos tempos de Ditadura.

O artigo 5° concentra a maioria desses elementos:

III- ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

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VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;

XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;

Não se pode deixar de lembrar que a própria formulação de cláusulas pétreas

tem o sentido de resguardar contra um retorno ao passado, já que, ao analisar aquilo que ficou

explícito como vedação à tendência de se abolir, percebe-se que, bens jurídicos não

„incomodados‟ pelo Regime ditatorial – como, por exemplo, os „Direitos Sociais‟ – não

receberam o status de cláusula pétrea. Ao contrário, v.g., do que acontece com os “Direitos

Individuais que recebem capitulação específica no Título II do texto: eles, sim, sofreram

retaliações e ofensas durante a exceção.

§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais.

A defesa dos parlamentares recebe tratamento especial também. Isso pode ser

sentido, por exemplo, pela possibilidade de alteração da sede do Legislativo Federal, através

de Decreto Legislativo (logo, sem sanção presidencial), a princípio, para fins de

comemorações; mas, possibilitando, inclusive, em casos extremos de necessidade de „fuga‟

contra um cercamento da Casa Legislativa, para impedir seus trabalhos, possam os

parlamentares mudar-se, enquanto permaneça a querela, para qualquer ponto do território

nacional.

As inviolabilidade materiais parlamentares lhes dão, de certa forma,

tranquilidade para bem representar o povo, sendo invioláveis por quaisquer de suas opiniões,

palavras e votos, atualmente, assim compreendido, desde que estejam no exercício da

atividade congressual. Mas não é este, apenas, o ponto central que faz relembrar tempos

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pretéritos. Sim, imunidades formais que impedem processos injustos ou arbitrariamente

persecutórios, possibilitando, inclusive, que, nesses casos, a Casa respectiva promova sua

sustação, também, são relevantes:

Art. 53 [...] § 3º Recebida a denúncia contra o Senador ou Deputado, por crime ocorrido após a diplomação, o Supremo Tribunal Federal dará ciência à Casa respectiva, que, por iniciativa de partido político nela representado e pelo voto da maioria de seus membros, poderá, até a decisão final, sustar o andamento da ação. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 35, de 2001) § 4º O pedido de sustação será apreciado pela Casa respectiva no prazo improrrogável de quarenta e cinco dias do seu recebimento pela Mesa Diretora. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 35, de 2001)

Isso não significa impunidade. Ao contrário, pois o parlamentar, se o caso for

poderá ser processado após o término de seu mandato, vez que a prescrição não ocorre:

§ 5º A sustação do processo suspende a prescrição, enquanto durar o mandato. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 35, de 2001)

Enfim, mais três proteções aos parlamentares: inobrigação de testemunhar

sobre fatos que podem ter aceso em virtude do exercício de sua função; impossibilidade inicial

de incorporação às Forças Armadas (mecanismo muito simples de dilapidar o Corpo

Legislativo, mediante convocação obrigatória, no caso de inexistência da defesa do cidadão) e

a permanência, inicial, das imunidades, mesmo em situações adversas decretadas.

§ 6º Os Deputados e Senadores não serão obrigados a testemunhar sobre informações recebidas ou prestadas em razão do exercício do mandato, nem sobre as pessoas que lhes confiaram ou deles receberam informações. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 35, de 2001) § 7º A incorporação às Forças Armadas de Deputados e Senadores, embora militares e ainda que em tempo de guerra, dependerá de prévia licença da Casa respectiva. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 35, de 2001) § 8º As imunidades de Deputados ou Senadores subsistirão durante o estado de sítio, só podendo ser suspensas mediante o voto de dois terços dos membros da Casa respectiva, nos casos de atos praticados fora do recinto do Congresso Nacional, que sejam incompatíveis com a execução da medida. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 35, de 2001)

Se, no passado, o Congresso restou esfacelado, pela cassação de parlamentares,

pela sua retirada compulsória das Casas Legislativas, pela punição de suas palavras e votos ou,

até, pela instauração de processos de cunho extremamente duvidosos, a fim de abalar a

estabilidade institucional ou a liberdade de consciência e representação, a Constituição de

1988 traz esse „Estatuto dos Congressistas‟ com essa exata finalidade.

3.2. Memória protetiva dos antigos detentores do poder.

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Por outro lado, é inegável perceber como os antigos detentores do poder

usurpado por determinado grupo de militares recebeu tratamento diferenciado no texto

constitucional.

Em primeiro lugar, a existência de uma Justiça Federal Especializada e a

possibilidade de instituição de Justiça Estadual Militar, demonstram a “necessidade” de um

tratamento específico, àqueles que se submetem a julgamentos pelos seus „pares‟. Isso, porque

somente um militar compreenderia, significativamente, a atuação de outro. Por isso mesmo,

indispensável possibilitar essa forma privilegiada de tratamento em processos judiciais.

Resguardam-se a hierarquia e a disciplina militares, como se as coisas que

acontecem dentro do quartel, por ali mesmo, devessem ficar. Para que se tenha idéia, nos

termos do art. 142, § 2º, “Não caberá habeas-corpus em relação a punições disciplinares

militares”.

A obrigatoriedade ao serviço militar permanecera, mas apenas àqueles que,

considerados “fortes” e “valentes” pudessem prestar um bom serviço às Forças Armadas.

Observe-se a exclusão, apriorística, de mulheres e eclesiásticos.

Art. 143. O serviço militar é obrigatório nos termos da lei. § 1º - às Forças Armadas compete, na forma da lei, atribuir serviço alternativo aos que, em tempo de paz, após alistados, alegarem imperativo de consciência, entendendo-se como tal o decorrente de crença religiosa e de convicção filosófica ou política, para se eximirem de atividades de caráter essencialmente militar. § 2º - As mulheres e os eclesiásticos ficam isentos do serviço militar obrigatório em tempo de paz, sujeitos, porém, a outros encargos que a lei lhes atribuir.

Com um nítido intuito de busca de perdão através de „anistia”, enfim, não se

pode deixar de destacar o intento do art. 8° do ADCT. Nele, uma miscelânea de cidadãos,

servidores públicos, civis e militares que prejudicados no passado, agora, anistiados,

juntamente, com os detentores do regime de outrora receberam o mesmo tratamento de

impunibilidade legalizada.

Art. 8º. É concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares, aos que foram abrangidos pelo Decreto Legislativo nº 18, de 15 de dezembro de 1961, e aos atingidos pelo Decreto-Lei nº 864, de 12 de setembro de 1969, asseguradas as promoções, na inatividade, ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividade previstos nas leis e regulamentos vigentes, respeitadas as características e peculiaridades das carreiras dos servidores públicos civis e militares e observados os respectivos regimes jurídicos.

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Aliás, cumpre destacar que a anistia recebera um grau constitucional no

ordenamento, vez que antes do advento da Constituição de 1988, no entanto, diversos fatos

marcaram a história política nacional, dentre eles “Lei da Anistia”, aprovada em agosto de

1979, que anistiou acusados de “crimes políticos e conexos”, um conceito que acabou por

incluir, tanto os adversários do Regime, quanto os opressores e torturadores.

4. CONCLUSÃO PARCIAL

O presente estudo não possui, em absoluto, qualquer pretensão de esgotamento

do tema. Apenas conduz à reflexão inicial de diversos aspectos que podem ser analisados mais

profundamente, uma vez que alocados no texto constitucional brasileiro, muitas vezes, sem

uma explicação muito clara de seus porquês.

Percebe-se como os institutos constitucionais protetivos dos cidadãos comuns,

das autoridades (paramentares e judiciárias) receberam um status constitucional, como

reclamo social do discurso de justificação democrático, ao lado de inserções oportunistas dos

antigos detentores do governo ditatorial, como condição mesmo, de realização de uma

transição pacífica, lenta e paulatina.

Certo, que a memória se faz perceber, ainda que no sentido de relato de fatos

passados, para compreensão do futuro, especialmente, formalizados em um texto condutor de

toda a vida política de um Estado e de seu povo. Memória? Perdão? Ou esquecimento de algo

que não se poderia ter esquecido? Reflexões para um futuro que assombra o presente, porque é

este é o passado do futuro.

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5. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

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O DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE COMO DIREITOS ESSENCIAIS AO PROCESSO DE DEMOCRATIZAÇÃO DO PAÍS. *Andrea Tourinho Pacheco de Miranda1 *Ezilda Claudia de Melo 2

RESUMO: Este trabalho tem como objetivo demonstrar a importância da

consolidação do direito à memória e à verdade como essenciais ao processo de

democratização do nosso país, como direitos fundamentais, bem como a instauração da

Comissão da Verdade no Brasil, após o período ditatorial, marcado por graves

violações aos direitos humanos. Partimos nossa pesquisa da Hermenêutica sobre a

verdade, para finalizarmos com o estudo dos outros pilares da justiça de transição:

memória e reparação, já que a memória coletiva surge sobre o passado quando ocorre a

interpretação de acordo com as sensibilidades culturais, dilemas éticos e conveniências

políticas de uma determinada sociedade.

Palavras-chave: Memória. Verdade. Hermenêutica Direitos Humanos.

RESUMEN : Este trabajo objetiva demostrar la importancia de la consolidación de lo

derecho a la memoria y la verdad como derechos esenciales en el proceso de la

democratización de nuestro país, En este trabajo se pretende demostrar la importancia de

1 Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Doutoranda em Direito Penal pela Universidade de Buenos Aires (UBA). Professora de Direito Penal da Faculdade Ruy Barbosa, Bahia. Coordenadora do Grupo de Pesquisa “História, Memória e Verdade” da Faculdade Ruy Barbosa, Bahia. Defensora Pública. 2 Mestranda em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Direito Público. Professora da Faculdade Ruy Barbosa – Devry Brasil e da Faculdade Social da Bahia. Professora de Cursos Preparatórios para Carreira Jurídicas e de Pós-Graduações. Palestrante. Coordenadora do Grupo de Pesquisa “História, Memória e Verdade” da Faculdade Ruy Barbosa, Bahia. Advogada. Historiadora. Blog: www.ezildamelo.blogstpot.com

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consolidar el derecho a la memoria ya la verdad como algo esencial para el proceso de

democratización de nuestro país, como los derechos fundamentales, y el establecimiento

de la Comisión de la Verdad en Brasil, después de lo período de la dictadura militar ,

marcado por graves violaciones de los derechos humanos. Comenzamos nuestra

investigación sobre la verdad por la hermenéutica, para finalizar el estudio con los otros

pilares de la justicia transicional: la memoria y la reparación, como la memoria

colectiva del pasado surge cuando se produce la interpretación según la sensibilidad

cultural, los dilemas éticos y las conveniencias políticas de una sociedad determinada.

Palavras-Clave: Memória. Verdad. Hermeneutica. Derechos humanos.

SUMÁRIO: 1. A Hermenêutica e a Verdade: o Direito à memória e à verdade

como direitos fundamentais. 2. Memória, verdade e justiça de transição. 3. As primeiras

políticas públicas de justiça de transição no Brasil. 4. O trabalho da Comissão da

Verdade no Brasil. 5. Conclusão. 6. Referências.

1 - A HERMENÊUTICA E A VERDADE: O DIREITO À MEMÓRIA E À

VERDADE COMO DIREITOS FUNDAMENTAIS.

Na Antiguidade Clássica, recorria-se a Hermes, o mensageiro dos Deuses, pela

busca da verdade escondida. Hermes foi retratado por Homero (no livro "Odisseia") e

Hesíodo (na obra "Os trabalhos e os dias") por suas habilidades e considerado benfeitor

dos mortais, portador da boa sorte e também das fraudes. Autores clássicos também

adornaram o mito com novos acontecimentos. Esquilo mostrou Hermes a ajudar Orestes

a matar Clitemnestra sob uma identidade falsa e outros estratagemas, e disse também

que ele era o deus das buscas, e daqueles que procuram coisas perdidas ou

roubadas. Seu atributo característico era a ambiguidade, pois ao mesmo tempo que era

mensageiro dos deuses, era também fiel mensageiro do mundo das trevas. Não é de se

estranhar que a palavra "hermenêutica" encontre consentâneos nas palavras

"hermeneuein" (interpretar), "hermeneia" (interpretação), "hermeios" (sacerdote do

oráculo de Delfos) e "Hermes" (o mensageiro, na mitologia antiga ocidental). A verdade

é em si ambígua, ou será que não a enxergamos?

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A interpretação que fazemos do mundo é uma atividade de compreensão. O

jurista deve considerar o ordenamento jurídico dinamicamente, pois a interpretação é

que mantém a vida da lei e das outras fontes do Direito.

Interpretar um fato corretamente requer, antes de tudo, visão sobre nós mesmos.

Quem somos? Sobre quais valores ético-morais temos nossa base fincada? O que

queremos para o mundo? Somos pessoas boas? Tratamos bem nossos semelhantes?

Cultivamos a semente do bem? Não nos apropriamos de nada que não nos pertence?

Uma das maiores desobediências que podemos cometer ético-jurídica-filosófica-

política-religiosa é o furto. Retirar algo de alguém. Algo que não nos pertence. O furto

está nas origens das piores barbaridades: nas questões de vida, como no caso dos

homicidas ou dos abortos; nas questões de bens, públicos ou privados, como no caso

dos corruptos; nas questões pessoais, que envolvem o "furto" de sentimento e de

emoção, como num caso de uma mãe não permitir que uma filha tenha laços com o pai,

ocasionando a alienação parental, ou nas questões que envolvem o direito à memória e à

verdade. O furto é abominável. Sendo assim, continuemos analisando as verdades no

Direito. O que elas são? O que representam? Quem pode interpretá-las?

Para Enzo Traverso3, a memória coletiva surge quando opera sobre o passado

una seleção e interpretação de acordo com as sensibilidades culturais, dilemas éticos e

conveniências políticas.4

Para responder a essa indagações precisamos falar um pouco mais sobre as verdades:

muitas delas permanecerão ocultas até que um olho mágico consiga decifrar a

mensagem. Nem todos conseguem alcançá-la. É assim em qualquer área. No Direito

pesa sobre as vidas das pessoas, especialmente na hora de um julgamento judicial que

tenta rastrear o passado, tal qual Sherlock Holmes, em busca de vestígios, pistas de

momentos já vivenciados. Sendo assim, constata-se que o trabalho é frustrado desde o

nascedouro, não desmerecendo a importância de provas que são colhidas para

exemplificar parte da "verdade". Quem já assistiu "Versões de um Crime"? O grande

questionamento é, justamente, o que é verdade?

Drummond de Andrade também refletiu sobre isso e escreveu "Verdade”:

3 TRAVERSO, Enzo. El pasado, instrucciones de uso. Madrid: Marcial Pons, 2007, Págs.14.

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A porta da verdade estava aberta, mas só deixava passar meia pessoa de cada vez. Assim não era possível atingir toda a verdade, porque a meia pessoa que entrava só trazia o perfil de meia verdade. E sua segunda metade voltava igualmente com meio perfil. E os meios perfis não coincidiam. Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta. Chegaram ao lugar luminoso onde a verdade esplendia seus fogos. Era dividida em metades diferentes uma da outra. Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. Nenhuma das duas era totalmente bela. E carecia optar. Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

Para tudo pode existir diferentes versões, mas só há uma verdade. Ela ocorreu. E

o passado é quem viu.

2. MEMÓRIA, VERDADE E JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO.

Kundera5 faz-nos refletir sobre a possibilidade das repetições na história. Ele nos

diz:

“o eterno retorno é uma ideia misteriosa, e Nietzsche, com essa ideia, colocou

muitos filósofos em dificuldade: pensar que um dia tudo vai se repetir tal como

foi vivido e que essa repetição ainda vai se repetir indefinidamente! O que

significa esse mito insensato? (...) Digamos, portanto, que a ideia do eterno

retorno designa uma perspectiva na qual as coisas não parecem ser como nós as

conhecemos: elas nos parecem sem a circunstância atenuante de sua fugacidade.

Essa circunstância atenuante nos impede, com efeito, de pronunciar qualquer

veredicto. Como condenar o que é efêmero?”

Não suportaríamos esse fardo metafísico do eterno retorno a um período de

ditadura, de tortura e de violações de toda natureza aos direitos humanos. A ditadura

aconteceu uma vez e trouxe muitos prejuízos. A ditadura militar brasileira não foi um

fato isolado na história da América Latina. Pelo contrário. Na mesma época, regimes

semelhantes nasciam de rupturas na ordem constitucional de outros países, tendo as

Forças Armadas assumido o poder em consonância com a lógica da Guerra Fria. Esse

contexto histórico regional trouxe a generalização de regimes políticos repressivos em

5 KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser. São Paulo: Círculo do Livro S.A., 1984.

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todos os países do Cone Sul, a exemplo: Brasil (1964), Argentina (1966 e 1976),

Uruguai (1973), Chile (1973).

A busca da verdade pelos familiares das pessoas que morreram na luta contra o

regime militar é uma história longa e repleta de dificuldades. Muitas pedras no caminho,

mas as conquistas são inerentes para quem tem o ideal de justiça como meta.

.

Memória e verdade são princípios essenciais do direito positivo brasileiro, estes

compreendidos desde o direito a preservação da identidade cultural dos povos até o

direito á informação, essenciais para a formação do estado democrático de direito.

Procuramos, nesse trabalho, demonstrar a maneira pela qual o Brasil, marcado

pelos abusos do período da ditadura militar, com acentuadas violações de direitos

humanos busca alcançar o caminho para consolidar a democracia. Esse período de

mudanças, em que se responsabiliza a criminalidade do passado ditatorial brasileiro é

denominado de justiça de transição ou justiça transacional cuja importante tarefa tem

sido a de estabelecer estratégias e mecanismos para enfrentar o legado de violência do

passado e atribuir responsabilidades aos Estados, no presente.

Sobre a definição de justiça de transição nos valemos do conceito trazido por

Dimitri Dimoulis6 na tradução da obra de Lon L. Fuller, “O caso dos Denunciantes

Invejosos”, sendo aquela definida como “um processo de julgamentos, depurações e

reparações que se realizam após a mudança de um regime jurídico para um outro”.

Dessa maneira, a justiça de transição, enquanto marco histórico das duas

realidades políticas, a do passado e a do presente, além de exigir a efetividade do direito

à memória e à verdade, deve iniciar a persecução de perpetradores das atrocidades do

antigo regime, preservar o direito fundamental da verdade e desenvolver um conjunto

6 DIMOULIS, Dimitri. O caso dos Denunciantes Invejosos: introdução prática às relações entre direito, moral e justiça. 3.ed.rev. e atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.

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de reparações para fortalecer as instituições democráticas a fim de garantir que

violações de direitos humanos não se tornem práticas recorrentes no âmbito social.

Dentre os quatro pilares que sustentam a justiça de transição, o Brasil só

construiu a reparação, através da Lei 9.140, de 04 de dezembro de 1995, quando

estabeleceu a indenização devida à família dos mortos e desaparecidos durante o regime

militar. Não divulgou a verdade, visto que mantém os arquivos daquele período

fechados, nem realizou a justiça desejada por todos, punindo os torturadores do

regime de exceção.

O Brasil, a partir do argumento de que não condenou nenhum dos violadores do

regime militar, contribuiu para a impunidade. Por outro lado, o Chile levou a sério a

justiça de transição, quando julgou Pinochet em 2005. A Argentina, por sua

vez, iniciou seu processo de justiça de transição, julgando os generais do regime

ditatorial, episódio que ficou popularmente conhecido como Nurembeg argentino.

Vale salientar que não existe um consenso na doutrina internacional, nem um

modelo único para o processo de justiça de transição, pois cada país tem seu processo

peculiar para lidar com o legado de violência do passado totalitário e implementar

mecanismos que garantam a efetividade do direito à memória e à verdade. A

Comunidade Internacional, no entanto, menciona quatro obrigações comuns para os

Estados, quais sejam: adotar medidas razoáveis para prevenir violações de direitos

humanos; oferecer mecanismos e instrumentos que permitam a elucidação de situações

de violência; dispor de um aparato legal que possibilite a responsabilização dos agentes

que tenham praticado as violações e; garantir a reparação das vítimas, por meio de ações

que visem à reparação material e simbólica.

O Centro Internacional de Justiça de Transição (ICTJ), organização não

governamental que oferece assistência a países os quais enfrentam um legado de

violência dos direitos humanos, destaca, dentre os enfoques básicos de justiça de

transição – memória, verdade e justiça –, algumas iniciativas importantes como

estratégias, a saber: interposição de ações penais contra torturadores e violadores dos

direitos humanos; instauração de comissões da verdade; instauração de programas de

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reparação em favor das vítimas e de familiares; acesso e abertura dos arquivos do

período da repressão, além de reforma institucional. O ICTJ sinaliza que essas medidas 7não são exaustivas, já que cada país sabe a melhor forma de lidar com o seu passado

violento e desenvolver estratégias para avançar no processo democrático.

Os objetivos da justiça de transição giram em torno do reconhecimento do

passado totalitário, para que se possa dar efetividade aos direitos fundamentais. Como

bem assinala Dimitri Dimoulis8, em relação aos pilares da justiça de transição:

Forma-se assim um triângulo de modelos de tratamento jurídico dos problemas transicionais: responsabilização( punição)- verdade( memória) -anistia ( perdão).(...) os vários modelos possuem um elemento comum: se realiza uma reavaliação do passado, modificando julgamento e mudando a postura oficial perante acontecimentos e pessoas.

O Brasil adotou um modelo de justiça de transição que afasta o jus puniendi

dos autores dos crimes, fundamentado na errônea interpretação da Lei 6.683/79 - Lei de

Anistia, que não alcançou a responsabilização criminal dos torturadores do período

ditatorial, não havendo, até a presente data, nenhuma condenação na justiça criminal.

Os crimes perpetrados pelos violadores dos direitos humanos – sequestros,

ocultação de cadáveres, torturas, homicídios, entre outros – não foram apreciados pela

justiça criminal do Brasil. Tais crimes deveriam, ser interpretados como delitos de lesa

humanidade.

Destarte, a responsabilização penal por esses atos é considerada essencial para

que se possa realmente consolidar a democracia brasileira e realizarmos o nosso “nunca

mais”. Mais de vinte anos se passaram e até o presente momento, não existe nenhuma

condenação contra os agentes da repressão brasileira no período da ditadura militar.

7 DIMOULIS, Dimitri. Justiça de transição no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2010, p.94.

8 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Antonio (Orgs.). Justiça de transição no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2010, p.94.

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Algumas políticas públicas de transição no Brasil, no entanto, merecem

considerações a saber: abertura de arquivos do período em alguns Estados brasileiros; a

atuação da Comissão Especial de Mortos Desaparecidos (Lei 9.140/95), que tem um

acervo importante sobre vítimas e sobre as atrocidades cometidas pelos torturadores e

que deu origem a instauração da Comissão nacional da Verdade em 2012; o trabalho da

Comissão de Anistia no âmbito do Ministério da Justiça (Lei 10.559/02), a publicação

do livro Direito à Memória e à Verdade, lançado pela Secretaria Especial de Direitos

Humanos da Presidência da República em 2007, a criação do Centro de Referência das

Lutas Políticas no Brasil, denominado Memórias Reveladas, institucionalizado pela

Casa Civil da Presidência da República e implantado no Arquivo Nacional e a

instituição do 3º Programa Nacional de Direito Humanos- PNDH pelo Decreto

Presidencial nº 7.037/09 em 2009, e finalmente a instauração da Comissão Nacional da

Verdade em 2012.

A Comissão da Anistia do Ministério da Justiça lançou, em abril de 2008, a

Caravana da Anistia, com o objetivo de percorrer todos os estados brasileiros para

difundir o conhecimento histórico do passado ditatorial e julgar os pedidos

de indenizações de perseguidos políticos, fomentando exposições e debates sobre o

tema.

Em outros países, como a Argentina, o período da ditadura militar foi bastante

cruel, com indicadores de que aproximadamente 30 mil argentinos foram sequestrados e

torturados pelos militares e várias crianças foram arrancadas de seus pais e entregues a

famílias de militares ou a orfanatos.

A sociedade argentina, por meio dos organismos de direitos humanos, partidos

de esquerda e movimentos sociais, como Las Madres de La Plaza de Mayo, foi bastante

atuante para que se realizasse a justiça de transição na Argentina, enquanto movimento

social para consolidação da democracia no país.

As condenações dos militares argentinos ainda continuam sendo alvo de

discussões da população sofrida. O ex-presidente Jorge Rafael Videla recebeu, em

dezembro de 2010, sua segunda condenação à prisão perpétua e, no dia 23 de março de

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2011, o General Luciano Benjamin Menéndez também foi condenado, pela segunda vez,

à pena de prisão perpétua pela prática de crimes contra a humanidade.

Em 2012, o movimento “ Hijos ” (H.I.J.O.S. (Filhos e Filhas pela Identidade e a

Justiça, Contra o Esquecimento e o Silêncio, na sigla em espanhol, que se traduz por

FILHOS) em Córdoba, teve seu reconhecimento quando um dos seus representantes foi

escolhido com Secretário de Direitos Humanos da Argentina.9

3. AS PRIMEIRAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE JUSTIÇA DE

TRANSIÇÃO NO BRASIL

A justiça de transição no Brasil teve como pilar principal a reparação. As

reparações são instrumentos de suma importância para a justiça de transição, e podem

ser feitas por meio de benefícios financeiros, de assistência psicológica ou de outras

medidas.

As políticas públicas de memória e verdade no Brasil debruçaram-se para as

violações de direitos humanos ocorridas durante os anos de 1964 a 1985, época da

ditadura militar do país. Destarte, podemos dizer que a justiça de transição no Brasil,

teve o ano de 1985 como período inicial, apesar de 1979, com a promulgação da Lei de

Anistia (Lei 6.683/79), já possamos dizer que o Brasil deu seus primeiros passos no

tocante a formação do Estado democrático.

Apesar desta Lei, resultante dos movimentos sociais opositores a ditadura, ter

sido marco no processo de abertura política, como reivindicação da anistia para os

presos políticos, foi adotada com um texto ambíguo, que incluía aqueles delitos

“conexos com os políticos”, tendo sido mal interpretada pelos tribunais de forma que,

entre o rol dos delitos anistiáveis, se incluiria aqueles cometidos por funcionários da

ditadura militar, para reprimir a opositores políticos, incluindo crimes de lesa

9 Martín Fresneda, Secretário de Direitos Humanos é filho de desaparecidos, tendo sido, quando criança junto com seu irmão, testemunha do sequestro de seus pais durante a chamada “Noite das Gravatas” É advogado e em Córdoba, foi denunciante em vários dos processos pelos crimes cometidos pelo terrorismo de Estado.

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humanidade como a tortura, o sequestro e desaparecimento forçado e execuções

sumárias. Esta divergência de interpretação teve suas consequências no futuro, ou

melhor, no presente, momento em que se questiona a constitucionalidade da referida lei.

Assim, não podemos dizer que a Lei de Anistia brasileira10, apesar de ter sido

desejada para ser “ampla, geral e irrestrita” pelas vítimas e familiares de militantes

políticos, teve a sua completa eficácia .

A falta de julgamento dos responsáveis pelas graves violações dos Direitos

Humanos, diferente o Brasil dos outros países latino-americanos que também sofreram

violações de Direitos Humanos no período ditatorial. O caso brasileiro se caracterizou pela

ausência de juízos penais que condenaram os agentes da repressão.11

Ademais, só no ano de 2012 foi que se instaurou a Comissão Nacional da Verdade

Brasileira, embora já houvesse comissões que buscavam a reparação no País, como: a Comissão

Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) de 1995, a Comissão de Anistia do

Ministério de Justiça de 2002, além do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3).

Antes da instauração da Comissão Nacional da Verdade, poderíamos dizer que o direito

brasileiro, no tocante a reparação se resumiria num verdadeiro direito de anistia., entendido

como um direito do militante político de ter sido declarado oficialmente anistiado político. Esta

declaração do anistiado é considerada como um gesto oficial de pedidos de desculpa pelo

Estado que reconhece que perseguiu politicamente um cidadão. O art. 1º de la Lei 6.683/79 d 22 de agosto de 1979, estabelece “É concedida anistia todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (vetado) [...]”.

Em 2010, o Supremo Tribunal Federal de Brasil reafirmou a constitucionalidade da interpretação da Lei de Anistia, a qual foi interpretada de maneira benéfica para os agentes da repressão, sendo estes absolvidos. Vide sentença do Supremo Tribunal Federal na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental No. 153, de 29 de abril de 2010, In: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF153.pdf.

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Apesar de esse ato ser individual, há que se reconhecer que já houve um pedido de

desculpas coletivo registrado pela Caravana da Anistia, como ocorreu quando “a Caravana da

Anistia” realizou em junho de 2009, em praça pública do município de Santo Domingo de

Araguaia/Pará, na presença de más de 600 habitantes da região. Essa atividade inaugurou o

primeiro ato público de pedido de desculpas coletivo por parte do Estado brasileiro, aos

campesinos perseguidos e torturados durante o período da repressão militar contra o movimento

de resistência conhecido como a “Guerrilha do Araguaia”.·.

Outro passo para a reparação, pode ser ilustrado no caso da família do jornalista

Vladimir Herzog, morto em razão de torturas, nos porões do DOI-CODI, em 1975. A

causa mortis na certidão de óbito de Herzog foi modificada. Na certidão, revisada após

determinação da Justiça, passa a constar como causa da morte "lesões e maus tratos

sofridos durante o interrogatório em dependência do 2º Exército (DOI-Codi)", que

substitui formalmente a versão de "asfixia mecânica por enforcamento".

Ainda no tocante as políticas públicas relativas a reparação, podemos destacar algumas

políticas de nível federal que tem impacto local, como o Projeto Direito à Memória e à Verdade

da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, que inclui a criação

de monumentos e montagem de exposição em todo o Brasil, em parceria com algumas

instituições como Prefeituras, universidades, centros de estudos e ONG.·.

Verifica-se a existência de algumas políticas públicas relacionadas com a memória e

verdade, correspondente aos anos de 1990 e 1993. A primeira corresponde a Comissão

Parlamentar de Inquérito da Câmara Municipal de São Paulo sobre a fossa comum de Perus,

no Cemitério Dom Bosco, na Capital. A descoberta desta fossa comum com mais de 1000

corpos de opositores políticos, contribuiu para por em debate público o problema dos mortos e

desaparecidos políticos. Vale salientar que esta Comissão de Investigação não emitiu de forma

imediata nenhum informe concludente sobre a questão, até 2012.

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O ano de 1995 teve um marco para a justiça de transição do Brasil, a aprovação da lei

9.140, que reconheceu como mortas às pessoas desaparecidas em razão da sua participação em

atividades políticas entre 1961 e 1979. A referida Lei dispunha de três importantes

reconhecimentos: Firmou o reconhecimento expresso por parte do Estado brasileiro na

responsabilidade sobre a morte e desaparecimento de opositores políticos da ditadura., listando

136 pessoas sequestradas a partir do Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos a partir de

1964 elaborado por organizações de familiares das vítimas12;

4. O TRABALHO DA COMISSÃO DA VERDADE

As Comissões da Verdade são instrumentos importantes para se garantir à

sociedade – como forma de resgate da cidadania – o direito a ter conhecimento dos

motivos pelos quais esses crimes foram cometidos no passado, num regime distante

do atual.

A lei que a institui a Comissão Nacional da Verdade no Brasil, (Lei 12.528) foi

instaurada oficialmente em 16 de maio de 2012, mediante iniciativa oficial, tendo como

objetivo investigar e registrar as violações ocorridas durante o período militar, com

vistas a reparar as famílias dos militantes mortos ou desaparecidos.

Sete membros compõem a Comissão Nacional da Verdade: José Carlos Dias (ex-

ministro da Justiça), Gilson Dipp (ministro do Superior Tribunal de Justiça), Rosa

Maria Cardoso da Cunha (advogada), Cláudio Fonteles (ex-procurador-geral da

República), Paulo Sérgio Pinheiro (diplomata), Maria Rita Kehl (psicanalista) e José

Cavalcante Filho (jurista). Os critérios para a escolha dos membros se fundaram em

alguns pontos principais, tais como pessoas "de reconhecida idoneidade e conduta ética,

identificadas com a defesa da democracia e institucionalidade constitucional, bem como

com o respeito aos direitos humanos".

COMISSÃO ESPECIAL SOBRE MORTOS E DESAPARECIDOS POLÍTICOS. Direito à Memória e à

Verdade, Ob.Cit., Págs. 33-35. Sobre el Dossiê dos Mortos e Desaparecidos .” Publicação do Dossiê dos

Mortos e Desaparecidos Políticos a partir de 1964”.

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

213

Page 214: Justica de transicao vdd memoria e justica

-

A coleta de provas da Comissão Nacional da verdade é realizada a partir do

depoimento das vítimas, testemunhas, documentos, tendo ainda o dever de fazer com

que a sociedade e os próprios violadores reconheçam as injustiças cometidas e peçam

perdão.

A comissão terá o direito de convocar vítimas ou acusados das violações para

depoimentos, mesmo que a convocação não tenha caráter obrigatório, além de ter acesso

a arquivos e documentos do poder público sobre o período, porém não tem o poder de

punir ou recomendar que acusados que praticaram crimes durante a ditadura.

A comissão deverá colaborar com as instâncias do poder público para a

apuração de violação de direitos humanos, além de enviar aos órgãos públicos

competentes dados que possam auxiliar na identificação de restos mortais de

desaparecidos, podendo proceder a vistorias em locais considerados “sítios de tortura”,

e além de identificá-los, devem apontar instituições e circunstâncias relacionadas à

prática de violações de direitos humanos daquele período.

A comissão, proposta em 2010, passou por diversas mudanças, principalmente

para atender as queixas dosa gentes públicos repressores da época, substituindo alguns

termos descritos no seu texto, como "repressão política", além de prevê o "exame" de

violações de direitos humanos, diferente da versão de 2010, que previa a "apuração" dos

fatos ocorridos durante o período de 1964 a 1985, englobará fatos que ocorreram entre

os anos de 1946 e 1988.

5- CONCLUSÃO

O tempo presente reflete sobre a verdade. Mas, é o futuro quem dirá o que

devemos fazer. Só o tempo ganha. Não adianta travar lutas contra ele. As medidas

estabelecidas pela Comissão de Justiça de Transição devem ser aplicadas,

preferencialmente, de forma integrada, a fim de não comprometer a credibilidade do

processo, buscando sempre o caminho para alcançar a democracia, desde que sejam

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

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Page 215: Justica de transicao vdd memoria e justica

-

levadas em consideração a prevalência dos direitos humanos e a obediência ao

cumprimento de princípios fundamentais.

Exemplo bem claro aconteceu em 05 de dezembro de 2011 com o

anistiamento a Marighella. Quem foi Marighella na época da ditadura, senão um

criminoso? Hoje, quem é Marighella? Um herói. Um homem que lutou por um Brasil

melhor. Em 1969 Marighella foi assassinado. E o que se contou foi outra versão. Nosso

presente nos traz novas informações, muitas delas perdidas para sempre, porque tiraram

tudo de Marighella, inclusive seus pertences pessoais, seus registros, suas fotos.

Afastamo-nos um pouco mais de 40 anos do ocorrido e já podemos identificar/pensar as

verdades a despeito do ocorrido.

Sobre a verdade ainda temos muito a refletir, especialmente juridicamente falando.

No entanto, acreditamos que o direito de acesso à informação é determinante para a

construção dos direitos e valores fundamentais da cidadania e da democracia

participativa.

Embora ainda haja muitas dificuldades enfrentadas pela justiça de transição no

Brasil, a memória e a verdade não podem ser afastadas do conhecimento da nova

geração, sobretudo para que as atrocidades do regime totalitário não voltem a se repetir.

Mesmo sem a abertura dos arquivos da ditadura, no Brasil, em algumas regiões,

como na Bahia, onde prevalece o silêncio, a Comissão da Verdade vem se firmando na

luta pela democracia e no reconhecimento das violações dos direitos humanos, mas a

verdade sobre um passado sofrido um dia será mostrada.

Os remédios democráticos como o Habeas data e as ações de reparação podem

confirmar que a luta existiu, que pessoas morreram porque acreditaram na possibilidade

de um regime democrático em nosso país.

À medida que os governos são surpreendidos com a memória revelada, estes

podem conceder compensações financeiras às famílias. Embora tais reparações não

possam trazer de volta aqueles que um dia deram a vida pelo ideal de justiça, ao menos

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

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Page 216: Justica de transicao vdd memoria e justica

-

essas famílias podem ver os sonhos dos seus filhos concretizados no ideal democrático.

Um grande avanço, sem dúvida, no Brasil é a entrada em vigor da Lei 12.527/2011.

Temos muito caminho a percorrer.

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Page 219: Justica de transicao vdd memoria e justica

JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO E RECONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA: UMA ANÁLISE

SOBRE O PAPEL DAS “COMISSÕES DE VERDADE” NA CONSOLIDAÇÃO DO

DIREITO FUNDAMENTAL À VERDADE E À MEMÓRIA NOS PAÍSES DO

MERCOSUL.

TRANSITIONAL JUSTICE AND DEMOCRACY RECONSTRUCTION: ONE

ANALYSIS OF THE PURPOSE BY “COMISSIONS OF TRUTH” IN THE

CONSOLIDATION OF THE FUNDAMENTAL RIGHTS LIKE TRUTH AND

MEMORY IN THE MERCOSUR COUNTRIES.

Fernando Horta Tavares1

Larissa Maria da Trindade2

RESUMO O presente artigo faz uma abordagem critica acerca do papel desempenhado pelas “Comissões de Verdade” quanto à consolidação do Direito Fundamental à verdade e à memória nos países do MERCOSUL (Brasil, Paraguai, Uruguaia, Argentina e Venezuela). O paradigma do Estado Democrático de Direito, engloba em um mesmo diapasão a Justiça de Transição, a Democracia e o Constitucionalismo, que mostram-se intimamente ligados na busca pela defesa e garantia dos direitos humanos, mais especificamente os direitos à verdade e à memória, no que diz respeito aos processos transicionais. Questiona-se a legitimidade conferida às Comissões Nacionais da Verdade nestes países para eficazmente contribuírem para o processo de reconstrução democrática, uma vez que não foram instauradas mediante um processo de democracia participativa. PALAVRAS-CHAVE: Democracia; Constitucionalismo; Justiça de Transição; Comissão de Verdade; Direitos Humanos. 11 Pós-Doutoramento em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Doutor em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestre em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUCMINAS. Professor da Graduação e da Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Licenciado em História pela Universidade Católica de Minas Gerais (UCMG). Advogado. 2 Graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Monitora das disciplinas Teoria Geral da Constituição e Direito Constitucional I e II na Faculdade Mineira de Direito da PUC Minas.

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Page 220: Justica de transicao vdd memoria e justica

ABSTRACT This article aims to make a critical approach on the role played by "Truth Commissions" as the consolidation of the Fundamental Right to truth and memory in the MERCOSUR countries (Brazil, Paraguay, Uruguay, Argentina and Venezuela). The paradigm of democratic rule of law, encompasses the same pitch in Transitional Justice, Democracy and Constitutionalism, which show up in the search for closely linked defense and guarantee of human rights, specifically the rights to truth and memory, respect to transitional processes. Questions the legitimacy conferred National Commissions of Truth in these countries to effectively contribute to the process of democratic reconstruction, since they were not introduced through a process of participatory democracy.

KEYWORDS: Democracy; Constitutionalism; Transitional Justice; Commission of Truth; Human Rights.

INTRODUÇÃO

Há um ponto sobre o estudo da sociedade e da cultura em que são mais ou menos

acordes os antropólogos, e diz respeito à propensão do homem de viver em agregados

(ROUDINESCO: 2003; HERSKOVITS: 1963). Essa afirmativa não escapou às preocupações

de Freud (1921), o que se revela em sua obra sobre a Psicologia de grupo e análise do ego,

artigo no qual o autor destina um capítulo para explicar o que seria esse instinto gregário. Ao

lado de outros instintos primários como os de autopreservação e nutrição, o instinto gregário

revela-se como característica inata aos seres humanos que os leva a se associarem, a se

organizarem em grupos. Isso se dá, segundo Freud, porque “[...] se está sozinho, o indivíduo

sente-se incompleto.” (FREUD (1921), 1976, p.150).

Por isto, uma sociedade é regida por normas que procuram estabelecer, numa dada

época histórica direitos e deveres aos seus cidadãos. Porém, conforme leciona Dalmo de

Abreu Dallari (1985), um direito só existe realmente quando pode ser usado: direitos que

constam da lei e não podem ser praticados e direitos desrespeitados por falta de meios de

defesa e garantia, não são considerados direitos.

A vivência em sociedade configura em cada país o estabelecimento e criação de uma

identidade nacional entre seus povos: um conjunto de valores, tradições, sentimentos, história

e cultura, que fazem uma pessoa se sentir parte de uma determinada nação.

O que se pode denominar de identidade nacional é consolidado pela convivência

social, repassada pelas gerações e constitui elemento de integração. O sentimento do ‘ser’

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Page 221: Justica de transicao vdd memoria e justica

argentino, paraguaio, uruguaio ou brasileiro não se mistura, mas unifica-se no ‘ser’ latino-

americano, fruto das contingências históricas reunidas a partir de um passado ibérico.

Referida identidade congrega valores e objetivos democráticos, no sentido traçado

por Eduardo Nunes Campos:

“Em busca de identidade, que de resto marca toda a história da humanidade, reveste-se, na América Latina, de traços que lhe conferem singularidade em relação a processos afins ocorridos em outras partes do mundo. Aqui, o processo de independência colonial e fragmentação dos territórios levou primeiro, na quase totalidade dos casos, ao surgimento dos Estados e posteriormente à pergunta relativa à identidade e aos projetos nacionais, particularidade a que se soma a história comum de alienação, dependência e exclusão social da região.” (CAMPOS, 2002 p.251)

No entanto, os estudos que compreendem os chamados processos transicionais não

devem ser analisados somente como método da releitura histórica das identidades nacionais,

pois o tema da justiça de transição engloba muitos elementos além destes.

A temática da justiça de transição, enquanto válvula propulsora da reconstrução

democrática dos povos está intimamente ligada à ideia da identidade do sujeito constitucional,

às identidades nacionais, mas não só a elas, justamente por poder ser sempre reinterpretada e

reconstruída, ao longo do tempo. Por consequência, afigura-se inevitável a tensão entre o

pluralismo inerente ao constitucionalismo contemporâneo e a tradição, pois a identidade

constitucional surge como algo complexo, fragmentado e incompleto, como esclarece Michel

Rosenfeld (2003).

Neste sentido, discorre o referido Rosenfeld para quem

“ (...) o sujeito constitucional deve ser considerado como um hiato ou uma ausência em pelo menos dois sentidos distintos: primeiramente a ausência do sujeito constitucional não nega seu caráter indispensável, daí a necessidade de sua reconstrução; e, em segundo lugar, o sujeito constitucional sempre envolve um hiato porque ele é inerentemente incompleto, e então sempre aberto a uma necessária, mas impossível busca de completude.”(ROSENFELD, 2003, p.23)

À vista destas considerações, surge a necessidade imperiosa de verificar se a Justiça

de Transição, que ocorreu e ocorre nos países do MERCOSUL, inclusive por intermédio da

instalação das Comissões de Verdade, busca realmente reafirmar as identidades

constitucionais de seus povos ou apenas assegurar a auto-imagem de seus Estados. Nesta

última, a reconstrução democrática estaria sempre sujeita ao reconhecimento do Estado, e não

às pretensões, objetivos e necessidades do povo, enquanto sujeito de poder direto e indireto.

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221

Page 222: Justica de transicao vdd memoria e justica

Para Giddens (2002), a orientação da modernidade direcionada para o controle em

relação à reprodução social e à auto-identidade “têm certas consequências e características ao

nível da experiência moral” (2002, p.139). Com efeito, o autor discorre sobre sua defesa do

que ele denomina políticas de emancipação, que tem como imperativos os valores da justiça,

igualdade e participação e se ocupa em reduzir a desigualdade, a exploração e a opressão:

“Defino a política emancipatória como uma visão genérica interessada, acima de tudo, em libertar os indivíduos e grupos das limitações que afetam negativamente suas oportunidades de vida. Ela envolve dois elementos principais: o esforço por romper as algemas do passado, permitindo assim uma atitude transformadora em relação ao futuro; e o objetivo de superar a dominação ilegítima de alguns indivíduos e grupos por outros. O primeiro desses objetivos facilita o ímpeto dinâmico positivo da modernidade. A ruptura com as práticas fixas do passado permite que os homens aumentem o controle social sobre as circunstâncias de suas vidas.” (GIDDENS, 2002. p. 194)

2 CONSTITUCIONALISMO E DEMOCRACIA: as bases para o processo transicional

A Justiça de Transição deve ser justamente baseada em uma política emancipatória,

que posteriormente converte-se em uma política-vida as quais, em outras palavras, levam à

política da escolha e esta somente é possível quando a sociedade já possui um maior controle

de sua vida social, em razão do maior grau de esclarecimento.

Para isso, se faz necessário a concretização e o desenvolvimento do Direito

Constitucional e do constitucionalismo, segundo Maurizio Fioravanti: “ El constitucionalismo

es concebido como el conjunto de doctrinas que aproximadamente a partir de la mitad del

siglo XVII se han dedicado a recuperar em el horizonte de la constitución de los modernos el

aspecto del limite y de la garantia.” (FIORAVANTI, 2011. p. 85)

O constitucionalismo moderno requer governo limitado, um Estado cujo Direito seja

Democrático e uma eficaz proteção aos direitos fundamentais.

Acerca dos elementos constitutivos do Estado Democrático de Direito, discorre

Menellick de Carvalho Netto:

“No paradigma do Estado Democrático de Direito, é de se requerer do Judiciário que tome decisões que, ao retrabalharem construtivamente os princípios e regras constitutivos do Direito vigente, satisfaçam, a um só tempo, a exigência de dar curso e reforçar a crença tanto na legalidade, entendida como segurança jurídica, como certeza do Direito, quanto do sentimento de justiça realizada, que deflui da adequabilidade da decisão às particularidades do caso concreto.” (NETTO, 1999 p.482)

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Page 223: Justica de transicao vdd memoria e justica

A necessidade da limitação do poder do governo se faz em decorrência da garantia

que se deve exigir da implementação dos direitos fundamentais, mas para que essa

fundamentalidade seja eficaz é preciso uma mediação entre as identidades, que devem ser

reconstruídas com a Democracia, sem amarras às heranças de uma tradição constitucional

dissociada dos princípios que estruturam hermeneuticamente o constitucionalismo pós-

segunda guerra mundial, marcadamente calcado na Dignidade do Ser Humano.

Em tempos de um Estado de Direito Democrático, é inconcebível que ainda não se

tenha traçado um estudo direcionado no sentido de verificação da reconstrução democrática

nos países que integram o Mercado Comum do Sul-MERCOSUL, tendo como base a Justiça

de Transição, pois ainda que não se esteja diante da mesma sociedade que viveu à época das

ditaduras civil-militares que assolaram a América do Sul nas décadas de 1960 e 1970,

vivenciam-se até hoje os seus reflexos a exigir o estabelecimento da verdade factual.

A defesa da democracia, da cidadania, das garantias constitucionais e processuais se

faz necessária não só para a instituição como a permanente concretização do Estado

Democrático de Direito. Uma democracia que deve assegurar conjuntamente igualdade, não

discriminação, dignidade e devido processo legislativo à todos os cidadãos, sendo estes,

também, observadores atentos da Constituição de modo que ela não se constitua em mera

“folha de papel”, na feliz expressão de Ferdinand de Lassale.

Nesta direção, menciona José Alfredo de Oliveira Baracho trecho que enfatiza o

sentido que deve ser empregado ao funcionamento das Comissões de Verdade, como

preservação da verdade e memória do período e meio amplo de efetivação das garantias

constitucionais: "os direitos elencados na Constituição podem ampliar-se, de modo que a

juridicidade, a efetividade e a justiciabilidade possam tornar concretos os direitos da

cidadania”. (BARACHO, 2003)

Essa cidadania necessariamente envolve a permanente reconstrução do que se

entende como direitos fundamentais consoante uma dimensão de temporalidade que abarque

as vivências e exigências constitucionais das gerações passadas, presentes e futuras, segundo

Rosenfeld (2003).

No entanto, para que essa efetividade e justiciabilidade, garantidora dos direitos da

cidadania se torne possível, é preciso, antes de tudo, a vivência sob a perspectiva de uma

democracia histórica e constitucionalmente construída e reconstruída, nos moldes, todavia, da

definição da democracia e do constitucionalismo conforme defende Hans Kelsen, em seu livro

intitulado “A Democracia”:

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

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Page 224: Justica de transicao vdd memoria e justica

“A democracia, no plano da ideia, é uma forma de Estado e de sociedade em que a vontade geral, ou sem tantas metáforas, a ordem social, é realizada por quem está submetido a essa ordem, isto é, pelo povo. Democracia significa identidade entre governantes e governados, entre sujeito e objeto do poder, governo do povo sobre o povo. Mas o que é esse povo? Uma pluralidade de indivíduos, sem dúvida. E parece que a democracia pressupõe, fundamentalmente, que essa pluralidade de indivíduos constitui uma unidade, tanto mais que, aqui o povo como unidade é – ou teoricamente deveria ser – não tanto objeto, mas principalmente sujeito do poder.” (KELSEN, 2000 p. 154)

Nesta mesma ordem de ideias discorre André Del Negri para quem “(...) há

democracia quando a Constituição é observada por todos (Cidadãos, Executivo, Legislativo,

Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Universidades, Escolas, etc...) (...)”

(NEGRI, 2007).

A seu turno, Norberto Bobbio (2004), em seu esclarecedor Dicionário da Política

conclui que hodiernamente o constitucionalismo não é outra coisa senão o modo concreto

como se aplica e realiza os sistemas democráticos representativos, mais corretamente

chamados de sistemas constitucional-pluralistas, que realizam o princípio do Governo

limitado. (BOBBIO, 2004, p. 257)

Canotilho (2004), mencionado por Pedro Lenza, procura estabelecer uma definição

para o constitucionalismo moderno:

“Canotilho identifica vários constitucionalismos, como o inglês, o americano e o francês, preferindo falar em "movimentos constitucionais". Em seguida, define o constitucionalismo como uma teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantida dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade. Neste sentido, o constitucionalismo moderno representará uma técnica específica de limitação do poder com fins garantísticos. O conceito de constitucionalismo transporta, assim, um claro juízo de valor. É, no fundo, uma teoria normativa da política, tal como a teoria da democracia ou a teoria do liberalismo". (LENZA, 2010 p. 49)

É a democracia, conquista histórica da humanidade e do constitucionalismo, o

pressuposto para o pleno exercício dos direitos humanos. Esses só podem ser concretizados

em um Estado essencialmente democrático, que não opera a supressão dos mesmos como

ocorreu nos regimes totalitários que assolaram a sul América, mas que os positive enquanto

direitos fundamentais e os garanta constitucionalmente, ainda que, não estejam explicitamente

elencados no Texto Constitucional, admitindo assim, uma interpretação extensiva da

Constituição em prol do Ser humano emoldurado pela Dignidade e de uma cidadania dela

resultante.

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224

Page 225: Justica de transicao vdd memoria e justica

Não há dúvida que a discussão em torno da temática dos processos transicionais tem

como marco teórico o paradigma do Estado Democrático de Direito, sobre o qual leciona

Wilba Lúcia Maia Bernardes:

“Podemos afirmar que esse paradigma ainda está comprometido com o ideal da legalidade, mas busca sua sustentação e legitimidade também no ideal de justiça. Como realizar esses dois aspectos balizadores deste novo Estado é a tarefa que hoje enfrentamos. Está claro que para superarmos as grandes questões desta sociedade hipercomplexa em que vivemos, teremos de construir a democracia, agora não mais formal, mas efetiva.” (BERNARDES, 2000. p. 17)

Para que esta normatividade se concretize é preciso que constitucionalismo e

democracia caminhem juntos, entendendo o constitucionalismo moderno como uma limitação

de poder que se faz necessária para a garantia dos direitos humanos, resultante na

possibilidade desta garantia ser concretizada por intermédio dos mecanismos do exercício da

democracia direta pelo povo, ou indireta por seus representantes.

3 BREVE PANORAMA DOS PROCESSOS DE JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NOS

PAÍSES DO MERCOSUL

Os processos históricos e políticos da Justiça de Transição nos países do

MERCOSUL3 devem ser considerados como uma representação da consolidação de uma

consistente cultura dos direitos humanos, e de novos caminhos para a democracia

3 “Em 26 de março de 1991, a república Argentina, a república federativa do Brasil, a república do Paraguai e a república oriental do Uruguai assinaram o Tratado de Assunção com o objetivo de constituir um Mercado Comum, denominado MERCOSUL. O MERCOSUL tem por objetivo consolidar a integração política, econômica e social entre os países que o integram, fortalecer os vínculos entre os cidadãos dos países membros, a fim de melhorar sua qualidade de vida, incorporando em seu âmbito o setor produtivo para melhorar sua competitividade em nível regional e internacional. O Mercado Comum implica a livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos, o estabelecimento de uma tarifa externa comum, a adoção de uma política comercial comum, a coordenação de políticas macroeconômicas e setoriais e a harmonização de legislações nacionais para alcançar o fortalecimento do processo de integração. Com o objetivo de fortalecer as relações com os países da América Latina, O MERCOSUL assinou acordos de livre Comércio com o Estado Plurinacional da Bolívia (1996), com a república do Chile (1996), com a república do Peru (2003), com a república da Colômbia (2004), com a república do Equador (2004) e com a república Bolivariana da Venezuela (2004), países que por tal motivo passaram a ser considerados Estados associados. .No contexto da consolidação do processo de integração latino-americana, em 4 de julho de 2006, foi aprovado o “Protocolo de adesão da república Bolivariana da Venezuela ao MERCOSUL”, dando início a um processo que transformou aquele país de Estado associado em Estado Parte do MERCOSUL. Mediante este Protocolo, a Venezuela aderiu ao Tratado de Assunção, ao Protocolo de Ouro Preto e ao Protocolo de Olivos para a Solução de Controvérsias.(MERCOSUL, Cartilha do Cidadão. 2010)”

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

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Page 226: Justica de transicao vdd memoria e justica

constitucional, caminhos estes, traçados a partir da garantia do direito fundamental à verdade

e à memória.

É o que afirma Kildare Gonçalves de Carvalho para quem

“ Em tempos de reconstrução democrática e de um neoconstitucionalismo marcado pela verdade, solidariedade e participação, fala-se em justiça de transição – uma conquista democrática – um conjunto de medidas, nem todas elas exclusivamente jurídicas, que a sociedade tem à disposição, na passagem ou retorno à democracia, para lidar depois de períodos de conflito ou repressão, com legados de violência deixados por regimes totalitários. A justiça de transição incorpora as várias dimensões de justiça capazes de contribuir para a reconstrução social, fundamentada na idéia da universalidade dos direitos humanos e sustentada na legislação humanitária e internacional de direitos humanos.”(CARVALHO, 2011 p.169-171)

No Brasil, o processo de justiça transicional iniciou-se com a Lei nº. 6.683 (Lei da

Anistia) que foi promulgada pelo então presidente Figueiredo4 em 1979, ainda durante a

ditadura civil-militar. No entanto, não foi assim que aconteceu com os demais países do

MERCOSUL já que nem todos criaram uma Lei de Anistia ou percorreram o mesmo caminho

rumo à redemocratização.

É verdade que os países do MERCOSUL guardam entre si muitos pontos de

identidade, principalmente em virtude do paralelismo de suas trajetórias históricas5, mas

4 João Baptista de Oliveira Figueiredo foi um geógrafo, político e militar brasileiro, tendo sido 30º Presidente do Brasil de 1979 a 1985 e o último presidente do período da ditadura civil-militar. 5 “No marco do chamado Mercado Comum do Sul – o Mercosul –, as identidades têm um forte componente histórico. O paralelismo nas trajetórias históricas das nações do Cone Sul vai muito além de sua origem colonial comum; a experiência de regimes burocrático-autoritários, na segunda metade do século XX, bem como os desafios enfrentados nos respectivos processos de redemocratização, também as aproximam de maneira bastante significativa. (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2009 p. 297)” – Na Argentina ocorreu a colonização espanhola iniciada em 1536 na região do Rio da Prata, com ruptura definitiva apenas em 1810 e independência em 1816, seguida de uma guerra civil. Passaram por uma aristocracia rural e pelo governo tirânico de um caudilho denominado Manuel das Rosas. Sofreram um golpe de Estado em 1930 e outro em 1943. Desde então, teve períodos de grandes instabilidades econômicas, políticas, sociais e de debilitamento de sua democracia: desde governo de coronéis, governos com viés fascistas, guerras (Guerra Suja, Guerra das Malvinas), atuação de guerrilhas de oposição aos regimes adotados e governos militares, intercalando períodos de surgimento e supressão da democracia. No Paraguai também ocorreu colonização espanhola com inicio em 1530, escravização da população indígena que residia anteriormente no território, durante o século XVII, com conquista da independência em 1811. Após essa data o país se isolou das demais nações sul-americanas ficando sob o poderio ditatorial do ditador José Gaspar Rodríguez Francia de 1814 até 1840. Esteve envolvido em guerras (Guerra do Chaco, Guerra do Paraguai), passou por vários golpes políticos até 1954, foi governado por um general (Alfredo Stroessner) que instalou uma ditadura no país e foi retirado do poder em 1989 com um golpe militar, por meio do qual assumiu um novo presidente. No Uruguai, ocorreu processo de colonização espanhola e portuguesa em 1624, com conquista da independência em 1825. Em 1859 e 1861 passou por uma guerra civil, seguida da participação na Guerra do Paraguai em 1865, surgimento do grupo guerrilheiro Tupamaros em 1966 e implantação de uma ditadura militar em 1973. O surgimento da democracia ocorre somente em 1980, com eleições em 1984. O Brasil, em conformidade com os demais países também teve um processo de colonização espanhola e portuguesa a partir do ano de sua descoberta em 1500, que se estendeu até o século XIX, terminando com a independência em 1822. Após a independência sucederam-se as fases do Brasil Império, República, políticas de coronelismo, guerras (inclusive a Guerra do Paraguai já citada anteriormente), a

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Page 227: Justica de transicao vdd memoria e justica

também há entre eles grandes diferenças, uma vez que, é preciso observar a justiça de

transição como reflexo do histórico cultural e político dos povos de cada país

individualmente, que ocorre em diferentes circunstâncias historicamente situadas.

Torna-se necessário dar um enfoque especial à revelação da verdade e à preservação

da memória deste espaço de tempo, ainda que existam muitos outros processos relacionados

ao período transicional6, tais como as reformas institucionais, a tentativa de promover a

reconciliação entre as partes em conflito, medidas de reparação e os processos judiciais contra

aqueles que atentaram, em realidade, contra os direitos humanos.

O quadro abaixo demonstra o que já foi feito para reconstrução da identidade dos

países do MERCOSUL, com dados até março de 2009:

Quadro 1: As experiências da justiça transicional no Mercosul

País do Mercosul

Investigação da Verdade

Responsabilização criminal dos autores

de violações

Reparação das vítimas

Reforma de instituições

do regime político

(VETTING)

Argentina Avançada e

plena

Sim Sim Não

Brasil Limitada a

algumas

Tentativas fracassadas Sim Não

ditadura militar até o inicio da redemocratização. Todos os países, historicamente com grandes oscilações que permeiam regimes de colonização e autoritarismo até a conquista de períodos mais democráticos. 6 “Contudo, mesmo em países que aprovaram anistias, o Estado e a sociedade não renunciaram a seu direito de conhecer o passado e mesmo de buscar a responsabilização dos agentes de graves violações a direitos humanos. Com efeito, dentre os países do Cone Sul, apenas o Paraguai não aprovou nenhuma forma de anistia após o fim de sua ditadura cívico-militar (SIKKING; WALLING, 2007). Ainda assim, Uruguai e Argentina, com suas respectivas leis de anistia, promoveram comissões de verdade e julgamentos para responsabilizar agentes da repressão. Mesmo a via da responsabilização criminal não fica interditada por essas leis, pois as mesmas não abarcam todos os atos ou agentes, deixando abertas oportunidades para a proposição de ações criminais. A Lei de Caducidade da Pretensão Punitiva do Estado (Lei 15.848) uruguaia protege apenas funcionários militares e policiais do regime, não impedindo a punição de agentes civis da ditadura. Outras leis, como a Lei do Ponto Final argentina (Lei 23.492) e mesmo a lei de anistia brasileira (Lei 6.683/79), não impediriam a responsabilização por alguns crimes não incluídos, como o desaparecimento, nos primeiros casos, e a tortura, no último. No Uruguai, apenas recentemente foi estabelecida uma curta Comissão para a Paz e processados pretensos autores de violações a direitos humanos. (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2009)”

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Page 228: Justica de transicao vdd memoria e justica

informações

sobre mortos e

desaparecidos

Paraguai Recente, porém

plena

Sim Sim Não

Uruguai Temporalmente

limitada

Recente Sim Não

Fonte: NAHOUM, André Vereta. BENEDETTI, Juliana Cardoso. JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO E INTEGRAÇÃO REGIONAL: O DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE NO MERCOSUL. Revista Anistia Política e Justiça de Transição. N. 1 (jan. /jun. 2009). -- Brasília: Ministério da Justiça, 2009.

4 A INSTITUIÇÃO E O PAPEL DAS COMISSÕES NACIONAIS DA VERDADE NA

GARANTIA E PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

As Comissões de Verdade, enquanto meios quase-judiciais de apuração dos fatos,

passaram a desempenhar um papel fundamental na construção institucionalizada do Estado

Democrático de Direito, rumo à reconciliação e ao perdão sociais, e também como meios de

garantir os direitos à verdade e à memória da sociedade, em determinados períodos de

repressão política e social. Elas já são uma realidade de todos os países do MERCOSUL,

ainda que, no Brasil só tenha sido implantada recentemente no ano de 2012.

A Comissão Nacional da Verdade brasileira foi instalada pela presidente Dilma

Rousseff em 16 de maio de 2012, pela Lei nº. 12.528/2011 e possui como objetivo a apuração

de violações graves aos direitos humanos que tenham ocorrido entre setembro de 1946 e

outubro de 1988 – ano em que foi promulgada a Constituição Cidadã. O prazo para apuração

das violações é de 2 (dois) anos e a Comissão é composta por 7 (sete) membros, entre os

quais figuram Cláudio Fonteles, Gilson Dipp, José Carlos Dias, João Paulo Cavalcanti Filho,

Maria Rita Kehl, Paulo Sérgio Pinheiro e Rosa Maria Cardoso da Cunha.

No Uruguai foi criada em 2000 a Comisión para La Paz; no Paraguai a Comisión de

Verdad y Justicia foi estabelecida em 2004 e na Argentina a Comisión Nacional sobre la

Desaparición de Personas ocorreu em 1983.

Importante salientar também a experiência chilena, enquanto Estado Associado ao

MERCOSUL:

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“ No Chile, o presidente Aylwin Azocar criou, em 1990, a Comissão Nacional de Verdade e Reconciliação, tendo oito membros e prazo de nove meses para investigação. Essa Comissão tinha como funções as seguintes: (a) estabelecer um quadro sobre as violações dos direitos humanos, seus antecedentes e circunstancias; (b) reunir informações para individualizar as vítimas e seus paradeiros; (c) recomendar as medidas de reparação e reivindicações necessárias; (d) recomendar as medidas legais e administrativas cabíveis. Foram investigados os fatos ocorridos no período de 11 de setembro de 1973 a 11 de março de 1990, contando a Comissão com a colaboração de diversos organismos nacionais e internacionais de Direitos Humanos. Foram ouvidos mais de 3.400 familiares de desaparecidos, tendo ocorrido viagens internacionais a fim de ouvir o relato de exilados. Em 1992 o governo do Chile criou a Corporação Nacional de Reparação e Reconciliação, para cumprir e executar as recomendações da Comissão de Verdade e Reconciliação. (LEAL, 2012 p.203 – 228)

Ao contrário do Uruguai, Paraguai e Brasil a população chilena não reivindicou por

uma anistia (a lei de anistia, imposta pela ditadura comandada pelo General Augusto Pinochet

em 1979, foi há pouco tempo declarada sem aplicação pela Corte Interamericana de Direitos

Humanos), tendo ocorrido eleições para retorno à democracia logo após o fim dos regimes

militares.

4.1 “Comissões de Verdade” e o Direito Fundamental à verdade e à memória

É preciso compreender, sobretudo, o papel das Comissões de Verdade nos países da

América Latina no que diz respeito à defesa dos direitos humanos, uma vez que alguma

doutrina jurídica acaba propondo uma talvez desnecessária diferenciação entre os direitos

humanos e os direitos fundamentais.

Para autores como Fábio Konder Comparato (2001), por exemplo, estes últimos

seriam os direitos humanos positivados nas Constituições, leis e tratados internacionais. Mas

para outros autores como Marcelo Campos Galuppo, os direitos fundamentais são os direitos

que os cidadãos precisam reciprocamente reconhecer uns aos outros, em dado momento

histórico, se quiserem que o direito por eles produzidos seja legítimo, ou seja, democrático.”

(Galuppo, 2003, p. 236).

Dessa forma, percebe-se que em âmbito doutrinário há uma gama de conceitos, que

de certa forma se intercomunicam, de maneira que os direitos humanos, em determinado

momento, transformam-se em direitos fundamentais, como conclui o próprio Galuppo:

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“Os Direitos Humanos transformam-se em Direitos Fundamentais somente no momento em que o Princípio do discurso se transforma em Princípio Democrático, ou seja, quando a argumentação prática dos discursos morais se converte em argumentação jurídica limitada pela faticidade do direito, que implica sua positividade e coercibilidade, sem, no entanto, abrir mão de sua pretensão de legitimidade. Isso significa, antes de qualquer coisa, que os Direitos Fundamentais representam a constitucionalização daqueles Direitos Humanos que gozaram de alto grau de justificação ao longo da história dos discursos morais, que são, por isso reconhecidos como condições para a construção e o exercício dos demais direitos.” (Galuppo, 2003, p.233)”

Neste artigo defende-se a tese de que se faz necessária a constante defesa dos direitos

humanos porque eles carregam consigo um caráter de supranormatividade muito além dos

textos positivados ou de qualquer limitação imposta pela soberania popular, por se tratar de

um direito de todos os povos, sem restrições.

São as Comissões de Verdade o “locus” para o respeito e consolidação dos direitos

humanos e a efetiva possibilidade de reconstrução da memória e verdade de um país e de seu

povo. No entanto, de acordo com a reportagem veiculada no site “Brasil de Fato”, pode-se

observar algumas críticas com relação à implantação da Comissão Nacional da Verdade

brasileira, no que se refere à sua finalidade e atuação:

“A Comissão para muitos abre novos horizontes na luta contra os desmandos, atrocidades e impunidades cometidas durante a ditadura militar, para outros, entretanto, já nasce natimorta, uma vez que subordinada à Lei da Anistia, está esvaziada, impedida e impossibilitada de utilizar o mecanismo da punição. O governo brasileiro reconheceu em 1995 que o Estado foi o responsável por assassinatos, desaparecimentos e tortura durante o regime militar, mas a Lei de Anistia de 1979 proíbe punições. As comissões da verdade não tem poder para responsabilizar ou punir ninguém.” (SANSON, 2012)

No mesmo sentido crítico discorre Frei Betto (2012) para quem

A Comissão da Verdade, nomeada pela presidente Dilma, corre o risco de se transformar em Comissão da Vaidade, caso seus integrantes façam dela alavanca de vaidades pessoais. A comissão atuará sob a obscura luz da injusta Lei da Anistia, promulgada em 1979 e referendada pelo STF em 2010. Esta lei nivela torturadores e torturados, assassinos e assassinados. Ora, como anistiar quem jamais sofreu julgamento, sentença e punição? Não houve “dois lados”. Houve o golpe de Estado perpetrado por militares e a derrubada de um governo constitucional e democraticamente eleito. A ditadura implantada cassou partidos e políticos, e criou um aparelho repressivo (“o monstro”, segundo o general Golbery) que instalou centros de torturas mantido com recursos públicos e privados. (BETTO, 2012, p. 2)

A implementação da Comissão Nacional da Verdade brasileira é um fato consumado

na esfera da defesa dos direitos humanos, dos ideários democráticos e para a realização da

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Page 231: Justica de transicao vdd memoria e justica

releitura histórica do país, da mesma forma como as já implantadas Comissões de Verdade

que atuaram nos países do MERCOSUL (Argentina, Paraguai, Uruguai). A dúvida recai é

sobre a legitimidade dessa Comissão e das demais, uma vez que, em um Estado Democrático

de Direito não se operou uma consulta popular para verificar a viabilidade e a aceitação desse

tipo de comissão, pela sociedade brasileira.

A ausência da consulta popular gerou inclusive relatos de descontentamento7 no que

se refere à composição da comissão por parte dos militares e de parentes das vítimas da

ditadura militar. Também não existem relatos da realização de consultas populares às demais

sociedades dos países do MERCOSUL, quando da implantação das suas Comissões de

Verdade, para que se fosse possível, por exemplo, incluir nas mesmas, algumas funções

sugeridas pela opinião popular.

A criação das Comissões de Verdade representa uma grande conquista histórica em

termos de reconstrução democrática. No entanto, a maneira como elas foram implantadas,

sem a consulta à sociedade, retira-lhes parte de sua legitimidade para a consolidação dos

direitos humanos e eficácia dos papéis por elas desempenhados.

A Justiça de Transição é necessária para o salutar desenvolvimento e fortalecimento

das instituições democráticas. De acordo com o Discurso da presidente Dilma Rousseff,

quando da instalação da Comissão de Verdade brasileira:

“A verdade não desaparece quando é eliminada a opinião dos que divergem, a verdade não mereceria este nome se morresse enquanto censurada. A verdade, de fato, não morre por ter sido escondida. Nas sombras somos todos privados da verdade mas não é justo que continuemos apartados dela à luz do dia. Embora saibamos que regimes de exceção sobrevivem pela interdição da verdade, temos o direito de esperar que sob a democracia, a verdade, a memória e a história venham à superfície e se tornem conhecidas sobretudo para as novas e futuras gerações (grifo meu). (...) A palavra verdade é o contrário do esquecimento, é memória e é história. É a capacidade humana de contar o que aconteceu. Ao instalar a Comissão da Verdade não nos move o revanchismo, o ódio ou o desejo de reescrever a história de uma forma diferente do que aconteceu mas nos move a necessidade imperiosa de conhecê-la em sua plenitude, sem ocultamentos, sem camuflagens, sem vetos e sem proibições. É a celebração da transparência da verdade de uma nação que vem trilhando seu caminho na democracia mas que ainda tem encontro marcado consigo mesma(grifo meu). Nesse sentido, e nesse sentido fundamental, essa é uma iniciativa do Estado Brasileiro e não apenas uma ação de governo. Reitero: hoje, celebramos aqui um ato de Estado. (...) Cada um de nós é igualmente responsável por esse momento histórico de celebração, cada um de

7 Conforme reportagem da BBC do Brasil: “A Comissão da Verdade, criada para investigar abusos de direitos humanos cometidos durante a ditadura militar, se reunirá pela primeira vez, em meio a críticas de oficiais das Forças Armadas e de parentes de vítimas. Descontentes com a composição da comissão, oficiais reformados do Clube Naval do Rio de Janeiro anunciaram a formação de uma "comissão paralela" para rebater as eventuais acusações do grupo oficial.” (CABRAL, 2012)

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Page 232: Justica de transicao vdd memoria e justica

nós deu a sua contribuição para esse marco civilizatório da Comissão da Verdade. Esse é um ponto culminante de um processo iniciado nas lutas do povo brasileiro pelas liberdades democráticas, pela anistia, pelas eleições diretas, pela constituinte, pela estabilidade econômica, pelo crescimento com a inclusão social(grifo meu). Um processo construído passo a passo, durante cada um dos governos eleitos depois da ditadura. A Comissão da Verdade foi idealizada e encaminhada ao Congresso no governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva.Tem sua origem na Lei da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos aprovada em 1995 na gestão do Presidente Fernando Henrique Cardoso.” (TRANSCRIÇÃO PRÓPRIA. Vídeo: Dilma instala a Comissão da Verdade. Disponível em: < http://www.youtube.com/watch?v=5yPBt3GSJuM > Acesso em: 23 set. 2012.)

Percebe-se que a presidente brasileira, em seu discurso, faz várias referências à

necessidade da implantação da Comissão de Verdade como mais um marco de fortalecimento

da democracia, das liberdades democráticas tão arduamente defendidas pelos brasileiros

durante tantos anos, como ela mesma menciona. Todavia, cada país do MERCOSUL possui

uma concepção diferente acerca da necessidade do fortalecimento de suas instituições

democráticas justamente por possuírem estruturas históricas e processos transicionais

semelhantes, mas não idênticos.

Nesse sentido, não é possível afirmar-se que o discurso do executivo brasileiro seja

considerado como parâmetro, em sua totalidade, para o processo de justiça de transição dos

demais países do MERCOSUL e vice-versa.

Como é cediço, a consolidação dos direitos humanos por intermédio da Justiça de

Transição deu-se de maneira diferenciada nos países do MERCOSUL como se vê, por

exemplo, na Argentina. Os direitos humanos, mais especificamente os direitos fundamentais à

memória e à verdade, iniciaram seu processo de consolidação em épocas diferentes em cada

país, com diferentes finalidades e fazem parte de um processo de releitura histórica e

democrática que está em curso até hoje.

É o que afirma Rogério Gesta Leal, referindo-se às Comissões da Verdade:

“Em vários países da América Latina os processos de saída dos regimes militares ao longo das décadas de 1960 a 1990 foram auxiliados por políticas públicas envolvendo a investigação das violações dos Direitos Humanos e Fundamentais e as formas de reparação dos danos causados em face disso. Umas das formas evidenciadoras destas políticas foram as Comissões da Verdade, com distintos aportes de finalidades, mas todas envolvidas em temas comuns decorrentes dos regimes de força e violência (grifo meu) gestados pelos governos militares.” (LEAL, 2012 p. 215)

Iniludível, pois, que se está diante um período de transição ainda inacabado.

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Page 233: Justica de transicao vdd memoria e justica

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise do processo de Justiça de Transição que se desenvolveu, e ainda se

desenvolve perante os países do MERCOSUL, embora guarde uma origem histórica-base,

admite muitas interpretações e possibilidades. Nesse sentido, as Comissões de Verdade

nasceram com finalidades distintas em sua atuação, para cada país, como antes se discorreu.

Essa diferenciação ocorre em virtude de diferentes bases de governo e estrutura de

Estado. As Comissões de Verdade foram criadas com os mesmos objetivos em todos os países

mas produziram e ainda produzirão diferentes efeitos em cada um deles, tendo em vista os

objetivos que se pretendem alcançar pela trajetória transicional dos mesmos. Sendo assim, a

consolidação dos direitos à verdade e à memória afigura-se de forma variável, a ser analisada

em cada país separadamente.

Por outro lado, e levando em consideração outra linha interpretativa, é possível

constatar um ponto de equilíbrio entre os processos transicionais ocorridos e os que estão

ainda ocorrendo no MERCOSUL e que tem favorecido inclusive a integração regional entre

esses países (Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina), ainda que existam algumas diferenças,

embora entrelaçadas por uma aspiração à uma identidade latino-americana.

Dessa forma, as Comissões de Verdade apesar de que não tenham sido criadas com

os mesmos objetivos e finalidades em todos os países, têm projeção na consolidação dos

direitos à verdade e à memória, que deve ser uma máxima dentro dos processos transicionais,

a ser analisada de maneira uniforme no MERCOSUL.

Ainda assim, nem todos os processos transicionais de mesma origem política e

histórica no MERCOSUL alcançaram os efeitos pretendidos perante a sociedade respectiva de

cada país, no que diz respeito à preservação da memória do período e a revelação da verdade.

Nesta linha, retomando a lição de Dalmo de Abreu Dallari (1985), não basta dar às pessoas

consciência de seus direitos sem meios para defendê-los, uma vez que, a eficiência de um

sistema de proteção de direitos está condicionada a atuação conjunta do Legislativo,

Executivo e Judiciário.

As Comissões de Verdade ainda não conseguiram cumprir efetivamente seu papel de

posterior efetivação dos direitos à verdade e à memória, considerando que estão em

construção os espaços para a configuração e exercício de uma efetiva democracia

participativa. É preciso que seja aberto um espaço de deliberação popular, de incitação à

critica, à novas perspectivas e novos pontos de vista, que possam levar a sociedade, em

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Page 234: Justica de transicao vdd memoria e justica

determinado momento, a reivindicar por novas maneiras de ver ocorrer a releitura de sua

história política e a concretização da defesa pelos direitos humanos, que não só as opções

ofertadas pelo ente estatal.

A Justiça de Transição só será efetiva, plena e eficaz nos países do MERCOSUL,

sem correr-se o risco de ver verificada uma situação de anomia sócio – jurídica nos países já

citados, hipótese que poderá ser evitada propondo-se um debate democrático com a sociedade

de modo a verificar-se o grau de satisfação da mesma, a partir da implementação do chamado

‘processo de transição’ em cada país, segundo regras procedimentais de direitos

constitucionais processuais.

Por enquanto, o que se visualiza é a criação de Comissões de Verdade justamente

como suplemento a um processo transicional incompleto e, por isto mesmo, inacabado. Tal

situação pode ser comparada à questão da evolução da afirmação dos direitos humanos a que

aponta Fábio Konder Comparato (2001) para quem os direitos humanos foram criados e

estabeleceram-se progressivamente sendo, por esta razão, sempre uma conquista inacabada e

constantemente reconstruída, no lhe acompanha Celso Lafer (1988) em seu livro intitulado “A

Reconstrução dos Direitos Humanos”.

Dessa forma, os direitos à verdade e à memória ainda estão por ser efetivados até os

dias atuais e a redemocratização, sob esta ótica, ainda é um processo em curso nos países que

compõem o MERCOSUL.

Verificar como os Estados do MERCOSUL têm cumprido seu papel no sentido de

contribuir para o melhor desenvolvimento desse processo de Justiça de Transição e quais os

reflexos advindos dos referidos processos transicionais, o papel da democracia, do

constitucionalismo e aquele desempenhado pelas Comissões de Verdade afiguram-se tarefas

árduas, tendo em vista o grau de exigência das pretensões plurais características da

contemporaneidade e do Estado Democrático de Direito, o qual deve ser visto como um

Estado propulsor da defesa dos direitos humanos, essencialmente solidário, fraterno e

consolidador da justiça social.

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LISTA DE QUADROS

QUADRO 1 As experiências de justiça transicional do Mercosul ......................................... 11

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

239

Page 240: Justica de transicao vdd memoria e justica

A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL E A LEI DA ANISTIA: SUPERAÇÃO

VERSUS ESQUECIMENTO

A TRANSITIONAL JUSTICE IN BRAZIL AND THE LAW OF AMNESTY:

OVERCOMING AGAINST FORGETTING

Luciana Carrilho de Moraes1

Enquanto o direito estiver sujeito às

ameaças da injustiça – e isso perdurará

enquanto o mundo for mundo –, ele não

poderá prescindir da luta. A vida do

direito é a luta: a luta dos povos, dos

governos, das classes sociais, dos

indivíduos.

(Rudolf Von Inhering, A luta pelo

Direito)

RESUMO O artigo analisa o período ditatorial, especificamente o golpe militar do ano de 1964 e suas

influências, enfatizando os ideais de Francisco Campos, que, almejando a instituição de um

regime antiliberal, centralizador e autoritário, empreendeu as reformas que deram forma e

organização política e institucional ao país. Posteriormente, serão abordadas as medidas da

justiça de transição, norteada por seus princípios basilares, quais sejam restauração dos

mecanismos democráticos, liberdades públicas e garantia dos direitos humanos,

correlacionando-a com a lei da anistia, abarcando as perspectivas penal, tributária e política,

uma vez que tais institutos possuem objetivos opostos: enquanto a justiça de transição luta

contra o esquecimento, a lei da anistia age em prol deste.

1 Graduação Bacharelado em Direito pelo Instituto Camillo Filho (ICF). Pós-graduação em Direito do Trabalho

pela Fundação Luís Flávio Gomes. Advogada associada no escritório Campelo & Campelo. Mestranda em

Direito Constitucional nas Relações Privadas pela Universidade de Fortaleza (Unifor). Email:

<[email protected]>.

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Page 241: Justica de transicao vdd memoria e justica

Palavras-chave: Ditadura militar; Brasil; Justiça de transição; Lei da Anistia. ABSTRACT The article examines the dictatorial period, specifically the military coup of 1964 and its

influences, emphasizing the ideals of Francisco Campos, who, aiming to establish a illiberal

regime, centralized and authoritarian undertook reforms that shaped and political organization

and institution in the country. Later, we will discuss the measures of transitional justice,

guided by its founding principles, namely restoration of democratic mechanisms, civil

liberties and human rights guarantees, correlating it with the law of amnesty, embracing the

perspectives criminal, and tax policy, since these institutes have opposing goals: while the

transitional justice struggle against forgetting the law of amnesty acts in favor of this.

Keywords: Military dictatorship, Brazil; Transitional justice; Amnesty Law. INTRODUÇÃO

O período ditatorial no Brasil (1964-1985) foi marcado por uma série de violações

aos direitos fundamentais mediante a organização de um aparelho repressivo brutal. Este

institucionalizou a prisão, a tortura, o desaparecimento forçado e o assassinato de setores da

população civil, em decorrência da intolerância ideológica, por serem considerados como

opositores ao regime.

A “Revolução DemocráPica” Mpoiou-se nos Atos Institucionais, que fundamentaram

um novo cenário político, baseando-se na doutrina da Segurança Nacional e não mais no bem

comum do povo.

Tal momento histórico recebeu fortes influências dos ideais de Francisco Campos,

que afinado com a tendência e visando a instituição de uma nova ordem nacional, empreendeu

as reformas que deram forma e organização política e institucional ao país, tais como os Atos

Institucionais, que motivaram a queda do então Presidente João Goulart.

Portanto, após o golpe militar, as garantias constitucionais dos cidadãos foram

suprimidas, imperando o “terrorismo de EstMdo”.

Ademais, com o fim do regime militar e a redemocratização do país, a sociedade

brasileira se deparou com o passado, marcado por graves violações aos direitos fundamentais,

surgindo inúmeros questionamentos sobre quais medidas a serem tomadas pelo novo governo,

agora democrático.

Tais indagações buscam ser respondidas pelo que se convencionou denominar de

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Page 242: Justica de transicao vdd memoria e justica

Justiça de Transição, na qual um dos seus objetivos é promover a reconciliação das forças

antagônicas do país, evitando, desta feita, que novas catástrofes impostas por regimes

autoritários ou totalitários ocorram.

O presente artigo visa compreender os fatores políticos-jurídicos da suposta

“Revolução GemocráticM”, demonstrando M forte influência de Fco. Campos neste contexto

político, e dando o arcabouço para uma melhor compreensão acerca da implementação da

Justiça de Transição e a aparente (in) compatibilidade para com a Lei da Anistia, uma vez que

a primeira luta contra o esquecimento, elemento norteador deste preceito legal.

Portanto, percebe-se que o desenvolvimento deste será, essencialmente, empírico,

consequentemente o método indutivo terá uma grande importância na produção deste

trabalho. Além disso, é necessário ressaltar que o método hipotético-dedutivo contribuirá para

analisar a compatibilidade ou não entre os institutos em análise, quais sejam Lei da Anistia e a

Justiça de Transição, visando eliminar qualquer discussão a posteriori.

1 PANORAMA HISTÓRICO DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL

Com o fim da ditadura militar em 1985 e a redemocratização do Estado, a sociedade

brasileira e as autoridades políticas que assumiram o poder estatal depararam-se com a difícil

tarefa de confrontar-se com as arbitrariedades do regime e administrar as consequências dele

decorrentes.

Convencionou-se chamar de Justiça de Transição a estrutura estabelecida com o

objetivo primordial de investigar a maneira pela qual as sociedades, marcadas por passados de

abusos dos direitos humanos, atrocidades maciças ou diferentes formas de traumas sociais

buscam alcançar o restabelecimento e respeito aos direitos humanos.

O conceito é comumente entendido como uma estrutura para confrontar um passado

de abuso como um componente de uma importante política de transformação. Isso

geralmente envolve uma combinação de estratégias complementares de justiça e

‘quMse justiça’, tais como M persecução de perpetradores, estabelecimento de

comissões de verdade e outras formas de investigação do passado; envidando

esforços na busca de reconciliação em sociedades divididas, desenvolvendo um

conjunto de reparações para aqueles que foram mais afetados pelas violações ou

abusos; memorizando e relembrando as vítimas; e reformando um largo espectro de

instituições arbitrárias do Estado (tais como as de segurança pública, polícia ou

forças armadas) numa tentativa de prevenir futuras violações2.

2 BICKFORD, Louis. The encyclopedia of Genocide and crimes against humanity. USA: Macmilillan

Reference, 2004, vol. 3, p. 1045-1047 (todas as traduções são de responsabilidade do autor). As origens desta

área de investigação remontam ao final da Segunda Guerra Mundial, especialmente o Tribunal Internacional

Militar de NuremNerg e os progrMmas de “desnazificação” nM AlemanOMB Desde então forMm sendo

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

242

Page 243: Justica de transicao vdd memoria e justica

Nessa linha de intelecção, Fco. Campos3 define o aspecto trágico das chamadas

épocas de transição. In verbis:

A época de transição é precisamente aquela em que o passado continua a interpretar

o presente; em que o presente ainda não encontrou as suas formas espirituais, e as

formas espirituais do passado, com que continuamos a vestir a imagem do mundo,

se revelam inadequadas, obsoletas ou desconformes, pela rigidez, com um corpo de

linhas ainda indefinidas ou cuja substância ainda não fixou os seus polos de

condensação. Nós fomos educados pelo passado para um mundo que se supunha

continuar a modelar-se pela sua imagem. O nosso sistema de referências continuou a

ser o que fora calculado para um mundo de relações definidas ou constantes, mas

nós nos vemos confrontados com uma realidade em que as posições não

correspondem às fixadas na carta topográfica. O que chamamos de época de

transição é exatamente esta época profundamente trágica, em que se torna agudo o

conflito entre as formas tradicionais do nosso espírito, aquelas em que fomos

educados e de cujo ângulo tomamos a nossa perspectiva sobre o mundo, e as formas

inéditas sob as quais os acontecimentos apresentam a sua configuração

desconcertante.

Portanto, resta claro o caráter problemático da Justiça de Transição, já que o ritmo da

mudança encontra-se acelerado, e toda e qualquer situação passa a ser provisória, na qual a

atitude de espírito há de ser uma atitude de permanente adaptação à mudança.

Dentro desta seara, vislumbra-se que o instituto da anistia política no Brasil

representa a existência de duas forças opostas: de um lado, a política de segurança nacional

dos militares, e do outro, o movimento para o restabelecimento democrático.

É sabido por todos que o golpe de 1964 instMlou o “terrorismo de Estado” 4, criando

um aparato repressivo especializado composto basicamente pelo Sistema Nacional de

Informação (SISNI) e pelo Sistema de Segurança Interna (SISSEGIN), além de inovações

legislativas, como os Atos Institucionais.

Em suma, estabeleceu-se no Brasil uma estrutura de repressão montada, organizada e

patrocinada pelo Estado, que também utilizava práticas criminosas para perseguir e punir os

desenvolvidos e aperfeiçoados diversos mecanismos para se lidar com a herança da violência de regimes

autoritários ou totalitários. Entretanto, as bases da justiça de transição ganharam mais coerência nos últimos cinte

e cinco anos do século XX, se iniciando especialmente pelos julgamentos de membros da junta militar na Grécia

(1975) e Argentina (1983). 3 CAMPOS, Francisco Luís da Silva. O estado nacional. Disponível em: <http://www.

ebooksbrasil.org/eLibris/chicocampos.html>. Acesso em: 26 nov.2012. 4 Terrorismo de Estado consiste num regime de violência instaurado por um governo, em que o grupo político

que detém o poder se utiliza do terror como instrumento de governabilidade. Caracteriza-se pelo uso da máquina

de repressão do Estado como organização criminosa, restringindo os direitos humanos e as liberdades

individuais, podendo chegar ao extermínio de setores da população (democídio). Tipicamente é utilizado após a

tomada do poder por grupos revolucionários, como forma de combater a contrarrevolução. Disponível em:

<http://pt.wikipedia.org/wiki/Terrorismo_de_Estado>. Acesso em: 20 mar.2013.

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

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Page 244: Justica de transicao vdd memoria e justica

opositores ao regime autoritário.

Ademais, é inconcebível tratar deste contexto histórico sem demonstrar a enorme

contribuição de Francisco Campos para a instalação deste regime autoritário. É o que será

demonstrado a posteriori.

1.1 Francisco Campos e o período ditatorial

Francisco Campos, classificado como antiliberal e autoritário, visando à instituição

de uma nova ordem nacional, empreendeu as reformas que deram forma e organização

política e institucional ao país, sendo elas o novo Código de Processo Civil, o Código Penal e

a Lei de Contravenções Penais5.

Nomeado ministro da Justiça dias antes do golpe, foi, então, encarregado por Getúlio

Vargas de elaborar a nova Constituição do país, a de 1937, marcado por características

corporativistas e pela proeminência do poder central sobre os estados e do Poder Executivo

sobre os demais6.

Contudo, em 1941, afastou-se temporariamente do ministério por motivos de saúde.

Seu retorno no ano seguinte, porém, foi obstaculizado pelos anseios da redemocratização que

começavam a ganhar terreno no país, estimulados pela aproximação do Brasil com os países

aliados, no contexto da Segunda Guerra Mundial. E em janeiro de 1943, foi nomeado

representante brasileiro na Comissão Jurídica Interamericana, cargo que exerceria até 1955.

No decorrer do ano de 1944, passou a defender a redemocratização do país e negou o

caráter fascista da Constituição de 1937, ainda em vigência. No ano seguinte, participou das

articulações empreendidas nos meios políticos e militares que levaram ao afastamento de

Vargas e ao fim do Estado Novo.

Em 1964, participou ferreamente, ao lado das Forças Armadas, das conspirações

contra o governo do presidente João Goulart. A ameaça comunista propagada pelos militares,

imprensa, Igreja e oligarquias resultou na adesão da classe média ao então golpe.

Segundo Eric Hobsbawn7, os militares:

Tomaram o poder no Brasil em 1964 contra um inimigo bastante semelhante: os

herdeiros do grande populista brasileiro Getúlio Vargas (1883-1954), que se

5Faculdade Getúlio Vargas. Biografia. Disponível em:

<http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/biografias/francisco_campos>. Acesso em: 15 mar.2013. 6 Ibidem.

7 HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve século XX; 1914-1991. Trad. Marcos Santarrita. São Paulo:

Companhia das Letras, 1995, p. 429.

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

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Page 245: Justica de transicao vdd memoria e justica

deslocavam para a esquerda no início da década de 1960 e ofereciam

democratização, reforma agrária e ceticismo em relação à política americana.

Após a implantação do regime militar, voltou a colaborar na montagem de um

arcabouço institucional autoritário para o país, participando da elaboração dos dois primeiros

Atos Institucionais baixados pelo novo regime (AI-1 e AI-2) e enviando sugestões para a

elaboração da Constituição de 19678.

Assim, o Ato Institucional nº 1 se colocava como uma intervenção passageira,

justificável apenas para recompor a ordem. Seu mecanismo era simples: eliminava a oposição

que pudesse a vir enfrentar o regime, dando ao Presidente poderes para escolher os

congressistas que ficariam na casa, e estes o elegeriam. Dessa forma, ganhava o regime uma

suposta legitimidade democrática frente à opinião pública internacional.

Ademais, a Lei de Segurança Nacional, fundamento do golpe de 1964, teve seu

embrião no AI-1, sendo posteriormente convertida em legislação (DL nº 314, de 13 de março

de 1967; DL nº 898, de 29 de setembro de 1969), tendo como pressuposto a proteção

nacional.

Abaixo, um discurso de Goffredo Telles Junior9, que demonstra a ideia central de que

a doutrina da Segurança Nacional deveria fornecer poderes às instituições estatais, numa

visível proteção da democracia e da soberania, mesmo que isso importasse em violações aos

direitos humanos:

Defender a ordem jurídica do País contra tudo quanto fora os princípios éticos

tradicionais da civilização brasileira. Para desempenho dessa obrigação, deverão

salvaguardar, em todas as circunstâncias, os interesses básicos do Brasil. Dentro de

um plano de ação permanente, cumpre-lhes estimular e promover o

desenvolvimento econômico do País, assim como combater e extirpar o que possa

debilitar as suas forças produtivas. É dever supremo do Presidente da República, do

Primeiro Ministro e do Senado repelir, com desassombro, tudo quanto representa

ameaça, próxima ou remota, aos direitos indivisíveis de independência e soberania

do Estado brasileiro.

Já o Ato Institucional nº 2, baixado no dia 27 de outubro de 1965, representa uma

resposta aos resultados das eleições que ocorreram no início daquele mês. Com a vitória de

adversários ao regime nas eleições de cinco estados do país, os militares avançaram com a

repressão: foram reabertos os processos de cassação, partidos políticos foram extintos, além

de terem suas sedes invadidas e desativadas e o Poder Judiciário sofreu intervenção do

8 PIRES, Isabel. Os Atos Institucionais: lemNrMnças de umM “DitadurM com G maiúsculo”. DisponWQel em: <

http://odragaodesaojorge.blogspot.com.br/2009/11/os-atos-institucionais-lembrancas-da.html>. Acesso em: 10

fev.2013. 9 JUNIOR, Goffredo Telles. A democracia e o Brasil: uma doutrina para a revolução de março. São Paulo: RT,

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

245

Page 246: Justica de transicao vdd memoria e justica

Executivo10

.

Em 27 de outubro de 1965, o Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco,

mandou publicar no Diário Oficial e ordenou o cumprimento do AI-2, suspendendo a

Constituição de 1946, a democracia e as eleições diretas para Presidente da República11

.

Com o AI-2, o Poder Judiciário passou a sofrer intervenção direta do Poder

Executivo. Com isso, civis passaram a ser presos e processados por crimes contra a segurança

nacional, algo que antes cabia apenas à Justiça Civil.

Partidos políticos foram extintos, sendo criados somente dois: a Aliança Renovadora

Nacional (ARENA) e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB)12

.

As eleições para o novo Presidente passaram a ser indiretas, sendo transferidas para o

Congresso Nacional, então dominado pela ARENA, sendo um dos inúmeros artifícios para

garantir a permanência dos militares no poder.

Vale ressaltar que o AI-2 durou até 15 de março de 1967, sendo substituído pela

Constituição de 1967, não tendo, contudo, seus efeitos suspensos.

Após o exposto, resta incontroverso afirmar que as perseguições, desaparecimentos

forçados, torturas e assassinatos constituíram o modus operandi da supostM “Revolução

DemocráticM”, já que o “Perrorismo de Estado” é que coincidiu com a reMlidMde em tela.

Por fim, é completamente inconcebível tratar deste polêmico momento histórico sem

mencionar o papel fundamental de Francisco Campos.

2 A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO E A ANISTIA

Nas chamadas época de transição, é válido afirmar que mesmo o presente ainda não

consolidado, este já se convertera em passado. Neste sentido13

:

O demônio do tempo, como sob a tensão escatológica da próxima e derradeira

catástrofe, parece acelerar o passo da mudança, fazendo desfilar diante dos olhos

humanos, sem as pausas a que estavam habituados, todo o seu jogo de formas que,

1965, p. 1. 10

SILVA, Tiago Ferreira. Atos institucionais. Disponível em: < http://www.historiabrasileira.com/ditadura-

militar/atos-institucionais/>. Acesso em: 09 jan. 2013. 11

SILVA, Tiago Ferreira. Atos institucionais. Disponível em: < http://www.historiabrasileira.com/ditadura-

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CAMPOS, Francisco Luís da Silva. O estado nacional. Disponível em: <http://www.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

246

Page 247: Justica de transicao vdd memoria e justica

nas condições normais, teriam que ser distribuídas segundo uma linha de sucessão

mais ou menos definida e coerente.

A reinserção da democrMcia, “finda” M ditMdura, ocorre mediante um lento processo

que visa restaurar todos os mecanismos democráticos, as liberdades públicas e, especialmente,

a garantia dos direitos humanos, outrora desrespeitados.

Portanto, tais medidas são extremamente necessárias para se evitar novas catástrofes

impostas por regimes autoritários ou totalitários que utilizam o ‘terrorismo’ para MlcMnçMr suas

metas.

A justiça de transição visa promover a reconciliação das forças antagônicas do país,

contudo, tal termo, especialmente na América Latina, tem sido mal interpretado, já que vem

sendo utilizado para justificar a ausência de medidas de justiça, verdade e reparação das

vítimas ou punição dos responsáveis. Neste sentido é que nasceu a Lei da Anistia, tão

polêmica desde sua promulgação.

Vários países da América Latina, tais como Chile, Argentina, Uruguai, Paraguai e

Brasil, que foram vítimas de regimes autoritários / totalitários tiveram leis de anistia

promulgadas com o intuito de alcançar a tão sonhada reconciliação nacional, mas que, na

prática, acabaram por conceder impunidade aos perpetradores de graves violações dos direitos

humanos.

Daí surge uma das maiores polêmicas da atualidade: a concessão de uma anistia que

impeça a responsabilização penal dos perpetradores de crimes no passado é mais conveniente

do que suportar um período de conflito e de transição violenta?

Etimologicamente, anistia advém do grego amnestia14

, que significa esquecimento,

não havendo relação alguma com o perdão. Pressupõe, sobremaneira, um apagamento de

fatos do passado.

A anistia foi uma das bandeiras de luta das oposições ao regime militar instaurado no

Brasil em 1964. Entretanto, se a Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, concedeu a anistia

para os seus opositores, representou, também, uma “Mutoanistia” do regime militar, em

especial aos seus agentes de repressão.

A Lei em comento fora criada com o intuito de pacificar o País e levar ambos os

lados da guerrilha ao esquecimento. Ocorre que esta não se tornou conquista do povo

14

ANISTIA. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2013. Disponível em:

<http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Anistia&oldid=34191953>. Acesso em: 22 mar. 2013.

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

247

Page 248: Justica de transicao vdd memoria e justica

brasileiro, como sonharam os seus formuladores, mas sim um instrumento de revanchismo

imoral.

Conforme já dito, não há como separar a anistia do esquecimento. Mas de que tipo de

esquecimento se está falando quando se refere à anistia trazida pela Lei nº 6.683/79? Quais as

consequências desse esquecimento?

Paul Ricoeur15

entende que M Mnistia é uma “verdadeirM Mmnésia institucional”,

comparando-M com M tentMtiQM de MpMgMr “M mancOM de sangue nMs mãos de I Mdy MMcNeth”:

O que se tem em vista? Sem dúvida alguma, a reconciliação nacional. Nesse

aspecto, é perfeitamente legítimo reparar pelo esquecimento as lacerações do corpo

social. Mas pode ser preocupante o preço que se paga por essa reafirmação (que

chamei de mágica e desesperada) do caráter indivisível do poder soberano.

A anistia se coloca, assim, como contrária ao perdão, na medida em que este exige

memória e Mquela é um esquecimento forçMdo dos conflitos em nome de um “MpaziguMmento”

da sociedade. François Ost16

, em análise desta passagem do texto de Ricoeur, enumera dentre

estes “delitos do esquecimento” o enorme “risco de NMnalizMr o crime ou Minda neutrMlizMr

todos os valores, bons ou maus, colocando-os lado a lado numa medida comum de clemência,

como quando se Mnistia os Mntigos opositores parM melhor Mnistiar os Mntigos opressores”B Foi

esta modalidade de esquecimento que norteou a Lei nº 6.683/79.

É possível afirmar, ainda, que M lei da Mnistia se MproximM da “teoria do mal menor”

17, segundo o qual, diante de dois males, é “nosso” dever optar pelo menor. Portanto, no caso

da anistia, entre o esquecimento dos crimes do passado e uma transição violenta, a teoria do

mal menor conduziria ao esquecimento.

Ademais, é possível correlacionar a fraqueza de tal teoria com um argumento de

Hannah Arendt18

, Mo Mfirmar “que Mqueles que escolhem o mMl menor esquecem muito

rapidamente que escolhem o mal”, podendo Mssim, esquecer-se do mal praticado. Aduz,

ainda:

[...] se olharmos para as técnicas do governo totalitário, é óbvio que o argumento do

“mal menor” [...] é um dos mecanismos embutidos na maquinaria de terror e

15

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução: Alain François. Campinas, SP: Editora

da UNICAMP, 2007. p. 188. 16

OST, François. O tempo do direito. Bauru, SP: EDUSC, 2005. p. 210. 17

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mar. 2013. 18

ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 99.

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248

Page 249: Justica de transicao vdd memoria e justica

criminalidade. A aceitação de males menores é conscientemente usada para

condicionar os funcionários do governo, bem como a população em geral, a aceitar o

mal em si mesmo. Para dar apenas um dentre muitos exemplos: a exterminação dos

judeus foi precedida por uma sequência muito gradual de medidas antijudaicas, cada

uma das quais foi aceita com o argumento de que a recusa a cooperar pioraria ainda

mais a situação – até que se atingiu um estágio em que nada pior poderia

possivelmente ter acontecido19

.

Portanto, torna-se difícil estabelecer uma nítida relação de causa e efeito entre

anistia, estabilidade social e Estado de Direito.

2.1 Desdobramento da justiça de transição

Conforme demonstrado, o fim de uma ditadura e a reinserção da democracia não

acontecem automaticamente, como se espera. Muito pelo contrário, ocorrem mediante um

longo processo de restauração dos mecanismos democráticos, liberdades públicas e garantia

dos direitos humanos.

Em virtude de o período ditatorial ser eivado de instituições corrompidas,

perseguições políticas, desaparecimentos forçados, torturas e homicídios, não bastam cuidar

apenas da vulnerabilidade daqueles que foram perseguidos, mas, sobretudo, estabelecer um

novo sentimento nacional, baseado na esperança e justiça.

É neste sentido que vem à baila os pilares desta justiça, que visam garantir a

recomposição do Estado e da sociedade, possibilitando que cada indivíduo retome o controle

de sua vida.

E não há que se falar em restauração social de toda uma nação sem ter como

alicerces a verdade, a justiça e a memória.

Sem dúvida, o silêncio acerca do que realmente ocorreu no período ditatorial é uma

das maiores lacunas da democracia brasileira, tendo o Estado o dever de permitir o acesso aos

tão almejados arquivos secretos da ditadura, criando mecanismos legais que possibilitem o

acesso à verdade e não mecanismos que compactuem com o esquecimento, tal como a Lei nº

11.111/05.

Realizar a justiça remonta à responsabilização administrativa, civil e penal dos

violadores dos direitos humanos, o que vai de encontro aos diplomas legais que vigoram no

Brasil, a Lei nº 6.683/79 e a EC nº 26/85, que impedem o processamento de agentes estatais

praticantes de tais crimes.

19

Ibid. , p. 99.

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

249

Page 250: Justica de transicao vdd memoria e justica

E por fim, não há como dissociar a restauração social do direito à memória.

Rediscutir o passado é reconstruí-lo a cada momento, no presente. Fazer isso de

maneira consciente, sem a ilusão positivista de que o passado é estanque, é abrir a

possibilidade de resgatar as promessas não cumpridas e as vozes caladas ao longo da história.

É preciso revisitar o passado e verificar como se dá a relação do Direito com a memória

coletiva de um país, tendo em vista o papel instituidor do que o Direito é dotado e sua

profunda ligação com a tradição, que lhe dá sentido e legitimidade. Colocar as premissas

dessa discussão é não se olvidar que, como já disse o poeta Jorge Luís Borges20

, “o

esquecimento é uma das formas da memória, seu porão difuso, a outra face secreta da

moeda”B

Portanto, não restam dúvidas de que as vítimas do regime militar e seus familiares

merecem, legitimamente, pleitear que suas histórias pessoais, até então relegadas à

clandestinidade, sejam integradas à história coletiva do povo brasileiro. Mas também se

impõe questionar até que ponto esse direito à memória se conflita com o direito dos

criminosos do regime militar em ter seus crimes esquecidos, tanto em virtude da anistia,

quanto do lapso temporal entre os delitos e a presente data.

2.2 Desdobramento do instituto da anistia

Para uma melhor compreensão, vale esclarecer que no âmbito do Direito, a anistia

envolve três perspectivas: penal, tributária e política.

Por anistia penal, Cezar Bitencourt21

entende ser um “esquecimento jurídico do

ilícito e tem por objeto fatos (não pessoas) definidos como crimes, de regra, políticos,

militares ou eleitorais, excluindo-se, normalmente, os crimes comuns”B

A anistia tributária representa uma medida de política fiscal do ente político que

fixou determinado tributo, visando desonerar os sujeitos passivos tributários de infrações

administrativas, sem extinguir a cobrança dos tributos.

E, por último, a anistia política, que visa à solução de um conflito advindo de um

momento de grave perturbação institucional, tais como revoltas e insurreições no âmbito

interno de um Estado.

20 BORGES, Jorge Luis. Poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 21

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. Parte geral. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. V. 1.

p. 718.

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

250

Page 251: Justica de transicao vdd memoria e justica

E este tipo de anistia deve ser observado nos diferentes diplomas legais: i) Lei nº

6.683/79, que representa um acordo político de esquecimento; ii) Constituição Federal de

1988, regulada pela Lei nº 10.559/02, que trouxe uma nova visão sobre tal instituto, não se

encaixando nem no esquecimento nem no perdão, já que visa reparar o anistiado dos prejuízos

suportados por razões políticas, não havendo relação nenhuma para com os crimes políticos.

Portanto, baseando-se na Constituição, seria mais adequado falar-se em reparação do

que concessão de anistia política, uma vez que todo e qualquer ato estatal de perseguição deve

estar intimamente relacionado à ideologia repressora.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo visa demonstrar o processo de transição democrática, que

corresponde à reconfiguração de um determinado Estado, passando de um regime ditatorial

para o democrático, demonstrando como ocorreu o enraizamento burocrático-autoritário e em

qual panorama nacional essa nova ordem foi instalada.

Tratar acerca da crise institucional brasileira dos anos 1960 a 1985 sem

contextualizá-la com as influências de Francisco Campos seria compactuar com uma análise

superficial deste momento histórico, uma vez que se adotando um ideário antiliberal,

centralizador e autoritário, teve um papel notável, sobretudo na sistematização da Nação,

mediante a elaboração de importantes diplomas legais, tais como os Atos Institucionais (AI-1

e AI-2) e a Constituição Federal de 1937, corroborando com o entendimento de que há sim

um pensamento constitucional genuinamente brasileiro.

Resta incontroverso conceituar a Justiça de Transição como uma estrutura para

confrontar um passado de abuso (período ditatorial) como um componente de uma importante

política de transformação, a qual a Lei da Anistia possui um aspecto fundamental.

Contudo, o presente diploma legal encontra-se eivado pela política do esquecimento,

contra sensu da superação, impedindo que as vítimas do regime militar, privadas do direito de

tornarem públicas suas memórias, não sofram o trabalho de luto necessário à assimilação

destas, através do dissenso.

Por fim, felizmente, o panorama atual volta-se para o fenômeno da Justiça de

Transição, que com seus pilares de sustentação, quais sejam, a busca pela verdade até então

omitida, mediante a revelação dos arquivos secretos, o reencontro com o passado,

possibilitando sua superação e a investigação dos crimes contra a humanidade, acarretando na

responsabilização dos agentes da repressão, aponta para um caminho de acerto de contas com

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

251

Page 252: Justica de transicao vdd memoria e justica

o passado, resgatando a ordem democrática, mediante a reconfiguração das instituições,

voltando-se para a concretização dos direitos humanos.

Enfim, pretende-se que a nação saia de um estado de desesperança para o

encantamento com a vida.

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255

Page 256: Justica de transicao vdd memoria e justica

A DECISÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS NO CASO DA GUERRILHA DO ARAGUAIA A LEI DE ANISTIA BRASILEIRA E A

OBRIGAÇÃO DE INVESTIGAR E PUNIR AS VIOLAÇÕES AOS DIREITOS HUMANOS RATICADAS PELA DITADURA MILITAR NO BRASIL

Samyra Naspolini

Marcio de Sessa

LA DECISIÓN DE LA CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS EN EL CASO DE LA GUERRILLA ARAGUAIA E LA LEY BRASILEÑA DE AMNISTÍA Y OBLIGACIÓN DE INVESTIGAR Y SANCIONAR LAS VIOLACIONES DE LOS DERECHOS HUMANOS POR LA DICTADURA MILITAR EN BRASIL

RESUMO O objeto de pesquisa deste artigo é a decisão da Corte em paradigmática sentença proferida em 24 de

novembro de 2010, no caso Lund e outros versus Brasil, a qual condenou o Estado brasileiro a

implementar uma série de medidas com vistas a indenizar os familiares das vítimas dos fatos ocorridos

na Guerrilha do Araguaia e esclarecer e evitar que novos fatos similares aconteçam.O objetivo da

pesquisa é investigar a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso em tela para

verificar qual o entendimento firmado com relação à sua competência para o julgamento do caso, a Lei

de Anistia brasileira e e a condenação dada ao Brasil de investigar e punir graves violações de

direitos humanos ocorridos no período da ditadura militar.O método de abordagem a ser adotado

no desenvolvimento da presente pesquisa será o indutivo, numa perspectiva histórica,crítica e

comparativa.

Palavras chave: Corte Interamericana de Direitos Humanos; Guerrilha do Araguaia; Lei de

Anistia;

RESUMEN:

El objeto de estudio de este trabajo es la decisión de la Corte en el juicio paradigmático de 24 de

noviembre de 2010, donde Lund y otros contra Brasil, que condenó al gobierno brasileño a

implementar una serie de medidas destinadas a compensar a las familias de víctimas de los

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256

Page 257: Justica de transicao vdd memoria e justica

acontecimientos en la Guerrilla Araguaia y aclarar y evitar nuevos hechos aconteçam.O mismo

objetivo de la investigación es analizar la decisión de la Corte Interamericana de Derechos Humanos

en el caso en que para comprobar el entendimiento alcanzado con respecto a su capacidad para juzgar

la caso, la Ley de Amnistía brasileña eea condena dado a Brasil para investigar y sancionar graves

violaciónes de los derechos humanos que ocurrieron durante la dictadura militar.O método de enfoque

que se adopte en el desarrollo de esta investigación será inductivo, desde una perspectiva histórica y

crítica comparativa.

Palabras clave: la Corte Interamericana de Derechos Humanos; Guerrilla Araguaia; la Ley de

Amnistía;

SUMÁRIO: Introdução; 1 A importância Histórica da Decisão da Corte; 2 Competência

da Corte Interamericana; 3 Lei de Anistia Brasileira e Controle de Convencionalidade;

4 Obrigação de investigar e punir graves violações de direitos humanos no período da

ditadura militar; Referências.

Introdução

O presente artigo é o relatório parcial de uma pesquisa que fará parte de uma

Coletânea a ser elaborada pelo Grupo de Pesquisa em Memória, Verdade e Justiça de

Transição, formado por professores e estudantes da área jurídica e outras afins da UNINOVE,

PUC e USP e Coordenado pelo Prof. Dr. Vladmir Oliveira da Silveira.

O objetivo do Grupo de pesquisa é produzir conhecimento para embasar o

Observatório do Direito à Memória, Verdade e Justiça, que segundo o seu Coordenador

Executivo Rogério Gesta Leal “pretende investigar, de maneira sistemática e coordenada, os

temas da Memória, Verdade e da Justiça no Brasil envolvendo as lutas políticas ocorridas

entre os anos 1964 a 1985” para propor medidas e políticas públicas sobre o assunto para o

Brasil, compatíveis com o estado democrático de Direito.

O objeto da pesquisa maior dos autores são as decisões da Corte Interamericana de

Direitos Humanos – CIDH nos casos de violações de Direitos Humanos praticados por

ditaduras militares nos países da América Latina nas décadas de 60 e 70, para que o Grupo

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257

Page 258: Justica de transicao vdd memoria e justica

possa, posteriormente, traçar um paralelo com o caso brasileiro e verificar o que pode ser

proposto para o Brasil.

Assim, o objeto de pesquisa deste artigo é a decisão da Corte em paradigmática

sentença proferida em 24 de novembro de 2010, no caso Lund e outros versus Brasil

(Guerrilha do Araguaia), a qual condenou o Estado brasileiro a implementar uma série de

medidas com vistas a indenizar os familiares da vítimas dos fatos ocorridos na Guerrilha do

Araguaia e esclarecer e evitar que novos aconteçam.

O Caso Araguaia, foi resultado de operações do Exército brasileiro empreendidas entre

1972 e 1975 naquela região com o objetivo de erradicar a Guerrilha do Araguaia, no contexto

da ditadura militar do Brasil (1964–1985). Consistiu na detenção arbitrária, tortura e

desaparecimento forçado de 70 pessoas, entre membros do Partido Comunista do Brasil e

camponeses da região.

O objetivo da pesquisa é investigar a decisão da Corte Interamericana de Direitos

Humanos no caso em tela para verificar qual o entendimento firmado com relação à sua

competência para o julgamento do caso, a Lei de Anistia brasileira e a condenação dada ao

Brasil de investigar e punir graves violações de direitos humanos ocorridos ni período da

ditadura militar.

O método de abordagem a ser adotado no desenvolvimento da presente pesquisa será o

indutivo, numa perspectiva histórica,crítica e comparativa.

1 A importância Histórica da Decisão da Corte

Em 26 de março de 2009 a Comissão Interamericana de Direitos Humanos submeteu à

Corte uma demanda contra o Brasil, que se iniciou pelo Centro pela Justiça e o Direito

Internacional (CEJIL) e pela Human Rights Watch/Americas, em nome de pessoas

desaparecidas no contexto da Guerrilha do Araguaia e seus familiares. Após somaram-se ao

caso a Comissão de familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos do Instituto de Estudos da

Violência do estado, a senhora Angela Harkavy e o Grupo Tortura Nunca Mais. Em 6 de

março de 2001, a Comissão expediu o Relatório de Admissibilidade e, em 31 de outubro de

2008, aprovou o Relatório de Mérito o qual continha determinadas recomendações ao Estado.

Após vários trâmites e prazos concedidos ao Brasil para que informasse sobre as ações

executadas com o propósito de implementar as recomendações da Comissão, isso não foi feito

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

258

Page 259: Justica de transicao vdd memoria e justica

de forma satisfatória, o que levou a Comissão a submeter o caso à jurisdição da Corte

Interamericana de Direitos Humanos, enfatizando que esta seria “uma oportunidade

importante para consolidar a jurisprudência interamericana sobre as leis de anistia com

relação aos desaparecimentos forçados e à execução extrajudicial e a consequente obrigação

dos Estados de dar a conhecer a verdade à sociedade e investigar, processar e punir graves

violações de direitos humanos”1.

A sentença proferida pela Corte, além da importância histórica, enfrenta e resolve uma

série de questões de suma importância para o Direito Internacional dos Direitos Humanos,

dentre as quais o presente artigo destaca a questão da competência da Corte e a

responsabilidade do Estado brasileiro de julgar e punir os crimes contra os Direitos Humanos

praticados no período da ditadura.

Interessante pontuar que a Corte, ao final da sentença, faz algumas importantes

recomendações ao Brasil no sentido de esclarecer as violações aos direitos humanos

ocorridos não só no Caso Araguaia, mas durante o período da ditadura militar, punir os

responsáveis e com um intuito pedagógico, atuar preventivamente para que novas violações

não aconteçam.

Neste sentido decidiu que o Brasil deve realizar todos os esforços para determinar o

paradeiro das vítimas desaparecidas e, se for o caso, identificar e entregar os restos mortais a

seus familiares e realizar a sistematização e publicação de toda a informação sobre a

Guerrilha do Araguaia, assim como da informação relativa a violações de direitos humanos

ocorridas durante o regime militar, o que serviu de base para a criação da Comissão de

Memória e Verdade.

2 Competência da Corte Interamericana

O processo de universalização e internacionalização dos Direitos Humanos trouxe a

necessidade de implementação desses mediante a criação de um Sistema Internacional de

proteção, monitoramento e controle2, o qual foi dividido em Sistema Global de proteção e

Sistema Regional de proteção, esses não substituem os tribunais internos e não são tribunais

1 Sentença disponível em http://www.corteidh.or.cr

2 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

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Page 260: Justica de transicao vdd memoria e justica

de recurso ou cassação, ao contrário, trata-se de direito subsidiário e suplementar ao direito

nacional. O Estado tem a responsabilidade primária pela proteção desses direitos e a

comunidade internacional tem a responsabilidade subsidiária, porém os atos internos dos

Estados podem vir a ser objeto de exame dos tribunais internacionais.3

Tal entendimento pode ser encontrado neste julgamento da Corte Interamericana de

Direitos Humanos ao afirmar que o julgamento quanto à violação ou não, pelo Estado, de suas

obrigações internacionais, é sim de sua competência, podendo revisar, inclusive, as decisões

de tribunais superiores, para estabelecer sua compatibilidade com a Convenção Americana.4

O Sistema Global de proteção é composto pela Carta das Nações Unidas de 1945

integrada posteriormente pela Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 e pelos

dois Pactos Internacionais de 1966: o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o

Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

Por sua vez, os Sistemas Regionais buscam internacionalizar os Direitos Humanos no

plano regional. Enquanto o Sistema Global fornece um parâmetro normativo mínimo, o

regional deve ir além, buscando concretizar os direitos já existentes e adicionar novos, tudo

isso levando em consideração as diferenças entre as regiões. Atualmente a Europa, a América

e a África já possuem aparato jurídico próprio.5

A competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos está prevista no artigo

62.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos, o qual reza que será levada em

consideração a data de reconhecimento da competência por parte do Estado, os termos em que

se deu esse reconhecimento e o princípio de irretroatividade, disposto no artigo 28 da

Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969

Na sua contestação, o Brasil preliminarmente alegou a incompetência da Corte para

julgar o caso, uma vez que o reconhecimento da competência da Corte só se deu em 10 de

dezembro de 1998 e, em sua declaração, indicou que o Tribunal só teria competência para os

“fatos posteriores” a esse reconhecimento. A Corte entendeu que realmente não poderia

exercer sua competência quando os fatos alegados ou a conduta do Estado, sejam anteriores a

esse reconhecimento da competência. Por esta razão, ficou excluída a competência da Corte

para julgar a execução extrajudicial da senhora Maria Lúcia Petit da Silva, cujos restos

3 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008. 4 Sentença disponível em http://www.corteidh.or.cr 5 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e justiça internacional. São Paulo: Saraiva, 2007.

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

260

Page 261: Justica de transicao vdd memoria e justica

mortais foram identificados em 1996, bem como qualquer outro fato anterior a esse

reconhecimento.

Porém, a Corte se julgou competente para analisar os desaparecimentos forçados, uma

vez que em sua jurisprudência já estabeleceu que os atos de caráter contínuo ou permanente

perduram durante todo o tempo em que o fato continua, ou seja, o ato de desaparecimento se

inicia com a privação da liberdade da pessoa e a falta de informação sobre seu destino, e

permanecem até quando não se conheça o paradeiro da pessoa desaparecida e os fatos não

tenham sido esclarecidos.

A Corte também entendeu que tem competência para analisar os supostos fatos e

omissões do Estado, no que diz respeito à falta de investigação, julgamento e sanção das

pessoas responsáveis pelos desaparecimentos forçados e execução extrajudicial; bem como

pelas restrições ao direito de acesso à informação, e o sofrimento dos familiares.

3 Lei de Anistia Brasileira e Controle de Convencionalidade

Os Estados latino-americanos alegaram a anistia como obstáculo para investigar e, se

fosse o caso, punir os responsáveis por violações graves aos direitos humanos. Em sentido

contrário, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Comissão Interamericana de

Direitos Humanos, os órgãos das Nações Unidas e outros organismos universais e regionais

de proteção dos direitos humanos são unânimes em declarar a incompatibilidade das leis de

anistia, relativas a graves violações de direitos humanos com o Direito Internacional e as

obrigações internacionais dos Estados. O Comitê de Direitos Humanos, em sua Observação

General 31, manifestou que:

os Estados devem assegurar-se de que os culpados de infrações reconhecidas como crimes no Direito Internacional ou na legislação nacional, entre eles a tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, as privações de vida sumárias e arbitrárias e os desaparecimentos forçados, compareçam perante a justiça e não tentem eximir os autores da responsabilidade jurídica, como ocorreu com certas anistias6.

Na sua contestação, o Brasil, sustentando a falta de esgotamento dos recursos internos,

alegou que seria preciso dar tempo para que o Supremo Tribunal Federal se pronunciasse na

6 Observação Geral 31: Natureza da obrigação jurídica geral imposta aos Estados Partes no Pacto. U.N. Doc. CCPR/C/21/Rev.1/Add.13, 26 de maio de 2004, par. 18.

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ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental interposta pela Ordem dos

Advogados do Brasil em outubro de 2008.

Na ação, a OAB solicitou que o Supremo Tribunal Federal conferisse à Lei de Anistia

uma interpretação conforme com a Constituição Federal de 1988, com o objetivo de declarar

que a anistia concedida por essa lei aos crimes políticos ou conexos não se estenderia aos

crimes comuns praticados pelos agentes de repressão contra opositores políticos, durante o

regime militar.

Mais tarde, o Brasil comunicou que, em 29 de abril de 2010, o Supremo Tribunal

Federal considerou improcedente a Arguição de Descumprimento No. 153, declarando que “a

Lei de Anistia representou, em seu momento, uma etapa necessária no processo de

reconciliação e redemocratização do país” e que “não se tratou de uma autoanistia”.

Baseado neste fato novo, o Brasil questionou a competência da Corte Interamericana

para revisar decisões adotadas pelas mais altas cortes de um Estado. Alegou que com a

decisão da Arguição de Descumprimento No. 153, ocorreu o esgotamento dos recursos

internos, porém devido o caráter subsidiário da atuação dos sistemas regionais de proteção aos

Direitos Humanos, estes não podem atuar como tribunais de alçada e julgar alegados erros, de

fato ou de direito, cometidos por tribunais domésticos que tenham atuado dentro de suas

competências.

Acertadamente a Corte Interamericana afirmou que o julgamento quanto à violação ou

não, pelo Estado, de suas obrigações internacionais, é sim de sua competência, podendo

revisar, inclusive, as decisões de tribunais superiores, para estabelecer sua compatibilidade

com a Convenção Americana.

Essa decisão da Corte consagra o processo de universalização dos Direitos Humanos

iniciado após a Segunda Guerra mundial, quando os Direitos Humanos tornam-se uma

legítima preocupação internacional, encerrando-se a concepção de que a forma como o Estado

tratava seu povo era concebida como um problema de jurisdição doméstica devido à

soberania.

A necessidade de implementação dos Direitos Humanos mediante a criação de um

sistema internacional de monitoramento e controle não substitui os tribunais internos e não

são tribunais de recurso ou cassação, mas os atos internos dos Estados podem vir a ser sim,

objeto de exame dos tribunais internacionais, dessa forma a relação do Estado com os seus

nacionais passa a ser uma problemática internacional.

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262

Page 263: Justica de transicao vdd memoria e justica

Neste sentido, a Corte entendeu que o exame da Lei de Anistia para saber se está de

acordo com a Constituição Nacional do Estado é questão de direito interno que não lhe

compete, porém é sua competência e dever realizar um controle de convencionalidade, ou

seja, analisar a compatibilidade, ou não, daquela lei com as obrigações internacionais do

Brasil contidas na Convenção Americana.

No caso do Uruguai7o Comitê de Direitos Humanos entendeu que não se pode aceitar

a postura de um Estado de não estar obrigado a investigar violações de direitos humanos

cometidas durante um regime anterior, em virtude de uma lei de anistia, e reafirmou a

incompatibilidade com o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos das leis que

anistiam violações graves de direitos humanos, o que foi acatado pela Suprema Corte

Uruguaia.

Do mesmo modo, a Corte Suprema de Justiça da Nação Argentina decidiu, no Caso

Simón, declarar nulas as leis de anistia que obstaculizavam a investigação, julgamento e

eventual condenação de fatos que implicavam violações dos direitos humanos8:

Também a Corte Suprema de Justiça do Chile concluiu que as anistias a respeito de

desaparecimentos forçados, abrangeriam somente um determinado tempo e não toda a

duração do desaparecimento forçado ou seus efeitos9:

No mesmo sentido, a Corte Suprema de Justiça da Colômbia salientou que: “as normas

relativas aos [d]ireitos [h]umanos fazem parte do grande grupo de disposições de Direito

Internacional Geral, reconhecidas como normas de [j]us cogens, razão pela qual aquelas são

inderrogáveis, imperativas [...] e indisponíveis”10.

Os exemplos citados demonstram que vários países da América Latina têm se

pronunciado pela incompatibilidade das leis de anistia sobre graves violações de direitos

humanos com as obrigações internacionais dos Estados que as emitem.

A partir de tais exemplos a Corte Interamericana, no caso brasileiro reitera que

concorda com o estabelecido unanimemente pelo Direito Internacional e pelos precedentes

7 Hugo Rodríguez versus Uruguai. Comunicação No. 322/1988, UN Doc. CCPR/C/51/D/322/1988 8 Corte Suprema de Justiça da Nação Argentina. Caso Simón, Julio Héctor e outros s/privação ilegítima da liberdade, etc., Causa 17.768, Resolução de 14 de junho de 2005. 9 Corte Suprema de Justiça do Chile. Decisão do Plenário a respeito da instância que examinará a aplicação da Lei de Anistia no caso do sequestro do mirista Miguel Ángel Sandoval, Caso 2477, 17 de novembro de 2004, Considerando 33. 10 Corte Suprema de Justiça da Colômbia, Câmara de Cassação Penal. Caso do Massacre de Segovia. Ata número 156, de 13 de maio de 2010, p. 68.

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Page 264: Justica de transicao vdd memoria e justica

dos órgãos dos sistemas universais e regionais de proteção dos direitos humanos,

considerando que:

“são inadmissíveis as disposições de anistia, as disposições de prescrição e o estabelecimento de excludentes de responsabilidade, que pretendam impedir a investigação e punição dos responsáveis por graves violações dos direitos humanos, como a tortura, as execuções sumárias, extrajudiciais ou arbitrárias, e os desaparecimentos forçados, todas elas proibidas, por violar direitos inderrogáveis reconhecidos pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos”11.

Assim, a Corte entendeu que as disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem

a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a

Convenção Americana e não podem ser obstáculo para a investigação dos fatos nem para a

identificação e punição dos responsáveis. Portanto o Brasil deve realizar a investigação penal

dos fatos ocorridos durante a ditadura militar, com o objetivo de esclarecê-los, determinar as

responsabilidades penais e aplicar as devidas sanções.

4 Obrigação de investigar e punir graves violações de direitos humanos

Na sentença, a Corte assevera que a obrigação de investigar violações de direitos

humanos encontra-se dentro das medidas positivas que os Estados devem adotar para garantir

os direitos reconhecidos na Convenção Interamericana de Direitos Humanos. O dever de

investigar é uma obrigação que faz com que uma vez que as autoridades estatais tenham

conhecimento do fato, devem iniciar, uma investigação séria, imparcial e efetiva. Em especial

decorre da obrigação de garantia, consagrada no artigo 1.1 da Convenção Americana. Essa

obrigação implica no dever dos Estados Parte de organizar todo o aparato governamental de

maneira tal que sejam capazes de assegurar juridicamente o livre e pleno exercício dos

direitos humanos. Assim, os Estados devem prevenir, investigar e punir toda violação dos

direitos humanos reconhecidos pela Convenção e procurar, ademais, o restabelecimento, caso

11Caso Barrios Altos versus Peru. Mérito. Sentença de 14 de março de 2001. Série C No. 75, par. 41; Caso La Cantuta, supra nota 160, par. 152, e Caso Do Massacre dos Dois Erres, supra nota 186, par. 129.

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Page 265: Justica de transicao vdd memoria e justica

seja possível, do direito violado e, se for o caso, a reparação dos danos provocados pela

violação dos direitos humanos.

No mesmo sentido, no sistema universal, o Comitê de Direitos Humanos das Nações

Unidas estabeleceu que os Estados têm o dever de investigar as violações ao Pacto

Internacional de Direitos Civis e Políticos. Considerou, também, que a investigação penal e o

consequente julgamento constituem medidas corretivas necessárias para as violações de

direitos humanos. Em casos de desaparecimentos forçados, o Comitê concluiu que os Estados

devem estabelecer o que ocorreu com as vítimas desaparecidas e levar à justiça as pessoas por

eles responsáveis.

Ao elaborar relatório sobre os fatos ocorridos durante os regimes ditatoriais na

América Latina, a antiga Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas asseverou que

“exigir responsabilidade dos autores de violações graves dos direitos humanos é um dos elementos essenciais de toda reparação eficaz para as vítimas e um fator fundamental para garantir um sistema de justiça justo e equitativo e, em definitivo, promover uma reconciliação e uma estabilidade justas em todas as sociedades, inclusive nas que se encontram em situação de conflito ou pós-conflito, e pertinente no contexto dos processos de transição”12.

Assim, em vários relatórios das Nações Unidas pode-se encontrar que a obrigação de

respeitar e fazer respeitar as normas internacionais de direitos humanos inclui a obrigação do

Estado em prevenir, mas também o dever de investigá-las e, quando seja necessário, adotar

medidas contra os autores dessas violações.

Assim, julgou o Estado brasileiro responsável pelo desaparecimento forçado e,

consequentemente pela violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à

vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal, previstos nos artigos 3, 4, 5 e 7 da

Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

Também considerou o Estado responsável pela violação dos direitos às garantias

judiciais e à proteção judicial previstos nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana sobre

Direitos Humanos, devido à falta de investigação dos fatos e pela falta de julgamento e sanção

dos responsáveis.

Considerou ainda, o Estado responsável pela violação do direito à liberdade de

pensamento e de expressão previsto no artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos

Humanos, pela violação do direito a buscar e a receber informação, bem como do direito de

conhecer a verdade sobre os fatos ocorridos. Também considerou o Estado responsável pela

12 Comissão de Direitos Humanos. Impunidade. Resolução 2005/81, 61° período de sessões, U.N. Doc. E/CN.4/RES/2005/81, de 21 de abril de 2005.

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Page 266: Justica de transicao vdd memoria e justica

violação dos direitos às garantias judiciais estabelecidos no artigo 8.1 da Convenção

Americana, por exceder o prazo razoável para a apuração dos fatos.

A polêmica maior, encontra-se na questão sobre a punição criminal, devido à anistia e

à prescrição. Em artigo sobre o tema, André de Carvalho Ramos13 propondo a teoria do duplo

controle ou crivo dos direitos humanos, reconhece que no Brasil os direitos humanos possuem

uma dupla garantia, a constitucional e a da Convenção Americana e que ainda que o STF

tenha decidido pela anistia e prescrição, o controle de convencionalidade realizado pela Corte

entende que estas são sem efeito no caso em tela.

Segundo o autor, como as teses de anistia e prescrição “não convenceram o controle

de convencionalidade e dada a aceitação constitucional da internacionalização dos direitos

humanos, não podem ser aplicadas internamente.”

Conclusão

Após analisados os argumentos da Corte com relação às questões relativas à sua

competência para a análise do caso, à Lei de Anistia brasileira e a condenação à obrigação de

investigação e punição das violações aos direitos humanos, conclui-se que cumpriu a Corte o

seu papel de órgão de proteção dos Direitos Humanos. Sua decisão tem força jurídica

vinculante e obrigatória, cabendo ao Estado seu imediato cumprimento.

A efetividade da proteção dos Direitos Humanos no Brasil está absolutamente

condicionada ao aperfeiçoamento das medidas nacionais de implementação e ao resgate do

compromisso do Estado com as vítimas das violações aos Direitos Humanos ocorridas no

período da ditadura militar. As reminiscências do regime autoritário, com uma cultura de

violência e impunidade, ainda é muito presente no nosso país e precisa ser passada a limpo.

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Page 272: Justica de transicao vdd memoria e justica

DITADURA E LUGARES DE MEMÓRIA: AS DIRETRIZES DO MERCOSUL E O

DIREITO AO PATRIMÔNIO CULTURAL

DICTATORSHIP AND SITES OF MEMORY: MERCOSUL’S GUIDELINES AND

THE RIGHT TO CULTURAL HERITAGE

Leandro Franklin Gorsdorf1

RESUMO

O presente trabalho visa no contexto da busca da Memória e da Verdade, empreendido nestes

últimos anos pelo Estado e sociedade civil no Brasil, abordar a importância da constituição

dos Lugares de Memória para avivar uma história invisibilizada no período da ditadura. O

conceito de Lugares de Memória trazido pelo historiador Nora contribui na construção e

percepção como estes lugares podem representar a materialização do direito ao patrimônio

cultural brasileiro e contribuir na formação do ideário nacional.Resgata-se portanto a

preocupação no âmbito do Mercosul deste tipo de ação vinculado a Memória e Verdade dos

Estados Nacionais membros e os parâmetros internacionais construídos neste espaço para a

elaboração de políticas públicas dos Lugares da Memória as quais o Estado Brasileiro se

comprometeu a adotá-las em âmbito nacional.

PALAVRAS CHAVES

Lugares de Memória; Mercosul;Direito ao Patrimônio Cultural

ABSTRACT

Given the recent context of a search for Truth and Memory by civil society and the

Government in Brazil, this article aims to tackle the importance of constituting Sites of

Memory to give life to a history that was made invisible during the dictatorship. The concept

of Sites of Memory, as suggested by the historian Nora, contributes to the construction and

perception of how these places can represent the materialization of the right to cultural

1 Professor de Prática Jurídica em Direitos Humanos da Universidade Federal do Paraná(UFPR). Doutorando em

Direito da Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná. Membro Pesquisador do Observatório

de Direitos Humanos da UFPR e membro do Fórum Paranaense Justiça, Memória e Verdade.

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heritage in Brazil and contribute to the formation of the national ideal. The article, therefore,

reclaims the concern for actions linked to Truth and Memory from the Mercosul member

states and the international standards developed in this field for the establishment of public

policies related to Sites of Memory, which the Brazilian Government is committed to

adopting at the national level.

KEYWORDS

Sites of Memory; Mercosul; Right to Cultural Heritage

1.INTRODUÇÃO

Pensar a redemocratização no Brasil nos remete principalmente as questões da

transição do regime da ditadura a democracia e suas consequências e as formas de pensar a

história de um país. Por isso na contramão de uma política do esquecimento deve se

implementar uma política da memória.

Marcas, Vestígios, Histórias, Testemunhos, Documentos são fontes para uma

possível aproximação da realidade do período autoritário em nosso país. Como estamos em

tempos da Memória e da Verdade, discute-se sobre a possibilidade de preservação e

permanência destes elementos para o reavivamento de uma história que se tentou apagar.

No Brasil tem se empreendido um trabalho de reconstrução de Memória e da

Verdade por meio das mais diversas manifestações, entre elas, a discussão sobre os Lugares

de Memória. Nas cidades onde a repressão e a resistência foram mais significativas, alguns

lugares apenas por sua existência física, emanam uma carga simbólica sobre o lugar que

ocuparam naquele período.

Os Lugares de Memória se inserem na reconstrução da verdade sobre o período

da Ditadura, compondo e (re)compondo o imaginário nacional e a identidade do povo

brasileiro como Nação.

Por estes motivos os Lugares da Memória devem ser compreendidos como o

exercício dos direitos culturais plasmados na Constituição Brasileira, seja como direito ao

patrimônio cultural material ou imaterial.

Para pensar em como o Estado Brasileiro, por meio das mais diferentes

instancia federativas podem contribuir para construção de políticas públicas de promoção e

garantia do Direito a Memória e a Verdade, e consequentemente do direito a patrimônio

cultural, através dos Lugares da Memória, o Mercosul iniciou uma discussão sobre

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parâmetros comuns para a implementação destas políticas públicas de Lugares da Memória

nos diversos países membros.

Este artigo pretende trazer alguns desses elementos levantados num documento

elaborado pelo Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos do Mercosul sobre os

Lugares da Memória, que viabiliza a concreção do direito ao patrimônio cultural vinculado a

rememoração da época da Ditadura.

2.MEMÓRIA E DITADURA:DISPUTAS PELA SIGNIFICAÇÃO DA HISTÓRIA

O entrelaçamento entre o presente e o passado para apontar caminhos para o

Direito numa perspectiva futura, deve partir do exercício da memória, pois “a relação entre

hoje e ontem não é unilateral: em um processo eminentemente dialético, o presente ilumina o

passado, e o passado iluminado torna-se força no presente.” (LOWY, 2005, p. 61)

Nesta mesma linha, LE GOFF assume que este processo deve garantir uma

memória que sirva para a emancipação, pois na história, é onde cresce a memória, que por sua

vez a alimenta, que procura salvar o passado para servir o presente e futuro. (LE GOFF,1996,

p.547-548)

Ainda, “a memória é ao mesmo tempo meio de significação social e temporal dos

indivíduos, grupos e instituições, e daí sua grande importância na geração do senso comum.

Socialmente, a memória parcialmente compartilhada promove a formação de uma narrativa

que inclui diferentes coletivos numa mesma história. Temporalmente torna operacionalmente

funcional o elo que liga o passado ao futuro, tensionando e agregando significado ao

momento presente (ARENDT, 2000, p. 78), tanto nos planos individuais como nos planos

coletivos.

O ato de rememorar, não é somente o fato de acolher uma imagem do passado, como

também de busca-la, da fazer alguma coisa, do exercício da memória.(RICOUER, 2007, p.71)

Ao pretender exercitar a memória, porém com a visão de que por estarmos nos

debruçando sobre tema pungente da nossa democracia atual, é necessário recuperá-la não de

uma forma naturalizada a história, como se fosse resultado de um desenvolvimento

necessário, ao qual não poderia ter impedido, pois correríamos o risco de negá-lo. (ARENDT,

2005, p.320)

Quando falamos de processos como a discussão da Lei de Anistia, da instalação da

Comissão de Memória e Verdade e da reparação pelas violações de direitos humanos

cometidas no período da ditadura, se faz presente a inscrição da narrativa daqueles que

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resistiram a este processo na história com a finalidade de reconstruí-la a partir de diversos

olhares.

No Brasil, como em outros países que passaram por estados ditatoriais, os

governos “fazem uso de uma espécie de esquecimento de encomenda (não nos lembramos das

coisas más), por razões respeitáveis que visam a manutenção da paz social.” Porem a pergunta

é sobre qual a linha de fronteira entre anistia e amnésia? (TORELLY, 2009, p. 92).

É assim que surge a necessidade de afirmação e avivamento de memórias sociais

que somem as vivências individuais e coletivas de violações passadas ao processo reflexivo

de superação do legado autoritário e consolidação do Estado Democrático de Direito,

fomentando o surgimento de narrativas reflexivas que, ao dialogar com o autoritarismo,

promovam o pluralismo, a democracia e os direitos humanos traduzidos em uma cultura que,

por conter este senso comum democrático, repele o autoritarismo, consolidando a democracia

desde um ponto de vista prático (e não estritamente jurídico) e possibilitando que os

elementos não conscientes da memória não sejam vinculados com a violência do passado.

(TORELLY, 2009, p. 105)

Para tanto, devemos entender que a recuperação da memória não se faz, portanto

sem o confronto de valores, “contrapor os valores que nos guiaram e os valores que erigiram a

fundação de regimes repressivos, que somente foram passíveis de serem implementados pela

violência armada.” (GENRO; ABRÃO, ,2009, p. 19)

A história se converteu no campo preferencial para as disputas sobre a

legitimidade constitucional e, por isso mesmo, a pluralidade de leituras que leva a uma luta de

histórias ou a própria fragmentação de história em histórias diversas, porque é a história que

articula uma fala autorizada sobre o passado, recriando a memória social através de um

processo de seleção e exclusões, onde se joga com as valorações da positividade e do rechaço.

A história do tempo da ditadura apresenta para nós atualmente este embate sobre a

disputa de sentidos, sobre o acontecido naquele período, sendo que há uma inflexão muito

grande nas pesquisas até hoje realizadas de primar pela “amnésia”, conduzindo a uma

percepção unidimensional, determinando a memória da sociedade brasileira em tempos de

democracia.

A perspectiva histórica adotada nesses estudos trouxe aquilo, que BENJAMIM

denomina de história dos vencedores, pois “fecha-se em uma lógica linear que pisoteia as

vitimas, que as ignora sob o cortejo triunfante do progresso.” (BENJAMIM,1992, p.91). Esta

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visão da história “prestou-se a reforçar uma concepção acumulativa, evolutiva e continuista

do tempo, reservando um papel normativo para a memória, confundida em muitos momentos

com a repetição fria e hipnótica de rituais de civismo e do culto a símbolos forjados para

representar um conceito de unidade que , mais do que o reflexo de laços tradicionais e fruto

de um escavar da memória, atendia aos interesses e as conveniências da formação do ideal

nacionalista” (SILVA FILHO,2008 p. 189)

Por isso devemos tratar de romper esse continnum e abrir a brecha das qual

nascerá a ação política, (GENRO; ABRÃO, p. 20) resignificando o passado, agregando ou

dando novos significados , para que se possa então refletir sobre a transformação e

emancipações sociais. O que interessa na rememoração do passado, é “a luta até a morte entre

opressores e oprimidos, exploradores e explorados, dominantes e dominados”. ( LOWY,

2005, p. 59)

De diversas formas o processo de Justiça, Memória e Verdade por parte dos

“vencidos” tem se consolidado, seja por meio das ações judiciais perante o Poder Judiciário,

seja por meio das Comissões da Verdade, seja por meio de manifestações culturais, seja pela a

instituição dos denominados Lugares da Memória.

3.LUGARES DE MEMÓRIA:EM BUSCA DE UM CONCEITO

Num primeiro momento a pergunta que nos cabe é : qual é a função dos Lugares

da Memória neste processo de construção pública da verdade?

Os Lugares de Memória são um recurso fundamental para a efetividade dos

direitos humanos por poderem ser tratados como bens culturais destinados a reparação

simbólica das vítimas e à produção de conhecimento para a sociedade

No âmbito da cultura diversas são as formas de sedimentação de uma narrativa no

imaginário social, “a construção de memoriais, a proteção de um espaço como lugar de

memória, o estabelecimento de datas comemorativas, a formação de museus com temas que

busquem prevenir a repetição das atrocidades de um determinado período ou outras formas de

homenagem de vítimas são iniciativas de memorialização.” (SOARES;QUINALHA, 2011, p.

80)

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

276

Page 277: Justica de transicao vdd memoria e justica

Esses atos de memorialização são importantes por representarem o

reconhecimento público do legado da violência ou de um passado violento.

Os Lugares de Memória “servem como mecanismo extrajudicial para reparação

simbólica das vitimas da ditadura e da sociedade e tem um potencial que atinge também o

Estado que, por meio da implantação e gestão desses locais ( ou pelo apoio aos mesmos, no

caso de uma iniciativa privada), pode expressar pública e oficialmente seu repúdio as

violações cometidas por seus agentes a ao negacionismo”.(SOARES;QUINALHA, 2011, p.

80)

Os Lugares da Memória devem se orientar para romper com a lógica do

silenciamento e a valorização das histórias de resistência a ditadura.

Em regra os Lugares da Memória se encontram situados em antigos espaços de

repressão da ditadura militar, como as sedes dos DOI-CODI, a exemplo de São Paulo, ou

mesmo de casas/ abrigos que serviam como lugares de tortura como as “Casas da Morte”, a

exemplo como esta em processo na cidade de Petrópolis, no Rio de Janeiro.

Ao trazer esta ideia de Lugares da Memória, existe a conciliação na proteção do

espaço físico (material) como suporte para a formação de uma memória coletiva(imaterial).

O conceito elaborado por NORA de Lugares de Memória é elaborado no sentido

que criticar os efeitos de uma sociedade contemporânea, pós industrial, dominada por uma

sociedade massas. Ao apontar para a construção do conceito de memória, dissocia-a da ideia

de história, onde esta vinculada a uma narrativa unificadora e de criação de uma identidade

universal. Enquanto a memória, é “tradição definidora, portadora de uma herança que dá

sentido e forma, é viva e dinâmica.”

A “memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto. A

história só se liga a continuidades temporais, as evoluções e as relações das coisas. A

memória é o absoluto e a história o relativo.” (NORA,1993,p.09)

Diante do esfacelamento da memória, esfacelada desperta memória para a sua

encarnação. “Há locais da memória porque não há mais meios de memória” (NORA,

1993,p.7)

“A memória é a vida, carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela esta em

permanente evolução, aberta a dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

277

Page 278: Justica de transicao vdd memoria e justica

deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, suscetível de longas

latências e de repentinas revitalizações”. (NORA,1993, p.9)

A ideia de memória sempre foi evocada pela ideia de Nação, por ser ela portadora

da consciência da coletividade, se apresentava com univocidade da identificação nacional e da

transmissão de valores.

“Os lugares de memória são, antes de tudo, restos.” (NORA, 1993, p. 12)

Os lugares da memória são resultado de um processo dialético, onde são gestados

como operações não naturais, não espontâneo, que seleciona e privilegia, porém a história a

retira para “deforma-los, transforma-los, sova-los e petrifica-los”.(NORA, 1993, p. 13)

Ainda sobre o conceito NORA traz que :

Lugares salvos de uma memória na qual não mais habitamos, semi-oficiais e

institucionais, semi afetivos e sentimentais, lugares de unanimidade sem

unanismo que não exprimem mais nem convicção militante nem participação

apaixonada, mas onde palpita ainda algo de uma vida simbólica. Oscilação

do memorial ao histórico, de um mundo onde se tinham ancestrais a um

mundo de relação contingente com aquilo que nos engendrou, passagem de

uma história totêmica para uma história critica; é o momento dos lugares da

memória. (NORA, 1993, p. 14).

A discussão dos Lugares da Memória passa pela necessidade urgente da

materialização e expressão de um futuro incerto, garantindo ao hoje, um significado, que pode

ser redimensionado.

Contudo, não somente no tocante ao aspecto material que os lugares da memória

se sobressaem, mas também no campo do funcional e do simbólico. “Só é lugar da memória

se a imaginação o investe de uma aura simbólica” (NORA,1993, p. 21)Os lugares da memória

tem a função também de bloquear o esquecimento, ampliando significativamente os seus

sentidos e os tornando imprevisíveis.

Os Lugares de Memória são uma resposta a essa necessidade de identificação do

indivíduo contemporâneo, pois os “lugares da memória nascem e vivem do sentimento que

não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, organizar celebrações, manter

aniversários, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque estas ações não são

naturais”(NORA, 1993, p. 13)

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

278

Page 279: Justica de transicao vdd memoria e justica

Os Lugares de Memória tem o papel narrativo de consolidação e totalização

reunindo elementos característico de um grupo, conferindo-lhe sentido e unificando-o, “há

uma rede articulada dessas identidades diferentes, uma organização inconsciente da memória

coletiva que nos cabe tornar consciente se si mesma. Os lugares da memória são nosso

momento de história nacional.” ”(NORA, 1993, p. 13)

Uma das principais criticas trazidas pelo conceito de NORA de Lugares da

Memória, se deve por ser um conceito estático, unitário e substantivo, devendo se tratar de

uma noção mais dinâmica e fluída, como territórios das memória, que vem a ser “ as relações

ou o processo de articulação entre os diversos espaços marcados e às práticas de todos os que

se envolvem no trabalho de produção de memórias sobre a repressão; ressalta os vínculos, a

hierarquia e a reprodução de um tecido de lugares que potencialmente pode ser representado

por um mapa. Ao mesmo tempo, as propriedades metafóricas do território nos leva a associar

conceitos tais como conquista, litígios, deslocamentos ao longo do tempo, variedade de

critérios de demarcação, de disputas, de legitimidades, direitos, soberanias.”(CATELA,

2010,P. 208).

Mas independente da critica, este termo ainda é o mais comumente utilizado para

designar estes espaços de importantes na construção histórica de um país.

A retomada da ideia de memória pela discussão sobre o período da ditadura é

constituinte de uma positividade política que fortalece a noção de cidadania ativa no processo

de análise do fatos do passado, em confronto com a ideia de amnésia que se instaurou

posteriormente a abertura democrática.

O processo de memória e verdade neste âmbito revela os processos de

deslegitimarão política de alguns grupos sociais e indivíduos, por isso este é ato é em sua

essência político.

Ao contrário do que se presta a memória oficial e oficiosa, a memória impregnada

nestes lugares não deve padecer da ideia de totalidade e de verdade, devendo sempre garantir

uma abertura para as diferentes narrativas da resistência.

Os lugares da Memória, por meio de sua materialidade são testemunho das

violações ali ocorridas uma vez que constituem um patrimônio histórico e cultural ineludível

para as gerações futuras.

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

279

Page 280: Justica de transicao vdd memoria e justica

4. LUGARES DE MEMÓRIA COMO EXERCICIO DO DIREITO AO PATRIMÔNIO

HISTÓRICO

A relação direta entre Lugares de Memória e a proteção jurídica se deve em

grande medida pelo fato que ambos, Memória e Direito, se instituem no tempo,e por isso

condicionados por uma seleção de um determinado grupo no poder. Desta forma resultante de

uma construção social, na qual “a memória social foi, todos os tempos, confiada aos

juristas.”(OST,2005,p.49)

A consciência coletiva edificada por lembranças comuns constroem a identidade

coletiva necessária a Nação. O Direito então funciona como o mecanismo legitimador da

seleção representativa do poder.

Por meio desta mediação, o Direito institui os contornos do que vem a ser o

patrimônio cultural de um país e as formas de regulação e proteção.

Desta forma, o patrimônio cultural é uma memória selecionada juridicamente que

põe em evidência os valores de um grupo que está no poder. Deste modo, o patrimônio

cultural é um instrumento de proteção e rememoração de uma memória selecionada que é

construída socialmente, referendando determinada forma de poder e de direito.

O Estado com a finalidade de reforçar a coesão nacional pelo afeto e não pela

coerção, visa “adotar uma concepção de memória capaz de fornecer uma origem comum ao

povo, pois a comunhão do passado, construída a partir da criação e compartilhamento do

patrimônio cultural, permite criar uma identidade singular, que serve como argamassa para

consolidação e o fortalecimento dessa organização política.” (DANTAS,2010,p.56)

Pode-se definir patrimônio cultural como “o conjunto de bens materiais e

imateriais que exprimem as experiências simbólicas e ideológicas de determinada sociedade,

fundantes de uma identidade cultural”.(DANTAS,2010,p.117)

No processo de democratização, a Constituição forjada naquele momento trazia

consigo este conceito, ampliando as possibilidades de conformação do patrimônio cultural

brasileiro, pois este documento representava “um produto da cultura porque os significados e

categorias das suas normas só podem ser interpretados em consonância com a realidade

social, que é cultural, além do que os valores constitucionais tem origem sócio-

cultural.”(DANTAS,2010,p.46)

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

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Page 281: Justica de transicao vdd memoria e justica

A Constituição Federal de 1988 no rol dos seus bens a serem protegidos trouxe a

necessidade preservação e conservação do patrimônio material e imaterial, pois o patrimônio

faz recordar o passado, é uma manifestação cultural, é um testemunho de um tempo, é luz

sobre o passado.

A ideia dos Lugares da Memória se coaduna com o previsto no artigo 216, inciso

IV e V2 da Constituição Federal, quando faz referencia a edificações e espaços destinados a

manifestação cultural e cojuntos urbanos de valor histórico.

A presença na Constituição desta proteção se deve pelo “interesse cultural de que

se revestem determinados bens, assume tal relevância para a sociedade que sua proteção se

impõe ao ordenamento jurídico.”(MARÉS,1999,p.27)

A proteção a esses espaços visa a concretizar o aprofundamento da democracia no

país, permitindo a sociedade brasileira o contato com lugares simbólicos daquele período de

repressão, ampliando a sua visão sobre os efeitos da ditadura.

A possibilidade de repensar a história brasileira a partir da experiência trazida

pelos Lugares de Memória avança na constituição de uma identidade nacional, se tornando

fonte da cultura nacional, assegurando as futuras gerações à possibilidade de acesso a este

representativo acervo de nossa sociedade, que constituem o Patrimônio Cultural Brasileiro.

Algumas iniciativas foram tomadas na direção de proteção deste patrimônio

histórico cultural relacionado a ditadura. No ano de 2009, foi institucionalizado pela Casa

Civil da Presidência da República o Centro de Referencia das Lutas Políticas no Brasil, que

originou o projeto Memórias Reveladas implantado no Arquivo Nacional.

Outro marco importante no âmbito do Governo Federal, foi a aprovação do 3º

Programa Nacional de Direitos Humanos, no qual um dos eixos é a Memória e a Verdade,

dentre as suas diretrizes se destaca a 24, que indica a preservação da memória histórica e a

construção pública da verdade, por meio da criação e manutenção de museus, memoriais e

centros de documentação sobre a resistência à ditadura “como uma ação para cumprimento do

objetivo estratégico de incentivar as iniciativas de preservação da memória histórica e de

construção pública da verdade sobre períodos autoritários” (SOARES;QUINALHA, 2011, p.

77)

2 O texto do artigo 216 da Constituição Federal: “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de

natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência a

identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos

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Page 282: Justica de transicao vdd memoria e justica

Para além das ações governamentais indicadas acima, para a concretização do

direito ao patrimônio cultural relacionado a ditadura, neste caso os Lugares de Memória, é

imprescindível o Estado Brasileiro adotar políticas públicas, isto é, da intervenção estatal para

a garantia da proteção.

De acordo com BUCCI:

Política Pública é o programa de ação governamental que resulta num

processo ou conjunto de processos juridicamente regulados visando

coordenar os meios a disposição do Estado e as atividades privadas

para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente

determinados.(BUCCI,2006,p.39)

Para a formulação das políticas públicas o Estado Brasileiro deve se guiar por

alguns parâmetros para institucionalizar os Lugares de Memória, definir prioridades, a reserva

dos meios necessários e o estabelecimento de metas para atingimento dos resultados

esperados. (BUCCI,2006,p.39)

As diretrizes foram formuladas no âmbito do Mercosul, motivados pela ação

cojunta realizada em alguns países do bloco no período da ditadura por parte dos poderes

governamentais da época.

5.MERCOSUL,DITADURA E DIREITOS HUMANOS

O Mercosul foi estabelecido em 1991, pelo Tratado de Assunção, com base em

acordo de livre comércio envolvendo a Argentina, o Brasil, o Uruguai e o Paraguai, e

incorporando posteriormente o Chile, Bolivia e Venezuela A principal finalidade era eliminar

tarifas alfandegárias, assegurar a livre circulação de fatores produtivos (capital e trabalho)

entre os países membros e estabelecer uma política comercial comum no sul do continente.

Porém, com o passar dos anos o Mercosul foi ampliando sua perspectiva de

atuação principalmente para tornar concreta a integração do Mercosul no tocante a cultura e

identidade.

Na mesma esteira de pensamento, foi se reforçando o ideário comum de Direitos

Humanos como um dos fatores integradores do Mercosul e com isso a criação de instâncias e

marcos legais.

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Page 283: Justica de transicao vdd memoria e justica

Quanto as instâncias tivemos a criação da Reunião das Altas Autoridades em

Diretos Humanos do Mercosul (RAADDHH) e posteriormente no seu âmbito o Instituto de

Políticas Públicas em Direitos Humanos.

O estabelecimento de pontos comuns quanto a questão democrática e de direitos

humanos, apresentou aos Estado do Mercosul o contexto de violações de direitos humanos,

também comum no contexto do Cone Sul.

Apesar da complexidade e das grandes diferenças étnicas e raciais que

caracterizam a America Latina, algumas observações gerais podem ser feitas especialmente

em relação aos países do Cone Sul como Argentina, Brasil, Chile e Uruguai, que tem passado

por transformações políticas semelhantes nas últimas décadas. O contexto político do

Paraguai difere das situações dos países citados, pois a ditadura militar iniciou-se muito antes

neste país.

É importante frisar que “por várias razões econômicas e geopolíticas, tais países

sofreram golpes de estado nos anos 60 e 70 que instalaram governos militares autoritários.

Estes governos utilizaram diversas estratégias de coerção e violência institucional para impor

o seu domínio.”(CEPIA,2001,p. 08)

A dimensão regional das violações de direitos humanos no Cone Sul é cabível

“porque foram cometidas e estão enquadradas em que processos históricos que se deram de

forma inter-relacionada, tal como demonstra a criação da aliança repressiva continental,

conhecida como “Operação Condor3”.(IPPDH, 2012, P. 5)

Por este contexto comum é que se pode pensar numa ação conjunta e partilhada da

memória no nosso continente.

Para tal tarefa, o Instituto de Políticas Públicas de Direitos Humanos foi criado no

âmbito do Mercosul, com a finalidade de contribuir ao fortalecimento do Estado de Direito

nos Estados partes, mediante a elaboração e monitoramento das políticas públicas em Direitos

Humanos e contribuir na consolidação dos Direitos Humanos como eixo fundamental da

identidade e desenvolvimento do Mercosul. (MERCOSUR/CMC/DEC. Nº 12/10). Tem a sua

3 Nos anos setenta os serviços de inteligência dos países do Cone Sul constituíram uma aliança repressiva

sustentada ideologicamente na Doutrina de Segurança Nacional e ideada com o objetivo de combater quem se

considerava subversivo, suscetível de incluir uma multiplicidade de sujeitos definidos como inimigos

ideológicos. O documento fundacional da aliança enfatiza a necessidade de enfrentar a guerra psicopolitica com

uma coordenação eficaz que permita no intercambio de informações e experiências entre os países da região.

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Page 284: Justica de transicao vdd memoria e justica

atuação adstrita ao âmbito da Reunião de Altas Autoridades na área de Direitos Humanos e

Ministérios das Relações Exteriores do Mercosul.

A característica do Instituto é de ser uma instância técnica de Investigação no

campo das políticas públicas, com vistas a fortalecer a dimensão social do processo de

integração.

A direção do instituto é colegiada e composta por um representante titular e um

suplente de cada Estado Parte. Sua sede permanente é na cidade Autônoma de Buenos Aires

na Argentina.

De acordo com o Plano Estratégico do Instituto de Políticas Públicas em Direitos

Humanos Mercosul de 2010-2012, existem quatro eixos temáticos de trabalhos : a) políticas

de prevenção da violência institucional e segurança cidadã; b) políticas de igualdade e não

discriminação; c) políticas de Memória, Verdade, Justiça e Reparação perante graves

violações de direitos humanos e infraestrutura institucional em direitos humanos. Quanto ao

Eixo Memória e Verdade se buscou o intercambio de experiências nacionais relativas aos

processos de justiça por graves violações de direitos humanos cometidas durante os períodos

ditatoriais nos países do Mercosul e Estados Associados, dentre os trabalhos propostos está as

políticas de lugares da memória. (IPPDH, 2010,p. 4)

Diante estes objetivos fixados para o Instituto de Políticas Públicas, busca-se

algumas estratégias de intervenção do Instituto, como promoção de debates e espaços de

discussão no Mercosul, vinculando os temas de direitos humanos com a agenda social,

política e econômica; promoção de uma maior coordenação e articulação das políticas em

direitos humanos nas reuniões da RAADDHH, ou em reuniões de Ministros do Mercosul ou

Unasul; apoio nas relações Estado e Sociedade Civil na formulação de políticas públicas em

direitos humanos, promoção e fortalecimento dos sistemas de proteção de direitos humanos

nacionais e regionais; desenvolvimento de investigações disponíveis na área, neste ponto se

enquadra o documento relacionado aos parâmetros quanto aos Lugares da Memória. (IPPDH,

2010, p.6)

Para alcançar os objetivos definidos pela Reunião das Altas Autoridades, foi

instituído com as seguintes funções:

a) Cooperar com projetos de políticas públicas em Direitos Humanos e sua posterior

consecução; a implementação dos meios que permitam uma mais efetiva e eficaz

proteção e promoção dos Direitos Humanos reconhecidos nas respectivas

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

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Page 285: Justica de transicao vdd memoria e justica

Constituições Nacionais e nos Instrumentos Internacionais de Direitos Humanos e a

adoção dos padrões internacionais postos nos instrumentos de Direitos Humanos nos

sistemas interamericano e das Nações Unidas;

b) Contribuir com a harmonização normativa entre os Estados Partes em matéria de

promoção e proteção dos Direitos Humanos;

c) Prestar assistência técnica para o desenvolvimento de atividades de capacitação e

promoção de Direitos Humanos para funcionários das instituições de Direitos

Humanos dos Estados Partes;

d) Oferecer um espaço permanente de reflexão e dialogo entre os funcion´´arios

públicos e as organizações da sociedade civil sobre políticas públicas;

e) Realizar estudos e investigações sobre temas vinculados a promoção e proteção

dos Direitos Humanos, que sejam solicitados pela reunião das Altas Autoridades na

árrea de Direitos Humanos e Ministérios das Relações Exteriores do Mercosul.

6.MERCOSUL E AS POLÍTICAS PÚBLICAS DOS LUGARES DE MEMÓRIA

Na XIX reunião da RAADDHH se encomendou ao Instituto a elaboração de um

estudo sobre os princípios fundamentais para a preservação dos lugares onde se cometeram

graves violações aos direitos humanos durante as ditaduras militares do Cone Sul, com ajuda

dos Estados e Sociedade Civil.

A metodologia utilizada para este estudo foi elaborada e distribuído um

questionário sobre alguns temas vinculados com as políticas públicas em matérias de Lugares

da Memória. Este questionário circulou entre pessoas e instituições envolvidas com a

temática. O documento preliminar denominado “Princípios Fundamentais para as Políticas

Públicas em matéria de Lugares da Memória” foi apresentado na XXI da RAADDHH e que

posteriormente passou por um processo de consulta por seis meses, período no qual recebeu

observações, comentários e sugestões. Esta atividade se confirmou com no Plano de Trabalho

Anual de 2012.

Neste mesmo período outras duas atividades foram planejadas, uma Jornada para

correspondentes estrangeiros e jornalistas sobre os processos de verdade e justiça na região e

uma atividade sobre o Plano Condor no marco da Cúpula Social do Mercosul.

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Page 286: Justica de transicao vdd memoria e justica

Por que pensar em políticas públicas para Lugares da Memória? Primeiro, deve-se

compreender que os direitos humanos se concretizam no plano normativo e operativo por

meio das políticas públicas, derivadas das obrigações internacionais de proteção e garantia.

Políticas Públicas se concebem como uma série de normas, decisões e práticas

implementadas por diversos atores sociais tendentes a resolver problemáticas politicamente

definidas como de caráter social. (IPPDH, 2012, p. 4).

O processo de integração do Mercosul ganha com a coordenação de políticas

púbicas de Lugares da Memória, mais um instrumental para a construção de um memória

conjunta na conformação de uma identidade regional.

Para o IPPDH, os lugares de memória são “Lugares onde se sucederam os

acontecimentos, ou que por algum motivo, estão vinculados com tais acontecimentos, para

recuperar, repensar e transmitir certos fatos traumáticos do passado e que podem funcionar

como suporte ou propagadores de uma memória coletiva.” (IPPDH, 2012, p. 6)

O documento traz um marco conceitual para as políticas públicas sobre os lugares

da memória, que se embasam principalmente nas legislações internacionais que prescrevem

obrigações internacionais em matéria de luta contra a impunidade e os efeitos de reparar as

vitimas graves de violações de direitos humanos que se constituíram num padrão sistemático

e generalizado.

Nesta linha, poderíamos dizer a partir do documento que os Lugares de Memória

podem se apresentar aos Estados e sociedade do Mercosul como :a) evidência; b)como meio

de conhecer o ocorrido; c) como suporte de memória coletiva; d) como medida de reparação

simbólica e garantia de não repetição.

O documento aponta que por se tratar como evidência, os Estados devem, isto é,

tem a obrigação de investigar e sancionar as violações de direitos humanos, de forma

imparcial e efetiva orientada pela verdade e o processamento e eventual pena aos

responsáveis, se utilizando de todos os meios legais, sem poder se eximir de responsabilizar

penalmente por se tratar de direitos que são imprescritíveis e inadmissíveis. Neste sentido

tem-se no contexto do ordenamento jurídico brasileiro a decisão da Corte Interamericana de

Direitos Humanos no caso Araguaia, que reforçou estas ideias propostas pelo IPPDH quanto a

memória, verdade e justiça.

Por outro lado, o Estado Brasileiro não tem se alinhado a este tipo de conduta vide

a decisão do Supremo Tribunal Federal quanto a Lei de Anistia.

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Page 287: Justica de transicao vdd memoria e justica

As imagens, os planos e a informação obtida nos arquivos podem contribuir para

reconstrução do modo como estes lugares da memória. A este respeito e decorrente desta

abordagem como evidência, “os Estados devem garantir para que qualquer pessoa ou

instituição com interesse legítimo possa solicitar a preservação dos lugares onde se

cometeram as violações de direitos humanos”. (IPPDH, 2012, p. 9). Ainda nesta linha, podem

requerer com a finalidade de preservação, tarefas de manutenção com o objetivo de conservar

sua estrutura edilícia e outros elementos com valor probatório.

Alguns exemplos neste sentido já puderam ser verificados no âmbito dos países

do Mercosul, como ações judiciais que tinham como fundamento prevenir a modificação ou

demolição dos lugares onde funcionaram centros clandestinos de detenção.Na Argentina,

houve a declaração de inconstitucionalidade de um decreto presidencial que ordenava a

demolição onde funcionava a ESMA, enquanto no Uruguai, se utilizaram medidas judiciais

para não mudar a estrutura dos edifícios militares do Batalhão 13º de Montevidéu e nº 14 de

Toledo. (IPPDH, 2012, p. 11)

Outra estratégia que tem sido adotada é a criação de marcos legais no âmbito

municipal, estadual ou federal de reconhecimento destes lugares como patrimônio histórico,

neste caso podemos citar os casos da Argentina e do Chile, que garantiram a intangibilidade, o

ex-centro “El Olimpo” e “Londres 38” respectivamente. (IPPDH, 2012, p. 11)

Entender os lugares da memória como meio de conhecer os fatos ocorridos,

garante que para além da dimensão individual das violações de direitos humanos, o direito a

verdade tenha uma conotação social ou coletiva, ligada ao direito dos povos a conhecer seu

passado para assim construir uma memória histórica e resguardar-se para o futuro.

Por isso, “os lugares da memória podem materializar o direito a verdade e sendo

este um direito autônomo, os Estados devem garantir sua tutela judicial, assegurando a

disponibilidade e acessibilidade de recursos adequados para que qualquer pessoa ou

instituição com interesse legitimo possa solicitar para preservar os prédios onde se cometeram

as graves violações de direitos humanos. “(IPPDH, 2012, p.13-14)

No tocante aos lugares da memória serem suportes da memória coletiva, é

importante considerar que para a construção destas políticas públicas deve se garantir a

participação da sociedade, especificamente das vitimas e seus familiares, e da comunidade

loca, porque não se trata de construir uma memória oficial do Estado.

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Page 288: Justica de transicao vdd memoria e justica

Esta frente permite prevenir que se desenvolva no âmbito dos Estados, teses

revisionistas ou negacionistas.

São instrumentos imprescindíveis para a educação em direitos humanos e

elaboração de uma pedagogia da memória, atuando assim como uma prevenção para a não

ocorrência das violações de direitos humanos.

Se alinha a esta perspectiva de compreender os lugares da memória como meio

de reparação simbólica e garantia da não repetição.Ao se construir estas medidas

administrativas e/ou legais, há um reconhecimento público do Estado de sua responsabilidade

nos fatos vinculados ao período da ditadura. Estas iniciativas vislumbram a possibilidade de

uma reparação simbólica e de um restabelecimento da dignidade das vitimas, se isso for

possível.

Ao se trabalhar este marco conceitual para a elaboração de políticas públicas de

lugares da memória, o passo seguinte é trazer alguns indicativos quanto a sua definição,

objeto, função, formato, conteúdo e desenho institucional.

A ideia dos lugares de memória deve ser pensada em conformidade com a sua

funcionalidade concreta e por isso uma definição sobre o que são e para quê, devem ser

sempre reconceitualizadas e em permanente construção.

No momento de definição dos lugares de memória, pode-se ter três concepções:

a) Lugares de Memória que são todos aqueles lugares que resultem significativos

para uma comunidade e que permitem impulsionar processos de construção de

memórias vinculadas a determinadas eventos traumáticos ou dolorosos.

b) Lugares de Memória são lugares construídos especificamente para realizar

trabalhos de memória (museus, monumentos nas ruas, e outros), mas que não tem

necessariamente um vinculo físico, emocional ou simbólico com os acontecimentos

que se buscam evocar.

c) Lugares de Memória são lugares físicos onde se cometeram graves violações de

direitos humanos(IPPDH, 2012,p.19)

Diante dessas possibilidades os Estados devem criar condições mínimas para a

identificação, sinalização e criação dos lugares de memória, inclusive aqueles lugares

ainda seguem sob o comando de instituições que foram diretamente responsáveis pelas

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Page 289: Justica de transicao vdd memoria e justica

violações de direitos humanos. Estas marcas dos lugares de memória tem um efeito

externo a sociedade, mas também para dentro das instituições que estiveram envolvidas.

Quanto ao formato desses lugares de memória, há duas posições distintas trazidas

pelo IPPDH, uma que sustenta que “se deve reconstruir estes espaços tal qual foram, de

maneira de fazer presente algo que atualmente esta ausente mas que se busca invocar para

poder transmitir as novas gerações e a toda sociedade. A maioria ao contrário, entende que

se deve deixar como está, pois deve preservar o seu valor testemunhal e probatório destes

prédios.” (IPPDH,2012, p. 21)

Em relação ao conteúdo, os lugares de memória, devem estar relacionados com as

graves violações de direitos humanos ocorridas no passado, mas sob uma análise critica e

que aponte para defesa dos direitos humanos na atualidade.

Por final o documento aponta o contorno do debate quanto a gestão e

funcionamento dos lugares de memória. Aponta-se para necessidade de construção de um

marco jurídico adequado para criação, preservação, funcionamento, gestão e

sustentabilidade dos lugares de memória.

A ideia principal e comum é que “o desenho institucional deve contemplar

mecanismos de transparência, monitoramento e avaliação que permitam a prestação de

contas por parte do conjunto da sociedade.” (IPPDH, 2012,p. 22). Nesta lógica, deve se

pensar num modelo de gestão que garanta a permanência destas políticas de memória e

verdade.

Foi elencado três tipos de gestão institucional: a) lugares de memória que

funcionam sob a responsabilidade da Administração Pública; b) Lugares de memória que

estão fora da Administração pública, mas que contam com algum tipo de financiamento

público, normalmente gestionados por fundações ou organizações de direitos humanos; e,

c)lugares de memória que fazem parte da estrutura estatal, mas com gestão autônoma, o

que permite incorporar alguns graus de independência quanto a agenda dos governos.

(IPPDH,2012, p.23).

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7.CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diversas são as iniciativas de Lugares de Memória no Brasil, por isso a

importância destes marcos conceituais para se pensar em políticas públicas permanentes e

que garantam o Direito a Memória e a Verdade.

A principal diferença deste documento é que encerra uma pluralidade de

perspectivas de abordagem a ser pensado para cada contexto cultural e político.

Outro mérito deste trabalho vem a ser a participação da sociedade civil na

discussão destes parâmetros, os quais antes mesmos dos próprios Estados já desenvolviam

ações de memória, inclusive na construção ou preservação de lugares da resistência.

Para o Estado Brasileiro é uma oportunidade ímpar de implementar estas políticas

públicas por encontrar na sociedade ressonância desta vontade de realizar a Memória no

Pais.

Desta forma a composição do patrimônio cultural brasileiro assimila para si uma

parte da história a qual foi relegada por determinado espaço de tempo, permitindo a

imanência e permanência deste testemunho.

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Page 292: Justica de transicao vdd memoria e justica

A (DES)CONSTRUÇÃO DE UM DIREITO AGRÁRIO PELO

DITADURA MILITAR BRASILEIRA

GUILHERME MARTINS TEIXEIRA BORGES

GOIÂNIA

Março/2013

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A (des)construção de um Direito Agrário pela Ditadura Militar Brasileira

Guilherme Martins Teixeira Borges1

RESUMO

Este trabalho científico visa a refletir acerca das consequências da promulgação do Estatuto

da Terra, Lei Federal nº 4504, de 30 de novembro de 1964 em relação à própria estruturação

de um Direito Agrário, isto é, de como as premissas aclamadas pelo referido codex vieram a

construir o ramo agrarista do Direito, sendo, portanto, o marco para sua autonomia como

defendem a grande parte dos agraristas. Doutra banda, o Estatuto da Terra é fruto de um

processo histórico de balizamento jurídico único, porquanto veio à tona em um momento pelo

qual o Brasil inaugurava suas décadas ditatoriais após o Golpe de 1964. Bem por isso, surgem

as contradições que permeiam o Estatuto da Terra, ou seja, trata-se mesmo de um marco para

a construção de um Direito Agrário autônomo ou apenas serviu à desconstrução de um Direito

Agrário já existente para que os militares colocassem em prática o projeto desenvolvimentista

agroindustrial que pretendiam? Eis, portanto, as reflexões objetivadas neste estudo.

Palavras-chave: Estatuto da Terra. Direito Agrário. Governo Militar Brasileiro.

ABSTRACT

This scientific work aims to reflect on the consequences of the enactment of the Land Act,

Federal Law nº. 4504, of 30 November 1964. Aims to regarding the structure of an Agrarian

Law, ie, how the assumptions acclaimed by agrarian codex came to build the branch of law.

The Land Statute is the result of a historical process of demarcating single legal, since

surfaced at a time at which Brazil inaugurated its dictatorial decades after the 1964 coup

d'état. Therefore arise contradictions that permeate the Land Statute, ie, it is indeed a

milestone for the construction of an autonomous Agrarian Law or just served the

deconstruction of an existing Agrian Law for the military to put into practice the

developmental project agroindustrial they wanted? Those are the reflections targeted in this

study.

Key-words: Land Statute. Agrarian Law. Brazilian Military Government.

1 Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Goiás (UFG), mestrando em Direito Agrário pela Faculdade de Direito da UFG e Assessor Jurídico no Ministério Público do Estado de Goiás. Contato: [email protected]

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Page 294: Justica de transicao vdd memoria e justica

1. INTRODUÇÃO

Em 30 de novembro de 1964, cerca de apenas oito meses após a assunção do poder

político pelos militares por meio do Golpe, foi promulgada, no governo do então Presidente

da República Marechal Castello Branco, a Lei nº 4504: o Estatuto da Terra.

Tal corpo jurídico representa para a grande parte dos agraristas brasileiros o principal

marco a fundamentar a autonomia legislativa do Direito Agrário, considerado, inclusive para

alguns, como o instrumento jurídico criador do próprio Direito Agrário, sequer podendo-se

dizer na existência desse ramo jurídico nos anos anteriores a promulgação deste codex.

Além desses fatores, vários outros também corroboram para a caracterização da

importância que teve e ainda tem o Estatuto da Terra para o Direito Agrário pátrio, o que

justifica o alvo de estudos desta pesquisa.

A par das disposições constantes na Lei nº 4504/64, é imperioso traçar um estudo

acerca das origens teleológicas deste corpo legal que, especificamente no estudo ora proposto,

seguirá pelo viés histórico de sua formação e estruturação no marco temporal compreendido

pela Ditadura Militar Brasileira, especialmente nas primeiras décadas de sua existência no

país.

Nesse sentido, analisar-se-á as origens políticos-sociais que ensejaram a promulgação

de um Estatuto da Terra logo no primeiro ano após o Golpe Militar de 1964, visando

compreender suas relações com processo de formação e consolidação dos movimentos sociais

de luta pela terra que se observava, de forma mais fortalecida, desde a década de 50, bem

como o ideal propagado acerca de uma latente necessidade de se reestruturar o espaço agrário

brasileiro, cuja vontade, conforme se explicará adiante, não partiu apenas das minorias rurais

brasileiras, mas como também dos próprios detentores das terra.

Doutra banda, observa-se que após os primeiros anos de vigência do Estatuto da

Terra, principalmente após o final do governo de Castello Branco, parece ter ocorrido uma

desvirtuação daquelas diretrizes e projetos elencados pelo codex agrário quando de sua

promulgação. O surgimento de um “novo projeto” fundiário para o Brasil almejado pelos

governos militares desenvolvimentistas fizeram com que o Estatuto da Terra passasse por uma

desconstrução de seus ideais, culminando, inclusive, com o esquecimento de parte de seu

conteúdo pelos governantes – especialmente quanto a implementação da reforma agrária – e

pela utilização direcionada ao interesse político-econômico dos militares para o espaço

agrário brasileiro, qual seja, o de formação de um complexo agroindustrial no país.

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É, portanto, no bojo dessa celeuma que se delineará as reflexões aqui propostas.

2. O PANORAMA JURÍDICO AGRARISTA PRÉ ESTATUTO DA TERRA

É na década de 50 que a discussão acerca da reforma agrária no Brasil ganha

dimensões consideráveis, a níveis de diálogos de ordens locais a nacionais. A estruturação do

território fundiário brasileiro começa a sentir os limites de um projeto de ocupação

desorganizado e aquém dos interesses sociais2 ligados à distribuição de terras, perpassando-se

desde as frustradas intenções do Regime de Sesmarias às disposições da Lei de Terras de

1850.

Não por menos, o contexto global de desenvolvimento que se erigia sob as bases de

um capitalismo monopolista-financeiro3, exigia dos demais países uma (r)evolução industrial

e tecnológica apta a inseri-los na nova ordem global das relações econômicas. O mundo vivia

a era das locomotivas, das produções e exportações em grande escala e, principalmente, da

busca por espaços que, outrora vazios, tornassem ambientes industrialmente produtivos.

Em vista disso, aquele Brasil cuja base econômica se concentrava – quase que

unicamente - pela produção agropecuarista, agarra-se a um processo de modernização,

industrialização e internacionalização econômica, social, política e até mesmo cultural.

Destarte, é nesse Brasil dos “anos dourados” que os rumos da modernização, tanto urbana

como rural, alavancam-se. A população brasileira que outrora se concentrava no campo inicia

seu êxodo para os grandes centros urbanos, ao mesmo passo em que o espaço fundiário

brasileiro vivenciava o período de expansão de suas fronteiras agroprodutoras abalizadas por

2 Importante frisar que a consideração ora apontada se refere a um projeto que efetivamente logrou êxito no Brasil. Por certo houve tentativas louváveis de uma (re)organização fundiária brasileira, como por exemplo a própria Lei de Terras de 1850 ao tentar aplicar no território brasileiro o projeto wakefieldiano de uma colonização sistemática. Entretanto, a questão fundiária encapava dimensões que fugia ao controle da própria lei, dimensões estas estabelecidas pelas práticas agrárias historicamente sedimentadas no Brasil e pela convivência de um regime de “posses” com os ditames legais impostos pelo reconhecimento e exercício do direito de propriedade. Assim, por esses e demais outros fatores que se pode inferir não ter vivenciado o Brasil um projeto de ocupação e distribuição fundiária coletivo e efetivamente organizado.

3 Segundo GOLDSTEIN, a fase capitalista denominada de monopolista-financeira, iniciada no século XX e em voga nos dias atuais, pode ser caracterizada pelos seguintes atributos: a) o desenvolvimento das empresas gigantes e a mudança da base de acumulação; b) a emergência de novas relações entre a propriedade e o controle do capital, bem como de novas técnicas de gerência; c) o desenvolvimento da indústria cultural e de sua xifópaga, a publicidade (que se torna peça fundamental no processo de realização do valor e da mais-valia), bem como do crédito e do capital financeiro; d) a extensão da educação formal tendencialmente a toda a sociedade; e) a incorporação sistemática da ciência pelo processo produtivo; f) a liberação do capital de suas limitações técnicas e financeiras ao mesmo tempo em que sua realização se torna mais problemática; e g) a internacionalização cada vez maior do modo de produção. (GOLDSTEIN, Gisela Taschner. Trabalho e dominação no capitalismo monopolista: um esboço de sistematização. Revista de Administração de Empresas. Fundação Getúlio Vargas: Rio de Janeiro, out/dez 1986.p.5).

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Page 296: Justica de transicao vdd memoria e justica

um iminente processo de industrialização do campo. É nesse momento histórico que surge o

Brasil expansionista de Vargas e sua política ocupacional da “Marcha para o Oeste”, os

“cinquenta anos em cinco” de Kubitschek e o prelúdio de um processo de construção do

complexo agroindustrial almejado pelo Governo Militar.

De conseguinte, a era desenvolvimentista brasileira trouxe à tona o celeuma que

aflige o país até os dias atuais: a dicotomia entre as políticas desenvolvimentistas/de

modernização e as políticas sociais de base. E, na tentativa de equilibrar esta balança, a

experiência pátria acabou por pesar em favor do crescimento econômico do país, na medida

em que sucumbiam os projetos de uma política pública voltada aos seus cidadãos. Tal

realidade, portanto, abriu espaço para o surgimento e afirmação dos movimentos sociais

brasileiros.

Assim, além da problemática social vivida internamente pelo Brasil, que sequer

satisfazia o mínimo social à população, haja vista ter seu foco no projeto desenvolvimentista

econômico-financeiro, diversas classes irresignadas com tais situações insurgiram-se contra a

política estatal brasileira de ordem imanentemente capitalista. Outrossim, tais classes

insurgentes foram ainda mais fomentadas pela bipolaridade político-econômica que o mundo

passava na segunda metade do século XX, fazendo com que, em sua grande parte, filiam-se

aos ideais socialistas/comunistas a fim de combater a ordem econômica.

A partir desse momento surge uma preocupação de ordem política no país: o seu

posicionamento na disputa travada entre capitalistas e socialistas durante a Guerra Fria. Os

movimentos sociais que começavam a surgir e se fortalecer passaram a representar uma

ameaça aos interesses econômicos e políticos do país, especialmente em face daquelas

categorias detentoras do processo de industrialização e modernização, tanto urbanas como

rurais.

Na seara da ocupação e distribuição fundiária pátria a questão não foi diferente. As

primeiras exigências de uma reforma agrária começavam a se firmar por meio do discurso

encabeçado pelos movimentos sociais agrários, como por exemplo, as Ligas Camponesas.

As Ligas Camponesas nasceram como a “Sociedade Agrícola de Plantadores e

Pecuaristas de Pernambuco (SAPPP)”, sendo posteriormente veiculadas pela imprensa local

como organizações rurais comunistas. Tempos depois, quando o movimento ganhava seu

espaço, o deputado estadual pernambucano, Francisco Julião, tomou frente na condução da

SAPPP, criando um comitê de apoio que envolvia diversos partidos políticos brasileiros de

cunho esquerdista (PTB, PST, UDN e PSB), e se tornando a principal liderança das Ligas.

Alfim, o movimento ganhou escopo nacional, passando a ser conhecido nacionalmente como

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Ligas Camponesas, as quais foram responsáveis por acirrados embates, principalmente sob o

manto do PCB, envolvendo os conflitos agrários no Brasil.

A notória proximidade das Ligas com os ideários comunistas, notadamente aqueles

aclamados pela política estatal cubana, fez com que o debate da reforma agrária alavancasse

no cenário político do Brasil, pois, nesse momento, vez que a reivindicação de uma (re)

distribuição das terras brasileiras não se tratava mais de uma simples política social, mas sim

de uma forma de contensão e explosão comunista no país.

Segundo REGINALDO BENEDITO DIAS, as Ligas Camponesas:

Canalizaram a luta e reivindicação pelos direitos dos trabalhadores do campo, a reforma agrária e a extensão dos direitos trabalhistas. A trajetória das Ligas caracterizou-se pela crescente radicalização de suas posições, evidenciada na defesa da reforma agrária radical e na adesão do ideário da revolução camponesa, através da estratégia de guerra de guerrilha, influência evidente da recente revolução Cubana4.

A par das discussões travadas pelos movimentos sociais agrários nesta época,

notadamente quanto à forma como se daria uma reforma agrária no país5, importa-nos, para

4 DIAS, R. B. Sob o signo da revolução brasileira: a experiência da ação popular no Paraná. – 1962/1973. Assis: Dissertação de Mestrado, 1997. p. 40.

5 Segundo a Primeira Proposta de Reforma agrária Unitária dos Movimentos Camponeses no Brasil era “o monopólio da terra, vinculado ao capital colonizar estrangeiro, notadamente o estadunidense, que nele se apoia para dominar a vida política brasileira e melhor explorar a riqueza do Brasil. É ainda o monopólio da terra o responsável pela baixa produtividade de nossa agricultura, pelo alto custo de vida e por todas as formas atrasadas, retrógadas e extremamente penosas de exploração semifeudal, que escravizam e brutalizam milhões de camponeses sem terra. Essa estrutura agrária caduca, atrasada, bárbara e desumana constituiu um entrave decisivo para o desenvolvimento nacional e é das formas mais evidentes do processo espoliativo interno”. Para superar tal situação, a proposta previa “a radical transformação da atual estrutura agrária do país com a liquidação do monopólio exercido pelos latifundiários, principalmente com a desapropriação, pelo governo federal, dos latifúndios, substituindo-se a propriedade monopolista da terra pela propriedade camponesa, em forma individual, associativa ou estatal”. Para atingir tais objetivos previam “a aplicação da legislação trabalhista; a desapropriação das terras não aproveitadas das propriedades acima de 500 hectares a partir das regiões mais populosas, das proximidades dos centros urbanos, das principais vias de comunicação e reserva de água; adoção de um plano para regulamentar a indenização por títulos federais da dívida pública, em longo prazo e a juros baixos, das terras desapropriadas, avaliadas à base do preço das terras registradas para fins fiscais; levantamento cadastral completo, pelo governo federal, estadual e municipal de todas as terras devolutas; retombamento e atualização de todos os títulos de posse de terras. Anulação dos títulos ilegais ou precários de posse, cujas terras devem reverter à propriedade pública; imposto territorial rural deverá ser progressivo, através de uma legislação tributária que estabeleça: 1) forte aumento de sua incidência sobre a grande propriedade agrícola; 2) isenção fiscal para a pequena propriedade agrícola, regularização da venda, concessão em usufruto ou arredamento das terras desapropriadas aos latifundiários, levando em conta que em nenhum caso poderão ser feitas concessões cuja área seja superior a 500 hectares, nem inferior ao mínimo vital às necessidades da pequena economia camponesa”. Torna-se importante ressaltar, que as propostas apresentadas na conjuntura pré 64, independentemente da legenda partidária ou da ideologia em jogo, apresentavam vários pontos em comum, tais como: a importância de sua execução como instrumento de desenvolvimento nacional; a questão da tributação progressiva; a mudança do dispositivo constitucional que previa o pagamento das indenizações em dinheiro; o cadastramento das propriedades para avaliar a real situação da estrutura agrária brasileira; o latifúndio como símbolo do atraso e o uso das terras devolutas. Além disso, essas reivindicações foram encampadas pelo Estatuto da Terra de 1964 já sob o governo de Castello Branco. In: STÉDILE, J.P. A questão agrária no Brasil:

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fins deste estudo, analisar as consequências dessa conjuntura político-social no bojo do

iminente Estatuto da Terra a porvir.

Paralelamente aos entraves políticos que permeavam os diálogos entres os

movimentos sociais agrários acerca da reforma agrária, uma gama de discussões passou a ser

posta em outros tantos contextos sociais de diversas categorias e classes, porquanto a temática

da reforma agrária não se reduzia a reivindicações de poucos movimentos sociais agrários,

mas já alcançava um interesse de ordem nacional e, diga-se de passagem, extremamente

preocupante para determinados grupos sociais, especialmente quantos aos interesses

econômicos que estavam em jogo:

Nunca tantas forças se manifestaram convencidas da necessidade e da urgência de uma reforma agrária. O governo, a classe política, a sociedade civil, as associações camponesas e mesmo as classes produtoras, que, em posição defensiva, aceitam já medidas de transformação social no campo. No entanto, a multiplicidade de propostas encobre interesses e compromissos de natureza diversa. [...] transformando o surto reformista em um penoso e difícil impasse6

A questão agrária ganhou mais tonicidade quando João Goulart assumiu a

presidência do país, pois as consequências da crise política inaugurada desde o governo de

Jânio Quadros e transportadas às propostas sociais das Reformas de Base de Jango foram

imprescindíveis para o posicionamento do Brasil frente à polarização político-ideológica

vivenciada após a Segunda Grande Guerra Mundial, sendo, portanto, um dos fatores que

culminou o Golpe de 1964 e todas as consequências daí resultantes, inclusive sobre a estrutura

fundiária brasileira.

Assim, se de um lado os Ministros Militares e os antivanguardistas propunham o

veto ao mandato de João Goulart, doutra banda se observava demais setores sociais

organizados - sindicatos de trabalhadores, estudantes, intelectuais e militantes sociais - que

levantavam a bandeira constitucional em favor de Jango. De conseguinte, embora a solução

encontrada pelo Congresso Nacional ao promulgar a Emenda Constitucional nº 4/61 tenha

amenizado os fervores políticos que envolviam a presidência de João Goulart, certo é que seu

mandato fora abalizado em pilares frágeis, divido político e ideologicamente tanto pelas bases

governistas ora firmadas, como também no bojo das classes sociais brasileiras.

Tal contexto, entretanto, mesmo encampando uma paradoxal conjuntura sociopolítica

no país, foi essencial para a posterior promulgação do Estatuto da Terra, vez que será neste

Programas de Reforma Agrária (1946/2003). São Paulo: Expressão Popular, 2005. p. 73.

6 CAMARGO, A.A. A questão agrária: crise de poder e reformas de base (1930-1964). In: FAUSTO, B. O Brasil republicano: Sociedade e Política (1930-1964). São Paulo. Difel, 1983. p. 201.

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instrumento legal de “dois gumes” a aposta utilizada pelos militares a fim de apaziguar a

euforia dos movimentos sociais de luta pela terra e abafar os brados comunistas que

avançavam pelo país.

Não obstante, impende ressaltar que, embora complexo e contraditório o cenário

sociopolítico brasileiro vivenciado à época, o fato é que o desejo por uma reforma agrária, ou

melhor dizendo, por uma reorganização fundiária7, era, de certa forma, convergente,

divergindo-se, porém, diametralmente quanto aos interesses políticos que cada categoria

social representava e queria para si.

Segundo MOACIR MOREIRA:

A reforma agrária tinha assumido tal força como questão política que, tal como ocorre hoje, ninguém mais ousava se declarar contra a sua realização, embora o significado da expressão fosse, é claro, antagônico em proclamações da Confederação Rural Brasileira e em manifestações de entidades de trabalhadores8.

Ademais, conforme se verá adiante, a vinda do Estatuto da Terra ao ordenamento

jurídico brasileiro durante o regime militar não fora uma contradição em face de suas linhas

ideológicas de desenvolvimento capitalista – como entendem alguns agraristas -, pelo

contrário, fora uma maneira de firmar esse próprio capitalismo, de uma vez por todas, no

espaço agrário e, concomitantemente, amenizar as ameaças comunistas advindas dos

movimentos sociais agrários insurgentes.

3. A necessidade de um estatuto agrário

A pressão inaugurada nos anos anteriores a 1964 pela nova configuração política,

social e econômica que o Brasil passava foi um dos principais fatores que corroboram para a

promulgação do codex agrarista em novembro daquele mesmo ano, haja vista que a

implementação de uma “reforma” agrária não era mais uma simples exigência social, ao seu

revés, mais que uma reestruturação fundiária clamada pelos movimentos sociais, também se

tornou uma necessidade político-econômica fomentadora do projeto desenvolvimentista dos

militares.

7 Refiro apenas a uma reorganização fundiária porque o Brasil não propusera, em seus longos anos de conflitos agrários, uma verdadeira ideia de reforma quantos às suas estruturas fundiárias. De fato, não se desejou uma quebra total com os paradigmas que regiam e ainda regem a organização das terras no país, ao seu revés, o que se buscou e ainda se busca é apenas uma reorganização da distribuição de terras e não uma ruptura abrupta com a forma até então utilizada para a estruturação fundiária do país. Por isso não me afino integralmente em usar o termo “reforma” para o Brasil.

8 PALMEIRA, M. Reforma Agrária e Constituição. Ciência Hoje, 6 (35), nov. 1997. p.p. 68/69.

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Não obstante, há de se considerar que a intenção de criar um estatuto agrário

brasileiro já vinha de longa data, desde os primórdios do período republicano. Certo que se

tratava apenas de uma intenção de se criar e não de uma necessidade como ocorreu no

deslinde da década de 60.

O Estatuto da Terra foi fruto de uma série de tentativas inexitosas a par de consolidar

no ordenamento jurídico pátrio republicano um Código Rural. A maior dificuldade era

evidenciada pela forma pela qual se daria uma reforma agrária no país:

Existiam dois problemas básicos e correlatos, que constituíam o cerne das discussões sobre a política agrária: o primeiro, relacionado com a questão fundamental de saber qual tipo de reforma agrária implementar (tendo em vista a multiplicidade de projetos que iam desde a reforma expropriatória até a capitalista, proposta pelos grupos mais conservadores) isto é, quem beneficiar, e a que nível, em detrimento de que forças sociais e políticas; o segundo, refere-se às fórmulas institucionais para executá-la através de alianças que tornem seus custos sociais politicamente viáveis.9

Portanto, conforme anteriormente apontado, o governo brasileiro também queria um

corpo legal que regulamentasse a questão fundiária do país, entretanto, pesava-se nesse

momento qual o conteúdo (leia-se aqui a base ideológica) disposta nessa lei, isto é, qual ou

quais as diretrizes que conduziriam as normas acerca da reestruturação agrária do Brasil em

um momento histórico no qual o país vivenciava uma complexidade política densificada pela

bipolaridade instaurada no mundo pela da Guerra Fria.

3.1 Os primeiros anos de Estatuto

A promulgação do Estatuto da Terra em 30 de novembro de 1964 representou um

marco para o direito brasileiro, especialmente na seara agrarista, em que inclusive foi

considerado como a insígnia da autonomia legislativa do Direito Agrário frente aos demais

ramos da ciência jurídica. Nas palavras de MARQUES10:

No plano da autonomia legislativa está a cobrança de uma legislação à altura da complexidade das relações jurídicas agrárias, adicionada das particularidades dos países explorados na ordem internacional. Essas relações sempre foram tuteladas insatisfatoriamente por outros ramos do direito, principalmente o Direito Civil, que tem seus referenciais no individualismo e na sacralização da propriedade. A Lei n. 601/1850 (Lei de Terras) veio para cobrir o vácuo legislativo deixado após a

9 CAMARGO, A.A. A questão agrária: crise de poder e reformas de base (1930-1964), op. cit. p. 193.

10 MARQUES, Benedito Ferreira. Direito Agrário Brasileiro. 6. ed. Goiânia: AB, 2005. p. 115

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revogação do regime colonial de sesmarias, em 1822. Não era, porém, uma lei que atendia aos interesses dos camponeses pobres, pelo contrário, favorecia a concentração das terras.Um projeto de Código Rural foi apresentado pelo Prof. Joaquim Luís Osório à Câmara dos Deputados, em 1912, o qual não foi adiante. A Constituição de 1934 trouxe a competência expressa da União para legislar sobre "Direito Rural" (art. 5º, XIX, "c"). Em 1937, dois novos projetos de Código Rural, o de Favorino Mércio, apresentado perante a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, arquivado diante da competência legislativa privativa da União, e o de Borges de Medeiros à Câmara dos Deputados, que se perdeu com o fechamento do Congresso no golpe do Estado Novo de Getúlio Vargas.Apenas em 1964, com a promulgação da Lei n. 4.504, o Estatuto da Terra, que o Direito Agrário veio consolidar sua autonomia legislativa.

Na mesma linha de pensamento, enaltece o eminente agrarista PAULO TORMINN

BORGES11 que:

O Estatuto da terra é a lei agrária fundamental. Em seus 128 artigos ele fixa os rumos básicos do relacionamento entre a terra e o homem, procurando proteger este e aquele. Protege o homem, como sujeito da relação jurídica e destinatário das vantagens objetivadas pela lei. Protege a terra, porque ela é a matriz e a nutriz não só no presente como no futuro. Por isso ela precisa ser tratada com carinho, para que, na afoiteza, não se mate a galinha dos ovos de ouro.

Por certo, é inegável que o Estatuto da Terra revelou no ordenamento jurídico pátrio

inovações jamais existentes até então, ao ponto de criar institutos de ordem sociais mais

democráticos do que aqueles elencados no próprio texto constitucional de 1988, como por

exemplo, nas hipóteses de desapropriação de latifúndios12para fins de reforma agrária. Em

suma, pode-se considerar que o codex agrarista visava implementar duas metas principais e,

diga-se de passagem, inovadoras no campo jurídico agrarista brasileiro: a execução de uma

reforma agrária e o desenvolvimento industrial da agricultura.

Não obstante, por mais que o Estatuto contivesse inúmeros instrumentos capazes de

promover uma real e efetiva política de reforma agrária no país e, de certa forma, trazer

harmonização nas frentes de conflitos agrários que se tornavam cada vez mais preocupantes e

acirravam os ânimos políticos entre militantes de movimentos sociais de luta pela terra e

proprietários de imóveis rurais no país, o que se observou fora a má-utilização ou mesmo o

desvirtuamento de seus dispositivos legais.

11 BORGES, Paulo Torminn. Institutos Básicos do Direito Agrário. São Paulo: Juriscredi. 1974. p. 58.

12 A Constituição da República de 1988, ao dispor sobre a política agrária em seus artigos 185 e 186, dispôs como objetos de desapropriação para fins de reforma agrária apenas aquelas terras tidas por improdutivas e violadoras da função social. Portanto, um latifúndio de grande extensão que seja produtivo – segundo os índices de produtividade elencados pelo INCRA- não poderá jamais ser alvo de reforma agrária. Doutra banda, previa o Estatuto da Terra a possibilidade de desapropriação de latifúndios por extensão, isto é, aquelas glebas de terra que excedessem a dimensão máxima fixada na forma do artigo 46, § 1°, alínea b, do Estatuto.

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Assim, o que se assistiu nos anos posteriores à promulgação do Estatuto da Terra fora

o aumento dos conflitos agrários, o esquecimento por parte dos governantes militares do

pequeno e médio produtor e a instauração de uma política agrária voltada para a formação do

complexo agroindustrial no Brasil e a consequente expansão do processo de expropriação dos

trabalhadores rurais das terras cultiváveis.

A razão que mais sustenta a promulgação tão às pressas do Estatuto logo no primeiro

ano do Golpe de 64, parece, à primeira vista, ser a necessidade de conter o acirramento dos

conflitos sociais e políticos que se travavam desde a década de 50 no espaço agrário

brasileiro. Bem por isso, a criação do Estatuto da Terra e a promessa de uma reforma agrária

fora a estratégia utilizada pelos governantes à época para apaziguar os camponeses e

tranquilizar os grandes proprietários de terra quanto às ameaças de invasões.

De conseguinte, somada à malfadada utilização do Estatuto nos anos seguintes se

observava a dificuldade estrutural-administrativa do governo brasileiro em relação aos

procedimentos para a aplicação e efetivação da política fundiária encampada no referido

codex. O Brasil não possuía um controle administrativo do seu espaço agrário condizente com

realidade, fazendo-se necessário a organização de cadastros, o zoneamento dos espaços

agrários, das terras devolutas, a regulamentação tributária e a operacionalização do órgão

gestor da reforma agrária que fora criado à época, o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária -

IBRA.

Em 10 de novembro de 1966, o então Presidente da República Castello Branco,

realizou um pronunciamento público discursando a respeito do Estatuto da Terra e as

dificuldades encontradas em seu governo a fim de promover uma reforma agrária no país,

que:

[...] em função de uma velha estrutura agrária muito distante de uma desejada e moderna estrutura social, de uma extensão de território em contraste com os recursos inexistentes e de uma mentalidade inadequada em muitas regiões do país.13

De certa forma, o governo de Castello Branco tentou implementar as diretrizes

propostas pelo Estatuto da Terra, utilizando seu tempo de mandato para promover uma

primeira estruturação e organização administrativa do espaço agrário brasileiro por meio dos

registros cadastrais, dos zoneamentos fundiários, da regulamentação tributária e da confecção

do Primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária. Consolidava-se, assim, o início do processo

13 CASTELLO BRANCO. Discursos Presidenciais – 10/11/1966. In: DE SALIS, Carmem Lúcia Gomes. Estatuto da Terra: origem e (des)caminhos da proposta de reforma agrária nos governos militares. Carmem Lúcia de Salis. Assis, 2008. 230f. p. 181.

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de efetivação da política fundiária brasileira, abrindo-se um caminho menos complicado para

que seus sucessores presidenciais pudessem continuar a execução das políticas fundiárias ora

iniciadas.

Entretanto, as práticas de ordem “reformistas” 14 postas em prática por Castello

Branco não eram bem vistas pela base oposicionista, isto é, pela ala política que não via com

bons olhos a consecução de um projeto de reforma agrária no país, haja vista que a vontade

preponderante dos antirreformistas, tais como Costa e Silva e Elio Gaspari era a construção de

um complexo agroindustrial com vistas a promover a ideologia desenvolvimentista tão

fortemente propagada pelos governantes militares que sucederam Castello Branco

Segundo CAMPOS:

As intenções do Estatuto da Terra foram melhores que os resultados. O trio gaúcho de presidentes militares que se sucederam – Costa e Silva, Médici e Geisel – não tinham o mesmo sentido dramático do problema de acesso à terra que tinha Castello, espectador do conflito agrário do agreste nordestino, e consciente do sonho do caboclo de uma nesga de terra perto do açude. Médici era pecuarista, habituado à grande propriedade, e Geisel, medularmente preocupado com os problemas urbanos de industrialização. [...] hoje se reconhece, na literatura econômica, que nossa falha em promover uma adequada reestruturação agrária foi um dos motivos para a má distribuição de renda no Brasil, comparativamente a dois rivais asiáticos – Taiwan e Coréia do Sul. A reforma agrária foi parte do elenco de reformas desses países na década de 60, o que só não melhorou a distribuição de renda como do poder político entre as cidades e campo, impedindo distorções de preços punitivos para a agricultura, para o subvencionamento dos consumidores urbanos15.

Não por menos, a falta de um sucessor que continuasse os projetos realizados nos

primeiros anos de vigência do Estatuto da Terra, somados à vocação de executar um projeto

desenvolvimentista no Brasil que não se voltava para o ingresso dos trabalhadores rurais, dos

médios e pequenos produtores agrícolas no campo das relações econômicas almejadas pelos

militares, fizeram com que a questão agrária brasileira se agravasse ainda mais, com o

aumento dos níveis de concentração fundiária e o acirramento dos conflitos agrários no

decorrer das décadas de 70 e 80.

4. A desconstrução do Estatuto da Terra pelos Governos Militares

A partir do ano de 1966, com a Presidência da República sendo chefiada por Costa e

Silva, é que se tem início o processo desconstrução do Estatuto da Terra. Se outrora fora

14 BRUNO, R. Senhores da Terra, Senhores da Guerra: A nova face política das Elites agroindustriais no Brasil. Rio de Janeiro: Forense Universitária/UFRJ, 1997. p. 109.

15 CAMPO, R. Lanterna na Popa: Memórias. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994. p. 695.

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possível inferir que havia uma tentativa por parte do governo de Castello Branco em

implementar as diretrizes e projetos insculpidos no Estatuto da Terra, o que se verificou nos

anos seguintes fora seu – quase que total – esquecimento16.

As discussões que se travaram na década de 50 e mesmo no bojo do próprio pré-

projeto legislativo do Estatuto da Terra, especialmente quanto à forma de se promover uma

reforma agrária no país, bem como a execução de um programa de redistribuição das terras

ociosas e improdutivas, ou mesmo aquelas cuja extensão demonstrasse ser desnecessária em

face dos índices de produtividade, passaram a figurar às margens do projeto

desenvolvimentista que os militares deram impulsão a partir de 1967. O governo brasileiro

apresentava agora um diagnóstico diverso daquele elencado nos primeiros anos de vigência

do Estatuto da Terra, qual seja, a necessidade de se promover a industrialização do campo.

Com isso, os governantes militares abraçam a consecução de um projeto para a

construção de um complexo agroindustrial no país, ligado a um movimento de expansão das

fronteiras de produção agropecuarista por todo o território brasileiro, especialmente na região

Norte, sob o bioma amazônico. Por outro lado, na medida em que se construía o novo projeto

agrário brasileiro as tendências dos governantes militares desconstruíam a força normativa-

política que o Estatuto da Terra representou em seus primeiros anos de “vida”.

O Estatuto da Terra, portanto, só detinha interesse por parte dos militares conforme

era capaz de cooperar com o projeto de formação de um complexo agroindustrial no Brasil.

Logo, as disposições legais voltadas à organização administrativa do espaço agrário brasileiro,

ao zoneamento das terras e a execução da reforma agrária foram deixadas de lado, cedendo

lugar àquelas disposições normativas que corroborassem para o novo ideário almejado, como

por exemplo, os institutos do crédito rural, do financiamento rural, os contratos agrários de

arrendamento dentre outros.

Doutra banda, se num momento inicial de sua promulgação o codex agrário também

refletiu sua natureza conciliatória de interesses, isto é, acalmava os ânimos das reivindicações

dos movimentos sociais de luta pela terra ao mesmo tempo em que tranquilizava os grandes

proprietários de terras que se viam ameaçados pela atuação desses movimentos, tinha-se, no

meados da década de 60, uma total inversão dessa função “apaziguadora” do Estatuto.

16 Os pronunciamentos públicos dos presidentes que sucederam Castello Branco foram aos poucos suprimindo o próprio uso do termo “Estatuto da Terra” de seus discursos. Segundo DE SALES (op.cit, p. 187), a “supressão do Estatuto da Terra das mensagens governamentais representava a tentativa de transformar a teoria que fazia aos postulados de Castello em projetos práticos, reafirmando, com isso, a divergência existente entre Castello e seus sucessores, no que concerne à necessidade de uma lei que promovesse mudanças na estrutura agrária”.

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José Martins de Sousa, ao analisar a questão agrária durante o período da Ditadura

Militar Brasileira em sua obra “A militarização da questão agrária”, considera que a partir de

1966, especialmente no Governo Médici, que a questão agrária foi tratada como um

“problema menor”, dando-se maior peso aos interesses privados de empresas rurais que se

instalavam pelo país, principalmente na região Amazônica. Para o referido autor, “o governo

descomprometeu a Amazônia Legal como solução prevista, no encaminhamento da proposta

do Estatuto da Terra, para a questão agrária. Pode-se dizer que essas medidas constituíram

uma revogação tácita do Estatuto” 17.

Igualmente, somado ao desinteresse dos militares pós Castello Branco em promover

uma reforma agrária social, observou-se, ainda, a repressão com medidas violentas em face

dos movimentos sociais de luta pela terra. O desvirtuamento do projeto iniciado por Castello

Branco e das promessas legais advindas com a promulgação do Estatuto da Terra em 1964,

fez ressurgir os conflitos agrários ao redor do país. Os militantes de movimentos sociais, quer

em campo com as guerrilhas quer nas reuniões pacíficas que promoviam, foram tratados com

a máxima repressão ditatorial, por vezes resultando em atos desumanos, com uso da tortura

e/ou assassinatos daqueles que se insurgiam.

Com efeito, os anos posteriores à promulgação do Estatuto da Terra, ao revés de

colaborarem para a sua sedimentação no universo jurídico, bem como consolidar as bases dos

institutos nele previstos, serviram, na verdade, para desconstruir aquilo que um dia, mesmo

em uma zona de autoritarismo político, anunciava o prelúdio de uma reestruturação do espaço

agrário brasileiro.

5. Considerações Finais

Sabe-se que a estrutura da ocupação territorial brasileira, desde a época do Brasil

Colônia, fora, em grande parte, responsável pela a atual configuração da concentração de

terras e a formação dos latifúndios no país. Tal situação, no decorrer da história jurídico-

agrária brasileira fizera com que, antes mesmo de existir um direito fundamental à reforma

agrária, consolidou-se um direito à espoliação territorial, à concentração injusta da

propriedade rural e até mesmo a um colonialismo agrário em face das minorias sociais que, de

alguma forma, necessitam da terra para sua subsistência.

17 MARTINS, José de Sousa. A militarização da questão agrária no Brasil: terra e poder, o problema da terra na crise política. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1984. p. 45.

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E nesse contexto, por sua vez, a luta dos camponeses apresenta-se sob a forma dos

Movimentos Sociais Agrários, cujos objetivos não se resumem apenas a tentativas de resolver

a questão agrária do país, mas também se direcionam na discussão da distribuição de poder no

Brasil. Eis, portanto, que surgem movimentos sociais de luta pela terra, tais como as Ligas

Camponesas, na década de 50, e, posteriormente, já nas décadas de 70 e 80, a Comissão

Pastoral da Terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST).

Toda essa contextualização fomentou durante os anos 50 e início dos anos 60 uma

necessidade real de ao menos tentar implementar no Brasil um projeto de reforma agrária e/ou

reestruturação do espaço fundiário. Fazia-se necessário que o país tivesse algum corpo legal

que regulamentasse de forma efetiva e condizente com a realidade agrária brasileira as

relações oriundas do direito a terra: definição do espaço agrário, classificação das terras,

execução da reforma agrária, regulamentação da tributação rural, entre outros.

Somado a isto, observa-se que a necessidade de um corpo legal desta feita também

era fruto de um complexo processo histórico das relações políticas, sociais e econômicas

existentes no Brasil. No início da década de 60, o país vivia um momento peculiar de sua

história, havia a bipolarização global entre capitalistas e socialistas, os movimentos sociais de

luta pela terra se mostravam cada vez mais organizados e mais imponentes, gerando uma

vulnerabilidade por parte dos detentores de terras do Brasil que se viam ameaçados com as

reivindicações dos militantes sociais, além da preocupação infligida à base governista

brasileira da eclosão de uma revolução comunista no país.

Assim, em cerca de oito meses de governo pós-Golpe, os militares promulgaram o

Estatuto da Terra. De fato, os dois gumes desse corpo legal conviveram harmonicamente nos

primeiros anos de Ditadura Militar, isto é, a função “apaziguadora” do Estatuto de acalmar os

ânimos das reivindicações dos movimentos sociais de luta pela terra por um projeto de

reforma agrária ao mesmo tempo em que tranquilizava os proprietários de terras que se viam

ameaçados pela atuação desses movimentos; e a função mediata de suas disposições: regular

de forma efetiva as normas sobre o espaço agrário brasileiro.

Tal contexto, entretanto, não durou por muito tempo. Mesmo trazendo institutos

inovadores e criando a possibilidade de se implementar uma reforma agrária no Brasil, o

Estatuto da Terra não era, em sua integralidade, bem visto aos olhos dos sucessores de

Castello Branco, uma vez que a sua base principiólogica de cunho reformista não vinha de

encontro ao “novo projeto agrário” que os governos militares de Costa e Silva, Médici e

Geisel desejavam: a configuração de um complexo agroindustrial no Brasil.

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De conseguinte, as políticas governamentais pós-66 voltaram-se apenas a interreses

desenvolvimentistas que, no campo, refltiu nos projetos de industrialização do espaço agrário

e na expansão das fronteiras agropecuaristas no norte do país, especialmente sobre o bioma

amazônico.

Portanto, ainda que o Estatuto da Terra contivesse instrumentos hábeis a, no mínimo,

inciar uma reestruturação do espaço agrário brasileiro, tal possibilidade foi expurgada pelos

sucessores do Governo Castello Branco, porquanto não se vinculava ao projeto almejado

pelas políticas desenvolvimentistas, ao menos em parte de suas disposições, haja vista que

institutos jurídicos como os contratos rurais, financiamento rural e a tributação fundiária

foram bem aproveitados pelos militares na consecução de seus projetos.

Dessarte, surge a partir de então a intensificação do processo de expropriação do

trabalhador das terras brasileiras, com o consequente aumento dos conflitos agrários entre as

décadas de 70 a 90, ao passo que um corpo legal que detinha uma nítida capacidade de

mudança social restou por inócuo frente aos interesses que preponderaram no deslinde das

relações histórico-políticas do Brasil, ou seja, promoveu-se a desconstrução da Lei nº 4504/64

– Estatuto da Terra.

6. Referenciais Bibliográficas

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O ABOLICIONISMO BRASILEIRO E A IDENTIDADE CONSTITUCIONAL DOS

NEGROS LIBERTOS NA LITERATURA

THE ABOLITIONISM AND CONSTITUTIONAL IDENTITY OF AFRO-BRAZILIANS

THROUGH LITERATURE

Rafael Henrique Guimarães Teixeira de Freitas1

RESUMO Pelo presente trabalho será feita uma breve análise do abolicionismo e da identidade constitucional dos negros brasileiros no contexto histórico da proibição da escravidão, sob a perspectiva de Joaquim Nabuco. Pretende-se verificar se os negros libertos durante esse período obtiveram algum grau de identidade constitucional e, havendo, em que medida. Visando alcançar o destino pretendido, o artigo será desenvolvido mediante análise de material bibliográfico histórico/sociológico de direito e normas constitucionais. Para tanto, inicialmente será apresentada uma sucinta digressão acerca da escravidão e do abolicionismo no Brasil, com enfoque particular para o relato histórico e científico de Joaquim Nabuco na obra “O Abolicionismo”, escrita por ele no ano de 1883, buscando por a lente da investigação sob a visão de Nabuco. A análise concentrar-se-á na colheita de informações pertinentes da aludida obra para a investigação da situação da identidade constitucional dos negros ao final da escravidão, a partir do ano de 1988. PALAVRAS CHAVE: Abolicionismo. Joaquim Nabuco. Identidade Constitucional. ABSTRACT Through this work it will be made a brief analysis of abolitionism and the constitutional identity of Afro-Brazilians in the historical context of the prohibition of slavery, from the perspective of Joaquim Nabuco It is intended to verify that the Afro-Brazilians freed during this period achieved some constitucional identity and, if it exist, to what extent. In order to reach the intended destination, the article will be developed through analysis of bibliographic material about history, sociology, law and constitutional rights. To reach the intended destination, the article will be developed initially presenting a brief digression about slavery and abolitionism in Brazil, with particular focus to the historical and scientific speech of Joaquim Nabuco in the book “O Abolicionismo”, wrote for him in 1883, searching put de lens of investigation under the vision of Joaquim Nabuco. The analysis will focus on the collection of relevant information from the research work of the aforementioned situation of constitutional identity of Blacks at the end of slavery, from the year 1988. KEY WORDS: Abolitionism; Joaquim Nabuco; Constitutional Identity.

1 Mestrando em Direitos e Garantias Fundamentais, Especialista em Direito Processual Civil e Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV), Professor do Curso de Direito Processual Civil da Faculdade Espírito-Santense de Ciências Jurídicas (PIO XII). Advogado.

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INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por escopo investigar o abolicionismo, a situação dos negros no Brasil

após o fim da escravatura e em que medida a liberdade propiciou a construção de uma

identidade constitucional para os libertos.

Toda a análise proposta levará em consideração a perspectiva de Joaquim Aurélio Barreto

Nabuco de Araújo, escritor, historiador, político, jornalista, jurista e diplomata, formado pela

Faculdade de Direito de Recife, nascido em Recife, PE no ano de 1849 e falecido em

Washington, EUA no ano de 19102, apresentada na obra “O Abolicionismo” de sua autoria,

publicado em 1883.

No livro Nabuco expressou sua posição política e sociológica totalmente contrária à

escravidão. Embora monarquista, defendia ferrenhamente o abolicionismo e desde antes tinha

a clara percepção de que a escravidão era o principal problema social.

Contudo, Joaquim Nabuco, tinha a clara e explícita percepção de que tornar a escravidão uma

prática ilegal não poderia ser meramente uma formalidade, uma ruptura simbólica. Inclusive,

como veremos adiante, para ele o abolicionismo não se resumia a isso.

Dentre as obras de Nabuco, “O abolicionismo”, especialmente, é mais do que uma literatura

comum. Trata-se de um relato histórico e de um prenúncio das cicatrizes que o período

escravocrata haveria de deixar no Brasil, contribuindo para isso a forma como ocorreu a

ruptura.

Embora um preconceito sobre o tema possa levar à equivocada conclusão de que o assunto em

análise estejam saturados, ao decorrer do presente trabalho veremos quão profunda e atual é a

sua contribuição. Não se trata de mera avaliação retórica e conceitual. Joaquim Nabuco

sempre foi um militante de seus ideais.

2 Em: <http://www.joaquimnabuco.org.br/>. Acesso em: 10 de fevereiro de 2013.

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Independentemente da discussão sobre as reais causas que levaram à abolição, ela trouxe

indubitavelmente certa medida de liberdade aos negros. Mas, é indiscutível também, que o

fim da escravidão como ocorrido gerou grandes problemas sociais. O abolicionismo não

apagou os resquícios de humilhação e injustiças dos cativeiros e do tratamento dispensados

por várias gerações aos negros na história do país.

Nesse contexto conflitante, uma questão que merece especial análise refere-se a identidade

constitucional alcançada pela população brasileira negra no pós abolicionismo. Se houve, e

em que medida esse reconhecimento se deu.

Serviram como base para confecção do trabalho: livros, artigos extraídos de revistas jurídicas,

artigo extraído da internet. Para o desenvolvimento do presente ensaio, foram consultadas a

Constituição Política do Império do Brasil de 05 de março de 1824 e a Constituição da

República dos Estados Unidos do Brasil de 24 de fevereiro de 1891.

1 A ESCRAVIDÃO NO BRASIL E O ABOLICIONISMO

Não há como tratarmos do tema que alude ao ano de 1888 sem prefacialmente apresentarmos

uma brevíssima digressão histórica com o intuito de evidenciar a amplitude e complexidade

da questão e situar-nos no tempo e contexto da análise proposta.

É notório que desde o descobrimento do Brasil até a proibição da escravidão os negros foram

tratados como mercadorias, capturados e traficados da África até solo brasileiro, enquanto

colônia portuguesa e Império, para satisfazerem as necessidades de mão de obra crescentes.

Poucos, porém, tem a noção da real dimensão de tal prática e, talvez por isso, não consigam

compreender a magnitude do nefasto legado deixado.

Entre os séculos XVI e XIX, cerca de 10 milhões de escravos africanos foram vendidos para as Américas. O Brasil, maior importador do continente, recebeu quase 40% desse total, algo entre 3,6 milhões e 4 milhões de cativos, segundo as estimativas aceitas pela maioria dos pesquisadores. [...] Os lucros do negócio eram astronômicos. Em 1810, um escravo comprado em Luanda por 70.000 réis, era vendido no Distrito Diamantino, em Minas Gerais, por

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até 240.000 réis, ou três vezes e meia o preço pago por ele na África. (...) Só em impostos, o Estado recolhia cerca de 80.000 libras por ano com o tráfico negreiro. Seria hoje o equivalente a 18 milhões de reais. (GOMES, 2007. p. 242-243)

Dados tão significativos, embora não justifiquem o injustificável, explicam por qual razão a

escravidão perdurou por tanto tempo, especialmente no Brasil. A economia brasileira

dependia do tráfico de escravos praticado desde o início da colonização tanto por da

necessidade da mão de obra eficiente e barata quanto por causa da movimentação financeira

que a própria atividade gerava para aqueles que a praticavam e para o próprio Estado.

A dificuldade de ruptura com e regime escravocrata marcou o Brasil ao longo de sua história.

Mesmo com pressões externas, especialmente da Inglaterra, grande mercado mercantilista em

expansão, o Brasil foi o último Estado ocidental a determinar definitivamente a ilegalidade da

escravidão. Foram vários os sinais e tentativas abolicionistas anteriores a 1888.

Em 1810, D. João firmou com a Inglaterra o compromisso de abolir gradativamente o tráfico

de escravos, mas nenhuma providência foi tomada. Anos mais tarde, em 1815, tendo o Brasil

ainda como colônia, Portugal deu o primeiro e tímido passo acenando para a inevitável

direção abolicionista ao assinar no Congresso de Viena um acordo pelo qual comprometeu-se

a não se envolver em novas negociações que tivessem como objeto a venda, aquisição ou

transporte de escravos. Mas tal acordo não foi cumprido (GOMES, 2010, p. 138).

Vislumbrando uma nova oportunidade que o contexto histórico propiciou, em 1826 a Grã-

Bretanha exigiu novo compromisso pela abolição da escravatura, como condição para conferir

apoio e reconhecimento da independência brasileira.

D. Pedro assinou em 1826 um novo acordo com a Grã-Bretanha, no qual se comprometia a extinguir o tráfico quatro anos mais tarde, em 1830. A decisão só foi oficializada por lei brasileira de 1831, que também declarava livres todos os escravos vindos de fora do império e impunha penas aos traficantes. Como nas ocasiões anteriores, não passou da promessa. Nunca se importaram tantos escravos como após esse acordo. Entre 1830 e 1839 entrariam no Brasil mais de 400.000 negros africanos. O motivo foi o crescimento das lavouras de café. As novas fazendas precisavam de braços — e o tráfico era a solução. A oferta de novos cativos foi tão grande que houve uma queda dos preços, de setenta libras esterlinas por cabeça em 1830 para 35 libras em 1831 (GOMES, 2010, p. 138-139).

As pressões internas dos senhores de engenho falaram mais alto. Como mencionado, toda a

estrutura econômica do Brasil estava escorada sob o pilar da escravidão. Romper com esse

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sistema mostrava-se uma tarefa complicada e espinhosa para os políticos que a essa altura não

queriam se expor e nem indispor com a aristocracia.

Internamente a questão era tratada como econômica, pouco se discutia sobre a

(des)humanidade da questão. Contestando a assinatura do tratado de 1826 o então deputado

Raimundo José da Cunha Matos conseguiu bem reproduzir a opinião da elite escravocrata.

Na opinião do político, tal compromisso revelou-se como um insulto à honra, independência e

dignidade da nação brasileira na medida em que contrariou a lei fundamental do império e

prejudicaria o comércio, a agricultura o conforto dos cidadãos e o próprio Estado. Como se

não bastasse, o deputado encerrou sua participação no debate concluindo que os compradores

de escravos, homens cristãos, estavam contribuindo com os negros, pois em verdade os

livravam “da morte ou de algum destino mais cruel do que a escravidão nas selvas africanas.

Por ‘destino mais cruel’, entendia-se na época canibalismo, idolatria e homossexualidade,

entre outros ‘horrores’.” (GOMES, 2010, p. 139).

E a partir deste dia que começou a ser traçada a história do maior expoente e defensor do

abolicionismo no Brasil. Joaquim Nabuco sequer havia nascido, mas certamente as

consequências desse debate em momento crucial para o país foram determinantes para a sua

formação política e, sobretudo, humanística.

No mesmo dia da aludida manifestação do deputado Raimundo José da Cunha Matos em

favor da escravidão um único parlamentar pôs-se a favor do tratado e abertamente contra a

manutenção da escravidão no Brasil: o paraense D. Romualdo Antônio de Seixas, arcebispo

da Bahia (GOMES, 2010, p. 138-139).

Contrariando os anseios da elite D. Romualdo ganhou a antipatia da aristocracia e não

conseguiu reeleger-se. A resistência que atraiu foi tão devastadora, que atingiu seu

correligionário e protegido político no Pará, o então deputado José Tomás Nabuco de Araújo

a quem restou apenas um desprestigiado cargo de presidente da província da Paraíba. Joaquim

Nabuco, nascido 19 anos mais tarde, era neto de José Tomás Nabuco de Araújo (GOMES,

2010, p. 139).

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Page 314: Justica de transicao vdd memoria e justica

E desde então nada se fez de concreto em favor da abolição. Para fins dos registros mais

relevantes, somente um ano após o nascimento de Joaquim Nabuco a primeira importante

medida contrária à escravidão foi tomada.

Em 1850, ainda sob constante pressão da Inglaterra, o Brasil Império aprovou a Lei Eusébio

de Queiróz que determinou o fim do tráfico de escravos. Com o término do tráfico e

deportação dos traficantes, o pensamento geral era de que o fim da escravidão dar-se-ia

gradativamente, levando-se em consideração a grande mortalidade de negros graças aos

extremos maus-tratos que sofriam. (NABUCO, 1883, p.04)

Seguramente foi uma medida importante e impactante relevando o contexto social e

econômico da época. Por essa razão, considerando a conjuntura, perdurou durante tanto tempo

como uma alternativa paliativa, mas no geral satisfatória. Mas o fato de ter sido extirpado o

tráfico negreiro em si, embora tenha significado um progresso, não determinou o

abolicionismo e, pelo contrário, incentivou os “proprietários” a cuidarem dos escravos para a

“reprodução” da “mercadoria” com o intuito de que futuramente não faltassem ou,

dependendo, que pudessem lucrar com o “comércio” interno da “mercadoria” negra.

Como consequência, ao avesso do esperado, a população negra no Brasil Império não

diminuiu drasticamente nos anos que sucederam à proibição do tráfico.

Mas um novo fato histórico externo trouxe novamente o tema ao debate. Ao fim da guerra do

Paraguai a discussão ganhou novo combustível que a fez inflamar. O fato de os escravos

terem combatido na guerra ao lado dos senhores fez com que a vontade abolicionista ganhasse

novos e importantes adeptos. Um ano após o fim da guerra, em setembro de 1871 foi

aprovada a Lei do Ventre Livre que propiciava aos filhos de escravos nascidos a partir

daquela data liberdade, desde o nascimento em tese, porquanto somente poderia ser

desfrutada após vinte e um anos completos (NABUCO, 1883, p.04).

Nesse cenário Joaquim Nabuco escreveu a obra “O Abolicionismo” traçando um completo

relato histórico sobre a questão da escravidão no Brasil, expondo a lentidão e a fragilidade das

medidas até então adotadas. Acabou por demonstrar como que a o fim da escravidão seria (e

foi) frágil no sentido de conferir identidade constitucional aos negros.

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Page 315: Justica de transicao vdd memoria e justica

Quatro anos mais tarde o fim da escravidão foi determinado pela Princesa Izabel por meio de

uma Lei Imperial.

Assim como previa Nabuco, os reflexos dessa política escravocrata, calculista e formalista

quanto ao “abolicionismo” gerou efeitos deletérios à sociedade brasileira que perduram até

hoje e explicam a dificuldade de propiciar à população negra uma verdadeira igualdade e

plena identidade constitucional.

1.1 O ABOLICIONISMO PARA JOAQUIM NABUCO.

Para alguns as medidas adotadas no sentido de flexibilização da escravidão tais como a Lei

Eusébio de Queiróz e posteriormente a Lei do Ventre Livre foram medidas de conteúdo

abolicionista.

Pelo contrário, todos os movimentos do Estado foram determinantes para a manutenção da

escravidão, inclusive as últimas duas leis aludidas. Para não ter que abolir decididamente a

escravidão, o Estado aos poucos e em medidas minimamente necessárias para não desagradar

a ninguém, sempre sob o direcionamento da aristocracia, sinalizou com tratados não

cumpridos e medidas paliativas que não haveria de proibir a escravidão definitivamente.

Mas há uma questão interessante sob a perspectiva de Joaquim Nabuco que antecede aos

pretensos atos de cunho supostamente abolicionistas praticados pelo Estado ao longo desses

anos: O que, então, configura o abolicionismo? Para alguns abolicionismo é qualquer

movimento que vise a proibição da escravidão, ou mesmo do tráfico de escravos. Não para

Joaquim Nabuco.

Já em 1883, antes mesmo da declaração da proibição da escravidão ocorrida em 1888,

Joaquim Nabuco conseguiu em uma frase simplificar o conceito de escravidão que permanece

atual, serve também para a escravidão do mundo contemporâneo. Com esse conceito começou

a construir a ideia de abolicionismo, palavra tão relacionada a ele ao longo de sua vida.

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Page 316: Justica de transicao vdd memoria e justica

Segundo Nabuco, o abolicionismo é acima de qualquer coisa uma opinião para a qual “todas

as transações de domínio sobre entes humanos são crimes que só diferem no grau de

crueldade” (NABUCO, 1884, p. 04).

A teoria da liberdade pessoal, aceita por todas as nações é a que Bluntschli, o eminente publicista suíço, discípulo de Sauvigny, define nestes quatro parágrafos do seu Direito internacional codificado: 1. ‘Não há propriedade do homem sobre o homem. Todo homem é uma pessoa, isto é, um ente capaz de adquirir e possuir direitos”. – 2. “O direito internacional não reconhece a nenhum Estado e a nenhum particular o direito de ter escravos.” – 3. “Os escravos estrangeiros tornam-se livres de pleno direito desde que pisam o solo de um Estado livre, e o Estado que os recebe é obrigado a respeitar-lhes a liberdade.” – 4. “O comércio de escravos e os mercados de escravos não são tolerados em parte alguma. Os Estados civilizados têm o direito e o dever de apressar a destruição desses abusos onde quer que se encontrem. (NABUCO, 1883, p.42)

Mas Nabuco não se limitou. Fez questão de indicar precisamente o que há de ser o

abolicionismo efetivamente. Novamente, demonstra de forma clara e direta uma compreensão

impar do momento histórico-social de seu tempo e prevê, desde aquela época, o que estaria

por vir nos anos que sucederam a Lei áurea. Nas palavras do autor, o abolicionismo

(...) não reduz a sua missão a promover e conseguir – no mais breve espaço possível – o resgate dos escravos e dos ingênuos. Essa obra – de reparação, vergonha arrependimento, como a queiram chamar – da emancipação dos atuais escravos e seus filhos é apenas a tarefa imediata do abolicionismo. Além dessa, há outra maior, a do futuro: a de apagar todos os efeitos de um regime que, há três séculos, é uma escola de desmoralização e inércia, de servilismo e irresponsabilidade para a casta dos senhores (...) (NABUCO, 1883, p. 04).

O abolicionismo, portanto, não era para Nabuco sinônimo da emancipação, da liberdade

formal dos negros escravos, do fim da legalização da escravidão. A questão é mais profunda e

estava intimamente ligada ao interesse de justiça e humanidade, à determinação da igualdade

material e correção das mazelas que a escravidão haveria de deixar muitos anos após o seu

fim se nenhuma outra medida fosse tomada além da proibição da escravidão. Mas a justiça e

consciência moral não poderiam, e não podem, ser alcançadas sem que haja providência

política. E como a história nos ensinou, a profecia de Nabuco mostrou-se verdadeira.

O processo natural pelo qual a escravidão fossilizou nos seus moldes a exuberante vitalidade do nosso povo durante todo o período de crescimento, e enquanto a nação não tiver consciência de que lhe é indispensável adaptar à liberdade cada um dos aparelhos do seu organismo de que a escravidão se apropriou, a obra irá por diante, mesmo quando não haja mais escravos. (NABUCO, 1883, p. 04).

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Page 317: Justica de transicao vdd memoria e justica

Confirmando a expectativa de Joaquim Nabuco o fim da legalização da escravidão que viria a

ocorrer em maio de 1888 com a “Lei Áurea” não concretizou o abolicionismo que, como

exposto, abrange muito mais do que o fim da legalização da escravidão.

A liberdade relaciona-se diretamente com a responsabilidade coletiva, as ações políticas

podem e devem ser pensadas para a humanidade mesmo que tenha que estabelecer uma

relação de poder.

Os conceitos e as formas de liberdade são objeto de debates incessantes e apreensões

discordantes e inacabadas. A cada período da história o debate ressurge com inéditas visões

ou releituras de compreensões já admitidas.

A liberdade dialoga diretamente com a responsabilidade coletiva. Com base nisso, os atos

políticos devem ser pensados em benefício da humanidade mesmo que tenha que estabelecer

uma relação de poder.

E nessa relação, a Constituição é o meio adequado para expor a vontade geral com garantias e

deveres individuais em favor do todo coletivo. Mas para que isso ocorra, o povo deve ser

sujeito dessa constituição.

E a construção da identidade do sujeito constitucional pressupõe a inclusão do sujeito da

esfera do povo.

Baseado no relato histórico-literário de Joaquim Nabuco, o que pretendemos é constatar se os

negros, na situação em que se encontraram com a criminalização da escravidão no território

brasileiro em 1888 adquiriam em alguma medida uma Identidade Constitucional.

2 A IDENTIDADE CONSTITUCIONAL DOS NEGROS APÓS O FIM DA

ESCRAVIDÃO

2.1 A IDENTIDADE CONSTITUCIONAL E O SUJEITO CONSTITUCIONAL

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Page 318: Justica de transicao vdd memoria e justica

Traçado o contexto histórico e a construção do conceito de abolicionismo edificada por

Joaquim Nabuco, acepção lato senso a qual nos filiamos no presente trabalho, cumpre-nos a

árdua tarefa de delimitar a identidade constitucional para, somente depois, estabelecer a

situação dos negros no período que sucedeu ao fim da escravidão.

Para prosseguir nessa empreitada devemos partir do pressuposto de que a Identidade

Constitucional é algo que não pode ser simplificadamente conceituado. É, e deve sempre ser,

complexa, fragmentada, parcial e incompleta. Por isso tem que ser constantemente

desconstruída e construída novamente, principalmente em constituições escritas que não

conseguem acompanhar o dinamismo do mundo e pelas quais é possível alcançar múltiplas

interpretações plausíveis. Nas palavras de Michel Rosenfeld (2003, p.18) os próprios

constituintes devem ter “(...) a intenção de criar tão-somente o delineamento de uma moldura

capaz de satisfazer as necessidades das gerações futuras”.

No manejo adequado da Constituição enquanto moldura, a identidade do sujeito

constitucional pode ser analisada sob dois diferentes prismas: o daqueles que se sujeitam à

Constituição (súditos) e o daqueles que elaboraram a constituição. (ROSENFELD, 2003,

p.19).

Os negros no período posterior à extinção da escravidão em nenhuma medida participaram da

elaboração da constituição. Nem indiretamente. Para fins do presente estudo, então, temos que

considerar até que certo ponto os negros sujeitavam-se à constituição. Sujeição esta não

apenas relacionada aos deveres, mas sobretudo aos direitos conferidos.

Para uma análise retroativa como essa que nos propomos a realizar a atividade parece

facilitada na medida em que passado (antes de 1988), presente (ano de 1988) e futuro (1988

em diante) são supostamente conhecidos.

Temos que nos esquivar dessa armadilha. O estabelecimento da Identidade Constitucional

depende do entrelaçamento de passado, presente e futuro. Mas passado e futuro são sempre

passíveis de reconstruções, ora conflitantes. E assim, a Identidade Constitucional está

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Page 319: Justica de transicao vdd memoria e justica

propensa a alterar-se com o tempo. (ROSENFELD, 2003, p. 19). Nesse caso específico, o

presente e o futuro dos acontecimentos em foco são parte do passado. Portanto, toda a questão

pode ser revista e reconstruída infinitas vezes.

Adotadas essas cautelas, podemos partir para o cerne da questão. Embora os negros fossem

maioria numérica sempre foram vulneráveis frente às minorias da elite. O reconhecimento dos

negros com o fim da escravatura dependia, e ainda depende, de um exercício ético, pela

escolha do bem do outro, ainda que contrário ao próprio interesse, ainda que contrário ao

interesse ou ao bem daquele que exerce o poder de escolha e direcionamento político.

(KROHLING, 2011, p. 32)

Da perspectiva do constitucionalismo moderno, a ordem política pré-moderna podia evitar, sobretudo, a obsessão com a oposição entre o ‘eu’ e o ‘outro’ à medida que ela era capaz de sustentar uma visão unificada moldada pela religião, a ética e as normas jurídicas que se apoiavam mutuamente e que eram compartilhadas por todos. O constitucionalismo moderno, por outro lado, não pode evitar o contraste entre o eu (self) e o outro como uma consequência do pluralismo que lhe é inerente. (ROSENFELD, 2003, p. 18)

Ao fim da escravidão o reconhecimento dos negros somente poderia ocorrer mediante esse

comprometimento ético e, principalmente, o reconhecimento da responsabilidade de uns para

com os outros e do aglutinamento de todos para a composição do povo brasileiro.

Se não houvesse o pluralismo, não teria razão para existir o constitucionalismo. Se

hipoteticamente existisse uma sociedade plenamente homogênea, com um único objetivo

comum a todos os cidadãos e sem uma compreensão de que o sujeito tem algum direito

autêntico ou interesse diferentes daqueles da comunidade como um todo, o constitucionalismo

seria totalmente desnecessário (ROSENLFED, 2003, p. 21)

“O paradoxo é que, para legitimar o contexto social em que operamos, nós devemos, pelo

menos em parte, abandonar nossas próprias ideias, e isso é o que de fato torna as

interpretações dialéticas únicas em suas contradições” (ROSENFELD, 2004, p. 58).

Respeitadas as diferenças, o multiculturalismo pode ser visto por via do reconhecimento, sob

dois aspectos: na intimidade ou no âmbito social (MOREIRA, 2010.b, p. 18).

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Abraçando o Direito pelo prisma principiológico da Constituição, ampliando a sua aplicação e

abrangência, possibilita-se a reconstrução da identidade do sujeito constitucional amoldando

as ideias constituintes à proteção dos direitos fundamentais (AZEVEDO, COURA, 2010, p.

208).

No período sobre o qual nos referimos, entrementes, não havia substancialmente presente

alteridade e tampouco proteção constitucional conferida aos negros. A questão é antecedente.

Joaquim Nabuco compreendia isso e justificava a defesa pelo abolicionismo por razões

principalmente humanísticas e de moralidade social. Mas apresentou também, para aqueles

que não se comoviam, a necessidade de abolição da escravatura por questões econômicas.

A escravidão era um entrave ao desenvolvimento econômico do Brasil por impossibilitar o

seu incremento na medida em que desonrava o trabalho, impedia a imigração, desonrava o

trabalho e acabava por inibir o desenvolvimento do comércio e da indústria. Além disso,

impedia a formação de um país coeso, com identidade nacional, atrasando-o em relação aos

demais Estados sul-americanos (NABUCO, 1883, p. 48).

A questão a ser encarada adiante, então, antecede a isso. O que é preciso averiguar é se os

negros eram, e em que medida, destinatários da Constituição. Em que medida o fim da

escravidão conferiu a eles identidade. Em outras palavras, cumpre-nos averiguar se os negros

ao fim de 1888 foram inseridos na acepção de povo brasileiro.

O crucial é determinar como, e se, a Identidade Constitucional conseguiu se distanciar o

suficiente da identidade negra, sem desconsiderá-la, incorporando elementos dela, para

começar a forjar sua própria imagem a partir de então, e permanecer viável no seu próprio

ambiente sociopolítico. (ROSENFELD, 2003, p. 53)

2.2 O FIM DA ESCRAVIDÃO EM 1888 E AS CONSTITUIÇÕES DE 1824 E 1891

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Tomando como nossa a visão de Joaquim Nabuco, o fim da escravidão que viria a ocorrer em

maio de 1888 com a “Lei Áurea” não concretizou o abolicionismo que, como exposto,

abrange muito mais do que a extinção da legalização da escravidão.

Pela leitura da Lei Imperial Nº 3.353 de 13 de maio de 1888, popularmente conhecida como

Lei Áurea, percebe-se que a extinção da escravidão no Brasil foi um ato isolado,

desacompanhado de qualquer outra medida abolicionista.

A referida Lei foi compôs-se por apenas dois artigos, adiante transcritos

LEI Nº 3.353, DE 13 DE MAIO DE 1888

Declara extinta a escravidão no Brasil.

A Princesa Imperial Regente, em nome de Sua Majestade o Imperador, o Senhor D. Pedro II, faz saber a todos os súditos do Império que a Assembléia Geral decretou e ela sancionou a lei seguinte: Art. 1°: É declarada extincta desde a data desta lei a escravidão no Brazil. Art. 2°: Revogam-se as disposições em contrário.

Na ocasião, vigorava a “Constituição Política do Império do Brazil”, outorgada em 25 de

março de 1824, pouco tempo depois da Independência do Brasil, como sabido produto de

projeto imposto por Dom Pedro I, apoiado pelo partido português, em detrimento das

tentativas do partido brasileiro de promulgar uma constituição por intermédio de uma

assembleia constituinte nacional.

Na forma do artigo 6º da Constituição de 1824, eram legalmente considerados cidadãos

brasileiros

Art. 6. São Cidadãos Brazileiros: I. Os que no Brazil tiverem nascido, quer sejam ingenuos, ou libertos, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por serviço de sua Nação. II. Os filhos de pai Brazileiro, e Os illegitimos de mãi Brazileira, nascidos em paiz estrangeiro, que vierem estabelecer domicilio no Imperio. III. Os filhos de pai Brazileiro, que estivesse em paiz estrangeiro em sorviço do Imperio, embora elles não venham estabelecer domicilio no Brazil. IV. Todos os nascidos em Portugal, e suas Possessões, que sendo já residentes no Brazil na época, em que se proclamou a Independencia nas Provincias, onde habitavam, adheriram á esta expressa, ou tacitamente pela continuação da sua residencia. V. Os estrangeiros naturalisados, qualquer que seja a sua Religião. A Lei determinará as qualidades precisas, para se obter Carta de naturalisação.

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A rigor, enquanto libertos os negros no pós 1888 poderiam ser admitidos como brasileiros.

Mas será que o eram como parte do povo. O voto, por exemplo, além de censitário era

proibido aos libertos. Não poderiam ser eleitores e muito menos eleitos.

Já em fevereiro de 1891, a primeira Constituição após a proclamação da república, embora

tenha ampliado a possibilidade de voto e não referir-se a “libertos”, ainda deixou à margem

do processo de participação política os mendigos e analfabetos.

De maio de 1888 a fevereiro de 1891 as chances de alfabetização dos escravos libertos após a

extinção da escravidão eram ínfimas. Mesmo que tivesse ocorridoo maciçamente, também é

cediço que os votos eram direcionados e as eleições domadas pelas elites dominantes (“de

cabresto”). Para os negros, portanto, nenhuma chance de participação política seja de voto, de

ser votado ou de qualquer grau de representatividade.

A participação política, certamente estava muito longe do alcance dos negros no pós-extinção

da escravidão. Isso é indiscutível e as próprias Constituições já evidenciam a situação de

isolamento dos agora libertos.

A política é essencialmente desempenhada em ações e relações interpessoais. A liberdade

política só pode ser alcançada coletivamente.

Por outro lado, a identidade constitucional, poder-se-ia, ainda, ser obtida em diferente escala e

maneira pelos negros libertos nesse período pós-extinção da escravidão.

3. A IDENTIDADE CONSTITUCIONAL DOS NEGROS APÓS O FIM DA ESCRAVIDÃO

SOB A PERSPECTIVA DE JOAQUIM NABUCO

A questão da extinção da escravidão não representou uma ruptura definitiva com a ordem

segregacionista vigente. Impossível seria que mais de três séculos de escravidão fossem

apagados com a edição de uma Lei Imperial de dois artigos, nenhuma mobilização política,

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Page 323: Justica de transicao vdd memoria e justica

ato Estatal ou comoção social. Não representou o surgimento imediato de uma identidade

constitucional visível e definitiva aos negros.

Como mencionado anteriormente, a consignação da Identidade Constitucional é dependente

do entrelaçamento de passado, presente e futuro. Os escravos, traficados desde a colonização

até 1850 e mantidos em cativeiro até 1888 carregaram consigo um histórico de total falta de

reconhecimento e ausência de identidade. Até então, os negros eram considerados como

mercadorias. Sequer eram tidos como sujeitos, que dirá como sujeitos constitucionais.

Enquanto escravos, os negros não faziam, expressamente, parte do povo brasileiro. Não eram,

definitivamente, cidadãos. Já nos termos da Constituição de 1891, quer sejam ingênuos, ou

libertos, aqueles que tiverem nascido no Brasil seriam cidadãos brasileiros. Ao menos era o

que estava escrito. O texto não deixa dúvidas de uma tímida evolução pretendida. Mas

também não exprime a realidade.

Para determinação do alcance subjetivo da constituição, cumpre ressaltar que a doutrina da

interpretação, para ser legítima, deve adstringir-se aos princípios fundamentais da ordem

jurídica constitucional instaurada, o que significa que os princípios gerais precisam ser

obedecidos. Todavia, nesse caso a manutenção da exclusão dos negros da delimitação de povo

obedeceu aos critérios delineados pela própria constituição, como vista, interpretada e posta

em prática na época. (VERDU, 1985, p. 115-116).

A liberdade não decorre de uma mera concessão do Estado. Está intrínseca, em verdade, à

conduta humana. Por tal razão o totalitarismo expõe-se, sob a perspectiva de Hannah Arendt

(1989, p. 443), como uma terrível violência, haja vista estabelecer o domínio de uma minoria

sobre uma maioria.

O mesmo ocorre com a escravidão. O domínio é o embrião da violência e aqueles que aceitam

essa situação não exercem a cidadania. A liberdade deve ser obtida.

Na percepção Arendt a identidade humana é confirmada partindo do outro. A sociedade,

coletivamente e exercendo a cidadania, deve tomar para si a liberdade e nunca esperar que ela

seja distribuída pelo Estado, à mercê de quem o governa.

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A diferença decisiva entre as “infinitas improbabilidades” sobre as quais se baseia a realidade de nossa vida terrena e o caráter miraculoso inerente aos eventos que estabelecem a realidade histórica está que, na dimensão humana, conhecemos o autor dos “milagres”, São homens que os realizam – homens que, por terem recebido o dúplice dom da liberdade e da ação, podem estabelecer uma realidade que lhes pertence de direito (ARENDT, 1997, p. 220).3

Já que o reconhecimento é um empreendimento coletivo, a determinação da relação entre

Constituição e povo requer uma análise preliminar: a definição de quem é esse povo. E,

consequentemente, deve-se determinar quem são os destinatários do discurso Constitucional.

(MOREIRA, 2010 p.119)

É difícil sustentar que os negros durante todo o século XVIII e ao menos início do século XIX

tenha sido inseridos na delimitação de povo do discurso Constitucional vigente da

Constituição de 1891.

No patamar alcançado após 1888, os negros bem ilustraram a “exclusão” da composição de

povo.

Trata-se aqui da discriminação parcial de parcelas consideráveis da população, vinculada preponderantemente a determinadas áreas; permite-se a essas parcelas da população a presença física no território nacional, embora elas sejam excluídas tendencial e difusamente dos sistemas prestacionais [Leistungssystemen] econômicos, jurídicos, políticos, médicos e dos sistemas de treinamento e educação, o que significa “marginalização” como subintegração (MÜLLER, 2003, p. 91).

O caso dos negros no Brasil em tela tem uma peculiaridade interessante quanto a esse ponto.

A vinculação dos afrodescendentes preponderantemente a determinadas áreas ocorreu

gradativamente em decorrência da exclusão, não o contrário. Como os negros atendiam

ininterruptamente seus senhores viviam com eles. Após a escravidão foram formando áreas de

ocupação nas periferias.

Como bem constata Nelson Camatta Moreira (2010.a, p. 124), essa situação acarreta uma

reação sequencial de exclusões e, da mesma maneira, a pobreza política. Mais de 120 anos

depois da Lei Áurea e ainda não conseguimos confortar e compatibilizar o abolicionismo na

forma da identidade almejada por Nabuco para os negros.

3 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 4ª ed. São Paulo: editora Perspectiva, 1997. p.220.

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E como se constrói uma identidade pondo os negros nas ruas desamparados, à sorte do relento

esperando a integração nacional, o reconhecimento imediato dos ex-escravos com povo

brasileiro? Por causa dos mesmos óbices o surgimento da identidade também não haveria de

aparecer plenamente como um presente da Princesa Isabel?

A formação dessa parcela da população, com a mera ruptura da escravidão sem nenhuma

outra medida aliada, propiciaria o aumento da parcela da população que embora não fossem

mais escravos, não seriam, também, cidadãos.

Essa fatia do povo vivia em condições precárias, como vassalos. Sofriam com a falta de

emprego e ficavam à mercê do que quisessem pagar os proprietários das poucas terras ainda

produtivas do interior do país. Suas condições de vida eram precárias. “Moravam entre quatro

paredes, separadas no interior por uma divisão em dois ou três cubículos infectos, baixas e

esburacadas, abertas à chuva e ao vento, pouco mais do que curral, menos do que uma

estrebaria”. (NABUCO, 1883, p. 77)

A história contada por Nabuco, conhecida por todos e estudada por pouquíssimos, demonstra

que a realidade dos negros era tão violenta nos séculos que antecederam ao ano de 1888, que

podemos concluir, de fato, que algum grau de Identidade Constitucional foi sim alcançado.

Não uma identidade obtida pelo reconhecimento na intimidade, pelo desprezo tayloriano

(MOREIRA, 2010.b, 18), mas, porque não, no âmbito social brasileiro.

Desde a captura na África até o transporte e a venda, os negros foram lançados a toda sorte de

atos desumanos. Ao chegarem ao Brasil, relata Joaquim Nabuco (1883, p. 64) que um dos

principais problemas foi da forma como se dava a reprodução entre brancos e negros, de

abastardamento destes por aqueles e da falta de formação de uma família, em quase todos os

casos.

O fim da escravidão, nesse aspecto, pôde trazer o fim da promiscuidade das senzalas,

estimulada pelo senhor no interesse da produção do ventre escravo, o fim do abuso da força

do senhor. O filho pôde, ao menos, deixar de nascer debaixo do açoite. Não seria mais

carregado pela mãe em suas costas durante a obrigatória tarefa da enxada. O fim da

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escravidão retiraria esse empecilho à constituição da família e acabaria com o interesse venal

dos senhores de escravos na reprodução humana (NABUCO, 1883, p. 65).

O fim da escravidão, conforme antecipou Joaquim Nabuco (1883, p. 66), poria fim também

ao “tratamento dos escravos como animais”. Durante todos esses séculos de escravidão os

negros foram tratados em muitas situações de forma pior que os animais dos Senhores. Muitas

vezes não eram alimentados e vestidos minimamente e ainda eram com frequência acoitados.

Pôr-se-ia fim, ainda, à apropriação do trabalho escravo pelos Senhores e encerraria a

submissão de uma “raça” aos caprichos da outra. Tornaria possíveis os atos de previdência, de

trabalho voluntário, de responsabilidade própria, dignidade pessoal (NABUCO, 1883, p. 65).

CONCLUSÃO

A história do escravismo no Brasil, da colônia ao império, é conto de terror entalhado no

epitáfio de milhões de negros ou na pele dos tantos outros sobreviventes.

Joaquim Nabuco, grande expoente de sua época, conseguiu transmitir em sua obra “O

Abolicionismo” parte dessa história, que acompanhou ativamente durante toda a sua vida, na

luta pelo abolicionismo.

Abolicionismo que fez questão de frisar significa muito mais do que o fim da legalização da

escravidão. Representa a luta pela correção das mazelas causadas aos negros durante séculos,

pela prevalência da humanidade, da alteridade, e a busca pela igualdade material.

“O Abolicionista” não se resume a relatar a história, embora o faça muito bem

realisticamente. É um tratado sobre as mazelas da escravidão, em todos os sentidos, uma obra

primorosa e atual ainda hoje, que dirá no ano de 1883.

Assim, os elementos do livro foram significativamente relevantes e indispensáveis para uma

adequada compreensão do fim da escravidão pela Lei Aurea, tal como realmente ocorreu.

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Page 327: Justica de transicao vdd memoria e justica

A medida decretada no ano de 1888 foi isolada e apenas sacramentou o inevitável. O Brasil,

último pais do ocidente a extirpar a escravidão autorizada pelo Estado só o fez por pressões

externas e, principalmente, pela derrocada crescente da aristocracia feudal que perdeu muita

influencia a partir da crise.

A formalização jurídica do fim da escravidão não foi de fato um processo abolicionista. Em

verdade, o Brasil demorou a ceder às pressões externas da Inglaterra e resistiu enquanto pode.

O regime escravocrata chegou ao fim por uma série de fatores, e nenhum deles compreendia o

humanismo ou a alteridade.

Mas a situação dos negros escravos era tão absurdamente degradante que a proibição da

escravidão no Brasil como medida isolada gerou em certa medida e grau uma Identidade

Constitucional aos negros que deixariam dali por diante de ser tratados ora como mercadoria

ora como animais.

Mas os reflexos dessa política escravocrata durante séculos, ávida por dinheiro e importante

para manutenção das necessidades e desnecessidades da aristocracia gerou efeitos nefastos à

sociedade brasileira que perduram.

A segregação e a desigualdade passam a ter uma nova dimensão. Com a Lei Áurea o escravo

passa a ser o negro. O preconceito e a diferenciação assumem como marca a etnia. A

sociedade permanece díspar economicamente e socialmente e intolerante em relação à

diferença de cor.

Com o fim da escravidão legalizada, como dito alhures, o negro ganhou uma pequeníssima

medida de Identidade Constitucional. Foi depositado em uma situação na qual o

reconhecimento mísero os manteve durante muitos outros anos distantes, sob controle, sem

ameaçarem o patrimônio ou intervirem na política, ambos desde sempre em poder da

aristocracia branca.

REFERÊNCIAS

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DIREITOS HUMANOS NO ESTADO DE MATO GROSSO E O TRABALHO DA

ORGANIZAÇÃO NÃO GOVERNAMENTAL CENTRO DE DIREITOS HUMANOS

HENRIQUE TRINDADE (CDHHT): UM ESTUDO DE CASO

HUMAN RIGHTS IN THE STATE OF WHOLESALE AND KILL NON-GOVERNMENTAL

ORGANIZATION OF WORK CENTRE FOR HUMAN RIGHTS HENRIQUE TRINITY

(CDHHT): A CASE STUDY

Edna Soares da Silva1 Resumo O presente trabalho é um estudo de caso da Organização Não Governamental denominada Centro de Direitos Humanos Henrique Trindade (CDHHT) criada a partir das articulações do Movimento Popular em Cuiabá/MT nos anos oitenta, como instrumento mobilizador de luta contra a violação sistemática dos direitos humanos no Estado de Mato Grosso. Descreve-se o processo de articulação e mobilização que redundou na sua criação, retrata casos emblemáticos de violação aos direitos humanos acompanhados pela entidade e investiga as percepções dos militantes políticos que se articularam na criação do CDHHT nos anos oitenta, bem como daqueles que atuaram na entidade na década de noventa, buscando fazer um contraponto entre as duas décadas. Desse modo, objetiva-se reconstruir a história do CDHHT identificando as motivações singulares, os conflitos e os elementos de consenso que possibilitaram criação e a formação da sua identidade caracterizando os processos educativos implementados pelo CDHHT na sua atuação. Para tanto, utiliza-se como metodologia a abordagem qualitativa para compreender essas várias facetas do fenômeno e discute-se no campo teórico a categoria direitos humanos enquanto construção histórica e a educação popular em face das práticas dos movimentos sociais como instrumento para a educação para os direitos humanos. Palavras-Chaves: Direitos Humanos; Movimentos Sociais e Educação Popular.

Abstract

This paper is a case study of the Non-governmental Organization named Centro de Direitos Humanos Henrique Trindade (CDHHT) (Henrique Trindade Human Rights Center), created out of the articulations of the Popular Movement in Cuiabá/MT during the eighties as a moralizing instrument for the fight against systematic human rights violation in the State of Mato Grosso. On purposes of such study, this paper describes the process of articulation and mobilization that resulted in its creation, pictures the emblematic cases of human rights violations followed-up by the entity and investigates the perceptions of the political militants that have articulated themselves to create the CDHHT during the eighties, in comparison with the ones that have acted 1 Mestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso – Linha de Pesquisa Movimentos Sociais e Educação. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Professora do Curso de Bacharelado em Direito da Faculdade Católica Rainha da Paz (FCARP), Membro do Núcleo de Pesquisa e Estudos em Direito (NUPEDI) – Araputanga/MT.

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within the entity during the nineties, aiming to establish a counterpoint between the two decades. In this manner, the paper endeavors to reconstruct the CDHHT’s history, identifying the singular motivations, the conflicts and the consensual elements that allowed for the creation and formation of its identity, characterizing the educational processes implemented by CDHHT during its actuation. Therefore, the methodology employed consists of a qualitative approach aimed to understand the various facets of this phenomenon and discusses, within the theoretical field, the human rights category as a historical construct and the popular education in face of the practices of social movements as an instrument for the education in human rights. WayWords: Human Rights, Social Movements and Popular Education.

Introdução

Essa pesquisa resulta da Dissertação de Mestrado defendida em 2005 na Universidade

Federal de Grosso, Programa de Pós Graduação de Educação e Movimentos Sociais. A

motivação inicial deu-se em razão opções pessoais da pesquisadora como militante no campo dos

direitos humanos num período relativo há dois anos. O Centro de Direitos Humanos Henrique

Trindade é constituído como objeto desta pesquisa na qual a pesquisadora em questão é desafiada

a destruir e construir suas representações, bem como descobrir algumas opções e balizas teórico-

metodológicas, significativas, como educadora e militante popular, através das quais pudesse

iluminar sua intervenção e contribuição com os movimentos sociais.

A abordagem da presente pesquisa, enquanto estudo de caso, é a abordagem qualitativa na

qual a investigação se dá a partir do contato direto com o ambiente constitutivo do Centro de

Direitos Humanos Henrique Trindade: pessoas, situações, documentos, procurando evidenciar o

maior número possível de elementos configuradores do objeto em questão. Isto porque o “o

estudo de caso é o estudo de um caso” (LÜDKE; ANDRÉ, 1986, p. 17). Ele é representativo de

uma singularidade, no sentido de que este possui um interesse próprio, um valor em si mesmo.

Destaca-se por se constituir numa unidade dentro de um sistema mais amplo (LÜDKE; ANDRÉ,

1986, p. 17) no qual uma de suas características é a necessidade de “interpretação em contexto”

(LÜDKE; ANDRÉ, 1986, p. 18), ou seja, o objeto da pesquisa é situado; parte-se da realidade na

qual ele se insere.

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1 Constituição do Centro de Direitos Humanos Henrique Trindade

O Estado de Mato Grosso na década de oitenta sofre o impacto negativo do modelo de

desenvolvimento adotado pelo Governo Militar: grandes tensões no campo e na cidade

(concentração de terra) e a ação ilegal e violenta dos agentes estatais que redunda em práticas

cotidianas de violação dos direitos humanos. Pedro Casaldáliga descreve essa realidade:

Nesta(s) região(ões) retirada(s) do Brasil, os latifundiários faziam e desfaziam a bel prazer, sem precisar dar explicações a ninguém, já que tampouco ninguém os cobrava. Aqui quem tinha dinheiro comprava o silêncio, e os latifundiários, apoiados pela ditadura militar, tinham terra, dinheiro e pouca vontade de dar explicações sobre a origem de sua riqueza (ESCRIBANO, 2000, p. 24).

Nesse cenário, a Igreja do Rosário e São Benedito, uma das paróquias da Arquidiocese de

Cuiabá, que teve entre suas finalidades e projetos nos fins dos anos 70 e início dos anos 80 a

promoção e o apoio aos Movimentos Populares, catalisa diferentes forças sociais e busca se

contrapor à referida realidade. A Paróquia orienta-se à época pela chamada Teologia da

Libertação, teologia com feições latino-americanas que tem como chave de compreensão da

história e presentificação das relações das pessoas com Deus a figura do oprimido.

É constituída então uma frente em favor dos direitos humanos em MT que, em 1983 no

período de 19 a 26 de junho, realiza a I Semana de Direitos Humanos com o tema Direitos

Humanos: Direitos dos Oprimidos com o nome de Comitê Provisório de Defesa e Promoção de

Direitos Humanos. Inicia-se, assim, a trajetória do Centro de Direitos Humanos Henrique

Trindade (CDHHT) ao modo dos Movimentos Sociais, estabelecido enquanto uma “[...] rede de

interações informais entre uma pluralidade de indivíduos, grupos e/ou organizações, engajados

num conflito político ou cultural, como base numa identidade coletiva” (SCHERER-WARREN,

1999, p. 26).

A organização que a princípio é informal, com vistas a ter legitimidade no espaço público

na defesa dos direitos humanos, acaba por se definir, enquanto formato jurídico, como entidade

civil, de direito privado, sem fins lucrativos ou partidários, econômico, com sede em Cuiabá-MT.

Esta definição a inscreve no âmbito das Organizações não Governamentais (ONGs) entendidas

como: Organizações formais, privadas, porém com fins públicos e sem fins lucrativos, autogovernadas e com participação de parte de seus membros como voluntários,

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objetivando realizar mediações de caráter educacional, político, assessoria técnica [...] e desencadear transformações sociais ao nível micro (do cotidiano e/ou local) ou ao nível macro (sistêmico e/ou global) (SCHERER-WARREN, 1999, p. 55).

O CDHHT terá como representatividade da luta pelos direitos humanos a emblemática

figura de Henrique Trindade. Trata-se de um caso de violência e tortura impetrado por

fazendeiros e agentes estatais (policiais e delegado). Henrique Trindade simbolizaria a missão do

CDHHT: a denúncia da violência institucionalizada, aquela praticada por agentes do aparelho

estatal.

Conforme arquivos do CDHHT (Cuiabá, 1982) Henrique Trindade foi assassinado e só

encontrado dias depois com um olho arrancado, outro furado a bala e a parte do lábio inferior

arrancada, na localidade conhecida como Capão Verde, no município de Alto Paraguai, ao tentar

reagir à invasão de sua casa pela polícia civil e por jagunços da Fazenda Coreana.

Capão Verde, segundo arquivos do CDHHT (Cuiabá, 1982) era uma área de

aproximadamente quatro mil hectares onde viviam cerca de cento e setenta famílias, a setenta

quilômetros de Alto Paraguai-MT. Odomila Paimel Franco, esposa de Henrique Trindade, contou

que em 1979, três anos depois da chegada à região, começaram a ter problemas com a Fazenda

Coreana, pertencente a um senhor conhecido como “Português” que alegava ser o dono da terra.

Henrique Trindade disse que só sairia se o referido fazendeiro apresentasse a escritura da

fazenda.

O caso nunca foi apurado judicialmente, sequer identificado os culpados, apesar de eles

serem conhecidos e continuarem vivendo tranquilamente na região. Segundo um dos militantes

fundadores do CDHHT, “todo mundo” sabe quem são os assassinos de Henrique Trindade.

2 Violações de Direitos Humanos acompanhadas pelo Centro de Direitos Humanos

Henrique Trindade

O CDHHT acompanhou inúmeros casos de violência ocorridos no Estado. Neste trabalho

foram selecionados alguns, representativos dos diferentes lugares e sujeitos vitimados pela

violência no Estado: espaço urbano e rural, menores, negros, posseiros, reservas indígenas.

O primeiro é o Caso Toalha Azul que ocorreu entre outubro e dezembro de 1984, em

Cuiabá, quando sete pessoas foram assassinadas (seis homens e uma mulher) por policiais com

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um tiro na nuca, e todos, com exceção da mulher, foram encontrados com o rosto amarrado com

uma tira de toalha azul, conforme arquivos do CDHHT (Cuiabá, 1982).

No desenrolar do caso, soube-se que dezenas de pessoas foram eliminadas por policiais e

os corpos jogados no “Portão do Inferno” na região de Chapada dos Guimarães-MT. Além de

policiais, ficou também caracterizado o envolvimento de políticos da região. Ademais, membros

da OAB atuaram como defensores de policiais que foram julgados, e o juiz que atuava no caso,

para não sentenciar, pediu remoção para outra Vara Criminal, segundo arquivos do CDHHT

(Cuiabá, 1982).

O segundo é o Caso Vicente Cañas. Trata-se da figura do espanhol, missionário jesuíta e

indigenista Vicente Cañas que vivia com a nação indígena Enawenê-Nawê há doze anos na

região de Juína, norte de Mato Grosso. A nação indígena se encontrava num processo de

demarcação de suas terras – a Reserva Salumã. Cañas foi encontrado morto por integrantes do

CIMI no dia 17 de maio de 1987 perto de seu barraco, às margens do Rio Juruena. Segundo um

indigenista “[...] era um elemento que dificultava a exploração dos índios, ajudava a impedir a

invasão das terras Salumã [...], denunciava o roubo da madeira [...]” (GOMES, 1987).

O terceiro é o Caso Matupá ocorrido na cidade de Matupá a 700 quilômetros de Cuiabá-

MT. No dia 23 de novembro de 1990 três assaltantes são queimados vivos por populares depois

de serem torturados por policiais. O caso conta, ao que tudo indica, com a anuência das

autoridades locais (prefeito, vereadores e delegado). O episódio é gravado por um cinegrafista

amador. Eis um trecho da gravação reproduzido pelo Jornal O Estado de São Paulo, encontrado

nos Arquivos do CDHHT (Cuiabá, 1991):

Os assaltantes estão mais ensangüentados, feridos a bala, um deles com um buraco na cabeça. Alguém joga gasolina em um deles e ateia fogo. O assaltante se debate, mais gasolina é despejada, os outros dois ficam em chamas. – Quem tem um revólver aí? Ele já sofreu o suficiente – diz alguém. – Não, deixa morrer devagarzinho – responde o outro (Arquivos do CDHHT 1991).

Outro é o Caso Mata Cavalo. Trata-se dos remanescentes do Quilombo Sesmaria Boa

Vista, comunidade conhecida como Mata Cavalo formada há mais de 200 anos por escravos

alforriados e fugitivos. É uma área de 13.627 hectares de terras no município de Nossa Senhora

do Livramento-MT onde cerca de 300 pessoas mantêm resquícios da organização dos Quilombos

de acordo com os Arquivos do CDHHT (Cuiabá, 1996). O caso chega ao CDHHT em maio de

1996, por meio de três pessoas da localidade buscando fazer uma denúncia acerca da invasão das

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suas terras por fazendeiros (Militantes). No CDHHT descobre-se que há um longo processo de

expulsão dos remanescentes que vai desde a ação de despejos impetrados pela Justiça à expulsão

das terras sobre a mira de armas de fogo (Arquivos do CDHHT, 1996).

O último caso retratado é o Caso Tijucal que se desenrola no Bairro Tijucal, cujos alvos

são os adolescentes daquela região da Capital no ano de 1997. O Caso contabiliza os seguintes

dados: um adolescente morto, três sequestrados e seis testemunhas assassinadas. Em 1999, dos

três suspeitos do Caso, dois se encontravam desaparecidos ou vivendo em liberdade, e apenas o

policial João da Silva Mendes tinha sido condenado (Arquivos do CDHHT, 1999).

O CDHHT acompanhou esses casos e tantos outros desenvolvendo e articulando várias

ações, entre elas: audiências periódicas com representantes de Órgãos Governamentais de MT;

articulação junto ao Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) com diferentes

entidades pressionando os órgãos governamentais, bem como contatos com a Comissão de

Direitos Humanos da Câmara Federal, espaço de acolhida e organização dos familiares vítimas

de violência; realizando Encontros Populares de Monitoria Jurídica; denunciando os casos e os

colocando em permanente publicidade e visibilidade por intermédio da imprensa televisionada e

escrita.

Só para citar, o Caso Matupá ganhou visibilidade pública em nível nacional somente em

decorrência da ação do CDHHT, na pessoa do jesuíta, Padre José Tem Cate, que encaminhou

uma cópia da fita ao escritório do Movimento Nacional de Direitos Humanos, em Brasília, em

fevereiro de 1991(Arquivos do CDHHT, 1991). A cópia da fita com as imagens do Caso correu

pelo Brasil e pelo mundo, inclusive foi vista pelo então Presidente da República, Fernando Collor

de Mello, que ficou chocado ao ver as imagens e contatou diretamente o Ministro da Justiça,

Jarbas Passarinho, pedindo medidas urgentes para localizar os culpados (Arquivos do CDHHT,

1999).

A realidade demonstra o vácuo institucional. O Estado de Direito comprometido, pois

direitos e garantias aos direitos elementares da pessoa não são considerados como tais. Implica

então desmentir a tradicional imagem do brasileiro como “homem cordial” que encanta pela

doçura de sentimentos, pela afabilidade no trato e pela generosidade com que recebe os visitantes

estrangeiros, segundo textos da história ufanista (BENEVIDES, 1995a, p. 1).

Morgado (2001, p. 12) vislumbra essa realidade como um mal-estar na cultura brasileira:

o costume de transgredir a lei permeando as relações intersubjetivas travadas na cultura

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brasileira. Esse processo resultaria da identificação social com os modelos abusivos de

autoridade, nomeadamente aquele veiculado nas ditaduras no País e que constituíram as forças de

reserva do Exército, como as polícias militares estaduais (1976) para auxiliarem-no na repressão

à guerrilha e aos movimentos de oposição política (MORGADO, 2001, p. 31).

Nesse modelo, a força bruta e letal, abusivamente investida de autoridade estatal, fragiliza

e/ou descumpre o Contrato Social, destitui os despossuídos do direito a ter direitos (ARENDT

apud BENEVIDES, 2005b, p. 7) e revela insensibilidade com o sofrimento da vida. Um banquete

macabro, corroborado pela insensibilidade com o sofrimento da vítima (PASSOS; SATO, 2002).

Essa realidade leva a pensar no extremo a que chegou a humanidade em termos de

violações e desrespeito à dignidade humana, nas Guerras Mundiais do século XX. Auschwitz, por

exemplo, pelo seu conteúdo de desumanidade. Ilustrativo o pensamento de Adorno de que

Auschwitz2 é a própria recaída do ser humano no sentido de que a monstruosidade pode perdurar,

pode voltar a ser cometida. É o que impele os homens até o indescritível que, em Auschwitz,

culminou em escala histórica (ADORNO, 2003, p. 119).

O que fazer para combater essa realidade? Segundo Adorno, a única força capaz de

combater o princípio de Auschwistz seria a autonomia ou a força para a autodeterminação, para a

não participação. Pode-se dizer que as entidades de diretos humanos são representativas dessa

autonomia; carregam a força da não participação, pois não compactuam com o modelo abusivo

de autoridade e reivindicam, mesmo ante a debilidade da sociedade civil, o respeito às leis, o

respeito ao Contrato Social.

O CDHHT, como entidade de defesa dos direitos humanos pode-se dizer, constitui uma

das forças autônomas no Estado de Mato Grosso de não adesão ao modelo arbitrário institucional.

Desse modo, tanto nos casos descritos como em tantos outros, mediante a atuação de seus

militantes, atua na denúncia e no enfrentamento às distorções institucionais, exigindo o

reconhecimento dos direitos dos povos indígenas da região, menores, posseiros, remanescentes.

É imperativo, diante do modelo estatal arbitrário brasileiro, portanto, o reconhecimento do

campo dos direitos a cada indivíduo: o direito a ter direitos (BENEVIDES, 1995b, p. 7) que se

2 Auschwitz foi o maior campo de concentração de prisioneiros montado pelos nazistas. Construído em 27 de março de 1940 ao sul da Polônia a poucos quilômetros da fronteira com a Eslováquia. As estimativas divulgadas são de que 1,1 a 1,5 milhões de pessoas morreram em Auschwitz, 90% delas judeus. (AUSCHWITZ, 2005).

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inscreve em termos de direitos humanos a partir do pressuposto da tolerância e do

reconhecimento da dignidade humana.

Qual é o antídoto? Quais as estratégias que permitirão o reconhecimento da dignidade de

todos e de todas no território brasileiro, o exercício da tolerância aqui, no Estado de Mato

Grosso, especificamente? Para Adorno, o remédio é a educação, pois toda educação se opõe à

barbárie. Uma educação enquanto autorreflexão crítica que possibilite a criação de um clima

espiritual, cultural e social que não dê margem à repetição da barbárie, tornando conscientes os

motivos que levam ao horror, pois as forças contra as quais se devem lutar estão inscritas na

marcha da história, e o potencial autoritário continua bem mais forte do que se supõe (ADORNO,

2003, p. 123).

3 A Percepção dos Atores do Centro de Direitos Humanos Henrique Trindade: Anos

Oitenta e Noventa

Ademais, o trabalho retrata as percepções dos atores3 que compuseram o CDHHT na sua

trajetória, primeiramente na sua criação nos anos oitenta e na década seguinte, os anos noventa.

Procura, desta forma, manter a memória destas presenças no CDHHT, identificar as motivações

singulares, os conflitos e os elementos de consenso presentes na entidade, pois

[...] ancorar as pessoas, referi-las e circunscrevê-las nos lugares sociais delas, nos seus lugares, em suas raízes e nas suas temporalidades é reconhecê-las situadas e admirar não apenas o lugar sociocultural que ocupam, mas também a singularidade de suas presenças nestes lugares (PASSOS; SATO, 2002, p. 2).

Esses atores experimentam um estranhamento ou uma indignação diante da percepção de

como eram (e são) tratadas as questões relativas aos direitos humanos, sobretudo na década de 80

no Estado de Mato Grosso quando da formação do CDHHT. As violações ocorriam, sobretudo,

enquanto violência física: espancamento, tortura e morte se apresentando de forma muito visível

no campo e na cidade. De modo que, segundo um dos militantes “[...] uma certa indignação assim

contra as injustiças. Crimes – por exemplo – Matupá, mexeu muito. E não se falava de outra

3 Utiliza-se neste trabalho os termos sujeito social e ator como sinônimos para nomear os militantes que atuaram na entidade nas décadas de oitenta e noventa.

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coisa se não era de Matupá. E nem dormir de noite a gente dormia. Foi um trauma na vida da

gente assim”.

Desta forma, os atores dos anos oitenta destacam a insegurança do grupo diante do

aparelho repressor do Estado ainda sob os auspícios da Ditadura Militar; a presença de agente da

Segurança infiltrado no CDHHT; o medo e o desconhecimento dos direitos e garantias da pessoa

por parte daqueles que eram vítimas da violência; a força das igrejas (Paróquia do Rosário e a

Comunidade Luterana de Cuiabá) que ofereciam respaldo ao trabalho de denúncias da entidade,

bem como os conflitos suscitados por estas questões, entre outras.

Nos anos noventa, as questões levantadas retratam outra realidade vivida na entidade. Por

exemplo, a entidade nesta década está bem-estruturada, com projeto financeiro internacional,

sede própria, uma equipe atuando em tempo integral, não mais voluntária. Os atores nessa década

apontam as seguintes questões: acham que o CDHHT “atirava pra todos os lados” necessitando

trabalhar com ações específicas; personalismo (o CDHHT é visto a partir de uma pessoa); a

dependência de projetos financeiros para funcionar; fazendo o papel do Estado; saudosismo dos

anos oitenta (denúncia pela denúncia); boicotes: há quem se sinta dispensado depois de anos de

dedicação ao CDHHT. Como grande destaque, o desenvolvimento Projeto Educar em Direitos

Humanos e Cidadania realizado em duas Escolas Estaduais em Cuiabá, com duração de três

anos.

Percebe-se que o processo interno da entidade é por vezes contraditório e conflituoso.

Mas, nas duas décadas, os atores vivem as problemáticas que constituem o repertório do CDHHT

com expressividade e não como meros coadjuvantes, sendo interlocutores com poder de

influência e decisão (GOHN, 1997, p. 258).

No entanto esse processo possibilita a construção da identidade do CDHHT e o projeta no

espaço público mediante a criação de um imaginário social de unicidade, uma totalidade (GOHN,

1997, p. 253). A identidade do CDHHT é construída então na somatória das suas práticas, das

articulações, descenso e consenso que o representa como uma frente de unidade (GOHN, 1997, p.

262).

Todo grupo ou movimento social lembra Gohn (1997, p. 253), tem uma base referencial

comum. No caso do CDHHT, é aquela costurada pelo desejo de seus atores de mudança do

quadro político e institucional do Estado de Mato Grosso com relação aos direitos humanos. Essa

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337

Page 338: Justica de transicao vdd memoria e justica

base se dá a partir dos elementos de consenso – aglutinadores de forças – da violência

institucional e da educação popular.

A Educação Popular vai constituir o elemento qualificador da trajetória do CDHHT. A

preocupação principal da entidade é no sentido de promover uma educação em direitos humanos

e assim contribuir para a formação da cultura de respeitabilidade dos direitos fundamentais e da

tolerância no Estado de Mato Grosso. Isso porque a educação tem um papel fundamental na “[...]

formação de uma cultura de respeito à dignidade humana através da promoção e da vivência dos

valores da liberdade, da justiça, da igualdade, da solidariedade, da cooperação, da tolerância e da

paz [...] (BENEVIDES, 1995c, p. 1)”.

O próprio espaço do CDHHT se constitui, na percepção dos atores da entidade, em uma

sala de aula de valor inestimável, na qual se educa e se é educado. Um espaço em que se aprende

com a vida, com as relações, com a convivência, com o outro: saber conviver com o diferente,

com o diverso, com as contradições, ter que enfrentar, posicionar-se e defender posturas. Na

percepção do militante: [...] pra mim pessoalmente, eu cresci muito nessa caminhada, porque

você bota a cara no mundo, você entra num outro cenário que não é dentro da Igreja. De certa

forma te encoraja e te tira essa ingenuidade igrejal que a gente tem [...]”.

4 A Categoria Direitos Humanos: Tolerância e Reconhecimento da Dignidade Humana

Direitos Humanos é a categoria sobre a qual se assenta o universo constitutivo do

CDHHT. É uma categoria pertencente ao universo liberal, mas que se inscreve nas práticas dos

Movimentos Sociais, pois as diferentes reivindicações dos Movimentos são sempre portadoras de

direitos humanos. Caracterizam-se por ser não algo dado, mas constructos, por emergirem

gradualmente das lutas que o ser humano trava por sua própria emancipação e das transformações

das condições de vida que essas lutas produzem (BOBBIO, 1992, p. 32).

É um dos caminhos do reconhecimento da dignidade humana e da tolerância. Tolerância

compreendida enquanto a virtude de uma sociedade pluralista e democrática, na qual se impõe

não somente a aceitação de valores e interesses divergentes numa dada sociedade, mas,

sobretudo, a exigência e o respeito à diversidade dos grupos sociais. Afirma, assim, a necessidade

de cada grupo ter efetivamente garantidos os direitos estabelecidos na constituição e nas leis

(BARRETO, 1997, p. 7). Quanto à dignidade humana, da origem da palavra é possível extrair a

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Page 339: Justica de transicao vdd memoria e justica

ideia essencial. Dignus, em latim, adjetivo ligado ao verbo defectivo decet (é conveniente, é

apropriado) e ao substantivo decor (decência, decoro). Dignidade significa dar à pessoa humana

um tratamento apropriado, adequado, decente. É o atributo essencial do ser humano,

independentemente das qualificações específicas de sexo, raça, religião, nacionalidade, posição

social ou qualquer outra.

4.1 A Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Constituição Cidadã

A Declaração Universal dos Direitos Humanos é um marco de proporções inigualáveis na

afirmação dos Direitos Humanos, considerando que pela primeira vez na história a comunidade

humana busca construir um consenso para formular um código universal de valores. Um código

de tolerância e, sobretudo, do reconhecimento da dignidade humana como valor fundante,

inserto já no primeiro parágrafo do preâmbulo da Declaração:

Considerando que o reconhecimento da dignidade humana inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo (COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS, 1998, p. 2).

Trata-se de uma resposta afirmativa em escala mundial ao desastre da Segunda Guerra

Mundial e à experiência totalitária contra os horrores do nazismo e do stalinismo. Adotada em 10

de dezembro de 1948, com a aprovação unânime de 48 Estados, tendo apenas 8 abstenções, a

Declaração tem o significado de um código e plataforma comum de ação que se estende “[...] não

somente a Estados, mas a todas as pessoas de todos os Estados e territórios, mesmo aos não

signatários da Declaração” (ARZABE; GRACIANO, 2005, p. 1).

No Brasil a questão dos Direitos Humanos ganha contornos bem-definidos, pois, além da

problemática social e econômica, a experiência do regime militar protagonizou um universo de

casos de violação aos direitos humanos perpetrado contra estudantes, intelectuais, líderes de

trabalhadores e representantes da Igreja Católica entre outros que, de alguma forma,

apresentavam reação e resistência ao regime repressivo (PIOVESAN, 2000, p. 257).

O processo de redemocratização do Brasil, porém, inseriu novamente o país na arena

internacional de proteção dos direitos humanos, culminando com a Constituição de 1988 como a

Carta democrática a tutelar a dignidade da pessoa humana: os direitos e garantias fundamentais

(PIOVESAN, 2005, p. 5-6).

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Page 340: Justica de transicao vdd memoria e justica

No entanto, como ressalta Benevides (1995b, p. 6), “[...] a violação sistemática de direitos

humanos em nosso país, em todas as áreas, é incompatível com qualquer projeto de cidadania

democrática”, pois não há efetivamente, como está posto, o correspondente entre o previsto na lei

e a realidade em face dos direitos humanos. A existência formal dos direitos humanos não é

suficiente para que esses direitos sejam concretizados.

4.2 Educação para os Direitos Humanos: a Educação Popular

Para que os Direitos Humanos sejam concretizados, resulta imprescindível uma educação

que possibilite aos sujeitos o conhecimento e o (re)conhecimento como sujeitos portadores de

direitos, como processo de tradução, de garantia desses mesmos direitos, pois, como bem

assevera Demo (1999, p. 22): “Pior que a fome, é não saber que a fome é imposta e representa

fonte de privilégios para alguns”. Esta realidade é o não-ser, a desumanização denunciada por

Paulo Freire (1987, p. 30): “[...] vocação negada na injustiça, na exploração, na opressão, na

violência dos opressores, mas que pode ser afirmada no anseio de liberdade, de justiça, de luta

dos oprimidos na recuperação de sua humanidade roubada”.

A educação para os Direitos Humanos deve, sob pena de não ser sequer educação, supor

uma pedagogia, na qual o oprimido possa ter condições de “[...] reflexivamente, descobrir-se e

conquistar-se, como sujeito de sua própria destinação histórica [...] em que tenha condições de re-

existenciar criticamente as palavras de seu mundo, para, na oportunidade devida, saber e poder

dizer a sua palavra” (FREIRE, 1987, p. 9-13). Portanto pressupõe uma pedagogia política,

segundo este autor.

Enrique Dussel, ao debater a ética da libertação, afirma explicitamente que o modelo

educacional da ética para a libertação é a pedagogia de Paulo Freire. A educação para os Direitos

Humanos, nessa direção, trata-se de uma escolha que trilha os caminhos da Educação Popular

que, segundo Brandão (DOIMO, 1995, p. 129), [...] é o nome dado [...] a todo tipo de prática de mediação que promove ou assessora os movimentos populares [...], cuja teoria, desde Paulo Freire, faz a denúncia dos usos políticos da educação opressora e cuja prática converte o trabalho pedagógico do educador em favor do trabalho político dos subalternos.

Assim sendo, no cenário brasileiro, os Movimentos Populares e as ONGs comparecem

como os atores que, na perspectiva da educação popular, abrem trilhas e caminhos, mediante a

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Page 341: Justica de transicao vdd memoria e justica

tolerância e a exigência de dignidade humana questionam a realidade de desigualdade e

exclusão, rumo à ampliação do espaço democrático como proposta de inclusão de todos e do

respeito ao pacto comum.

Por outro lado, a possibilidade de organização e a conquista dos direitos humanos, não

obstante a existência destes nos preceitos legais são um processo contínuo, sempre descortinando

novos direitos, uma vez que os direitos humanos são “[...] por definição, uma utopia em marcha,

um desafio permanente, uma obra sempre em construção, sempre inacabada, [e] exigem que a

dinâmica para a sua implantação e seu aperfeiçoamento seja feito na sociedade organizada

(KRISCHKE, 1995, p. 4)”.

Conclusão

O presente trabalho buscou descortinar a trajetória do CDHHT, retratando as articulações

do movimento popular em Cuiabá que redundou na sua criação, e relatando os casos de violações

acompanhados pela entidade. Os casos são reveladores da desmedida violência na atuação dos

agentes estatais, evidenciando a ausência das garantias legais mesmo em relação ao campo dos

direitos elementares preconizados pelas promessas liberais, dos direitos individuais como o

direito à vida, à segurança, à integridade física, à liberdade.

Outrossim, retratou a percepção dos atores que militaram no CDHHT nas décadas de

oitenta e noventa, revelando que a entidade, assim como todo movimento social, não é um espaço

homogêneo e harmonioso como aparentemente se projeta no espaço público. Esta realidade, na

leitura desta pesquisadora, constitui o panorama de inconsistência, mas também de vitalidades do

CDHHT, pois é na despolarização da hegemonia de um único grupo ou tendência que conflitos

em certa quantidade podem constituir, em boa parte, o motor da dinâmica social.

Os atores, cada qual, carregam um projeto para o CDHHT sob uma perspectiva de olhar o

mundo singular e único, inspirados por valores que precisam de interlocução. Assim cada um ao

seu modo buscou dar sentido à sua vida pela direção político-pedagógica na qual acreditara ser a

melhor para o CDHHT.

A realidade do não respeito à dignidade humana (foi) é o conteúdo capaz de potencializar

ações e congregar esforços para que se construísse uma entidade capaz de denunciar as

arbitrariedades no campo dos direitos humanos e afirmar-se enquanto discurso libertário e

emancipatório que pretende ser caixa de ressonância da sociedade civil. Não há como negar que o

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Page 342: Justica de transicao vdd memoria e justica

CDHHT tem sido o fermento no mínimo problematizador da questão da dignidade e da

respeitabilidade da pessoa humana no Estado de Mato Grosso.

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Page 344: Justica de transicao vdd memoria e justica

Entre o passado e o futuro: o atual enfrentamento dos crimes perpetrados na

Ditadura Militar

Between past and future: the current face of the crimes perpetrated in the Military

Dictatorship

Evandro Charles Piza Duarte1

Resumo: O presente artigo objetivou questionar a interpretação dada à Lei nº 6.683/79,

Lei da Anistia, pelo Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da ADPF nº 153.

Diante das teses e dos argumentos jurídicos expostos durante o julgamento do STF,

realizou-se uma análise da condenação do Brasil frente a Corte Interamericana de

Direitos Humanos no Caso Gomes Lund (2010) e do significado da nova argumentação

jurídica utilizada pelo Ministério Público Federal ao denunciar o coronel de reserva do

Exército Sebastião Curió, responsável pela repressão à Guerrilha do Araguaia, sob o

argumento de crime permanente. Dessa forma, questionou-se a respeito do significado

da verdade e do esquecimento para as instituições públicas do Brasil, principalmente o

poder judiciário.

Palavras chave: ADPF 153; ditadura militar; crime permanente

Abstract: This present paper aims to question the interpretation of the Amnesty Law

given by the Brazilian Supreme Court in judging ADPF 153. Given theses and legal

arguments set out by the Supreme Court, there was an analysis of the Brazil's

condemnation in Inter-American Court of Human Rights in Gomes Lund´s Case (2010)

and the significance of the new legal argument used by federal prosecutors to accuses

the Colonel Army reserve Sebastian Curió, responsible for repression of the Araguaia

Guerrilla, on the grounds of permanent crime. Therefore, if questioned about the

meaning of truth and oblivion for public accuses of Brazil, especially the judiciary.

Keywords: ADPF 153; military dictatorship; permanent crime

1 Professor Adjunto da Universidade de Brasília (UnB) - [email protected]

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Page 345: Justica de transicao vdd memoria e justica

1. Introdução

O presente estudo visa questionar a interpretação dada à Lei nº 6.683/79, Lei

da Anistia, pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da Ação de

Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153.

Proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil e levada a plenário no ano de

2010, a ADPF 153 buscou obter o reconhecimento da inconstitucionalidade da anistia

concedida aos agentes públicos estatais ao cometerem crimes de natureza comum, tais

como os homicídio, lesões corporais e desaparecimento forçado contra opositores ao

regime, durante a Ditadura Militar brasileira. Nesse sentido, objetivava a OAB, ao

ajuizar a ação, limitar a abrangência do termo “crimes conexos” presente no parágrafo

1º do artigo 1º da Lei.

Diante da decisão do STF, que manteve a interpretação segundo a qual a

anistia contemplava e beneficiava os agentes da repressão, realizou-se uma análise do

Caso Gomes Lund (2010), o qual levou à condenação do Brasil perante a Corte

Interamericana de Direitos Humanos. A sanção, que dentre outros termos, impõe a

responsabilização do Estado brasileiro pela tortura, sequestro e desparecimento forçados

de militantes de esquerda pela participação na chamada Guerrilha do Araguaia, deu

ensejo à uma nova postura do Ministério Público Federal, na tentativa de continuar o

debate sobre a ditadura militar no âmbito do Judiciário brasileiro.

Através da denúncia do Coronel de reserva do Exército Sebastião

Curió, agente responsável pela repressão à Guerrilha, o MPF inaugurou nova estratégia

para a retomada da discussão sobre os crimes cometidos durante a ditadura no âmbito

do judiciário. Sem desconsiderar a decisão do STF, ao mesmo tempo em que dá

respaldo à condenação do Brasil pela CIDH, o MPF coloca em pauta novamente as

consequências do período ditatorial para a soberania popular brasileira, reafirma o

direito à justiça, memória e verdade como uma garantia basilar da democracia, e

problematiza a centralidade da necessidade de uma real Justiça de transição no Brasil.

2. O Golpe de 1964 e a Ditadura Militar brasileira

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Em 1º de abril de 1964, desencadeado pelo então general Olympio Mourão

Filho, triunfou o golpe militar que instaurou uma ditadura que vigeu durante 21 anos e

deixou marcas profundas e ainda não cicatrizadas na história social e política brasileira.

Descrita por seus agentes, por um lado, como uma medida defensiva para

afastar a suposta ameaça comunista que rondava o país, e por outro, como a única

maneira de pôr fim às também supostas pretensões ditatoriais do então presidente

democraticamente eleito João Goulart, os militares utilizaram-se, durante a tomada de

poder e por todo o período de dominação, de escusas e argumentos como os de

assegurar a defesa e garantia dos direitos e liberdades individuais, bem como proteção

do país e da democracia brasileira, para tentar legitimar a ditadura e às violações

impostas (PEREIRA, 2010).

Em audiência celebrada no dia seguinte ao golpe, aproveitando-se da ida de

Goulart a Porto Alegre a fim de comandar a resistência, o presidente do Congresso,

Moura Andrade, declara vaga a presidência da república diante da forjada justificativa

de “abandono” pelo presidente em exercício (utilizando-se, como escusa, de

interpretação extravagante ao art. 79 da CF vigente), e a entrega ao presidente da

Câmara dos Deputados, Pascoal Ranieri Mazzilli. Em 11 de abril de 1964, o Congresso

elege o general militar Humberto de Alencar Castelo Branco para a presidência da

república, o qual toma posse no dia 15 do mesmo mês.

Estava, oficialmente, iniciado o legado ditatorial militar no Brasil.

Dado o golpe, os direitos civis e políticos foram paulatinamente fragilizados

e reduzidos, deixando a sociedade civil a mercê dos arbítrios dos aparatos estatais da

repressão, os quais, revestidos por uma capa de legalidade, se faziam conhecer através

dos Atos Institucionais (AI’s) editados pelos presidentes militares que se sucederam no

comando do país.

Através destes mecanismos foram cassados os direitos políticos, por um

período de dez anos, de líderes e ativistas, intelectuais e militares contrários ao regime.

Foi também abolida a eleição direta para a presidência da República, dissolvido o

multipartidarismo em detrimento do bipartidarismo, bem como foi concedida ao

presidente a prerrogativa de dissolver o parlamento, decretar estado de sítio, intervir nos

estados, restringir o direito de opinião e nomear juízes de tribunais superiores a fim de

garantir a convergência ideológica entre os julgadores e os algozes do povo.

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Page 347: Justica de transicao vdd memoria e justica

Acerca deste último ponto, cumpre destacar que o costumeiro antagonismo

entre autoritarismo e legalidade, na especificidade do caso da ditadura militar brasileira,

é relativizado.

Grande parte dos estudos sobre o tema enfoca a análise do autoritarismo

partindo da premissa de que regimes despóticos chegam ao poder pela via da força e

que, por isso, não contam com o Direito para manter-se ou legitimar-se. No Brasil, ao

contrário, justamente por se utilizarem, no mais das vezes, de julgamentos políticos para

perseguir e condenar os opositores do regime, os militares se valiam dos ares de

aparente legalidade dos tribunais e juntas militares (ou tribunais civis, com a presença

de juízes militares requisitados) para neutralizar seus opositores, ao mesmo tempo em

que em que se amparavam na imagem de segurança e respeito à legalidade, oriunda da

utilização sistemática do poder judiciário na prática de perseguição política e ideológica,

para rechaçar denúncias de práticas de autoritarismo (PEREIRA, 2009).

Se, por um lado, tais procedimentos cumpriam a função de transmitir a

mensagem de segurança e legalidade, ainda sob o prisma do argumento de proteção dos

“cidadãos de bem” da ameaça terrorista/comunista subversiva, por outro, o julgamento

aberto, desvelado, também fazia as vezes de servir como um aviso, um prelúdio do

destino daqueles que se contrapunham à ordem vigente. A imposição do medo era usada

como arma política.

Além disso, a legislação anterior à guerra era muito vaga na descrição de

atividades como “subversão”, “ofensa a autoridade” e similares, o que implicava na

obrigação de os juízes interpretarem tais conceitos, servindo, assim, como verdadeiros

legisladores da repressão. Ao tomar tais decisões, os magistrados exerciam seu papel

criador, redesenhando e reestabelecendo os limites entre o licito e o ilícito, criando um

sistema jurídico dotado de muitas características novas – e, sem dúvida, mais

repressivas.

A partir dos julgamentos e da elasticidade conferida à interpretação das leis,

os tribunais moldavam suas acusações de acordo com as mudanças na sociedade,

abarcando quase todos os comportamentos que, em questão de horas, tornavam-se

condenáveis por serem considerados, a partir daquele momento, “subversivos”. Essas

características “permitiram ao regime coletar informações sobre as opiniões da

sociedade, facilitaram a cooperação dentre e entre as instituições militares e permitiram

ao regime modificar seu governo progressivamente” (PEREIRA, 2009, p.218).

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Com isso, no Brasil, a Constituição não chegou a ser suspensa em sua

integralidade, tendo sido atropelada, paulatina e seletivamente, por meio dos atos

institucionais (AIs) e das demais formas de dominação dos instrumentos de poder e de

mando, tais como o Judiciário (com seus Tribunais Militares e intervencionismo de

juízes militares em tribunais civis), o Legislativo (por meio dos intitulados “Senadores

Biônicos”, frutos do Pacote de Abril, oriundo do decreto do AI-5) e, principalmente, do

Executivo e seus desmandos. “Ela (ditadura constitucional) permanece prisioneira do

círculo vicioso segundo o qual as medidas excepcionais, que se justificam como sendo

para a defesa da constituição, são aquelas que levam à sua ruína” (AGAMBEN, 2004,

pag.20)

Nas palavras de Anthony Pereira (2009, p. 208), “[...] a forma institucional

da repressão pode influenciar de maneira importante as tentativas pós-transição de se

fazer justiça de transição”. Não por acaso, o Brasil foi o país que menos viveu a

construção de uma justiça de transição dentre os países do Cone Sul, justamente porque

o seu autoritarismo, durante o regime, tomou ares de legalidade. Assim, continuou a ser

constantemente legitimado por uma parcela (em sua maioria, militar) da população que

insiste em considera-lo, ainda que contraditoriamente, como democrático.

A partir de 1974 é possível vislumbrar o início da abertura do regime. Ainda

que no desenrolar deste processo situações como a imposição de eleições indiretas para

governadores e senadores (um terço destes), além da eliminação da exigência de dois

terços dos votos para aprovação de reformas constitucionais, em 1978, possa aparentar

um recrudescimento da ditadura vigente, este retrocesso não interrompeu o processo de

abertura. Também ano 1978, diminuiu-se a censura prévia, aprovou-se a volta de

exilados políticos e revogou-se o AI-5, além de ter sido restabelecido o habeas corpus

para crimes de natureza política (CARVALHO, 2012).

Dentre as muitas hipóteses levantadas para explicar a iniciativa do próprio

setor militar para iniciar a abertura política no país, razões como a influência da Crise

do Petróleo, em 1973, e o consequente início do fim dos anos do “milagre econômico”

são costumeiramente apontados. A imagem já desgastada da corporação militar, afora as

inúmeras iniciativas populares que exigiam o fim da censura, da tortura, e explicações

acerca do paradeiro dos desparecidos políticos, se multiplicavam e ganhavam cada vez

mais apoio e repercussão dentro e fora do país.

Nesse contexto, durante o governo do general João Batista Figueiredo foi

votada a Lei nº 6683, Lei da Anistia. Polêmica, estendia a absolvição a ambos os lados

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Page 349: Justica de transicao vdd memoria e justica

do embate, isto é, tanto aos opositores do regime que praticaram crimes políticos na luta

pela derrubada da ditadura militar, quanto aos agentes de repressão estatal que

prenderam, torturaram e mataram os “subversivos”.

Com uma redação obscura, sem referir-se diretamente à tortura e aos

desaparecimentos forçados, práticas recorrentes no cotidiano das forças armadas contra

seus opositores, os militares utilizam-se, mais uma vez, da aparente licitude oriunda do

emprego de mecanismos legais para impor medidas que visavam camuflar seu

autoritarismo.

Sob a aparência de benevolência e complacência, a fim de assegurar suas

vestes de legitimidade, a Lei da Anistia igualou as ações de repressão e de resistência,

colocando num mesmo patamar os torturados e seus algozes, ambos anistiáveis por

ambos serem considerados, ambos, culpados. Esqueceu-se, porém, que

(...) as polícias militares, encarregadas do policiamento ostensivo,

tinham sido colocadas sob o comando do Exército durante os

governos militares e foram usadas para o combate às guerrilhas rurais

e urbanas. (Estas) tornaram-se completamente inadequadas, pela

filosofia e pelas táticas adotadas, para proteger o cidadão e respeitar

seus direitos, pois só viam inimigos a combater. A polícia tornou-se,

ela própria, um inimigo a ser temido em vez de um aliado a ser

respeitado. (CARVALHO, 2012, pag. 194.).

Como justificar, diante do costumeiro argumento de que “os dois lados não

eram compostos por santos, e ambos erraram”, que os atos daqueles agentes do Estado,

que por sua natureza são encarregados da proteção e defesa dos cidadãos e da

democracia, possam ser equiparados aos dos cidadãos que, diante da ação absurda de

um Estado autoritário, rebelam-se? “Quando o Estado se transforma em Estado ilegal, a

resistência por todos os meios é um direito. Neste sentido, eliminar o direito à violência

contra uma situação ilegal gerida pelo Estado significa retirar o fundamento da

democracia”. (SAFATLE, 2012, p. 246).

Os que reagem ao autoritarismo e à violência estatal injustificada de um

Estado ilegal não podem ser encarados como outsiders (BECKER, 2008). Devem ser

vistos como aqueles que exercem um dos maiores direitos do ser humano livre,

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349

Page 350: Justica de transicao vdd memoria e justica

fundamento de toda democracia real: “o direito de dizer ‘não’, nem que seja por meio de

armas.” (SAFATLE, 2012, p. 248).

Contrariamente a todos os argumentos levantados acerca da impossibilidade

de uma equiparação plausível entre os atos dos agentes de ambos os lados da repressão,

foi promulgada, e vigora até hoje, a Lei da Anistia.

Diante de seus muitos e nefastos efeitos, um dos mais gravosos pode ser

apontado como a perpetuação da prática de tortura estatal e a sua impunidade.

No Brasil, à diferença de outros países da América Latina, a polícia

mata mais hoje, em plena democracia, do que no período militar. Mata

porque pode matar. Mata porque nós continuamos a dizer “tudo bem”.

Pouca gente se dá conta de que a tortura consentida, por baixo do

pano, durante a ditadura militar é a mesma a que assistimos hoje,

passivos, horrorizados. Doença grave, doença crônica [...]. (KEHL,

2010, p. 18).

Não por acaso, “a inexistência de uma justiça de transição é fator a justificar

o grave quadro de violações de direitos humanos no Brasil, sobretudo no que se refere à

prática da tortura e à impunidade que a fomenta.” (PIOVESAN, 2012, p. 105). Sem

nunca ter sido debatida pelo povo, sem nunca ter sido revista e alterada em sua essência,

frente a permanência imutável da Lei da Anistia de 1979, o Brasil segue privado de uma

verdadeira justiça de transição. Segue privado de um real e necessário confronto com

seu passado, a fim de enterrar seus mortos e ressuscitar suas lembranças.

Diante desse processo complexo e contraditório, a palavra anistia, segundo

CUNHA (2012), contém em si dois sentidos: o de reminiscência, a cumprir o papel de

manter sempre vivo na memória o passado, e o outro, de amnésia, que, ao contrário,

sugere o olvido, perda total ou parcial de memória. Diante desse binômio (esquecimento

e lembrança), essa equação está em permanente embate, já que possibilita concepções

oposta e excludentes de anistia: uma delas, entendida como resgate da memória e direito

à verdade, como reparação histórica, luta contra o esquecimento e recuperação das

lembranças; a outra, vista como esquecimento e pacificação, como conciliação nacional.

Diante dessa antítese, seguimos sentindo os efeitos de uma Anistia imposta

de maneira verticalizada, fruto de um questionável e questionado “acordo” entre

torturadores e torturados, vítimas e carrascos.

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350

Page 351: Justica de transicao vdd memoria e justica

Sobre o dia 28 de agosto de 1979, não olvidemos que:

O ‘esquecimento’ da tortura produz [...] a naturalização da violência

como grave sintoma social no Brasil. [...] A polícia brasileira é a única

na América Latina que comete mais assassinatos e crimes de tortura

na atualidade do que no período da ditadura militar. A impunidade não

produz apenas a repetição da barbárie: tende a provocar uma sinistra

escalada de práticas abusivas por parte os poderes públicos, que

deveriam proteger os cidadãos e garantir a paz. (KEHL, 2012, pag.

124)

3. ADPF 153 e a Lei da Anistia

3.1. Petição inicial da OAB

Passados quase trinta anos de sua promulgação, ressurge, no âmbito do

Judiciário, a discussão acerca da Lei da Anistia.

Proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB

em 21 de outubro de 2008, a ADPF 153 surge como forma de problematizar os efeitos

da ditadura militar para a real implementação da democracia no Brasil e delimitar o

alcance de seus termos.

Tendo como requisitos para sua propositura a necessidade de ser utilizada

de maneira subsidiária, objetivar se opor à ameaça ou lesão a preceitos e garantias

constitucionais, bem como tratar de ato normativo e suscitar relevante controvérsia

constitucional (BARROSO, 2004), a OAB pretendeu fazer o órgão máximo de

deliberação jurídica do país enfrentar, de frente, as controvérsias de uma Lei que se

afirma democrática, mas viola, sob inúmeros pontos de vista, preceitos constitucionais

basilares.

Em sua argumentação inicial, a OAB questionou a interpretação dada ao §1º

da Lei da Anistia, verbis:

Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos

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351

Page 352: Justica de transicao vdd memoria e justica

Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares

§ 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política. (grifos aditados)

Por considera-lo redigido de forma intencionalmente obscura, a fim de

incluir sub-repticiamente, no âmbito da anistia criminal, os agentes públicos que

comandaram e executaram crimes comuns contra opositores políticos ao regime militar,

sustentou a OAB a inépcia jurídica do parágrafo.

Segundo sua interpretação, não seria possível falar de conexão criminal

simplesmente porque não houve conexão entre os crimes políticos cometidos pelos

opositores do regime e os crimes comuns contra eles praticados pelos agentes da

repressão.

É irrefutável que não podia haver e não houve conexão entre os crimes políticos, cometidos pelos opositores do regime militar, e os crimes comuns contra eles praticados pelos agentes da repressão e seus mandantes no governo. A conexão só pode ser reconhecida nas hipóteses de crimes políticos e crimes comuns perpetrados pela mesma pessoa (concurso material ou formal) [...] No caso, portanto, a anistia somente abrange os autores de crimes políticos ou contra a segurança nacional e, eventualmente, de crimes comuns a eles ligados pela comunhão de objetos. É fora de qualquer dúvida que os agentes policiais e militares da repressão política, durante o regime castrense, não cometeram crimes políticos. (REF, INICIAL)

Nas palavras de Mirabete,

Os crimes políticos lesam ou põem em perigo a própria segurança interna ou externa do Estado.[...] São crimes políticos os que lesam ou expõem a perigo de lesão “I- a integridade territorial e a soberania nacional; II- o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito; e III- a pessoa dos chefes do Poderes da União.

Partindo dessa interpretação, os agentes públicos que mataram, torturaram e

violentaram opositores políticos não praticaram crimes políticos, pois não atentaram

contra a ordem política e a segurança nacional. Justamente ao contrário, sob o pretexto

de defende-la, praticaram crimes comuns contra aqueles que se rebelaram contra a

ordem imposta.

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352

Page 353: Justica de transicao vdd memoria e justica

Conforme PIOVENSAN (2012), a insustentável interpretação de que, em

nome da conciliação nacional, a Lei de Anistia seria uma lei de ‘duas mãos’, a

beneficiar torturadores e vítimas é fruto de uma equivocada leitura dessa expressão

‘crimes conexos’ constante da lei. Não se pode falar em conexidade entre os fatos

praticados pelo delinquente e pelas ações de sua vítima. A anistia perdoou as vítimas e

não os que delinquem em nome do Estado.

Outra imprecisão levantada pela OAB refere-se à utilização do termo

“crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos”, também contida no

parágrafo primeiro da Lei. Ao referir-se, em abstrato, a qualquer situação que venha a

ser interpretada de tal forma, deixa a Lei lacunas abertas para arbítrios do poder

Judiciário, que teve oportunidade de se valer do julgamento pessoal do juiz, frente ao

caso concreto, para condenar ou absolver um acusado a seu bel prazer. “Ou seja, quem

anistia, nessa hipótese legal definida, é o próprio juiz.”

Além disso, a Ação questiona a legitimidade de uma Lei da Anistia que, à

época de sua votação, tinha um Congresso composto por um terço de seus membros

eleitos sob o placet dos comandantes militares. “Ela foi sancionada por um Chefe de

Estado que era General do Exército e fora guindado a essa posição não pelo povo, mas

pelos seus companheiros de farda” (REF, inicial)

Já reconhece a Corte Americana de Direitos Humanos, cuja jurisdição é

aceita pelo Brasil, que é nula e de nenhum efeito a auto-anistia criminal decretada por

governantes, o que retiraria toda a legitimidade da Lei da anistia de 1979, promulgada

por um ditador militar, sob o aval de Congresso viciado e corrompido.

[...] as leis de ‘autoanistia’ perpetuam a impunidade, propiciam uma injustiça continuada, impedem às vítimas e aos seus familiares o acesso à justiça e o direito de conhecer a verdade e de receber a reparação correspondente, o que constituiria uma manifesta afronta à Convenção Americana. As leis de anistia configurariam, assim, um ilícito internacional e sua revogação uma forma de reparação não pecuniária.” (pag. 101, PIOVESAN)

Por fim, fazendo menção à falácia do suposto "acordo" que permitiu a

transição do regime militar ao Estado de Direito, questiona-se: quem negociou o dito

acordo? Para quem foi dada a procuração para falar em nome do povo brasileiro, das

vítimas e de seus familiares?

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

353

Page 354: Justica de transicao vdd memoria e justica

Fazendo alusão à Kant, termina por decretar: “a pessoa humana não pode

servir de meio para a obtenção de qualquer finalidade, pois ela é um fim em si mesma.

Portanto, tem dignidade, não um preço.” (REF, inicial)

Assim, no pedido, requerer a declaração de que a anistia concedida aos

crimes políticos ou conexos não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes

da repressão contra opositores políticos, durante o regime militar, e o não acolhimento

da Lei pela Constituição de 1988. Com isso, mais do que criminalizar os agentes da

repressão, almeja-se um obter do Judiciário, de maneira última e inquestionável, o

reconhecimento da responsabilidade do Estado pelas atrocidades cometidas durante o

período de ditadura militar, o direito à justiça e memória em nome dos mortos, bem

como iniciar, finalmente, a real transição para a democracia e a verdade.

3.2: Julgamento da ADPF

Sob a relatoria do Ministro Eros Graus, o julgamento da ADPF 153 teve

início no dia 28 de abril de 2010, tendo contado com os votos de sete dos nove votos

contrários à ADPF, e dois deles favoráveis ao acolhimento das pretensões da arguente.

Em seu relatório, refutando as alegações e pedidos da OAB, Eros Grau

inicia sua argumentação com a defesa da tese de que a anistia de fato resultou de um

acordo, uma verdadeira transação entre a população civil e o governo militar, e, a seu

ver, nos exatos termos de sua promulgação.

O ministro, utilizando-se de parecer do Procurador Geral da União, afirma

que:

É evidente que reconhecer a legitimidade da Lei da Anistia não significa apagar o passado.[...] Romper com a boa-fé dos atores sociais e os anseios das diversas classes e instituições políticas do final dos anos 70, que em conjunto pugnaram – como já demonstrado – por uma Lei de Anistia ampla, geral e irrestrita, significaria também prejudicar o acesso à verdade histórica.

Acerca da questionável autoanistia, completa:

Há quem se oponha ao fato de a migração da ditadura para a democracia ter sido uma transição conciliada, suave em razão de certos compromissos. Isso porque foram todos absolvidos. Ocorre que os subversivos a obtiveram, a anistia, à custa dessa amplitude. Era ceder e sobreviver ou não ceder e continuar a viver em

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354

Page 355: Justica de transicao vdd memoria e justica

angústia (em alguns casos, nem mesmo viver). Quando se deseja negar o acordo político que efetivamente existiu resultam fustigados os que se manifestaram politicamente em torno dos subversivos.

Com tal alegação, a manifestação do ministro Eros Grau vai ao encontro da

hipótese corrente, valorizando a justificativa de um pacto conciliatório que,

concretamente, até viabilizou a transição para a democracia de forma pacífica, porém

esquece-se do preço que foi pago para tal. Em sua sentença, não deixa de expor “sua

fragilidade ao sustentar a hipótese de que não haveria alternativas ou ponderações sobre

outras possibilidades no tratamento da questão; aliás, tal epílogo no Brasil resultou em

flagrante descompasso com os demais países que enfrentaram transições semelhantes na

América Latina”(CUNHA, 2010, p. 40).

Reafirmou-se, assim, a tese central e excludente do dueto social e ideológico

desarmônico que vigia entre torturadores e torturados. Ao reduzir a questão da

impunidade em relação aos torturadores, o STF nivelou-os ao mesmo patamar de suas

vítimas. “Noutros termos, a anistia advinda desse processo de (re)conciliação que

norteou o processo histórico brasileiro pode até ter evitado rupturas, mas não foi,

necessariamente, expressão de justiça.”(CUNHA, 2012, p.40).

Na mesma linha de raciocínio, a Ministra Carmen Lúcia, em seu voto,

afirma que o julgamento da ADPF deveria se restringir a analisar a extensão da

questionada expressão “crimes conexos”. O direito à verdade, o direito á história e o

dever do Estado brasileiro de investigar, encontrar respostas, divulgar e adotar as

providências sobre os desmandos cometidos no período ditatorial não estavam em

questão.

Como separar os questionamentos? Como questionar a extensão da Lei da

Anistia, sem considerar a necessidade de resposta aos anseios, sufocados há quase trinta

anos, por verdade, justiça e memória?

Ao traduz o anseio do (re)conhecimento de graves fatos históricos

atentatórios aos direitos humanos, o resgate histórico das violências vividas no passado.

Serve tanto ao propósito de assegurar o direito à memória das vítimas, quanto o de

confiar às gerações futuras a responsabilidade de prevenir a repetição de tais práticas.

“O direito à verdade assegura à construção da identidade, da história e da memória”.

(PIOVESAN, 2012, p.104)

Em outro voto sintomático, a Ministra Ellen Gracie faz um discurso

sobre a relação em memória, anistia e esquecimento.

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

355

Page 356: Justica de transicao vdd memoria e justica

Em suas palavras,

o pedido alternativa de interpretação conforme que retirasse do âmbito

de abrangência da lei os atos praticados pelos agentes da repressão

tampouco pode ser atendido. Anistia é, em sua acepção grega,

esquecimento, oblívio, desconsideração intencional ou perdão de

ofensas passadas. É superação do passados com vistas à reconciliação

de uma sociedade. E é, por isso mesmo, necessariamente mútua. É o

objetivo de pacificação social e política que confere à anistia seu

caráter bilateral. A esse respeito, Plutarco dizia ‘uma lei que determina

que nenhum homem será interrogado ou perturbado por coisas

passadas chamada Anistia, ou lei do Esquecimento” (p.152)

Não considera, com isso, que “esse passado que insiste em perdurar de

maneira não reconhecida no presente, que se mantém como dor e sofrimento, esse

passado não passa. (...) O silencia sobre os mortos do passado, da ditadura, acostuma

silenciar sobre os mortos e os torturados de hoje.” (GAGNEBIN, 2012, p.185).

Ao afirmar que

Não se faz transição, ao menos não se faz transição pacífica, entre um

regime autoritário e uma democracia plena, sem concessões

recíprocas. Por incômodo que seja reconhecê-lo hoje, quando vivemos

outro e mais virtuoso momento histórico, a anistia, inclusive daqueles

que cometeram crimes nos porões da ditadura, foi o preço que a

sociedade brasileira pagou para acelerar o processo pacífico de

redemocratização, com eleições livres e a retomada do poder pelos

representantes da sociedade civil. (p.153)

O STF, na figura da Ministra Ellen Gracie, sentencia, mais uma vez, a

verdade do Brasil, e a verdade dos mortos e torturados pelo regime militar, à outra

morte. A morte do simbólico, diante da imposição do esquecimento.

Reafirmando o oblívio do outro, impõem-se-lhe, mais uma vez, e

reiteradamente, outra forma de violência, que perpetua aquela sofrida nos porões da

ditadura, pois

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

356

Page 357: Justica de transicao vdd memoria e justica

o totalitarismo é fundado nesta violência muito mais brutal do

que a eliminação física: a violência da eliminação simbólica.

Neste sentido, ele é a violência da imposição do

desaparecimento do nome. No cerne de todo o totalitarismo,

haverá sempre a operação sistemática de retirar o nome daquele

que a mim se opõe, de transforma-lo em um inominável cuja

voz, cuja demanda encarnada em sua voz não será mais objeto

de referência alguma. (SAFATLE, 2010, p. 238)

4. Crimes Permanentes e a Virada Argumentativa – Uma Análise do Caso

Sebastião Curió

4.1 A nova postura do Ministério Público Federal – contextualização geral e o

respaldo na discussão da Corte Interamericana de Direitos Humanos

Diante desse contexto, passa-se a analisar como o Estado brasileiro, por

meio do Ministério Público Federal, interpretou e deu prosseguimento a decisão da

Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre o Caso Gomes Lund, de 24 de

novembro de 2010, ainda que estabelecido a declaração de constitucionalidade da Lei

da Anistia promovida pelo Supremo Tribunal Federal.

A decisão da CIDH parte de demanda da Comissão Interamericana de

Direitos Humanos, perpetrada em nome das pessoas desaparecidas na Guerrilha do

Araguaia e seu familiares, contra a República Federativa do Brasil. O pedido se referia à

responsabilidade do Estado brasileiro pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento

forçado de camponeses e membros do Partido Comunista do Brasil resultante de

operações do Exército brasileiro empreendidas entre 1972 e 1975 (CIDH, p. 03 e 04).

Conforme relatório da Comissão, citado na decisão da Corte, a necessidade

de responsabilização se dá em um contexto no qual:

[...] em virtude da Lei No. 6.683/79 […], o Estado não realizou uma

investigação penal com a finalidade de julgar e punir as pessoas

responsáveis pelo desaparecimento forçado de 70 vítimas e a

execução extrajudicial de Maria Lúcia Petit da Silva […]; porque os

recursos judiciais de natureza civil, com vistas a obter informações

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

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Page 358: Justica de transicao vdd memoria e justica

sobre os fatos, não foram efetivos para assegurar aos familiares dos

desaparecidos e da pessoa executada o acesso a informação sobre a

Guerrilha do Araguaia; porque as medidas legislativas e

administrativas adotadas pelo Estado restringiram indevidamente o

direito de acesso à informação pelos familiares; e porque o

desaparecimento das vítimas, a execução de Maria Lúcia Petit da

Silva, a impunidade dos responsáveis e a falta de acesso à justiça, à

verdade e à informação afetaram negativamente a integridade pessoal

dos familiares dos desaparecidos e da pessoa executada. (CIDH, p. 03)

É em vista desses acontecimentos que a Corte norteia sua análise do caso e

estabelece o marco referencial de sua decisão. Assim, no parágrafo terceiro dos pontos

resolutivos da sentença, é declarada que as disposições da Lei de Anistia brasileira não

são adequadas à Convenção Americana, carecendo de efeitos jurídicos. Portanto, as

disposições que impediam a investigação e sanção de graves violações de direitos

humanos não poderiam continuar servindo de obstáculo à persecução penal de crimes

relacionados ao contexto da Ditadura Militar.

Além de estabelecer a condenação do Estado brasileiro pelo

desaparecimento forçado, pela violação dos direitos ao reconhecimento da

personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal, à liberdade, pelo descumprimento

da obrigação de adequar seu direito interno à Convenção Americana sobre Direito

Humanos, pela violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial (CIDH,

p. 114), pela violação do direito à liberdade de pensamento e de expressão e pela

responsabilidade de diversas outras transgressões aos direitos fundamentais, a sentença

da Corte Interamericana dispôs sobre a obrigação de o Estado brasileiro “conduzir

eficazmente, perante a jurisdição ordinária, a investigação penal dos fatos do presente

caso a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e

aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei preveja (...)” (CIDH, p. 115).

Portanto, a condenação do Estado brasileiro pela Corte se dá poucos meses

após a decisão do Supremo Federal que declarou a constitucionalidade da Lei da

Anistia. Neste sentido, altera o quadro normativo sobre o qual as instituições e órgãos

brasileiros devem atuar. Com a exigência de uma nova postura do Brasil, o Ministério

Público Federal reorienta sua estratégia de interlocução com o poder judiciário no que

toca os crimes cometidos durante o período da Ditadura Militar.

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

358

Page 359: Justica de transicao vdd memoria e justica

Para tanto, a rearticulação estratégica do MPF se baseou em reuniões de

trabalho do próprio Ministério Público, assim como em atividades realizadas pelo

Ministério da Justiça e o ICTJ – Centro Internacional para Justiça de Transição, os quais

propuseram a realização do I Workshop Internacional sobre Justiça de Transição. Esse

evento teve o objetivo de debater questionamentos cíveis e criminais acerca do

cumprimento da decisão da CIDH e analisar experiências bem sucedidas de justiça de

transição na África do Sul, no Chile e na Argentina. O espaço contou com a presença de

especialistas dos três países citados e produziu diversas conclusões, que podem ser

encontradas no documento n.2/2011, aprovado pela 2ª Câmara de Coordenação e

Revisão da Procuradoria Geral da República.

Neste relatório, fica expressa a orientação do Ministério Público Federal de

dar cumprimento ao estabelecido na decisão da Corte Interamericana de Direitos

Humanos, promovendo atos e diligenciais, assim como dando início à investigação

criminal tendo como objetivo a responsabilização dos agentes pelas condutas violadoras

de direitos humanos. Tal entendimento fica claro no item 18 do documento n.2/2011,

que diz:

Em síntese, o Ministério Público Federal, no exercício de sua

atribuição constitucional de promover a persecução penal e de zelar

pelo efetivo respeito dos poderes públicos aos direitos humanos

assegurados na Constituição, inclusive os que constam da Convenção

Americana de Direitos Humanos e que decorram de decisões da Corte

Interamericana de Direitos Humanos, está vinculado ao cumprimento

da decisão da Corte, enquanto permanecer válido e não for declarado

inconstitucional o reconhecimento da jurisdição da Corte (MPF, 2011,

p. 06).

Reforçou-se, portanto, a ideia de que o Direito Penal é um instrumento

essencial para a proteção de direitos humanos fundamentais e de que o não

cumprimento da decisão da CIDH representa uma afronta ao Estado de direito (MPF,

2011, p. 08), afirmando-se a necessidade de desencorajar a cultura de impunidade. Para

concretizar esses objetivos, estabeleceu-se a persecução penal como o instrumento

essencial para evitar a perpetuação dos efeitos do legado autoritário da Ditadura sobre

as vítimas e sobre a sociedade (MPF, 2011, p. 08 e 09).

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Page 360: Justica de transicao vdd memoria e justica

E é dentro desse contexto que surge a nova orientação de atuação do

Ministério Público em relação a que tratamento deve ser dado aos crimes cometidos

durante o período militar. Perante uma situação na qual a decisão da Corte

Interamericana de Direitos Humanos cobra uma atuação e uma resposta do Estado

brasileiro, mas que por outro aparece a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a

ADPF 153/2008, que mantém como constitucional a Lei da Anistia, o MPF se vê em

um momento no qual lhe é exigido uma mudança de estratégia interpretativa perante o

quadro normativo e jurisprudencial brasileiro.

Assim é que, após a avaliação da escassez de instrumentos e óbices jurídicos

utilizados em outros países, assim como as maneiras encontradas para superá-los, o

Ministério Público Federal achou forma para conciliar a decisão proferida pelo STF

com aquela estabelecida pela CIDH. Para tanto, aprofundou-se a análise sobre a

natureza jurídica permanente de certas condutas ilícitas promovidas durante a Ditadura

Militar (MPF, 2011, p. 09).

Conforme fica claro no item 27 do referido documento, a Lei de Anistia não

deve ser barreira para a persecução penal no que toca os crimes de sequestro devido à

sua natureza particular. O documento assim aduz:

Registrou-se, a propósito, que o ponto resolutivo 3 da sentença da

Corte declarou expressamente que as normas da Lei de Anistia

brasileira “não pode seguir representando um obstáculo” para a

investigação dos fatos relacionados ao crime permanente de

desaparecimento forçado nos episódios da Guerrilha do Araguaia, e

“tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de

outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na

Convenção Americana ocorridos no Brasil.”(MPF, 2011, p. 07 e 08)

Portanto, diante de uma conjuntura na qual a decisão da Corte

Interamericana estabelece a obrigação de agir do Estado brasileiro no que toca as

violações de direitos humanos no período militar, o Ministério Público encontra um

caminho para que se possa realizar a persecução penal dos tipos penais de sequestro,

qual seja, a alegação de que são crimes permanentes e que, por isso, continuam a ser

realizados no presente, não sendo abarcados pela extinção de punibilidade da Lei da

Anistia ou pela prescrição.

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Page 361: Justica de transicao vdd memoria e justica

4.2 Sebastião Curió e a Guerrilha do Araguaia

Para analisar essa virada hermenêutica existente na prática penal do

Ministério Público, cabe conhecer melhor a atuação de Sebastião Curió, Major do

Exército e maior responsável pelas perseguições realizadas no contexto da chamada

Guerrilha do Araguaia.

Ocorrida na região conhecida como “Bico do Papagaio”, sudeste do Pará

com divisa para o Tocantins (estado do Goiás na época), a Guerrilha do Araguaia

iniciou quando os primeiros militantes do Partido Comunista do Brasil (PC do B)

aportaram na região por volta de metade da década de 60 (PEIXOTO, p. 480). Teve o

seu término por volta do ano de 1974 por meio de ofensiva do Estado brasileiro e

abatimento dos últimos guerrilheiros.

Ao chegar na região do “Bico do Papagaio”, o PC do B instalou-se em áreas

próximas ao Rio do Araguaia, tendo em vista a organização de mobilização rural de

resistência ao governo militar. Tal movimento tinha inspiração no levante oriental que

culminou na Revolução Chinesa de 1949, fomentando e ensejando a luta por uma

democracia popular no Brasil (PEIXOTO, p. 482). Para alcançar esse objetivo, os

guerrilheiros procuraram reunir o maior número de simpatizantes, estabelecendo

relações com os moradores locais. Além disso, adquiriram conhecimento da região e se

esforçaram para adquirir novos membros.

Visando enfrentar essa situação, a partir de 1972 o exército brasileiro

iniciou diversas operações na região, que no início não foram bem sucedidas. Visando

melhorar a eficiência do combate, as forças armadas realizaram minucioso

planejamento de informação sobre os guerrilheiros, coletando dados e infiltrando

agentes na sociedade local. Essa operação de inteligência tinha o objetivo de conhecer o

cotidiano dos militantes, assim como suas relações com a população da região. Foi

assim que o exército levantou as características dos grupos guerrilheiros, descobriu a

localização de seus alojamentos e desvendou os moradores que colaboravam com os

integrantes do PC do B.

Essa fase se deu dentro da estratégia da Operação Sucuri, que constituía-se

no mapeamento e coleta de informações sobre as condições dos militantes e que foi

realizada através do disfarce dos militares. Chamados de “doutores”, o exército

brasileiro conseguiu se aproximar e abrir caminho para violenta repressão sobre a

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

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Page 362: Justica de transicao vdd memoria e justica

guerrilha, na qual se destacou o denominado “Dr. Luchini”, agrônomo do Instituto

Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), que era na verdade Sebastião

Rodrigues de Moura, o famoso major Curió (PEIXOTO, p. 482).

Com o término da Operação Sucuri e início da Operação Marajoara, inicia-

se a fase de maior repressão à Guerrilha, notabilizada pela sua extrema e sistemática

violência, sobre a qual o Estado brasileiro perpetrou as mais diversas perseguições e

violações aos direitos humanos. É nesse momento que o exército se afasta

deliberadamente e completamente de qualquer quadro normativo vigente, criando

verdadeiro estado de sítio sustentado por agressões físicas e psicológicas. A abrangência

da repressão não se limitou aos guerrilheiros do Partido Comunista, pois se estendeu

abertamente à população local, que até hoje sofre reflexos diretos da suspensão

democrática vivida no período da Ditadura Militar.

A barbárie, que foi desde as costumeiras torturas do período ditatorial à

decapitação de militantes presos, fica expressa na base de Xambioá, verdadeiro campo

de concentração delimitado por arames farpados, em que os presos dormiam no chão e

vivam em uma área denominada curral (PEIXOTO, p. 487).

Pois é neste contexto que atuou Sebastião Curió, que foi designado pelo

exército para atuar como comandante operacional da última fase de repressão à

Guerrilha. Como chefe da Operação Marajoara, o Major ordenou e participou da

execução do sequestro de Maria Célia Corrêa (Rosinha), Hélio Luiz Navarro de

Magalhães (Edinho), Daniel Ribeiro Callado (Doca), Antonio de Pádua (Piaui) e Telma

Regina Cordeira Corrêa (Lia) (MPF, 2012, p.02), segundo a petição inicial do

Ministério Público Federal.

Praticadas sob o pretexto de “combate ao comunismo” e de “defesa da

pátria nacional”, as operações capitaneadas pelo Major utilizaram do aparato material

do exército e institucionalizaram verdadeiros atos criminosos, como a tortura, o cárcere

privado e o sequestro. Assim, Sebastião Curió, como chefe operacional da Operação

Marajora, é notoriamente conhecido como responsável pela detenção ilegal e graves

violações dos direitos humanos, sendo, hoje, processado pelo MPF por promoção do

sequestro qualificado, privando as vítimas de liberdade em caráter permanente,

conforme será visto no tópico seguinte (MPF, 2012, p. 05).

4.3 A petição inicial do Ministério Público Federal e sua argumentação jurídica

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

362

Page 363: Justica de transicao vdd memoria e justica

É diante desses fatos históricos e atuando dentro do quadro normativo

fornecido tanto pela decisão da Corte Interamericana como pelo Supremo Tribunal

Federal, que o Ministério Público Federal, no dia 23 de fevereiro de 2012, ajuizou

denúncia contra Sebastião Curió Rodrigues de Moura pela privação – mediante

sequestro – em caráter permanente da liberdade de 5 militantes da Guerrilha do

Araguaia.

A ação do MPF, em conformidade com a orientação exposta no documento

n.2/2011 da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão da Procuradoria Geral da República,

fundamenta-se na permanência dos crimes cometidos pelo Major, os quais estariam

sendo praticados até os dias de hoje devido a falta de prova em relação ao término da

execução de cada delito.

Antes de adentrar na argumentação realizada pelo Ministério Público

Federal, cabe esclarecer o conceito de crime permanente, cerne da fundamentação

persecutória. Segundo Cezar Roberto Bitencourt, crime permanente:

(...) é uma entidade jurídica única, cuja execução alonga-se no tempo,

e é exatamente essa característica, isto é, manter-se por algum período

mais ou menos longo, realizando-se no plano fático (e esse fato exige

a mantença do elemento subjetivo, ou seja, do dolo) que se justifica

que sobrevindo lei nova, mesmo mais grave, tenha aplicação imediata,

pois o fato, em sua integralidade, ainda está sendo executado.

(BITENCOURT, p. 173)

O crime permanente ocorre, portanto, quando a sua execução se prolonga no

tempo, existindo a ideia de que o agente, a cada instante, enquanto durar a permanência,

está praticando atos de execução (GRECO, p. 110). Dessa maneira, a execução e a

consumação do delito acabam se confundindo, como ocorre, por exemplo, com o crime

de sequestro.

No que toca a qual lei deve incidir sobre o crime dessa natureza, mais uma

vez cabe citar os ensinamentos de Bitencourt ao comentar a incidência do diploma legal

mais atual, ainda que mais grave, caso ele tenha entrado em vigor antes de cessar a

permanência da infração penal, ou seja, antes de cessar a sua execução:

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

363

Page 364: Justica de transicao vdd memoria e justica

Mas o que acabamos de dizer nada tem que ver com o princípio

constitucional da irretroatividade da lei penal mais grave (art 5º, XL,

da CF), pois se trata, em verdade, da incidência imediata de lei nova a

fato que está acontecendo no momento de sua entrada em vigor.

Assim, não é a lei nova que retroage, mas o caráter permanente do

fato delituoso, que se protrai no tempo, e acaba recebendo a incidência

legal em parte de sua execução e a expande para toda sua fase

executória; (...) (BITENCOURT, p. 173)

É esse o entendimento expresso na Súmula 711 do STF, a qual estabelece

que “a lei penal mais grave aplica-se ao crime continuado ou ao crime permanente, se a

sua vigência é anterior à cessação da continuidade ou da permanência”. Na medida em

que o crime permanente se apresenta como uma única conduta, constante em

determinado lapso temporal por ter como objeto a manutenção do estado consumativo

(ZAFFARONI, p. 618), não faz sentido algum pretender que fragmento da conduta seja

punido por determinada lei, deixando o restante para ser punido por outra lei. A Súmula

711, portanto, é mais do que acertada no que toca a disposição sobre crime permanente

– em que pese o mesmo não poder ser dito sobre os crimes continuados –.

Tendo em mente essa conceituação e a aplicação temporal da norma nos

casos de crimes permanentes, clareia-se o posicionamento e a fundamentação da ação

ajuizada pelo Ministério Público Federal contra Sebastião Curió. Argumentando que o

Major, no exercício de suas funções, “participou de atos de sequestro e maus-tratos das

cinco vítimas, seja diretamente, ou, de forma mediata, determinando que terceiros sob

seu comando o fizessem”, sendo também autor intelectual das principais ações

criminosas cometidas pelos militares na fase mais repressiva da Guerrilha, a denúncia se

focou na permanência do crime de sequestro realizado por Curió, já que não houve

prova de cessação dos atos delituosos.

É neste sentido o seguinte trecho:

No particular, nota-se ser irrelevante, para fins da imputação penal, a

suspeita de que as vítimas tenham sido executadas ou, pelo decurso do

tempo, estejam mortas. O fato concreto e suficiente é que – após a

privação da liberdade das vítimas adiante especificadas – ainda não se

sabe o paradeiro de tais pessoas e tampouco foram encontrados seus

restos mortais.

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

364

Page 365: Justica de transicao vdd memoria e justica

(...) Não existe sequer indício material indireto da morte,

prevalecendo, dessarte, a permanência destes sequestros. (MPF, 2012,

p. 06)

Assim, a partir do momento no qual o Supremo Tribunal Federal decidiu

que os crimes de tortura, cometidos durante a Ditadura Militar, são regulados e

abarcados pela anistia concedida pela Lei nº 6.683/79, não sendo, portanto, de tratados

internacionais e das posteriores disposições constitucionais que estabelecem, entre

outras medidas, a insuscetibilidade de graça e anistia dos crimes de tortura, o Ministério

Público Federal encontrou nova maneira de enfrentar a impunidade dos delitos

praticados por agentes estatais no período militar. A continuidade da execução dos

crimes de sequestro faz com que eles sejam regulados pelo atual quadro normativo

vigente, conforme dispõe a Súmula 711 do STF, retirando-os do contexto hermenêutico

de aplicação ou não da Lei da Anistia.

Portanto, ainda que integrada à nova ordem constitucional, a Lei nº 6.683/79

nada poderia fazer para impedir a persecução penal dos crimes permanentes de

sequestro. Novamente, cabe citar a fundamentação utilizada pelo Ministério Público

Federal na petição contra Sebastião Curió, que assim aduz:

Deste modo, à falta de certeza sobre a morte das vítimas sequestradas

e desaparecidas, vez que não houve identificação de seus restos

mortais, nem há prova da morte por outro meio suficiente e capaz de

determinar as circunstâncias desses eventos (corpo de delito indireto),

descabe presumir que as cinco vítimas referidas nesta denúncia

tenham sido mortas (executadas) ou que tenham falecido por causas

naturais. Há apenas a certeza da ocorrência dos sequestros qualificado,

ainda em execução, pois que se trata de delito de caráter permanente.

(MPF, 2012, p. 22)

Conforme o relatado na petição inicial, tal argumentação, inclusive, já foi

utilizada pelo próprio Supremo Tribunal Federal em dois pedidos de extradição (Ext.

974, j. 06/08/2009 e Ext. 1150, j. 19/05/2011), que, coincidentemente ou não, estão

relacionados ao período ditatorial latino-americano. Nestes casos, o STF deferiu os

pedidos de extradição do major Manuel Juan Cordero Piancentini e do major Norbeto

Rául Tozzo, para a República da Argentina.

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

365

Page 366: Justica de transicao vdd memoria e justica

Em relação ao primeiro caso, o major Manuel Cordero, militar uruguaio, foi

extraditado para a Argentina devido a realização de um sequestro de um menor durante

a Operação Condor. Já Norberto Tozzo é acusado de envolvimento no Massacre de

Margarita Belén de 1976, ocorrido na província do Chaco, que levou a execução de 22

jovens peronistas. Dentre esses militantes, até hoje não foram encontrados 4 deles, o

que levou Tozzo a ser extradidado para a Argentina para ser julgado pelo crime de

sequestro qualificado (ARAS).

Em ambos os casos, o Supremo Tribunal Federal teve que usar da técnica

argumentativa e jurídica para sair das alegações de atipicidade (do delito de

desaparecimento forçado) e de prescrição (do crime de homicídio). Para tanto, utilizou-

se da fundamentação encastelada pelo Ministério Público Federal na atual petição

contra Sebastião Curió, ou seja, partindo da técnica que vai ao núcleo duro da conduta,

o STF decidiu que o desparecimento forçado equiparava-se ao crime de sequestro –

vítimas desaparecidas que, no entanto, não tiveram seus corpos encontrados –, no qual

a privação da liberdade continua até os dias de hoje. Devido a natureza permanente

intrínseca do crime de sequestro, não ocorreu, portanto, a prescrição da pretensão

punitiva, já que o termo inicial se dá justamente com a cessação da permanência

(ARAS).

É dessa maneira que o Ministério Público finaliza a fundamentação de sua

persecução penal, afastando a acusação tanto da prescrição penal como do marco criado

pela Lei da Anistia:

Por tais motivos – mais detidamente analisados na cota introdutória

desta denúncia – descabe falar em exaurimento do sequestro e,

consequentemente, de ocorrência de prescrição ou extinção da

punibilidade pela anistia, haja vista que cuida a presente de crimes de

caráter permanente cujo curso do prazo prescricional sequer se iniciou

e, uma vez que ainda em consumação, não são compreendidos,

portanto, pelo marco temporal previsto na Lei de Anistia de 1979.

(MPF, 2012, p. 22)

(...) O elemento concreto desta denúncia é a comprovação da ilícita

privação da liberdade das cinco vítimas, mediante cinco atos de

sequestro, o qual perdura até a atualidade e implicou em grave

sofrimento físico e/ou moral às vítimas, em razão dos maus-tratos a

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

366

Page 367: Justica de transicao vdd memoria e justica

que foram submetidas. Tais condutas estão tipificadas no artigo 148, §

2º, do Código Penal brasileiro. (MPF, 2012, p. 23)

O que se nota, portanto, é que as criatividades discursiva e jurídica foram e

estão sendo utilizadas para contornar os aparentes empecilhos normativos. Em um

primeiro momento, foi o próprio Supremo Tribunal Federal que levou a cabo uma

hermenêutica alternativa para não deixar impunes agentes estatais do período militar,

ainda que de outros países. Mas agora, e contra decisão do próprio STF, são outros

órgãos do Estado brasileiro que fazem da argumentação do crime permanente uma

forma de enfrentar o passado ditatorial latino-americano, dando cumprimento a decisões

internacionais e retificando o compromisso social de não esquecimento. Diante desse

quadro, cabe, por fim, perguntar em que medida essa nova fundamentação avança na

efetivação da justiça de transição brasileira e se, por outro lado – com o esquecimento

da centralidade da aprovação da Lei da Anistia e com a argumentação usada para

sustentar sua adequação à “ordem” pela mais alta corte do país – ela não representa

mais uma vez o enfrentamento surdo de órgãos que insistem em não entender o

contexto ditatorial brasileiro.

5. Conclusão – se memória de um lado, esquecimento do outro:

Com a alegação de crime permanente, o Ministério Público Federal vai

conseguindo fazer importante abertura em um dos poderes mais conservadores no que

toca a questão da justiça de transição. No entanto, diante de tal alternativa

argumentativa, cabe perguntar em que medida a fundamentação sobre a permanência

dos delitos ajuda a trazer, para a centralidade das instituições públicas, o debate sobre a

verdade, a memória e a participação do Estado. Mais especificamente e neste sentido,

surge também o questionamento sobre o real compromisso do poder judiciário com o

enfrentamento de questões pendentes do nosso passado.

Segundo Paulo Abrão e Marcelo Torelly, a justiça de transição, processo

promovido pelas instituições públicas em períodos pós-ditatoriais, apresenta quatro

grandes dimensões, quais sejam: promoção da reparação às vítimas; fornecimento da

verdade e construção da memória; regularização das funções da justiça e re-

estabelecimento da igualdade perante à lei; e reforma das instituições perpetradoras de

violações contra os direitos humanos (ABRÃO e TORELLY, p. 27)

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

367

Page 368: Justica de transicao vdd memoria e justica

Tendo como base esses quatro objetivos, que podem ser aferidos em maior

ou menor grau dependendo do período histórico, do contexto social e da instituição

analisados, clareia-se a conjuntura da justiça de transição no Brasil. Nota-se,

principalmente nos últimos anos, um aumento do poder público no que toca a efetivação

da memória, da verdade e da reparação em relação aos atos cometidos no período

militar. Isso pode ser notado, para além dos debates levados a cabo pela Comissão da

Anistia, as ações da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da

República – como o lançamento do livro “Direito à Verdade e a Memória” e a própria

mobilização social e institucional em torno da ADPF 153 (ABRÃO E TORRELY, p.

38), com a criação da Comissão Nacional da Verdade, fundada em novembro de 2011.

Todas essas medidas mostram, em alguma medida, o comprometimento

institucional, principalmente do poder executivo, com a promoção das referidas quatro

dimensões da justiça de transição. No entanto, o mesmo avanço não pode ser visto por

parte do judiciário, que ainda se mostra resistente ao enfrentamento necessário,

principalmente em relação aos casos de responsabilização dos agentes estatais. Neste

contexto, a argumentação utilizada pelo Ministério Público, ainda que fundamentada

sobre o resgate de determinados fatos, não consegue fazer penetrar, no âmbito dos

tribunais, duas importantes dimensões da justiça de transição: o fornecimento da

memória e da verdade com a subsequente, ou concomitante, reforma das instituições

violadoras de direitos humanos.

Isso se deve ao fato de que, ao trazer para o presente determinados crimes,

afasta-os de sua contextualização e do seu liame histórico, ainda que decisoriamente ou

argumentativamente. Por mais que o Ministério Público se esforce para reconstituir, em

sua petição inicial, o momento e o estado das coisas nos quais os crimes se iniciaram, a

decisão se baseará na permanência do crime nos dias de hoje, não o articulando com a

suspensão jurídica institucionalizada pelo próprio Estado que ocorria durante o período

da Ditadura Militar. O crime é punido pelo que ele “é” hoje, não pelo que ele “foi”

naquela determinada circunstância. Não há, portanto, uma assunção, por parte do

judiciário, de que a responsabilidade dos agentes estatais se deve pelo próprio estado de

exceção criado pelos agentes políticos, mas sim porque o crime permanece até o

presente, merecendo um resposta do Estado.

Assim, o judiciário mais uma vez concebe a ditadura militar a partir do

“esquecimento” e não da reconstrução da memória para que se tenha uma real noção do

nosso presente. Mantém-se, novamente, distante de todo o debate produzido pela

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

368

Page 369: Justica de transicao vdd memoria e justica

sociedade civil e partes do poder público. Tão concepção é assim problematizada por

Paulo Abração e Marcelo Torelly:

É evidente que já de muito foi superada a idéia de que “anistia”

significa “esquecimento”, tanto na sociedade civil, que consigna no

movimento de luta pela anistia o início do processo de

redemocratização brasileira, quanto nos debates legislativos e ações

do Executivo, que passaram a tratar a “anistia brasileira” ou como ato

de reconciliação (legislativo) ou de pedido de desculpas oficiais do

Estado pelos erros que cometeu (executivo). A anistia como

esquecimento resta afirmada apenas no poder judiciário que, por

natureza, é o poder mais conservador da República, e por setores da

academia com dificuldades em dialogar com a realidade concreta,

fixando-se a conceitos estanques e, claro, finalmente, por aqueles

setores mais reacionários da sociedade politizada, que simplesmente

não aceitam a anistia enquanto conquista democrática e

ideologicamente não admitem o dever de reparação aos perseguidos

políticos ou o consideram indevido, por ainda dialogarem com uma

idéia pouco democrática de espaço público que confunde “resistência”

com “terrorismo”. (ABRÃO e TORELLY, p. 34)

Essa postura contribui muito pouco para uma nova cultura política e jurídica

sobre o assunto, pois apesar de se fazer uma brecha para a discussão das violações de

direitos humanos no seio do poder judiciário, ainda se trabalha de forma desarticulada

os elementos da justiça de transição. Os votos dos ministros na ADPF 153, de certa

maneira, refletem um desapego ao contexto histórico de institucionalização sistemática

da tortura, do desaparecimento forçado e do sequestro como maneiras utilizadas pelo

Estado brasileiro como formas de se obter a “verdade”. E esse desapego reforça a

construção de uma memória, ou política do esquecimento, social e institucional que não

contribui para o próprio poder judiciário admitir que as violações de direitos humanos

são inadmissíveis em qualquer contexto.

Neste sentido, as palavras de Maria Rita Kehl são emblemáticas e – por

que não? – proféticas:

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça

369

Page 370: Justica de transicao vdd memoria e justica

Não há reação mais nefasta diante de um trauma social do que a

política do silêncio e do esquecimento, que empurra para fora

dos limites da simbolização as piores passagens da história de

uma sociedade. Se o trauma, por sua própria definição de real

não simbolizado, produz efeitos sintomáticos de repetição, as

tentativas de esquecer os eventos traumáticos coletivos resultam

em sintoma social. Quando uma sociedade não consegue

elaborar os efeitos de um trauma e opta por tentar apagar a

memória do evento traumático, esse simulacro de recalque

coletivo tende a produzir repetições sinistras (KEHL, p. 126)

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Page 372: Justica de transicao vdd memoria e justica

LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA E VITALICIEDADE DOS MINISTROS DO STF: UMA ABORDAGEM A PARTIR DE ESTUDOS DE OSCAR VILHENA E GERMANO

SCHWARTZ1

DEMOCRATIC LEGITIMACY AND LIFELONG TERM OF THE SUPREME COURT

JUSTICES: AN APPROACH BASED ON THE STUDIES OF OSCAR VILHENA AND

GERMANO SCHWARTZ

Roberto Carlos Rocha Kayat2

Gabriela Vieira Leonardos3

SUMÁRIO: 1. Introdução 2. O Supremo Tribunal Federal: 1964/1988 2.1. O Supremo

Tribunal Federal durante o Regime Militar 2.2. O Supremo Tribunal Federal e as

Diretas Já 2.3. O STF na Constituição de 88 e a politização da Justiça no Brasil 3. A

inadequação do sistema de composição e da vitaliciedade dos ministros do Supremo

Tribunal Federal e a proteção dos Direitos Fundamentais 4. Considerações Finais

5. Referências Bibliográficas

RESUMO: O presente trabalho examina dois casos julgados pelo STF à época do movimento

das Diretas Já, com o objetivo de aferir eventual descompasso entre o decidido pelos

ministros de então e o momento político vivido à época, a refletir grave problema de

legitimidade na atuação da Corte. A partir daí, o estudo questionará hipoteticamente a

possibilidade de tal situação se repetir no Brasil atual, em decorrência de três fatores

cumulativos: o protagonismo político do STF pós-88, a manutenção da vitaliciedade dos seus

integrantes e a crescente longevidade da população brasileira, com impactos na estruturação

1 Este artigo foi elaborado no âmbito do Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento

das Instituições (LETACI), vinculado à Faculdade Nacional de Direito e ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com financiamento da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) pela concorrência do Edital nº 9 de 2011 (Processo nº E-26/111.832/2011) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela concorrência do Edital Universal de 14/2011 (Processo n° 480729/2011-5) 2 Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Advogado da União. Professor de Direito Constitucional da Universidade Cândido Mendes. E-mail: [email protected]. 3 Graduanda em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Email: [email protected]

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Page 373: Justica de transicao vdd memoria e justica

do serviço público em geral e do Supremo em particular. O resultado da análise critica a

manutenção da vitaliciedade dos ministros.

PALAVRAS CHAVE: SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL; LEGITIMIDADE;

VITALICIEDADE

ABSTRACT: This paper examines two cases decided by the Supreme Court at the time of

"Diretas Já", in order to assess the possible mismatch between the Justices decisions and the

political moment at those times, reflecting the serious problem of legitimacy in the

performance of the Court. From there, the study tried to question hypothetically the

possibility of such a situation be repeated in Brazil today, due to cumulative three factors: the

political leadership of the post-88 STF, the maintaining of the lifelong term of its members

and the increasing longevity of the population, with impacts on the structuring of the public

service in general and particularly in the STF. The result of the analysis criticizes the

maintaining of the lifelong term of the Supreme Court Justices.

KEYWORDS: SUPREME COURT; LEGITIMACY; LIFELONG TERM

1. Introdução

O presente trabalho tem como objeto os julgamentos proferidos pelo STF no Habeas

Corpus nº 61920/84 e no Mandado de Segurança Nº 20444/84, impetrados quando o Brasil

vivia o movimento das Diretas Já. Indagar-se-á até que ponto as indicações dos Ministros da

Corte, feitas por militares em um contexto político anterior, exerceram influência negativa no

desfecho de questões jurídicas importantes para o período da transição democrática, o qual vai

de 1979 (governo de João Batista Figueiredo) a 1985 (eleição de Tancredo Neves pelo colégio

eleitoral). Tratava-se de ocasião em que se ensejava clara e facilmente aferível ruptura da

ordem jurídica anterior, razão pela qual os dois casos escolhidos permitem uma avaliação

objetiva do problema.

Pergunta-se se, e em que medida, a composição do STF, naquele momento crucial

para o restabelecimento da democracia, não estaria mais refletindo o novo momento político

pelo qual passava o Brasil. A partir do observado naqueles casos, investigar-se-ão os

problemas que eventuais descompassos de legitimação da Corte Maior podem acarretar para a

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373

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ordem democrática hoje em dia, num contexto de agigantamento das atribuições do STF, a

partir da Constituição de 88, e considerando a tensão entre a vitaliciedade dos Ministros e o

princípio republicano de alternância dos atores políticos no poder, situação que pode ganhar

contornos cada vez mais agudos em razão da questão demográfica – crescente longevidade da

população – a qual tem efeitos no estabelecimento das regras atinentes ao estatuto jurídico dos

agentes públicos, dentre os quais os membros da Corte. Neste sentido, já existem propostas de

alargar o limite etário da aposentadoria compulsória no serviço público para 75 anos de idade,

sendo que a mais concreta delas é a PEC nº 42/2003, especificamente dirigida aos Ministros

do STF.

O STF indubitavelmente tem figurado como verdadeiro ator político a partir dos

contornos institucionais que lhe foram dados pela CRFB/88. Tal cenário, somado ao

incremento da expectativa de vida, impõe a necessidade de pensar se a opção pela

vitaliciedade dos Ministros do Supremo é a mais apropriada para a nossa realidade.

Para tal análise, tomaremos as obras “Supremocracia” de Oscar Vilhena Vieira e “A

(In)adequação do Sistema de Composição e da Vitaliciedade dos Ministros do Supremo

Tribunal Federal e a Proteção dos Direitos Fundamentais” de Germano Schwartz e Diego

Dezorzi como marco teórico a partir do qual introduziremos a questão da longevidade como

elemento adicional de reflexão, e no contexto de um problema específico apontado pelo

projeto de pesquisa em questão, no âmbito da Teoria das Instituições: o fato delas muitas

vezes não responderem legitimamente às demandas sociais em sua atuação.

2. O Supremo Tribunal Federal: 1964/1988

2.1 O Supremo Tribunal Federal durante o Regime Militar

Entre 1964 e 1985, o Brasil viveu sob um regime militar que conferiu amplos

poderes ao Executivo, em detrimento das atribuições institucionais do Legislativo e do

Judiciário. Durante o período, medidas de cerceamento do Supremo Tribunal Federal

enfraqueceram o papel da Corte, a exemplo do que ocorreu com o Congresso Nacional,

fechado mais de uma vez por determinação do Executivo.

O primeiro presidente militar, general Castelo Branco, tomou posse em 1964 e, logo

quando empossado, visitou a sede do STF, sendo recebido pelo Ministro Álvaro Moutinho

Ribeiro da Costa, então presidente da Corte. Em seu discurso, o presidente Ribeiro da Costa

demonstrou que o Supremo estava disposto a colaborar com o novo governo e acrescentou

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que, em momentos de crise, era necessário fazer sacrifícios constitucionais em nome da

democracia. (PERGORARO, 2006, p. 35)

Entretanto, as reiteradas violações aos direitos fundamentais cometidas pelo Estado

geravam inúmeras ações a serem julgadas pelo STF. Questões relacionadas à liberdade de

expressão tornaram-se motivo de intensa divergência entre os ministros, que passaram a

apresentar muitas justificativas de claro caráter político-ideológico em seus votos.

Já a partir de 1964, verificaram-se casos em que o STF decidiu contrariamente aos

interesses do governo militar. Um deles foi um julgado de 24 de Agosto de 1964, relativo a

professor que, através de panfletos, manifestava-se contra o regime. No julgamento do habeas

corpus do professor Sérgio Cidade de Resende, discutia-se a liberdade de expressão e de

cátedra, defendida pela Constituição de 1946. Em julgamento conturbado, o HC foi por fim

concedido, indo claramente contra as diretrizes dos militares, causando instabilidade e

irritação dentro do governo.

Aos poucos, no entanto, casos semelhantes deixaram de ser julgados pelo STF e

passaram a ser julgados na Justiça Militar, a partir do alargamento da competência desta

última por parte do Ato Institucional nº 2. Esvaziava-se, assim, o Supremo, e as interferências

constantes do governo nos trabalhos da Corte tornavam as relações institucionais cada vez

mais conturbadas. (PERGORARO, 2006, p. 35)

Uma primeira abordagem do silêncio da Corte frente às violações ao texto

constitucional e aos princípios democráticos leva a pensar que as medidas tomadas pelo

Executivo para enfraquecê-la foram a única determinante dessa tímida atuação. Entretanto,

como pode ser visto pelo gesto do presidente do Supremo, Ministro Álvaro Moutinho Ribeiro

da Costa, o apoio e concordância com o regime já eram presentes entre os ministros desde o

início, não podendo as medidas de cerceamento institucional ser consideradas isoladamente

enquanto fator motivador da anuência ou da omissão da Corte.

Em vez disso, devem-se analisar quais outros fatos exerceram influência no

comportamento passivo do STF. De 1964 até 1985, por exemplo, trinta e dois ministros foram

nomeados por presidentes militares por meio de emendas que visavam alterar o número de

integrantes da Corte (PERGORARO, 2006, p. 40). Havia, portanto, predominância de

“adeptos” ao governo militar dentro da mais alta instância jurisdicional do país, visto que as

nomeações ficavam a cargo das pretensões dos presidentes militares, dado o histórico de

ínfima participação do Senado na escolha, em razão deste, historicamente, apenas ratificar a

indicação do presidente da república, salvo situação excepcional ocorrida durante o governo

de Floriano Peixoto, nos idos da República Velha.

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2.2 O Supremo Tribunal Federal e as Diretas Já

O último dos generais presidentes, João Batista Figueiredo, assumiu em março de

1979, em meio a uma difícil conjuntura política e econômica. Figueiredo acelerou o processo

de abertura “lenta e gradual”, iniciado no governo anterior de Ernesto Geisel, por meio de

transformações institucionais, tendo a mobilização da sociedade civil contribuído fortemente

para o avanço do processo de abertura política. Dentre os marcos desse período, têm-se a

aprovação da “Lei da Anistia”, que concedeu anistia política aos cidadãos punidos pelos Atos

Institucionais, e a promoção de uma reforma partidária, reestabelecendo o pluripartidarismo

no Brasil, na tentativa de garantir a vitória do governo nas eleições de 1979, através da

dissociação das forças partidárias de oposição.

Em 1982 houve eleições diretas. No Congresso, o PDS (antiga ARENA, partido da

situação) elegeu a maior bancada, e a oposição (PMDB, PP, PTB, PDT e PT) triunfou nas

eleições para governadores. Logo em seguida, a campanha pelas “Diretas Já” surgiu,

reivindicando eleições diretas também para presidente da República, que aconteceriam, a

princípio, por via indireta, em 1985. (PERGORARO, 2006, p. 39)

A campanha foi fruto da proposta de emenda à Constituição do deputado federal do

PMDB Dante de Oliveira, e recebeu largo apoio da sociedade civil. O uso maciço da TV na

política foi um dos marcos do movimento, que reuniu mais de um milhão pessoas em

comícios na Candelária, no Rio de Janeiro, e no Vale do Anhangabaú, em São Paulo. As

manifestações populares eram televisionadas e o desejo da maioria dos brasileiros pela volta

das eleições diretas para presidente era inegável.

Para impedir o televisionamento da votação da Emenda, o governo militar baixou o

Decreto n. 89.566 de 18.4.1984, impondo medida de emergência na capital federal e

municípios adjacentes. A medida se justificava pela “necessidade de preservar a ordem

pública na área do Distrito Federal, ameaçada de grave perturbação”, como previa o decreto

editado. Tais medidas coercitivas eram autorizadas pela Constituição de 67/69 no artigo 155,

o qual previa que o “Presidente da república, para preservar ou, prontamente, restabelecer, em

locais determinados e restritos a ordem pública ou a paz social, ameaçadas ou atingidas por

calamidades ou graves perturbações que não justifiquem a decretação dos estados de sítio ou

de emergência, poderá determinar medidas coercitivas autorizadas nos limites fixados por § 2º

do artigo 156(...)”.

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Assim, baseava-se o decreto nas alíneas do artigo 156, parágrafo segundo, o qual

dispunha sobre o estado de sítio, para garantir a censura aos meios de telecomunicação, que

estariam impossibilitados de realizar a transmissão da votação da emenda Dante, e evitar uma

mobilização ainda maior da população.

É nesse contexto que foram impetrados o habeas corpus número 61.920 e o mandado

de segurança número 20.444, levados à apreciação do STF em 24 de Abril de 1984, dia em

que ocorreria a votação da Emenda no Congresso Nacional.

Na primeira ação, o HC 61.920-7/DF, os impetrantes Osvaldo Gomes e Clésia Pinho

Pires alegaram que o decreto presidencial era fruto de ilegalidade e abuso de poder.

Argumentaram que a medida de emergência era prevista pelo artigo 81, inciso XVI, da

Constituição de 67/69, dispositivo constitucional “não auto-executável”, no entender dos

autores, “ao contrário do que ocorre com o estado de sítio e o estado de emergência, que são

definidos nos parágrafos do art. 156, que lhes determina as condições e o regulamento”

Pode-se questionar a fundamentação jurídica do pedido. As medidas de emergência

foram previstas pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978, cuja redação4 expressamente

4 Art. 81. Compete privativamente ao Presidente da República: (.............) XVI - determinar medidas de emergência e decretar o estado de sítio e o estado de emergência; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978) (............) Art. 155 - O Presidente da república, para preservar ou, prontamente, restabelecer, em locais determinados e restritos a ordem pública ou a paz social, ameaçadas ou atingidas por calamidades ou graves perturbações que não justifiquem a decretação dos estados de sítio ou de emergência, poderá determinar medidas coercitivas autorizadas nos limites fixados por § 2º do artigo 156, desde que não excedam o prazo de 60 (sessenta) dias, podendo ser prorrogado uma vez e por igual período.(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978) § 1º - O presidente da república, dentro de 48 (quarenta e oito) horas, dará ciência das medidas a Câmara dos Deputados e ao Senado Federal, bem como das razões que as determinaram. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978) § 2º - Na hipótese da determinação de novas medidas, além daquelas iniciais, proceder-se-á na forma do parágrafo anterior. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978) (............) Art. 156 - No caso de guerra ou a fim de preservar a integridade e a independência do País, o livre funcionamento dos Poderes e de suas instituições, quando gravemente ameaçados ou atingidos por fatores de subversão, o Presidente da república, ouvindo o conselho de segurança Nacional, poderá decretar o estado de sítio.(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978) § 1º - o decreto de estado de sítio especificará as regiões que essa providência abrangerá e as normas a serem observadas, bem como nomeará as pessoas incumbidas de sua execução. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978) § 2º - O estado de sítio autoriza as seguintes medidas coercitivas; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978) a) obrigação de residência em localidade determinada; (Incluída pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978) b) detenção em edifícios não destinados aos réus de crimes comuns; (Incluída pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978) c) busca e apreensão em domicílio; (Incluída pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978) d) suspensão da liberdade de reunião e de associação; (Incluída pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978) e) intervenção em entidades representativas de classes ou categorias profissionais; (Incluída pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978)

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remeteu a regulamentação da medida de emergência às mesmas especificações estabelecidas

para o estado de sítio, o que coloca em xeque a argumentação de que a medida de emergência

seria “não auto-executável”, “ao contrário do que ocorre com o estado de sítio e o estado de

emergência, que são definidos nos parágrafos do art. 156, que lhes determina as condições e o

regulamento”.

Contudo, a proibição da transmissão televisiva da emenda Dante alcançaria todo o

território nacional, e poder-se-ia, aí sim, discutir eventual violação ao disposto no art. 155,

que limitava as medidas de emergência a locais “determinados e restritos”. Contudo, o

Supremo evitou tal discussão ao apegar-se a vício de índole puramente processual: declarou

não conhecer do pedido do habeas corpus, em razão de o coator ter sido o Comandante Militar

do Planalto, nomeado pelo decreto presidencial como executor das medidas de emergência, e

não o Presidente. Dessa forma, aduziu o tribunal que o Comandante não se enquadrava nos

casos em que competia originariamente ao STF o julgamento de habeas corpus, previstos na

Constituição da República de 67/69, no seu artigo 119, inciso I, alínea “h”, não estando,

portanto, sujeito à jurisdição do Tribunal.

Poderia o STF ter conhecido do Habeas Corpus de ofício, ao menos para debater a

respeito do eventual desrespeito aos termos do artigo 155.

Atacando de modo específico a questão da concessão de efeitos nacionais a medida

de emergência, foi impetrado o MS nº 20.444/SP por Geraldo Forbes, editorialista do jornal

“O Estado de S. Paulo”, economista e empresário. No artigo 155 da Constituição de 67/69,

restava claro que as medidas de emergência deveriam ser restritas a locais determinados.

Muito embora o decreto em questão especificasse o Distrito Federal e outros municípios do

entorno aos quais se aplicava a medida, em realidade censurava todo o território nacional,

f) censura de correspondência, da imprensa, das telecomunicações e diversões públicas; e uso ou ocupação temporária de bens das autarquias empresas públicas sociedades de economia mista ou concessionárias de serviços públicos, bem como a suspensão do exercício do cargo, função ou emprego nas mesmas entidades.(Incluída pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978) § 3º A duração do estado de sítio salvo em caso de guerra, não será superior a 180 (cento e oitenta) dias, podendo ser prorrogada, se persistirem as razões que o determinaram. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978) § 4º - O decreto de estado de sítio ou de sua prorrogação será submetido, dentro de 5 (cinco) dias, com a respectiva justificação, pelo Presidente da República ao Congresso Nacional. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978) § 5º - Se o Congresso Nacional não estiver reunido será convocado imediatamente pelo Presidente do Senado Federal. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978) § 6º - Durante a vivência do estado de sítio e sem prejuízo das medidas previstas no artigo 154 também o Congresso Nacional, mediante lei, poderá determinar a suspensão de outras garantias constitucionais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978) § 7º - As imunidades dos deputados federais e senadores poderão ser suspensas durante o estado de sítio por deliberação da Casa a que pertencem. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978)

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através de dispositivo que estabelecia que “as gravações em vídeo-tape realizadas na área e

nos Municípios a que se refere este artigo deverão ser, antes de transmitidas, examinadas

previamente pelo órgão competente do Departamento da Polícia Federal”, o que implicara

censura e gerara restrição de liberdades em regiões do país que não se encontravam sob os

efeitos da medida de emergência.

Contudo, o ministro Moreira Alves, relator, decidiu que a “impetração ataca

inequivocamente ato normativo em tese”, que seria o decreto presidencial, e que a Corte não

poderia conhecer da impetração, pois, de acordo com a súmula 266 “não cabe mandado de

segurança contra lei em tese”. No mais, repetiu-se o argumento utilizado no caso

anteriormente exposto: “O ato cuja realização se quer impedir é da competência de autoridade

que não é o Presidente da República e que não se acha arrolada no inciso I, letra “i”, do artigo

119 da Constituição Federal”. O mandado de segurança foi indeferido por unanimidade.

No entanto, a competência para determinar medidas de emergência era privativa do

Presidente da República, nos exatos termos do artigo 81, inciso XVI, da Carta de 67/69.

Como aponta Oscar Vilhena, ao contrário do que sugeriam as reiteradas decisões do STF, não

haveria, “portanto, [...] possibilidade legal de as medidas serem de responsabilidade de outra

autoridade que não o Presidente (Art. 81, XVI, CF 1967/69).” (VIEIRA, 2002. apud.

PERGORARO, 2006, p. 43)

Quanto à suposta impetração contra lei em tese, o voto do Ministro Relator apenas

apontou, laconicamente, que

“A presente impetração ataca inequivocamente ato normativo em tese

(Decreto 89566, de 18.04.1984). Com efeito, sustenta ela, em última

análise, a inconstitucionalidade dos dispositivos desse Decreto que

dizem respeito à censura de meios de comunicação.”

O julgado limitou-se a estabelecer que a impetração “atacava lei em tese”. Não

elucidou por quais motivos assim decidiu. Em princípio, seria necessária ao menos uma

análise mais detalhada dos argumentos do impetrante para se chegar a tal conclusão

peremptória, ainda mais se levarmos em conta que a jurisprudência do STF posiciona-se no

sentido do cabimento do mandado de segurança contra decreto, desde que este apresente

efeitos concretos, não se aplicando, nesta hipótese, a súmula nº 266.

Assim, vislumbra-se, nos casos em comento, um Supremo que, por detrás de um

biombo de questões formais, protegeu ao máximo a figura do presidente da República,

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olvidando direitos de liberdade de expressão, de informação e de locomoção que estavam

sendo restringidos em virtude do cumprimento do decreto presidencial em questão, em afronta

à Constituição vigente à época.

Observando-se o quadro de ministros do STF no ano de 1985, percebe-se que todos à

época da votação dessas ações haviam sido indicados por presidentes militares: Djaci Falcão,

por Castello Branco; Soares Muñoz, Cordeiro Guerra, Moreira Alves, Décio Miranda e Rafael

Meyer por Ernesto Geisel; Néri da Silveira, Oscar Corrêa e Alfredo Buzaid por João

Figueiredo.

Uma análise mais profunda nos leva a perceber, portanto, que uma das causas para o

comportamento da Corte poderia decorrer do alinhamento ideológico de seus ministros com o

regime. A postura do Supremo perdurou até os tempos democráticos e foi especialmente

visível nesse momento de ruptura com a ordem política militar. Com o governo já

enfraquecido e sem tantas limitações e restrições impostas pelos AIs, o STF teve grandes

oportunidades de atuação em prol da abertura política e da transição para a democracia. No

entanto, assumiu reiteradas vezes postura retrógrada e inconsistente com as mudanças

clamadas pela população, já no fim do regime.

Nesse sentido, aponta Vilhena (VIEIRA, 2002. apud. PERGORARO, 2006, p. 42)

que “o Supremo colaborou para a transição no ritmo estabelecido pela agenda do Planalto. Em

diversos episódios onde se buscou o Supremo, tiveram os litigantes suas pretensões frustradas

por um tribunal submisso à vontade dos militares.” Portanto, o processo de sucessão do

Presidente ocorreu com o aval do STF e como fora desejada pelos militares: eleições indiretas

limitadas ao Colégio Eleitoral.

A falta de sintonia entre os ministros do Supremo e o momento político que vivia a

sociedade, muito visível naquele momento de transição, era, ao menos em parte, fruto direto

das indicações políticas feitas pelos presidentes militares, consubstanciando-se assim um

grande descompasso entre a composição da Corte e a realidade política corrente, daí advindo

forte crise de legitimidade. Estaríamos livres de tal problema nos dias de hoje?

2.3 O STF na Constituição de 88 e a politização da Justiça no Brasil

Após a promulgação da Constituição de 88, o STF passou a figurar no centro do

nosso sistema político. Embora tenha desempenhado um papel importante nos regimes

constitucionais anteriores, como na Primeira República ou no início do período militar,

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quando ainda proferia decisões contrárias ao governo, não há como se comparar tais situações

com a atual proeminência que possui a Corte.

Ao contrário do papel secundário que lhe era atribuído no momento histórico

imediatamente anterior (final do regime militar), viu-se, no Brasil redemocratizado, um

paulatino deslocamento da autoridade política do sistema representativo para o Judiciário. A

expansão da autoridade dos tribunais, entretanto, não é um fenômeno exclusivo do Brasil e é

objeto constante de estudos e pesquisas que procuram compreender o avanço dos tribunais em

detrimento dos parlamentos e a influência do direito sobre a política.

Muitos enxergam a ampliação do papel do direito e do judiciário como uma

decorrência da retração do sistema representativo, ineficaz na tarefa de produzir a justiça e a

igualdade social, ideais tão caros à ordem constitucional democrática. Outros veem o controle

de constitucionalidade, importado dos Estados Unidos para o Brasil, como fator crucial para

esse deslocamento de poder em direção ao Judiciário. Oscar Vilhena pondera nesse sentido:

“Este processo de expansão da autoridade judicial, contudo, torna-se

mais agudo com a adoção de constituições cada vez mais ambiciosas.

Diferentemente das constituições liberais, que estabeleciam poucos

direitos e privilegiavam o desenho de instituições políticas voltadas a

permitir que cada geração pudesse fazer as suas próprias escolhas

substantivas, por intermédio da lei e de políticas públicas, muitas

constituições contemporâneas são desconfiadas do legislador, optando

por sobre tudo decidir e deixando ao legislativo e ao executivo apenas a

função de implementação da vontade constituinte, enquanto ao

judiciário fica entregue a função última de guardião da constituição. A

hiper-constitucionalização da vida contemporânea, no entanto, é

consequência da desconfiança da democracia e não a sua causa.”

(VIEIRA, 2008)

“Desconfiança da democracia” é um aspecto interessante a ser apontado e que

poderia ser colocado como mais um fator para a proeminência do STF no caso brasileiro. Em

momentos de transição, as constituições em geral buscam demarcar as diferenças entre o

regime deposto e aquele que pretendem instaurar. No caso do Brasil, a Constituição de 88,

tendo como objetivo o restabelecimento da democracia no país, previu formalmente em seu

texto diversos direitos fundamentais individuais, coletivos e difusos. Ademais, dotou os

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tribunais de especiais poderes para defendê-los e criou novos meios para reclamar as suas

eventuais violações, que poderiam ser cometidas pelos poderes públicos ou por particulares.

Essa hiperconstitucionalização brasileira, singular em termos de proteção a direitos e de

atribuições dadas ao Supremo, poderia ser vista, portanto, como um reflexo da “desconfiança”

de uma nova e recém instaurada ordem democrática. (VIEIRA, 2008)

Assim, a constituição transcendeu os assuntos puramente constitucionais e passou a

regular relações sociais, econômicas e públicas, tornando todos esses assuntos “matéria

constitucional” e dando ao corpo político pouco espaço para atuação. Nas palavras de Oscar

Vilhena,

“a constituição de 1988, mais uma vez preocupada em preservar a sua

obra contra os ataques do corpo político, conferiu ao Supremo Tribunal

Federal amplos poderes de guardião constitucional. Ao Supremo

Tribunal Federal foram atribuídas funções que, na maioria das

democracias contemporâneas, estão divididas em pelo menos três tipos

de instituições: tribunais constitucionais, foros judiciais especializados e

tribunais de recursos de última instância.” (VIEIRA, 2008)

A Constituição de 88, portanto, através da ampliação das atribuições do STF,

redefiniu seu papel no sistema constitucional, garantindo-lhe grande influência na política do

país. A constitucionalização de inúmeros temas, a ampliação do rol de autores legítimos a

propor Ações Diretas de Inconstitucionalidade, a criação da Ação Direta de

Inconstitucionalidade por Omissão e o Mandado de Injunção são exemplos dessa ampliação

de competências do STF que geraram um inchaço do Judiciário e consolidaram sua posição

de importância no cenário político nacional. Um verdadeiro player político.

Um bom exemplo da influência das decisões do STF no processo político pode ainda

ser visto nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade, por meio das quais se estabelece

uma cooperação entre Governo e Supremo Tribunal Federal. Esse tipo de ação permite que o

Supremo suspenda o controle de constitucionalidade por via difusa, declarando a

constitucionalidade de uma norma que tem a sua legitimidade questionada e combatida nos

tribunais inferiores. Essa atribuição dá ao STF o poder de assegurar a governabilidade e o

cumprimento de uma norma editada pelos poderes representativos, tornando a norma imune a

qualquer impugnação por parte dos cidadãos.

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Ao exercer o controle concentrado de constitucionalidade de matérias de patente

relevância, corrigindo e até mesmo anulando escolhas políticas fundamentais exteriorizadas

pela produção do Legislativo, representante da vontade geral, o Supremo assume

inegavelmente um papel destacado no cenário político nacional. (VIEIRA, 2008)

Cabe ressaltar que, apesar de todas as mudanças aqui mencionadas, o sistema de

nomeação dos ministros do STF permaneceu o mesmo na nova Constituição. Previsto no

artigo 1015, a nomeação se dá pelo Presidente da República, dentre cidadãos com mais de

trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação

ilibada, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal.

Esta tendência da jurisdição constitucional do STF, cada vez mais invasora da esfera

política dos poderes eleitos, estimularia o Presidente da República a escolher os Ministros

pelo critério político partidário, de modo a garantir a chancela do STF às decisões políticas

tomadas pela Presidência. Esse aspecto da politização da justiça pôde ser claramente

percebido durante o regime militar, muito embora ocorresse sob outros moldes, e é patente até

hoje.

Durante o período de transição política analisado, percebeu-se no Brasil uma clara

dissonância entre os ministros do Supremo e as demandas da população naquele particular

momento da história. Com a promulgação da Constituição de 88, e a assunção de papel

político pelo STF, a manutenção da forma de nomeação dos ministros para a Corte e a

vitaliciedade do cargo de Ministro, tal problemática perenizou-se em nossa realidade. O

questionamento em torno da adequação de ministros nomeados em outros momentos

políticos, econômicos e sociais para o julgamento de questões que demandam um

reconhecimento de novos valores e de uma nova realidade será sempre levantado. Quando se

tem uma forte atuação política da Corte, como atualmente ocorre, o problema da vitaliciedade

de seus membros se agrava ainda mais.

“No exercício destas funções que lhe vem sendo atribuídas pelos

distintos textos constitucionais ao longo da história republicana,

ousaria dizer, emprestando a linguagem de Garapon (1996), que, nos

últimos anos, o Supremo não apenas vem exercendo a função de órgão

de "proteção de regras" constitucionais, face aos potenciais ataques do 5 Art. 101. O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze Ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada. Parágrafo único. Os Ministros do Supremo Tribunal Federal serão nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal.

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sistema político, como também vem exercendo, ainda que

subsidiariamente, a função de "criação de regras"(GARAPON, 1996);

logo, o Supremo estaria acumulando exercício de autoridade, inerente

a qualquer interprete constitucional, com exercício de poder. Esta

última atribuição, dentro de um sistema democrático, deveria ficar

reservada a órgãos representativos, pois quem exerce poder em uma

república deve sempre estar submetido a controles de natureza

democrática (DAHL, 1989).” (VIEIRA, 2008)

Faltaria aos ministros do STF, portanto, legitimidade democrática para agirem em

substituição aos atores políticos eleitos, como tem ocorrido após 88. Além de não serem

eleitos pela população, são vitalícios em suas funções. A composição do Supremo e sua

adequação a nossa realidade devem ser, portanto, questionados, inclusive na medida em que a

longevidade cada vez maior da população em geral tem reflexos na composição do serviço

público.

3. A inadequação do sistema de composição e da vitaliciedade dos ministros do

Supremo Tribunal Federal e a proteção dos Direitos Fundamentais

A composição das cortes constitucionais é apontada pela doutrina como fator

legitimador das suas decisões. Fala-se da perda de legitimidade do STF em virtude de

inúmeros aspectos; porém, faz-se necessária inicialmente a divisão entre legitimidade de

origem e legitimidade de exercício. (SCHWARTZ; DEZORZI, 2010, p.187) A primeira se

refere a toda à credibilidade da instituição e à forma de seleção dos magistrados. Em última

análise, reside na soberania popular, pois é proveniente do Poder Constituinte originário,

como ressalta Favoreu (2004, p. 34), e deve-se ao fato de seus membros serem designados por

autoridades democraticamente eleitas. A legitimidade de exercício, por outro lado, implica a

existência de uma distância segura do Tribunal em relação à vinculação partidária, devendo

seus membros ser neutros e livres de influências partidárias. Implica ainda a observância dos

requisitos mínimos para a nomeação, bem como as garantias que lhes são outorgadas e as

limitações que lhes são impostas.

O formato de indicação política dos ministros do STF é alvo de diversas críticas por

permitir um vínculo indesejado entre o Supremo e o chefe do Executivo, prejudicando a

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neutralidade de atuação da Corte e atacando diretamente a sua legitimidade de exercício.

Assim, torna-se necessária a fixação de parâmetros a serem observados nessa escolha

subjetiva do Presidente, com o intuito de garantir, tanto quanto possível, uma legitimidade de

exercício ao Tribunal.

A fixação de idade mínima e máxima para o exercício do cargo, além da exigência

de capacitação técnica e de diversidade cultural têm sido os pontos mais adotados como

limitação ao poder de seleção. A idade mínima se explica pela necessidade de experiência que

o cargo demanda, enquanto a idade máxima é comum em países que estipulam uma

aposentadoria compulsória e se explica pela perda de dinamicidade exigível para o

desempenho das funções. A exigência de capacitação técnica é a mais eficaz das medidas

contra a influência política que órgãos e grupos de interesse podem exercer no momento da

indicação. (SCHWARTZ; DEZORZI, 2010, p.185)

Devido à grande amplitude das competências que são atribuídas ao Tribunal, e por

este ser encarregado de julgar matérias constitucionais ligadas a princípios, direitos

fundamentais e cláusulas abertas, torna-se indispensável uma Corte de composição plural,

capaz de olhar de forma mais ponderada uma sociedade multicultural. A diversidade na

composição do STF é, portanto, o último fator que costuma figurar como limitador da

discricionariedade do chefe do Executivo no momento da indicação (SCHWARTZ;

DEZORZI, 2010, p.185) É um aspecto que não deve ser olvidado por ser de particular

importância para um país plural como o Brasil.

Esse pluralismo desejado para o Supremo Tribunal Federal poderia ser tido como

lato sensu, subdividindo-se em três outros aspectos: pluralismo stricto sensu,

representatividade e complementaridade. O primeiro consistiria em “evitar o predomínio de

uma única tendência política na composição da corte, visto que conduziria a uma

homogeneidade do seu posicionamento com o do governo e comprometeria sua capacidade de

controle”. O segundo, por sua vez, se relaciona com a representatividade de minorias e

apresenta-se como a necessidade de que as várias tendências e segmentos da sociedade

estejam contemplados no Tribunal, considerando as diversidades linguísticas, étnicas e

religiosas de cada grupo. O terceiro, por fim, procura garantir uma composição de membros

oriundos de diversas atividades profissionais (juízes, advogados, professores, entre outros)

para assegurar a multiplicidade de experiências e horizontes. (SCHWARTZ; DEZORZI,

2010, p.189)

Todos esses aspectos ligados ao pluralismo (lato sensu) conferidores de legitimidade

de exercício ao Supremo, ainda que plenamente implementados, são contudo eclipsados pelo

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mandato vitalício dos ministros. A vitaliciedade, ao impossibilitar uma renovação regular do

quadro do tribunal, faz com que as modificações na conjuntura política não sejam

acompanhadas por modificações na composição interna do Tribunal, o que pode levar a

resultados negativos, como vimos nos dois casos analisados. Os ministros do STF, por mais

que componham um quadro marcadamente plural, representativo e complementar, não são

imunes à passagem do tempo e à dinamicidade das forças sociais. A disparidade entre suas

decisões e os anseios sociais eventualmente passará a ocorrer, causando uma perda de

legitimidade de exercício, como ocorreu no Brasil no período de 1979 a 1985. E tal

disparidade é diretamente proporcional ao crescimento da expectativa de vida da população,

que refletirá no aumento médio da duração dos mandatos dos ministros do STF.

Nesse sentido, temos a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n° 42 de 2003,

prevendo aumento do limite da aposentadoria compulsória dos Ministros do STF para 75

anos. A proposta foi aprovada no âmbito do Senado e, atualmente, encontra-se em tramitação

na Câmara dos Deputados, com chances reais de aprovação.

4. Considerações Finais

Em razão da atuação política do STF, a forma de escolha de seus ministros ofenderia

as ideias básicas de democracia, que repousam no governo da maioria, na periodicidade dos

governantes e na participação popular. Considerando que o Senado historicamente não atua de

modo a questionar uma indicação presidencial, faz-se necessário pensar em outros meios de

composição do STF de forma que a nomeação não seja unicamente dependente da vontade do

Presidente para se concretizar. A maior independência e participação popular na formatação

subjetiva seriam meios, ao lado da possibilidade de implementação de mandatos temporários,

de conferir maior legitimidade ao Tribunal, instituindo a rotatividade no poder como manda o

princípio republicano.

A vitaliciedade dos ministros é um fator agravante dessa problemática, pois vai de

encontro a qualquer princípio de alternância no poder. Nesse diapasão, o presente trabalho

levanta ainda uma outra variável essencial para essa análise: a questão demográfica e o

aumento da expectativa de vida do brasileiro.

Dada a crescente expectativa de vida da população brasileira, é cada vez mais

provável que os ministros permaneçam ativos e com saúde em seus cargos até a data limite de

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seu exercício. A análise das Tábuas de Mortalidade (IBGE) 6 para o total da população

brasileira, entre os anos de 2006 e 2011, para ambos os sexos, mostra que o aumento da

expectativa de vida ao nascer foi acompanhado por um aumento da expectativa de vida em

todas as faixas etárias. Para fins específicos dessa pesquisa, tomou-se como foco o período

compreendido entre as idades mínimas e máximas possíveis para a nomeação de um ministro

(35 a 65 anos de idade).

Dentro dessa limitação etária, observou-se que um ministro nomeado aos 35 anos,

em 2006, teria expectativa de vida de mais 41,5 anos. De maneira sempre ascendente ao longo

dos anos, em 2011 esse número chegou a 42,2 anos, sobrevivendo-se até os 77,2 anos. Já um

ministro nomeado aos 65, teve sua expectativa de vida aumentada de 17,5 em 2009 para 17,9

em 2011, podendo, portanto, sobreviver até 83 anos de idade. Considerando a idade média de

nomeação para ministros do STF 52 anos 7, tem-se, nessa idade, segundo os dados do IBGE

para o ano de 2011, uma expectativa de vida de mais 27,5 anos. Em média um Ministro do

STF viveria, portanto, até 79,5 anos.

Desse modo, mostra-se extremamente preocupante a proposta que surgiu dentro do

próprio Supremo para aumentar a idade de aposentadoria compulsória para 75 anos,

materializada na PEC 42. Vivemos frequentemente momentos de transição decorrentes de

“rupturas” de paradigmas sociais antes tidos como inquestionáveis (caso das uniões

homoafetivas levado à apreciação do STF, por exemplo) de forma que quanto mais tempo um

ministro permanecer na Corte, maiores serão as chances de suas concepções de mundo e a

realidade corrente vivida pela população entrarem em choque.

Tendo como base a idade de aposentadoria compulsória atual (70 anos) e tomando

como exemplo o Ministro Dias Toffoli, cuja posse se deu em 2009, aos 42 anos, pergunta-se

como estará o Brasil em 2037, ano em que o ministro compulsoriamente será aposentado.

Será o mesmo capaz de se renovar, continuamente, enquanto magistrado e enquanto ser

humano, de forma a produzir, pelos próximos 28 anos, decisões adequadas à realidade social

vigente em cada momento até lá?

Impossível prever a exata resposta dessa questão. No entanto, vale refletir: há exatos

28 anos o Brasil vivia o ano de 1985. Em meio à votação das Diretas Já, vivia o indeferimento 6 Em cumprimento ao disposto no Art. 2o do Decreto no 3.266, de 29 de novembro de 1999, o IBGE divulga, até o dia 1º de Dezembro, anualmente a Tábua Completa de Mortalidade para o total da população brasileira, referente ao ano anterior. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/tabuadevida/2011/default.shtm 7 Através da média aritmética das idades dos atuais ministros do STF à época de suas nomeações. Dias Toffoli,

42 anos; Celso de Mello, 44 anos; Marco Aurelio Melo, 44 anos; Gilmar Mendes, 47 anos; Joaquim Barbosa, 49 anos; Carmen Lúcia, 52; Ricardo Lewandowski, 58 anos; Luis Fux, 58 anos; Rosa Weber, 63 anos; e Teori Zavascki, 64 anos.

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dos habeas corpus e mandados de segurança impetrados pela oposição contra o decreto

presidencial n. 89.566. O mundo, em 1985, vivia sob a ameaça nuclear da Guerra Fria; a

América Latina vivia sua “década perdida” na economia; a Microsoft lançava o Windows 1.0

como seu sistema operacional e a comunidade global era alertada, pela primeira vez, para a

existência de um buraco na camada de ozônio.

Possivelmente um ministro nomeado à época, com 42 anos, e tendo ainda 28 anos

pela frente, não produziria decisões adequadas ao Brasil de 2013. Somos atualmente um país

politica e economicamente estável, com uma democracia consolidada; inserido numa

revolução tecnológica em que se discutem os direitos à informação, à privacidade e à

liberdade de expressão, agora aplicados ao mundo virtual; somos parte atuante numa corrente

mundial de conscientização e proteção ao meio ambiente, com uma Constituição garantidora

de direitos difusos a um meio ambiente equilibrado. E talvez a maior diferença entre todas

essas: somos, 28 anos depois, um país que tem a dignidade da pessoa humana como base

principal de nossa ordem constitucional.

Dessa forma, sendo o STF inequivocamente um ator político após 88, tanto quanto os

Poderes eleitos, deve se sujeitar ao Princípio Republicano - mandatos fixos e rotatividade no

poder. E a questão demográfica aqui levantada impõe que se faça tal opção o quanto antes, de

modo a se evitar déficits de legitimidade semelhantes ou mesmo mais graves que os

verificados quando da votação da Emenda Dante de Oliveira.

5. Referências Bibliográficas

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