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:o:MPANHIA EDITORA NACIONAL )RA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. I .< :s QJ Lu N.Cham. 801 B478p =6901 Autor: Benveniste, Emile I Título: Problemas de aeral Ex.4 BCE 1 i

Problemas de-linguistica-geral-benveniste (1)

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  • :o:MPANHIA EDITORA NACIONAL )RA DA UNIVERSIDADE DE SO PAULO.

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    ~ ~ ~ :s ~ ~. QJ Lu

    N.Cham. 801 B478p =6901 Autor: Benveniste, Emile I Ttulo: Problemas de Iing~\istica aeral

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  • BIBLIOTECA UNIVERSITRIA Srie s. - Letras c Lingstica

    volume 8

    Direo:

    Prof. ISAAC NICOLAU SALUM (da Universidade de So Paulo)

    FICHA CATALOGRAFICA

    (Preparada pelo Centro de Catalogao-na-fonte, Cmara Brasileira do Livro, SP)

    Benveniste, mle, 1902-1976 B413J.> Problemas de lingUlstica geral; traduo de Ma-

    76-1049

    ria da Glri Novak e Luiza Neri; reviso do Prof. Isaac Nicolau SalUnl. So Paulo, ~~-Nacional, Ed. da Universidade de So Paulo, \.lJ!!.6:::>

    (Biblioteca universitria. Srie 5a. L~tras e lingstica, v. 8).

    l. Lingstica 1. Ttulo. II. Srie.

    CDD-410

    fndice para catlogo siste'mtico: 1. Lingstica 410

    MILE BENVENISTE

    PROBLEMAS DE LINGSTICA

    GERAL

    traduo de MARIA DA GLRIA NOVAK

    e

    LUIZA NERI

    reuiso do Prof. ISAAC.NICOLAU SALUM

    COMPANHIA EDITORA NACIONAL EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SO PAULO

  • Do original francs: Problemes de linguistique gnrale

    Capa: HANIEL

    Direitos autorais para lngua portuguesa adquiridos pela COMPANHIA EDITORA NACIONAL

    Ru dos Gusmes, 639 012~t So Paulo, SP

    que se reserva a propriedade desta traduo.

    1976 Impresso no Bl'asil

    '' /\ \.

    NDICE DE ABREVIATURAS

    ac.. acusativo

    ai.. alemo ant' .. arm .. ;.trmnio cap .. captulo cf.. conferir daL, dativo din .. dinamarqus esL eslavo esp .. fem .. fr .. francs

    gen . genitivo gL. gtico gr.. gr. grego homrico hebr .. hebraico ht.. hitita hng .. hngaro indo-eur .. indo-europeu indo-ir .. indo-irnico ingl.. ingls ir.. irnico irl.. irlands isl.. islands it., italiano la!., latim lit.. literal lit.. lituano masc .. masculino n., neutro

    perfeito plural

    pop., pr ..

    snscr.. snscrto se .. scilicl't

    singular substantivo

    s. v.. su/J uoce usu .. usual~r vd .. vclico

    Ach .. Acharnei Ad .. rlde/plwe Ae11., Ae11eis Ag., Agamemnon Agri wlt .. De agr cultura Amph .. Ampllitmo AnL Piac., Antonino Piacenlino Antif .. Anlifon Antig .. A11tgone ArisL, Aristfanes Asin .. A.1inaria B.G .. De Bel/o G([l/ico Cap!., aptiui Cas.. Casina C.G.l ... Corp11s Glossaromm

    Larinorum Cic., Ccero Cist .. Cstellaria Ciu Dei .. De ciuilale De Cocph .. Cocphuri Com.. Comedia Cure .. Curculio (rei.. C.rclops El . El!!clra squ .. squilo Eum., Eumenis Mcedom:v Ew11., Eumenides Eun .. Eunudws Eur .. Eurpides

  • H e ali/., Heouto/11 inwrlimenos Her .. Herdoto Heracl., Heraclldai' Hes., Hesivdo Hipcr., Hipp., Hppolytus l.G .. fnscriptioni's Gnwcorum 11., !lias lph. Aul .. lplligenia Aulideusis lsth .. Isthmia lt., hinerarium Jo, So Joo Lat. Etrm. Wb., Lateiuisclws

    Lc, So Lucas Leg., Leges Liv .. Tito Lvio

    Wi'll'rhuch

    Liv. Andr.. Lvio Andronico L.L., De lngua La1i1w Lucr., Lucrcio Me, So Marcos Mem., Memorahilia Men., Menaecluni Merc., Me1:cator !vfelaph . Metaphysica Mil .. Afiles loriosus ;\fost .. Mos/aliaria Mt. So Mateus Na!. D(!{)t., De IW/uro Deorum

    Cornlo Nepos Nvio

    Non . Nnio

    Nuh .. Nuhes Od., Odyssea Oecou., Oeconomicus O.fl:. De otfici is OI .. Olympia Ov., Ovdio Pacv .. Pacvio Pers .. Persae Plwedr., Plwedms Pnd., Pndaro Pl., Planto Plat., Plato Pompon .. Lcio Pompnio Prisc., Prisc!ano Prohl.. Problema/a Prom .. Pwmeteus Pscud, Pscudolus Rhet. ad Her., Reilwrica od

    Ikrenium R.R ... DI! re ruslca Rud.. Rudeu.1 Sf .. Sfocles Stilh., Sic/ws Suppl., Ter., Fim.. Tmaeus Top .. Topica Tri11., Trimmunus Truc., Truculentas Tuc .. Tucdides Verg .. Verglio X. Pers.

    0Bs. Algumas a breviatnras referentes a citaes em antigas lnguas do ramo indo-rilnico c do grupo altaico no puderam ser identificadas. Assim, deixam de figurar neste ndice.

    SUMRIO

    Prefcio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Xl

    Primeira parte - Tran.:;formaes da lingstica

    Captulo 1. Tendncias recentes em lingstica geral .. .. . .. .. .. . .. . .. .. .. . .. .. . 3 Ccq;!ulo 2. Vista d'olhos o desenvolvimento da lingstica .. .. .. .. . 19 Captulo 3. Saussurc aps meio sculo .. .. .. .. .. .. .. . .. ..... .. .. . .. .. . .. .. . .. ... ... 34

    Segmtda parte - A comunicao

    Captulo 4. Natureza do signo lingstico.......................................... 53 Captulo 5. Comunicao animal e linguagem humana........................ 60

    6. Categorias de pensamento e categorias de lingua........ .... ... 68 Captulo 7. Observaes sobre a funo da linguagem na descoberta

    freudiana .. . . . .. . . . .. . . .. . . .. . . . . . .. . .. . . .. . . . . . .. .. .. . . .. . . .. . .. .. . . .. . .. . .. . 81

    TE,rceira parte Estruturas e anlises Captulo 8. "Estrutura" em lingstica .. .. .. . .. .. ... .. .. .. . ... .. . .. . .. . .. ... .. .. 97 Capitulo 9. A Classificao das lnguas .......................................... 105 Cap{tulo 10. Os nveis da anlise lingstica .................................... 127 Captulo 11. O sistema sublgico das preposies em latim .................. 141 Cptulo 12. Para a anlise das funes casuais: o genitivo latino ......... 150

    Quarta parte - Funes sintticas Captulo 13. A frase nominal ......................................................... 163 Captulo 14. Ativo e mdio no verbo ............................................. 183 Captulo 15. A construo do perfeito transitivo ..................... : 192 Capitulo 16: "Ser" e "ter" nas suas funes lingsticas ..................... 204 Captulo 17. A frase relativa, problema de sintaxe geral ..................... 228

  • Quinta parte - O homem na lngua Capftulo 18. Estrutura das relaes de pessoa no verbo ..................... 247 Captulo 19. As relaes de tempo no verbo francs .......................... 260 Captulo 20. A Natureza dos pronomes .......................................... 277 Capitulo 21. Da subjetividade na linguagem ............. ., ..................... 284 Capitulo 22. A filosofia analtica e a linguagem................................. 294 Captulo 23. Os verbos delocutivos ................................................... 306

    Sexta parte - Lxico e cultura Captulo 24. Problemas semnticos da reconstruo ........................... 319 Capitulo 25. Eufemismos antigos e modernos .................................... 340 Captulo 25. Dom e troca no vocabulrio indo~e'uropeu .. .... . . . . .. . .. .. .. .. 348 Captulo 27. A noo de "ritmo" na sua expreSso lingillstka ............ 361 Captulo 28. Civilizao: contribuio histria da palavra ............... 371

    ndice remissivo ........................................................................... 383

    PREFCIO

    Os estudos reunidos nesta obra foram escolhidos entre muitos outros, mais tnicos, que o autor publicou nestes ltimos anos. Se os apresentamos sob a denominao de problemas isso se deve ao fato de trazerem em conjunto, e cada um em particular, uma contribuio ao grande problema da linguagem, que se formula nos principais temas tratados: encaram-se as relaes entre o bio-lgico e o cultural, entre a su~jetividade e a sacia/idade, entre o signo e o objeto, entre o smbolo e o pensamento, e tambm os problemas da anlise intralingstica. que descobrem noutros dom!nios a importncia da linguagem vero, assim, a maneira como um lingista aborda algumas questes que so obrigados a se propor e percebero, talvez, que a configurao da linguagem determina todos os sistemas semiticos.

    A esses, algumas pginas podero parecer dijlceis. Devem convencer-se de que a linguagem , de fato, um objeto dijlcil e que a amilise do dado lingstico se por rduos caminhos. Como as outras cincias, a lingstica progride na razo direta da comple-xidade que reconhece nas coisas; as etapas do seu desenvolvimento s7o as dessa tomada de conscincia. Alm disso, ser necessrio compene!rar-se desta verdade: a rejlexo sobre a linguagem s produz frutos quando se apia, primeiro, sobre as lnguas reais. O estudo desses organismos empricos, histricos, que so as ln-guas permanece o nico acesso possvel compreenso dos meca-nismos gerais e do funcionamento da linguagem. ..

    Nos primeiros captulos, esboamos um panorama das recenn tes pesquisas sobre a (eoria da linguagem e das perspeclivas que elas abrem. Passamos a seguir ao problema central da comunica-o e s suas modalidades: natureza do signo lingstico, caracteres

  • diferenciais dulinyuoye111 humana, correlaes enlre as caleyorias lin-yiist i c as e os do pensamenw, papel da linquagem 11a exploraiio do inconsciente, As no()es de estrutura e de jmo constituem o objeto dos ensaios seguintes, que se sucessivamente sobre as variaes de estrutura nas lnguas e sobre as manifestaes in-tralingsticas de algumas funes; principalmente as relaes da forma e do sentido selo relacionadas com os nveis da anlise Uma srie diversa dedicada a fenmenos de sintaxe; procuram-se, aqui, as constantes sintticas atravs de tipos lingsticos rnuito variados, e se apresentam modelos especfflcos de certos tipos ji"ases que se reconhecem como universais: frase nominal, frase relativa. "O homem na linguagem" o titulo da parte seguinte; a marca do homem na /ingua9em, definida pe/asforriws /ingiisticas da "subjetividade" e a~ categorias da pessoa, dos pronomes e do tempo. Em compensao, nos ltimos captulos, o que se destaca o papel da signifl'cao e da cultura; estudam-se a os mtodos da reconstruo semntica, assim como a gnese de alguns termos importantes da cultura moderna.

    A unidade e a coerncia do conjunto ressaltaro dessa ".A''"''-o. Abstivqmo-nos propositadamente de qualquer interveno re-trospectiva tanto na apresentao como nas concluses dos rentes captulos. De outra forma, teria sido necessrio acrescentar a cada um deles um post scriptum s vezes longo: quer ao titulo da documentao, para assinalar, por exemplo, os progressos mais recentes dw, pesquisas tericas; quer, como historiadores da nos;,a prpria pesquisa, para dar conta da aC!Jlhida prestada a cada um desses textos, e indicar que o estudo "Natureza do signo lings-tico" ( p. 53) provocou vivas controvrsias e deu origem a uma longa srie de artigos; que as nossas sobre o tempo no verbo francs (p. foram prolongadas e confirmadas nas estatsticas de H. Yvon sobre o emprego dos tempos pelos escritores modernos, etc. Alas isso seria, cada vez, atrair uma nova pesquisa. Surgircio outras ocasies para voltarmos a essas bnportantes questes e trat-las sob novo prism.'l.

    P. Vsl raelem e N. Rull't!l cles

  • t L

    CAPTULO 1

    tendncias recentes em lingstica geral(l)

    Nestes ltimos decnios, a lingstica sofreu um desenvol-vime)1to to rpido e estt:(ndeu tanto o seu domnio que um balano mesmo sumrio dos problemas que aborda assumiria as P+Opores de uma obra ou se esgotaria numa enumerao de trabalhos. Se se quisesse apenas resumir os resultados encher-se-iam pginas, em que o essencial talvez faltasse. O aumento quantitativo da produo lingstica to volumoso que um volume grosso de bibliografia no basta para recense-lo. Os pases mais importantes tm agora os seus prprios rgos, as suas colees e tambm os seus mtodos. O esforo descritivo foi prosseguido e estendido ao mundo inteiro: a recente reedio da obra Langues du monde d uma idia do trabalho realizado e do trabalho, muito mais considervel, que nos resta. Os atlas lingsticos, os dicionrios multiplicaram-se. Em todos os setores o acmulo de dados produz obras cada vez mais volumosas: uma descrio da linguagem infantil em quatro volumes (W. F. Leopold), uma descrio do francs em sete volumes (Damourette e Pichon) so apenas exemplos. Uma revista importante pode, hoje, dedicar-se exclusivamente ao estudo das lnguas indgenas da Amrica. R~alizam-se na frica, na Austrlia, na Ocenia, pesquisas que enriquecem consideravelmente o inventrio das formas lingsticas. Num sentido paralelo, explora-se sistemati-camente o passado lingstico da humanidade. Todo um grupo de lnguas antigas da sia Menor foi ligado ao mundo indo-

    1. Journal de psychologie, P.U.F., Paris, jan.-jun. 1954.

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  • europeu modificando-lhe a teoria. A reconstituio progressiva do protochins, do malaio-polinso comum, de certos protti-pos amerndios permitir talvez novos agrupamentos genticos, etc. Mas, mesmo que pudssemos apresentar um balano mais pormenorizado dessas pesquisas, este mostraria que o trabalho se processa muito desigualmente: aqui se continuam estudos que teriam sido os mesmos em 1910; ali, rejeita-se at o nome de lingstica como desvalorizado; acol, dedicam-se volumes intei-ros simples noo de "fonema". Isso porque a multiplicao dos trabalhos no revela imediatamente, mas antes disfara, as profundas transformaes que h alguns anos vm sofrendo o mtodo e o esprito da lingstica e os conflitos que a dividem hoje. Quando abrimos os olhos para a importncia do risco e para as conseqncias que os atuais debates podem ter tambm para outras disciplinas, som
  • Essa tendncia destaca-se em primeiro lugar pelo fato de que certos tipos de problemas so abandonados. Ningum se prope mais, com seriedade, a questo sobre a monognese ou a polignese das lnguas, nem, de maneira geral, sobre os prin-cpios absolutos. No se cede mais to facilmente como antes tentao de erigir como propriedades universais da linguagem as particularidades de uma lngua ou de um tipo lingstico. Alargou-se o horizonte dos lingistas. Todos os tipos de lnguas adquirem direitos iguais de representar a linguagem. Em nenhum momento do passado, sob nenhuma forma do presente se atinge o que quer que seja de "original". A explorao das mais antigas lnguas atestadas mostra-as to completas como, e no menos complexas que, as lnguas de hoje; a anlise das lnguas "primi-tivas" revela nelas uma organizao altamente diferenciada e sis-temtica. Longe de constituir uma norma, o tipo indo-europeu aparece sobretudo como excepcional. Com maior razo, afasta-mo-nos das pesquisas apoiadas sobre uma categoria escolhida no conjunto das lnguas e considerada como ilustrando uma mesma disposio do "esprito humano", desde que se viu a difi-culdade de descrever o sistema completo de uma s lngua e o quanto so enganadoras certas analogias de estrutura descritas por meio dos mesmos termos. Convm dar grande importncia a essa experincia, cada vez maior, das variedades lingsticas do mundo. Dela j se tiraram muitas lies. Tornou-se evidente, em primeiro lugar, que as condies de evolv.o no diferem fundamentalmente segundo os nveis de cultura, e que se podem aplicar comparao das lnguas no escritas os mtodos e os critrios que valem para as lnguas de tradio escritas. Sob ')Utro aspecto, percebeu-se que a descrio de certos tipos lingsticos, sobretudo das lnguas amerndias, apresentava problemas que os mtodos tradicionais no podem resolver. O resultado foi uma renovao dos processos de descrio que, em conseqnci9-, se estendeu s Hnguas que se acreditavam descritas de uma vez por todas e que adquiriram uma feio nova. Outra conseqncia, ainda, que se comea a ver que o repertrio das categorias morfolgicas, variado como parece, no ilimitado. Pode-se ento imaginar uma espcie de classificao lgia dessas cate-gorias que mostraria a sua organizao e as leis da sua trans-

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    formao. Finalmente, e aqui tocamos as questes cujo alcance ultrapassa a lingstica, percebe-se que as "categorias mentais" e as "leis do pensamento" no fazem, em grande parte, seno refletir a Organizao e a distribuio das categorias lingsticas. Pensamos um universo que a nossa lngua, em primeiro lugar, modelou. As modalidades da experincia filosfica ou espiritual esto sob a dependncia inconsciente de uma classificao que a lngua opera pelo simples fato de ser lngua e de simbolizar. Eis ai alguns dos temas revelados por uma reflexo familiarizada com a diversidade dos tipos lingsticos; na verdade, porm, nenhum deles foi ainda explorado a fundo.

    Dizer que a lingstica tende a tornar-se cientfica no apenas insistir sobre uma necessidade de rigor, comum a todas as disciplinas. Trata-se, em primejro lugar, de uma mudana de atitude em relao ao objeto, que se definir por um esforo para' formaliz-lo. Na origem dessa tendncia pode reconhecer-se uma influncia dupla: - de Saussure na Europa e a de Bloom-field na Amrica. As vias da sua respectiva influncia so, alis, to diferentes quanto as otlras de que procedem. dificil imaginar contraste mais acentuado que o destes dois trabalhos: Cours de linguistique gnrale de Saussure (1916), livro pstumo redigido a partir de apontamentos de alunos, conjunto de exposies geniais, cada uma das quais pede uma exegese e algumas das quais alimentam ainda a controvrsia, projetando a lngua sobre o plano de uma semiologia universal, abrindo vises para as quais o pensamento filosfico de hoje apenas desperta; Language -de Bloomfield (1933), que se tornou no uade-mecum dos lingistas americanos, textbook ("manual") completamente acabado e ama-durecido, notvel tanto pela sua posio de despojamento filo-sfico quanto pelo seu rigor tcnico. Bloomfield, entretanto, embora no se refira a Saussure, teria certamente concordado com o princpio saussuriano de que ''a lingstica tem como nico e verdadeiro objeto a lngua considerada em si mesma e por ela mesma". Esse princpio explica a tendncia mostrada pela lingstica em toda parte, se no explica, ainda, as razes pelas quais ela se quer autnoma e os fins que, assim, procura.

    Atravs das diferenas de escola, aparecem, nos lingistas que procuram sistematizar os seus processos, as mesmas preo-

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  • cupaes; estas podem formular-se em trs questes fundamen-tais: 1.3 Qual a tarefa do lingista, a que ponto quer ele chegar, e o que descrever sob o nome de lngua? o prprio objeto da lingstica o que posto em pauta. 2.a Como se descrever esse objeto? preciso forjar instrumentos que permitam apreen-der o conjunto dos traos de uma lngua dentro do conjunto das lnguas manifestadas e descrev-los em termos idnticos. Qual ser ento o princpio desses processos e dessas definies? Isso mostra a importncia que assume a tcnica lingstica. 3.3 Tanto para o sentimento ingnuo do falante como para o lingista, a linguagem tem como funo "dizer alguma coisa". O que exatamente essa "coisa" em vista da qual se articula a lngua, e como possvel delimit-la em relao prpria linguagem? Est proposto o problema da significao.

    O simples enunciado dessas questes mostra que o lingista quer desprender-se dos apoios ou das amarras que encontrava em quadros pr-fabricados ou em disciplinas vizinhas. Afasta toda viso a priori da lngua para construir as suas noes dire-tamente sobre o objeto. Essa atitude deve pr um termo de-pendncia, consciente ou no, em que se encontrava a lingstia face histria, de um lado, e a uma certa psicologia, do outro. Se a cincia da linguagem deve escolher os seus modelos, ser nas disciplinas matemticas ou dedutivas que racionalizam com-pletamente o seu objeto, reconduzindo-o a um conjunto de propriedades objetivas munidas de definies constantes. Isso quer dizer que se tornar cada vez mais "formal", pelo menos no sentido de que a linguagem consistir na totalidade das suas "formas" observveis. Partindo-se da expresso lingstica nativa, procede-se, por meio de anlise, a uma decomposio estrita de cada enunciado nos seus elementos, e depois, por anlises su-cessivas, a uma decomposio de cada elemento em unidades cada vez mais simples. Essa: operao ter p0r fim separar as unidades distintivas da lngua; j se encontra aqui uma mudana radical do mtodo. Enquanto dantes a objetividade consistia na aceitao integral dos dados, o que acarretava ao mesmo tempo a admisso da nmma grfica para as lnguas escritas e o registro minucioso de todos os pormenores articulatrios para os textos orais, hoje nos prendemos mais identificao dos elementos

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    na medida em que so distintivos em todos os nveis da anlise. Para reconhec-los, o que.no absolutamente uma fcil tarefa, trabalha-se luz deste princpio: no h seno diferenas numa lngua; a ngua pe em jogo um conjunto de processos discri-minatrios. Destacam-se apenas os traos dotados de valor sig-nificativo, afastando-se, aps os haver especificado, os que re presentam apenas variantes. Uma grande simplificao opera-se desde ento, e se torna possvel, assim, reconhecer a organizao interna e as leis de organizao desses traos formais. Cada fonema ou morfema relativo a cada um dos outros, por ser ao mesmo tempo diferente e solidrio; cada um delimita os outros, que por sua vez o delimitam, sendo a distintividade e a solidarie-dade condies conexas. Esses elementos ordenam-se em sres e mostram em cada lngua arranjos particulares. Trata-se de uma estrutura, em que cada pea recebe a sua razo de ser do con-junto que serve para compor.

    JiiarY:l!!!iL um dos termos essenciais da lingstica moderna, um dos que ainda tm valor programtico. Para os que o empre-gam com conhecimento de causa, e no simplesmente para se porem na moda, pode significar duas coisas bem diferentes. Entendese por estrutura, particularmente na Europa, o arranjo de um todo em partes e a solidariedade demonstrada entre as partes do todo, que se condicionam mutuamente; para a maioria dos lingistas americanos, ser a dstdbuio dos elementos, tal como se verifica, e a sua capacidade de associao ou de substi tuio. A expresso lingstica estrutural recebe por isso diferen-tes interpretaes; bastante diferentes, em todo, caso, para que as operaes decorrentes no tenham o mesmo sentido. Sob o nome de estrutura, um "bloomfieldano" descrever uma orga-nizao de fato, que segmentar em elementos constitutivos, e definir cada um destes segm:~do o lugar que ocupar no conjunto e segundo as variaes e as substituies possveis nesse mesmo lugar. Rejeitar como tachada pela teleologia a noo de equi-lbrio e de tendncia que Trubetzkoy soma de estrutura. e que, entretanto, se revelou fecunda. mesmo o nico princpio que faria compreender a evoluo dos sistemas lingsticos. Um estado de lngua antes de tudo o resultado de um certo equilbrio entre as partes de uma estrutura, equilbrio que, porm, no

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  • chega jamais a uma simetria completa, provavelmente porque a dissimetria est inscrita no prprio princpio da lngua em decorrncia da assimetria dos rgos fonadores. A solidariedade de todos os elementos faz com que cada incidncia sobre um ponto atinja todo o conjunto das relaes e produza, mais cedo ou mais tarde, um novo arranjo. Da, consistir a anlise diacr-nica em estabelecer duas estruturas sucessivas e em destacar-lhes as relaes, mostrando-se que partes do sistema anterior eram atingidas ou ameaadas e como se preparava a soluo realizada no sistema ulterior. Dessa forma, soluciona-se o conflito to viva-mente afirmado por Saussure entre diacronia e sincronia. Essa concepo da estrutura organizada na sua totalidade completa-se com a noo de hierarquia entre os elementos da estrutura. Encontra-se notvel ilustrao desse fato na anlise, dada por R. Jakobson, da aquisio e da perda dos sons da linguagem na criana e no afsco, respectivamente: os sons adquiridos por ltimo pela criana so os primeiros a desaparecer no afsico, e os que o afsico por ltimo so os que a criana articula primeiro, sendo a ordem do desaparecimento inversa da aquisio.

    Em todo caso, uma anlise assim concebida s possvel se o lingista est em condies de observar integralmente, de controlar ou de fazer variar sua vontade o jogo da lngua des-crita. Somente as lnguas vivas, escritas ou no, oferecem um campo suficientemente vasto e fatos suficientemente seguros para que a investigao se conduza com um rigor exaustivo. D-se a preponderncia s lnguas faladas. Essa condio imps-se a certos lingistas por razes empricas. Para outros, na Amrica, foi em primeiro lugar a necessidade de observar e de analisar lnguas indgenas, dificeis e vrias, que se constituiu justamente no ponto de partida de uma reviso nos mtodos descritivos e depois na doutrina geral. Mas, pouco a pouco, a renovao estende-se s lnguas antigas. Torna-se mesmo possvel reinter-prctar, luz de novas teorias, os dados fornecidos pelo mtodo comparativo. Trabalhos como os de J. Kurylowicz sobre a re-construo das fases indo-europias mostram tudo o que se pode esperar de uma anlise assim orientada. Um mestre da lingstica histrica, J. Vendryes, defende tambm uma lings-

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    tica "esttica", que seria um inventrio comparativo dos recursos que as diversas lnguas s mesmas necessidades de expresso.

    Compreende-se que o tipo de estudo que predomina nestes ltimos anos seja a descrio sistemtica, parcial ou total, de uma lngua particular, com uma preocupao tcnica que jamais havia sido to minuciosa. De fato, o lingista sente-se obrigado a justificar os seus processos de ponta a ponta. Alega um aparato de definies que deve legitimar a conotao que confere a cada um dos elementos definidos, e as operaes so apresentadas explicitamente, de maneira a permanecerem suscetveis de veri-ficao em todas as etapas do procedimento. Da resulta uma

    reu~dio da terminologia. Os termos empregados so espe-cficos que o lingista informado pode reconhecer desde as pri-meir!ls linhas a inspirao de um estudo, c que certas discusses no so inteligveis para os adeptos de um mtodo a no ser transpostas para a sua prpria nomenclatura. Exige-se de uma descrio que seja explcita e coerente e que a anlise se conduza sem levar em conta a significao, mas somente em virtude de critrios formais. sobretudo na Amrica que se afirmam esses princpios, e eles a deram origem a longas discusses. Em um livro recente, Methods in structurallinguistics (1951), Z. S. criou uma espcie de codificao. O seu trabalho pormenoriza passo a passo os processos que destacam os fonemas e os mor-femas a partir das condies formais de distribuio, ambiente, substituio, complementaridade, segmentao, correlao, ilustrando cada uma das operaes com problemas particulares, tratados com um aparato quase matemtico de smbolos grficos. Parece dificil avanar mais nesse caminho. Consegue-se, ao menos, estabelecer um mtodo nico e constante? O autor o primeiro a convir que so possveis outros processos, e que alguns seriam mesmo mais econmicos, particularmente quando se faz intervir a significao, de modo que acabamos por perguntar-nos se no h certa gratuidade nesse desdobramento de exigncias metodo-lgicas. Observar-se- sobretudo, porm, que todo o trabalho do lingista se apia realmente sobre o discurso, implicitamente assimilado lngua. Esse ponto, fundamental, deveria ser discuti-do a par com a concepo particular da estrutura admitida pelos

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  • partidrios desse mtodo. Esquemas de distribuio, por mais rigorosamente que se estabeleam, no constituem uma estrutura, assim como inventrios de fonemas e de morfemas, definidos por segmentao em cadeias de discurso, no representam a descri-o de uma lngua. O que nos apresentam efetivamente um mtodo de transcrio e de decomposio material aplicado a uma lngua que seria representada por um conjunto de textos orais e cuja significao o lingista ignoraria.

    Acentuemos bem esta caracterstica que, ainda mais que o tecnicismo particular das operaes, prpria do mtodo: admi-te-se, por princpio, que a anlise lingstica, para ser cientfica, deve abster-se da significao e prender-se unicamente definio e distribuio dos elementos. As condies de rigor impostas ao processo exigem que se elimine esse elemento inapreensvel, subjetivo, impossvel de classificar, que a significao ou o sentido. O mximo que se poder ter a certeza de que determinado enunciado convm a determinada situao objetiva e, se a recorrncia da situao provocar o mesmo enunciado, sero postos em correlao. A relao entre a forma e o sentido pois reduzida relao entre a expresso lingstica e a situa-o, nos termos da doutrina behaviorista, e a expresso poder ser ao mesmo tempo resposta e estmulo. A significao reduz-se praticamente a um certo condicionamento lingstico. Quanto relao entre a expresso e o mundo, um problema que se deixa para os especialistas do universo fsico. "O .ss:ntido..(meaning) de uma forma lingstica", diz Bloomfield, "se define com a situa-o na qual o falante a enuncia e a resposta que ela provoca no ouvinte" (Language, p. 139). E Harris insiste na dificuldade de analisar as situaes: "No h atualmente nenhum mtodo para medir as situaes sociais e para identificar unicamente as situa-es sociais como compostas de partes constituintes, de tal modo que possamos divisar o enunciado lingstico que sobrevm nessa situao social, ou que a ela corresponde, em segmentos que correspondero s partes constituintes da situao. De ma-neira geral, no podemos atualmente fiar-nos em nenhuma subdi-viso natural ou cientificamente controlvel do campo semntico da cultura local, porque no existe no momento nenhuma tcnica para esse tipo de anlise completa da cultura em elementos

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    discretos; ao contrrio. a linguagem que uma das nossas principais fontes de conhecimento da cultura (ou do mundo de. siynijicao) e das distines ou divises que a se prat;::am" (op. cit., p. 188). de temer-se que, se esse mtodo deve a lingstica no possa jamais reunir-se a nenhuma das outras cincias do homem nem da cultura. A seg-mentao do enunciado em elementos discretos no leva a uma anlise da lngua, da mesma forma que uma segmentao do universo fsico no leva a uma teoria do mundo fsico. Essa ma-neira de formalizar as partes do enunciado arrisca-se a acabar numa nova atomizao da lngua, pois a lngua emprica o resultado de um processo de simbolizao em muitos nveis, cuja anlise nem foi ainda tentada; o "dado" lingstico no , sob esse aspecto, um dado primeiro, do qual bastaria dissociar as partes constitutivas: , j, um complexo, cujos valores resultam uns das propriedades particulares de cada elemento, outros das condies da sua organizao, outros ainda da situao objetiva. Podem-se, pois, conceber muitos tipos de descrio e muitos tipos de formalizao, mas todos devem necessariamente supor que o seu objeto, a lngua, dotado de significao, que em vista disso que estruturado, e que essa condio essencial ao fun-cionamento da lngua entre os outros sistemas de signos. difcil imaginar o que resultaria de uma segmentao da cultura em elementos discretos. Numa cultura, como numa lngua, h um conjunto de smbolos cujas relaes necessrio definir. At aqui, a cincia das culturas permanece forte e deliberadamente "substancial". Ser possvel destacar, no aparato da cultura, es-truturas formais do tipo das que Lvi-Strauss introduziu nos sistemas de parentesco? o problema do futuro. V-se em todo caso como ser para o conjunto das cincias que operam com formas uma investigao das proprie-dades do smbolo. iniciadas por Peirce no foram retomadas e uma pena. do progresso na anlise dos smbolos que se poderia esperar principalmente uma compreenso melhor dos complexos processos da significao na lngua e provavel-mente tambm fora da lngua. E uma vez que esse funcionamento inconsciente, como inconsciente a estrutura dos compor-

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  • tamentos, psiclogos, socilogos e lingistas associariam com vantagem os seus esforos nessa pesquisa.

    A orientao que acabamos de caracterizar no a nica que se possa registrar. Outras concepes, igualmente sistemti-cas, afirmaram-se. Na psicolingstica de G. Guillaume, a estru-tura lingstica estabelece-se como imanente lngua realizada, a estrutura sistemtica se descobre a partir dos fatos de emprego que a explicitam. A teoria que L. Hjelmslev, na Dinamarca, quer promover sob o nome de glossemtica uma construo de um "modelo" lgico de lngua e um corpo de definies mais que um instrumento de explorao do universo lingstico. A idia central aqui , grosso modo, a do "signo" saussuriano, em que a expresso e o contedo (equivalendo ao "significante" e ao "significado" saussurianos) so estabelecidos como dois planos correlativos, cada um dos quais comporta uma "forma" e uma "substncia". Parte-se aqui da lingstica em direo lgica. Nesse ponto, percebe-se o que poderia ser uma convergncia entre disciplinas que se ignoram ainda em grande parte. No momento em que lingistas de rigor procuram lanar mo das vias e mesmo do aparato da lgica simblica para as suas operaes formais, acontece que os lgicos se tornam atentos "significao" lingstica e, seguindo Russell e Wittgenstein, se interessam cada vez mais pelo problema da lngua. Os seus caminhos cruzam-se mais do que se encontram, e os lgicos preocupados com a linguagem nem sempre encontram com quem falar. Para dizer a verdade, os lingistas que gostariam de ga-rantir para o estudo da linguagem uma conotao cientfica se voltam de preferncia para a matemtica, procuram processos de transcrio mais que um mtotlo axiomtico, cedem um tanto facilmente atrao de certas modernas, como a teoria ciberntica ou a da informao. Uma tarefa mais produtiva con-sistiria em refletir nos meios de aplicar em lingstica certas 'w''"r"'"f'l''" da lgica simblica. O lgico perscruta as condies de verdade s quais devem satisfazer os enunciados nos quais a cincia se fundamenta. Recusa a linguagem "ordinria" como equvoca, incerta e flutuante, c quer forjar para si uma lngua inteiramente simblica. Mas o objeto do lingista precisamente esta "linguagem ordinria" que ele toma como dado e cuja

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    estrutura inteira explora. Ele teria interesse em utilizar experi-mentalmente, na anlise das classes lingsticas de todas as ordens que ele determina, os instrumentos elaborados pela lgica dos conjuntos, para ver se entre essas classes se podem estabelecer relaes tais que respondam perante a simbolizao lgica. Ter-se-ia ento, ao menos, alguma idia do tipo de lgica que subentende a organizao de uma lngua; se h uma diferena de natureza entre os tipos de relaes prprias da lin-guagem ordinria e os que caracterizam a linguagem da descrio cientfica; ou, em outras palavras, como a linguagem da ao e a da inteligncia se comportam em relao uma com a outra. No basta comprovar que uma se deixa transcrever numa notat;o simqlica e a outra no, ou no imediatamente; permanece o fato de que uma outra procedem da mesma fonte e comportam exatpmente os mesmos elementos de base. a prpria lngua que prope esse problema.

    Essas consideraes aparentemente nos afastam muito dos temas de pesquisa em que a lingstica se empenhava h algumas dcadas. Esses problemas abordados somente hoje so, porm, problemas de todos os tempos. Em compensao, nas ligaes que os lingistas procuravam ento com outros domnios, encon-tramos hoje dificuldades de que no suspeitavam. Meillet escrevia em 1906: "Cumprir determinar a que estrutura social corres-ponde uma certa estrutura lingstica e como, de maneira geral, as mudanas de estrutura social se traduzem por mudanas de estrutura lingstica". A despeito de algumas tentativas (Sommer-felt), esse programa no foi cumprido pois, prpria medida que se tentava comparar sistematicamente a lngua e a sociedade, apareciam as discordncias. Descobriu-se que a correspondncia de uma e de outra era constantemente perturbada sobretudo pela difuso, tanto na lngua como na estrutura social, de modo que sociedades de cultura semelhante podem ter lnguas heterogneas, assim como lnguas muito vizinhas podem servir para a expresso de culturas inteiramente dessemelhantes. Levando mais longe a reflexo, encontram-se os problemas inerentes anlise da lngua, de um lado, a cultura de outro, e os da "significao", que lhes so comuns; em suma, exatamente os mesmos que acima lembra-mos. No quer isso que o plano de estudos indicado por

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  • Meillet seja irrealizvel. O problema consistir antes em desco-brir a base comum lngua e sociedade, os princpios que regem essas duas estruturas, definindo-se primeiro as unidades que, numa e noutra, se prestariam comparao, ressaltando-se-lhes a interdependncia.

    H naturalmente maneiras mais fceis de abordar a questo, mas que na realidade a transformam; por exemplo, o estudo da impresso cultural na lngua. Na prtca, limitamo-nos ao lxico. J, ento, no da lngua que se trata, mas da composio do seu vocabulrio. H a, alis, matria muito rica e, apesar das aparncias, muito pouco explorada. Dispe-se agora de amplas compilaes que alimentaro numerosos trabalhos, principalmen-te do dicionrio comparativo de J. Pokorny ou do das noes, de C. D. Buck, sobre o domnio indo-europeu. O estudo das variaes nas significaes histricas outro domnio tambm prometedor. Importantes trabalhos foram dedicados "semn-tica" do vocabulrio nos seus aspectos tericos tanto quanto sociais ou histricos (Stern, Ullmann). A dificuldade consiste em destacar de uma crescente massa de fatos empricos as constan-tes que permitiriam construir uma teoria da siguificao lxica. Esses fatos parecem conter um desafio constante a toda possibi-lidade de previso. Sob qutro aspecto, a ao das "crenas" sobre a eJSpresso levanta numerosas questes das quais algumas foram estudadas: a importncia do tabu lingstico (Meillet, Havers), as modificaes das formas ling.isticas para indicar a atitude do falante em relao s coisas de que fala (Sapir), a hierarquia cerimonial das expresses focalizam a ao complexa dos com-portamentos sociais e dos condicionamentos psicolgicos no uso da lngua.

    Chega-se, assim, aos problemas do "estilo" em todas as suas acepes. Durante estes ltimos anos, estudos de tendncias muito diferentes, mas igualmente dignos de nota (Bally, Cressot, Marou-zeau, Spitzer, Vossler), apoiaram-se nos processos do estilo. Na medida em que uma pesquisa dessa ordem pe em jogo, cons-cientemente ou no, critrios ao mesmo tempo estti

  • segmentao dos dados observveis. Pode-se, ao contrrio, ter essa linguagem realizada em enunciados registrveis como a ma-nifestao contingente de uma infra-estrutura escondida. Nesse caso, a pesquisa e a elucidao desse mecanismo latente constitui-ro o objeto da lingstica. A linguagem admite tambm a sua constituio em estrutura de "jogo", como um conjunto de "figu-ras" produzidas pelas relaes intrnsecas de elementos constantes. A lingstica tornar-se- ento a teoria das combinaes possveis entre esses elementos e das leis universais que as governam. V-se ainda como possvel um estudo da linguagem enquanto ramo de uma semitica geral que cobriria ao mesmo tempo a vida mental e a vida social. O lingista ter ento que definir a natureza prpria dos smbolos lingsticos com a ajuda de uma formali-zao rigorosa e de uma metalngua diferente.

    Essa enumerao no exaustiva e no pode s-lo. Surgiro, talvez, outras concepes. Queremos apenas mostrar que, por trs das discusses e das afirmaes de princpio que acabamos de expor, existe com freqncia, sem que todos os lingistas a vejam claramente, uma opo preliminar que determina a posi-o do objeto e a natureza do mtodo. provvel que essas diversas teorias venham a coexistir, embora num ou noutro ponto do seu desenvolvimento devam necessariamente encontrar-se, at o momento em que se imponha o status da lingstica como cincia, no cincia dos fatos empricos mas cincia das relaes e das dedues, reencontrando a unidade do plano dentro da infinita diversidade dos fenmenos lingsticos.

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    CAPTULO 2

    vista d' olhos sobre o desenvolvimento da lingstica(2 )

    I

    Durante estes ltimos anos, sobrevieram, nos estudos que se fazem sobre a linguagem e as lnguas, mudanas considerveis cujo alcance ultrapassa mesmo o horizonte, no entanto vasto, da lingstica. Essas mudanas no se compreendem primeira vista; esquivam-se na sua prpria manifestao; com o tempo tornaram muito mais penoso o acesso aos trabalhos originais, que se encrespam de uma terminologia cada vez tcnica. inegvel: encontra-se grande dificuldade para ler os estudos dos lngistas, mas ainda mais para compreender as suas preocupa-es. A que visam e que fazem com esse algo que o patrimnio de todos os homens e no cessa de atrair a sua curiosidade: a lngua? Tem-se a impresso que, para os lingistas de hoje, os fatos da linguagem se transmudam em abstraes, se tornam nos ma-teriais inumanos de construes algbricas ou servem de argu-mentos a discusses ridas sobre mtodo, e de que a lingstica se afasta das realidades da linguagem e se isola das outras cincias humanas. Ora, exatamente o contrrio. Comprova-se, ao mes-mo tempo, que esses mtodos novos da lingUstica assumem o valor de exemplo e mesmo de modelo para outras disciplinas, que os problemas da linguagem interessam agora a especialidades

    2. C. R. Acadmie des inscriptions et belles-lettres, Paris, Librairie C. Klinck-sieck, 1963.

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  • muito diversas e cada vez mais numerosas e que uma corrente de pesquisas leva as cincias do homem a trabalhar dentro do mesmo esprito que anima os lingistas.

    Assim, pois, talvez seja til expor, to simplesmente quanto possvel dentro desse assunto difcil, como e por que a lingstica se transformou assim, a partir dos seus incios.

    Comecemos por observar que a lingstica tem duplo objeto: ~ cincia da linguagem e cincia das lnguas .. Essa distino, que nem sempre se faz, necessria: a linguagem, faculdde humana, caracterstica universal e imutvel do homem, no a mesma coisa que as lnguas, sempre particulares e variveis, nas quais se realiza. das lnguas que se ocupa o lingista e a lingstica em primeiro lugar a teoria das lnguas. Dentro da perspectiva em que nos aqui colocamos, veremos que. essas vias diferentes se entrelaam com freqncia e finalmente se confundem, pois os problemas infinitamente diversos das lnguas tm em comum o fato de que, a um certo grau de generalidade, pem sempre em questo a linguagem.

    Todos sabem que a lingstica ocidental nasce na filosofia grega. Tudo proclama essa filiao. A nossa terminologia lin-gstica se compe em grande parte de termos gregos adotados diretamente ou na sua traduo latina. Mas o interesse que os pensadores gregos tiveram muito cedo pela lngua era exclusi-vamente filosfico. Raciocinavan1 sobre a sua condio original

    a linguagem natural ou convencional? - muito mais do que lhe estudavam o funcionamento. As categorias que instau-raram (nome, verbo, gnero gramatical, etc.) repousam sempre sobre bases lgicas ou filosfcas.

    Durante sculos, dos pr-socrticos aos esticos e aos ale-xandrinos, e depois no renascimento aristotlico que estende o pensamento grego at o fim da idade mdia latina, a lngua per-maneceu objeto de especulao, no de observao. Ningum se preocupou, ento, em estudar e descrever uma lngua por ela mesma, nem em verificar se as categorias fundadas em gramtica grega ou latina tinham validade geral. Essa atitude no mudou absolutamente at o sculo XVIII.

    Uma fase nova abre-se no incio do sculo XIX com a des-coberta do snscrito. Descobre-se ao mesmo tempo que existe

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    uma relao de parentesco entre as lnguas a partir da chamadas indo-europias. Elabora-se a lingstica dentro dos quadros da gramtica comparada, com mtodos que se tornam cada vez mais rigorosos medida que achados ou decifraes favorizam essa cincia nova com confirmaes do seu princpio e acrescncias no seu domnio. A obra realizada no decurso de um sculo ampla e bela. O mtodo experimentado sobre o domnio indo-europeu tornou-se exemplar. Renovado hoje, conhece novos su-cessos. Mas preciso ver que, at os primeiros decnios do nosso sculo, a lingstica consistia essencialmente numa gentica das lnguas. Fixava-se, para tentar estudar a evoluo das formas lingsticas. P:opunha-se como cincia histrica, e o seu objeto era, em toda parte e sempre, uma fase da histria das lnguas.

    No meio desses sucessos, entretanto, algumas cabeas inquie-tavam-se: qual a natureza do fato lingstico? Qual a reali-dade Cla lngua? verdade que no consiste seno na mudana? Mas como, embora mudando, permanece a mesma? Como ento funciona e qual a relao dos sons com o sentido? A lingstica histrica no dava nenhuma resposta a essas questes, pois jamais havia precisado prop-las. Ao mesmo tempo, surgiam dificulda-des de ordem totalmente diferente, mas igualmente temveis. Os lingistas comeavam a interessar-se pelas linguas no escritas e sem histria, principalmente pelas lnguas indgenas da Amrica, e descobriam que os quadros tradicionais empregados para as lnguas indo-europias no se aplicavam ai. Tratava-se de cate-gorias absolutamente diferentes que, escapando a uma descrio histrica, obrigavam elaborao de novo aparato de defini-es e a novo mtodo de anlise.

    Pouco a pouco, atravs de muitos debates tericos e sob a inspirao do Cours de linguistque gnrale de Ferdinand de Saussure (1916), determina-se uma nova noo da lngua. ili . . li!1gistas tomam cons.cincia da, t&r:ef'Jlt:L.~Jh~, .. J!Q,~_ ~.1!:19r e_c!,escrever po.r _tnejqd_~ .. Jlrote:nic. Q~qJJl ~J)_JiclQ.~Jingi,istica atua~~ no misturar nenhum pressuposto terico ou his:-J

  • fmn1as lingsticas mas, em primeiro lugar, J:l realdade in-~'"'tc~!-~
  • ela se compe unicamente e definindo esses elementos pela sua dependncia mtua. Em vez de uma srie de "ocor~ncias". s~n- guiares, inumerveis, continge~tes, obtemos um ~u~~r~ fuuto de unidades e podemos caractenzar uma estrutura hngmstlca pela sua distribuio e pelas suas combinaes possveis.

    V-se claramente, procedendo a anlises que versam sobre sistemas diferentes, que uma forma lingstica constitui uma estrutura definida: 1." uma unidade de globalidade que envolve partes; 2.0 essas partes apresentam-se num arranjo. f~rmal que obedece a certos princpios constantes; 3." o que da a forma o carter de uma estrutura o fato de que as partes constituintes exercem uma funo; 4.0 finalmente essas partes constitutivas so unidades de um certo nvel, de. modo que cada unidade de um nvel definido se torna subunidade do nvel superior.

    Todos os momentos essenciais da lngua tm um carter descontnuo e pem em jogo unidades discretas. Pode dizer-se que a lngua se caracteriza menos pelo que exprime do que pelo que distingue em todos os nveis: . , .

    - distino dos lexernas permitindo levantar o mventano das noes designadas;

    distino dos morfemas fornecendo o inventrio das classes e subclasses formais;

    distino dos fonemas dando o inventrio das distines fonolgicas no significantes;

    - distino dos "merismas" ou traos que ordenam os fo-nemas em classes.

    Isso o que faz com que a lngua seja um sistema em que nada signifique em si e por vocao natural, mas em 9ue tudo signifique em funo do conjunto; a estrutura confere as par:es a sua "significao" ou a sua funo. Isso tambm o que perm1te a comunicao indefinida: como a lngua organizada sistema-ticamente e funciona segundo as regras de um cdigo, aquele que fala pode, a partir de um pequenssimo nmero de elementos de base, cor~stituir signos, depois grupos de signos e finalmente uma variedade indefinida de enunciados, todos identificveis por aquele que os percebe pois o mesmo sistema ~st~ es~tabelecido ~e~e.

    V-se como as noes de sistema, de d1stmao, de opos1ao se apiam estreitamente e chamam, por necessidade .lg~ca, as noes de dependncia e de solidariedade. H unm sohdanedade

    24

    J

    dos membros de uma oposio, de modo que se um deles atin-gido, o status do outro se ressente e, em conseqncia do equilbrio do sistema, afetado, o que pode levar ao reequlbrio criando-se uma nova oposio sobre um outro ponto. Cada lngua oferece quanto a isso uma situao particular, em cada momento da sua histria. Essa considerao reintroduz hoje em lingstica a noo de evoluo, especificando a diacronia como a relao entre sistemas sucessivos.

    A abordagem descritiva, a conscincia do sistema, a preocupa-o de levar a anlse at as unidades elementares, a escolha explcita dos procedimentos so outros tanto;; traos que cara~terizam os trabalhos lingsticos modernos. E claro que na pra-tica h numerosas divergncias, conflitos de escolas, mas ns nos limitamos aqui aos princpios mais gerais e os princpios so sempre mais interessantes que as escolas.

    Descobre-se agora que essa concepo da linguagem teve os seus precursores. Estava implcita naquele que os descritivistas modernos reconhecem como seu primeiro antepassado, o gram-tico hindu Panini, que, pelos meados do IV sculo antes da nossa era. havia codificado a lngua vdica em frmulas de uma

    densidad~ exemplar: descrio formal, completa, rigorosa, no maculada por qualquer interpretao especulativa ou mstica. Mas preciso tambm fazer justia a precursores que no eram gramticos e cuja obra subsiste, geralmente annima, fundamen-tal e menosprezada, to presente em todos os instantes da nossa vida que no reparamos mais nela: quero falar dos inventores dos nossos alfabetos modernos. Que um alfabeto possa haver sido inventado, que com um pequeno nmero de sinais grficos se possa escrever tudo o que se pronuncia, s isso j demonstra a estrutura articulada da linguagem. O alfabeto latino, o alfabeto armnio so admirveis exemplos de notao que se chamaria fonemtica. Um analista moderno no teria quase nada para mudar a: as distines reais so reconhecidas, cada letra corres-ponde sempre e somente a um fonema, e cada fonema reprodu-zido por uma letra sempre a mesma. A escrita alfabtica difere assim no seu princpio da escrita chinesa que morfemtca ou da escrita cuneiforme que silbica. Os que organizaram seme-lhantes alfabetos para notar os sons da sua lngua reconheceram

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  • por instinto - fonematistas por excelncia que os sons variados que se pronunciam reduziam-se a um nmero muito limitado de unidades distintivas que deviam por um n-mero igual de unidades grficas. Da mesma forma operam os lingistas modernos quando tm de notar as lnguas de tradio oral. Temos nesses alfabetos os modelos de anlise: as unidades grficas do alfabeto, c as suas combinaes em grande nmero de agrupamentos especficos, do a mais prxima imagem da estrutura das formas lingsticas que elas reproduzem.

    JI

    No apenas a forma lingstica que depende dessa anlise; convm considerar paralelamente a funo da linguagem.

    A linguagem reproduz a realidade. Isso deve entender-se da ~aneir~ .mms I~terF ~ realit~~

  • distinto do objeto concreto, que no seno um exemplar dele. A est o fundamento da abstrao ao mesmo tempo que o prin-cpio da imaginao criadora. Ora, ~~~L C~P
  • samento n~g~-~!!! .. SJ!lp_l~.fe.fleJ:g_!Q_J}}t.JJlQQ~lf!.~jfifJ! realidad~ ~-!~.'::.~.De fato, a faculdade simblica no homem atings::--lilla reali-zao s1 1prema . ..na ... linguage~. que. ... .. ... a...expt:e.'l.lo. . .s.im.b.Q.lica por

    excel~..QC.?.!:_;_Jodos os outros sistemas de comunicaes, grficos, gestuais, visuais, derivam dela e a supem. Mas --linru.ggs:_m

    lC:!PJLSimb{>JiQ ... elpial, .. org;m.izdo. ...

  • qualquer que seja o nvel de civlizao. Consiste numa multido de noes e de prescries, e tambm em interdies especficas; o que uma cultura probe a caracteriza ao menos tanto quanto aquilo que prescreve. O mundo anima1 no conhece proibio. Ora,_ __ ;:is~fenm~!lQ_humanQ,__a _ _:ultl!L4.,J~ ... u.m .. f~D.illC.U.!DJ~:~I: mente simblicoJA: cultura define-se como um conjunto muito \

    --complexo de representaes, organizadas por um cdigo de -' relaes e de valores: tradies, religio, leis, poltica, tica, artes,; tudo isso de que o homem, onde quer que nasa, ser impreg-! nado no mais profundo da sua conscincia, e que dirigir o seu! comportamento em todas as formas da sua atividade, o que l seno um universo de smbolos integrados numa estrutura es-;

    \_ pecfica e que a linguagem manifesta e transmite?\Pela lngua, -o homem assimila a cultura, a perpetua ou a transforma. Ora, assim como cada lngua, cada cultura emprega um aparato espe-cfico de smbolos pelo qual cada sociedade se identifica. A diver-sidade das lnguas, a diversidade culturas, as suas mudanas mostram a natureza convencional do simbolismo que as articula. definitivamente o smbolo que prende esse elo vivo entre o homem, a lngua e a cultura.

    Eis em grandes traos a perspectiva aberta pelo recente desenvolvimento dos estudos lingstica. Aprofundando a na-tureza da linguagem, descobrindo as suas relaes tanto com a inteligncia como com o comportamento humano ou os fun-damentos da cultura, essa investigao comea a esclarecer o funcionamento profundo do esprito nas suas operaes. As cincias vizinhas seguem esse progresso e cooperam com ele, por sua conta, inspirando-se nos mtodos e s vezes na termino-logia da lingstica_. Tudo leva a crer que essas pesquisas para-lelas geraro novas disciplinas e concorrero para uma verdadeira cincia da cultura que fundar a teoria das atividades simblicas do homem. Por outro lado, sabe-se que as descries formais das lnguas foram de utilidade direta para a construo das mquinas lgicas aptas a efetuar tradues; e inversamente pode esperar-se das teorias da informao algum esclarecmento sobre a maneira como o pensamento est codificado na linguagem. No desenvolvimento dessas pesquisas e dessas tcnicas, que marcaro a nossa poca, percebemos o resultado de simbolzaes

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    sucessivas, cada vez mais abstratas, que tm o seu fundamento primeiro e necessrio no simbolismo lingstico. Essa crescente formr:tlizao do pensamento nos encaminha talvez para a des-coberta de 'uma realidade maior. No poderamos nem mesmo conceber essas representaes se a estrutura da linguagem no contvesse o seu modelo inicial e como que o seu longnquo pressentimento.

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  • CAPTULO 3

    saussure aps meio sculo(4 >

    Ferdinand de Saus&ure morreu a 22 de fevereiro de 1913. Eis-nos reunidos cinqenta anos depois, na mesma data, a 22 de fevereiro de 1963, para uma comemorao solene, na sua cidade, na sua universidade< 5l. Essa figura assume agora os seus traos autnticos, aparece-nos na sua verdadeira grandeza. No h um s lingista hoje que no lhe deva algo. No h uma s teoria geral que no mencione o seu nome. Algum mistrio envolve a sua vida humana, que cedo se retirou para o silncio. da obra que trataremos. A uma tal obra apenas convm o elogio que a explica na sua gnese e faz compreender o seu brilho.

    Vemos hoje Ferdinand de Saussure de maneira totalmente -diferente da dos seus contemporneos. Toda uma parte dele

    mesmo, sem dvida a mais importante, no foi conhecida seno aps a sua morte. A cincia da linguagem foi pouco a pouco transformada por sua causa. O que foi que Saussure trouxe lingstica do seu tempo, e em que agiu sobre a nossa?

    Para responder a essa questo, poder-se-ia ir de cada um dos seus escritos ao seguinte, analisar, comparar, discutir.

    4. Cahiers Ferdiuand de Saussure, 20, Genebra, Libraire Droz (1963). 5. Estas pginas reproduzem o essencial de uma conferncia feita em Genebra

    no dia 22 de fevereiro de 1963. a convite da Universdadt::, para comemorar o dnqentenrio da morte de Ferdinand de Saussure. Algumas frases limi-nares, todas pessoais, foran~ suprimidas. No se dever esquecer que esta exposio foi concebida com vistas a um pblico mas amplo que o dos lingistas e que a circunstncia exclua qualquer discusso e mesmo qualquer enunciado muito tcnico.

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    Semelhante inventrio crtico seria, sem dvida, necessrio. O belo e importante trabalho de Godel(61 contribui, j, amplamente para isso. Mas no esse o nosso propsto. Deixando a outros o cuidado de descrever em pormenores essa obra, tentaremos

    reapr~ender-lhe o princpio segundo uma exigncia que a anima e que, de fato, a constitui.

    H em todo criador uma certa exigncia, escondida, perma-nente, que o sus~enta e o devora, que lhe guia os pensamentos, lhe designa a sua tarefa, estimula-o nas suas fraquezas e no lhe d trgua quando tenta escapar-lhe. Nem sempre fcl re-conhec-la nas diversas operaes, s vezes vacilantes, a que se entrega a reflexo de Saussure. Mas, uma vez percebida, iluminfl. o sentido do seu esforo, e o coloca frente a frente com o.> seus precursores, como em relao a ns.

    Saussure em primeiro lugar e sempre o homem dos fun-damentos. Vai por instinto aos caracteres primordiais, que go-vernam a diversidade dos dados empricos. Naquilo que pertence lngua, pressente certas propriedades que no se encontram em nenhum outro lugar a no ser a. Com o que quer que a com-paremos a lngua aparece sempre como algo de diferente. Mas em que diferente? Considerando essa atividade, a linguagem, na qual tantos fatores esto associados, biolgicos, fisicos e psquicos, individuais e sociais, histricos, estticos, pragmticos, ele se pergunta: a qual deles pertence a lngua?

    Poder-se-ia precisar a forma dessa interrogao reduzindo-a aos dois problemas seguintes, que podemos pr no centro da doutrina saussuriana:

    1.0 Quais so os dados de base sobre os quais a hngstca se fundar, e como podemos atingi-los?

    2.0 De que natureza so as noes da linguagem e por que tipo de relao se articulam?

    Percebemos essa preocupao em Saussure desde a sua entrada na cincia, com o seu M moire sur le systerne primittl des voyelles dans les langues indo-europennes, publicado quando tinha vinte e um anos, e que permanece como um dos seus ttulos

    6. Les sources manuscrites du Cours de linguistique gnrale de F erdinand de Saussure, l957.

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  • de glria. O estreante genial ataca um dos problemas mais di-ficeis da gramtica comparativa, uma questo que, na verdade; ainda uo existia e que ele foi o primeiro a formular nos seus termos prprios. Por que escolheu, dentro de um domnio to vasto e to prometedor, um objeto to rduo? Releiamos o seu prefcio. Explica a que a sua inteno consistia em estudar as multiplas formas do a indo-europeu, mas que foi levado a encarar "o sistema das vogais lh) seu conjunto". Isso o leva a tratar "uma srie de problemas de fontica e de morfologia, dos quais alguns esperam ainda soluo e outros nem foram ainda propostos". E como para desculpar-se de ter de "atravessar as regies mais incultas da lingstica indo-europia", acrescenta esta justifica-tiva bastante esclarecedora:

    "Se apesar disso nos aventuramos nesse campo, bem con-vencidos de antemo de que a nossa inexperincia se perder muitas vezes no ddalo, porque, para qualquer um que se dedique a esses estudos, atacar essas questes no uma teme-ridade, como freqentemente se diz, mas uma necessidade; a primeira escola por onde se tem de passar; pois se trata aqui no de especulaes de uma ordem transcendente, mas da pes-quisa de dados elementares, sem os quais tudo flutua, tudo arbitrariedade e incerteza".

    Estas ltimas linhas poderiam servir de epgrafe a toda a sua obra. Contm o programa da sua pesquisa futura, pressagiam a sua orientao e o seu objetivo. At o fim da sua vida, e cada vez mais insistentemente, dolorosamente se poderia dizer, me-dida que se adianta na sua reflexo, vai procura dos ''dados elementares" que constituem a linguagem, desviando-se pouco a pouco da cincia do seu tempo, em que no v seno "arbitra-riedade e incerteza", numa poca em que a lingstica indo-euro-pia, segura dos seus mtodos, procurava atingir, com crescente sucesso, o mtodo comparativo.

    So exatamente os dados elementares que preciso desco-brir, mesmo (gostaramos de escrever: sobretudo) quando nos propomos remontar de um estado de lngua histrico a um estado pr-histrico. De outra maneira no se pode justificar a evoluo histrica, pois se h histria, a histria de qu? O que que muda e o que que permanece? Como podemos dizer

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    de um dado lingstico, tomado em dois momentos da evoluo, que o mesmo dado? Em que reside essa identidade, e j que proposta pelo lingista entre dois objetos, como a definiremos? preciso uin co~po de definies. preciso enunciar as relaes lgicas que estabelecemos entre os dados, os traos ou os aspectos sob os quuis os apreendemos. Assim, ir aos fundamentos o umco meio - mas o meio seguro de explicar o fato concreto e contingente. Para atingir o concreto histrico, para substituir o contingente na sua prpria necessidade devemos situar cada elemento na rede de relaes que a determina, e estabelecer expli-citamente que o fato s existe em virtude da definio que lhe damos. Essa a evidncia que se impe desde o incio a Saussure e que a sua vida toda lhe ser insuficiente para introduzir na lmgs'tica.

    Mesmo, porm, que ele houvesse podido formular ento o que s' deveria ensinar mais tarde, no teria feito mais que aumen-tar a incompreenso ou a hostilidade que encontraram os seus primei:os ensaios.

    Os mestres de ento, seguros da sua verdade, recusavam-s~ a ouvir essa formulao rigorosa, e a prpria dificuldacle do M moire bastava para desgostar a maioria. Saussure ia, talvez, desencorajar-se. Foi necessria uma nova gerao para que as suas idias lentamente seguissem o seu caminho. Foi um destino favorvel que ento o conduziu a Paris. Reencontrou alguma confiana em si mesmo graas a essa conjuntura excepcional que o levou a encontrar ao mesmo tempo um tutor benevolente, Bral, e um grupo de lingistas jovens, como A. Meillet e M. Grammont, que o seu ensinamento devia marcar profundamente. Uma nova fase da gramtica comparada data desses anos em que Saussure transmite a sua doutrina, ao mesmo tempo em que a amadurece, a alguns dos que a desenvolvero. por isso que relcmbrams, no apenas para avaliar a influncia pessoal de Saussure, mas para estimar o progresso das idias que eles anun-ciam, os termos da dedicatria que Meillet fez ao seu professor Saussure em 1903 da sua Introducti01i' l'tude comparative des langues indo-europennes "por ocasio dos vinte e cinco anos decorridos desde a publicao do Mmoire ... (1878-1903)". Se houvesse dependido s de Meillet, o acontecimento teria sido

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  • ainda mais marcado: uma carta indita de Saussure nos revela que Meillet havia querido inicialmente escrever: "para o aniver~ srio da publicao ... ", e que Saussure amistosamente o havia dissuadido.

    . Mesmo em 1903, isto , vinte e cinco anos depois, ainda no se podia saber tudo o que continha de intuies divinatrias o Mmoire de 1878. um brilhante exemplo. Saussure havia percebido que o sistema voclico do indo-europeu continha v-rios aa. luz do. conhecimento puro, os diferentes aa do indo-europeu so objetos to importantes quanto as partculas funda-mentais em fisica nuclear. Ora, um desses aa tinha a singular propl:iedade de comportar-se diferentemente dos seus dois con-gneres voclicos. Muitas descobertas comearam por uma obser-vao semelhante, uma discordncia num sistema, uma perturba-o num campo, um movimento anormal numa rbita. Saussure caracteriza esse a por dois traos especficos. De um lado, no parente nem de e nem de o; de outro, coeficiente sonntico, isto , susceptvel de desempenhar o mesmo papel duplo, voclico e consonntico, das nasais ou das lquidas, e se combina com vogais. Observemos que Saussure fala dele como de um fonema, e no como de um som ou de uma articulao. No nos diz como se pronunciava esse fonema, de que som poderia aproximar-se nesse sistema observvel; nem mesmo se era uma vogal ou uma consoante. A substncia fnica no considerada. Estamos na presena de uma unidade algbrica, um termo do sistema, a que ele chamar mais tarde uma entidade distintiva e opositiva. No se pode dizer que, mesmo vinte e cinco anos aps haver sido publicada, essa observao tenha despertado muito interesse. Seriam necessrios mais vinte e cinco anos para que ela se im-pusesse, em circunstncias que a imaginao mais audaciosa no teria podido conceber. Em 1927, M. Kurylowicz tomava a en-contrar numa lngua histrica, o hitita, ento recentemente deci~ frada, sob a forma do som escrito tJ, o fonema definido cinqenta anos antes por Saussure como fonema sonntico indo-europeu. Essa bela observao fazia entrar na realidade a entidade terica postulada pelo raciocnio em 1897.

    Naturalmente, a realizao fontica dessa entidade como lJ em hitita trazia ao debate um elemento novo, mas de natureza

    diferente. A partir da, duas orientaes manifestaram-se na pes-quisa. Para uns, tratava-se antes de tudo de avanar mais a investigao terica, de elucidar, principalmente na morfologia indo-europ6ia, os efeitos e as combinaes desse "coeficiente sonntico". Descobre-se hoje que esse fonema no nico, que representa uma classe inteira de fonemas, desigualmente represen-tados nas lnguas histricas, e que se chamam os "larngeos". Outros lingistas acentuam, pelo contrrio, a anlise descritiva desses sons; procuram definir-lhes a realidade fontica; e como o nmero desses larngeos ainda matria para discusso, v-se de ano para ano multiplicarem-se .as interpretaes, que do origem a novas controvrsias. Esse problema est hoje no centro da teoria do indo-europeu; apaixona os diacronistas tanto quan-to os' descritivistas. Tudo isso atesta a fecundidade das vises introduzidas por Saussure, e que no se cumpriram a no ser nestes ltimos decnios, meio sculo aps haverem sido publi-cadas. At mesmo os lingistas de hoje que no leram o Mmoire lhe so devedores.

    Eis portanto Saussure que progride ainda jovem na carreira, com a estrela na testa. recebido cordialmente na cole de Hautes tudes, onde encontra logo discpulos que o seu pensa-mento encanta e inspira, e na Socit de Linguistique, onde Bral cedo o encarrega do secrewriado adjunto: uma carreira fcil se abre diante dele e tudo parece anunciar uma longa seqncia de descobertas. A expectativa no frustrada. Relembremos apenas os seus artigos fundamentais sobre a entonao bltica, que mostram a profundidade da sua anlise e permanecem como modelos para os que se aventuram nas mesmas pesquisas. ine-gvel, entretanto, o fato observado - e lamentado pelos que tiveram de falar de Saussure nesses anos, que a sua produo logo diminui. Limita-se ele apenas a alguns artigos cada vez mais espaados e que no escreve, alis, a no ser para ceder a soli-citaes de amigos. Voltando a Genebra para ocupar uma cte-dra na universidade, pra quase completamente de escrever. E no entanto nunca parou de trabalhar. O que, ento, o impedia de publicar? Comeamos a sab-lo. Esse silncio esconde um drama que deve ter sido doloroso, que se agravou com os anos, que inclusive jamais encontrou soluo. Prende-se de um lado a

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  • circunstncias pessoais, sobre as quais os testemunhos dos seus parentes e dos Seus amigos poderiam lanar alguma 1uz. Era sobretudo um drama do pensamento. Saussure afastava-se da sua poca na mesma medida em que se tornava pouco a pouco senhor da sua prpria verdade, pois essa verdade o fazia rejeitar tudo o que ento se ensinava a respeito da linguagem. Mas ao

    me~:.mo tempo em que hesitava diante dessa reviso radical que sentia necessria, no podia resolver-se a publicar a menor nota antes de haver assegurado, em primeiro lugar, os fundamentos da teoria. A que profundidade essa perturbao o atingia e quanto s vezes, ele chegava perto de desanimar., o que revela um documento singular, um passo de uma carta a Meillet (4 de ja-neiro de 1894) em que, a propsito dos seus estudos sobre a entonao bltica, ele confessa:

    "Estou muito desgostoso com tudo isso e com a dificuldade que h, em geral, para escrever dez linhas quando se tem senso comum em matria de fatos de 1inguagem. Preocupado sobretudo, h muito tempo, com a classificao lgica desses fatos, com a classificao dos aspectos sob os quais os tratamos, vejo cada vez mais, tambm, a imensidade do trabalho que seria necessrio para mostrar ao lingiiista o que ele faz, reduzindo cada operao sua categoria prevista; e, ao mesmo tempo, a grande insigni-tcncia de tudo o que se pode fazer, finalmente, em lingstica.

    "Em ltima anlise somente o lado pitoresco de uma lngua o que faz com que ela se distinga de todas as outras como per-tencendo a um certo povo que tem certas origens, esse lado quase etnogrfico, que conserva interesse para mim: e, precisa-mente, no tenho mais o prazer de poder entregar-me a esse estudo sem desconfiana, e de desfrutar do fato particular que se prende a um meio particular.

    "Sem cessar, a absoluta inpcia da terminologia corrente, a necessidade de reform-la e de mostrar para isso que espcie de objeto a lngua em g~ral vem estragar o meu prazer histrico, embora eu no tenha nenhum desejo mais caro do que no precisar ocupar-me da lngua em geral.

    "Isso, contra a minha vontade, acabar num livro, em que, sem entusiasmo nem paixo, explicarei por que no h um s termo empregado em lingstica ao qual eu atribua um sentido

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    qualquer. s depois disso, confesso-o, que poderei retomar o meu trabalho no ponto em que o havia deixado.

    "Eis a uma disposio, talvez estpida, que explicaria a Duvau por que, por exemplo, atrasei mais de um ano a publica-o de um artigo que no oferecia materialmente nenhuma difi-culdade - sem chegar, alis, a evitar as expresses logicamente odiosas, porque para isso seria necessria ).lma reforma decidi-damente radical"

  • lugar s preocupaes tericas. E Saussure permanecia sozinho com os seus problemas. A imensidade da tarefa que devia ser cumprida, o carter radical da reforma necessria podiam fa-z-lo hesitar, s vezes desencoraj-lo. Apesar disso no renuncia. Sonha com um livro em que dir tudo isso, em que apresentar as suas opinies e empreender a refundio completa da teoria.

    Esse livro no ser jamais escrito, mas restam dele esboos, sob a forma de notas preparatrias, de observaes jogadas rapi-damente, de rascunhos, e quando, para exercer obrigaes uni-versitrias, tiver de dar um curso de lingstica geral, retomar os mesmos temas e os estender at o ponto em que os conhecemos.

    Reencontramos, de fato, no lingista de 1910 o mesmo obje-tivo que guiava o estreante de 1880: garantir os fundamentos da lingstica. Recusa os quadros e as noes que v empregar em toda parte, porque lhe parecem estranhos natureza prpria da lngua. Qual essa natureza? Explica-as brevemente em algumas dessas notas, fragmentos de uma reflexo que no pode nem renunciar nem fixar-se completamente:

    "Acol h coisas, h objetos determinados, que temos a li-berdade de considerar atravs de prismas diferentes. Aqui, h em primeiro lugar prismas, exatos ou falsos, mas apenas prismas, com a ajuda dos quais se criam secundariamente as coisas. Aconte-ce que essas criaes ou correspondem a realidades quando o ponto de partda exato ou no correspondem, no caso contrrio; mas nos dois casos coisa nenhuma, objeto nenhum determinado por um instante em si. Nem mesmo quando se trata do fato mais material, mais evidentemente definido em si na aparncia, como seria uma seqncia de sons vocais.

    "Eis aqui a nossa profisso de f em matria lingstica: em outros domnios, pode falar~se das coisas atravs deste ou de~quele prisma, com a certeza de reencontrar um terreno firme no prprio objeto. Em lingstica, negamos em princpio que haja objetos dados, que haja coisas que continuem a existir quando se passa de uma ordem de idias a outra e que seja poss-

    8. C.F.S., 12 (1954), p. 57 e 58.

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    vel, conseqentemente, permitirmo-nos considerar "coisas" em vrias ordens, como se fossem determinadas por elas mesmas''.

    Essas reflexes explicam por que Saussure considerava to importante mostrar ao lingista "o que ele faz". Queria fazer compreender o erro em que se envolveu a lingstica desde que estuda a linguagem como uma coisa, como um organismo vivo ou como matria que se analisa por uma tcnica instrumental, ou ainda ,como uma criao livre e incessante da imaginao humana. E preciso voltar aos fundamentos, descobrir esse objeto que a linguagem, a que nada pode ser comparado.

    Que , ento, esse objeto, que Saussure erige sobre uma tbua rasa de todas as noes recebidas? Tocamos aqui no que h d~ primordial na doutrina saussuriana, num princpio que presume uma intuio total da linguagem, total ao mesmo tempo porq\le contm o conjunto da sua teoria, e porque abarca a tota-lidade do seu objeto. Esse princpio que q,_lnguaggJ_t, como quer/ qude se estude, ~~!!_bjeto d~I?_lQ_fO!_~~E.A est, parece-me, o centro da doutrina, o princpio de onde procede todo o aparato de noes e de distines que forma o Cours publicado. Realmente, tudo na linguagem tem de ser de-finido em termos duplos; tudo traz a marca e o selo da dualida-de opositiva: _

    - dualidade artculatria/acstica; - dualidade do som e do sentido;

    dualidade do indivduo e da sociedade; - dualidade da lngua e da fala; - dualidade do material e do no-substancial; - dualidade do "memorial" (paradigmtico) e do sintag-

    mtico; dualidade da identidade e da oposio; dualidade do sincrnico e do diacrnico, etc.

    E, mais uma vez, nenhum dos termos assim opostos tem valor por si mesmo ou remete a uma realidade substancial; cada um deles adquire o seu valor pelo fato de que se ope ao outro:

    "A lei absolutamente final da linguagem consiste, se ousamos diz-lo, em que no h nada, jamais, que possa residir em um

    9. C.F.S., 12 (1954), p. 58.

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  • termo; isso conseqncia direta do fato de que os smbolos lingsticos no tm relao com aquilo que devem designar; assim, pois, a impotente para designar algo sem o concurso de b e o mesmo ocorre com este, sem o concurso de a; ambos s tm valor pela sua diferena recproca, ou nenhum tem valor, mesmo por uma parte qualquer dele mesmo (suponho "a raiz", etc.), a no ser por esse mesmo plexo de diferenas eternamente negativas"< to).

    "Como a linguagem no oferece, em nenhuma das suas ma-nifestaes, uma substncia, mas somente aes combinadas ou isoladas de foras fisiolgicas, psicolgicas, mentais; e como apesar disso todas as nossas distines, toda a nossa terminologia, todas as nossas maneiras de falar so moldadas sobre essa supo-sio involuntria de uma substncia, no podemos recusar-nos, antes de tudo, a reconhecer que '. teoria da linguagem ter como tarefa mais essencial deslindar o que resta das nossas primeiras distines. -nos impossvel aceitar que se tenha o direito de estabelecer uma teoria desprezando esse trabalho de definio, embora essa maneira cmoda tenha parecido at hoje satisfazer o pblico lingstico"

  • volveu numa nova disciplina, a fonologia, teoria das funes distintivas dos fonemas, teoria das estruturas das suas relaes. Quando a fundaram, N. Trubetzkoy e R. Jakobson reconheceram expressamente tanto em Saussure como em Baudoin de Cour-tenay os seus precursores.

    A tendncia estruturalista que se firma a partir de 1928, e que deveria, a seguir, ser posta no primeiro plano, tem assim as suas origens em Saussure. Embora este no tenha jamais empre-gado num sentido doutrinai o termo "estrutura" (palavra que, alis, por haver servido de bandeira a movimentos muito dife-rentes, acabou por esvaziar-se de qualquer contedo preciso), certa a filiao a Saussure de todos os que procuram na relao dos fonemas entre si o modelo _da estrutura geral dos sistemas lingsticos.

    Talvez seja til situar atravs desse prisma uma das escolas estruturalistas, a mais caracterizada nacionalmente, a escola ame-ricana, na medida em que traz a autoridade de Bloomfield. Sabemos muito bem que Bloomfield havia escrito uma anlise muito elogiosa do Cours de linguistique gnrale, na qual, louvan-do Saussure pela distino entre lngua e fala, conclua: "He has given us the theoretical basis for a science of human speech"

  • Nenhuma cincia do homem escapar a essa reflexo sobre o seu objeto e sobre o seu lugar no seio de uma cincia geral da cultura, pois o homem no nasce dentro da natureza mas dentro da cultura.

    Que estranho destino esse das idias, e como parecem s vezes viver pela sua prpria vida, revelando ou desmentindo ou recriando a figura do seu criador. Pode-se pensar durante muito tempo sobre esse contraste: a vida temporal de Saussure com-parada com o destino das suas idias. Um homem sozinho dentro do seu pensamento durante quase toda a sua vida, no podendo consentir em ensinar aquilo que julga falso ou ilusrio, sentindo que preciso refundir tudo, cada vez menos tentado a faz-lo e, finalmente, aps muitos desvios que no podem arranc-lo ao tormento da sua verdade pessoal, comunicando a alguns ouvintes, sobre a natureza da linguagem, idias que no lhe pareciam jamais suficientemente amadurecidas para serem publicadas. Morre em 1913, pouco conhecido fora do crculo restrito dos seus alunos e de alguns amigos, j quase esquecido pelos seus contemporneos. MeiHet, na bela nota biogrfica que ento lhe dedica, lamenta que essa vida terrnine sobre uma obra incom-pleta: "Aps mais de trinta anos, as idias expressas por Ferdinand de Saussure no seu trabalho de estria, no esgotaram a sua fecundidade. E, no entanto, os seus discpulos tm a impresso de que ele no ocupou - bem longe disso -- na lingstica do seu tempo o lugar que lhe deviam valer os seus dons geniais ... "< 15 l. E termina com este lamento pungente: "Ele havia produzido o mais belo livro de grmtica comparada que se escreveu, semeado idias e proposto teorias firmes, posto a sua marca sobre nume-rosos alunos e, no entanto, no havia cumprido todo o seu destino"

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  • CAPTULO 4

    natureza do signo lingstico

  • (p. 120). Isso deve estabelecer que "o elo que une o significante ao significado arbitrrio" ou, m!iis simplesmente, que "o signo. lingstico arbitrrio". Por "arbitrrio", o autor entende que " imotivado, quer dizer arbitrrio em relao ao significado com o qual no tem nenhuma ligao natural na realidade" (p. 103). Esse carter deve, pois, explicar o prprio fato pelo qual se veri-fica: a saber, que para uma noo, as expresses variam no tempo e no espao, e em conseqncia no tm com ela nenhuma relao necessria.

    No sonhamos em discutir essa concluso em nome de outros princpios ou partindo de definies diferentes. Trata-se de saber se coerente, e se, admitida a bipartio do signo (e ns a admitimos), se deve em conseqncia caracterizar O signo COm arbitrrio. Acabamos de ver que Saussure toma o signo lings-tico como constitudo por um significante e um significado. Ora - isto essencial- ele entende por "significado" o conceito. Declara literalmente (p. 100), que "o signo lingstico une no uma coisa e um nome mas um conceito e uma imagem acstica". Garante, logo depois, que a natureza do signo ~ arbitrria porque) no tem com o significado "nenhuma ligao natural na reali-dade". Est claro que o n1ciocnio falseado pelo recurso incons-ciente e sub-reptcio a um terceiro termo, que. no estava com-preendido na definio inicial. terceiro termo a prpria \ coisa, a realidade. Saussure cansou-se de dizer que a idia de "sreur" no est ligada ao significante s-o:.r, porm no pensa menos na realidade da noo. Quando fala da diferena entre b-o'-f e o-k-s, refere-se, contra a vontade, ao fato de que esses dois termos se aplicam mesma realidade. a, pois, a coisa, a princpio expressamente excluda da definio do signo, e que nela se introduz por um desvio e a instala para sempre a contra-dio. De fato, se se estabelece em princpio - e com razo que a lngua forma, no substncia (p. 163), preciso admitir - e Saussure o afirmou claramente que a lingstica cincia das formas exclusivamente. Tanto mais imperiosa ento a ne-cessidade de deixar a "substncia" irm ou boi fora da compreen-so do signo. Ora, somente se se pensa no animal "boi" na sua partictilardade concreta ~ "substancial" que se tem base para julgar "arbitrria" a relao entre boi de um lado, oks do

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    outro, com uma mesma realidade. H, pois, contradio entre a maneira como Saussure defne o lingstico e a natureza fundamental que lhe atribui.

    Semelhante anomalia no raciocnio to cerrado de Saussure no me parece imputvel a um afrouxamento da sua ateno crtica. Eu veria a, um trao distintivo do pensamento histrico e relativista do fim do sculo um processo habitual a essa forma de reflexo filosfica que a inteligncia compa-rativa. Observam-se nos diferentes povos as reaes suscitadas por lll mesmo fenmeno: a infinita diversidade das atitudes e dos julgamentos leva considerao de que nada aparentemente necessrio. Da universal dessemelhana, chega-se universal contingncia. A concepo saussuriana est ainda solidria, em certa medida, com esse sistema de pensamento. Decidir que o signo lingstico arbitrrio porque o mesmo animal se chama boi num pas, Ochs, noutro, equivale a dizer que a noo do luto "arbitrria" porque tem por smbolo o preto na Europa, o branco na China. Arbitrria, sim, mas somente sob o olhar im-passvel de Sirius ou para aquele que se limita a comprovar, de fora, a ligao estabelecida entre uma realidade objetiva e um comportah1ento humano e se condena, assim, a no ver a seno contingncia. 'claro que, com relao a uma mesma realidade, todas as denominaes tm igual valor; o fato de que existem , pois, a prova de que nenhuma delas pode pretender o absoluto da denominao em si. Isso verdadeiro. Isso at verdadeiro demais - e, portanto, pouco instrutivo. O verdadeiro problema muito mais profundo. Consiste em reencontrar a estrutura ntima do fenmeno do qual no se percebe seno a aparncia exterior e em descrever a sua relao com o conjunto das mani-festaes de que depende.

    Assim quanto ao signo lingstico. Um dos componentes do signo, a imagem acstica, constitui o seu significante; a outra, o conceito, o seu significado. Entre o significante e o significado,(} o lao no arbitrrio; pelo contrrio, necessrio. O conceito ("significado") "boi" forosamente idntico na minha conscin-cia ao conjunto fnico . ("significante") boi. Como poderia ser diferente? Juntos os dois foram impressos no m~u esprito; juntos evocam-se mutuamente em qualquer circunstncia. H entre os

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  • dois uma simbiose to estreita que o conceito "boi" como que a alma da imagem acstica boi. O espirito no contm formas vazias, conceitos no nomeados. O prprio Saussure diz: "Psico-logicamente, excetuando-se a sua express.o por meio das palavras, .o nosso pensamento apenas u'a massa amorfa e indistinta. !Filsfse Tingislasonor(faram-sempre~m reco~r que,J"'

    l~e~ o concurso _dos signvs, seramos incapazes de ~~uir duas detas de ma1~e1ra clara c constante. ,Tuma:nu---em si mesmo-;-

    pensamen o e como uma 1fel5isa m que nada necessaria-mente delimitado. No h idias preestabelecidas, e nada dis-tinto antes do aparecimento da lngua" (p. 161). Inversamente, o' esprito s acolhe a forma sonora que serve de suporte a uma representao identificvel para ele; se no, rejeita-a como des-conhecida ou estranha. O significante e o significado, a represen-tao mental e a imagem acstica so, pois, na realidade as duas faces de uma mesma noo e se compem juntos como o incor-porantc e o incorporado. O significante a traduo fnica de um conceito; o significado a contrapartida mental do signifi-cante. Essa consubstancialidade do significante e do significado garante a unidade estrutural do signo lingstico. Ainda aqui o testemunho do prprio Saussure que invocamos, quando diz a respeito da lngua: "A lngua ainda comparvel a uma folha de papel: o pensamento a face e o som o verso; no se pode recortar a face sem recortar ao mesmo tempo o verso; da mesma forma, na lngua, no se poderia isolar nem o som do pensa-mento, nem o pensamento do som; no o conseguiramos a no ser por uma abstrao cujo resultado seria o fazermos ou psico-logia pura ou fonologia pura" (p. 163). O que Saussure diz aqui a respeito da lngua vale primeiro para o signo lingstico no

    qual se afirmam incontestavehnente os caracteres primeiros da lngua.

    Vemos agora, e podemos delimitar, a zona do "arbitrrio". O que arbitrrio que um signo, mas no outro, se aplica a determinado elemento da realidade, mas no a outro. Nesse sentido, e somente nesse sentido, permitido falar de contin--gncia, e ainda assim menos para dar soluo ao problema que para assinal-lo e afast-lo provisoriamente. De fato, esse problema no seno o famoso cpam ou 3imn e no pode ser

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    resolvido a no ser por decreto. , realmente, transposto em ter-mos lingsticos, o problema metafsico da relao entre o esprito e o mundo; problema que o lingista estar, talvez um dia, em condies rie abordar com sucesso, mas que no momento far melhor se o deixr de lado. Propor a relao como arbitrria para o lingista uma forma de defender-se contra essa questo e tambm contra a soluo que o falante lhe d instintivamente. Para o falante h, entre a lngua e a realidade, adequao com-pleta: o signo encobre e comanda a realidade; ele essa realidade (nomen men;-tabus de palavra, poder mgico do verbo, etc\ Na verdade, o prisma do sujeito e o do lingista so to diferentes a esse respeito que a afirmao do lingista quanto ao arbitrrio das designaes no refuta o sentimento contrrio do falante. Seja como for, porm, a natureza do signo lingstico no tem nada. que ver com isso, se o definimos como o fez Saussure~ pois o prvprio dessa definio consiste precisamente em no encarar seno a relao do significante com o significado. O . domnio do arbitrrio fica assim relegado para fora da compreenso do signo lingstico.

    Assim, bastante intil defender o princpio do "arbitrrio do signo" contra a objeo que poderia ser tirada das onomato-pias c dos termos expressivos (Saussure, p. 103-104), no apenas porque a sua esfera de emprego relativamente limitada e porque a expressividade um efeito essencialmente transitrio, subjetivo e freqentemente secundrio, mas sobretudo porque, ainda aqui, qualquer que seja a realidade retratada pela onomatopia ou pelo termo expressivo, a aluso a essa realidade na maioria dos casos no imediata e no admitida a no ser por uma conveno simblica anloga que credencia os signos comuns do sistema. Reencontramos, pois, a definio e os caracteres vlidos para qualquer signo. O arbitrrio s existe aqui em relao com o fenmeno ou o objeto material e no intervm na constituio prpria do signo.

    Convm COI\Sderar agora, rapidamente, algumas concluses que Saussure tirou do princpio aqui discutido e que repercutem longe. Ele mostra, por exemplo, admiravelmente, que se pode falar ao mesmo tempo da imutabilidade e da mutabilidade do signo: imutabilidade porque, sendo arbitrrio, no pode ser dis-

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  • cutido em nome de uma norma razovel; mutabilidade, porque,. sendo arbitrrio, sempre susceptvel de alterar-~e. "Uma lngua radicalmente impotente para defender-se contra os fatores que deslocam de momento a momento a relao do significado com o significante. Essa uma das conseqncias do arbitrro do signo" (p. 112). O mrito dessa anlise no diminudo em na-da, mas o contrrio muito reforado se se especifica melhor a relao qual realmente se aplica. No entre o significante e o significado que a relao ao mesmo tempo se modifica e per-manece imutvel, entre o signo e o objeto; , em outras palavras, a motivao objetiva da designao, submetida, como tal, ao de diversos fatores histricos. O que Saussure demonstra perma-nece verdadeiro, mas a respeito da significao, no do signo.

    Outro problema, no menos importante, que interessa dire-tamente definio do signo, o de valor, em que Saussure pensa encontrar uma confirmao das suas idias: "a escolha que cha-m::;. determinado corte acstico para determinada idia perfei-tamente arbitrria. Se o no fosse, a noo de valor perderia

    do seu carter, pois conteria um elemento imposto de fora. De fato os- valores permanecem inteiramente relativos, e eis a o motivo qual o elo entre a idia e o som radicalmente arbitrrio" (p. 163). Vale a pena retomar sucessivamente as partes desse raciocnio. A escolha que chama determinado corte acstico para determinada idia no absolutamente arbitrria; esse corte acstico no existiria sem a idia correspondente e vice-versa. Na realidade Saussure pensa sempre, embora fale de "idia", na representao do objeto real c no carter evidente-mente no necessrio, imotivado, do elo que une o signo coisa significada. A prova dessa confuso encontra-se na seguinte frase cujo membro caracterstico sublinho: "Se no fosse assim, a noo de valor perderia algo do seu carter, pois conteria um elemento imposto de fora". bem "um elemento imposto de fora", portanto, a realidade objetiva que esse raciocnio toma como eixo de referncia. Quando se considera o signo em si mesmo e enquan-to portador de um valor, o arbitrrio se encontra necessariamente eliminado. De fato a ltima proposio a que encerra mais claramente a sua prpria refutao - bem verdade que os valores permanecem inteiramente "relativos"; mas trata-se de

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    saber como e em relao a qu. Proponhamos imediatamente isto: o valor um elemento do signo; se o signo tomado em si mesmo no arbitrrio, como pensamos hav-lo demonstrado, segue-se que o carter "relativo" do valor no pode depender da natureza "arbitrria" do signo. Unia vez que preciso abstrair-mo-nos da adequao do sgno realidade, com maior razo devemos considerar o valor apenas como um atributo da forma, no da substncia. Da, dizermos que os valores so "relativos" significa que so relativos uns aes outros. Ora, no est a justa-mente a prova da sua necessidade? Trata-se, aqui, no mais do signo isol:-:.do mas da lngua como sistema de signos e ningum, to firmemente como Saussure, concebeu e descreve.u a economia sistemtica da lngua. Quem diz sistema diz a organiza-;o e adequao das partes numa estrutura que transcende e explica os soos elementos. Tudo a to necessrio que as modificaes do conjunto e do pormenor se condicionam-rX-iprocamente. A relatividade dos valores a melhor prova de que dependem estreitamente uns dos 011tros na sincronia de um sistema sempre ameaado, sempre restaurado. Isso se deve a que todos os valores so de oposio e