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3 JORNAL SANTUÁRIO DE APARECIDA •19 DE FEVEREIRO DE 2012 OPINIÃO / DEBATE Pe. Leo Pessini [email protected] A dor e o sofrimento são companhei- ros da humanidade desde tempos imemo- riais. Seu controle e alívio constituem-se hoje uma das competências e responsa- bilidades éticas fundamentais dos profis- sionais da saúde. Essa ação constitui-se num indicador fundamental de qualidade de cuidados, bem como de assistência integral ao paciente, no âmbito da saúde. A dor é um sintoma e uma das causas mais frequentes da procura pelos servi- ços de saúde. Em muitas instituições de saúde humanizadas, a dor é reconhecida como quinto Sinal Vital integrado na prática clínica. Se a dor for cuidada com o mesmo zelo que os outros sinais vitais (temperatura, pressão arterial, respiração e frequência cardíaca), sem dúvida have- rá muito menos sofrimento. Os objetivos da avaliação da dor são identificar a causa, bem como compreender a experiên- cia sensorial, afetiva, comportamental e cognitiva da pessoa para implementar seu alívio e cuidado. SÉRIE CF 2012 | NÃO REDUZIR A PESSOA AO CORPO, À BIOLOGIA, PURA E SIMPLESMENTE, É GRANDE DESAFIO Cuidando da dor e sofrimento humanos Hoje se reconhece que a dor é uma doença. De acordo com a definição da Organização Mundial da Saúde (OMS), a saúde “é um estado de completo bem- estar, físico, mental e social, e não somente a ausência de doença ou de mal-estar”. É evidente que as condições dolorosas são um estado de mal-estar; portanto, o ser humano que sofre de dor não está sadio e pode-se afirmar legitimamente que se está violando seu direito inalienável à saúde. O artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos reconhece como um dos direi- tos dos seres humanos “um nível de vida adequado para a saúde e o bem-estar”. Infelizmente, a saúde e o bem-estar nem sempre são uma opção possível. Ocorre que, em inúmeras situações, muitas pessoas, devido à velhice ou às doenças, sentem dor e sofrem muito no final da vida. A falta de um tratamento adequado para a dor é uma das maiores injustiças e uma causa importante de grandes sofrimentos e de desespero. A premissa filosófica e humanística da proposta de considerar o tratamento da dor como um direito humano fundamental é a busca legítima de reconhecimento explí- cito e de que se proclame e promova o tratamento da dor por si mesmo à categoria de um dos direitos fundamentais do ser humano. O reconhecimento intrínseco do tratamento da dor como um Direi- to Humano incluído no direito à saúde é importante, mas insufi- ciente. Além desse princípio de elevar o tratamento da dor à cate- goria de um dos direitos funda- mentais do ser humano, busca-se dar-lhe uma estrutura legal, aliviar a dor, eliminar a opção pela euta- násia como medida desesperada para pôr fim ao sofrimento, prover qualidade de vida àqueles que são vítimas dessa tortura e levar paz e esperança às famílias das pessoas que padecem do terrível flagelo da dor. Ouvimos com frequência no âmbito dos cuidados de saúde pessoas dizendo: “não tenho medo de morrer, mas sim de sofrer e sentir dor”. Ou então outros que dizem: “dói o coração”, “dói a alma”. Pois bem, essas são expressões metafóricas de um sofrimento interior. É importante que distingamos os conceitos de dor e de sofrimento. O corpo sente dor e essa se liga ao sistema nervoso central. Para tratar essa dor necessita- mos de medicamentos, analgésicos. Já o sofrimento atinge a pessoa como um todo. Mais que um problema de técnica farmacológica, constitui-se num desafio ético perante o qual nosso enfrentamento e cuidado se fazem a partir da atribuição de um sentido e valores transcendentes, como demonstrou com sua própria vida o Dr.Victor Frankl, sobrevivente de campo de concentração nazista. Há uma preciosa afirmação antropo- lógica na exortação apostólica Salvifici Doloris: “o sofrimento humano suscita compaixão, inspira também respeito e, a seu modo, intimida. Nele, efetivamente, está contida a grandeza de um mistério especifico” (João Paulo II). Reflitamos rapidamente sobre o sentido dessa afirmação. O sofrimen- to suscita compaixão, isto é, empa- tia traduzida em ação solidária e não somente uma exclamação anestesiadora de consciência: “que pena”, “que dó”. A indiferença simplesmente é um fator desumanizante que aumenta mais a dor e o sofrimento. O sofrimento susci- ta respeito também. Em quem muito sofre acabamos criando uma auréola de sacralidade. Quando uma crian- ça que nasce com seríssimos proble- mas genéticos, por exemplo, os que a cuidam não se intimidam em dizer “é um(a) santinho(a)”. O sofrimento igualmente nos infunde temor, medo, porque vemos como que em um espelho a nossa fragilidade, vulnerabilidade e mortalidade, dimensões de nossa existência humana que nem sempre gostamos de lembrar. Pe. Leo é presidente das Entidades Camilianas e Doutor em Teologia Moral – Bioética Divulgação / ComunicaçãoSãoCamilo Desde o dia 12 de fevereiro, o JS publica uma série de artigos exclusivos de autoria de padres camilianos, que têm como carisma o cuidado dos doentes. Você pode conferir todos os textos na internet. Acesse http://bit.ly/artigosjs_CF2012 É procurando traduzir em gestos concretos o valor da pessoa humana em termos de autocuidado que estaremos mais bem preparados para cuidar da vida, com humanismo e competência técnico-científica. Quem cuida do cuida- dor? Considerar a pessoa não simples- mente como um corpo, não reduzindo-a à biologia, pura e simplesmente, é um grande desafio. Uma visão holística, multi, inter e transdiciplinar, é imperio- sa. O ser humano é um todo uno, um nó de relações. Ser gente é possuir corpo, é ter um psiquismo e coração, é conviver com os outros, cultivar uma esperança e crescer na perspectiva de fé em valores humanos. É zelando, promovendo e cuidando dessa unidade vulnerável pela dor e sofri- mento que estaremos sendo instrumentos propiciadores de vida digna. Quem cuida e se deixa tocar pelo sofrimento humano do outro se torna um radar de alta sensi- bilidade, humaniza-se no processo e, para além do conhecimento científico, tem a preciosa chance e o privilégio de crescer em sabedoria. Essa sabedoria nos coloca na rota da valorização e desco- berta de que a vida não é um bem a ser privatizado, muito menos um problema a ser resolvido nos circuitos digitais e eletrônicos da informática, mas um bem fundamental, um “mistério” e dom, a ser vivido prazerosamente e partilhado solidariamente com os outros.

Série CF 2012 - Cuidando da dor e sofrimento humanos

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3JORNAL SANTUÁRIO DE APARECIDA •19 DE FEVEREIRO DE 2012OPINIÃO / DEBATE

Pe. Leo [email protected]

A dor e o sofrimento são companhei-ros da humanidade desde tempos imemo-riais. Seu controle e alívio constituem-se hoje uma das competências e responsa-bilidades éticas fundamentais dos profis-sionais da saúde. Essa ação constitui-se num indicador fundamental de qualidade de cuidados, bem como de assistência integral ao paciente, no âmbito da saúde.

A dor é um sintoma e uma das causas mais frequentes da procura pelos servi-ços de saúde. Em muitas instituições de saúde humanizadas, a dor é reconhecida como quinto Sinal Vital integrado na prática clínica. Se a dor for cuidada com o mesmo zelo que os outros sinais vitais (temperatura, pressão arterial, respiração e frequência cardíaca), sem dúvida have-rá muito menos sofrimento. Os objetivos da avaliação da dor são identificar a causa, bem como compreender a experiên-cia sensorial, afetiva, comportamental e cognitiva da pessoa para implementar seu alívio e cuidado.

SÉRIE CF 2012 | NÃO REDUZIR A PESSOA AO CORPO, À BIOLOGIA,

PURA E SIMPLESMENTE, É GRANDE DESAFIO

Cuidando da dor e sofrimento humanosHoje se reconhece que a dor é uma

doença. De acordo com a definição da Organização Mundial da Saúde (OMS), a saúde “é um estado de completo bem-estar, físico, mental e social, e não somente a ausência de doença ou de mal-estar”. É evidente que as condições dolorosas são um estado de mal-estar; portanto, o ser humano que sofre de dor não está sadio e pode-se afirmar legitimamente que se está violando seu direito inalienável à saúde. O artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos reconhece como um dos direi-tos dos seres humanos “um nível de vida adequado para a saúde e o bem-estar”. Infelizmente, a saúde e o bem-estar nem sempre são uma opção possível. Ocorre que, em inúmeras situações, muitas pessoas, devido à velhice ou às doenças, sentem dor e sofrem muito no final da vida.

A falta de um tratamento adequado para a dor é uma das maiores injustiças e uma causa importante de grandes sofrimentos e de desespero. A premissa filosófica e humanística da proposta de considerar o tratamento da dor como um direito humano fundamental é a busca legítima de reconhecimento explí-cito e de que se proclame e promova o

tratamento da dor por si mesmo à categoria de um dos direitos fundamentais do ser humano. O reconhecimento intrínseco do tratamento da dor como um Direi-to Humano incluído no direito à saúde é importante, mas insufi-ciente. Além desse princípio de elevar o tratamento da dor à cate-goria de um dos direitos funda-mentais do ser humano, busca-se dar-lhe uma estrutura legal, aliviar a dor, eliminar a opção pela euta-násia como medida desesperada para pôr fim ao sofrimento, prover qualidade de vida àqueles que são vítimas dessa tortura e levar paz e esperança às famílias das pessoas que padecem do terrível flagelo da dor.

Ouvimos com frequência no âmbito dos cuidados de saúde pessoas dizendo: “não tenho medo de morrer, mas sim de sofrer e sentir dor”. Ou então outros que dizem: “dói o coração”, “dói a alma”. Pois bem, essas são expressões metafóricas de um sofrimento interior. É importante que distingamos os conceitos de dor e de sofrimento. O corpo sente dor e essa se liga ao sistema nervoso central. Para tratar essa dor necessita-mos de medicamentos, analgésicos. Já o sofrimento atinge a pessoa como um todo. Mais que um problema de técnica farmacológica, constitui-se num desafio ético perante o qual nosso enfrentamento e cuidado se fazem a partir da atribuição de um sentido e valores transcendentes, como demonstrou com sua própria vida o Dr.Victor Frankl, sobrevivente de campo de concentração nazista.

Há uma preciosa afirmação antropo-lógica na exortação apostólica Salvifici Doloris: “o sofrimento humano suscita compaixão, inspira também respeito e, a seu modo, intimida. Nele, efetivamente, está contida a grandeza de um mistério especifico” (João Paulo II).

Reflitamos rapidamente sobre o sentido dessa afirmação. O sofrimen-to suscita compaixão, isto é, empa-tia traduzida em ação solidária e não somente uma exclamação anestesiadora de consciência: “que pena”, “que dó”. A indiferença simplesmente é um fator desumanizante que aumenta mais a dor e o sofrimento. O sofrimento susci-ta respeito também. Em quem muito sofre acabamos criando uma auréola de sacralidade. Quando uma crian-ça que nasce com seríssimos proble-mas genéticos, por exemplo, os que a cuidam não se intimidam em dizer “é um(a) santinho(a)”. O sofrimento igualmente nos infunde temor, medo, porque vemos como que em um espelho a nossa fragilidade, vulnerabilidade e mortalidade, dimensões de nossa existência humana que nem sempre gostamos de lembrar.

Pe. Leo é presidente das Entidades Camilianas e Doutor em Teologia Moral – Bioética

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Desde o dia 12 de fevereiro, o JS publica uma série de artigos exclusivos de autoria de

padres camilianos, que têm como carisma o cuidado dos doentes. Você pode conferir

todos os textos na internet.Acesse http://bit.ly/artigosjs_CF2012

É procurando traduzir em gestos concretos o valor da pessoa humana em termos de autocuidado que estaremos mais bem preparados para cuidar da vida, com humanismo e competência técnico-científica. Quem cuida do cuida-dor? Considerar a pessoa não simples-mente como um corpo, não reduzindo-a à biologia, pura e simplesmente, é um grande desafio. Uma visão holística, multi, inter e transdiciplinar, é imperio-sa. O ser humano é um todo uno, um nó de relações. Ser gente é possuir corpo, é ter um psiquismo e coração, é conviver com os outros, cultivar uma esperança e crescer na perspectiva de fé em valores humanos.

É zelando, promovendo e cuidando dessa unidade vulnerável pela dor e sofri-mento que estaremos sendo instrumentos propiciadores de vida digna. Quem cuida e se deixa tocar pelo sofrimento humano do outro se torna um radar de alta sensi-bilidade, humaniza-se no processo e, para além do conhecimento científico, tem a preciosa chance e o privilégio de crescer em sabedoria. Essa sabedoria nos coloca na rota da valorização e desco-berta de que a vida não é um bem a ser privatizado, muito menos um problema a ser resolvido nos circuitos digitais e eletrônicos da informática, mas um bem fundamental, um “mistério” e dom, a ser vivido prazerosamente e partilhado solidariamente com os outros.