11
A Cidade Muçulmana Esboço Historiográfico do Urbanismo Islâmico na Europa por João Aníbal Henriques

A Cidade Muçulmana - por João Aníbal Henriques

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Apontamento historiográfico sobre o urbanismo islâmico na Península Ibérica da autoria de João Aníbal Henriques

Citation preview

Page 1: A Cidade Muçulmana - por João Aníbal Henriques

A Cidade MuçulmanaEsboço Historiográfico do Urbanismo Islâmico na Europa

por João Aníbal Henriques

Page 2: A Cidade Muçulmana - por João Aníbal Henriques

A Cidade Muçulmana por João Aníbal Henriques

Ao contrário do que pretenderam fazer crer algumas correnteshistoriográficas de outros tempos, a chegada dos muçulmanos à PenínsulaIbérica foi sinónimo de riqueza, prosperidade e desenvolvimento. Adestruição por vezes resultante dos confrontos que possibilitaram aconquista, era imediatamente substituída pelo esforço reconstrutivo dosnovos senhores, bem patente na forma como a grande maioria dasestruturas cristãs pré-existentes se mantiveram, apesar de alterações depormenor relativamente ao culto e ao ritmo de vida que nelas se praticava.No caso já mencionado de Sintra, Concelho a partir do qual se constituiu, jáno Século XIV, a independência jurídica de Cascais, essa forma de estar ede constituir a cidade é bem visível, conforme se pode vislumbrar naspalavras eloquentes de Sérgio Luís de Carvalho (4): “Assim se instalaram osárabes na região de Sintra a Colares, moldando duas povoações onde bempatente se observava a pujança de uma natureza no seu esplendor, e ondese desenvolvia o «amor pela liberdade», timbre de caracteres nobres. Aíimplantaram as suas quintas, com seus pomares e vinhas, com seus riachose fontes, as chamadas «almoínhas» (do árabe al-munya), tão frequentesnos contratos medievais sintrenses. Sem prejuízo de considerarmos asesparsas habitações que na zona já existiam, e sem olvidar algumaocupação humana desde imemoriais tempos na zona (ver a propósito osestudos mais recentes de Cardim Ribeiro), o que a nós se nos afigura certoé que a «urbe» como tal, é de assentamento muçulmano. E deste modo,chegou à região de Sintra a civilização árabe; e desde modo foi edificado naprópria vila o Paço de Sintra, morada dos «walis» (governadores),testemunho maior dessa mesma civilização, marca desse fulgor artísticopor todos ao tempo reconhecido”.

Page 3: A Cidade Muçulmana - por João Aníbal Henriques

A Cidade Muçulmana por João Aníbal Henriques

O esforço de desenvolvimento da cidade por parte do ocupantemuçulmano, oferecendo-lhe um esplendor que raramente o anteriorsenhor cristão se vira habilitado a conferir-lhe, fez dos povoados que secriaram ou se adaptaram nesta época, uma espécie de modelos urbanos,nos quais as diversas actividades do quotidiano, se arrumavam emparcelas e espaços que fomentavam a especialização e a organizaçãosistemática. Mesmo não usufruindo de um rigor de planeamento que asajudasse a criar uma tipificação rígida, as orientações programáticasoferecidas pelo Corão são normalmente suficientes para recriar nacidade muçulmana, um ambiente comum que lhes confere umromantismo sem igual. Na obra já mencionada, e depois de calcorrear oconjunto sinuoso das velhinhas ruas sintrenses, nas quais a falta de regrae de objectivo parece um aspecto remanescente, o autor da “História deSintra” explica em termos mentais e culturais a forma como seprocessava o surgimento da dicotomia urbana sintrense: “Falemos claro:as cidades muçulmanas de um modo geral não possuem um plano inicialde base, nem se desenvolvem de acordo com qualquer esquemaestabelecido. Para o islâmico, o espaço privilegiado não é a rua, mas acasa. É aqui que o crente reza, jejua, medita e descansa; é aqui que vivea intimidade da sua intimidade e repouso. A rua torna-se meramente oespaço de comunicação entre casas, tanto mais dispensável quanto maissoalheira é. Não é na rua que os crentes convivem quando necessário, éna mesquita, ponto sempre central de qualquer urbe; não é na rua queas mulheres convivem, é no recato dos pátios interiores, longe dosolhares forasteiros e perto dos regatos frescos”.

Page 4: A Cidade Muçulmana - por João Aníbal Henriques

A Cidade Muçulmana por João Aníbal Henriques

As actividades comunitárias, essencialmente masculinas pelas características próprias de uma religião quese fecha no essencial das palavras do profeta, são assim relegadas para um plano secundário na cidademuçulmana. O comércio e o mercado, fundamentais numa região como a da várzea sintrense, onde aprodutividade era enorme, e o excedente permitia alicerçar uma excelente relação com a capital emLisboa, processava-se em torno do recatado confronto de saberes dos anciãos de cada família. Aespecialização familiar, com cada membro a representar um papel bem definido e assaz complementar emrelação aos desempenhados pelos restantes, determinava que a forma de organização da cidade fossepouco importante para a rentabilidade do negócio.

A compra a venda de produtos, bem patente, ainda hoje, nas milenares feiras e romarias que existem emespaços onde a ocupação muçulmana foi efectiva, faz-se essencialmente no mercado público, semestruturas especializadas neste tipo de actividade, ou de forma ambulante, de casa em casa, do recatoindividual da família, para situação idêntica do vizinho mais próximo.

A figura do saloio, ainda hoje conotado com o ocupante islâmico das envolvências da capital, é em simesmo o repositório mais fidedigno da organização comercial que regia as urbes de origem magrebina. Opão saloio, o queijo saloio, e os demais produtos ligados e relacionados com esta forma cultural,identificam uma forma de estar e de ser que se manteve incólume neste País durante quase novecentosanos. A componente comercial da vivência saloia, num termo de Lisboa que assim caracterizava todosaqueles que compravam e vendiam os produtos agrícolas e hortícolas, conferia ao saloio uma autonomiaque lhe permitia rentabilizar os seus tempos livres.

Page 5: A Cidade Muçulmana - por João Aníbal Henriques

A Cidade Muçulmana por João Aníbal Henriques

Na cidade muçulmana, mais do que nas antigas urbes cristãs, o acto decomprar e vender associava-se em permanência ao culto que acompanhava ageneralidade das actividades do magrebino. Num dos seus interessantesartigos sobre a génese da portugalidade, Teresa Mesquitella sublinha que ocarácter saloio estava vinculado também à actividade comercial que empermanência se exercia neste tipo de espaços. Segundo esta autora, o tempode lazer do saloio é dedicado às feiras e às romarias, facto que consolida umaforma alternativa de vivência comercial que se instituirá nesta altura e sepropagará ao longo dos séculos até à actualidade (5): “[...] ali se vende detudo, do gado aos cestos, das alfaias agrícolas, legumes, enchidos, queijos,ovos, pão, bolos saloios, sementes, frutos, flores para plantar, cravos, amoresperfeitos, ligam-se com fetos, apertados num cordel, para manter ahumidade. Patos, galinhas, perus, há de tudo um pouco. Azeitonas,tremoços, etc.”

De facto, e sobretudo se nos ativermos àquilo que são as bases daculturalidade muçulmana, depressa perceberemos que, com excepção dasactividades de lazer e comércio descritas por Teresa Mesquitella, muitasdelas cristianizadas algum tempo depois e vinculadas a práticas que aindahoje se mantêm quase incólumes, muito pouco sobrava de liberdade socialao indivíduo árabe para estabelecer relacionamentos que contribuíssem paraa generalização da sua identidade. A prática do comércio, bem como deserviços análogos que revertiam em prol do crescimento social dessacidadania, traduzia-se amiúde na recriação de uma forma diferenciada degestão de conflitos, que se exercia de forma plena sempre que seestabeleciam as bases vigorosas de um novo entreposto urbano.

Page 6: A Cidade Muçulmana - por João Aníbal Henriques

A Cidade Muçulmana por João Aníbal Henriques

À cidade muçulmana, eivada das consequências lógicas impostas por uma História já muito antiga que havia caracterizado aexistência dos povos que habitavam na Península Ibérica, juntam-se agora balizas sociais muito fixas, que necessitavam daharmonia imposta pelo relacionamento muitas vezes vilipendioso que resultava da prática do comércio, para fazer regurgitar atendência sempre presente, embora muitas vezes de forma velada, de harmonizar condutas em função de um sentimento departilha que se baseava no próprio espaço.

As estruturas orgânicas do poderio muçulmano, em permanência vincadas pelo estímulo municipalista que as antigas villae

acabaram por promover, reconverteram a funcionalidade meramente circunstancial do povoamento paleo-cristão numaforma nova de existência de base política. Neste novo espaço, bem como nas zonas francas criadas por uma tolerância daprática religiosa que se afigurava essencial para garantir a paz e a estabilidade necessárias ao sustento do aparelho produtivocriado pelos novos invasores, o cosmopolitismo e o plurifacetado proselitismo de todos os que habitavam no novo império,permitia rentabilizar diferenças e recriar um ambiente novo que absorvesse as bases culturais de todos e aproveitasse o vastoespaço comum criado pelo poderio vigente para desenvolver económica e financeiramente a generalidade dos habitantes.

No antigo espaço senhorial que havia subsistido ao declínio do Império Romano, reinava agora uma enorme amálgama depoderes políticos, agregados, cada um deles, à génese cultural e religiosa de todos os povos e etnias que ali viviam, eassegurando uma cada vez maior necessidade de fomentar a gestão global da res-pública, como único caminho para gerar ostais consensos e promover a tão necessária harmonia. Os concelhos de raiz visigótica, por sua vez decalcados das antigasvillae romanas, haviam-se tornado em entidades com cunho vincadamente jurídico, nas quais se processavam toda a espéciede decisões que tinham como objectivo manter os equilíbrios internos das comunidades, e zelar pela salvaguarda dosinteresses colectivos da sociedade.

Page 7: A Cidade Muçulmana - por João Aníbal Henriques

A Cidade Muçulmana por João Aníbal Henriques

Para além da complexidade que naturalmente envolve aconstituição social de um espaço urbano, pois a conjugação desaberes e de vontades implica sempre a sujeição de princípiose de valores comuns, outros problemas, muitas vezesesquecidos dos investigadores, contribuem para dificultar umaanálise verdadeiramente operativa deste conjunto deproblemas.

Como é evidente, mesmo dentro dos actuais espaços urbanos,a noção e o conceito de família, assumidamente núcleocentral da operacionalidade social, alteram amiúde a formacomo se sustêm os processos governativos da urbe. Na cidademuçulmana, génese residual da cidade actual, a motivaçãosocial suportou sempre um conjunto de princípios económicosque esventraram grande parte das motivações teóricas deconstituição das cidades apontadas pelos investigadores.

De facto, mais do que os rigores impostos pelacontratualização religiosa, a dinâmica orientadora daconstrução e regulamentação dos espaços urbanos, obedeceuprimeiramente a critérios de índole economicista. Só assim,entendendo a economia como suporte intrínseco dacapacidade de concretização dos diversos aspectos de génesecultural ou cultual destas comunidades, é que se tornapossível compreender a forma como se orientaram em termosefectivos as diversas medidas de governação da cidade.

Page 8: A Cidade Muçulmana - por João Aníbal Henriques

A Cidade Muçulmana por João Aníbal Henriques

A doutrina política do islão, exigindo capacidade e eficácia nas concretizações do dia-a-dia,coíbe assim a cidade de se estender por domínios que impeçam a sua operacionalidade. Ascidades muçulmanas, monótonas na forma como repetem de maneira incessante eestereotipada os ritmos e padrões de construção urbana que em nada deixam transparecer osdiferentes registos culturais dos locais onde se inserem, rasteiam também grande parte dasnecessidades dos seus naturais e recolocam-nas na amálgama por vezes conflituosa do seutecido urbano. Segundo Fernando Chueca Goitia, numa das mais sucintas abordagens àHistória do Urbanismo (6) a indiferenciação da cidade muçulmana fica a dever-seprincipalmente a essa razão prática, sublinhando que as consequências desta situação,sobretudo no que concerne à prática do comércio, são por demais evidentes: “De todasmaneras, el aspecto de la ciudad musulmana es mucho más indeferenciado que el de laciudad clásica y de la ciudad moderna. Una ciudad cuanto más compleja funcionalmente, másdiferenciada resulta en sus estruturas. De aquí la monotonía de las orientales, en estoherederas de las urbes prehelénicas. El mundo islámico recoge buena parte de la herencia delmundo primitivo orientale, de las ciudades egipcias y mesopotámicas. Si conociéramos mejoréstas, podríamos establecer más fácilmente cuál há sido el precedente y la génesis de las delIslam, que hoy nos parecem insólitas”.

A grande lição a retirar deste tipo de estrutura urbana, sobretudo se pensarmos que o modeloteórico da cidade muçulmana se espraiou por um império vastíssimo, no qual coexistiram deforma pacífica diversos tipos de culturas, de tradições e de saberes, é que o cerne económicoque suporta a existência do burgo, ultrapassa largamente a envolvência física e a moldurahumana que o acompanha. Nestas cidades, a prática comercial, ontem como hoje, reveste-sede uma simplicidade que permite ao produto comercializado impor-se como tal, ou seja,desvinculando-o de procedimentos conjunturais e oferecendo-lhe uma importância que sebasta a si própria.

Page 9: A Cidade Muçulmana - por João Aníbal Henriques

A Cidade Muçulmana por João Aníbal Henriques

A delimitação efectiva dos espaços, com a zona habitacional perfeitamente definida e com uma gestão que se poderia caracterizarcomo antagónica relativamente à zona comercial, contribui para que o comércio e o urbanismo surjam como realidades de gestãoconjunta neste tipo de estruturas. Ao recriar, no seio da complexidade que as envolve, uma dicotomia perfeita entre o ambientetotalmente calmo e sossegado do espaço habitacional, no qual a família encontra todas as condições que lhe permitem fruir da suaintimidade, e o buliçoso espaço comercial, no seio do qual quase tudo é permitido, o islão impõe uma forma nova de estar na cidadeque, complementando as faces diversas de uma mesma urbe, rentabiliza os verdadeiros assentos de cada uma das vivências, aomesmo tempo que impede a criação de eventuais problemas resultantes de uma mistura forçada de interesses e de ideias. Na suacomponente comercial, a cidade muçulmana faz jus à sua capacidade de se efectivar como fulcro das actividades quotidianas dapopulação, enquanto na zona residencial, sem interferência com o barulho e com a necessária expressão que constrange o viajante,a paz, a calma e o sossego se transformam em elementos essenciais. Pierre George (7), numa das poucas obras sobre urbanismoeuropeu que dedica um espaço importante à organização da cidade muçulmana, traça com mestria o quadro típico desta dicotomia,ao mesmo tempo que explica como se organizam as duas componentes neste mesmo espaço: “El silencio y la calma hacen olvidar laextraordinaria acumulación de la población. Pero ésta se presenta com una exageración multicolor en el zoco, mercado de barrio omercado general. Aquí aparece la outra faz del oriente, com su ruido de multitud y su olor acre de especias, polvo y sudor. Todos lospueblos, todos los tipos, parecem haberse dado cita: campesinas de Ghuta com amplios velos claros, rosa o azul pálido, hauranesesde cara tatuada y severo traje azul oscuro, judíos de Bagdad todos de negro, la cara bajo la visera a la moda de la Persia, beduinos deldesierto envoltos en sua harapos y en su dignidad, curdos com turbantes multicolores, afganos vestidos de blanco, negros del Sudánen bubú y maghrebíes en su chilada”.

A especialização urbana das cidades muçulmanas, marcada de forma efectiva pela permanente troca de actividades e de costumes,era assim o garante da sã convivência entre os diferentes tipos de habitantes que nela residiam. Em torno da medina, espaço quetantas e tantas vezes é ainda hoje a base toponímica dos bairros mais típicos das actuais vilas e cidades portuguesas que tiveramuma origem islâmica, organizavam-se, no seio da aparente desorganização geral, os bairros residenciais e os arrabaldes. Enquanto namedina se situavam as principais e mais atractivas actividades da cidade, como por exemplo as mesquitas, as instalações do alcaide,e as zonas comerciais, nas restantes zonas da cidade a população agrupava-se de acordo com os seus ofícios e modo de vida. Estaforma de existência, mais do que qualquer outra formulação mais moderna de planificação urbana, garante um efectivo controle dastensões sociais e, contrariamente ao que actualmente alguns ditos especialistas procuram veicular, a uma maior capacidade dediálogo e de cooperação social.

Page 10: A Cidade Muçulmana - por João Aníbal Henriques

A Cidade Muçulmana por João Aníbal Henriques

A noção de gueto que tanto constrange as cidades actuais, ou seja,um espaço fechado onde se colocam as actividades ou as etniasque possuem características próprias ainda muito vincadas, étotalmente despropositada neste tipo de cidades. O espaço deespecialidade, zona onde se concentram os habitantes etrabalhadores entre iguais, obriga necessariamente à criação deuma rede de permutas que diminua os problemas que resultam dainexistência de uma série de bens ou de produtos que só existemno espaço seguinte. O trânsito social, expressão que utilizaremosdaqui em diante para designar a permanente migração depopulações de raízes diferentes que coabitam num mesmo espaçourbano, obriga a um clima de convivência sã e de respeito mútuoque faz da cidade uma zona global onde todos podem encontrar amelhor forma de se fazerem entender.

De qualquer forma, dentro da medina, a diferenciação de imediatose esbate no seio da amálgama de odores e de cores que vãocaracterizando cada um dos habitantes. A prática do comércio,principal motor desta miscenização social, é assim a base e osustento da criação dessa paz, sendo, consequentemente, aprincipal orientação para a criação da própria cidade.

Apesar do carácter pitoresco das estruturas urbanas legadas pelosprimórdios da existência urbana deste império, a grande valia dascidades muçulmanas reside no seu dinamismo comercial, sendonele que se funda a própria estrutura habitacional.

Page 11: A Cidade Muçulmana - por João Aníbal Henriques

A Cidade Muçulmana

João Aníbal [email protected]

+351 96 251 95 14http://portugalidade.blogspot.com

Esboço Historiográfico do Urbanismo Islâmico na Europa