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Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Filosofia e Ciências Sociais Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia DAS CONSEQUÊNCIAS DA “ARTE” MACABRA DE FAZER DESAPARECER CORPOS: violência, sofrimento e política entre familiares de vítima de desaparecimento forçado Fábio Alves Araújo Rio de Janeiro 2012

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Filosofia e Ciências Sociais

Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia

DAS CONSEQUÊNCIAS DA “ARTE” MACABRA DE FAZER

DESAPARECER CORPOS:

violência, sofrimento e política entre familiares de vítima de desaparecimento forçado

Fábio Alves Araújo

Rio de Janeiro 2012

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DAS CONSEQUÊNCIAS DA “ARTE” MACABRA DE FAZER

DESAPARECER CORPOS:

violência, sofrimento e política entre familiares de vítima de desaparecimento forçado

Fábio Alves Araújo

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciências Humanas (Sociologia). Orientador: Prof. Dr. Luiz Antonio Machado da Silva

Rio de Janeiro 2012

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Para Vera Flores, que partiu, sem desaparecer de nossas lembranças.

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AGRADECIMENTOS

Ao longo do processo de pesquisa que resultou nesta tese, muitas pessoas contribuíram

de diferentes maneiras, é hora de agradecê-las. Embora correndo sempre o risco do

esquecimento, gostaria de registrar algumas lembranças fundamentais. Primeiramente a todos

os familiares entrevistados que aceitaram compartilhar comigo suas histórias de dor e luta.

Entre as instituições agradeço a acolhida do Programa de Pós-Graduação em

Sociologia e Antropologia do IFCS/UFRJ, ao seu corpo docente, pelos cursos que fiz e pelo

incentivo, e seus funcionários, especialmente Cláudia e Denise, que facilitaram sempre as

questões burocráticas. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

(CNPq) agradeço pela bolsa de doutorado que proporcionou o apoio financeiro para a

realização da pesquisa. A recepção que tive no Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) e o

convívio com profissionais e estudantes de diferentes áreas disciplinares tem sido um

aprendizado e um diálogo interdisciplinar intenso.

Sou muitíssimo grato a meu orientador Luiz Antonio Machado da Silva pelo

acolhimento desde os tempos do mestrado, pela confiança e pelo apoio. A liberdade de

pensamento, mesmo quando discordava, foi uma marca do diálogo e das trocas acadêmicas,

por outro lado, liberdade não significou abrir mão do rigor do pensamento, servindo-me de

estímulo a elaborar com maior precisão meus argumentos. Agradeço também a Machado a

oportunidade enriquecedora, pelo aprendizado e amadurecimento intelectual que me tem

proporcionado, de participar do grupo de pesquisa por ele coordenado, atualmente registrado

no cadastro do CNPq como CEVIS – Coletivo de Estudos sobre Violência e Sociabilidade.

No CEVIS encontrei um espaço intenso e estimulante de discussão e realização de

pesquisas. Aprendi muito com Machado, Márcia Leite, Luis Carlos Fridman, Jussara Freire,

Wânia Mesquita, Lia Rocha, Christina Vital, César Pinheiro Teixeira, Carla Mattos, Dinaldo

Almendra, Palloma Meneses e Juliana Farias.

Beneficiei-me da boa amizade e discussão de Jussara Freire e César Teixeira, que

foram interlocutores diretos de muitas das questões desta tese. Agradeço as leituras atentas e

rigorosas de César sobre alguns capítulos da tese e as sugestões e comentários preciosos de

Jussara que muito contribuíram no desenho da pesquisa. Com eles também compartilhei

prazeres e angústias da vida acadêmica.

Agradeço a Márcia Leite e Michel Misse as contribuições, durante o exame de

qualificação, que me ajudaram a formatar e enquadrar o objeto e as questões de pesquisa.

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Tive a oportunidade de apresentar partes do trabalho em eventos acadêmicos e a

felicidade de receber os comentários de Sérgio Adorno, Michel Misse, Ana Lúcia Pastore

Schritzmeyer, Telma Camargo da Silva, Maria Luiza Rodrigues, Hernán Armando Mamani.

Dijaci David de Oliveira gentilmente me enviou sua tese de doutorado sobre os

“desaparecidos civis” logo que ficou pronta e ainda disponibilizou materiais e uma boa

conversa durante uma visita minha a Goiânia para participar de um seminário. Agradeço a

Dalva Souza por ter propiciado o encontro. Helena, advogada do Centro pela Justiça e Direito

Internacional (Cejil), e Isabel Mansur e Rafael Dias da Justiça Global deram dicas e pistas

para a pesquisa.

Marilene Lima, além de uma das primeiras familiares de vítima com quem tive

contato, me auxiliou como assistente de pesquisa e percorreu juntamente comigo instituições,

arquivos, documentos e entrevistou familiares. Sempre admirei sua luta, coragem e

perseverança, que sempre me serviram de estímulo. Fernanda Caroline, Patrícia Guimarães,

Hildebrando Saraiva e Déborah Martins de Souza, participaram e contribuíram em diferentes

momentos da pesquisa como bolsistas ou voluntários em um projeto de iniciação científica.

Hugo Araújo auxiliou com transcrições de entrevistas e organização do material. A Céline

Spinelli agradeço pela tradução, assim como a Leonardo Marona, que além de traduzir o

resumo fez a revisão da tese.

Aos companheiros da Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência

agradeço pelo convívio e pela confiança. Com eles e através deles me aproximei do mundo

dos familiares de vítimas de violência. É admirável a coragem de todos em lutar contra a

violência policial e por justiça. Um agradecimento especial a Patrícia Oliveira e Ana Lúcia

pelas mediações e pelos contatos que me possibilitaram realizar algumas entrevistas com

familiares.

A meus irmãos Hugo, Avana e Avanísio, e à minha mãe, Rosa, pelo apoio e incentivo.

A Thimoteo e Luíza, Ronaldo Soares, Jefferson Gonçalves, Sandro Juliati, Thiago

Carminatti, Márcio Filgueiras, Luciane Soares, Zé Luis, pela amizade.

Valéria Aquino acompanhou cada momento da pesquisa e continua compartilhando a

vida e me dando força para seguir adiante.

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RESUMO

ARAÚJO, Fábio Alves. Das consequências da “arte” macabra de fazer desaparecer

corpos: violência, sofrimento e política entre familiares de vítima de desaparecimento

forçado. Orientador: Luiz Antonio Machado da Silva. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 2012. Tese de Doutorado (Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia). Esta tese aborda as relações entre sofrimento, violência e política, a partir da experiência e do protagonismo de familiares de vítima de violência, particularmente através do estudo de uma modalidade de casos abarcados pela categoria desaparecimento forçado. Para apreendê-las descrevo e analiso o que denomino narrativas sobre o terror e o sofrimento, a partir das quais é possível acessar as gramáticas morais e políticas dos familiares de vítima. O desaparecimento forçado corresponde, dentro da problemática geral dos desaparecimentos, na expressão de Bachelard, a um “caso particular do possível”. Ele é tomado como um evento crítico e uma prática do repertório da linguagem da violência urbana. A partir das histórias de desaparecimento forçado são construídos pequenos mapas da dor que contam as trajetórias dos familiares diante do evento. Ao percorrer essas histórias, várias categorias vão se construindo, entre elas as de vítima, familiar de vítima e desaparecimento forçado. As histórias tratam de experiências desenraizadoras, cujo limite é a percepção e o sentimento de não pertencer a uma humanidade comum. Morte violenta, dor, sofrimento, terror, luto, e também amor e justiça compõem o repertório temático desenvolvido ao longo da tese. São experiências que se situam entre a resignação e a esperança, entre um tempo do choque e um tempo da política. O tempo é um agente que “trabalha” nas relações, transformando sentidos e significados para as experiências de violência e dor vividas pelos familiares. Estas experiências, se por um lado, destroem ou impõem obstáculos à capacidade de comunicar, por outro, também criam comunidades morais, emocionais e políticas a partir de quem padece o sofrimento. Estas comunidades morais alentam a recuperação das pessoas enquanto sujeitos e se convertem em um veículo de recomposição cultural e política. É neste contexto de liminaridade, de tensão entre voz e silêncio, de passagem de um tempo do choque para um tempo da política, que os familiares de vítima se constroem enquanto sujeitos da dor e agentes da dignidade. É da dimensão moral da vida e da morte, e dos significados elaborados para estes acontecimentos a partir da maternidade, da religião, de percepções de justiça e injustiça, que se constituem as gramáticas morais e políticas e os modos de fazer política dos familiares. Diante do desaparecimento, as práticas de luto transformam-se em práticas reivindicativas de justiça e, enquanto a justiça não se realiza, não para de crescer a “família dos familiares de vítima” Palavras-chave: Desaparecimento Forçado de Pessoas, Vítima, Familiar de Vítima, Sofrimento, Política.

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ABSTRACT∗∗∗∗

ARAÚJO, Fábio Alves. From the consequences of the sinister “art” of making bodies

disappear: violence, suffering and politics between families victims of forced

disappearing.

Academic Advisor: Luiz Antonio Machado da Silva. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 2012. Doctoral degree thesis (postgraduate degree in Sociology and Anthropology). This thesis broaches the relationship between suffering, violence and politics, parting from the victim’s relatives violence experience and leading role, particularly through the study of a modality of cases approached enclosed by the category forced disappearing. To apprehend them I describe and analyse what I denominate narratives about terror and suffering. , from which it is possible to access the victim’s relatives’ moral and political grammars. The forced disappearing correspond, inside the disappearances general problematic, using a Bachelard’s expression, to a “particular case of possible”. It is taken as a critical event and a practice of urban violence language repertoire. From the forced disappearing stories, little maps of pain are built up which tell the relatives paths before the event. Following these stories, many categories builds themselves up, between them the victim, the victim relative and forced disappearing. The stories approach uprooted experiences, whose limit is the perception and feeling of not belonging to a common humanity. Violent death, pain, suffering, terror, mourning, and also love and justice arrange a thematic repertoire developed through the thesis. Experiences localized between resignation and hope, between a choc period and one political period. The time is an agent that “works” in relations, transforming senses and meanings to the experiences of violence and pain lived by the relatives. These experiences, if on the one hand destroy or impose obstacles to the capacity of communicate, on the other, it also creates moral, emotional and political communities through the ones who feel the suffering. These moral communities encourage the recovering of people as individuals and convert themselves into a vehicle of cultural and political recomposing. In this context of liminarity, of tension between voice and silence, of passage from a chock period to a political period, the victim’s relatives build themselves as pain individuals and dignity agents. It is from the life and death moral, and from the meanings elaborated to these happenings through maternity, religion, justice and injustice perception, that the moral and political grammars and the ways of doing the relatives’ politics are constituted. Before the disappearing, the mourning practices transform themselves into revendicative practice of justice, and while justice does not happen, the “family of victim’s relatives” does not stop increasing. Key-words: People’s Forced Disappearing, Victim, Victim’s Relative, Suffering, Politics.

∗ Versão de Leonardo Marona.

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Lista de imagens e reportagens inseridas no texto

Capítulo 1

Foto 1: Mães da Cinelândia – Manifestação na escadaria da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro ........................................................................................................ 60

Capítulo 2

Foto 2: Manifestação da ONG Rio de Paz – “Desaparecidos – Onde estão nossos mortos?”................................................................................................................. 90

Reportagem 1: Corpos achados na Baía de Guanabara podem ser indício de desova ............. 98 Reportagem 2: Polícia encontra ossadas em campos de execuções da milícia na Zona

Oeste ...................................................................................................................... 99 Reportagem 3: Policiais do Bope escavam Piscinão de Ramos a procura de corpos............. 100 Capitulo 3

Figura 1: Carta de Izildete ao então presidente Lula: a mobilização do sofrimento em busca de ajuda ........................................................................................................ 118

Foto 3: Cartaz comunicando o desaparecimento de Fábio e Rodrigo e solicitando que entre em contato quem tiver informações .............................................................. 125

Foto 4: Caminhada pelas ruas de Queimados......................................................................... 125 Foto 5: Protesto em frente à delegacia de Queimados............................................................ 126 Foto 6: Izildete na porta da delegacia exigindo resposta para o caso..................................... 126 Foto 7: Jogadores do Fluminense entraram em campo no Maracanã com uma faixa de

protesto - 20/05/2009 ............................................................................................ 165 Foto 8: Manifestação no Cristo Redentor............................................................................... 165 Capítulo 6

Figura 2: Logo do Tribunal Popular – O Estado brasileiro no banco dos réus – Charge de Diego Novaes ..................................................................................... 240

Figura 3: Cauê armado – charge do cartunista Latuff criticando a militarização da segurança pública durante o período de realização dos jogos Pan-Americanos no Rio de Janeiro, em 2007, e utilizada nos protestos políticos dos movimentos sociais. ....................................................................... 255

Figura 4: Mãe com filho baleado por policial no colo e o caveirão ao fundo. Charge do cartunista Latuff utilizada por movimentos sociais em campanhas contra o uso do caveirão pela polícia do estado do Rio de Janeiro.................................................................................................................. 257

Foto 9: Concentração do ato em memória das vítimas da violência estatal em frente à Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco, cidade de São Paulo. Faixas e murais com fotografias das vítimas de ontem e de hoje.................................................................................................................. 275

Foto 10: Faixa da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência/RJ, com os dizeres: “Nem caveirão nem remoção, favela é cidade”. ....................... 275

Foto 11: Faixas de protesto..................................................................................................... 276 Foto 12: Fotografias, cartazes, bandeiras e instrumentos musicais: objetos do

protesto ................................................................................................................ 276 Foto 13: Luto e protesto: fotos de mortos e desaparecidos de ontem e de hoje ..................... 277 Foto 14: Maicon X Justiça...................................................................................................... 277 Foto 15: O cenário do protesto ............................................................................................... 277

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Foto 16: Criança observa e participa da vigília ...................................................................... 278 Foto 17: Colocando uma foto no mural.................................................................................. 278 Foto 18: Ajeitando a foto ........................................................................................................ 278 Foto 19: Uma ajuda da mãe e o interesse do fotógrafo .......................................................... 278 Foto 20: Mural com fotos de presos políticos da ditadura ..................................................... 279 Foto 21: Moradora de rua se junta à vigília............................................................................ 279 Foto 22: Mural com fotos dos mortos e desaparecidos de hoje ............................................. 279 Foto 23: Vela e foto – símbolos do protesto ........................................................................... 279 Foto 24: A cobertura midiática do ato .................................................................................... 279 Foto 25: A chama da esperança .............................................................................................. 279 Anexo 4 – Caderno de Imagens

Reportagem 4: Mães de Acari: um parto que já dura 15 anos................................................ 303 Reportagem 5: Polícia procura ossadas e acha leões em Magé.............................................. 304 Reportagem 6: Milícia é acusada de seqüestrar dois jovens em Ramos ................................ 305 Reportagem 7: Milícia acusada de sumiço de jovens na Praia de Ramos.............................. 305 Reportagem 8: Menores somem na Baixada .......................................................................... 306 Reportagem 9: Seis corpos achados no Juramento................................................................. 306 Reportagem 10: Corpos fatiados em Manguinhos ................................................................. 306 Reportagem 11: Jovem some após acidente ........................................................................... 307 Reportagem 12: PMs suspeitos de matar engenheira ............................................................. 307 Reportagem 13: Mais PMs suspeitos ..................................................................................... 307 Reportagem 14: Uma nova esperança para achar desaparecidos ........................................... 308 Foto 26: Manifestação em memória dos 20 anos do Caso Acari............................................ 309 Foto 27: Painel com imagem de Edméia, uma das Mães de Acari, assassinada em 1993

quando saía de uma visita em um presídio .......................................................... 309 Foto 28: Bonecos no chão representando os jovens desaparecidos de Acari e faixas com

consígnias de protesto. ........................................................................................ 310 Foto 29: Faixas, cartazes e fotos............................................................................................. 311 Foto 30: Faixa das Mães de Maio: grupo de mães e familiares de mortos e

desaparecidos durante os ataques do PCC em São Paulo e a represália da polícia. As Mães de Maio estiveram presentes em Acari para participar do ato em memória dos 20 anos do caso. ................................................................. 311

Foto 31: Os objetos do protesto.............................................................................................. 312 Foto 32: Concentração para o ato em frente ao Hospital de Acari ......................................... 312 Foto 33: A memória afetiva – objeto de lembrança de Patrícia.............................................. 313 Foto 34: Mãe da engenheira desaparecida com fotos de recordação ..................................... 313 Foto 35: Cláudia Helena com reportagem de jornal sobre o caso do filho desaparecido....... 314 Foto 36: Manifestação em memória dos 4 anos da chacina da Baixada Fluminense............. 315 Foto 37: Cenário do ato – faixas e banners ............................................................................ 315 Foto 38: Flores e jornais com notícias sobre a chacina .......................................................... 316 Foto 39: Manchete do jornal – Ele queria voltar para a nossa terra ....................................... 316

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 15

Catarse da dor: a morte violenta e o luto como protesto público ............................................. 15 Violência, sofrimento e política: a experiência dos familiares de vítima ................................. 20 A pesquisa: estratégias de trabalho de campo, fontes e procedimentos ................................... 22 Estrutura e organização da tese ................................................................................................ 29

PARTE I – VIOLÊNCIA, SOFRIMENTO E POLÍTICA

1. LINGUAGENS, PRÁTICAS E POLÍTICAS DO SOFRIMENTO............................... 33

1.1. O trabalho do tempo e a questão da comunicabilidade da dor .......................................... 33 1.2. Desaparecimento, evento crítico e sofrimento social ........................................................ 39 1.3. Saída, voz e silêncio no horizonte de ação ........................................................................ 43 1.4. Disputas, situações, operações críticas e competências políticas...................................... 47 1.5. O sofrimento entre a política da piedade e a política da justiça ........................................ 52 1.6. Das formas de engajamento face ao sofrimento ............................................................... 54 1.7. Da indignação à acusação: o tópico da denúncia e a forma caso ...................................... 57 1.8. Falar a partir de uma condição subalterna: a favela como lugar-trauma .......................... 60

2. O DESAPARECIMENTO FORÇADO DE PESSOAS COMO PRÁTICA DO

REPERTÓRIO DA LINGUAGEM DA VIOLÊNCIA URBANA................... 68

2.1. Figurações das categorias desaparecido e desaparecimento............................................. 68 2.2. Do desaparecimento forçado como método de repressão da ditadura............................... 70 2.3. A construção normativa do desaparecimento forçado como crime e o direito

internacional .......................................................................................................... 73 2.3.1. O Grupo de Trabalho sobre Desaparecimentos Forçado da ONU e a Declaração

sobre a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado ........... 74 2.3.2. O Estatuto de Roma........................................................................................................ 78 2.3.3. A Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas ................ 79 2.4. A construção do desaparecimento como problema social hoje: embates e disputas ......... 81 2.4.1. Desaparecimentos e desaparecidos: a pluralidade semântica e os dilemas jurídicos ..... 85 2.4.2. A relação entre desaparecimentos e homicídios: ligações perigosas.............................. 89 2.4.3. A polícia que mata e oculta os corpos e a perícia que não consegue identificar ............ 95 2.4.4. Desaparecimentos, cemitérios clandestinos e encontro de ossadas................................ 97 2.5. Rumores de desaparecimento forçado............................................................................. 102

PARTE II: A MEMÓRIA DAS TRAGÉDIAS

3. O DRAMA DO DESAPARECIMENTO NARRADO DESDE OS FAMILIARES:

PEQUENOS MAPAS DA DOR........................................................................ 110

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3.1. As histórias que narram os familiares: memórias da dor e do luto.................................. 110 3.1.1. A linguagem das emoções, o aprendizado da dor e o sofrimento como

competência política ............................................................................................ 112 3.2. Izildete ............................................................................................................................. 115 3.2.1. Desaparecidos após uma abordagem policial............................................................... 116 3.2.2. Humilhação, desrespeito, queixas e os obstáculos na construção de provas................ 122 3.3. Maria do Retiro ............................................................................................................... 127 3.3.1. Milícia, tráfico e desaparecimento................................................................................ 127 3.3.2. Corrupção policial e a denúncia fora do horizonte de ação da mãe ............................. 128 3.3.3. A peregrinação pelas instituições estatais: com exame de DNA, mas sem atestado

de óbito ................................................................................................................ 130 3.3.4. Contar ao neto sobre o pai desaparecido ...................................................................... 130 3.3.5. Preocupações adicionais: a filha usuária de crack........................................................ 131 3.4. Áureo ............................................................................................................................. 134 3.4.1. Filho e nora desaparecidos ........................................................................................... 136 3.4.2. Crítica ao tratamento policial ....................................................................................... 138 3.5. Maria Cecília e Laura ..................................................................................................... 140 3.5.1. O filho saiu com a namorada e “sumiu”....................................................................... 141 3.5.2. “A vida para mim parou, não vejo mais graça em nada” ............................................. 145 3.6. Maria das Dores .............................................................................................................. 148 3.6.1. O “sumiço” do filho...................................................................................................... 149 3.6.2. Uma ossada no portão de casa...................................................................................... 150 3.6.3. Em busca de um exame de DNA para identificar o filho ............................................. 152 3.6.4. Restituir a dignidade e a humanidade: um atestado de óbito e um enterro digno ........ 153 3.6.5. Adoecimento e medicalização na trajetória de uma “familiar de vítima” .................... 154 3.6.6. “Muita terra pra uma pessoa criar bicho”: a milícia e a expropriação da terra ............ 154 3.6.7. O engajamento religioso: entre “familiar de vítima” e “pastora evangélica”............... 155 3.7. Maria Auxiliadora ........................................................................................................... 156 3.7.1. Policiais também desaparecem..................................................................................... 157 3.8. Tânia e Celso ................................................................................................................... 159 3.8.1. Um acidente que se transformou em crime praticado por policiais ............................. 161 3.8.2. A mobilização dos familiares dos policiais .................................................................. 163 3.9. O testemunho como via de sensibilização: o vocabulário dos sentimentos e o poder

de comoção das emoções..................................................................................... 166 4. NARRATIVA SOBRE O TERROR E O SOFRIMENTO: DESCRIÇÃO DENSA

DE UM CASO EXEMPLAR DE DESAPARECIMENTO FORÇADO....... 170

4.1. Aproximação ao campo do terror .................................................................................... 170 4.2. Sobre a situação de entrevista e a circulação de relatos de terror ................................... 173 4.2.1. O “sumiço” do filho: tomando conhecimento da notícia e dos fatos ........................... 177 4.2.2. Da favela à delegacia................................................................................................... 179 4.2.3. Da delegacia ao batalhão: a conversa com o comandante............................................ 181 4.2.4. Do batalhão ao hospital: a presença ostensiva da polícia............................................. 182 4.2.5. Esperança e desespero .................................................................................................. 183 4.2.6. O açougueiro, o caveirão, os traficantes com farda e a corrupção policial ................. 185 4.2.7. O jogo de denúncias e a manipulação das provas ........................................................ 189 4.2.8. O pai, a favela e o baile funk: a presença do perigo e do mal ...................................... 191 4.3. Práticas de luto reivindicativas de justiça........................................................................ 194

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PARTE III – CRÍTICAS, DENÚNCIAS E PROTESTOS

5. GRAMÁTICAS MORAIS E POLÍTICAS DOS FAMILIARES DE VÍTIMA DE VIOLÊNCIA ....................................................................................................... 198

5.1. Mais humanos e menos humanos: agir diante de modalidades de desumanização......... 199 5.1.1. A metáfora da guerra e as tensões na definição das humanidades .............................. 201 5.2. A figura da vítima ............................................................................................................ 205 5.3. A construção da categoria familiar de vítima: tensões entre ser familiar de vítima e

ser familiar de bandido ........................................................................................ 209 5.4. As críticas dos familiares de vítima à polícia .................................................................. 214 5.5. Mudanças na figura do bandido e o impacto no trabalho policial nas UPPs................... 217 5.6. Direitos civis, corpos incircunscritos e formas de matar e morrer .................................. 219 5.6.1. Os corpos sofredores e a capacidade suscitar compaixão ............................................ 225 5.6.2. Formas de morte que desumanizam ............................................................................ 227 5.7. As críticas dos familiares a um Estado que não reconhece seus sofrimentos ................. 233

6. ENGAJAMENTO POLÍTICO E MOVIMENTO CRÍTICO: A CONSTRUÇÃO

DA CRÍTICA E DA DENÚNCIA..................................................................... 236

6.1. A forma caso como dispositivo de denúncia ................................................................... 237 6.1.1. O Tribunal Popular: o Estado brasileiro no banco dos réus ........................................ 239 6.1.2. Crítica interna: questionando o uso da linguagem jurídica .......................................... 246 6.1.3. Crítica externa: crime de Estado ou crime dos agentes do Estado ............................... 246 6.1.4. A dimensão pedagógica do evento: espaço de troca, aprendizado político e

denúncia............................................................................................................... 247 6.2. Circulação e atualização da metáfora da guerra .............................................................. 248 6.3. Premiação por bravura: a “gratificação faroeste”............................................................ 250 6.4. O mandado de busca e apreensão genérico ..................................................................... 250 6.5. A criminalização de ativistas e defensores de direitos humanos ..................................... 254 6.6. A política do caveirão: o blindado da polícia que diz que vai levar a alma das

pessoas ................................................................................................................. 256 6.7. As megaoperações policiais e o excesso de uso da força ................................................ 259 6.7.1. A megaoperação policial no Complexo do Alemão ..................................................... 262 6.8. A sessão final de acusação e defesa do Tribunal Popular ............................................... 268 6.9. Caminhada e vigília: ato em memória das vítimas da violência estatal .......................... 271 6.9.1. Morte violenta, movimento crítico e engajamento político.......................................... 272

NOTAS FINAIS .................................................................................................................... 280

BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................. 285

ANEXOS

Anexo 1 – Relação de entrevistados....................................................................................... 295 Anexo 2 – Parecer e projeto substitutivo de lei do Senado sobre desaparecimento

forçado ................................................................................................................. 297 Anexo 3 – Nota de esclarecimento e solicitação de retificação da Rede contra a

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Violência ao jornal O Dia .................................................................................... 301 Anexo 4 - Caderno de Imagens .............................................................................................. 303

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Me llaman el desaparecido Que cuando llega ya se ha ido

Volando vengo, volando voy Deprisa deprisa a rumbo perdido

Cuando me buscan nunca estoy Cuando me encuentran yo no soy

El que está enfrente porque ya Me fui corriendo más allá Me dicen el desaparecido Fantasma que nunca está

Me dicen el desagradecido Pero esa no es la verdad

Yo llevo en el cuerpo un dolor Que no me deja respirar

Llevo en el cuerpo una condena Que siempre me echa a caminar

(“Desaparecido” - Manu Chão)

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exame de DNA para identificar o corpo.

Segundo Raimunda, enquanto o cadáver esteve no IML, por diversas vezes policiais e

funcionários do IML tentaram convencê-la de que o corpo não era do seu filho, para assim

podê-lo enterrar como indigente. Em seu entendimento, era mais uma estratégia para encobrir

o crime. Ela, com o apoio e solidariedade de outros familiares e simpatizantes, fez plantão no

IML para impedir que o cadáver fosse enterrado como indigente, como pretendia fazer um

delegado de polícia.

Com a articulação da AMAFAVV, através da atuação de Maria das Graças Narcot,

conseguiu-se a doação de um exame de DNA. Após o cadáver ficar dois meses e meio no

IML, aguardando o resultado do exame, no dia 13 de fevereiro de 2004, o resultado

finalmente ficou pronto e deu positivo. O escândalo estava formado. A mãe do jovem conta

que não conseguia falar com ninguém, tamanha a emoção, indignação e raiva. Para extravasar

tamanha revolta e desespero, a mãe, auxiliada pelos apoiadores, decidiu realizar uma

manifestação de protesto antes do enterro.

Segundo os relatos que circularam sobre o caso, antes de morrer Thiago fora torturado,

teve um dos pés arrancados e, por fim, foi queimado com pneus. Uma chuva impediu que o

corpo fosse completamente carbonizado, restando um corpo com a barriga estourada, os

intestinos pendurados e o pé ao lado da cabeça. A pele não existia mais e o rosto estava

contorcido como que expressando dor. Uma morte macabra.

A manifestação protagonizada pela mãe foi tão macabra quanto a morte do filho. Ela

decidiu fazer um cortejo fúnebre com os restos mortais do filho pelas ruas de Vitória. Com

cartazes, faixas, carro de som, camisas com a foto de Thiago e um caixão com seus despojos

carbonizados, a mãe, outros familiares de vítimas de violência e alguns poucos apoiadores

concentraram-se em frente ao Instituto Médico Legal, de onde saíram em cortejo. A imprensa

foi convocada pela AMAFAVV para acompanhar o ato. Na porta do IML, a mãe de Thiago,

dirigindo-se principalmente aos policiais, gritava: “O que vocês estão vendo, não é um

animal. É um ser humano. Jamais esquecerei a imagem do meu filho queimado”.

Com o caixão aberto exalando o odor dos restos mortais carbonizados e em

decomposição, o cortejo seguiu do IML, fazendo uma parada na sede do Ministério Público

Estadual e, dirigindo-se até o Palácio Domingos Martins, onde o corpo foi velado

simbolicamente nas escadarias da Assembleia Legislativa. Pelo caminho ouviam-se choros,

gritos e palavras de ordem. Depois a procissão seguiu até o Tribunal de Justiça do Estado e a

Secretaria de Segurança Pública, de lá foi para o Palácio Anchieta (sede do governo do

Estado) e, finalmente, seguiu-se para o cemitério onde o corpo seria enterrado, em Vila Velha.

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O velório, sob a forma de cortejo público, tornou-se um ato de protesto e denúncia

contra os grupos de extermínio no Espírito Santo. Em frente à Secretaria de Segurança

Pública, em certo momento do cortejo fúnebre, Raimunda, a mãe do jovem assassinado,

tomou novamente o microfone, voltou-se para os policiais presentes que escoltavam a

manifestação e para os que trabalhavam na Secretaria de Segurança e esbravejou: “Vocês não

gostam de churrasco com cerveja? Tá aqui, ó, o corpo do meu filho!”. A cada parada na frente

dos prédios públicos um pano branco que cobria o cadáver carbonizado era retirado e a mãe

convidava a todos para que vissem o que a impunidade era capaz de permitir. As reações dos

espectadores, frente ao sofrimento da mãe, que expunha publicamente o corpo do filho

carbonizado, foram as mais diversas possíveis, mas as pessoas pareciam ficar mais

escandalizadas com o ato da mãe do que com a forma macabra como seu filho fora morto. No

dia seguinte ao protesto, os jornais publicavam algumas reações de pessoas que passavam

pelo local no momento da manifestação. Algumas achavam legítimo e justo a forma do

protesto, argumentando que “toda forma de buscar justiça é válida”. Outras pessoas

manifestavam nojo e repugnância diante da exposição pública do corpo em decomposição.

Havia ainda os críticos que não concordavam com o que chamavam de “espetacularização do

sofrimento”, que consideravam que a mãe deveria ter buscado justiça por outras formas.

Após a manifestação catártica da dor, com paradas na porta do Instituto Médico Legal,

Ministério Público, Tribunal de Justiça, Assembleia Legislativa e Palácio Guanabara, sede do

governo estadual, com o objetivo de interpelar a figura abstrata e política do Estado, através

da concretude de suas instituições, a mãe foi recebida no mesmo dia pelo Secretário de

Segurança Pública, que se comprometeu a coordenar pessoalmente o trabalho de investigação

do caso. Após a identificação do corpo, o Secretário de Segurança Pública afastou 2 delegados

e 32 policiais.

Diante da decisão do Secretário de Segurança de afastar os policiais, foi a vez do

sindicato dos policiais manifestar sua indignação e sua solidariedade aos policiais afastados.

O sindicato entrou com uma ação de inconstitucionalidade contra o ato do Secretário,

argumentando que o afastamento pressupunha uma condenação antes do processo legal,

afrontando o princípio de presunção da inocência. A estratégia do sindicato dos policiais era

construir a inocência dos policiais com base na incriminação de Thiago, alegando que este

teria participado de um assalto, assim levantando suspeitas contra a figura da vítima.

****

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O caso que acabo de descrever jamais saiu de minha memória. Eu mesmo não cheguei

a presenciar o protesto da mãe, nem acompanhei de perto os desdobramentos do caso. Para

usar a expressão cunhada por Boltanski (2007), mantive uma relação com o sofrimento à

distância, através de relatos de amigos que lá estiveram e da cobertura midiática. Embora não

tenha estado lá, o caso provocou em mim um estado de perplexidade.

Naquele momento, eu estava preparando minha mudança para a o Rio de Janeiro, a

fim de cursar o mestrado, e há tempos a imagem da cidade maravilhosa havia sido manchada

de sangue em razão da violência policial e da violência criminal, associadas ao tráfico de

drogas que assolava e ainda assola a cidade. Em temos gerais, eu tinha interesse em estudar o

tema da violência urbana, a partir de um enfoque que buscasse investigar as formas como as

pessoas afetadas lidam com esse tipo de evento, o impacto na vida e na sociabilidade.

Após o estado de perplexidade, tentando compreender a morte macabra do jovem em

Vila Velha e o sofrimento escandaloso da mãe e sua repercussão pública, mas agora já

morando no Rio de Janeiro, cheguei a pensar na possibilidade de realizar um estudo de caso

desta situação. Mas em pouco tempo a cidade do Rio de Janeiro mostrou que o que não falta

por aqui são casos igualmente macabros e escandalosos de violência, figuras de vítimas e

familiares de vítimas da violência. O vocabulário e a linguagem da violência urbana se

complexifica a cada dia, novas categorias, como chacina e massacre, passam a ser utilizadas

para nomear e qualificar a escala e a proporção da violência. Como se verá adiante nesta tese,

para pensar o regime da violência urbana, faz sentido até falar em relativização da

humanidade

Neste sentido, optei durante o mestrado por trabalhar com um caso que também teve

uma grande repercussão e cujas narrativas do terror e do sofrimento recolocavam com

intensidade todas as questões que eu desejava estudar: tratava-se da chacina de Acari, um dos

episódios que inaugurou, em certo sentido, a era das chacinas, no Rio de Janeiro. A chacina

de Acari ocorreu em 1990. Segundo as denúncias que circularam, na época do caso, ela foi

cometida por um grupo de extermínio, formado por policiais, cujo resultado foi o

desaparecimento forçado de onze jovens, que jamais reapareceram ou foram encontrados,

vivos ou mortos. No entanto, isso não significa afirmar que outras chacinas não tivessem

ocorrido antes deste episódio de violência, mas este se tornou um marco na memória da

cidade, passou a fazer parte do calendário de lutas dos movimentos de direitos humanos,

juntamente com as chacinas da Candelária (1993) e de Vigário Geral (1993).

Na dissertação de mestrado, intitulada Do luto à luta: a experiências das Mães de

Acari (Araújo, 2007), investiguei as relações entre luto, sociabilidade e modos de se fazer

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política, a partir da experiência das “Mães de Acari”, como ficaram internacionalmente

conhecidas as mães dos jovens. Embora o “Caso Acari” seja emblemático, principalmente em

razão da grande quantidade de vítimas e do desaparecimento dos corpos, ele não é único. O

que constatei no decorrer da pesquisa foi uma coleção de casos semelhantes. Neste sentido, a

pesquisa de doutorado teve como objetivo dar continuidade às questões inicialmente

formuladas durante o mestrado, procurando ampliar o horizonte empírico e o conjunto de

questões teóricas e analíticas a ser investigado.

Desde então passei a acompanhar e partilhar o mundo dos familiares de vítimas de

violência na região metropolitana do Rio de Janeiro. Encontrei nos familiares de vítimas de

desaparecimento forçado um campo empírico adequado para realizar minha pesquisa. O

sofrimento é a matéria-prima por excelência da experiência desses familiares. Muito me

chamou atenção as formas da morte e do desaparecimento, o uso político das emoções nas

gramáticas morais e políticas. O sofrimento, nesse contexto, circula dentro de uma economia

política das emoções, entre uma política da piedade e uma política da justiça (Boltanski,

2007).

Durante boa parte do período de realização da pesquisa não soube definir com

precisão sobre o que exatamente tratava minha tese. Muitos temas surgiam, mas não sabia

exatamente qual era o fio condutor que alinhavava as várias camadas de questões que

emergiram no decorrer do trabalho de campo e das elaborações teóricas. Ao me debruçar

sobre o material de campo, lendo e relendo os relatos dos familiares, revendo fotos de

manifestações, analisando documentos, repassando a memória dos eventos e, sobretudo,

fazendo o trabalho analítico de interpretação, associando empiria e teoria, fui aos poucos

tecendo os fios condutores para narrar a pesquisa realizada.

Em várias ocasiões em que pude falar sobre a tese, ou em textos que escrevi, eu dizia

que a tese tratava do desaparecimento forçado de pessoas. Isso era verdade, mas só em parte.

A questão ainda estava mal formulada, ou formulada de maneira incompleta. Sempre

alimentei um interesse em estudar o desaparecimento forçado de pessoas, mas, sem muita

clareza disso no começo, descobri implícita uma questão central, que girava em torno do

sofrimento e da política. O desaparecimento forçado de pessoas aparece aqui como uma

forma social, a partir da qual é possível apreender as dinâmicas de destruição e sofrimento

social. Lembro-me que nos relatos de familiares de pessoas desaparecidas que registrei havia

sempre uma comparação entre desaparecimento e execução. Esta comparação consistia numa

espécie de hierarquização dos sofrimentos, cujo critério era a ausência do corpo, ou melhor,

do cadáver. O familiar do desaparecido, em algum momento, dizia: “No caso da execução

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você ainda tem o corpo para enterrar. Você sofre, chora, enterra e acabou. Sabe que morreu e

pronto. E no caso do desaparecimento que nem isso a gente pode fazer?”.

O tema central era o sofrimento, mas não qualquer sofrimento. Tratava-se de um

sofrimento que precisava ser qualificado sociologicamente e antropologicamente. Era preciso

demarcar e apresentar a dimensão moral e política em que este sofrimento se situa. Para isso,

começo argumentando que se trata de um sofrimento que está diretamente associado a uma

variedade de temas, conceitos e categorias com forte conotação moral e política, como:

desaparecimento forçado, favela, crime violento, vítima, familiar de vítima, polícia, milícia,

tráfico e traficantes de droga, denúncia, protesto, comunidades morais.

Violência, sofrimento e política: a experiência dos familiares de vítima

Esta tese trata das relações entre violência, sofrimento e política, a partir da

experiência de familiares de vítimas de violência1. Detenho-me sobre uma modalidade

particular de violência que, segundo meu ponto de vista, passou a fazer parte do repertório da

linguagem da violência urbana na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, e também de

outros lugares: o desaparecimento forçado de pessoas. Interrogo-me sobre o repertório de

ações possíveis para os atores sociais diante de eventos críticos e que falam (quando falam) a

partir de uma condição de subordinação social, buscando sempre jamais perder de vista que a

vítima é definida pelo contexto e pode gerar novos contextos.

Os trabalhos de Veena Das, citados ao longo da tese, foi uma inspiração central,

principalmente suas reflexões sobre as relações e tensionamentos entre violência e sofrimento,

ao estudar o silenciamento do sofrer e também as linguagens da resistência e seus usos, que

performam a experiência da dor. Esta tese revisita algumas das questões e dos temas de

trabalho de Veena Das a partir de outro contexto histórico e sociológico: a experiência dos

familiares de vítimas no contexto da chamada violência urbana, no Rio de Janeiro.

Quais são os obstáculos para se reconhecer a dor dos familiares de vítima de

violência? Quais são os modos como as vítimas (diretas e indiretas) e os familiares de vítima

padecem, percebem, experimentam e resistem à violência? Como recordam as perdas, fazem 1 Alguns trabalhos sobre a experiência e o protagonismo dos familiares de vítimas de violência podem ser encontrados, entre outros, em: Birman e Leite (2004); Leite, (2004), Araújo (2007, 2008); Soares, Moura e Afonso (2009), Freire (2011)Vianna e Farias (2011). Sobre o contexto argentino relacionado aos familiares da violência política durante a ditadura conferir Catela (2001), e sobre os familiares do período democrático, ou do gatillo fácil, conferir (Pitta, 2010). Para uma discussão sobre experiências de violência na Colômbia pode-se consultar Uribe ( 2004, 2008) e Jimeno (2008).

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o luto e absorvem os acontecimentos violentos na ordem do cotidiano? Do ponto de vista das

vítimas e dos familiares de vítimas, como falar do sofrimento provocado pela violência e usá-

lo em benefício próprio? Como elaborar o trauma e o sofrimento? Como reabitar o mundo

após a degradação da violência extrema? De que forma eventos extraordinários, como o

descrito anteriormente, passam a habitar o cotidiano e a subjetividade daqueles que foram

afetados por tamanha desgraça?

Que repertório de ações se apresenta ou é criado no agir daqueles que passam por

experiências traumáticas? Quais as possibilidades de engajamento possíveis para aqueles que

são alcançados diretamente pelos eventos críticos e, por outro lado, que novos vínculos

sociais pode o sofrimento criar? Que respostas podem ser dadas à experiência de violência e

como os diversos atores sociais se engajam politicamente na apropriação do sofrimento para

usos políticos? Como o Estado, ao ser interpelado, age em benefício ou prejuízo das vítimas,

conforme os contextos? Como se dão os jogos de disputa que vão definir a legitimidade ou

não de um sofrimento, e, consequentemente, a necessidade de uma ação urgente para fazê-lo

cessar? E como nós mesmos, pesquisadores, nos engajamos nesses tipos de acontecimento?

Um dos argumentos centrais de Veena Das, é que a vítima de violência pode se auto

reconstruir em seu cotidiano, a partir de práticas e ações diárias e não a partir de um passado,

de uma história escrita. Assim, a vítima expressa suas reivindicações não através da fala, do

dizer, mas sim pela via do gesto, do ato de mostrar, expresso nas relações desenvolvidas no

cotidiano. Neste sentido, Das descreve que o potencial da antropologia, em oposição ao

potencial dramático dos relatos que aparecem na mídia, não é o de centrar a atenção em um

acontecimento catastrófico, mas sim mostrar “como é que algo pode converter-se numa crise”

e como se pode levar os acontecimentos atrás e adiante no tempo (Das, 2008d). O argumento

de Veena Das é o de que a reconstrução do eu, diante de eventos críticos, se dá não pelo

retorno a uma sombra de algum passado fantasmagórico, mas no contexto de habitar a

cotidianidade, de intentar redimir a vida através do cotidiano.

Veena Das defende uma imagem do conhecimento antropológico em relação ao

sofrimento “como algo que está atento à violência onde quer que ocorra no tecido da vida, e

do corpo de textos antropológicos como algo que rechaça a cumplicidade ao abrir-se à dor do

outro” (Das, 2008d: 153). Isso, no entanto, não significa que o antropólogo, como argumenta

ainda Veena Das, deva se contentar com uma ideia simplista das vítimas. Pelo contrário, abrir-

se para a dor do outro significa acompanhar os tensionamentos nas relações entre sofrimento e

violência, evitando o dualismo entre “vítima” e “agressor”.

No caso das experiências dos familiares de vítimas, o que se tem é o acionamento da

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autoridade moral da maternidade e dos laços primordiais para falar das relações entre

sofrimento e direito, formas de luto, protesto e política. A maternidade e os laços de

parentesco constituem o lugar onde se busca significar a perda e o luto, para reabitar o

cotidiano e a vida.

A pesquisa: estratégias de trabalho de campo, fontes e procedimentos

A pesquisa que deu origem a esta tese foi realizada entre 2008 e 2012. As estratégias e

possibilidades de trabalho de campo sobre o tema do desaparecimento de pessoas são tão

diversas quanto as possibilidades de enquadramento do problema a ser investigado. Meu

interesse, desde o início, foi realizar um estudo sobre “desaparecimento forçado de pessoas”.

O primeiro problema enfrentado foi o de que as categorias “desaparecido” ou “pessoa

desaparecida”, englobam uma diversidade semântica e situações empíricas variadas. Tive que

percorrer certas trajetórias destas categorias, para tentar encontrar o que eu procurava, ou seja,

casos que se enquadrassem dentro de uma modalidade particular de desaparecimentos. O

segundo obstáculo, foi a não disponibilidade ou o caráter fragmentário dos dados.

Meu objetivo inicial, em termos de trabalho de campo, era registrar histórias de

desaparecimento forçado, “boas para pensar”, e me possibilitassem analisar as relações entre

violência, sofrimento e política. Com o passar do tempo, minha perspectiva tornou-se, em

algum sentido, próxima ao enquadramento que a antropóloga Teresa Caldeira adotou para

estudar o que ela denomina de a fala do crime. Em seu livro Cidade de muros (Caldeira,

2004), ela escreve que a observação participante, método por excelência de um estudo

etnográfico, nem sempre é viável para estudar a violência e o crime. As opções metodológicas

e estratégias de trabalho de campo dependem diretamente da questão que se deseja investigar.

Neste sentido, Caldeira, ao falar sobre a realização de sua pesquisa, relata que “não estava

especialmente interessada na etnografia de diferentes áreas da cidade, mas sim na análise

etnográfica de experiências de violência e segregação...” (Caldeira, 2010: 14).

Para explicar melhor minha perspectiva e meu enquadramento do problema sugiro

acompanharmos o desdobramento da argumentação de Teresa Caldeira quando se refere à fala

do crime. Ela argumenta que assim como aumentou o crime violento, também amplificou-se o

medo do crime. A vida cotidiana e a cidade mudaram por causa do crime violento. O crime

tornou-se um tema central e “a fala do crime - ou seja, todos os tipos de conversas,

comentários, narrativas, piadas, debates e brincadeiras que têm o crime e o medo como tema –

é contagiante” (p. 27). A fala do crime alimenta um circuito em que o medo é trabalhado e

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reproduzido, e a violência “é a um só tempo combatida e ampliada”.

O argumento de Caldeira é o de que as narrativas de crimes recontam experiências de

violência e, ao fazer isso, organizam e dão novo significado às experiências individuais e ao

contexto social no qual ocorrem.

A narração, diz De Certeau, é uma arte do falar que é “ela própria uma arte do agir e uma arte do pensar”. As narrativas de crime são um tipo específico de narrativa que engendram um tipo específico de conhecimento. Elas tentam estabelecer ordem num universo que parece ter perdido o sentido. Em meio aos sentimentos caóticos associados à difusão da violência no espaço da cidade, essas narrativas representam esforços de restabelecer ordem e significado. Ao contrário da experiência do crime, que rompe o significado e desorganiza o mundo, a fala do crime simbolicamente o reorganiza ao tentar restabelecer um quadro estático do mundo. Essa reorganização simbólica é expressa em termos muito simplistas, que se apóiam na elaboração de pares de oposição óbvios oferecidos pelo universo do crime, o mais comum deles sendo o do bem contra o mal. A exemplo de outras práticas cotidianas para lidar com a violência (…), as histórias de crime tentam recriar um mapa estável para um mundo que foi abalado. Essas narrativas e práticas impõem separações, constroem muros, delineiam e encerram espaços, estabelecem distâncias, segregam, diferenciam, impõem proibições, multiplicam regras de exclusão e de evitação, e restringem movimentos. Em resumo, elas simplificam e encerram o mundo. As narrativas de crime elaboram preconceitos e tentam eliminar ambiguidades. (Caldeira, 2000: 28)

De maneira similar, meu interesse durante o trabalho de campo foi o de registrar

histórias sobre o desaparecimento forçado de pessoas, que não deixam de ser também uma

“fala sobre o crime”. Mais do que falas sobre o crime, as histórias que registrei podem ser

interpretadas também como narrativas sobre o terror e o sofrimento. Busquei combinar um

conjunto de métodos e estratégias de trabalho de campo para conseguir reunir uma

documentação rica para a análise: acompanhamento de eventos, manifestações públicas e

políticas, homenagens, atos; ou seja, como estratégia de trabalho de campo percorri um

conjunto de espaços, onde foi possível acessar o mundo moral e político dos familiares de

vítimas. Tratava-se, neste caso, do acesso a um tipo de palavra dos familiares: a palavra

pública. E, além disso, acesso às interações entre familiares e outros atores políticos.

Busquei registrar as várias falas sobre o desaparecimento e, para isso, no decorrer da

pesquisa, percorri os espaços institucionais e estatais que de forma recorrente fazem parte da

trajetória dos familiares após o desaparecimento: delegacias de polícia, hospitais, institutos

médicos legais (IML’s), defensoria pública e ministério público.

A fala da polícia era basicamente a de que o desaparecimento, na medida em que não é

classificado como um crime, é um problema familiar e não policial. “Não tem corpo não tem

crime”, esta é uma frase que os familiares geralmente ouvem quando procuram uma

delegacia. Para exemplificar a desimportância do desaparecimento, um delegado que

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entrevistei juntamente com Marilene, umas das Mães de Acari, nos contou o seguinte caso: os

pais de uma garota compareceram à delegacia para registrar o desaparecimento da filha e

pressionaram o delegado para que acionasse uma equipe para realizar a busca. Diante da

reivindicação insistente dos pais, que estavam desesperados, o delegado relatou ter montado

uma megaoperação policial para entrar numa favela e procurar a jovem desaparecida. Como

resultado da operação encontraram a jovem na casa de um traficante com quem ela namorava.

Nas palavras do delegado, o que havia acontecido era que “a filha queria dá para um

traficante, mas os pais não deixavam” (sic), daí o motivo de ter fugido de casa. Essa história

expressa o entendimento predominante entre policiais de que o desaparecimento de pessoas é

uma ocorrência desimportante dentro das prioridades a serem investigadas. Segundo este

mesmo delegado, geralmente o desaparecimento é investigado apenas quando há indícios

claros de que há um crime por trás da situação.

Outra moralidade que orienta o tratamento policial sobre a questão das pessoas

desaparecidas, vem do estigma que associa favela, tráfico de drogas e crime. Ao chegar a uma

delegacia para comunicar um desaparecimento, uma das primeiras situações experimentadas

por um familiar é enfrentar a suspeita lançada pela polícia sobre a integridade moral da pessoa

desaparecida. A primeira atitude policial, geralmente, é lançar suspeita sobre o envolvimento

do desaparecido com o mundo do crime. A figura do “bandido” e a poluição moral que ela

carrega indica que tal identificação implica, na prática, que os casos em que o desaparecido

for tido como “bandido” ou for simplesmente suspeito de participação no mundo do crime

provavelmente não serão investigados.

Foi suficiente uma única entrevista com o referido delegado e o acesso a dois estudos

(Oliveira, 2007; Ferreira, 2011) que argumentavam, em algum aspecto, neste mesmo sentido

(o de que a polícia compreende o fenômeno do desaparecimento como um problema familiar

e não policial), para me levar a desistir de prolongar o trabalho de campo na instituição

policial. Com esta única entrevista e com os relatos policiais que constam nos trabalhos de

Oliveira (2007); e Ferreira (2011), optei por direcionar esta pesquisa para a perspectiva dos

familiares, pois são eles os maiores interessados em falar sobre o assunto, isto quando o medo

deixa de ser uma barreira.

Meus contatos estabelecidos, anteriormente, com alguns familiares, durante minha

pesquisa de mestrado e minha colaboração junto à Rede de Comunidades e Movimentos

Contra a Violência, foi, sem dúvida, um fator facilitador do trânsito em campo. A Rede é um

movimento social que reúne sobreviventes e familiares de vítimas de violência policial,

moradores de favelas e militantes populares e de direitos humanos, seu principal objetivo é

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lutar contra a violência estatal. Alguns dos familiares de desaparecidos que entrevistei

participam da Rede, outros não.

Para encontrar os familiares também percorri outros lugares, como a Defensoria

Pública e o Ministério Público. Nestas duas instituições, a postura dos operadores do direito,

com quem conversei, foi a de que o tipo de caso que eu estava procurando existe, o problema

é que os familiares não se sentem protegidos para fazer a denúncia. No Ministério Público,

recebi a informação de que há uma dificuldade grande para se fazer uma denúncia dos tipos

de desaparecimento que eu procurava em razão da falta de provas, enquanto que, na

Defensoria Pública, a defensora me disse que eu estava querendo pesquisar a parte “invisível”

dos desaparecimentos. Disse que eles existem, que muitos familiares procuram a Defensoria

Pública em busca de ajuda, e que os relatos que chegam à Defensoria cada vez mais dão conta

de desaparecimentos envolvendo a participação de milícias. Porém, quando os familiares são

informados de que, para dar andamento a um processo, devem antes comparecer a uma

delegacia de polícia e registrar uma ocorrência, logo desistem. Ficam com medo da polícia,

optam por não registrar os casos e buscam soluções por outras vias.

O fato de muitos familiares optarem por não registrar a ocorrência policial do

desaparecimento aponta para a imprecisão dos registros oficiais na medida em que os casos

são subnotificados. Por outro lado, há também os casos daqueles que procuram uma delegacia

de polícia para fazer a ocorrência mas os próprios policiais se negam a fazê-la, principalmente

quando o relato do familiar traz uma denúncia envolvendo a participação de policiais.

Quando desistem do registro policial, uma opção possível passa a ser a confecção de

cartazes, geralmente com uma foto do desaparecido, em alguns casos com informações sobre

a última vez que foi visto, um número telefônico e um pedido de contato para quem tiver

informações. O cartaz comunicando um desaparecimento tornou-se uma imagem comum nas

grandes cidades. São encontrados geralmente nas proximidades de favelas, fixados em postes

e muros, e também nos arredores de hospitais e IML’s, ou nos murais de recado de delegacias

de polícia. Durante a realização da pesquisa desenvolvi um olhar clínico para os cartazes.

Dentro de um ônibus ou ao circular a pé pelas ruas da cidade, meu olhar esteve atento aos

cartazes. Algumas das entrevistas que realizei foram conseguidas tendo o cartaz como fonte.

Outra fonte de pesquisa importante foram os boletins de ocorrência, aos quais tive

acesso através de um contato com um colega que trabalhava numa delegacia de polícia.

Inicialmente, através do acesso que tinha ao banco de dados de uma delegacia legal, ele

selecionou os registros de desaparecimento do ano de 2008 e, numa outra fase, decidimos

incluir no escopo da pesquisa os registros de ocorrência de ocultação de cadáver e encontro de

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ossadas. A sugestão de cruzar vários tipos de registros já havia sido dada pelo Subprocurador

Geral de Justiça do Ministério Público, Leonardo Chaves, quando o entrevistamos no início

da pesquisa. Segundo ele, muitos casos de desaparecimento poderiam ser elucidados ao se

cruzar os registros de ocultação de cadáver e encontro de ossadas. Ou seja, o desaparecido

pode estar morto e a pessoa morta pode ter sido classificada como “não identificada”.

De fato, encontramos histórias surpreendentes, como, por exemplo, a de uma mãe cujo

filho havia desaparecido e ela chegou a fazer um registro de ocorrência de desaparecimento,

mas o acesso que tivemos a ela se deu quando fomos pesquisar os registros de encontro de

ossada. O que havia ocorrido era que o filho ficou desaparecido por um tempo, depois seus

restos mortais apareceram depositados em frente ao portão da casa da mãe. Algo que me

impressionou durante a pesquisa foi que, algumas vezes, eu ouvia histórias de

desaparecimento, morte e tortura, e achava que histórias piores, mais trágicas e absurdas não

poderiam aparecer, mas apareciam.

As experiências e os relatos dos familiares – principalmente das mães – sobre o terror

e o sofrimento constituem o material empírico central das reflexões e análises apresentadas

nesta tese. Quando relatam suas histórias estes familiares falam da violência que se abate

sobre os filhos (as vítimas diretas) e sobre si mesmas (vítimas indiretas), sobre suas vidas e

seus locais de moradia, descrevem a forma violenta das mortes e também falam do não acesso

a direitos. Alguns dos direitos mais elementares como o direito à denúncia, ao enterro dos

filhos e a um atestado de ausência ou de óbito que documente a morte são negados a esses

familiares. Se nos eventos públicos era possível acessar uma palavra pública dos familiares,

na situação de entrevista o relato era mais intimista, algumas coisas sendo contadas em tom de

segredo. Os relatos, objetos de análise nesta tese, são provenientes de entrevistas com pessoas

que tiveram parentes vitimados pela violência policial e/ou criminal, realizadas entre 2007 e

2012. No total foram realizadas 25 entrevistas, os casos relatados pelos familiares tratam de

execuções e desaparecimentos de pessoas e os acusados dos crimes são policiais, traficantes e

milicianos. Durante os encontros para as entrevistas, outros materiais, além do relato, eram

geralmente disponibilizados pelos familiares, como cartas, reportagens de jornal, documentos

judiciais, etc.

Ao longo da pesquisa contei com o auxílio valoroso de algumas pessoas,

principalmente na empreitada de identificar familiares a serem entrevistados. A primeira

dessas pessoas foi Marilene Lima. Marilene é uma das Mães de Acari e minha aproximação

com ela se deu a partir de minha pesquisa de mestrado, quando pesquisei exatamente a

experiência das Mães de Acari (Araújo, 2007), mas transformou-se numa relação de amizade

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e partilha na militância e na luta contra a violência e por justiça. Era, portanto, um contato que

eu trazia de um momento anterior. Convidei Marilene para trabalhar como minha assistente de

pesquisa, pagando-lhe uma bolsa durante seis meses, período em que ela atuou como

colaboradora na realização do trabalho de campo. Diante da desconfiança e do medo que

cercam um familiar de vítima (e nos casos de desaparecimento parecia que a desconfiança e o

medo tendiam a aumentar), ter um familiar fazendo os contatos com outros familiares

certamente poderia significar uma possibilidade maior de aceitação e disposição para a

conversa. Além disso, Marilene já estava inserida dentro de uma rede de contatos formada por

familiares de vítimas de violência, tendo ela mesma sido uma das pioneiras nesse campo de

protesto que se configurou a partir das várias chacinas da década de 1990 no Rio de Janeiro.

A participação de Marilene foi muito proveitosa porque ela conseguiu providenciar

vários contatos interessantes para a pesquisa, inclusive muitas entrevistas com mães e com

autoridades públicas. Ela fez contatos com vários familiares que haviam participado com ela

das Mães da Cinelândia, um grupo de mães cujos filhos estavam desaparecidos ou haviam

sido mortos, e resolveram se juntar e se encontrar toda semana nas escadarias da Câmara

Municipal do Rio de Janeiro. Silenciosamente levavam seus cartazes com as fotos dos filhos e

os expunham com o objetivo de publicizar os casos, obterem informações sobre o paradeiro

dos filhos e reivindicar justiça. Com o passar do tempo o desgaste era natural e também

vieram as ameaças, o que fazia muitas abandonarem o movimento. Uma das coisas que

Marilene fez foi tentar retomar alguns desses contatos, porque nesse grupo, segundo ela, havia

muitos casos de desaparecimento. Ela também ajudou no trabalho de acompanhamento e

registro da cobertura que a mídia fazia sobre o fenômeno do desaparecimento de pessoas.

A relação com os familiares entrevistados consistiu em alguns casos em uma

aproximação mais duradoura, marcada por vários encontros e, em outras situações, apenas por

um encontro, uma única entrevista. Durante a realização das entrevistas adotei a estratégia de

sempre solicitar ao entrevistado que, se possível, indicasse outra pessoa para ser entrevistada.

Essa estratégia, que pode ser entendida também como um método, teve sua eficácia. Maria do

Rosário, por exemplo, foi uma mãe que surgiu para a pesquisa através de um convite de

Marilene. As duas participavam de um projeto do Hospital Geral – Santa Casa de

Misericórdia e Marilene fez o contato convidando-a para uma entrevista. A entrevista foi

realizada e, após ouvirmos a história de Maria do Rosário, falamos a ela da Rede de

Comunidades e Movimentos Contra a Violência2. Desde então, Maria do Rosário passou a

2 “A Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência é um movimento social independente do Estado, de empresas, partidos políticos e igrejas, que reúne moradores de favelas e comunidades pobres em geral,

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participar das atividades da Rede e providenciou vários contatos com familiares para serem

entrevistados. Todas as suas indicações eram de mães, suas vizinhas, cujos filhos estavam

desaparecidos, na verdade mortos pela milícia local. Segundo Maria do Rosário, onde ela

mora há muitos e muitos casos de desaparecimento, atribuídos à milícia, mas as pessoas têm

medo de falar. Ainda assim, apesar do medo, ela conseguiu fazer com que alguns desses

familiares aceitassem o convite para uma entrevista.

A qualidade dos relatos variou muito conforme as informações que o próprio familiar

tinha sobre o caso. Em alguns casos a entrevista não durou muito porque o familiar

praticamente não tinha informações mais detalhadas sobre o acontecimento. O que tinham

para dizer, nesses casos, praticamente se limitava a contar que a pessoa havia saído para

trabalhar ou para fazer qualquer outra coisa e não voltara mais. Em outras ocasiões – como a

descrita no capítulo 4 – o relato é tão detalhado que parece até que o familiar assistiu a tudo.

As entrevistas foram estruturadas a partir dos seguintes eixos: apresentação do familiar e da

vítima (quem eram, o que faziam); o caso (as circunstâncias, como ficou sabendo, as

primeiras providências, a quem recorreu, as buscas); o impacto do acontecimento no ambiente

familiar (mudanças nas rotinas, impactos na saúde e nos projetos familiares, a reação dos

pais); as interações dos familiares com outros atores (poder público, atores políticos, mídia e

outros familiares); território, religião e política (o estigma da favela, relação entre território e

crime violento, e engajamento religioso e político).

A construção do desaparecimento como um problema social se dá através da polifonia

de vozes que falam sobre o assunto. São as várias formas de falar sobre o desaparecimento de

pessoas que vão construindo as várias possibilidades semânticas do termo e o enquadramento

da questão. Eu mesmo, durante o período de realização da pesquisa, participei diretamente

desta construção na medida em que fui demandado a falar e a escrever sobre o assunto, em

diversas ocasiões, seja através da produção de relatos para os próprios familiares, seja

participando de programas de televisão e reportagens jornalísticas sobre o assunto, ou ainda,

de audiência pública na Assembléia Legislativa. Essas próprias ocasiões iam abrindo

possibilidades para o trabalho de campo.

Quando comecei a pesquisa eu sabia que seria difícil reunir o material que eu

desejava, mas ao final da pesquisa eu havia coletado um material satisfatório e suficiente para

escrever a tese. Uma parte do material não chegou sequer a ser explorada, ficando para sobreviventes e familiares de vítimas da violência policial ou militar, e militantes populares e de direitos humanos. A Rede se constrói pela soma, com preservação da autonomia, de grupos de comunidades, movimentos sociais e indivíduos, que lutam contra a violência do Estado e as violações de direitos humanos praticadas por agentes estatais nas comunidades pobres”. (Cf. http://www.redecontraviolencia.org)

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incursões futuras.

Estrutura e organização da tese

Esta tese é composta de três partes, além de introdução, conclusão, referências

bibliográficas e anexos. Cada uma das partes contém dois capítulos. Inicio a Introdução com

a descrição de um “caso” para, a partir dele, apresentar o objeto, o tema e as questões que

mobilizam esta tese: as relações entre violência, sofrimento e política a partir da experiência

dos “familiares de vítimas de violência”. Nesta seção também discorro sobre a realização da

pesquisa, o trabalho e as estratégias de campo e as fontes.

Na Parte I, “Violência, sofrimento e política”, são abordadas as relações entre a

violência e as linguagens, práticas e políticas do sofrimento. O capítulo “Linguagens, práticas

e políticas do sofrimento” é, sobretudo, um diálogo com o pensamento da antropóloga indiana

Veena Das e a sociologia pragmática do sociólogo francês Luc Boltanski e seus parceiros de

pesquisa, acima de tudo no que diz respeito ao tema do sofrimento e das possibilidades ou não

de engajamento diante dele. A discussão apresentada nesse capítulo também trata do “trabalho

do tempo” (Veena Das) diante do sofrimento e da questão da comunicabilidade da dor e as

formas de engajamento face ao sofrimento (Boltanski).

No capítulo “O desaparecimento forçado de pessoas como repertório da linguagem da

violência urbana”, o argumento central é o de que o método de “desaparecer pessoas”, muito

utilizado durante a repressão das ditaduras latino-americanas, tornou-se uma prática da

linguagem da violência urbana, principalmente nas grandes cidades. De repente pessoas

desaparecem nas mãos de policiais, milicianos, traficantes de droga. Esse capítulo também

discute as dificuldades jurídicas e as possibilidades semânticas das categorias desaparecido e

desaparecimento. O desaparecimento de pessoas vem cada vez mais sendo discutido e

construído como um problema social e, neste processo de construção, ora o desaparecimento é

compreendido como um problema familiar, ora como problema policial.

A Parte II, “A memória das tragédias”, reúne em dois capítulos histórias de

desaparecimento. No capítulo “O drama do desaparecimento narrado desde os familiares:

pequenos mapas da dor”, conto histórias dos familiares sobre o desaparecimento dos filhos.

Chamo essas histórias de “pequenos mapas da dor”, porque o que tento fazer é reconstituir

pequenas sequências de situações e ações dos familiares diante do caso. Os relatos dos

familiares são tomados aqui como “narrativas do terror e do sofrimento”. Estas “narrativas do

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terror e do sofrimento” talvez sejam uma outra forma de falar daquilo que Teresa Caldeira

chamou de “a fala do crime”. Os relatos dos familiares de vítima que registrei têm uma

estrutura parecida e deles emergem como protagonistas do ato de desaparecer policiais,

milicianos e traficantes. Os relatos também descrevem a interação entre os familiares de

vítima e o Estado, através da peregrinação que passam a fazer pelas instituições estatais

buscando solucionar o caso. Muitos familiares tornam-se habitués de lugares como delegacias

de polícia, Institutos Médicos Legais, hospitais, bocas de fumo em favelas, entre outros locais,

sempre em busca de informações acerca do paradeiro dos filhos e parentes.

O capítulo “Narrativa materna sobre o terror e o sofrimento: um caso exemplar”,

apresentou uma descrição densa de um caso exemplar de desaparecimento. O enredo da

história conta que um bando de traficantes de uma favela, que vive em pé de guerra para

“tomar” os pontos de venda de droga de uma favela vizinha, aluga o “caveirão” (carro

blindado da polícia usado para incursões militares em favelas) e, com a conivência da polícia,

sequestram treze pessoas. O relato da mãe retrata um verdadeiro “teatro dos horrores”.

Na Parte III, “Críticas, denúncias e protestos”, o foco da análise concentra-se nas

gramáticas morais e políticas sobre as quais se apoiam as críticas, denúncias e protestos dos

familiares. O capítulo “Gramáticas morais e políticas dos familiares de vítimas de violência”

aborda um conjunto de categorias como “vítima”, “familiar de vítima”, “metáfora da guerra”

e “desumanização”, entre outras, que ajudam a traduzir e expressar o universo moral e

político no qual se insere a experiência dos familiares. Esta experiência situa-se na fronteira

entre a linguagem da violência e a linguagem do direito.

No último capítulo da Parte III, “Engajamento político e movimento crítico: a

construção da crítica e da denúncia”, que é também o capítulo final da tese, descrevo um

evento-ação político, de onde é possível extrair os argumentos centrais da crítica dos

movimentos de direitos humanos à política de segurança pública fundamentada na metáfora

da guerra. O sofrimento dos “familiares de vítima” aparece nesse evento como a matéria-

prima sobre a qual se apoia a crítica dos movimentos de direitos humanos à violência estatal,

especialmente à violência policial. Se em outros momentos da tese é possível acompanhar,

através dos relatos dos familiares, suas relações com o poder público, nesse capítulo o que se

tem é o encontro dos familiares de vítimas com outros atores políticos do campo dos direitos

humanos. Esse encontro entre familiares e atores políticos do campo de protesto dos direitos

humanos possibilita aos atores envolvidos a troca de experiências e constitui-se em um espaço

de circulação de gramáticas políticas. Em relação aos familiares de vítimas, esse evento-ação

tem uma dimensão pedagógica, que advém sobretudo da pretensão e interesse político dos

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movimentos de direitos humanos em atuar no sentido de politizar a dor dos familiares. Nesse

sentido, a experiência dos familiares de vítima situa-se entre uma política da piedade

(orientada face à compaixão diante do sofrimento do outro) e uma política da justiça

(orientada face à justiça).

Nas “Notas finais” sintetizo os argumentos principais desenvolvidos ao longo dos

capítulos que compõem a tese.

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PARTE I

VIOLÊNCIA, SOFRIMENTO E POLÍTICA

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1. LINGUAGENS, PRÁTICAS E POLÍTICAS DO SOFRIMENTO

1.1. O trabalho do tempo e a questão da comunicabilidade da dor

Há certos tipos de pesquisa e trabalho de campo, que demandam necessariamente um

trabalho do tempo, no sentido que a antropóloga Veena Das dá à expressão: “Com a

expressão 'trabalho do tempo', faço alusão ao fato de que vidas humanas se movem entre

polos de agência e paciência e que o tempo também tem uma qualidade impessoal” (Das,

2012). A expressão trabalho do tempo vincula-se a ideias sobre “espera”, “paciência”,

“reação”, etc. É o caso, por exemplo, de situações que lidam com morte, sofrimento, dor e

humilhação, causados por situações de violência que destroem e aniquilam o corpo e abalam a

linguagem e a comunicação.

A reflexão de Das sobre o trabalho do tempo surge de seu trabalho etnográfico com

mulheres que foram raptadas e violadas durante o processo de Partição da Índia, e uma de

suas preocupações, entre outras, foi avaliar o significado do testemunho em relação à

violência e à formação do sujeito (Das, 2008c). Esta autora observa que muitos dos trabalhos

recentes sobre a violência sugerem que, diante dela, atinge-se “uma espécie de limite da

capacidade de representar”. Esses trabalhos são geralmente apresentados sob o “signo do

horror” e “nos fazem pensar como seres humanos podem ter sido capazes de atos tão

hediondos, em tão grande escala, como em Ruanda ou na ex-Iugoslávia”. E Das argumenta

ainda que a Partição da Índia, em 1947, fornece um “tropo de horror comparável”, mas não se

contenta com tal interpretação e coloca a questão em outros termos.

“Os atos de violência são transparentes?”, pergunta-se Veena Das.

Como se pode expressar a relação entre a possibilidade e a ocorrência, e mais ainda, entre o factual e o eventual, se a violência, quando acontece de modo dramático, encerra uma relação com o que está acontecendo de forma repetida e não-melodramática, como dizê-lo, não numa narrativa única, mas na forma de um texto que é constantemente revisado, revisto e acrescido de comentários. Pode-se, então, pensar no texto não como algo acabado, mas em processo de produção. Além da imagem do texto, podemos também falar do envolvimento no dia a dia como um envolvimento com a criação de fronteiras em diversas regiões do self e da sociabilidade. (Das, 1999: 31-32)

A categoria “familiar de vítima”, central nesta tese, nos remete exatamente a essa

“criação de fronteiras em diversas regiões do self e da sociabilidade”, a que se refere a

antropóloga indiana. A primeira fronteira que se estabelece nesse caso se conforma partir da

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diferenciação entre aqueles que tiveram parentes mortos, vitimados pela violência, e aqueles

que não têm. Consequentemente, a categoria demarca uma distinção entre aqueles que sofrem

diretamente a perda de um ente querido e aqueles que não sofrem. O sofrimento decorrente da

violência impacta a sociabilidade daqueles que estão imersos direta e indiretamente no

acontecimento, obviamente de modos e intensidades diferenciadas.

Em relação à experiência dos familiares de vítimas a violência provoca rupturas e

reorganizações das rotinas, das formas de vida, da relação com o trabalho, das relações no

interior da família, e também gera adoecimento e mais mortes. Por outro lado, se a violência

produz destruição e desorganiza o tecido social entorno dos eventos críticos marcados pela

violência, ela pode também gerar laços de solidariedade a partir da dor e do sofrimento,

produzindo novos vínculos sociais e circuitos de sociabilidade. A violência é atualizada nas

várias esferas da vida social: na familiar, no trabalho, na sociabilidade local, nos meios de

comunicação, na religião, etc.

Segundo Veena Das, há uma forma de conhecimento que se constitui pelo sofrimento.

A este conhecimento ela dá o nome de conhecimento venenoso. Trata-se de um “conhecer

pelo sofrimento” em que o tempo “não é algo meramente representado”, é um agente que

“trabalha” nas relações, “permitindo que sejam reinterpretadas, reescritas, modificadas, no

embate entre vários autores pela autoria das histórias nas quais coletividades são criadas ou

recriadas” (Das, 1999: 37). Neste sentido, a violência enquanto evento/acontecimento é

construída através da experimentação de diversas vozes e, ao se falar de experiência, está-se

falando necessariamente de subjetividade e da produção de sujeitos. A experiência do

sofrimento engendra não só a destruição do corpo e da linguagem, mas também a produção de

sujeitos da dor e comunidades morais, que se conformam e se transformam com o “trabalho”

do tempo. O relato a seguir, de uma mãe de vítima, expressa exatamente a argumentação de

Veena Das a respeito do conhecimento venenoso:

O que aconteceu num primeiro momento pra gente tomar uma atitude? Bom, vamos para as ruas! Ou a gente ficava dentro de casa chorando ou a gente tinha que ir para as ruas. No meu entendimento, no meu sentimento, eu achava que alguma coisa saía de dentro da comunidade, eu não sei porque. Ainda não caiu esse dado claro, mas eu acredito que se antes de eu morrer eu vir a saber eu vou ficar chocada com alguns participantes. Bom, e aí nós fomos para as ruas, levamos cartazes, fomos pra frente da Secretaria de Segurança, eu nem sabia que [podia entrar lá]... A gente fica vendo televisão, você tá lá cuidando dos seus filhos, você vê televisão e não é contigo, então você num tá nem aí, você vê, sente a dor, se emociona no momento, mas passa, você vai pro seu dia-a-dia, porque nós estamos assim.

Neste relato, a mãe trata de duas formas de conhecer a dor. Uma seria através do

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“sofrimento à distância” (Boltanski, 2007), assistindo televisão, e outra seria através do

conhecimento venenoso (Das, 2008c). Seu argumento é que uma coisa é assistir o sofrimento

do outro na televisão, outra coisa é “sentir na pele”. E cada tipo propicia possibilidades de

engajamento diferentes. Foi através do conhecimento venenoso, ou seja, quando “sentiu na

pele”, que essa mãe, que fala através do relato acima, descobriu, por exemplo, que podia

entrar no prédio da Secretaria de Segurança Pública.

O conhecimento venenoso, aquele que se dá pela via do sofrimento, nos coloca diante

de uma questão que é a da distância. Distância entre aqueles que acessaram, através da

experiência direta do sofrimento da perda, esse tal conhecimento venenoso, e aqueles que não

sofreram. O tempo, nesse sentido, aparece como um agente que “trabalha” essa distância, que

“atua” no encontro entre a disposição de falar e expressar o conhecimento venenoso e a

possibilidade desta fala ser acolhida, de encontrar escuta. Neste aspecto, é possível aproximar

o pensamento de Veena Das das interpretações de Michael Pollak e Natalie Heinick (Pollak e

Heinick, 2006) no que diz respeito à reflexão sobre o significado e as condições de

testemunhar diante de eventos críticos e situações extremas. Tanto numa interpretação como

na outra a questão da distância tem a ver com a dificuldade de compartilhar uma experiência

traumática que coloca em risco a integridade física e moral daqueles que estão imersos no

acontecimento, e um abismo então se estabelece entre aquele que viveu a experiência e

aqueles que não (lembrando que a experiência pode ser vivida direta ou indiretamente,

portanto, com alcances diferenciados).

Pollak e Heinick (2006) chamam atenção para a dificuldade de se manter intacto o

sentimento de identidade diante de situações limite e para o fato de que o testemunho põe em

jogo não só a memória, mas também uma reflexão sobre si mesmo, e essa reflexão é dolorosa,

exatamente porque coloca em risco a própria imagem de si, a própria identidade. É esse risco

de fragmentação do próprio self que impede vítimas e sobreviventes – e, no caso desta tese, os

familiares de vítimas – de narrar os traumas vividos. Por isso, o ato de testemunhar

experiências traumáticas implica sempre lidar com o problema do silêncio. Como afirmam

Pollak e Heinick em relação à experiência concentracionária:

El silencio deliberado, obstáculo para toda investigación tendiente a reconstruir la lógica de las adaptaciones sucesivas ante rupturas radicales en el desarrolo de una vida, es sin duvida el indicador más sobresaliente del carácter doblemente límite de la experiencia concentracionaria: en el límite de lo posible, y por lo tanto, en el límite de lo decible. No pueden así hablar de modo creíble sino aquellos que lo han sufrido, mientras que ele esfuerzo por olvidar o no evocar públicamente puede ser una condición para superar esse pasado. (Pollak e Heinick, 2006: 55)

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Se a situação-limite é o que muitas vezes faz falar aqueles que sofreram a experiência

traumática e “em princípio dá a sua história particular um interesse mais geral e justifica uma

atenção especial”, por outro lado, “não é menos certo que sua tomada de palavra, longe de

'engrandecê-los', como é o caso de outros grandes testemunhos históricos, corre o risco de

reativar as experiências traumáticas dos acontecimentos desse passado, que resultam

incompatíveis com a imagem que eles têm de si mesmos ou com seu sentimento de

identidade”. (Pollak e Heinick, 2006: 56).

Pollak e Heinick, quando refletem sobre o testemunho, o fazem a partir da experiência

dos sobreviventes dos campos de concentração nazista, mas as questões que colocam servem

para pensar de modo mais amplo a produção da memória traumática em outros contextos.

Questões similares às levantadas por esses autores também fazem parte, por exemplo, das

reflexões de Veena Das ao analisar os conflitos ocorridos durante a Partição da Índia. Tal

como Pollak e Heinick, Das se preocupa com a dignidade daqueles que sofrem e,

consequentemente, com a dimensão ética que se coloca no trabalho em contextos de

violência. Afinal, como se interrogam Pollak e Heinick (2006: 56), “como descrever com

pudor e dignidade atos que tem degradado e humilhado a pessoa?”.

Em vários momentos e ocasiões de seu trabalho, Veena Das tem colocado o problema:

A dor destrói a capacidade de comunicar, como muitos têm argumentado, ou se cria uma

comunidade moral a partir de quem tem padecido do sofrimento? Se a dor destrói a

capacidade de comunicar-se, “como pode alguma vez transladar-se à esfera da articulação

pública”? A hipótese de Das é que “a expressão da dor é um convite a compartilhá-la”. Neste

sentido, portanto, a dor não é uma experiência estritamente pessoal (Das, 1995; 2008). E se a

dor não é uma experiência apenas pessoal, a questão que se apresenta é: “Como pode minha

dor residir no corpo do outro?”

Para Veena Das quem melhor formulou este argumento foi o filósofo Wittgenstein,

uma de suas principais fontes inspiradoras3. Das dialoga com a análise de Wittgenstein sobre a

linguagem privada, segundo a qual, o filósofo “considerou a dor como um exemplo

privilegiado de objeto privado e se perguntou se era possível falar da existência de uma

linguagem privada para descrever essa classe de objetos” (Das, 2008b: 432). Segundo a

análise de Das sobre Wittgenstein, é possível distinguir dois aspectos da dor: sua

comunicabilidade e seu caráter inalienável. Em relação à comunicabilidade da dor, a pergunta

3 Outro autor de referência para Veena Das é o também filósofo Stanley Cavell, principalmente no que diz respeito à sua leitura da obra de Wittgenstein.

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a ser feita é se é possível comunicar a experiência em torno da dor de um indivíduo a outro

indivíduo. “O conhecimento dos objetos privados, como a dor, é possível apenas para o

sujeito individual ou é comunicável?”. E a segunda pergunta, relativa ao caráter inalienável da

dor é: “O que significa 'ter' dor?”

O argumento de Wittgenstein, retomado por Das, é o de que a afirmação “tenho dor”

não é um enunciado declarativo que pretenda descrever um estado mental, mas sim uma

queixa.

No es um enunciado descriptivo porque la palabra “dolor” termina refiriendo-se a la sensación de dolor solo por medio de una expresión articulada y apreendida de expresiones inarticuladas no apreendidas, como quejidos, gruñidos, etc. Aunque es cierto que yo podría decir “me duele” o emitir sonidos que expresaran queja o desassossiego y que indicaran que mi comportamiento está condicionado por el dolor sin que efectivamente estuviera padeciendo dolor alguno, o que también podría ocultar el hecho de que padezco color, ello no hace la relación entre la expressión del dolor y la sensación del dolor una relación contingente. Como lo expresa Wittgenstein, decir “me duele” no es el final de un juego de lenguaje, sino su comienzo. Ello no hace el dolor incomunicable, aunque la outra persona está em una posición em la cual solo puede intuir su existencia. (Das, 2008b: 432)

Sobre o caráter inalienável da dor, Veena Das destaca que Wittgenstein se pergunta

sobre o que significa “ter uma dor”. “São minhas dores aquelas unicamente experimentadas

em meu corpo?”. E a resposta que ele oferece é: “Minhas dores são aquelas as quais lhes dou

uma expressão” (Das, 2008b: 432). A dor, portanto, não é algo estritamente individual e

incomunicável. Wittgenstein dá vários exemplos de como é possível apreender a dor do outro

através dos jogos de linguagem, e é valendo-se de um jogo de linguagem que constrói a

seguinte imagem:

Con el fin de ver que es concebible que una persona pueda experimentar dolor en el cuerpo de otra, deve examiner-se qué clase de hechos llamamos criterios para que un dolor se encuentre en un lugar determinado… Supongamos que siento un dolor que basándome solo en la prueba de ese dolor (es decir, con los ojos cerrados) debería denominar como um dolor en mi mano izquierda. Alguien me pide que me toque el punto doloroso con mi mano derecha. Lo hago, y al abrir los ojos percibo que estoy tocando la mano de mi vecino… Eso sería sentir el dolor en otro cuerpo. (Wittgenstein, 1953: 43 apud Das, 2008b: 433)

É possível apreender a dor do outro através dos jogos de linguagem, de modo que

“negar a dor do outro não é algo atribuível a deficiências do intelecto, senão a deficiências do

espírito”, afirma Das. Portanto, a questão da dor coloca-nos diante de uma situação radical de

alteridade, em que é possível através dos jogos de linguagem nos aproximarmos ou nos

afastarmos do outro. Como escreve o filósofo Stanley Cavell, em um comentário a um texto

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de Das, “o que está em jogo é o futuro entre nós” e daí derivam duas consequências. A

primeira é que se não se responde ao pedido de reconhecimento da dor do outro quando esta

vem dirigida à nossa pessoa, se nega sua existência e é, portanto, um ato de violência (sem

importar sua fugacidade e que seja em grande medida imperceptível). A falta de resposta é um

silêncio que perpetua a violência da dor em si, como afirma Cavell. A segunda consequência é

que “se o estudo de uma sociedade requer um estudo de sua dor, então, na medida em que

exista uma ausência de linguagens da dor nas ciências sociais, estas participam do silêncio e,

por conseguinte, aumentam a violência que estudam”. Cavell (2008: 377) lembra o texto de

Das, no qual ela diz que as “linguagens da dor são as linguagens pelas quais se reconhece a

dor, as linguagens pelas quais se vem a saber de sua existência”; e o termo que Das utiliza é

“testemunhar” .

No caso dos familiares de vítimas de violência o testemunho configura uma das

modalidades principais de comunicação e politização do sofrimento. O testemunho dos

familiares e sua presentificação pública através de atos e manifestações de protesto, eventos

comemorativos, circulação na mídia, é uma das principais fontes de comunicação desse

sofrimento, um elo através do qual se constitui uma “comunidade emocional”.

Walter Benjamin possui um aforismo, intitulado “Narração e Cura”, em que ele fala do

poder do fluxo da narração de levar consigo a dor até sua foz, ele escreve que “assim como a

dor é uma barragem, que resiste ao fluxo da narrativa, do mesmo modo é claro que ela é

rompida onde a correnteza se torna forte o suficiente para levar consigo tudo o que encontra

para o mar do esquecimento feliz” (Benjamin, 2002).

A comunicação das experiências de sofrimento – entre elas a morte violenta dos filhos

e as humilhações sociais a que são submetidos os familiares – permite criar uma comunidade

emocional capaz de alentar a recuperação do sujeito e sua recomposição cultural e política.

Recomposição política no sentido de reconstrução dos laços políticos que tornam aqueles que

foram submetidos a experiências de subjugação partícipes de uma comunidade política e

sujeitos de direito. Este argumento, desenvolvido por Jimeno (2008), ao analisar as relações

entre linguagem, subjetividade e experiências de violência, no contexto colombiano, expressa

o entendimento de que um dos efeitos da violência – seja ela de qualquer ordem – é que ela

afeta a confiança da pessoa ou de um grupo social em si mesmo e provoca rupturas nas redes

sociais. O processo que permite ultrapassar a condição de vítima passa, por conseguinte, pela

recomposição do sujeito como ser emocional e ser político.

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1.2. Desaparecimento, evento crítico e sofrimento social

Veena Das e outros pesquisadores vêm produzindo estudos etnográficos sobre

experiências de conflito, traumas e sofrimento social que têm sido conceituadas como eventos

críticos (Das, 1995; Kleinman, Das e Lock, 1997; Das, Kleinman, Ramphele e Reynolds,

2000). A problemática do sofrimento social vem sendo discutida por estes autores tendo como

referência o campo da Antropologia Médica, e aparece articulado a outros conceitos como os

de trauma social e evento crítico.

Ortega (2008: 27-28), ao analisar a obra de Veena Das4, chama atenção para a

centralidade do conceito de trauma social implícito em outro conceito utilizado por Das que é

o de “eventos críticos”. Este autor chama a atenção para o fato de que a ausência de uma

noção clara de trauma social pode dar margem a uma grande confusão e ao uso

indiscriminado do termo para designar uma variedade de convulsões sociais. Ortega retoma

duas definições de trauma social, uma do sociólogo Kai Erikson e outra de Jeffrey Alexander.

Erikson propôs o conceito de trauma social para definir o “ethos – ou cultura grupal – que é

diferente da soma das feridas pessoais que o constitui, e é mais que estas”. Mais recentemente

Jeffrey Alexander propôs a noção de trauma social para uma “investigação em sociologia

cultural com a preocupação pelos efeitos institucionais e do poder, e o aplica a um período

que transcende a conjuntura”. A respeito de Alexander, Ortega escreve que “para Alexander

estes eventos só podem ser entendidos dentro de matrizes sociais constituídas por narrativas

sociais e códigos simbólicos, os quais por sua vez são suscetíveis de mudança substancial de

acordo com as circunstâncias sociais”. E complementa a discussão sobre trauma social

introduzindo seu próprio ponto de vista:

Yo, por mi parte, he insistido en otras partes en que el concepto puede ser útil para concebir los modos en que el sufrimiento social trastorna las redes simbólicas (en especial aquellas asociadas con la ley, el colectivo y la espiritualidad) e imaginarias (autoridad, nación, religión) que le dan sustento a la vida social. (Ortega, 2008: 28)5.

O sofrimento social engloba uma variedade de experiências de dor, trauma e distúrbios 4 Algumas resenhas e recepções do trabalho de Veena Das no contexto colombiano, ou por pesquisadores colombianos, podem ser encontradas em Bolívar e Flórez (2004), Ortega (2008), Barrero (2008), Jimeno (2008) e Uribe (2004, 2008), entre outros. Em relação a contextos e autores brasileiros, pode-se consultar, entre outros, (Peirano, 1997); Pereira (2004, 2010) e Carvalho (2008). 5 Ortega destaca ainda, em sua genealogia dos conceitos, que, ao descrever as experiências traumáticas ou de violências desoladoras, Das toma a noção de acontecimento (critical event), desenvolvida pelo historiador François Furet para designar aqueles que eventos que “instituem uma nova modalidade de ação histórica que não estava inscrita no inventário dessa situação” (Das, 1995 apud Ortega, 2008: 28). A discussão do historiador François Furet sobre a noção de acontecimento (em francês événement), encontra-se em Furet (1998).

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– por exemplo, a fome, doenças sexualmente transmissíveis, violência política, mutilações

corporais, tortura e tratamentos degradantes, violência doméstica e familiar, estresse pós-

traumático, etc. –, experiências que envolvem, simultaneamente, situações de saúde, bem-

estar, justiça, moralidade e religião.

Neste sentido, o sofrimento é compreendido não como um problema médico ou

psicológico, mas como uma experiência social. Esta abordagem tem enfatizado a dimensão

moral envolvida no sofrimento social, em que, a partir de situações históricas determinadas,

são vividas experiências sociais marcadas pela humilhação social, pela vergonha e pela ofensa

moral. O conceito de sofrimento social abrange, portanto, um conjunto de experiências

disruptivas e uma complexa dimensão moral.

O desaparecimento de pessoas é tomado nesta tese como um evento crítico, tal como

este conceito é trabalhado por Veena Das (Das, 1995). A autora seleciona um conjunto

heterogêneo de eventos críticos como o desastre industrial de Bhopal, a Partição da Índia, a

prática do sacrifício feminino entre os hindus e o apelo ao exercício da violência entre os

militantes Sikh, para compreender algumas das categorias nativas que hoje são centrais na

política indiana como as de “vítima”, “memória”, “tradição”, “honra”, “sacrifício” e “pureza”.

A seleção destes eventos visa mostrar como a irrupção da violência no cotidiano da sociedade

indiana provoca o aparecimento na esfera pública de agentes sociais que até então levavam

uma vida anônima e que passam a interpelar o Estado pelas consequências de um sofrimento

percebido como “repentino”, “inexplicável” e “injusto”.

Como momentos de “quebra do cotidiano”, estes eventos permitem explicitar as

transformações ocorridas nas práticas da política contemporânea, quando as “comunidades”,

ao se confrontarem com o Estado, se constituem como agentes políticos, e como o Estado, ao

reconhecer essas “comunidades” como “vítimas”, assume a responsabilidade de atuar “em

favor” de seus interesses. Esses agentes sociais não estão ligados exclusivamente a um

território local, mas constituem-se a partir do sentido que Benedict Anderson (Anderson,

1991, apud Das, 1995) dá à expressão “comunidades imaginadas”.

De maneira análoga à análise de Das (1995), pode-se pensar no caso dos familiares de

vítimas de violência, que vem se constituindo no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro. Ou

seja, trata-se da constituição de agentes sociais e políticos que passam a interpelar o Estado

em razão do sofrimento provocado, seja pela violência direta e aberta do Estado, seja pela

incapacidade deste Estado de promover a segurança pública. Sobretudo, no que diz respeito

aos territórios sócio-espacialmente segregados, que passam a sofrer com o exercício da força

protagonizado pelas facções criminosas ligadas ao tráfico de drogas, particularmente nos

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territórios das favelas.

O sofrimento e a dor têm seu papel na criação de "comunidades morais"; ao exigirem

justiça e ao se relacionarem com o sistema burocrático e jurídico do Estado, tais comunidades

são deslocadas do mundo privado e "criadas" como comunidades políticas, passando a

questionar a legitimidade de um Estado incapaz de monopolizar a violência e garantir a

segurança de todos. Neste sentido, violência não é só destruição, ela influi na construção de

novos engajamentos políticos. Leite, por exemplo, ao analisar as experiências de mães de

vítimas de violência, assim as descreve:

Desamparadas pelas instituições do Estado, as mães tomam a iniciativa de – algumas vezes sozinhas, outras com apoio de ONGs e grupos de direitos humanos – percorrer delegacias, examinar as certidões de óbito buscando indícios de execução, recolher provas e depoimentos, procurar os corpos de seus filhos desaparecidos, registrar queixas em delegacias policiais, na Corregedoria de Polícia, na Ouvidoria de Polícia e na Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, buscar apoio de ONGs e comissões de direitos humanos, contratar peritos, batalhar por audiências nos órgãos públicos, “cavar” espaço para suas denúncias na mídia, organizar protestos. Tudo isso na tentativa de incriminar os culpados e pressionar as autoridades públicas pela abertura, andamento e conclusão de inquérito policial e/ou processo criminal. (Leite, 2004: 176)

Leite observa ainda que as mães – especialmente aquelas moradoras de favelas e

periferias – compreendem o sofrimento originário da perda dos filhos como consequência de

os filhos terem sido classificados como bandidos e traficantes para justificar a violência e os

abusos policiais.

Retomando o diálogo com Veena Das e os pesquisadores que vêm partilhando o

interesse em estudar a temática do sofrimento social, a questão que se coloca é compreender

como as formas de sofrimento humano podem ser ao mesmo tempo coletivas e individuais,

fruto do exercício do poder econômico, político e repressivo (Kleinman, Das e Lock, 1997).

Neste sentido, meu objetivo, no que diz respeito aos familiares de vítimas, é compreender

como são produzidos sentidos e resistências diante de situações críticas que se encontram na

fronteira entre problemas pessoais e sociais e que desestabilizam categorias estabelecidas.

Como nota Carvalho (2008), ao analisar a obra de Veena Das, os conceitos de eventos

críticos e sofrimento social apontam para um conjunto de experiências que provocam um

ponto de inflexão e de ruptura, tanto na vida daqueles que sofrem a dor diretamente, quanto

na daqueles que são histórica e imaginariamente alcançados por ela. Sofrimento social

“resulta daquilo que a política, a economia e o poder institucional faz às pessoas e,

reciprocamente, de como estas formas de poder influenciam respostas aos problemas sociais”

(Kleinman, Das e Lock, 1997: ix).

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Nos trabalhos reunidos no livro organizado por Kleinman, Das e Look (1997), os

autores mostram a permeabilidade das fronteiras entre a imaginação moral, a afetação

corporal e os processos sociais. Muitos dos trabalhos formulam questões de sofrimento social

em relação ao problema da linguagem. Os autores se interrogam sobre os aspectos

performativos da linguagem e sobre o papel de um gênero de discurso na sociedade que

molda a experiência do sofrimento, fazendo com que certas experiências de dor e angústia

sejam expressivas e outras envoltas em silêncio.

Essa abordagem, portanto, permite pensar o desaparecimento como um evento crítico,

que suscita entre aqueles que são alcançados pelo acontecimento (os familiares e amigos do

desaparecido) uma experiência marcada pela dor e pelo sofrimento. Um dos desafios

colocados para esta pesquisa foi o de compreender como as formas de sofrimento humano

podem ser ao mesmo tempo coletivas e individuais, fruto do exercício do poder econômico,

político e repressivo. O objetivo foi analisar como os familiares produzem sentido, críticas e

resistências para situações-limite que se encontram na fronteira entre problemas pessoais e

problemas sociais, sofrimento individual e os códigos de expressão social.

Como se estabelecem as relações sociais diante e a partir de eventos críticos? Quais

gramáticas são acionadas para o agir social diante de eventos críticos? Que tipo de linguagem

é acionada para falar de eventos críticos? Qual o papel desempenhado pelo Estado? Qual o

status das vítimas e o repertório de ação? Em que condições ocorrem os testemunhos das

experiências traumáticas e o que podem revelar? Como os eventos críticos “descem” ao

cotidiano e que lugar ocupam os rumores nessas situações em que há muita produção de

silêncio?

Ao apontar tais questões, observa-se uma preocupação em apresentar uma forma

diferente de pensar a violência, não apenas como algo eventual, pois tem íntimas

consequências sobre as rotinas cotidianas. O sofrimento provocado pela violência molda as

experiências cotidianas. Esta é uma das formas como a violência “desce ao cotidiano”,

moldando a partir do sofrimento a subjetividade das pessoas. Das, por exemplo, faz uma

crítica à forma de pensar a violência sempre ou apenas como algo extraordinário e através de

oposições rígidas como “agressor-vítima”, “opressão-agência”. Pensar a violência como algo

esporádico e casual não possibilitaria um “descenso ao cotidiano” e ao trabalho diário de

resistência a ela.

Neste ponto, em relação aos relatos dos “familiares de vítima”, o que eles fazem

revelar é exatamente o fato de que a violência à qual estão imersos é da ordem do ordinário, e

não apenas do extraordinário. O extraordinário não é aquilo que está fora da rotina, ele está

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incorporado à vida ordinária. A ocorrência de eventos críticos é parte da rotina, desestabiliza o

curso da vida e das trajetórias, tem sempre o poder de produzir silêncio e coloca o desafio de

como produzir resistências. As histórias apresentadas na parte II da tese mostram bem o

impacto do evento na rotina e na vida destas pessoas.

O processo de partição territorial entre a Índia e o Paquistão, pesquisado por Das

(1995), acabou por desalojar 14 milhões de pessoas, e vitimar pelo menos um milhão, e teve

como uma das práticas recorrentes o rapto e a violação de mulheres. Das percebeu como as

mulheres violentadas narravam suas experiências sempre usando o recurso de uma linguagem

metafórica que se valia de figuras de linguagem para não ter que narrar diretamente a

violação.

Essa negação em falar diretamente sobre os atos de violência em si e o recurso à

linguagem metafórica também se faz presente nos relatos dos “familiares de vítimas”. Penso,

por exemplo, no caso de dona Madalena, que comecei a acompanhar quando tinha

aproximadamente um ano que ela havia perdido o filho. Ainda tinha muita dificuldade para

narrar o acontecimento com o filho, morto por milicianos em uma favela do Rio de Janeiro.

Evitava sempre dizer que o filho teve a cabeça degolada. Posteriormente, com o trabalho do

tempo, com o contato com outros familiares e com militantes de movimentos sociais e

direitos humanos, aprendeu a competência política de usar o drama e a dor a seu favor na

construção do filho como vítima. Passou a narrar explicitamente os fatos com o objetivo de

chocar. Passou a adotar uma narração na qual coloca toda sua dor para tentar penetrar no

outro, despertando o sentimento de compaixão. A riqueza dos detalhes no relato tem a função

de valorizar seu sofrimento, de engrandecê-la como vítima.

1.3. Saída, voz e silêncio no horizonte de ação

A morte violenta, enquanto evento crítico que é, suscita entre aqueles que são

alcançados pelo acontecimento (os familiares e amigos das vítimas) uma experiência marcada

pela dor e pelo sofrimento. Em alguns casos tal sofrimento tende a ganhar uma expressão

maior, sendo vivido de maneira pública, chegando a constituir aquilo que em outro trabalho

chamei de práticas de luto reivindicativas de justiça (Araújo, 2008). Noutros casos, implica

uma vivência silenciosa, principalmente nos casos em que a vítima possuía alguma ligação

com o chamado mundo crime. Depois de submetidos a eventos críticos, os atores sociais

assumem novas formas, inclusive de expressão, inscrevendo nos seus próprios corpos aqueles

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acontecimentos, quando as palavras falham e o próprio corpo torna-se o único meio de

expressão.

Há várias formas de lidar com a perda de um filho e com o luto que ela provoca.

Desde a indiferença, passando pela superação até a imersão numa dor profunda a ponto de ela

se tornar uma linguagem através da qual suas vidas vão sendo reconstruídas ou que pode levar

até à morte. E estas formas de lidar com o acontecimento e os sentimentos diferenciados que

produzem também geram variações na produção dos relatos. Em muitas das entrevistas

notava-se nos familiares certo “engasgo” para falar de suas histórias. Em todas as entrevistas

realizadas os entrevistados choraram. O choro geralmente acontecia no momento em que

rememoravam as boas qualidades dos filhos e a saudade batia.

Pessoas e grupos sociais afetados por eventos críticos, como é o caso dos familiares de

vítimas de violência, vivenciam tempos de silêncio e tempos de voz. Há momentos em que é

preciso se fazer calar, se recolher, se silenciar para esconjurar o sofrimento e evitar o mal

entendido e o constrangimento moral. Noutros momentos, a necessidade e o imperativo do

ato de denunciar uma injustiça, uma violência sofrida, uma humilhação social, de fazer

circular uma versão de um acontecimento exige que se fale, que se proteste, que se dê

publicidade aos fatos e que se dispute o significado político dos acontecimentos. Tempos de

silêncio e tempos de voz se alternam na experiência dos familiares de vítimas de violência.

Dois conceitos que integram um modelo analítico elaborado por Albert Hirschman,

transpostos e ajustados para o contexto desta pesquisa, são muito úteis para se pensar a atitude

dos “familiares de vítimas” diante dos eventos críticos marcados pela morte violenta dos

entes queridos: são os conceitos de saída e voz. O foco de Hirschman analisa como

mecanismos de mercado e não mercado interagem ou se excluem. A questão principal, a partir

da qual Hirschman elabora seu modelo de análise, é descobrir como é possível identificar as

falhas e os desvios de um sistema antes que ele entre em colapso total e seja ainda capaz de

reagir.

Segundo este modelo, é possível pensar as falhas e os desvios que ocorrem em

qualquer sistema econômico, social ou político e sua possibilidade de reação a partir do

comportamento dos agentes envolvidos. Para o autor, existem duas maneiras através das quais

é possível tomar conhecimentos das falhas. “Os clientes de uma empresa param de comprar

um produto ou os membros de uma organização deixam a organização: é a opção de saída”. A

outra maneira é a expressão da insatisfação diretamente à direção ou a alguma autoridade,

“através de protestos gerais, dirigidos a quem estiver interessado em ouvi-los: é a opção de

voz”. Decorre daí que o autor se dedica a uma análise comparativa entre as opções saída e

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voz, de como uma influencia a outra, de como uma exclui a outra, de como uma prevalece

sobre a outra, de como as duas entram em jogo simultaneamente.

Embora a análise de Hirschman focalize o âmbito da economia, o próprio autor

reconhece e destaca que os conceitos desenvolvidos são aplicáveis não apenas a agentes

econômicos, “mas também a uma grande variedade de organizações e sistemas não

econômicos”. Neste sentido, inspirado pelas noções de saída e voz , mas ajustando-as ao

“objeto empírico” desta pesquisa, é possível pensar as formas de engajamento ou não

engajamento dos familiares em situações e processos de denúncia de mortes violentas

relacionadas à violência policial e à violência criminal.

No caso desta pesquisa, a ideia geral que a noção de saída transmite talvez pudesse ser

pensada através de uma associação com a questão do silêncio. Saída aqui significa silêncio, e

silêncio significa saída. Enquanto voz significa publicização, protesto, visibilidade. São duas

maneiras diferentes de lidar com a dor, o sofrimento e a indignação. Enquanto a opção saída,

neste contexto, significa silenciamento e isolamento, vivendo o drama no âmbito privado, a

opção voz, como escreve Hirschman, “é ação política por excelência”, experimentada no

espaço público.

Duas situações de como duas mães lidam com o desaparecimento de um filho servem

como exemplos extremos de como a opção saída e a opção voz são acionadas: a primeira mãe

dá graças a Deus pelo fato de o corpo do filho, depois de assassinado, ter “desaparecido”,

porque ela não teria dinheiro para pagar os custos do enterro. Na segunda situação uma mãe

questiona a autoridade que um grupo de extermínio tem para desaparecer com sua filha,

mesmo que ela fosse bandida: “Eu tenho essa raiva, essa indignação. Porque você além de ser

injustiçada, porque era minha filha, problema se era bandida, eu quero ela presa, não quero

ela morta. Ninguém julga ninguém aleatoriamente, quem é esse grupo de extermínio pra

julgar esses jovens e condená-los?”.

Na primeira situação a mãe que perde o filho não vê o fato sob o olhar da gramática da

justiça, por isso não se engaja e escolhe a opção saída. Enquanto no segundo caso a mãe

compreende a perda do filho como fruto de uma injustiça grave e se engaja na luta por justiça.

Neste caso a opção voz entra em ação. No primeiro caso não há nenhuma manifestação de

indignação, mas sim de conformismo e resignação. Diante da vida dura e precária que leva,

marcada pela pobreza e pela miséria material, o desaparecimento do corpo do filho é visto

como um gasto a menos. A violência engendra tensionamento entre silêncio e voz.

A partir da distinção introduzida por Albert Hirschman entre saída e voz, Boltanski

argumenta que, diante do espetáculo do sofrimento de um infeliz, o espectador se vê diante de

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um dilema que pode ser qualificado de moral: se engajar ou não ao sofrimento do outro. Com

efeito, face ao sofrimento do outro, o espectador pode escolher a opção fácil de deserção, mas

então correria o risco de ser acusado de indiferença. Saber do sofrimento do outro aponta em

direção à obrigação de assistência. Por que não atrair a atenção de pessoas não concernidas no

espetáculo de seres humanos que sofrem com uma cobrança para que se orientem no sentido

de uma ação que cesse o sofrimento de quem sofre. A opção que se coloca àquele que deseja

se engajar, segundo a distinção de Hirschman apropriada por Boltanski, é a de “dar voz”

(Boltanski, 2007: 50-51). Esse “dar voz” é uma forma de aproximação à dor do outro,

principalmente quando o outro encontra-se em situação subalterna e tem o direito de falar

cerceado, deste modo condenado ao cerceamento da palavra e ao silêncio. “Dar voz” é uma

forma de agir no sentido de dar visibilidade ao ato de sofrer, e consiste em uma palavra

pública que visa um número ilimitado de parceiros, apoiadores. Boltanski qualifica a palavra

pública como sendo aquela que se distingue de um modo de olhar orientado face à

exterioridade e animado pela intenção de ver cessar o sofrimento, e que corresponde a uma

maneira de olhar desinteressada e altruísta.

No caso dos familiares de vítimas de violência a tensão entre voz e silêncio

corresponde a uma disputa “atípica” nos termos do modelo de Boltanski: é disputa, mas como

não está voltada para o acordo, está bem mais perto de um conflito no “regime de violência”,

embora se mantenha na fronteira com o “regime de paz”. Exatamente porque a disputa se

mantém na fronteira entre um “regime de violência” e um “regime de paz” é que os familiares

ora operam com a opção silêncio, ora com a opção voz, além de poderem simplesmente se

ajustar a opção saída, ou seja, simplesmente sair do “caso”, não levá-lo adiante. O que

pretendo argumentar aqui é que no curso de suas ações os familiares podem lançar mão de

argumentos de diferentes ordens. O silêncio, por exemplo, não é apenas repertório de um

regime de violência (Boltanski), pode ser transformado em uma forma de estar no mundo

após um evento violento e um protesto. O silêncio aparece para os familiares como uma

competência, que consiste em denunciar a violência sofrida mostrando o silêncio. Nesse

sentido, ele não está associado apenas a destruição e apagamento, mas também a um

“trabalho do tempo” de reconstrução das maneiras de habitar o mundo após as tragédias

pessoais e/ou coletivas e de falar não apenas discursivamente, mas performativamente.

A experiência do desaparecimento tal como vivida pelos familiares os insere

inicialmente em um tempo do choque, marcado pela dor e pela destruição, e, com o “trabalho

do tempo,” suas práticas passam a inscrever-se no tempo da política. (Araújo, 2007: 59), ou

seja, o sofrimento passa por um processo de politização. É nesta passagem do tempo do

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choque ao tempo da política que ocorre a politização da dor, o que envolve muitas vezes a

construção de redes de solidariedade para lutar em torno de uma causa, através da relação dos

familiares com outros atores políticos, como entidades e movimentos de direitos humanos e a

mídia, entre outros.

A noção de tempo é muito importante para os familiares de vítimas, principalmente

nos casos de desaparecimento, porque com o passar do tempo fica mais difícil reunir provas

para levar o caso adiante. O relato a seguir é exemplar nesse sentido:

Eu tenho uma dificuldade muito grande comigo mesma, porque eu sou aquela que gosta de ver pra crer. Então viver com a possibilidade é terrível. Eu te digo, que hoje eu me vejo obrigada a viver com a possibilidade. Então, eu num primeiro momento eu queria saber porque que ia, eu achava que o tempo ia ser completamente desfavorável a nós, como foi. [Relato de uma mãe de desaparecido]

A relação com o caso é uma relação de angústia que se prolonga no tempo. Cada caso

tem uma temporalidade: o tempo da dor, de absorver a ideia da morte do parente, de tentar

esquecer ou buscar explicações para as formas desumanas das mortes; o tempo da maturação

das ações, da mobilização de apoios, da denúncia; assim como também há o tempo do

cansaço, do abatimento e da falta de esperança que leva ao desespero; há o tempo de ocupar

as praças, as ruas, com fotografias dos filhos; o tempo de aparecer nos jornais; mas há

também o tempo das ameaças, que faz como que seja preciso se recolher, não se expor.

1.4. Disputas, situações, operações críticas e competências políticas

Disputas, situações, operações críticas e competências políticas são conceitos que

fazem parte do vocabulário da sociologia pragmatista de Luc Boltanski (sociólogo) e Laurent

Thévenot (economista e estatístico) e são úteis para se fazer uma sociologia moral e política

da experiência dos familiares de vítimas. Em De la justification estes dois autores6 apresentam

um modelo analítico para se pensar as modalidades de ação a partir de ordens de legitimidade

moral (ordres de grandeur). A sociologia pragmática desses autores abre uma perspectiva

analítica para a compreensão dos fenômenos coletivos e de seus fundamentos políticos a partir

de ordens de legitimidade moral. Eles tomam como ponto de partida as ações em regime de

justificação, que pretendem vincular os eventos particulares à busca de uma entidade

6 Para uma apresentação e análise mais detalhada e bastante esclarecedora do pensamento de Boltanski conferir (Castro, 2009).

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metafísica, o bem comum, para poderem efetivamente ser postas à prova de forma legítima

por aquelas ações desenvolvidas em regime de crítica.

O quadro analítico proposto pelos autores visa, dentro de uma perspectiva pragmatista

francesa, examinar a lógica situada na passagem do particular ao geral, isto é, a tensão entre o

juízo moral e o contexto prático no qual se dá o curso da ação, dentro de uma tradição de

pensamento da filosofia política e da noção clássica de prudência (Boltanski e Thévenot,

1991: 187). A proposta dos dois autores é de uma sociologia que permita considerar as

pretensões de justiça dos atores, suas formas de denúncia das injustiças das quais se acham

vítimas e a capacidade que possuem de se abstrairem de seus casos particulares e chagarem a

formas gerais.

O tema genérico da obra são as relações e os jogos de disputa que levam a produção

de acordos e desacordos e, para realizar este estudo, os autores constroem um quadro que

permite analisar com a ajuda de instrumentos teóricos as diferentes lógicas de ação através

das quais os atores se movimentam. Dentre as principais questões colocadas por Boltanski e

Thévenot estão: Quais são as operações críticas das quais os atores buscam lançar mão

quando desejam manifestar seu desacordo sem recorrer á violência? Quais são as operações

por meio das quais eles conseguem construir, manifestar e selar acordos mais ou menos

duráveis? Todo desenvolvimento das ciências sociais deve necessariamente se inscrever numa

alternativa de determinação coletiva ou escolha individual?

Breviglieri e Stavo-Debauge (1999) consideram que a obra “De la justification”, de

Luc Boltanski e Laurent Thévenot, inaugura, por assim dizer, “o gesto pragmático da

sociologia francesa”. Segundo estes comentaristas, a obra apresentou um modelo capaz de

considerar tanto a gênese como a pluralidade de ferramentas convencionais que servem de

base às atividades humanas. Este modelo pragmatista de Boltanski e Thévenot visa os

momentos de disputa, de conflitos e de controvérsias públicas em que as pessoas realizam

críticas ou justificações pretendendo uma validade geral. Exemplos de situações com tal

processo argumentativo são: denúncias jornalísticas, assembléias políticas, escândalos,

debates institucionais, conflitos em torno de regras jurídicas e normas de qualidade e

segurança, litígios profissionais.

Um ponto importante para Boltanski e Thévenot e interessante para esta pesquisa é a

afirmação de que a legitimidade pública dos argumentos utilizados nas disputas é função de

suas capacidades para se referir a formas de bem comum. Estas formas de bem comum

garantem a generalização dos argumentos e dos julgamentos. É justo aquilo que se refere ao

bem comum e, deste modo, é generalizável.

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Os autores definem/identificam seis princípios de justiça legítimos. Cada um refere-se

a uma concepção de justiça em uma cidade (cité), na qual apoiaram suas justificações ou suas

críticas. A noção de cité é utilizada em um sentido político, fazendo referência a uma forma de

convivência política. Boltanski e Thévenot “propõem a ideia de cidade para pensar o tipo de

metafísica comum que os atores mobilizam na prática para fundamentar o vínculo social em

torno de uma mesma noção de justiça e bem comum” (Castro, 2009: 7-8). As cidades visam

modelar os gêneros de operações aos quais os atores se entregam no curso de uma ação.

As seis cites, com seus princípios de equivalência, são derivadas da tradição filosófica

política francesa, ou seja, para elaborar os princípios que organizam o “bem comum” e

construir suas cites, Boltanski e Thevénot usaram de repertório obras de autores como

Rousseau, Voltaire e Adam Smith. Não encontraram suas referências em objetos empíricos,

construiram seu modelo teórico a partir de obras clássicas, e é a partir delas que retiram os

registros léxicos e semânticos específicos do que se entende ser justo e bom na cidade (p.2-

3).7

Estes princípios de justiça são os elementos suscetíveis de fundar as “ordens de

grandeza”, de estabelecer uma hierarquia entre os seres presentes e fornecer padrões de

mediação durante as disputas e os conflitos sociais (p. 3). Os seis princípios de justiça são os

seguintes8.

Cité cívica: uma cidade cívica onde a grandeza supõe o esquecimento dos estados particulares

em nome da vontade geral e da igualdade.

Cité mercado: a grandeza está relacionada com a aquisição de riquezas constituídas de bens

raros e desejáveis.

Cité industrial: onde a grandeza se baseia na eficácia e competência profissional.

Cité inspirada: aquela onde a grandeza é adquirida através do acesso a um estado de graça;

Cité doméstica: onde a grandeza corresponde a um lugar na ordem hierárquica.

Cité de opinião: na qual a grandeza é baseada no reconhecimento e no crédito de opinião

acordado pelos autores.

Os registros de justificação de cada cité não dependem apenas dos princípios de

justiça, mas também dos mundos feitos de objetos e de dispositivos convencionais. Os objetos

podem assim ancorar o modelo de justificativa na realidade. Eles podem figurar como 7 É preciso neste ponto ponderar que o modelo teórico de Boltanski e Thevénot foi pensado a partir do imaginário de república francês, que como se sabe, é muito diferente do imaginário republicano brasileiro. Neste sentido, quais seriam, por exemplo, as obras da filosofia ou do pensamento social e político brasileiro que ofereceriam um bom repertório para se inventariar registros de “justo” e “bom”? 8 Em desdobramentos futuros de sua obra, Boltanski, juntamente com Ève Chiapello, formularam um novo modelo de cidade, que é a cité por projetos (cf.. Boltanski e Chiapello, 2009).

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elementos de prova e apoiar as críticas e justificativas. A preparação do julgamento envolve

um trabalho de qualificação das coisas e dos seres. Coisas e seres que estão sempre em

posições intercambiáveis no processo de qualificação. Ora são grandes, ora são pequenos. Ora

fazem críticas, ora se defendem. Ora acusam, ora são acusados. Ora perseguem, ora são

perseguidos. Neste sentido, como esclarece Castro (2009), ao apresentar e analisar a teoria de

Boltanski:

A noção de prova é fundamental no modelo de Boltanski e Thévenot para dar conta da tensão entre a incerteza da vida social e a necessidade de estabilizar os acordos, além de permitir pensar num mesmo marco teórico tanto as relações de força quanto as ordens legítimas (Boltanski; Chiapello, 1999:73). As provas se constituem de objetos e dispositivos capazes de mensurar a grandeza das pessoas, transformando os fortes em grandes. As provas de grandeza distinguem-se das provas de força por incluírem um espaço para o juízo moral: “Enquanto a atribuição de uma força define um estado de coisas sem nenhuma coloração moral, a atribuição de uma grandeza pressupõe um juízo que não só tange à força respectiva dos seres presentes, mas também o caráter justo da ordem revelado pela prova” (idem: 74). A prova de grandeza pressupõe um trabalho de identificação e qualificação dos diferentes tipos de força e a especificação do que se quer provar, com a eliminação de forças estranhas: “assegurar a justiça de uma prova é formalizá-la e controlar sua execução com o objetivo de impedir que seja parasitada por forças exteriores” (idem: 74). A prova é o elemento fundamental para pensar em como os atores buscam construir a estabilidade do mundo social, sem, no entanto, engessá-lo. A introdução dos objetos na problemática do vínculo social permite interpretar qual o estatuto da realidade aos olhos dos próprios atores, e como os objetos são mobilizados no discurso e na ação. Os objetos não determinam a ação, mas funcionam como estabilizadores do mundo social. Através deles, os atores sociais literalmente colocam o vínculo social à prova (Boltanski; Thévenot, 1991:30). (Castro, 2009: 8).

Um dos aportes fundamentais da obra de Boltanski e Thevenot é o de pensar a

complexidade, as contradições e a dinâmica das sociedades contemporâneas sobre a base da

combinação possível dos mundos e dos princípios plurais de justiça. Estabelecer uma ordem

que se pretenda justa e legítima repousa sobre o compromisso entre dois ou mais princípios de

justiça diferentes. A questão que está colocada aqui é a como combinar dois ou mais

princípios de justiça diferentes.

Mas todo compromisso estabelecido permanece questionável e suscetível de ser

minado por críticas de outros princípios que denunciam/questionam seus méritos. A crítica,

que coloca à prova a ordem das coisas, busca precisamente se construir enquanto um princípio

alternativo para denunciar aqueles que estão em uso.

Cada denúncia visa questionar as convenções estabelecidas, formadas anteriormente,

enquanto todo compromisso tem a pretensão inversa de estabilizar as relações entre os atores.

A denúncia e a crítica buscam a mudança. O compromisso busca a manutenção das relações

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sociais. A denúncia é o momento em que a crítica se manifesta e instaura um desacordo. É o

momento em que os princípios de justiça entram em conflito. Neste contexto, em que a

denúncia é a expressão da crítica, certas gramáticas de engajamento e de julgamento público

são necessárias para a coordenação das ações dos atores. Na passagem de uma situação para

outra é possível compreender as competências mobilizadas para a ação. A crítica possui um

caráter eminentemente discursivo da justificação. Para não ficar só na crítica, é importante

considerar também os objetos e os dispositivos mobilizados na ação. Os objetos e os

dispositivos são os recursos para a crítica e para a constituição do acordo ou do caso (affaire).

As formulações teóricas da sociologia pragmatista de Boltanski e Thévenot (1991), ao

proporem uma sociologia da justificação, dos regimes de engajamento e das competências,

levam em conta a capacidade de os atores (individuais ou coletivos) produzirem críticas e

repertórios para agir, e revelam como a grandeza ou a pequenez de cada um é acionada para

justificar suas ações e interesses. Ao analisar como se constitui uma gramática da denúncia,

Boltanski (2000) constrói um modelo analítico para interpretar como os atores se ajustam às

situações sociais e performam o mundo através da crítica. Para isso, desenvolvem

competências diante de situações concretas – como, por exemplo, uma situação de

desaparecimento forçado –, que podem ser entendidas como a capacidade de discernimento

que permite apreender e avaliá-las moral e emocionalmente, além de organizar suas

orientações subjetivas segundo esta compreensão. Tal modelo analítico permite refletir sobre

as críticas, competências e ajustamentos elaborados por familiares de vítimas de

desaparecimento.

Deve-se levar em conta que a teoria de Boltanski sobre os modelos de justiça, os

regimes de engajamento e os processos de justificação foi elaborada a partir da tradição

republicana francesa em que existe uma espera pública baseada em um “princípio superior

comum”, ou seja, no “bem comum”. O “bem comum” seria um componente do dispositivo de

justificação visando a “humanidade comum”. Em relação à realidade brasileira, a própria

idéia de “bem comum” não chegou a se institucionalizar e as experiências de colonização,

escravidão, ditaduras e outros processos políticos relacionados à formação da nação são

alguns elementos históricos cuja herança ainda hoje pesa na construção da cidadania e do

espaço púbico brasileiro.

Ao refletir sobre o caso brasileiro, o sociólogo francês Bruno Lautier formulou um

conceito que contribui analiticamente para pensar tal realidade: o conceito de cidadania de

geometria variável (Lautier, 1997). Enquanto em grande parte da Europa vigoraria uma

cidadania plena, baseada no postulado da universalidade, segundo a qual haveria uma

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igualdade de direitos entre indivíduos pertencentes a um mesmo Estado nacional, no caso

brasileiro a institucionalização dos direitos não seguiu o mesmo postulado da universalidade,

constituindo-se aqui uma cidadania de geometria variável.

A observação anterior é importante porque dentro deste quadro da cidadania de

geometria variável as condições de formalidade e informalidade seriam um importante

aspecto definidor da forma pela qual o cidadão se inscreveria em um sistema de direitos-

deveres. No mais, o horizonte político daqueles que se encontram em situação de

subalternidade é mais estreito e reduzido, de modo que a legitimidade e circulação de suas

reivindicações e críticas são limitadas. É neste contexto de “cidadania de geometria variável”

que os familiares dos desaparecidos travam suas lutas e buscam recompor equivalências que

distribuem grandes e pequenos em um continuum de posições intercambiáveis (Boltanski;

Thévenot, 1991).

1.5. O sofrimento entre a política da piedade e a política da justiça

Em La souffrance à distance, Boltanski (2007) desenvolveu a ideia de que o

sofrimento e a forma como ele é expresso e socializado desempenharam papéis centrais no

estabelecimento de vínculos sociais e políticos. O livro tem como objeto a questão

humanitária que, segundo seu argumento, está na ordem do dia há pelo menos dois séculos. É

através do sofrimento que se constroem as causas, que as pessoas tomam partido, que se

associam ou disputam.

Ao elaborar um quadro analítico para interpretar o debate atual sobre a representação

do sofrimento na mídia e na política, Boltanski argumenta que é preciso reconstituir o

contexto histórico no qual este debate se inscreve. Em seu entendimento, o contexto mais

relevante é posto por Hannah Arendt em seu ensaio sobre a revolução. No segundo capítulo

de Ensaio sobre a revolução, intitulado “A questão social”, Arendt desenvolve a ideia

segundo a qual a Revolução Francesa – diferentemente da Revolução Americana – abandonou

a questão da liberdade e da forma de governo capaz de garantir a liberdade, em benefício de

uma política da piedade. E se as manifestações típicas de uma política da piedade não

aparecem ainda em Robespierre e Sant-Just, estaria em gestação desde meados do século

XVIII, particularmente na obra de Rousseau.

Hannah Arendt constrói alguns traços específicos que caracterizam a política da

piedade e são retomados por Boltanski. (1) os homens se distinguem entre aqueles que sofrem

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e aqueles que não sofrem; (2) a política da piedade centra-se antes na observação do

espetáculo do sofrimento do que não ação – observação dos infelizes por parte daqueles que

não compartilham de seus sofrimentos, que não têm a experiência direta do sofrimento e,

neste sentido, podem ser considerados pessoas felizes.

Uma política da piedade se distingue claramente de uma política da justiça. Para

exemplificar a distinção Boltanski dá um exemplo de uma ação conduzida do alto, pelos

dirigentes, no quadro de um Estado, visando promover a justiça. Esta ação poderia ser

qualificada, numa primeira aproximação, de meritocrática, independente de quais sejam os

critérios para se definir e avaliar os respectivos méritos dos cidadãos. Tal política da justiça se

apoiaria no que Boltanski chamou, como apresentado anteriormente, de modelo de cidade

(mòdele de la cité). Neste modelo, a ação exemplar dos magistrados que administram a cité é

colocar fim às disputas. A ação teria êxito se eles conseguissem restaurar a paz e oferecer às

disputas um resultado que seja justo. “Uma política da justiça se apoia, portanto, de modo

mais ou menos explícito, sobre uma teoria da justiça que considera ela mesma um senso

comum de justiça”9 (Boltanski, 2007: 22 – tradução minha).

O que distinguiria um quadro de uma política da justiça de um quadro de uma política

da piedade? Segundo Boltanski, pelo menos três aspectos:

1. Uma cité orientada face à justiça não opõe as pessoas entre felizes e infelizes,

mas entre grandes e pequenos. As disputas que convêm pacificar recaem

precisamente sobre a questão de saber se o modo pelo qual as pessoas estão

ordenadas, segundo seus tamanhos e seus valores, é justo ou não. Para dispor

de uma resposta satisfatória sobre esta questão, primeiramente é preciso dispor

de uma convenção de equivalências.

2. A segunda diferença reside no fato de que em um modelo de cité orientando na

direção da justiça, as qualidades de grande e pequeno não estão

definitivamente atadas às pessoas. As pessoas são qualificadas segundo sua

grandeza, mas ser grande ou pequeno não define uma condição. Grandes e

pequenos não estão unidos pelo tamanho. Ao menos formalmente, não existe

classes de grandes e pequenos. Ao contrário da política da justiça, na política

da piedade a felicidade e a infelicidade são as condições que definem conjuntos

separados. A política da piedade considera, de um lado os infelizes em massa,

de outro os felizes, mesmo se o objetivo é inspirar piedade.

9 “Une politique de la justice s´appuie donc, de façon plus ou moins explicite, sur une théorie de la justice qui tient compte elle-même d`un sens commun de la justice” (Boltanski, 2007: 22).

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3. Por último, consequência da não ligação das pessoas às qualidades, uma

política da justiça apazigua as disputas ativando a convenção de equivalências

numa prova (èpreuve). Não é porque as pessoas no curso de um conflito são

levadas a fazer valer objetos de um mundo comum, que seu estado de grandeza

está revelado. É porque suas pretensões são afrontadas pela realidade que a

ordem revelada pela prova pode ser qualificada de justa. Nesta lógica da

justiça, que o pequeno seja feliz ou infeliz não é o que importa, pois qualquer

que seja seu estado de felicidade, ele tem o que merece. Na política da justiça

não é a consideração do infortúnio que importa, mas sim a adequação das

provas à convenção das equivalências.

Ao contrário de uma política da justiça, em que o sofrimento reporta-se ao

merecimento ou não, à sua justificação, numa política da piedade o merecimento do

sofrimento fica na retória, não é colocado à prova. Para a política da piedade não importa se a

infelicidade e o sofrimento são justos; formular tal questão corresponde a sempre fornecer

uma resposta negativa. Por esta perspectiva, seria apenas em um mundo onde o sofrimento

tivesse sido banido que a justiça faria valer seus direitos (Boltanski, 2007: 18).

O desenvolvimento de uma política da piedade, como já referido anteriormente, divide

os homens não sob o prisma do mérito como na política da justiça, mas entre aqueles que

sofrem e aqueles que não sofrem, entre infelizes e felizes, ou seja, unicamente sob o aspecto

da felicidade. Estas duas classes devem permanecer suficientemente em contato, ainda que à

distância, para que a miséria dos infelizes possa ser observada, direta ou indiretamente, pela

classe dos felizes. Mas – diz Hannah Arendt recuperada por Boltanski – o espetáculo da

miséria não conduz necessariamente a uma política da piedade.

1.6. Das formas de engajamento face ao sofrimento

A miséria dos infelizes pode não inspirar piedade. Felizes e infelizes podem habitar a

mesma terra sem que os primeiros vejam os segundos (Arendt, 1967 apud Boltanski, 2007:

26). Engajar-se a uma ação visando o fim do sofrimento pode significar o fim da política da

piedade, na medida em que é o sofrimento que serve como mediação entre os que sofrem e os

que não sofrem. Se por um lado é possível que haja um fosso separando os que sofrem dos

que não sofrem, por outro lado, existe a possibilidade de que as pessoas felizes manifestem

atenção e benevolência diante da dor do outro – agora para usar a expressão de Susan Sontag

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(Sontag, 2003).

É neste sentido que dois casos de figura se apresentam na análise de Hannah Arendt

para pensar como a atenção benevolente ao sofrimento do outro pode se manifestar no

“quadro das tradições ocidentais”, particularmente no cristianismo primitivo, como piedade e

compaixão. Arendt desenvolve a oposição entre as duas figuras. Assim como Boltanski

percorre as obras de filosofia política para construir as metafísicas de suas cités, Arendt

recorre à análise, neste caso particular, de duas obras romanescas (Billy Budd, de Melville, e

O Grande Inquisidor, de Dostoievski) para descrever a compaixão, colocando ênfase sobre os

traços que destacam uma análise da noção de ágape em oposição à justiça. A característica

principal da compaixão seria que esta se endereça ao singular, aos seres singulares, sem

buscar desenvolver a “capacidade de generalização” (Boltanski, 2007: 26). A compaixão

possui um caráter prático, no sentido de que ela pode se realizar em situações práticas, que

promovam o encontro e a presença entre os que sofrem e os que não sofrem. Boltanski chama

atenção para a fixação de Hannah Arendt na relação entre compaixão e presença. Em seu

modo de ver, Arendt tem razão em sua insistência porque ela tem duas consequências

importantes na distinção com relação à piedade: diferentemente da piedade, a compaixão não

é “loquaz” e não incide grande interesse nas emoções. Na medida em que não visa a

generalização, a compaixão, segundo Arendt, se satisfaz com uma “curiosa mudez”, em

oposição à eloquência da piedade.

Mais exatamente, a compaixão não é muda, mas sua linguagem “consiste em gestos e expressões do corpo mais que em palavras” : “(...) a 'compaixão' só fala na medida em que ela precisa responder diretamente aos sons e gestos expressivos pelos quais o sofrimento torna-se audível e visível diante e no mundo (pp. 123-124). Resposta direta à expressão do sofrimento, a compaixão não é “faladora” e é pelo mesmo motivo que a emoção ocupa pouco espaço. Pode ser necessário postular a existência de uma emoção da compaixão, mas na medida em que ela faça imediatamente se mover aquele do qual ela se apodera, não lhe sobra nenhum lugar para se desdobrar enquanto o que é/ ou enquanto tal. Ao contrário, a piedade que, para poder encarar a distância, generaliza e, para generalizar, se torna “eloquente”, se “reconhece” e se “descobre” enquanto emoção, enquanto sentimento (p.126). (Boltanski, 2007: 26-27– Revisão da Tradução: Jussara Freire)10

10 “Plus exactement, la compassion n´est pas muette, mais son langage 'consiste en gestes et expressions du corps plutôt qu´en mots' : '(...) la compassion ne parle que dans la mesure où il lui faut répondre directement aux sons et gestes expressifs par lesquels la souffrance se fait audible et visible au monde' (pp. 123-124). Réponse directe à l`expression de la souffrance, la compassion n´est pas "bavarde" et c´est pour la même raison que l´émotion y tient peu de place Peut-être faut-il postuler l´existence d´une émotion de compassion, mais dans la mesure où elle fait immédiatement se mouvoir celui dont elle s´empare, il ne lui reste aucune place pour se déployer en tant que telle. Au contraire la pitié, qui, pour faire face à la distance, généralise et, pour généraliser, se fait 'éloquente', se 'reconnaît' et se 'découvre' 'en tant qu´émotion, que sentiment'” (p. 126). (Boltanski, 2007: 26-27 – os trechos entre aspas e as páginas indicadas referem-se a citações do texto de Hannah Arendt feitas por Boltanski).

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Boltanski não perde de vista a sugestão que a análise de Arendt faz de que a oposição

entre compaixão (pressupondo presença e sendo local) e piedade (pressupondo ausência e

distância) é analiticamente operativa sob a condição de não se perder de vista a posição a

partir da qual ela é obtida. É apenas em um mundo onde o operador principal da generalidade

é político que tal distinção faz sentido, porque a compaixão, em sua compreensão teológica,

se apoia sobre um princípio de generalidade que é diferente: esse princípio é a união dos

batizados, nesse sentido ultrapassando os limites de tempo e espaço. O interesse de Boltanski,

portanto, ao recuperar a distinção de Hannah Arendt, é apontar para a introdução do

argumento da piedade na política. Seguindo Louis Dumont, em sua definição de política,

Boltanski a define como sendo a operação de generalização que permite um movimento do

local ao global e vice-versa, de modo que os indivíduos díspares possam ser reunidos em

torno de uma causa comum, a fim de envolvê-los em uma ação.

Susan Sontag, em seu ensaio Diante da dor dos outros, se interroga sobre questões

similares às colocadas por Boltanski. Sua preocupação está centrada principalmente na

recepção que podem ter as imagens da dor e do sofrimento, sobretudo a fotografia e as obras

de arte. É verdade que as “informações fotográficas” são capazes de suscitar nas pessoas “a

atordoada consciência de que coisas terríveis acontecem” (Sontag, 2003: 16). Mas o fato de se

tomar consciência de que fatos terríveis acontecem não diz muita coisa sobre as possibilidades

dos usos políticos da dor à distância de outras pessoas. As imagens da dor e do sofrimento

podem ser usadas tanto para um “apelo em favor da paz”, como para um “clamor de

vingança”. Sontag adverte que, além de nos sentirmos obrigados a olhar as imagens dos

crimes e crueldades, deveríamos igualmente nos sentir estimulados a refletir sobre a

capacidade de assimilar efetivamente o que elas mostram:

Podemos nos sentir obrigados a olhar fotos que recordam graves crimes e crueldades. Deveríamos nos sentir obrigados a refletir sobre o que significa olhar tais fotos, sobre a capacidade de assimilar efetivamente aquilo que elas mostram. Nem todas as reações a tais fotos estão sob a supervisão da razão e da consciência. A maioria das imagens de corpos torturados e mutilados, suscita, na verdade, um interesse lascivo. (As desgraças da guerra constituem, de forma notável, uma exceção: as imagens de Goya não podem ser vistas com um ânimo lascivo. Elas não se alicerçam na beleza do corpo; os corpos estão cobertos por roupas pesadas e grossas.) Todas as imagens que exibem a violação de um corpo atraente são, em certa medida, pornográficas. Mas imagens do repugnante também podem seduzir. Todos sabem que não é a mera curiosidade que faz o trânsito de uma estrada ficar mais lento na passagem pelo local onde houve um acidente horrível. Chamar tal desejo de “mórbido” sugere uma aberração rara, mas a atração por essas imagens não é rara e constitui uma fonte permanente de tormento interior. (Sontag, 2003: 80)

Em seu belo ensaio, Sontag retoma vários autores como o Sócrates de Platão, Edmund

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Burke, William Hazlitt e Georges Bataille, para insistir numa dimensão de seu argumento que

eles ajudam a reforçar: o de que “o amor à crueldade é tão natural aos seres humanos como a

solidariedade”. Sontag conta uma história de Bataille, um dos principais teóricos do erótico,

segundo a qual consta que ele tinha sobre sua escrivaninha uma foto, tirada em 1910, na

China, que podia olhar todos os dias, em que um prisioneiro padecia a “morte dos cem

cortes”. A foto aparece no último livro de Bataille publicado em vida, em 1961, As lágrimas

de Eros. Sontag cita Bataille, que afirma sobre a foto: “Essa fotografia teve um papel decisivo

na minha vida. Nunca deixei de me sentir obcecado por essa imagem de dor, a um só tempo

extasiante e intolerável”.

Segundo Bataille, contemplar essa imagem constitui tanto uma mortificação dos sentimentos como uma libertação do conhecimento erótico assinalado como tabu – uma reação complexa que muitos devem julgar difícil de acreditar. Para a maioria, a imagem é simplesmente insuportável: já sem braços, a vítima sacrificial de diversas facas em movimento contínuo, no estágio terminal do esfolamento – uma foto, não uma pintura; um Mársias real, e não mítico -, ainda está viva, na imagem, com uma expressão tão extática em seu rosto voltado para cima quanto a de qualquer são Sebastião do Renascimento italiano. Como objetos de contemplação, imagens de atrocidades podem atender a diversas necessidades. Podem nos enrijecer contra a fraqueza. Tornar-nos mais insensíveis. Levar-nos a reconhecer a existência do incorrigível. (Sontag, 2003: 83)

Sontag destaca ainda que Bataille não chega a dizer que tem prazer com a visão desse

martírio, mas diz que pode “imaginar o sofrimento extremo como algo mais do que o mero

sofrimento, como uma espécie de transfiguração”. Para finalizar a apresentação do argumento

de Sontag: a compaixão é uma emoção instável, deve ser traduzida em ação, do contrário

definha. O sentimentalismo pode ser perfeitamente compatível com a brutalidade ou coisas

piores. E não é que as pessoas se insensibilizam com aquilo que lhes é mostrado. Anestesia

moral ou emocional, assim como apatia, são estados repletos de sentimentos como raiva e

frustração. “É a passividade que embota o sentimento” (Sontag, 2003: 83-85). E, como afirma

Boltanski, as exigências morais frente ao sofrimento convergem a um só imperativo: a ação.

1.7. Da indignação à acusação: o tópico da denúncia e a forma caso

Segundo o argumento de Boltanski (2007: 113), diante do espetáculo de um infeliz que

sofre à distância, o que pode fazer um espectador moralmente bem disposto – ao menos de

imediato – em relação à inação é se indignar. A entrada na indignação passa, pois, pela

piedade. Afinal, por que seria preciso se indignar se não houvesse piedade? A revolta daquele

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que se julga ofendido passa pela piedade de si mesmo, o que o leva a explicar aos outros os

constrangimentos que pesam sobre sua expressão pública. Boltanski observa que “na

indignação, a piedade é transformada”. Quando a piedade é capaz de suscitar não só a

compaixão por aquele que sofre (a vítima), mas também se transforma em revolta e

indignação contra o responsável pelo sofrimento, ela aponta a ação. A indignação põe em ação

as armas da cólera.

No caso dos familiares de vítimas é a indignação advinda da morte de parentes,

classificada como desumana e injusta, que os leva a transformar suas palavras, seu

testemunho, em uma acusação. A transformação da piedade em indignação supõe uma

reorientação da atenção, deixando esta de ter como foco o infeliz e seus sofrimentos, para se

centrar sobre o perseguidor da vítima. Neste sentido, os familiares de vítimas situam-se entre

uma política da piedade e uma política da justiça, um regime de ação que ora consegue

provocar a compaixão de si mesmo, ora é capaz de suscitar a indignação contra, por exemplo,

a violência policial. Portanto, o sofrimento dos familiares de vítimas pode significar para eles

um lugar de onde emitir uma crítica contra a violência policial.

Boltanski encontrou, no estudo que Claverie (1998) consagrou ao caso do cavaleiro La

Barre, os elementos essenciais para descrever os modos como uma indignação e uma

acusação devem ser fornecidas para serem recebidas no espaço público para causar impacto e

demandar reconhecimento e ação. Trata-se de transformar o evento em um caso e, para se

fazer isso, é necessário dispor de um infeliz cuja defesa constitui a causa pela qual as pessoas

se engajam e, consequentemente, em razão da qual se ligam e se desligam os laços sociais.

Pelo termo caso Boltanski (1990) e Claverie (1998) designam as disputas públicas que

se estabelecem muitas vezes em torno de um processo, que resulta no engajamento de um

número maior ou menor de atores e atingem muitos setores da vida social como, por exemplo,

a imprensa, a academia, a ordem dos advogados, o exército, o mundo literário, o financeiro, e,

naturalmente, o mundo da política. Estas disputas correspondem às ocasiões em que se

colocam sob análise as diferentes dimensões de justiça e os diferentes princípios de justiça

nos quais as disputas se baseiam. Estes autores consideram o caso como uma forma social que

desempenhou um papel central nas sociedades ocidentais modernas, particularmente com o

desenvolvimento, depois do século XVIII, de um espaço público político, judicial e

intelectual.

Os casos constituem momentos-chave para analisar as tensões sociais e as mudanças

ideológicas próprias de uma época e, igualmente, também para compreender o significado que

os atores procuram dar ao tempo histórico em que estão imersos. O estudo de casos é também

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um sistema privilegiado para entender a formação e a mudança do espaço público, bem como

os métodos e instrumentos de mobilização social em torno de uma causa.

A construção de um evento como caso consiste em uma estratégia de confrontação

entre duas formas de defesa e acusação. A primeira se vale da tradição e se inscreve nas

formas judiciárias do Antigo Regime. Um crime é descoberto e quase imediatamente um

suspeito é designado por rumores, culpado, condenado e executado. A segunda forma,

arquitetada por Voltaire faz apelo ao engajamento dos espectadores imparciais. Um novo

processo, sem legitimidade institucional é criado, e instruído pela opinião esclarecida. A causa

se encontra transformada e os lugares de acusação e defesa se alteram. Aquele que exercita a

acusação passa a ser acusado e a vítima passa a ser defendida, ou seja, perseguidor e vítima

têm o lugar invertido.

Tecnicamente, o caso consistiu em uma operação polêmica de revelação: era a revelação de um não-acordo e de uma separação. Com efeito, o caso é propriamente essa configuração que torna visível um não-consenso entre duas partes que, antes, se diziam unas e idênticas; ele foi o mecanismo que revelou a disjunção entre dois mundos, alcançando tamanha amplitude que edificou e opôs entidades como a Coroa e a Opinião. O caso permitiu que muitas pessoas, nos dois campos de ação, encontrassem argumentos para aderirem à nova ética social. No momento em questão, a demonstração eminentemente crítica desnudou posições divididas, sempre prontas a reativarem conflitos, o que levou ao isolamento da acusação no registro secreto do Estado. Voltaire construiu a noção de caso como uma réplica do processo judiciário. Com isso, ele se beneficiava sem ônus de uma economia e de uma configuração já existentes. Esse foi um sinal de gênio político: ele tratava o inimigo com suas próprias armas; o combate, sob a forma de processo, era por todos imediatamente identificável. Voltaire concebeu esse embate como uma operação de julgamento ou, melhor, de contra julgamento, sendo necessário um julgamento institucional prévio. Agindo desse modo, ele integrava virtualmente, em sua armadilha crítica, o Estado e suas responsabilidades, e podia apresentar, diante de tamanho poderio, um apelo em nome do interesse geral. (Claverie, 1998: 193 - Tradução livre: Céline Spinelli)

O caso (affaire) tornou-se a fórmula política para a denúncia pública de uma injustiça.

Apoiando-se numa crítica social que aponta uma injustiça no que ela tem de geral, a denúncia

pública supõe a designação de um culpado ou de um responsável contra quem o denunciante

busque mobilizar o máximo de apoio: convencer outras pessoas, mostrar que não está só na

crítica e na denúncia, provar que o que diz é verdade. E a prova moral do denunciante passa

por mostrar que a denúncia não visa um interesse particularista, mas um bem comum. O

denunciante deve mostrar que a causa que defende encerra uma universalidade. O risco de

fracasso da denúncia reside na possibilidade de o denunciante não ser seguido por outras

pessoas em sua acusação (Boltanski, 2000: 237-238).

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1.8. Falar a partir de uma condição subalterna

O silêncio possui várias modalidades de sentido (Le Breton, 2007). Em certas

situações pode significar o silenciamento forçado, imposto àqueles que encontram-se em

condições de subalternidade. Em outras, o silêncio pode ser ressignificado e transformado em

protesto. A segunda alternativa foi o caso, por exemplo, das Mães da Cinelândia, um grupo de

mães, cujos filhos foram assassinados ou encontram-se desaparecidos e que, diante das

barreiras que encontraram para falar publicamente sobre os casos, resolveram se reunir

semanalmente nas escadarias da Câmara Municipal do Rio de Janeiro para mostrar o silêncio

a que foram submetidas. Encontrar-se numa posição subalterna significa dispor de meios

restritos para tornar uma injustiça sofrida pública.

Foto 1: Mães da Cinelândia

Manifestação na escadaria da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro

Fonte: Acervo do Grupo Tortura Nunca Mais – Data não identificada

Silenciosamente, reuniram-se durante cinco anos, toda segunda-feira à tarde,

ostentando cartazes com as fotos dos filhos, reivindicando informações e apoio com o

objetivo de esclarecer as mortes e os desaparecimentos dos mesmos. Chegaram a ser

convidadas para mostrar suas dores em novelas da Rede Globo de televisão, entre elas a

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novela Explode Coração, de autoria de Glória Perez, que dizia ter sido sensibilizada pelas

histórias de dor dessas mães em razão de ter vivido experiência similar com o assassinato da

filha. A diferença é que a maior parte das Mães da Cinelândia era pobre, composta por

moradoras de favelas ou outros territórios da pobreza, e cujas denúncias apontavam o

envolvimento de policiais nos crimes. Essa tripla condição, de falar a partir de um lugar de

despossuído, de um território criminalizado e denunciar a participação de agentes estatais,

principalmente policiais, tornava-se uma barreira à ação dessas mães. Implicava falar de um

lugar subalterno, marcado pelo estigma e pela criminalização e, portanto, tratava-se de uma

fala que tinha tudo para ser desacreditada no espaço público.

Pela discussão apresentada até aqui, através de um diálogo principalmente com o

pensamento de Veena Das e Luc Boltanski, é possível identificar uma questão que aproxima

estes dois autores e é importante para se pensar o desafio da fala em contextos de

subalternidade. A questão aparece em termos diferentes para cada um deles, mas próximos no

que diz respeito à preocupação com a possibilidade de ação que se apresenta aos sujeitos ou

atores (conforme a preferência terminológica) diante de situações específicas. Enquanto

Veena Das se pergunta sobre o processo de silenciamento do sofrer e sobre as formas

possíveis de o sofrimento humano ganhar visibilidade, Luc Boltanski se interroga sobre as

condições de uma denúncia pública para que seja aceita como legítima. Das reflete sobre a

invisibilidade de certos tipos de sofrimento e a agência dos sujeitos em busca de visibilidade,

enquanto Boltanski defende a necessidade de se levar a sério a capacidade dos atores

produzirem críticas e se engajarem na denúncia das injustiças sociais. Ambos autores tratam,

de certo modo, as possibilidades do acesso ao espaço público quando se fala de uma condição

de inferioridade ou subalternidade.

Qual a possibilidade de acessar o espaço público a partir de uma condição subalterna?

Um dos obstáculos que se colocam para aqueles que se encontram em uma condição

subalterna é a ausência de um mundo comum sobre o qual apoiar-se para fazer uma crítica e

dar seguimento às suas denúncias.

A experiência de converter-se em sujeito, argumenta Veena Das, está vinculada de

maneiras importantes a experiências de subjugação. Neste sentido, qualquer esforço para

apreender e compreender as relações entre violência, sofrimento e política - a partir da

experiência dos familiares de vítimas - e os obstáculos para se reconhecer suas dores exige

uma compreensão do processo histórico de subordinação da favela na cidade e a influência

das interpretações que, a partir da década de 90, dominaram o debate público no Rio de

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Janeiro, vinculando de formas diversas a violência às favelas11.

Para exemplificar melhor o argumento, tomemos um caso concreto de denúncia,

publicizado através da nota pública de um movimento social que luta contra a violência

policial no Rio de Janeiro. Esta nota é assinada pela Rede de Comunidades e Movimentos

Contra a Violência e apresenta uma denúncia pública de ameaças sofridas por uma militante

de direitos humanos. Um trecho da nota traz o seguinte texto:

Como é de conhecimento comum, a situação dos militantes de direitos humanos no Estado do Rio de Janeiro é de extrema vulnerabilidade. Isto se dá, pois toda denúncia feita de alguma violação de direitos, principalmente aquela provocada por agentes da segurança pública, vem acarretando algum tipo de represália e ameaças. Um dos exemplos recentes disso é a situação enfrentada pela militante da Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência, Márcia Honorato. Márcia é uma reconhecida militante no Estado do Rio de Janeiro, especialmente por sua atuação no sentido da denúncia de inúmeras violações cometidas por policiais militares contra moradores de favelas e periferias cariocas e fluminenses. Ela participou ativamente das mobilizações que se originaram a partir da Chacina da Baixada, em 2005, quando policiais militares assassinaram 29 pessoas entre Nova Iguaçu e Queimados. Além disso, ajudou a denunciar grupos de extermínio nesta mesma região, além de atuar em outros casos de violação do direito à vida cometida por agentes públicos no Estado do Rio de Janeiro. A partir de então, entretanto, sua vida passaria por uma modificação profunda. A militante de direitos humanos em questão sofreria um atentado, em 2007, e diversas ameaças após isso. Uma das mais graves ocorreu em abril do referido ano. Márcia estava em casa, quando observou que o portão de entrada estava aberto, o que achou muito estranho, pois este costuma ficar sempre fechado. Assim, foi até o portão para fechá-lo, e, neste momento, uma pessoa que se encontrava, juntamente com outra, em uma moto parada na rua, chamou pelo seu nome. Em seguida, desceu da moto e foi até Márcia, pegando-a pelo pescoço, e falou: “você é um anjo; eu já te avisei; você quer morrer?”. Enquanto dizia isso, esfregava uma arma de fogo sobre o rosto de Márcia e esta respondeu, então: “vai se ferrar!”. O homem, então, atirou para o alto e, neste exato momento, o outro indivíduo que estava na moto aproximou-se, segurou o pescoço daquele que atirou, dizendo: “você está maluco?! quer complicar ainda mais a nossa vida?!”. Márcia foi obrigada, então, a abandonar sua casa às pressas, deixando para trás sua moradia e seu comércio, de onde obtinha a renda que a sustentava e aos seus filhos. Em junho de 2008, ela foi inserida no Programa Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos do Governo Federal. Infelizmente, não somente ela ficou vulnerável, mas toda a sua família. Seus filhos, ex-marido e sogra também tiveram que sair de onde moravam. Todos eles perambularam por diversos locais e hoje correm o risco de morar na rua. Recentemente, numa tentativa frustrada por quem deveria lhe dar uma satisfação, foi impedida de relatar sua situação à ministra Maria do Rosário, da Secretaria Nacional de Direitos Humanos. [Nota pública da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência – 26 de setembro de 2011]

Segundo Boltanski, um sistema de denúncia é formado por uma vítima, um

perseguidor e um denunciante. No caso da nota acima os favelados aparecem como vítimas,

os agentes da segurança pública os perseguidores (policiais principalmente) e os

11 Sobre a associação entre violência e favelas, conferir, entre outros: Machado da Silva (2008, 2004b, 2002), Valladares (2005), Leite (2001), Zaluar (1985), Araújo (2007), Rocha (2009), Farias (2007).

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militantes/entidades/movimentos de defesa dos direitos humanos são os acusadores. A

grandeza ou a pequenez de cada um depende, em uma política da justiça, da qualificação das

pessoas, e os moradores de favela têm de enfrentar o preconceito e o estigma que

historicamente foram constituindo a favela e seus moradores como um “problema”,

impedindo-os de participar de um mundo cívico comum. O reverso dessa moeda é a

“permissão para matar”12 concedida aos aparatos repressivos, principalmente a polícia, como

se esta fosse a única forma possível de combater o problema da violência. Porém, a

construção da favela como um problema vem de longa data.

Desde seu surgimento, no final do século XIX, as favelas são vistas pela percepção

social dominante como local “infestado de vagabundos e criminosos que são o sobressalto das

famílias” e “cidadelas de miséria”. Valladares (2000, 2005) argumenta que desde seu

surgimento as favelas foram lidas por médicos, jornalistas, engenheiros e políticos como

significado de “doença, moléstia contagiosa, uma patologia social”, até que, em 1930, a favela

é reconhecida oficialmente e “passa gradativamente a ser vista como um problema a ser

administrado”. A perspectiva médico-higienista que orientou a política do governo Pereira

Passos apontava a favela como uma ameaça à saúde da cidade, em razão das habitações

precárias e insalubres. A favela, enquanto local de moradia dos pobres, foi vista como lugar de

pobreza e miséria, marcado pela promiscuidade e pela vadiagem dos moradores. A

representação negativa das favelas estendia-se aos seus moradores.

Valladares reconstrói em seu livro “A invenção das favelas” as formas pelas quais a

favela foi sendo construída como um “problema”. Ao analisar escritos e documentos que

retratavam a favela como um “problema”, ela cita um trecho dos escritos de Augusto Mattos

Pimenta, uma das figuras responsáveis pela “primeira grande campanha contra as favelas” em

que as características negativas da favela são associadas aos moradores:

“Desprovidas de qualquer policiamento, construídas livremente de latas e frangalhos em terrenos gratuitos do Patrimônio Nacional, libertadas de todos os impostos, alheias a toda ação fiscal, são excelente estímulo à indolência, atraente chamariz de vagabundos, reducto de capoeiras, valhacoito de larápios que levam a insegurança e a intranqüilidade aos quatro cantos da cidade pela multiplicação dos assaltos e dos furtos” (Pimenta, 1926, apud Valladares, 2005: 42).

12 “Nas atuais condições de desigualdade econômica, precariedade institucional e desagregação do tecido social no Brasil, o sonho de uma cidade a salvo transfigura-se em uma mentalidade que é leniente com a permissão 'permissão para matar' exercida pelos organismos de repressão ao crime. Essa pena de morte, consagrada na prática do combate à delinquência, conta com a tolerância de grandes parcelas da população e não é repelida de forma enérgica pela justiça, pelos meios de comunicação de massa ou por uma parte dos formadores de opinião” (Fridman, 2008: 77).

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O urbanista francês Alfred Agache, contratado para elaborar o Plano Diretor do Rio de

Janeiro, fundamentado em uma concepção higienista e de embelezamento da cidade, mesmo

antes de ver as favelas declarava que a favela era uma espécie de cidade satélite, de formação

espontânea, que escolheu o alto dos morros, e cuja população era avessa a qualquer regra de

higiene (Valladares, 2005:47).

Em 1937, O Código de Obras classificava a favela como uma “aberração” e defendia a

necessidade de eliminá-la do mapa da cidade. Era o aparecimento da política de remoções de

favelas, que até os dias atuais não sumiu totalmente do repertório das políticas direcionadas às

favelas.

“A Prefeitura providenciará por intermédio das Delegacias Fiscais, da Diretoria de Engenharia e por todos os meios ao seu alcance para impedir a formação de novas favelas ou para a ampliação e execução de qualquer obra nas existentes, mandando proceder sumariamente a demolição dos novos casebres, daqueles em que for realizada qualquer obra e de qualquer construção que seja feita nas favelas” (Parágrafo 2º, artigo 349, capítulo XV do Código de Obras de 1937, apud Valladares, 2005: 52).

O objetivo das remoções de favelas não era apenas eliminar do mapa um espaço físico

marcado pela falta de higiene e pelas habitações insalubres. A preocupação era também de

controle social dos pobres, de “ajustamento moral”, para que a condição de pobreza e

precariedade habitacional não tornasse o trabalhador revoltado ou preguiçoso. O pobre era

caracterizado como aquele que não se aproximava dos valores burgueses partilhados pelo

poder público e pela sociedade carioca em geral, e que se recusava ao assalariamento

(Valladares, 2005).

Como alternativa às favelas e solução para o disciplinamento das classes

trabalhadoras, na década de 1940 apareceram os parques proletários, uma alternativa de

intervenção pública que visava afastar para longe do centro da cidade a pobreza urbana, de

modo a torná-la ao mesmo tempo administrada pelo poder público e invisível aos olhos da

sociedade. Os moradores de favelas não eram considerados cidadãos, mas vistos como

marginais à sociedade, fora do mundo do trabalho e da política. Como afirma Burgos (1998),

os parques proletários constituíram uma “pedagogia civilizatória” que buscava transformar os

hábitos pessoais dos favelados.

Apesar de todas as investidas contra as favelas, elas resistiram e venceram. Esta é a

conclusão geral apresentada em uma coletânea organizada por Alba Zaluar e Marcos Alvito

em 1998 e intitulada Um século de favela. Machado da Silva (2002: 223), por sua vez, refere-

se a esta coletânea dizendo que “No conjunto, trata-se de uma tentativa de rejeitar as

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concepções que definem as favelas e seus moradores pelas carências materiais, simbólicas,

políticas, etc., realçando sua criatividade, sua capacidade de ação e suas conquistas políticas e

simbólicas”. Machado da Silva complementa seu raciocínio dizendo que o argumento de que

“a favela venceu” é uma “posição séria e defensável”, mas que não se sentiria “confortável

adotando-a em bloco”, e articula suas ideias a partir de um “diálogo implícito” com essa tese

geral, mas buscando qualificá-la.

Em suma, “a favela venceu”. Mas e os favelados? O que significa a vitória da favela para os moradores dessas áreas, e que transformações ela provocou na sociabilidade urbana? Segundo penso, eles sempre foram, e continuam sendo, criaturas da reprodução da desigualdade fundamental da sociedade brasileira e da forma de Estado que lhe corresponde: expressão e mecanismo de continuidade de uma cidadania restrita, hierarquizada e fragmentada. A inegável criatividade dos favelados (que é, em grande parte, responsável pela própria heterogeneidade das favelas), com sua capacidade de organizar-se e expressar-se das mais variadas formas e de conquistar direitos e reconhecimento simbólico, sempre esteve “encapsulada”, desde sua gênese como categoria social, e por isso tem tido pouco efeito na mudança do padrão de integração urbana, funcionando antes como um imprevisto e indesejado mecanismo de reprodução de um modo fragmentado e fortemente hierarquizado de integração urbana. Em suma, a “vitória da favela” ocorreu à custa da constituição de uma categoria social subalterna, cuja intervenção na cena pública, duramente conquistada, não mexeu no padrão básico de sociabilidade urbana, pouco alterando sua posição relativa na estratificação social e seu papel como força social. (Machado da Silva, 2002: 223-4 – grifos do autor no original).

Note-se que, no argumento de Machado da Silva, favelado é uma categoria social

subalterna, construída de fora, pensada na maioria das abordagens pela associação com a

antiga questão da insalubridade e do caso moral atribuído às áreas de moradia popular, e

entendida como um problema de integração das classes subalternas ao sistema jurídico-

institucional, encontrando-se em condição de clandestinidade e ilegalidade, e poucas vezes

considerada como problema de desigualdade.

Nas últimas décadas a metamorfose do “problema da favela” tem girado em torno da

problemática da violência urbana. Recente pesquisa coletiva, coordenada por Machado da

Silva, buscou mostrar como os moradores das favelas da cidade do Rio de Janeiro têm de lidar

“com a contiguidade territorial inescapável com os bandos armados ligados ao comércio de

drogas ilegais, com o assédio violento da polícia e das milícias e com a profunda desconfiança

que essa proximidade provoca”. Essa desconfiança vem principalmente dos segmentos que

não moram em favelas, mas também dos próprios favelados, cuja confiança mútua fica

abalada (Machado da Silva, 2008b: 13).

Toda a população moradora de favelas passou a ser vista como composta por

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bandidos ou quase bandidos, em razão da contiguidade territorial inescapável com a minoria que integra os bandos armados. Emparedada, vive uma vida sob cerco. De um lado, pela violência criminal e policial que desestabiliza a sociabilidade em seus territórios de moradia (e de trabalho, para muitos) e dificulta o prosseguimento regular das interações nas diferentes localidades. Afetada a confiança interpessoal que se fundamenta na estabilidade de suas rotinas, torna-se problemático articular coletivamente uma compreensão orgânica e proativa das condições de vida compartilhadas. A agregação em movimentos de base local escasseia, limitando a capacidade de influência nas arenas públicas. De outro lado, o medo e a desconfiança generalizados das camadas mais abastadas da cidade obrigam os moradores de favelas a um esforço prévio de “limpeza simbólica” - isto é, a necessidade de demonstrar ser “pessoa (ou grupo) de bem”, a fim de ganhar a confiança do Outro -, poucas vezes bem-sucedido, antes mesmo que possam apresentar no espaço público suas demandas como interlocutores legítimos. O confinamento geográfico cerceia-lhes também a palavra (Machado da Silva, 2008b:14-15).

Os episódios de violência se repetem e reproduzem uma espécie de circuito mimético

da violência que atinge o conjunto da população da cidade. Entretanto, os moradores de

favelas são atingidos em grau e intensidade muito maiores do que o restante dos moradores da

cidade. Este circuito mimético da violência é alimentado pelos confrontos entre bandos

armados e pela atuação truculenta do aparato policial, afetando o andamento das rotinas

cotidianas dos moradores dessas localidades, como se verá, por exemplo, na descrição dos

relatos dos familiares de vítimas, apresentados na Parte II desta tese. A mentalidade e o

imaginário que sempre definiram os territórios da pobreza e as manifestações dali

provenientes como perigosas ganhou uma nova atualização com o aumento da violência

criminal. O fantasma das classes perigosas se renovou com a visão dos territórios da pobreza,

“cujo caso exemplar na representação social são as favelas, vistas como lugares prenhes de

uma violência descontrolada” (Machado da Silva, 2008b: 14).

Há autores, como Fridman (2008) e Farias (2007), que, a partir de leituras do filósofo

italiano Giorgio Agamben sobre o conceito de vida nua (Agamben, 1998), chegam a sugerir

que o grupo social compreendido pelos favelados tornou-se uma população matável. Segundo

o ponto de vista de Fridman (2008: 83):

Na atual vigência da mentalidade que destina à favela o lugar do “outro” da cidade (e no limite da sociedade), a parcela da população que ali está instalada tornou-se “matável” por agentes de segurança, sob o olhar complacente daqueles que se sentem “aliviados” ou “vingados” pelo uso da força nas localidades onde prolifera a organização dos bandos armados que operam a economia da droga. Tornou-se uma “gente sacrificável”, sem que isso seja percebido ou repudiado como delito inaceitável. Alarga-se assim o campo da aceitação social da arbitrariedade sem fim: a segurança pública torna-se concebível pela aniquilação do “outro”. Viabiliza-se a fúria contra o “inimigo próximo”.

Como tem demonstrado toda uma linha de pesquisa e estudo, a história das favelas

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cariocas está fortemente associada à sua identificação enquanto “problema”, mudando a

ênfase na dimensão do problema conforme o período histórico e o contexto político: problema

“sanitário”, “habitacional”, de “ordem pública”, de “segurança”, enfim, problema “social”

(Machado da Silva, 2002; Valladares, 2005; Rocha, 2009). Diante do exposto até aqui, meu

argumento é que, no imaginário da cidade, a favela foi historicamente sendo fixada como um

lugar-trauma e seus moradores como o outro da cidade, o avesso da figura do cidadão. A

atualização mais recente dessa marca-trauma, como argumentado acima, está relacionada às

mortes violentas e experiências traumáticas decorrentes da violência criminal e policial. A

concentração da maior parte das mortes violentas nas favelas ou em lugares próximas a

favelas (Rivero e Rodrigues, 2009) as transformaram na representação social dominante em

um espaço da morte (Taussig, 1993). A representação da favela como um espaço da morte

reforça o imaginário da favela como lugar-trauma e, logo, reforça o preconceito e o estigma

que impedem a tomada de voz de seus moradores.

Para concluir este capítulo, desejo apenas dizer que, diante do histórico que descrevi

da constituição da favela como um lugar-trauma e do favelado como uma categoria social

subalterna, a “favela” introduz uma barreira à generalização da denúncia e à participação dos

moradores em um “mundo comum” em condições de igualdade. Favela converte-se em um

dispositivo do repertório de poder que impede a “transformação da força em grandeza”,

deixando de haver um “equivalente” que distribua grandes e pequenos em um continuum de

posições intercambiáveis.

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2. O DESAPARECIMENTO FORÇADO DE PESSOAS COMO PRÁTICA DO

REPERTÓRIO DA LINGUAGEM DA VIOLÊNCIA URBANA

As possibilidades de abordagem do fenômeno do desaparecimento de pessoas são tão

vastas quanto a pluralidade semântica e as figurações das categorias desaparecimento e

desaparecido. Existem vários tipos e modalidades de desaparecimento e, além disso, a própria

categoria desaparecimento é fugidia, de difícil definição, exatamente pela ampla gama de

situações que engloba. A discussão sobre o desaparecimento pode levar a reflexão a vários

temas e cada perspectiva analítica pode considerar problemas diferentes, assim como são

variados os circuitos e as trajetórias que se pode percorrer para pesquisar este assunto. Deste

modo, é útil começarmos logo tentando delimitar o objeto, o foco, o olhar, apresentando as

questões centrais e as categorias de análise.

2.1. Figurações das categorias desaparecido e desaparecimento A perspectiva desenvolvida nesta tese orienta-se sobretudo por uma interrogação sobre

as relações entre desaparecimento forçado13 e violência urbana. Meu interesse central é

investigar em que medida o desaparecimento forçado de pessoas corresponde a uma prática

do repertório da linguagem da violência urbana14. E, mais especificamente, em que medida o

13 Utilizo a noção de desaparecimento forçado tal como esta aparece nas normatizações internacionais apresentadas adiante. 14 Nesse ponto, acompanho a definição de Machado da Silva sobre violência urbana (2008c: 36-37): “Considerada em seus conteúdos de sentido mais essenciais, a representação da 'violência urbana' indica um complexo de práticas legal e administrativamente definidas como crime, selecionadas pelo aspecto da força física presente em todas elas, que ameaça duas condições básicas do sentimento de segurança existencial que costumava acompanhar a vida cotidiana rotineira – integridade física e garantia patrimonial. 'Violência urbana' é, portanto, uma representação que interroga basicamente o crime comum, mas o foco de atenção não é o estatuto legal das práticas consideradas, e sim a força nelas incrustada, que é interpretada como responsável pelo rompimento da 'normalidade' das rotinas cotidianas, ou seja, da certeza sobre o fluxo regular das rotinas em todos os aspectos: cognitivo, instrumental e moral. Esta é a razão pela qual 'violência urbana' não é simples sinônimo de crime comum nem de violência em geral. Ademais, é de se considerar que este núcleo, mais ou menos consensual, não impede a polissemia da noção, e com isso sua extensividade. De fato, a violência urbana configura um campo semântico particular – e, na atualidade, decisivo – que, por um lado, não tem fronteiras definidas; dependendo do contexto, pode incorporar todo tipo de atitudes e condutas que simplesmente 'incomodam', afetando apenas superficialmente a continuidade das rotinas diárias”. Machado da Silva chama a atenção ainda para o que considera uma novidade na representação da “violência urbana”: ela reconhece a presença de uma ordem social. A categoria, construída coletivamente, designa “um complexo de práticas do qual a força é um princípio de coordenação, responsável por sua articulação e relativa permanência ao longo tempo. Além de atitudes e condutas, “identifica um ator, ou seja, reconhece a presença de uma ordem social”. O ator típico tem sido identificado com os traficantes de drogas, eles seriam uma espécie de “portadores” da violência

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desaparecimento corresponde a práticas de extermínio e a situações em que o desaparecido

provavelmente foi morto. Foi a partir desse enquadramento que busquei conduzir o trabalho

de campo e registrar histórias, situações, entrevistas, eventos, protestos, manifestações,

julgamentos. Os principais protagonistas são os familiares dos desaparecidos, por um motivo

até certo ponto óbvio, são eles os mais interessados em falar sobre o assunto, em dar

visibilidade a seus casos, em denunciar, em reivindicar e lutar por justiça.

O desaparecimento de pessoas compreende uma variedade de tipos, situações e

circunstâncias, mas é possível afirmar que parte dos casos é composta por desaparecimentos

forçados, muitos inclusive envolvendo as forças policiais. Há desaparecimentos forçados que

ocorrem durante operações policiais oficiais e outros em situações extraoficiais. Os dados

coletados para esta pesquisa indicam (como se verá nas histórias relatadas na Parte III desta

tese) a participação de policiais, milicianos e traficantes em casos de desaparecimento. Pode-

se inclusive sugerir que há uma espécie de divisão do trabalho, em alguns casos, entre

policiais, milicianos e traficantes de drogas, no ato de desaparecer com corpos15. Pode-se

também dizer que há uma espacialização dos desaparecimentos forçados, ou seja, eles

ocorrem, majoritariamente, nos territórios da pobreza (favelas e periferias), entre outros, em

momentos de lazer – especialmente durante saídas de bailes funk, ou de outros tipos de festa,

como festa junina – sendo os jovens do sexo masculino as principais vítimas, ou ainda durante

situações de confronto armado.

Embora compreendam que há uma diversidade de situações de desaparecimento as

autoridades policiais tendem a generalizar os casos afirmando que geralmente são ocasiões de

briga familiar em que o desaparecido era doente mental e por isso desapareceu. É verdade que

essas circunstâncias correspondem a uma parte considerável de casos, mas não à sua

totalidade. Por outro lado, são muito comuns reclamações de familiares de pessoas

desaparecidas em relação ao atendimento feito pelos órgãos policiais. Não sendo o

desaparecimento em si um crime, é comum os familiares se queixarem de que ouvem muitas

vezes das autoridades policiais, como justificativa ou desculpa para não investigarem os

casos, expressões como “não tem corpo não tem crime”. E não havendo crime, não há

urbana “porque sua atitude, mais ou menos estável e duradoura do que as outras modalidades de crime, exerceria sobre ela uma ação centrípeta”. Para maiores detalhamentos do ponto de vista desse autor, pode-se consultar entre outros, Machado da Silva (1993, 2004, 2004b, 2008b, 2008c). 15 Um exemplo disso que estou chamado de espécie de divisão do trabalho foi o caso, em junho de 2008, de três jovens moradores do Morro da Providência detidos por soldados do Exército e entregues a traficantes de drogas de uma favela rival, que se encarregaram de matar e desaparecer com os corpos. Posteriormente os cadáveres dos três jovens foram encontrados no lixão de Gramacho, em Duque de Caxias. Segundo informações do Comando Militar do Leste, os jovens teriam sido detidos porque teriam desacatados os soldados. Onze militares do Exército foram presos na ocasião.

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motivos para a realização de investigações.

Neste capítulo apresento um quadro panorâmico com o objetivo de contextualizar as

figurações das categorias desaparecido e desaparecimento, mapeando a pluralidade de

construções do fenômeno enquanto um problema social e sociológico. As categorias

desaparecido e desaparecimento são categorias em disputa, e seus significados estão

diretamente associados à pluralidade de vozes que falam ou deixam de falar sobre o assunto,

envolvendo familiares, autoridades, pesquisadores, movimentos sociais, mídia, entre outros

tipos de organização. Mais recentemente, o assunto tem despertado o interesse crescente de

acadêmicos que vêm produzindo diferentes olhares e perspectivas.

Eu diria que a trajetória do debate sobre o tema, no Brasil, poderia ser enquadrada em

dois contextos históricos: o primeiro refere-se ao desaparecimento político e o segundo diz

respeito à forma contemporânea marcada por uma pluralidade de percepções sobre o assunto.

Enquanto o desaparecimento político é compreendido a partir da noção de desaparecimento

forçado e reporta-se ao período da ditadura civil-militar, o segundo engloba modalidades

diversas e remete-se ao período pós-ditadura. Minha proposta, portanto, é acompanhar

algumas trajetórias das categorias desaparecido e desaparecimento, a partir de uma

perspectiva histórica e sócio-antropológica, partindo do desaparecimento político às

figurações contemporâneas dessas duas categorias. Para alcançar tal propósito, busco, neste

capítulo, dialogar com dois tipos de literatura, uma que trata do desaparecimento político e

outra que trata dos desaparecimentos contemporâneos, bem como analiso leis, tratados,

convenções, estatísticas, relatórios e reportagens jornalísticas.

2.2. Do desaparecimento forçado como método de repressão da ditadura

Uma das imagens mais marcantes que ficaram das ditaduras latinoamericanas foi a figura do

desaparecido. Durante os regimes militares latino-americanos o desaparecimento forçado

tornou-se instrumento de repressão e dominação política da ditadura (Padrós, 2007). Quando

os militares latino-americanos começaram a utilizar a prática de desaparecimento forçado de

pessoas como um método repressivo, acreditavam ter encontrado a chave para um crime

perfeito: dentro da sua lógica inumana, não havendo vítimas, não haveria perseguidos e,

portanto, também não haveria crime (Molina Theissen, 1998).

O desaparecimento forçado se inicia com a captura violenta e arbitrária da pessoa, que

em seguida é levada para lugares desconhecidos, onde, na maioria dos casos, é torturada e

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assassinada, sem que se deixem vestígios ou rastros do corpo, nem dos lugares onde esteve

detida, nem de quem perpetrou o crime. Em muitos casos os corpos são mutilados para

dificultar sua identificação ou as características da morte. As pessoas podem ser levadas a

prisões clandestinas onde podem ser objeto de agressões físicas. E, ainda com o objetivo de

se desfazerem do cadáver, os responsáveis podem enterrar os corpos em cemitérios

clandestinos ou jogá-los em rios. De acordo com a primeira manifestação da ONU, cunhada

nesse momento histórico, em 1978, desaparecimento forçado

é a violação complexa de direitos fundamentais, alguns inderrogáveis, praticada por agentes públicos (geralmente os encarregados da segurança e/ou cumprimento das normas jurídicas), em que, de forma arbitrária, violenta e à margem da lei, detêm, encarceram e, não raras vezes, assassinam pessoas, não informando os fatos, o paradeiro da vítima ou a motivação da ação a quem de direito. Trata-se, desse modo, em qualquer situação ou circunstância, de um crime injustificável contra o direito à vida, à liberdade e à segurança pessoais, composto mediante tortura ou tratamento, pena ou castigo cruéis, e apartado do devido processo legal. Acima da normalidade, tem suas consequências extrapoladas além da vítima principal, seja em relação à angústia e à dor intermitente do cônjuge, dos filhos, dos parentes e dos amigos, que as circunstâncias do desaparecimento causam, seja na insegurança coletiva gerada por esses crimes, já que os ofensores (diretos ou indiretos) aos direitos fundamentais implicados são justamente os encarregados de garanti-los na entidade estatal (Jardim, 1999: 33-34).

Um dos primeiros livros lançados no Brasil sobre os desaparecidos políticos foi

organizado por Cabral e Lapa (1979), publicado pelo Comitê Brasileiro de Anistia/RJ e pela

Edições Opção. O livro traz alguns artigos sobre a temática dos desaparecimentos e pequenos

artigos recuperando a história dos desaparecidos políticos brasileiros com pequenas

biografias. Em um dos artigos desse livro, o historiador Hélio Silva escreve:

Então, num determinado momento, um homem, uma mulher, ou até crianças, desaparecem. São arrancados, do meio da rua, são arrancados de suas casas e de seus locais de trabalho e ninguém sabe mais informar. As indagações pelos canais regulares, pelos meios judiciais, ou os reclames da opinião pública não têm eco. O grito das famílias não tem eco. E ninguém sabe exatamente o que aconteceu. (...) Criou-se essa figura misteriosa que some como se tivesse sido levada por um disco voador. A mulher é viúva de um marido que pode ser vivo. O filho é filho e órfão de um pai que pode estar vivo. É órfão ou o pai está vivo? E todas as repercussões jurídicas e econômicas disto criaram figuras jurídicas inteiramente novas. Como os filhos dos banidos que não conseguem registro. Como as viúvas que não podem receber a pensão porque os militares não assumem a morte do desaparecido. Ou as esposas de militares punidos que recebem pensão como viúvas de maridos vivos. E os filhos de militares que para se matricularem num colégio militar figuram como órfãos de pais vivos. (Silva, 1979: 26-27)

Em outro artigo deste mesmo livro, desta vez de autoria de Barbosa Lima Sobrinho, lê-

se:

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72

O desaparecido não deixa esposa, nem filhos, nem amigos. Há que apagar tudo que possa recordar sua memória ou sua vida, pois que, na verdade, responde pelo maior dos crimes possíveis, o crime de haver nascido, para o qual não existe perdão, nem piedade, num regime em que todas as práticas tenham o direito de cobrir-se com a bandeira sagrada da Segurança Nacional. Foi em nome dela que veio a surgir, na crônica dos povos que se supunham civilizados, o rosto sem feições e a figura sem nome dos desaparecidos, a quem se nega até mesmo o direito a uma lápide funerária ou, ainda menos do que isso, o direito a um atestado de óbito. (Sobrinho, 1979: 29)

Uma abordagem antropológica sobre os desaparecidos políticos foi dada por Ludmila

da Silva Catela, que realizou uma pesquisa sobre a reconstrução do mundo dos familiares dos

desaparecidos argentinos (Catela, 2001). O trabalho de Catela toma como uma de suas fontes

de análise os relatos dos familiares para refletir sobre a forma como estes familiares reagiram

diante da situação limite do desaparecimento.

As modificações na vida das pessoas, as mudanças, foram acionando a criação de identidades diferenciadas que tornaram os laços primordiais os referenciais mais fortes de identificação. A categoria desaparecido acarretou um sistema classificatório diferente, eficaz para as pessoas que se posicionavam em torno desta figura, tanto como forma de enunciação de um drama privado quanto na arena pública. Esse processo levou tempo e passou por muitas etapas de ajustes, disputas, idas e vindas em torno de um mesmo tema: a constituição, aceitação e uso da palavra desaparecido. (Catela, 2001: 143)

Uma nova categoria classificatória surgia então: o desaparecido. Em torno desta figura

emergiu todo um novo sistema simbólico:

A figura do desaparecido interessa, assim, como elemento central, que fornece material específico para a conformação de um sistema simbólico em que predominam elementos tradicionalmente associados aos rituais de morte. Que significa ter um familiar desaparecido? Que fronteiras impõe? Como estes familiares, a partir de suas diferenças de gênero e de geração, representam e explicam a si mesmos estes desaparecimentos violentos, provenientes da intolerância política? Que características sociais, políticas e culturais indicam estes “mortos” sem corpos e sem sepulturas? (Catela, 2001: 140).

Como sustenta Catela, na medida em que não há corpo, não há sepultura e não há um

momento específico de realização do luto, o desaparecimento pode ser pensando como uma

morte inconclusa (Catela, 2001: 141-142).

O terror produzido pelos regimes militares deixou marcas em praticamente todos os

países da América Latina. Ariel Dorfman, citado por Taussig (1993: 26), conta que existe no

campo chileno uma história sobre o que acontece quando uma criança é raptada por uma

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73

bruxa. A fim de quebrar a vontade da criança, as bruxas quebram os ossos e costuram as

partes do corpo de maneira anormal. “A cabeça é virada para trás, de um tal modo que a

criança tem de andar de ré. As orelhas, os olhos e a boca são costurados. Essa criatura recebe

o nome de Imbunche, e Dorfman sente que a junta militar sob Pinochet fez cada chileno e o

próprio Chile em um Imbunche.” Ainda que os ossos de cada chileno não tenham sido

quebrados, cada chileno se sente como um Imbunche.

2.3. A construção normativa do desaparecimento forçado como crime e o direito

internacional

O desaparecimento forçado não é um fenômeno recente na história da humanidade.

Perruso (2010: 17-18), ao analisar a construção histórica e normativa do crime de

desaparecimento forçado, chama atenção para a ocorrência desta prática em situações de

guerra. Esta autora destaca que, nos séculos passados, os corpos dos soldados mortos em

guerra não eram encontrados e, por esta razão, no século XIX, durante a guerra civil norte-

americana os soldados recebiam uma placa que era levada junto ao corpo, contendo nome,

regimento e divisão a que faziam parte no exército, como forma de identificação em caso de

morte em batalhas. Após a Primeira Guerra Mundial essas placas tornaram-se obrigatórias,

conforme as determinações estabelecidas durante a Conferência Internacional da Cruz

Vermelha, realizada em 1925.

Perruso aponta também uma nova forma de desaparecimento forçado praticada

durante a Segunda Guerra Mundial, que evidenciava o uso deste método não apenas com

soldados em campos de batalha. Tratava-se do desaparecimento de civis por meio da política

nazista de extermínio. Essa tática remonta ao decreto “Noite e Neblina”, de 17 de dezembro

de 1941, cujo conteúdo tratava da retirada de pessoas acusadas de ameaçarem os territórios

alemães ocupados e de seu encaminhamento à Alemanha para serem executadas. A ação não

podia ser visível e os agentes envolvidos não podiam disponibilizar informações sobre o

paradeiro das pessoas.

Outro contexto histórico destacado por Perruso é exatamente o dos desaparecimentos

forçados por motivações de repressão política e de maneira sistematizada durante os regimes

ditatoriais latino-americanos16.

16 Para uma discussão dos aspectos normativos do desaparecimento forçado como crime, ver Jardim (1999) e Perruso (2010).

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2.3.1. O Grupo de Trabalho sobre Desaparecimentos Forçados da ONU e a Declaração

sobre a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado

A questão dos “desaparecimentos” de pessoas como prática política de regimes

ditatoriais, intimamente associada à tortura, ocasionou a criação do primeiro mecanismo

“temático” para o monitoramento de fenômenos violadores dos “direitos humanos” em

qualquer parte do planeta – o Grupo de Trabalho Sobre Desaparecimentos Forçados ou

Involuntários. Criado pela Comissão dos Direitos Humanos, serviu de precedente e modelo

para os demais mecanismos congêneres hoje existentes nas Nações Unidas.

Para descrever rapidamente a criação do Grupo, utilizo as informações sistematizadas

e contidas no trabalho de José Augusto Lindgren Alves (Alves, 1997). O autor é diplomata e

foi o responsável pela criação de um departamento específico para os direitos humanos no

Itamaraty, o atual Departamento de Direitos Humanos e Temas Sociais. Participou, como

delegado do Brasil, da Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas. A

obra, intitulada “A Arquitetura Internacional dos Direitos Humanos”, promove uma

exposição cronológica de como foi se construindo uma disciplina jurídica dos direitos

humanos em nível internacional. O livro é composto por pequenos textos em forma de

comentários aos documentos internacionais que se seguiram à Declaração Universal dos

Direitos Humanos, de 1948, além dos próprios documentos. Um dos documentos

apresentados no livro é a Declaração Sobre a Proteção de Todas as Pessoas Contra

Desaparecimentos Forçados. Nessa pequena parte o autor descreve o surgimento do Grupo de

Trabalho Sobre os Desaparecimentos Forçados. É a partir desse texto que traço um pequeno

histórico de surgimento do Grupo.

O Grupo de Trabalho Sobre os Desaparecimentos Forçados ou Involuntários foi

criado na Comissão dos Direitos Humanos pela Resolução 20 (XXXVI), de 19 de fevereiro de

1980, com base em projeto apresentado pela França, emendado por proposta conjunta de

Chipre, Iraque, Senegal e Iugoslávia. Uma vez emendado, o projeto recebeu o copatrocínio

adicional da Costa Rica, Irã, Estados Unidos e Venezuela.

Composto por cinco representantes na qualidade de peritos de países membros da

Comissão de Direitos Humanos da ONU, levando-se em conta a representatividade das cinco

grandes áreas geográficas do mundo, o Grupo de Trabalho, de acordo com a Resolução

33/173, de dezembro de 1978, que o criou, tinha a incumbência de “examinar questões

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concernentes ao desaparecimento forçado ou involuntário de pessoas” (parágrafo operativo

1º). Para isso, era autorizado a “buscar e receber informações de governos, organizações

intergovernamentais, organizações humanitárias e outras fontes confiáveis” (parágrafo

operativo 3º). Para definir seus métodos de trabalho, o Grupo era convidado a “ter em mente a

necessidade de ser capaz de reagir de maneira efetiva diante das informações” que lhe

chegassem e a realizar seu trabalho “com discrição” (parágrafo operativo 6º).

Segundo Alves (1997), a redação um tanto vaga da Resolução 33/173 foi o resultado

da tentativa de conciliação de posições entre as delegações que desejavam atribuir ao

mecanismo meios concretos de ação em defesa de pessoas desaparecidas e os representantes

de países que se consideravam, real ou potencialmente, mais vulneráveis. Estes, sobretudo do

Leste europeu e da América Latina, desejavam que o Grupo de Trabalho apenas realizasse

estudos.

Segundo o autor, a imprecisão da linguagem da resolução revelou-se, posteriormente,

positiva para o Grupo, pois propiciou ampla margem de autonomia para a definição dos

métodos de trabalho. O Grupo de Trabalho Sobre Desaparecimento Forçado ou Involuntário

se reúne regularmente três vezes por ano, procura esclarecer casos antigos e buscar proteção

para as vítimas em casos de desaparecimentos recentes. Em relação a este tipo de ocorrência,

não há necessidade de reunir-se para deliberar caso a caso sobre a maneira de agir. Em

atuação denominada procedimento urgente, tão logo o Presidente do Grupo obtém informação

sobre um novo caso de desaparecimento, por delegação dos demais membros, entra em

contato imediatamente (por telex, fax ou qualquer outro veículo de comunicação) com o

respectivo governo, solicitando ações e esclarecimentos em defesa da(s) vítima(s).

O esclarecimento de casos antigos também é buscado através de contatos com os

governos e com os familiares ou representantes das vítimas, de maneiras diversas, incluindo

visitas in loco, quando para isto são autorizados. As missões in loco podem decorrer de

iniciativa do Grupo, com anuência do respectivo governo, de resoluções da Comissão dos

Direitos Humanos, ou a convite do próprio país, cujo governo deseja demonstrar sua boa-fé.

Em 1995, um representante do Grupo visitou o Sri Lanka. No mesmo ano, o Grupo de

Trabalho foi convidado para visitar a Colômbia, aceitando o convite para 1996. Pedidos de

autorização foram endereçados pelo Grupo a outros países, em muitos não obtendo resposta.

Alves (1997) considera apolítica a atuação do Grupo de Trabalho, no sentido de não

manifestar juízo de valor sobre os governos contatados, ainda que a mudança da ordem

política tenha sido profunda. Também não dá por encerrados casos registrados sob governos e

regimes anteriores. Os casos são dados como finalizados apenas quando os familiares ou

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representantes das vítimas consideram que o objetivo chegou ao fim. Isto se dá com o

reaparecimento da pessoa, pela identificação do cadáver, ou por outro tipo de satisfação aceito

pelos interessados, como por exemplo, certidão de óbito ou indenização financeira fornecida

pelo Estado.

Segundo a interpretação do autor que estou tratando, a suposta atuação apolítica do

Grupo de Trabalho Sobre Desaparecimento Forçado ou Involuntário da ONU muitas vezes

irrita oposições e governos legítimos: as oposições, porque gostariam de ver os ocupantes do

poder acusados internacionalmente; os governos sucessores de regimes de força, porque têm

que arcar com a responsabilidade pelo esclarecimento de casos de desaparecimentos

praticados por seus antigos adversários.

O Grupo de Trabalho foi inicialmente estabelecido para o exercício de um ano, mas

acabou tornando-se permanente. Segundo Alves (1997), o Grupo tinha tratado, até 1993, de

cerca de trinta e cinco mil casos distintos em cinquenta e oito países. A partir dos casos

examinados o Grupo tem a tarefa de identificar elementos e situações que costumam levar à

prática dos desaparecimentos nos diversos países. Com base nesses dados formula

recomendações gerais de natureza preventiva, punitiva e compensatória à Comissão dos

Direitos Humanos, a serem adotadas nacional e internacionalmente.

Antes da Comissão de Direitos Humanos da ONU estabelecer, em 1980, a criação do

Grupo de Trabalho Sobre Desaparecimento Forçado ou Involuntário para monitorar casos

concretos de desaparecimento de pessoas, o assunto já vinha sendo estudado havia anos pela

Subcomissão Para a Prevenção da Discriminação e Proteção das Minorias. Foi dessa

Subcomissão que resultou um primeiro anteprojeto de declaração sobre a questão dos

desaparecimentos forçados. Refeito em 1987 e acolhido em 1991, como base para as

negociações de um Grupo de Trabalho da própria Comissão de Direitos Humanos da ONU, o

anteprojeto foi discutido e modificado até que, transformado em projeto de declaração, o texto

foi aprovado pela Comissão em 1992 e adotado pela Assembleia Geral da ONU no mesmo

ano.

Em 18 de dezembro de 1992, foi proclamada pela Resolução 47/133, da Assembléia

Geral da ONU, a Declaração Sobre a Proteção de Todas as Pessoas Contra Desaparecimentos

Forçados, consolidando pela primeira vez em documento normativo internacional as

referências e recomendações do Grupo de Trabalho Sobre Desaparecimento Forçado ou

Involuntário, respaldadas pelas experiências de doze anos de atuação na questão dos

desaparecimentos forçados. Importante lembrar que a Declaração foi aprovada no início dos

anos 1990, período em que muitos países latino-americanos viviam a transição de regimes

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ditatoriais para regimes democráticos. No texto da Declaração, a definição de

desaparecimento forçado aparece ao se manifestar a preocupação de que o desaparecimento

ocorre de maneira sistemática em muitos países:

[…] geralmente de modo persistente, ocorrem os desaparecimentos forçados, no sentido de que as pessoas são presas, detidas ou trasladadas contra sua vontade, sendo privadas de sua liberdade por agentes governamentais, de qualquer setor ou nível, ou grupos organizados que atuam em nome do governo, ou com seu apoio direto ou indireto, consentimento ou aquiescência, seguido por uma recusa em revelar a sorte ou o paradeiro dessas pessoas ou reconhecer que estão privadas de liberdade, subtraindo-as, assim, à proteção da lei.

Desde a sua adoção pela Assembleia Geral da ONU, em 1992, a Declaração Sobre a

Proteção de Todas as Pessoas Contra Desaparecimentos Forçados ou Involuntários é o

principal documento normativo a orientar o Grupo de Trabalho. Uma das principais

atribuições atuais do Grupo consiste em acompanhar a implementação da Declaração.

Segundo o relatório submetido à Comissão dos Direitos Humanos, em 1996, pelo

Grupo de Trabalho, o número total, naquela ocasião, de casos mantidos sob sua consideração

em 1995 era de 43.508, envolvendo casos recentes e antigos em sessenta e três países, de

todas as regiões. Somente em 1995 o Grupo registrou e comunicou a ocorrência de oitocentos

e vinte e quatro casos novos, trezentos e cinquenta e nove ocorridos nesse mesmo ano.

A respeito do Brasil, o Grupo de Trabalho registrava no relatório, que circulou em

janeiro de 1996, três novos casos (um ocorrido em 1994 e dois em 1995) e um total de

cinquenta e sete casos, sendo a maioria referente ao período de 1969 a 1975. Conforme o

registro no relatório, os três novos casos “teriam sido executados no Rio de Janeiro por

membros da Polícia Militar. Uma das pessoas desaparecidas seria um advogado e líder do

sindicato de funcionários da Biblioteca Nacional. Os outros dois casos dizem respeito a

pessoas alegadamente detidas por membros uniformizados da Polícia Militar e conduzidas

num veículo para destino ignorado”. Os casos descritos são os de Jorge Antônio Carelli,

detido no Morro da Varginha em 10/08/1993 e, em seguida, desaparecido, e também os de

Alexandre Santos Cunha e José Francisco do Rosário Filho, detidos em Belford Roxo, em

11/03/199517.

O relatório registrava também uma observação em louvor à iniciativa do Governo

Federal brasileiro de submeter ao Congresso Nacional projeto de Lei “relativo ao

17 Estas informações estão contidas no Report of the Working Group on Enforced or Involuntary Disappearances, documento E/CN. 4/1996/38, 15 de Janeiro de 1996, p. 22-23, e citadas no livro de Alves (1997: 226).

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procedimento de declaração de morte presumida das pessoas sujeitas a desaparecimento

forçado por motivos políticos no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979”.

O relatório foi preparado antes da promulgação da Lei 9.140, de 4 dezembro de 1995, que

“reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação ou acusação de

participação em atividades políticas no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de

1979”.

A Lei 9.140 certamente representou algum avanço, mas não “resolveu” definitivamente

a questão. Os conflitos entre familiares dos desaparecidos e o Estado brasileiro continuam

latentes, sobretudo em razão da não identificação e localização ainda hoje dos desaparecidos

na Guerrilha do Araguaia, da não abertura de todos os arquivos da ditadura e principalmente

em razão do ônus da prova ter ficado com os familiares dos desaparecidos.

2.3.2. O Estatuto de Roma

Outro documento internacional que visa normatizar e definir o desaparecimento

forçado é o Estatuto de Roma, um tratado que estabeleceu a criação do Tribunal Penal

Internacional, adotado em 17 de julho de 1998, em Roma, na Itália. O Tribunal é definido no

artigo 1º do estatuto como “uma instituição permanente, com jurisdição sobre as pessoas

responsáveis pelos crimes de maior gravidade com alcance internacional” e “complementar

das jurisdições penais nacionais”. Sua sede é em Haia, Holanda (art. 3°). Possui personalidade

jurídica internacional (art. 4º). Segundo o art. 5º, é competente para julgar: a) genocídio; b)

crimes contra a humanidade; c) crimes de guerra; d) crime de agressão. E o art. 11º ainda

estabelece que só tem competência relativamente aos crimes cometidos após a entrada em

vigor do Estatuto. O Estatuto de Roma foi aprovado no Brasil pelo Decreto nº 02, de 18 de

janeiro de 2002 e o desaparecimento forçado é definido no artigo 7, 2, i, como um crime

contra a humanidade, nos seguintes termos:

Por “desaparecimento forçado de pessoas” entende-se a prisão, a detenção ou o sequestro de pessoas por um Estado ou uma organização política, ou com a sua autorização, apoio ou aquiescência, seguido da recusa a admitir tal privação de liberdade ou a dar informação sobre a sorte ou o paradeiro dessas pessoas, com a intenção de deixá-las fora do amparo da lei por um período prolongado.

Segundo os elementos usados pelo Tribunal Penal Internacional na definição do

desaparecimento forçado, a autoria do crime é atribuída àquele que tenha apreendido, detido

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ou sequestrado uma ou mais pessoas, negado a reconhecer tal ato e prestar informações sobre

o paradeiro e destino do desaparecido. Estipula ainda que o desaparecimento tenha ocorrido

com a autorização ou aquiescência do Estado ou organização política, com a intenção de

manter o desaparecido fora do amparo da lei. Outro fator de caracterização de

desaparecimento forçado é “que a conduta tenha sido parte de um ataque generalizado ou

sistemático, dirigido contra a população civil, e o agente saiba desse fato” (Perruso, 2010:

34).

2.3.3. A Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas

A Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) solicitou, em

1997, à Comissão Interamericana de Direitos Humanos um projeto de Convenção sobre o

desaparecimento forçado de pessoas. Após discussões com organizações não governamentais,

uma primeira proposta de projeto foi apresentada no ano seguinte. Um Grupo de Trabalho foi

estabelecido pelo Comitê do Conselho Permanente sobre Negócios Jurídicos e Políticos da

OEA – que durante anos apreciou o projeto – quando, em 1992, apresentou uma versão que

foi muito criticada por países como Argentina, Chile e Canadá, além de organizações não

governamentais. As críticas centravam-se sobretudo no fato de as propostas não garantirem

efetiva proteção de pessoas contra o desaparecimento forçado, além de aceitarem as leis de

obediência devida “como justificativa para escusa de responsabilidade criminal”. Segundo a

observação de Perruso (2010: 32), daí em diante o Conselho passou a considerar as críticas

das organizações não governamentais e a seguir postura mais progressista da Declaração de

1992 da ONU.

Em 9 de junho de 1994, a Resolução da Assembleia Geral da OEA 1256(XXIV-0/94),

adotou em Belém do Pará, Brasil, a Convenção Interamericana sobre Desaparecimento

Forçado de Pessoas, que passou a ser utilizada partir de 28 de março de 1996. Já em seu

preâmbulo a Convenção apontava a prática do desaparecimento forçado como crime contra a

humanidade e em seu artigo 2º, o caracterizava nos seguintes termos:

Para os efeitos desta Convenção, entende-se por desaparecimento forçado a privação de liberdade de uma pessoa ou mais pessoas, seja de que forma for, praticada por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas que atuem com autorização, apoio ou consentimento do Estado, seguida de falta de informação ou da recusa a reconhecer a privação de liberdade ou a informar sobre o paradeiro da pessoa, impedindo assim o exercício dos recursos legais e das garantias processuais

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pertinentes.

Os termos da Convenção Interamericana focalizam a cobrança aos Estados-Membros

para “não praticarem, nem tolerarem, nem permitirem a prática do desaparecimento

forçado”, “nem mesmo em estado de emergência, exceção ou suspensão de garantias

individuais” (art. 1º). O desaparecimento forçado é compreendido como “violação dos

múltiplos direitos essenciais da pessoa humana, de caráter irrevogável”. Os Estados-

Membros que adotaram a Convenção se comprometem a punir, “no âmbito de sua

jurisdição, os autores, cúmplices e encobridores do delito do desaparecimento forçado de

pessoas, bem como tentativa de prática do mesmo”. Também se comprometem em

“cooperar entre si a fim de contribuir para a prevenção, punição e erradicação do

desaparecimento forçado de pessoas”, e “tomar as medidas de caráter legislativo,

administrativo, judicial ou de qualquer outra natureza que sejam necessárias para cumprir os

compromissos assumidos nesta Convenção” (Artigo 1º).

Em relação à Convenção Interamericana, gostaria apenas de destacar mais dois

artigos:

Artigo 10º

Em nenhum caso poderão ser invocadas circunstâncias excepcionais, tais como estado de guerra ou ameaça de guerra, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública, para justificar o desaparecimento forçado de pessoas. Nesses casos, será mantido o direito a procedimentos ou recursos judiciais rápidos e eficazes, como meio de determinar o paradeiro das pessoas privadas de liberdade ou seu estado de saúde, ou de identificar a autoridade que ordenou a privação de liberdade ou a tornou efetiva. Na tramitação desses procedimentos ou recursos e de conformidade com o direito interno respectivo, as autoridades judiciárias competentes terão livre e imediato acesso a todo centro de detenção e a cada uma de suas dependências, bem como a todo lugar onde houver motivo para crer que se possa encontrar a pessoa desaparecida, inclusive lugares sujeitos à jurisdição militar.

Artigo 11º

Toda pessoa privada de liberdade deve ser mantida em lugares de detenção oficialmente reconhecidos e apresentada, sem demora e de acordo com a legislação interna respectiva, à autoridade judiciária competente. Os Estados Membros estabelecerão e manterão registros oficiais atualizados sobre seus detidos e, de conformidade com sua legislação interna, os colocarão à disposição dos familiares dos detidos, bem como dos juízes, advogados, qualquer pessoa com interesse legítimo e outras autoridades.

Estes dois artigos tratam de situações muito comuns de violações com as quais os

familiares dos desaparecidos têm de confrontar-se nos processos de busca: ausência de

procedimentos judiciais, ausência de registros e informações sobre os desaparecidos, não

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acesso a lugares suspeitos para realização de buscas etc. São comuns tanto nos relatos de

familiares de presos e desaparecidos políticos como nos relatos de familiares de presos e

desaparecidos dos dias atuais.

2.4. A construção do desaparecimento como problema social hoje: embates e disputas

Se, por um lado, a figura do desaparecido e a questão dos desaparecimentos políticos

corresponderam a um capítulo da história do Brasil, particularmente da repressão política, por

outro, além dessa problemática não ter sido definitivamente resolvida, hoje, o que se tem é

uma nova figuração do debate. Uma nova forma de tematizar a questão tem dado novos

contornos ao problema dos desaparecidos e dos desaparecimentos.

Cotidianamente milhares de pessoas desaparecem nas cidades brasileiras. Na mídia o

tema tem sido recorrente, nas delegacias os registros de ocorrência não param de crescer e os

familiares dos desaparecidos vivenciam seus dramas em busca de alguma informação. A

preocupação crescente com o desaparecimento de pessoas levou à criação de uma Comissão

Parlamentar de Inquérito, em 2007, para investigar particularmente o desaparecimento de

crianças e adolescentes. Documentos, como a Carta de Brasília, escrita por ocasião da

realização do I Encontro da Rede Nacional de Identificação e Localização de Crianças e

Adolescentes Desaparecidos (realizado entre 23 a 26 de novembro de 2005), também

expressam o empenho de reflexão e intervenção de pesquisadores, delegados, gestores de

segurança pública, profissionais da área de assistência social, organizações não

governamentais e familiares no problema do desaparecimento de pessoas. Ainda são raros os

estudos acadêmicos sobre o tema, mas, finalmente, os pesquisadores começam a se interessar

de modo mais sistemático pelo assunto (cf. Oliveira e Geraldes, 1999; Araújo, 2007, 2008,

2011; Oliveira, 2007; Oliveira, 2008; Neumann, 2010; Ferreira, 2011).

Como já disse anteriormente, as possibilidades de tematização e enquadramento do

tema são múltiplas, sendo que, nos embates e disputas pelos usos destas categorias, ora o

desaparecimento aparece construído como um “problema de família”, ora como “problema de

segurança pública”, outras vezes ainda como “problema de assistência social”. Ferreira

(2011), por exemplo, ao realizar o que ela denominou de “uma etnografia para muitas

ausências”, adotou uma perspectiva antropológica inspirada na problemática do “gestar e

gerir” (Souza Lima, 2002). A questão central que reúne o conjunto de questões que mobiliza

esta autora é: “Como é construído e gerido o desaparecimento de pessoas no Brasil

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contemporâneo” (Ferreira, 2011: 8). Ao apresentar sua perspectiva analítica, Ferreira chama

atenção para o fato de que

estabelecer a pergunta do “gestar e gerir” como pilar de um trabalho sobre o desaparecimento de pessoas, portanto, significa admitir por princípio que o objeto em foco não é o desaparecimento de pessoas, e sim aquilo que é construído como desaparecimento de pessoas, procurando compreender o processo por meio do qual se dá tal construção18. A interrogação sobre a constituição e gestão do desaparecimento de pessoas desdobra-se, aqui, em duas indagações principais: como casos particulares de desaparecimento são construídos como ocorrências policiais, e como o desaparecimento de pessoas é construído, em outro plano, como “problema social”. Tais indagações desdobram-se, ainda, em uma terceira: a pergunta acerca das unidades e responsabilidades construídas e atribuídas em casos particulares de desaparecimento e em debates públicos em torno do fenômeno. “Família”, “polícia” e “Estado” são termos constantemente evocados nos referidos casos e debates, daí minha opção por me perguntar, também, como são construídas unidades e atribuídas responsabilidades diante de desaparecimento de pessoas (Ferreira, 2011: 8-9).

Em termos empíricos, Ferreira centrou seu trabalho de campo numa etnografia do

Setor de Descoberta de Paradeiros (SPD) da antiga Delegacia de Homicídios do Rio de

Janeiro (Centro/Capital), repartição policial destinada exclusivamente a investigar casos de

desaparecimento de pessoas. Posteriormente seu trabalho estendeu-se para o

acompanhamento dos eventos da Rede Nacional de Identificação e Localização de Crianças e

Adolescentes Desaparecidos (REDESAP), que reúne órgãos governamentais e não

governamentais que lidam com o desaparecimento de pessoas.

A partir dos casos investigados, Ferreira constatou em sua pesquisa que “o registro,

investigação e arquivamento de casos de desaparecimento em delegacias produzem

cotidianamente a irrelevância desse tipo de ocorrência, ao passo que eventos sobre o tema

esforçam-se para conferir-lhe visibilidade e inseri-lo na agenda pública”. A autora acrescenta

ainda que não obstante esse embate em conferir ou não importância ao fenômeno do

desaparecimento, “tanto em repartições policiais, quanto em eventos públicos são igualmente

empreendidas classificações que implicam processos de (des)responsabilização”. Para

policiais desaparecimentos são “problemas de família”; para outros agentes engajados no

tema, desaparecimentos são “problemas de segurança pública” ou “problemas de assistência

social”.

Outro pesquisador que se dedicou ao tema do desaparecimento foi Marcelo Neumann,

18 Da mesma forma que Ferreira (2011) assume que, ao colocar a pergunta do “gestar e gerir”, o objeto que está em foco não é por princípio o desaparecimento e sim os embates que se dão entre os vários atores na construção daquilo que se entende como tal, meu interesse também é menos sobre o desaparecimento em si, e mais sobre as relações entre violência, sofrimento e política que se expressam a partir das histórias e experiências dos familiares dos desaparecidos.

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e seu interesse partiu de sua experiência trabalhando no Projeto Caminho de Volta, do

Departamento de Medicina Legal, Ética Médica, Medicina Social, e do Trabalho da Faculdade

de Medicina da Universidade de São Paulo. Neumann integrou desde o início a equipe e vem

colaborando na articulação junto ao Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do

Adolescente. Outra motivação, segundo Neumann (2010), que o levou ao tema foi o

desaparecimento de seu avô da vida de seu pai, quando este tinha aproximadamente três anos

de idade.

A perspectiva de Neumann vem do campo da assistência social e preocupa-se

principalmente com o desaparecimento de crianças e adolescentes. Assim como outros autores

e outros atores sociais envolvidos nessa problemática, Neumman chama atenção para o fato

de que, embora os registros de desaparecimentos de pessoas sejam altos, há uma

subnotificação dos casos. Muitos casos chegam aos serviços de proteção social, mas não são

encaminhados aos sistemas formais de notificação. Este autor cita como exemplo o caso dos

Conselhos Tutelares, que muitas vezes atendem um caso de fuga, mas não consideram que se

trate de um caso de desaparecimento e, por esta razão, não o encaminham para uma delegacia

de polícia. A fuga é tratada, dessa forma, como um problema estritamente familiar. Outro fator

que contribui para a subnotificação é a cultura policial de considerar que os registros só

devem ser feitos quarenta e oitos horas após o desaparecimento (Oliveira, 2007; Neumann,

2010; Ferreira, 2011). Embora em 2005, durante o governo Lula, tenha sido promulgada uma

lei indicando que a busca deve ser imediata, o entendimento policial e o próprio volume de

trabalho nas delegacias ainda fazem com que a prática seja outra.

Neumann destaca que a falta de políticas públicas é um problema a ser enfrentando no

que diz respeito aos desaparecimentos de crianças e adolescentes. Não há uma política global

que trate do tema a partir de seus vários ângulos, o que se tem são iniciativas pontuais e

fragmentadas, dentre as quais se destaca a criação da Rede Nacional de Identificação e

Localização de Crianças e Adolescentes Desaparecidos (REDESAP). O objetivo desta Rede é

criar e articular serviços de atendimento ao público e coordenar em âmbito nacional o esforço

coletivo para a busca e localização de desaparecidos, além de disponibilizar em seu site fotos

de crianças e adolescentes desaparecidos. Uma das frentes de trabalho da REDESAP foi a

criação do Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas.

Sobre o Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas vale a pena retornar ao trabalho

de Ferreira (2011), que acompanhou durante seu trabalho de campo a REDESAP e apresenta

as seguintes ponderações:

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84

O Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas, iniciativa que congrega agentes envolvidos com desaparecimento de pessoas e foi formulada, em conjunto, pelo comitê gestor da REDESAP e uma equipe da SENASP, também coloca em cena processos de atribuição e isenção de responsabilidades. Contudo, em torno do Cadastro as unidades às quais são associadas obrigações em relação ao desaparecimento correspondem a recortes de áreas temáticas da administração pública: as searas da segurança pública, da assistência social e dos direitos humanos. Antes mesmo que fosse lançado e até o presente momento, quando ainda não está em pleno funcionamento, o Cadastro é alvo de duas dúvidas centrais: A quem deve caber sua gestão? Que instituições poderão preenchê-lo e consultá-lo? Tais interrogações suscitam debates sobre a natureza do desaparecimento de pessoas que, por um lado, remetem a reflexões de policiais do SDP, mas, por outro, delas se diferenciam. Enquanto no SDP evoca-se a oposição “problemas de família” versus “problemas de polícia”, entre os agentes dedicados ao Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas paira a seguinte pergunta: o desaparecimento, afinal, é questão de segurança pública ou de assistência social? (Ferreira, 2011: 236).

Segundo Ferreira, a resposta da equipe dedicada ao Cadastro para tal indagação, em

linhas gerais, sustenta que é possível e necessário distinguir, no heterogêneo universo de

desaparecimento, casos que são “questão de segurança pública” e casos que são “questão de

assistência social”. Ambos os tipos são ao mesmo tempo casos de segurança e assistência e o

essencial seria discernir quais se encaixam no primeiro caso e quais no segundo.

Nesse sentido, a plataforma de dados em que consiste o Cadastro demanda que todo desaparecimento nele registrado seja classificado no próprio ato do registro. Se nas repartições policiais os casos são intitulados, indiferenciadamente, “Fato atípico – Desaparecimento (Outros)”, o Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas apresenta um leque de possibilidades de especificação desse título comum. Todos os casos são registrados como desaparecimentos, como se desaparecimento fosse um gênero de acontecimento, mas é necessário determinar a espécie de desaparecimento em que cada caso consiste. Às espécies constitutivas desse leque são associadas, de modo excludente, instituições que devem responsabilizar-se por cada caso: ou instituições de segurança pública, ou instituições de assistência social.

Além do Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas, outra ação articulada à

REDESAP é a experiência governamental do SOS – Crianças Desaparecidas, programa

coordenado pela Fundação para a Infância e Adolescência do Rio de Janeiro (FIA).

Atualmente a FIA é vinculada à Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos

Humanos – SEASDH. Voltada para localizar crianças desaparecidas, sua principal forma de

atuação é a divulgação de fotos na mídia em geral, a produção de cartazes com fotografias dos

desaparecidos e a pesquisa em abrigos.

Há também a experiência elaborada pelo Serviço de Investigação de Crianças

Desaparecidas de Curitiba (SICRIDE), que utiliza a tecnologia para desenvolver o

envelhecimento de imagens de crianças que permanecem em situação de desaparecimento

com o objetivo de facilitar o reconhecimento. Esse serviço está alocado na estrutura da

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85

Secretaria de Segurança Pública do Paraná e, originalmente, era utilizado no setor de retrato

falado que trabalhava com a alteração de fotografias de indivíduos procurados pela polícia e,

posteriormente, com o aumento do número de crianças desaparecidos, passou a ser utilizado

também nesses casos.

A Faculdade de Medicina da USP criou, em setembro de 2004, uma ação de

enfrentamento do desaparecimento de crianças e adolescentes denominada “Projeto Caminho

de Volta”. Segundo Neumann (2010: 6), o projeto “faz uma junção da biologia molecular, da

bioinformática e do atendimento psicossocial para construir sua intervenção”. Ainda segundo

Neumann, a inovação do projeto é a integração sistemática de dados por meio de entrevistas

psicossociais, encaminhamentos de famílias para acompanhamento especializado e coleta de

material biológico para a determinação do DNA19.

Outras experiências no enfrentamento e prevenção do problema do desaparecimento

têm sido elaboradas a partir da experiência dos familiares dos desaparecidos, como foi o caso

em São Paulo, da criação da Associação Brasileira de Busca e Defesa a Crianças

Desaparecidas, popularmente conhecida como “Mães da Sé”. Inicialmente criada para tratar

do desaparecimento de crianças e adolescentes, diante da intensa procura de familiares cujos

parentes desapareceram em diversos contextos, rapidamente estendeu seu campo de atuação

para a busca de qualquer pessoa desaparecida.

2.4.1, Desaparecimentos e desaparecidos: a pluralidade semântica e os dilemas jurídicos

O desaparecimento de uma pessoa, juridicamente, não constitui crime, portanto, não

figura entre as prioridades investigativas da polícia, sendo considerado um “problema menor”,

relacionado a problemas familiares. Oliveira (2007: 19-20) esclarece, em sua tese de

doutorado intitulada “Desaparecidos civis: conflitos familiares, institucionais e segurança

pública”, que as definições legais vigentes no Brasil, até 1991, se referiam ao “ausente” e ao

“desaparecido”, mas com a preocupação voltada para a administração e transferência de bens,

de modo que não exigia uma ação rápida a fim de esclarecer o paradeiro de uma pessoa. A

distinção entre a figura do “ausente” e a figura do “desaparecido” reside no fato de que, em

termos jurídicos, o termo “ausente” é utilizado para referir-se a uma pessoa quando não se 19 Uma proposta recorrente no debate sobre a questão dos desaparecimentos tem sido a necessidade de se fazer um banco nacional de DNA dos familiares de desaparecidos como forma de facilitar o processo de identificação. Nesse sentido, existem algumas experiências isoladas em andamento, como na Uerj, e projeto de lei no congresso.

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86

tem certeza de sua morte e supostamente está viva, enquanto “desaparecido”, no sistema

jurídico, refere-se àquele cuja morte é certa.

Oliveira e Geraldes (1999) afirmam que a forte confusão entre o fenômeno do

desaparecimento e outras ocorrências seja uma das suas dificuldades conceituais. O conceito

de desaparecido possui fronteiras muito frágeis. Para diminuir tal fragilidade, o primeiro

passo, segundo estes autores, seria conceituar e distinguir os termos considerados próximos

ou sinônimos: desaparecido, perseguido, fugitivo, foragido, sequestrado, raptado, indigente e

migrante.

1. Desaparecido: a palavra desaparecido é utilizada geralmente como referência aos

desaparecimentos políticos. Os autores propõem ampliar o uso do termo desaparecido

para incluir os casos que eles denominam de desaparecidos civis, ou seja, pessoas que

desaparecem cotidianamente de suas residências, cidades, trabalho, sem que haja

informações a seu respeito, não se deduzindo a priori qualquer motivação política para

o desaparecimento.

2. Perseguido: o termo, segundo os autores, foi elaborado pela Arquidiocese de São

Paulo, como referência aos perseguidos políticos da ditadura. A perseguição poderia

motivar um desaparecimento. Ao tentar escapar, o perseguido muitas vezes esconde-se

em local desconhecido e fica incomunicável. Desse modo, em algumas circunstâncias,

o perseguido pode ser considerado desaparecido, mas não representa o universo total

dos casos de desaparecimentos.

3. Fugitivo: para Oliveira e Geraldes, o fugitivo só poderá ser considerado um

desaparecido quando seu paradeiro for completamente desconhecido, quando após

uma situação de fuga não se obtiverem mais notícias sobre sua vida ou morte. Desde o

momento em que não houver mais informações do paradeiro do fugitivo ele pode ser

considerado um desaparecido.

4. Foragido: o termo faz parte da linguagem policial, usado para designar os acusados

que escaparam da prisão ou de alguma ordem judicial. Outro termo da linguagem

policial é o “procurado”, para referir-se a uma pessoa condenada pela justiça, mas que

se encontra fora do alcance policial. O procurado torna-se desaparecido quando é

reclamado publicamente por alguém.

5. Sequestrado: “O sequestrado representa uma parcela de pessoas tomadas à força por

outra ou por um grupo organizado. Diferentemente do perseguido, do fugitivo e do

foragido, o sequestrado não age por sua própria vontade, mesmo quando o gesto para

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87

aquelas situações é induzido por fatores externos” (Oliveira e Geraldes, 1999: 21) . No

sequestro está em jogo alguma forma de pagamento ou troca, desde uma troca de

pessoas até bens financeiros. O destino do sequestrado pode ser totalmente

desconhecido ou conhecido precisamente. Há desaparecimento quando o paradeiro é

desconhecido e os contatos com os sequestradores suspensos.

6. Raptado: o rapto e o sequestro muitas vezes são confundidos entre si porque em

ambas situações uma pessoa é levada. No sequestro, uma pessoa é levada para ser

objeto de algum tipo de troca, enquanto que, no rapto, destina-se a ser objeto de

satisfação.

7. Indigente: juridicamente o termo indica o indivíduo pobre que não possui condições

físicas para manter sua subsistência. O termo indigente é usado também pelo Estado

para designar pessoas que morreram ou foram encontradas mortas sem ter sido

possível identificá-las. A diferença do indigente para o desaparecido é que o

desaparecido tem quem o procure enquanto o indigente não. “A identificação dos

indigentes poderia solucionar vários casos de desaparecimento, pois muitas vezes o

indigente é o desaparecido encontrado, mas não identificado” (Oliveira e Geraldes,

1999: 21).

8. Migrante: o migrante é aquele que saiu de um espaço para outro.

Após tentar delimitar as diferenciações das situações, Oliveira e Geraldes elaboraram

uma definição preliminar para a categoria desaparecido nos seguintes termos: “uma pessoa

será considerada desaparecida quando sua ausência for comunicada publicamente, sendo seu

paradeiro desconhecido, ou de localização inexata, inacessível e/ou sem notícia da sua

situação de vida ou morte” (Oliveira e Geraldes, 1999: 32).

No site do Ministério da Justiça existe uma seção para o cadastro de pessoas

desaparecidas. Nele os desaparecimentos podem ser classificados através da seguinte

tipologia:

1. Fuga do lar – conflitos familiares: situações em que a criança ou o adolescente sai

voluntariamente de casa em razão de conflitos familiares que podem envolver

problemas relacionados ao uso de drogas, abuso sexual, violência física, expulsão do

lar pelos pais, hostilidade entre os membros da família, conflitos com

padrasto/madrasta.

2. Conflitos de guarda – subtração de incapaz: situações de desacordo entre pais e mães

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88

sobre a guarda dos filhos quando há separação de casal.

3. Rapto consensual – fuga com namorado (a): situações em que há o convencimento da

criança ou adolescente a seguir outra pessoa pela qual teria sido seduzida.

4. Perda por descuido, negligência, desorientação: situações nas quais crianças se

perdem em razão do descuido momentâneo dos responsáveis.

5. Situação de abandono – situações de rua: situações nas quais crianças ou adolescentes

encontram-se em situação de negligência e aderem a grupos de crianças que optam por

viver na rua ou em abrigos.

6. Vítima de incidente, intempérie, calamidade: situações nas quais a pessoa desaparece

em razão de desabamentos, enchentes, acidentes de trânsito, entre outras causas.

7. Tráfico para fins de exploração sexual: situações nas quais crianças ou adolescentes

abandonam a família e mudam de cidade atraídas por promessas de trabalho e ganhos

financeiros e acabam exploradas sexualmente, muitas vezes vivendo em cárcere

privado.

8. Sequestro: situações nas quais crianças ou adolescentes são retirados

involuntariamente de suas famílias e exige-se alguma forma de recompensa ou troca.

9. Fuga de instituição: situações nas quais houve fuga da instituição e o paradeiro é

desconhecido.

10. Suspeita de homicídio e extermínio: situações nas quais há fortes indícios de crime

contra a vida, ameaças de rivais, conflitos entre gangues e traficantes de drogas,

apreensões irregulares por policiais e milícias.

11. Não identificado: situações nas quais não há pistas do desaparecimento ou hipóteses

plausíveis levantadas pelos responsáveis.

12. Outros tipos: quaisquer outras situações que não se encaixem nas anteriores.

Como se pode notar, as categorias desaparecimento e desaparecido dão conta de uma

pluralidade semântica de situações que são construídas conforme as múltiplas vozes que

intervêm nesse campo de atuação.

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89

2.4.2. A relação entre desaparecimentos e homicídios: ligações perigosas

Uma das polêmicas envolvendo a questão dos desaparecimentos diz respeito à

possibilidade de, por trás dessa situação, encontrar-se um homicídio. No Rio de Janeiro, essa

controvérsia ganhou espaço com alguns episódios ocorridos durante o governo Sérgio Cabral.

Duramente criticado por alguns segmentos da sociedade por desenvolver e praticar uma

política de segurança baseada no confronto, com um alto índice de mortes, um dos fatos que

marcou a conjuntura do ano de 2008 foi a demissão da antropóloga Ana Paula Miranda da

presidência do Instituto de Segurança Pública (ISP), órgão vinculado à Secretaria de

Segurança Pública, responsável por pesquisas e análises criminais, entre outras coisas. A

antropóloga foi exonerada em fevereiro de 2008, após divulgar um número recorde de mortos

pela polícia. Em seu lugar assumiu o coronel da Polícia Militar Mário Sérgio Duarte, ex-

comandante do Bope e conhecido como integrante da linha dura da polícia. Com a entrada do

coronel Mário Sérgio à frente do ISP, os dados de homicídio tiveram uma queda brusca e isso

foi motivo de grande comemoração por parte do governo.

Diante da publicização e das comemorações por parte do governo da queda do índice

de homicídios, vieram as duras críticas de Ana Paula Miranda, que acusou o governo estadual

de “fabricar” dados. Uma das ocasiões em que essas críticas foram feitas foi durante a

realização do 2º Fórum Violência, Participação Popular e Direitos Humanos, ocorrido em 18

de setembro de 2008, na PUC do Rio, com a presença do novo presidente do ISP, o coronel

Mário Sérgio. As críticas da antropóloga repercutiram rapidamente na mídia. Em suas

declarações, publicadas na Agência Estado no mesmo dia, Ana Paula afirmou que “o governo

não contabiliza os autos de resistência na soma final de homicídios dolosos” e complementou

dizendo que “alguns casos que são claramente homicídios, como os corpos carbonizados

encontrados, estão sendo registrados como encontro de cadáveres e ossadas”. Segundo a ex-

presidente do ISP, os registros de autos de resistência, desaparecimento, encontro de ossadas e

cadáveres continuam em tendência de crescimento desde 2000. A estratégia do governo

estadual para reduzir as taxas de homicídios teria sido redistribuí-los em outras categorias

como autos de resistência, desaparecimento, encontro de cadáver e ossada.

Após sua saída, a ex-presidente do ISP sugeriu que os números começariam a ser

camuflados porque não agradavam às autoridades. O ISP por sua vez, através de sua

assessoria, informou que a postura de Ana Paula era muito acadêmica e a ele interessaria um

perfil mais técnico.

A demissão de Ana Paula ocorreu em fevereiro de 2008, mas os questionamentos da

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90

política de segurança pública do governador Sérgio Cabral já vinham ocorrendo há tempos. O

número crescente dos casos de desaparecimento também passou a ser alvo de dúvidas, críticas

e contestações. A ong Rio de Paz chegou a organizar, no dia 09 de dezembro de 2008, um

protesto na orla da praia de Copacabana em que manequins representavam corpos de pessoas

enterradas em valas comuns e cemitérios clandestinos e envolvidas por pneus, fazendo

referência a uma forma de matar praticada principalmente por traficantes de drogas e

conhecida como “micro-ondas”em que as pessoas são incineradas vivas.

Foto 2: Manifestação da ONG Rio de Paz –

“Desaparecidos – Onde estão nossos mortos?”

Fonte: www.riodepaz.org.br

No dia 29 de junho de 2009 foi a vez do teólogo Antônio Carlos Costa, presidente da

ong Rio de Paz, publicar um artigo no jornal O Globo colando a questão dos

desaparecimentos aos homicídios. O título do artigo era a pergunta “E os desaparecidos?”, e

em certo momento se lia:

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91

No registro oficial de assassinatos não aparecem, por exemplo, os milhares de desaparecidos registrados e não registrados que foram assassinados. Pessoas estão sendo incineradas vivas, devoradas por animais como porcos, jacarés e caranguejos que habitam lagoas e manguezais no entorno das favelas, gente dissolvida em ácido ou enterrada nos cemitérios clandestinos que estão espalhados pela Região Metropolitana do Rio. (Antônio Carlos Costa)

Segundo dados estatísticos do Instituto de Segurança Pública de janeiro de 1991,

quando se começou a fazer este tipo de registro, até abril de 2012, foram registrados mais de

85.000 desaparecimentos.

Série Histórica de Pessoas Desaparecidas no Estado do Rio de Janeiro

Valores Absolutos

Ano Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez Total

1991 235 213 223 224 214 224 219 200 176 238 228 222 2.616

1992 252 239 261 216 202 222 185 178 232 201 226 232 2.646

1993 214 199 216 220 200 201 220 204 197 186 199 217 2.473

1994 236 217 235 244 250 224 199 264 206 250 205 238 2.768

1995 302 222 317 219 233 215 253 316 254 234 215 259 3.039

1996 239 254 294 295 286 240 281 318 267 317 296 275 3.362

1997 303 279 286 280 259 240 251 245 282 285 260 265 3.235

1998 310 274 320 245 237 217 237 277 223 294 282 277 3.193

1999 309 299 294 271 281 253 261 292 299 300 284 340 3.483

2000 347 311 312 285 283 257 270 315 319 325 299 297 3.620

2001 351 292 397 343 328 288 305 380 343 361 327 340 4.055

2002 396 361 416 409 419 376 428 430 427 444 438 437 4.981

2003 409 425 462 346 417 386 335 384 428 384 435 389 4.800

2004 437 396 396 409 382 321 365 353 382 375 347 396 4.559

2005 413 317 423 393 384 339 312 372 322 415 334 373 4.397

2006 436 392 381 359 336 349 356 385 390 413 366 399 3.877

2007 397 375 474 390 342 415 356 386 397 395 360 346 4.633

2008 416 361 396 392 321 415 436 465 463 488 506 436 5.095

2009 465 414 553 429 401 451 450 392 442 427 455 546 5.425

2010 481 473 447 437 403 402 439 436 472 494 462 527 5.473

2011 488 451 521 469 452 498 438 465 414 427 425 440 5.488

2012 508 483 482 460 1.933

Total Geral

85.151

Fonte: Instituto de Segurança Pública (ISP)

Diante das críticas e questionamentos de ongs e movimentos de direitos humanos, de

familiares de vítimas, de pesquisadores e de parte da mídia, entre outras instâncias, o

Secretário Estadual de Segurança Pública José Mariano Beltrame encomendou ao ISP uma

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92

pesquisa sobre desaparecimento. A pesquisa foi realizada e a principal conclusão a que se

chegou era a de que não havia uma relação direta entre desaparecimentos e homicídios. No

dia 13 de novembro de 2009 foi a vez do consultor da pesquisa, o professor e sociólogo

Gláucio Soares, publicar um longo artigo também no jornal O Globo, apresentando alguns

resultados da pesquisa e defendendo que “desaparecimentos e homicídios não são farinha do

mesmo”. Em um trecho do artigo lia-se:

A notícia de que havia uma pesquisa sobre desaparecidos, realizada pelo ISP, gerou muitas especulações. As mais radicais afirmavam que muitos, talvez a maioria, eram vítimas de homicídios, cujos corpos não tinham sido encontrados. Essa hipótese, baseada em chute, é errada. Desaparecimentos e homicídios não são farinha do mesmo saco. A análise de perfis não deixa dúvida: a predominância dos homens é muito maior entre as vítimas de homicídios: 92%, contra 62% entre os desaparecidos. As mulheres representam menos de 10% das vítimas de homicídios, mas representam quatro de cada dez desaparecimentos registrados. (Gláucio Soares)

Do ponto de vista político, esta conclusão teve como principal objetivo desqualificar

as críticas que buscavam apontar o desaparecimento como uma forma de encobrimento de

homicídios. A seguir, no quadro abaixo, apresento alguns dados e algumas problematizações

da pesquisa do ISP:

Alguns dados e problematizações da pesquisa do ISP sobre desaparecimento

• A partir do material da pesquisa realizada pelo ISP foi organizada uma

publicação que integra a coleção Instituto de Segurança Pública, Série

Análise Criminal. Segundo o texto de apresentação esta pesquisa

buscou responder ao “desafio de estudar os casos das pessoas

desaparecidas no Estado, pois muito tem sido dito sobre o tema sem

uma análise mais aprofundada”. E esclarece ainda que: “Na época em

que o projeto foi elaborado havia uma forte demanda por informações

por parte da opinião pública, em virtude de diversas notícias que

associavam o aumento dos desaparecimentos a um problema atual e

ligado a dinâmicas de crimes, como os homicídios dolosos”.

• A publicação tem como título “Desaparecimentos: o papel do policial

como conscientizador da sociedade” e, como se nota pelo título, visa

orientar o policial a como lidar com casos de desaparecimento. A

publicação defende que “a palavra-chave para evitar o desaparecimento

é comunicação” e chama atenção para a necessidade do policial

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93

preencher o Registro de Ocorrência de forma completa. A pesquisa

constatou que, mesmo possuindo campos específicos que consideram os

contatos dos comunicantes, as características elementares da vítima

(sexo, idade, nome completo) e a descrição da dinâmica do

desaparecimento, estes dados muitas vezes não são preenchidos de

maneira adequada.

• Na publicação, os policiais são orientados a tentar extrair o máximo de

informações relevantes do comunicante do desaparecimento e transferi-

las para o Registro de Ocorrência com o objetivo de facilitar o

reconhecimento da vítima e as buscas por seu paradeiro. Ressalta ainda

que é importante que sejam mencionadas marcas de nascença,

cicatrizes, tatuagens, cor e corte de cabelo, se a pessoa usava óculos, a

roupa com a qual a pessoa foi vista pela última vez, se houve uma briga,

se a pessoa estava deprimida, se tomava algum remédio e qual era essa

medicação, se fazia uso de substâncias ilícitas ou de álcool.

• Os policiais também são orientados a evitar julgamentos pessoais “na

medida do possível” e a não esperar para registrar o desaparecimento. A

Lei Federal nº 11.259, de 30 de dezembro de 2005, acrescenta

dispositivo à Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e

do Adolescente), para determinar a investigação imediata em caso de

desaparecimento de criança ou adolescente.

• Os dados da pesquisa foram provenientes das ocorrências registradas

pela Polícia Civil, referente ao ano de 2007: 4.423 casos.

• Com base nas entrevistas realizadas foi selecionada uma amostra de 456

casos (10% do banco de dados) de desaparecidos de 2007.

• A distribuição das vítimas na cidade do Rio de Janeiro ocorreu da

seguinte forma: Zona Norte: 46,2%; Zona Oeste: 37,4%; Centro: 8,7%;

e, Zona Sul: 7,6%.

• 71,3% dos desaparecidos haviam reaparecido vivos; 14,7% não

reapareceram; 6,8% reapareceram mortos; 4,4% sem informação; e

2,9% a família informou não ter havido desaparecimento (mesmo

constando um Registro de Ocorrência). Cabe ressaltar que, dos 6,8%

(31 casos) que reapareceram e estavam mortos, 18 foram casos de

homicídios dolosos. Destes casos, 9 homicídios foram verificados nos

registros de ocorrência da polícia civil do Estado do Rio de Janeiro

(ROweb). Outros 5 foram verificados através do banco de dados de

mortalidade fornecido pela Secretaria de Estado de Saúde e Defesa Civil

do Estado do Rio de Janeiro. Os demais (4) não possuem registros,

sendo baseados na fala dos comunicantes durante as entrevistas.

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94

• Segundo os dados apresentados pelo ISP, 6,8% dos desaparecidos

reapareceram mortos. De 31 desaparecidos que reapareceram mortos, 18

foram vítimas de homicídio doloso. Acrescente-se que 14,7% não

reapareceram. O que aconteceu com esta fração de desaparecidos que

não reapareceu? Os desaparecidos que apareceram mortos mas não

foram vítimas de homicídio doloso foram vítimas de quê? Quais as

circunstâncias destas mortes?

• O universo amostral pesquisado leva em consideração apenas o ano de

2007 e aponta que 6,8% apareceram mortos. Por comparação e

considerando mais ou menos estas mesmas taxas para os outros anos

(lembrando que a comparação pode não corresponder à realidade na

medida em que há uma subnotificação de casos), poderíamos, de forma

hipotética, aplicar esta mesma taxa de 6,8% ao número total de registros

correspondente ao período de janeiro de 1991 a abril de 2012. De

maneira estimativa 6,8% equivaleria ao número absoluto de

aproximadamente 5.790 casos de desaparecimentos equivalentes a

desaparecidos-mortos ou não encontrados, de um total de 85.151. Ou

seja, ainda assim um número altíssimo.

Se a violência policial aparece questionada e denunciada pelos altos índices de autos

de resistência, com relação aos desaparecimentos de pessoas a dificuldade para comprovar a

participação policial em muitos desses casos pode ser mais difícil em razão do “sumiço” dos

corpos, mas não significa que tal participação não exista. Vez ou outra um caso ganha

publicização e repercussão, levantando dúvidas a respeito do envolvimento de policiais. Um

dos casos mais antigos, nesse sentido, foi a chacina de Acari (1990), que resultou no

desaparecimento de onze jovens que jamais foram encontrados e que denúncias apontavam

relações com um grupo de extermínio apelidado de “Cavalos Corredores”, formado por

policiais militares, do 9º Batalhão de Rocha Miranda, assim denominados em razão da forma

aterrorizante como entravam em favelas. Dois casos mais recentes que mobilizaram a opinião

pública, envolvendo a participação de policiais, foram os desaparecimentos da engenheira

Patrícia Amieiro, moradora da Barra (2008), e o do menino Juan (2011), numa favela em

Nova Iguaçu. Trabalhei detalhadamente o caso Acari em Araújo (2007); o caso da engenheira

da Barra desaparecida será relatado no capítulo seguinte. A seguir, apresento em linhas gerais

o “caso Juan”, a partir da cobertura jornalística.

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2.4.3. A polícia que mata e oculta os corpos e a perícia que não consegue identificar

Em junho de 2011, um caso envolvendo o desaparecimento de uma criança –

posteriormente caracterizado como homicídio – circulou na mídia, mobilizou vários atores

sociais e gerou críticas e protestos contra a atuação desastrosa das instituições estatais,

especialmente aquelas ligadas à área de segurança pública. No dia vinte do referido mês e

ano, durante uma operação policial na favela Danon, em Nova Iguaçu, o menino Juan Moraes,

de onze anos, desapareceu e, após dezesseis dias, seu corpo foi encontrado na beira do Rio

Botas, em Belford Roxo.

Os policiais que participaram da operação relataram que houve uma troca de tiros

próxima a um beco da favela Danon. Durante o confronto, um rapaz de dezessete anos foi

morto e outro de dezenove foi reconhecido por policiais na Unidade de Pronto Atendimento

(UPA) de Cabuaçu como sendo um dos envolvidos no tiroteio, e o acusaram de tráfico de

drogas e tentativa de homicídio. O jovem que foi baleado no tiroteio foi preso em flagrante e,

segundo a PM, teria atirado nos policiais, mas, em 24 de junho, o tenente-coronel Sérgio

Mendes reconheceu que a arma encontrada era de outra pessoa. O rapaz ficou preso até o dia

29 de junho, quando a Justiça mandou soltá-lo.

O irmão de Juan (o garoto desaparecido), de nome Wesley Moraes, foi baleado nas

costas e na perna. Os policiais também chegaram a acusar Juan e Wesley de serem traficantes

de drogas e as mortes foram registradas pelos policiais como auto de resistência. Entretanto, o

caso tornou-se um escândalo público quando, com a realização da perícia, descobriu-se que

todas as cápsulas de bala eram das armas dos policiais.

No dia seguinte ao suposto tiroteio, os pais de Juan registraram o desaparecimento na

56ª Delegacia de Polícia (Comendador Soares) e, em 23 de junho, a pedido da Comissão de

Direitos Humanos da Alerj, A Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil (Core)

passou a dar proteção a Wesley, que estava internado no Hospital Adão Pereira Nunes, em

Saracuruna. No dia 27 de junho, a Delegacia de Homicídios assumiu o caso e peritos do

Instituto Carlos Éboli fizeram perícia em cinco viaturas do 20º Batalhão. Em todos os carros

os peritos encontraram sangue e os dados de todos os GPS não confirmaram o trajeto de 18

quilômetros entre o local do crime e o Rio Botas, onde o corpo foi encontrado. A

possibilidade de um carro particular ter sido utilizado para fazer a “desova” do corpo também

foi investigada. No dia seguinte, peritos vão pela primeira vez ao local do crime e encontram

o chinelo de Juan com sangue.

Todo o desdobramento das investigações do caso foi marcado por erros e pelo

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desencontro das informações por partes das autoridades responsáveis. O maior dos erros

provavelmente foi o laudo, elaborado por uma perita do Posto Regional de Polícia Técnico

Científica de Nova Iguaçu, atestando que os restos mortais encontrados à beira do Rio Botas,

em Belford Roxo, era de uma menina e não de Juan, fazendo com que as investigações

continuassem. Uma nota à imprensa foi divulgada, no dia 30 de junho, com o seguinte teor:

O corpo de uma criança encontrado, nesta quinta-feira, na localidade Rio Botas, em Recantos, Belford Roxo, foi encaminhado pelo Corpo de Bombeiros para o Posto Regional de Polícia Técnico Científica (PRPTC – Nova Iguaçu)... Os peritos entraram em contato com o diretor do Departamento Geral de Polícia Técnico Científica (DGPTC), Sérgio Henriques, que determinou que preliminarmente, a partir de análise do esqueleto, fossem realizados exames para identificar o sexo da criança. Confirmado se tratar do corpo de uma menina, o diretor do DGPTC entrou em contato com a chefe de Polícia, delegada Martha Rocha. A delegada determinou que o mesmo tratamento que seria dado ao corpo do menino Juan de Moraes fosse dado ao corpo da menina, ainda não identificado. A chefe de Polícia determinou ainda que seja colocada à disposição da criança toda a tecnologia existente no IMLAP. Serão realizados exames de DNA, pailoscopia, da arcada dentária, antropológico, entre outros. [Nota à imprensa: Corpo encontrado em Belford Roxo (Caso Juan). In: O Globo, Caderno Rio, p. 21]

O erro da perícia foi muito criticado por especialistas e pelos veículos de

comunicação20. A perita e o delegado responsável pelo início da investigação foram afastados

20 O trabalho de recuperar a identidade de despojos humanos anônimos deu origem, em 1984, a uma organização hoje mundialmente famosa de peritos, a Equipe Antropológica Forense da Argentina (EAFA), que tem atuado desenterrando e identificando os restos mortais de argentinos “desaparecidos” durante a ditadura militar dos anos de 1970 e 80. A partir da experiência argentina, a equipe, ou membros dela, tem sido convidada para atuar em vários cenários de guerra e violência política. Um registro muito interessante desse tipo de trabalho foi feito pela antropóloga forense inglesa Clea Koff, que integrou a EAFA e participou como técnica forense de várias missões para o Tribunal Penal Internacional das Nações Unidas em Ruanda e na antiga Iugoslávia. Eis um trecho do relato de Koff sobre seu trabalho: “Tornara-me antropóloga forense por dois motivos: um, porque fazer os ossos falar era o que mais queria; o outro, porque a primeira vez que me encontrei confrontada com um corpo morto para análise antropológica senti muitas emoções, mas angústia não. Quando analiso despojos humanos, estou interessada, não sinto repulsa. Os ferimentos excitam uma curiosidade em mim a respeito dos instrumentos que os terão provocado – não me assustam. Até as larvas – embora não sejam a minha forma de vida preferida – num corpo morto têm para mim significado, apesar do meu conhecimento mínimo de entomologia forense (de facto, a ciência de fazer com que os 'insetos' falem sobre o tempo desde a morte à localização do corpo). Não se perturbar com os ossos, corpos e ferimentos é uma espécie de exigência básica da tarefa. Ao trabalhar no terreno, perturbam-me as escavações infrutíferas, mas assim que desenterramos despojos humanos, sinto-me revitalizada e até feliz. Pensava que estes sentimentos positivos surgiam naturalmente; não tinha tido consciência de envolver activamente o meu espírito num manto de distância antes de analisar restos mortais humanos ou de exumar cadáveres de valas comuns. É certo, por vezes sentira-me perturbada depois do trabalho porque começava a ruminar assuntos de dor ou medo ou do que quer que fosse que marcasse os últimos momentos de alguém antes de o conhecer como corpo morto. Mas ter assuntos da vida a imiscuírem-se tão dolorosamente nos meus pensamentos enquanto estava a trabalhar preocupava-me profundamente. A dupla visão era perigosa, fazia com que olhasse para um esqueleto como sendo o parente desaparecido de alguém com quem me poderia cruzar na rua: iria pôr em causa a minha resistência para o trabalho que tínhamos de fazer, especialmente se em qualquer altura baixasse um véu sobre os meus olhos. Sabia que a minha perturbação era característica dos antropólogos forenses a executarem o volume de trabalho de assistência social que eu estava a fazer e a exumar na cena dos assassínios em massa que deram azo ao trabalho de assistência. Era a combinação destes factores que me levava a sentir que os ossos quase me estavam a gritar e era o cansaço baseado no stress sob que estava a trabalhar que

Paula Lacerda
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e dois procedimentos foram abertos, um para analisar o laudo da perita e outro para avaliar a

atuação policial no caso. Após a chefe da Polícia Civil receber o primeiro laudo e afirmar

publicamente que não se tratava do garoto Juan, ela teve que voltar atrás e admitir os erros.

Segundo o deputado Marcelo Freixo (PSOL), integrante da Comissão de Direitos Humanos

da Alerj, ainda faltava explicar se Juan havia sido torturado, já que a perícia havia identificado

pancadas na cabeça do corpo encontrado à beira do rio. Outro problema era que a perícia não

havia encontrado marcas de tiros no corpo, mas duas testemunhas ouvidas pelo deputado

afirmaram categoricamente terem visto Juan baleado.

Após tantos desencontros, a família de Juan só veio a ter conhecimento da

confirmação de que os restos mortais encontrados realmente eram de Juan através de

telefonemas de jornalistas. Ao confirmar a morte de Juan, a chefe de Polícia Civil lamentou

informar à imprensa antes que a família: “Eu queria ter dado essa notícia pessoalmente à

família. Mas como ela ingressou em um programa de proteção a Secretaria de Direitos

Humanos ficou responsável pela comunicação”. A mãe e o irmão de Juan, Wesley, voltariam

ao Rio para acompanhar o sepultamento.

2.4.4. Desaparecimentos, cemitérios clandestinos e encontro de ossadas

O caso Juan poderia ter sido mais um a figurar nas estatísticas de desaparecimento e

permanecer escondido em um dos muitos cemitérios clandestinos da cidade, como ocorre em

diversas outras situações. No dia 09 de outubro de 2007, o jornal O Dia, por exemplo,

publicou uma reportagem em que noticiava que investigadores da 62ª Delegacia de Polícia

haviam localizado um cemitério clandestino em um terreno na esquina das ruas Roberto

Silveira e Ataulfo Alves, na Favela Santa Lúcia, em Imbariê, Duque de Caxias, Baixada

Fluminense. A notícia informava ainda que dois corpos haviam sido desenterrados e os

policiais consideravam a possibilidade de um dos corpos ser de um adolescente desaparecido

há três semanas. Cogitava-se ainda a possibilidade de que outros seis corpos estivessem

enterrados no mesmo cemitério clandestino21. Notícias como esta não são raras e incomuns.

Selecionei três delas que apontam a relação entre desaparecimento/cemitérios

clandestinos/encontro de ossadas:

fazia com que os gritos fossem perturbadores” (Koff, 2006: 161-162). 21 Alex Martins, Jornal O dia, 09/10/2007.

Paula Lacerda
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Reportagem 1: Corpos achados na Baía de Guanabara podem ser indício de desova

Corpos achados na Baía de Guanabara podem ser indício de desova

Jornal O Dia Rio - A descoberta de sete corpos em meio ao material dragado no começo dos trabalhos de despoluição do Canal do Cunha, na Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, causou espanto a operários, técnicos e engenheiros que atuam no local, assim como a policiais e entidades da sociedade civil voltadas ao combate à violência no Rio de Janeiro. "É preciso acionar o que for possível para identificar esses corpos. Afinal, são pessoas, não apenas vítimas das guerras entre facções criminosas, como também podem estar ali corpos de pessoas sequestradas que nunca foram encontradas e de outros desaparecidos", afirma a cientista social Sílvia Ramos, uma das coordenadoras do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes. Sílvia tem a mesma opinião da delegada Renata Teixeira, da 37ª Delegacia de Polícia (Ilha do Governador), responsável pelo inquérito para apurar o caso, quando diz que se trata de uma área de desova usada pelos assassinos. A polícia acredita que os crimes foram cometidos em outros pontos e os cadáveres foram atirados da Linha Vermelha no canal. A coordenadora do centro explica que os grupos de extermínio são antigos, com 20 anos de atuação na cidade. "Eles nasceram da ideia de que a execução, o extermínio de pessoas, resolve o problema. Se continuar a dragagem, vão encontrar mais corpos, quem sabe até de pessoas que entraram de carro sem querer numa área de conflito e desapareceram." Os responsáveis pelas obras de despoluição do Canal do Cunha e do Canal do Fundão, acostumados a recolher geladeiras, fogões, móveis e até carcaças de automóveis, tomaram um susto ao deparar com os corpos, segundo o engenheiro Antônio da Hora, que coordena os trabalhos. A despoluição dos dois canais, há tempos fonte do mau cheiro enfrentado por quem chega ao Rio de Janeiro em vôos para o Aeroporto Internacional Galeão - Antonio Carlos Jobim, começou há um mês e é uma das exigências ambientais do Comitê Olímpico Internacional para a realização das Olimpíadas de 2016 na capital fluminense. Os R$ 194 milhões para a obra de despoluição vêm da Petrobras, como resultado do acordo entre a empresa, multada pelo vazamento de pelo menos 800 t de óleo da Refinaria Duque de Caxias (Reduc) na Baía de Guanabara, em 2000. Supervisionados pela Secretaria do Ambiente, por meio do Instituto Estadual do Meio Ambiente (Inea), os trabalhos têm assessoria tecnocientífica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A cientista social Sílvia Ramos diz que a identificação dos sete corpos encontrados, bem como de outros que possam aparecer durante a dragagem dos canais, deve ser "questão de honra para a Secretaria de Segurança". "As pessoas que vivem naquela região já são estigmatizadas, escondem seu endereço, dizem que moram na Penha ou em outro bairro, porque se contarem que moram no Complexo da Maré não arrumam emprego."

Fonte:http://odia.terra.com.br/portal/rio/html/2009/11/corpos_achados_na_baia_de_guanabara_podem_ser_indicio_de_desova_48066.html Data de acesso: 23/11/2009.

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Reportagem 2: Polícia encontra ossadas em campo de execuções da milícia na Zona

Oeste

Polícia encontra ossadas em campo de execuções da milícia na Zona Oeste

Por Marco Antonio Canosa – O Dia

Rio - A Polícia Civil fez uma grande operação para localizar um campo de execuções e cemitério clandestino, nesta quarta-feira, em Sulacap, na Zona Oeste do Rio.

A ação envolveu pelo menos 60 agentes das polícias Civil e Militar e do Corpo de Bombeiros, com auxílio de cães farejadores. Cinco ossadas foram encontradas no alto do Morro Cosme e Damião. Segundo delegado titular da Delegacia de Repressão ao Crime Organizado e Inquéritos Especiais (Draco-IE), Cláudio Ferraz, todas apresentavam sinais de execução por tiros. O delegado disse que as investigações apontaram que o local era usado por milicianos e traficantes ligados à facção Amigos dos Amigos (ADA). "Estamos trabalhando agora para descobrir a identidade das vítimas, mas já temos algumas pistas importantes e em breve vamos desvendar os casos", garantiu. O policial também disse ter certeza de que algumas das vítimas seriam bandidos ligados ao Comando Vermelho, sequestradas por milicianos sob encomenda de traficantes da ADA. As ossadas estavam espalhadas por uma grande extensão do terreno, em local de difícil acesso. "Como o local é muito ermo, eles nem tinham o trabalho de enterrar. Os corpos ficaram expostos à ação do tempo e de animais. Se fosse um período de chuvas, com certeza não encontraríamos", revelou o delegado. Pelas roupas e calçados das vítimas a polícia acredita que todos eram homens. A polícia ainda não sabe há quanto tempo o terreno vinha sendo usado para desova de corpos, mas acredita que não seja há muito e que as vítimas tenham sido executadas no local e seus corpos abandonados em diferentes ocasiões. O delegado disse que, com a identificação das vítimas, poderá determinar o período de uso do local pelos assassinos.

Fonte:http://odia.terra.com.br/portal/rio/html/2010/7/policia_encontra_ossadas_em_campo_de_execucoes_da_milicia_na_zona_oeste_92915.html Data de acesso: 01/07/2010.

Policiais da Draco (Delegacia de Repressão ao Crime Organizado) encontraram um cemitério clandestino em Sulacap, na Zona Oeste. As ossadas foram encontradas no alto do morro da favela

Minha Deusa. Foto de Alessandro Costa / Agência O Dia

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Reportagem 3: Policiais do Bope escavam Piscinão de Ramos a procura de corpos

Policiais do Bope escavam Piscinão de Ramos a procura de corpos

Rio - Policiais do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) escavaram o Piscinão de Ramos, na Zona Norte do Rio, a procura de corpos e armas que estariam enterrados no local. A ação fez parte da Operação Guilhotina, desencadeada na manhã desta sexta-feira, a partir de informações de que milicianos atuantes na Favela Roquete Pinto, no bairro, utilizariam o local como cemitério clandestino de traficantes rivais assassinados. De acordo com a polícia, os criminosos utilizariam o Iate Clube de Ramos, localizado nos arredores da região, para torturar e matar seus algozes, enterrando os corpos na areia do Piscinão. Os policiais utilizaram uma retroescavadeira na operação mas, no entanto, nada foi encontrado. A milícia da Roquete Pinto é um dos principais alvos da Operação Guilhotina. Policiais federais cumprem 45 mandados de prisão nesta sexta-feira, sendo que 21 deles são relativos a membros desta quadrilha. Ação mobiliza 580 homens

A Operação Guilhotina foi deflagrada pela PF na manhã desta sexta-feira, com o apoio de 200 agentes da Secretaria Estadual de Segurança Pública (SSP) e do Ministério Público Estadual (MPRJ). O objetivo é cumprir 45 mandados de prisão preventiva - sendo 11 contra policiais civis e 21 contra policiais militares - e 48 mandados de busca e apreensão. Até o momento, 28 pessoas foram presas, sendo 16 PMs e seis civis. Cerca de 380 homens da PF participam da ação, que ainda investiga a ligação dos policiais com venda de armas e informações e o chamado "espólio de guerra", que é a subtração de produtos de crime encontrados em operações policiais, como ocorrido na recente ocupação do Complexo do Alemão. Os agentes contam com o apoio de lanchas e helicópteros na operação. As investigações iniciaram a partir do vazamento de informações numa operação conduzida pela PF em 2009, que tinha como principal objetivo prender o traficante Rupinol, que atuava na Favela da Rocinha junto a Nem, apontado como o chefe do tráfico na comunidade. De acordo com a Polícia, um grupo de policiais é suspeito de receber até R$ 100 mil por mês para proteger Nem e o avisar sobre operações no local. A partir daí, duas investigações paralelas foram iniciadas, uma da Corregedoria Geral Unificada da SSP e outra da Superintendência da PF. A troca de informações entre os serviços de inteligência das duas instituições deu origem ao trabalho conjunto desta manhã. Entre os procurados pela operação, está o delegado Carlos Antônio Luiz Oliveira, que é ex-subchefe da Polícia Civil. Ele é considerado foragido da Polícia Civil, uma vez que PFs chegaram nesta manhã com um mandado de prisão à sua casa em Campo Grande, Zona Oeste da cidade, e não o encontraram. Na manhã desta sexta-feira, as 17ª (São Cristóvão) e 22ª (Penha) DPs ficaram momentaneamente fechadas para que policiais pudessem cumprir mandados de busca e apreensão nas distritais. A delegada Márcia Beck - titular da delegacia da Penha e que já havia trabalhado na DP de São Cristóvão - foi detida. O delegado Ângelo Fernando Gióia, superintendente da PF, disse que durante os trabalhos dos agentes a delegada "exerceu uma conduta que as autoridades entenderam por bem levá-la para prestar esclarecimentos", até mesmo por ela ser a responsável por aquela distrital.

Fonte:http://odia.terra.com.br/portal/rio/html/2011/2/policiais_do_bope_escavam_piscinao_de_ramos_a_procura_de_corpos_143691.html Data de acesso: 11/02/2011

Numa visita ao Ministério Público, para uma conversa com o subprocurador de

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direitos humanos Leonado Chaves, o mesmo me afirmou que era muito difícil fazer uma

denúncia de desaparecimento forçado em razão da falta de provas. Para ilustrar a dificuldade

ele me contou um caso que ouvi outras vezes durante o trabalho de campo, que consistia, mais

ou menos, na história de um homem rico que foi visitar os primos numa cidade do interior e,

após a visita, repentinamente sumiu sem deixar vestígios e sem que ninguém soubesse de seu

paradeiro. Diante de sua riqueza e da condição de pobreza dos primos que foi visitar logo se

iniciaram as suspeitas de que os primos pobres o teriam matado e desaparecido com o corpo.

Os primos pobres chegaram a ser presos, porém, posteriormente, o primo rico reapareceu

vivo, desfazendo a suspeita. Por outro lado, o subprocurador Leonardo Chaves chamou

atenção para o fato de que os dados sobre desaparecimento devem ser cruzados com outros,

como encontro de ossadas e encontro de cadáveres, argumentando que, apesar das

dificuldades para construção de provas legais, não se pode afirmar que os desaparecimentos

forçados não existam.

Uma pesquisa recente conduzida por Patrícia Rivero e Ruth Rodrigues, no âmbito do

Ipea, também sugere a relação entre desaparecimentos e cemitérios clandestinos: “Uma

categoria que não tipifica crime mas que vem em aumento e tem sido vinculada à aparição de

cemitérios clandestinos é a de desaparição”. E ainda:

A distribuição das ameaças e desaparições deve ser levada em consideração, já que significam possíveis perigos à integridade das pessoas e podem estar relacionadas em alguns casos com os crimes. Chamam atenção as altas taxas de ameaças nas áreas do centro da cidade, que podem estar relacionadas com tráfico como também com outro tipo de delito. No caso das altas taxas de ameaça na Zona Oeste pode estar denunciando a presença de um fenômeno que é mais recente do que o tráfico. Trata-se da ocupação de certos territórios pelas milícias (grupos de paramilitares, ex-funcionários de segurança pública que controlam territórios em troca de pagamento das populações pobres por serviços ilegais como gás, luz, etc.). Algumas pesquisas aprofundadas mostram que a ação das milícias parte do exercício da força da ameaça, força que aparece como simbólica mas que pode ser acionada através das armas (os milicianos não andam armados ostensivamente como os traficantes, mas está implícito entre os moradores que portam armas). As desaparições têm uma distribuição similar às ameaças, e podem estar relacionadas com diferentes formas de criminalidade: com as mortes em enfrentamentos entre facções do tráfico, com a ação letal de polícia e/ou com o domínio das milícias em alguns territórios. Não é por acaso que onde há um número expressivo de desaparecidos também há registros de ameaças e freqüentemente denúncias da aparição de cemitérios clandestinos. (Rivero e Rodrigues, 2009: s/n)

A hipótese de trabalho das autoras foi a de que as favelas e outros locais de moradia

precária seriam áreas especialmente vulneráveis como lócus de concentração das vítimas da

violência. A pesquisa buscou identificar as condições que poderiam facilitar a vitimização, as

atividades ilegais e/ou criminais em espaços territoriais de favelas, comparando estes espaços

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com as características da cidade. Os dados da pesquisa apontaram uma correspondência entre

a disposição das áreas com maior número de vítimas e a disposição das favelas na cidade.

Neste sentido, já argumentei no início desta tese e volto a lembrar que a favela, pelo seu

histórico de constituição como “problema” e atualmente pela concentração da maior parte das

mortes violentas em seu entorno, tornou-se um lugar-trauma.

Numa visita à Defensoria Pública, à procura de dados para esta pesquisa, a defensora

que me recebeu se disse muito entusiasmada com minha pesquisa, porque, segundo ela, o tipo

de desaparecimento que eu desejava estudar vinha se tornando uma prática cada vez mais

crescente, mas ainda correspondia ao lado “invisível” dos casos de desaparecimento. Segundo

ela, a Defensoria Pública tem sido muito procurada por familiares em busca de ajuda, e os

casos que têm aparecido apontavam o envolvimento de milicianos nos desaparecimentos. Os

familiares, ao serem informados de que, para que a Defensoria Pública possa fazer alguma

coisa, eles precisam primeiro fazer um registro de ocorrência na polícia, desistem de levar o

caso adiante, por medo.

2.5. Rumores de desaparecimento forçado

Há vários indícios da prática do desaparecimento forçado, entretanto, eles

permanecem na zona dos rumores. Alguns desses rumores podem ser encontrados nos

registros de desaparecimento que fiz a partir do site do Ministério da Justiça e nos Registros

de Ocorrência Policial, relativos ao ano de 2008, aos quais tive acesso. O formato, tanto dos

registros no site do Ministério da Justiça como nos Registros de Ocorrência, inclui dados

sobre identificação, descrição física, localização, informações para contato e circunstâncias do

desaparecimento. Organizei, na tabela abaixo, uma pequena lista com alguns relatos de caso,

sem identificação e apenas com as circunstâncias de alguns desaparecimentos, como

aparecem no site do Ministério da Justiça e nos Registros de Ocorrência:

Alguns casos registrados no site do Ministério da Justiça Caso 1 Relato das circunstâncias do desaparecimento: “O adolescente estava numa casa em Jardim Bom Pastor, em Vilar dos Teles, quando ele e mais 4 adolescentes foram levados pela polícia. Até hoje não teve nenhuma notícia dele”. Caso 2 Relato das circunstâncias do desaparecimento: “Saiu de moto com 2 amigos.

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Segundo informações, eles passaram por um grupo de extermínio e desapareceram”. Caso 3 Relato das circunstâncias do desaparecimento: “Se encontrava na Avenida Paulo de Frontin quando foi levado por homens a paisana que se diziam policiais”. Caso 4 Relato das circunstâncias do desaparecimento: “O adolescente estava perto de casa quando houve uma operação policial e troca de tiros. A vizinhança viu quando um carro vermelho parou e algumas pessoas armadas algemaram o adolescente e o fizeram entrar no carro”. Caso 5 Relato das circunstâncias do desaparecimento: “O rapaz estava conversando com mais dois amigos no bairro Miguel Couto quando a polícia pegou os três. Nunca mais a família teve notícias”. Caso 6 Relato das circunstâncias do desaparecimento: “O adolescente foi pego com outro rapaz por PM em Barros Filho”. Caso 7 Relato das circunstâncias do desaparecimento: “Foi pego por um carro de polícia e não apareceu mais”.

Alguns casos registrados em Boletins de Ocorrências (Ano 2008)

Caso 1 Declaração do comunicante: “A declarante comparece para fins de atender intimação desta DP, aduzindo que soube que o seu filho tinha sido morto, mas que não tem a certeza absoluta, sendo que soube de tal por ‘papos’ falados na comunidade onde morava, visto que reside em outro lugar, cujo endereço já está registrado neste RO; que não pode nomear nomes dos amigos que estavam com seu filho quando ele foi para o baile em Duque de Caixas, nem mesmo sabe informar qual era o clube onde tal baile se realizava; que a declarante soube que a provável morte de seu filho ter-se-ia dado no dia 04 de novembro, na circunscrição da 59a DP, mas não sabe nada além disso; que foi ao IMLAP de quase todos os municípios, menos o de Niterói, mas não encontrou o corpo do seu filho, como também foi a diversos hospitais, ficando sem sucesso na procura; que soube que seu filho, ao chegar ao baile, foi agarrado por outras pessoas, estranhas ao grupo em que ele estava, e foi levado alhures para ser morto, mas que, se isso aconteceu, não sabe o motivo; que, se souber de algo que seja de interesse à investigação, virá comunicar à AP. Nada mais disse.” Caso 2 Declaração do comunicante, que comparece nesta delegacia para comunicar o desaparecimento de seu irmão [nome]: “Que [nome do irmão] morava sozinho, próximo ao Piraquê, na Estrada da Matriz, em Pedra de Guaratiba; que no momento não sabe informar o endereço completo de [nome do irmão]; que ele foi visto pela última vez pelo dono de um bar localizado próximo à residência dele, em companhia de uma senhora conhecida como [nome]; que não sabe dar maiores informações sobre essa mulher; que na localidade e no local onde ele trabalha comenta-se que ele foi morto; que no entanto não sabe informar como o fato teria ocorrido; que [nome do irmão] trabalha como guardador de veículos na praia do Pepê; que ele é usuário de drogas; que [nome do irmão] não tinha dívida de drogas; que [nome do irmão] comentou que estava recebendo ameaças de morte, mas não disse de quem e nem o porquê; que esteve na casa de [nome do irmão]; que a porta da casa estava arrombada; que no entanto todos os objetos estavam dentro da casa; que [nome do irmão] nunca desapareceu antes; que [nome do irmão] não se consultava regularmente com um

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dentista; que não sabe informar se [nome do irmão] tinha algum inimigo; que [nome do irmão] compra a droga que usa na favela da Rocinha e vai para casa; que os amigos de [nome do irmão] são da praia do Pepê; que [nome do irmão] não tem cicatrizes ou tatuagens; que seus olhos são verdes; que ele está sem os dentes da arcada dentária superior; que eles foram arrancados por milicianos no início do ano; que não sabe informar os nomes nem dizer de onde são esses milicianos; que acha que isso deve ter ocorrido por causa das drogas; que apresenta uma fotografia recente para ser juntada ao procedimento. E mais não disse”. Caso 3 Declaração da comunicante: “Diz que a ultima vez que esteve com o seu filho vitimado foi no último sábado retrasado, aproximadamente às 13h, à Avenida Guilherme Maxwell (no conjunto do Fogo Cruzado), até hoje não apareceu em lugar nenhum. Essa comunicante informa que o vitimado é viciado, não sabendo a procedência do vitimado, razão de ter comparecido a essa UPJ, a fim de fazer esse RO. De acordo com todas as alegações acima e nada mais a relatar”.

Tentei, neste capítulo, apresentar um quadro panorâmico sobre o fenômeno do

desaparecimento de pessoas. Para isso considerei dois períodos históricos que representam

formas diferentes do enquadramento da questão. Argumentei que, durante as ditaduras civis-

militares, o desaparecimento forçado deu origem à figura do desaparecido político e que, no

período pós-ditatorial, no Brasil, um novo debate sobre o desaparecimento de pessoas tem

ganhado forma. Em oposição aos desaparecidos políticos, Oliveira (2007), por exemplo,

sugeriu o uso do termo “desaparecidos civis”. Também chamei a atenção para o fato de que as

circunstâncias dos desaparecimentos são diversas e podem referir-se a um conjunto bastante

heterogêneo de situações (fuga do lar, rapto, sequestro, extermínio etc.), podendo inclusive ser

voluntárias ou involuntárias. Entretanto, apesar da pluralidade semântica que a categoria

desaparecimento abarca, a questão do desaparecimento forçado tem tido pouca visibilidade

nesse debate. Na maior parte das vezes, a referência à prática do desaparecimento forçado é

feita apenas para falar dos desaparecimentos políticos.

Nesse sentido, gostaria de concluir este capítulo, retomando o argumento apresentado

inicialmente de que, se o desaparecimento forçado constituiu-se como forma de repressão

política durante as ditaduras latino-americanas, hoje o desaparecimento forçado perdura e

corresponde a uma prática do repertório da linguagem da violência urbana. A figura do

desaparecido pode ser inclusive uma imagem, ou um ponto de partida, para se pensar a

transição da ditadura à democracia, seus dilemas e desafios. Se o desaparecimento foi uma

política institucionalizada, de modalidade repressiva, durante a ditadura, atualmente é uma

prática extraoficial mas que continua a ser cometida por agentes oficiais e não oficiais, sendo

seus principais protagonistas hoje, no caso do Rio de Janeiro, três personagens principais

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presentes no imaginário da violência urbana: traficantes de drogas, policiais e milicianos.

Cabe ainda ressaltar a difícil definição das fronteiras entre policiais e milicianos, na medida

em que os milicianos são policiais, ou ex-policiais, sem fardas, que utilizam dos recursos

políticos que sua condição de agente do Estado ou seus vínculos com estes proporcionam,

para vender “mercadorias políticas”22 (Misse, 1999).

Quando esta tese encontrava-se em fase final de redação tomei conhecimento de um

Projeto de Lei que se encontra em tramitação no Senado Federal que só reforça a pertinência e

a validade de meu argumento de que o desaparecimento forçado persiste como uma prática da

linguagem da violência urbana nos dias atuais. Trata-se do Projeto de Lei do Senado n.º 245,

de 2011, apresentado pelo senador Vital do Rêgo (PMDB), que objetiva acrescentar o artigo

149-A ao Código Penal brasileiro, para tipificar o crime de desaparecimento forçado de

pessoa, conforme recomendação das normatizações internacionais já existentes. Na

justificativa do projeto, destaca-se a permanência da prática do desaparecimento forçado e a

recomendação do direito internacional para que cada país elabore leis internais sobre o

assunto:

O desaparecimento forçado de pessoas é espécie de crime que provocou profundas marcas na sociedade latino-americana e na brasileira em especial, pois foi instrumento de assassinato de muitos cidadãos mediante política de repressão e, mesmo décadas depois, fomenta angústia em familiares e amigos diante da impossibilidade de acesso aos restos mortais das vítimas. Entretanto, equivocada é a percepção de pensar esse crime somente quando revestido de aspectos políticos, já que notamos com frequência o desaparecimento forçado de pessoas por outra motivação, como queima de arquivo, discriminação social, etc. Complexo, esse crime envolve várias condutas e agentes e, não raras vezes, culmina em tortura e morte, com ocultação de cadáver. Diante dessa realidade, sua definição tem sido delineada em tratados internacionais aprovados nesta Casa em dois sentidos: o da definição de uma figura típica comum e a de crime contra a humanidade. Neste último caso, tal qual está no Estatuto do Tribunal Penal Internacional, o crime é considerado como parte de ataque generalizado ou sistemático contra população civil. (Trecho da Justificação constante no Projeto de Lei 245, de 2011, do Senador Vital do Rêgo).

Após análise da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, em caráter

22 O conceito de “mercadoria política” é utilizado por Michel Misse, a partir de uma leitura da noção weberiana de “capitalismo político” e, de outro lado, com as questões teóricas implicadas por noções como “clientelismo”, “corrupção” e “extorsão”. Segundo Misse (1999: 299-300): “Mercadoria política é toda mercadoria cuja produção ou reprodução depende fundamentalmente da combinação de custos e recursos políticos, para produzir um valor-de-troca político ou econômico. O emprego de uso da força (ou a sua ameaça) para a realização de fins econômicos privados é a sua modalidade historicamente mais abrangente. Caberia falar em 'capitalismo político', como propôs Weber, quando essa atividade é exercida no interior de uma mesma formação social hegemônica, regulada estatalmente pelo monopólio do uso legítimo da violência e caracterizada pela mercantilização regulada e pacífica da propriedade privada dos meios de produção? Caberia também falar em 'dominação não-legítima', como propôs Weber para outro contexto histórico?”.

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106

terminativo, foi apresentado pelo relator do projeto, senador Pedro Taques, um substitutivo

considerando as contribuições encaminhadas por Luis Carlos dos Santos Gonçalves e Marlon

Alberto Weichert, membros do Ministério Público Federal. O substitutivo trazia duas

mudanças em relação ao projeto original. A primeira alteração propunha o aumento da pena

“para o tipo principal” de dois a seis anos de reclusão para seis a doze anos de reclusão e

multa e a segunda previa dois tipos qualificados de desaparecimento forçado: “o primeiro,

pelo emprego de tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou se do fato resultar aborto ou

lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, com penas de reclusão de doze a vinte anos e

multa, e o segundo, qualificado pelo resultado morte, com penas de reclusão de vinte a trinta

anos”23. O texto final ficou com a seguinte redação:

Art. 1º O Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, passa a vigorar acrescido do seguinte art. 149-A: “Desaparecimento forçado de pessoa

Art. 149-A. Apreender, deter, sequestrar, arrebatar, manter em cárcere privado, impedir a livre circulação ou de qualquer outro modo privar alguém de sua liberdade, em nome de organização política, ou de grupo armado ou paramilitar, do Estado, suas instituições e agentes ou com a autorização, apoio ou aquiescência de qualquer destes, ocultando ou negando a privação de liberdade ou deixando de prestar informação sobre a condição, sorte ou paradeiro da pessoa a quem deva ser informado ou tenha o direito de sabê-lo: Pena – reclusão, de 6 (seis) a 12 (doze) anos, e multa. § 1º Na mesma pena incorre quem ordena, autoriza, consente ou de qualquer forma atua para encobrir, ocultar ou manter ocultos os atos definidos neste artigo, inclusive deixando de prestar informações ou entregar documentos que permitam a localização da vítima ou de seus restos mortais ou mantém a pessoa desaparecida sob sua guarda, custódia ou vigilância. § 2º Para efeitos do presente artigo, considera-se manifestamente ilegal qualquer ordem, decisão ou determinação de praticar o desaparecimento forçado de uma pessoa ou ocultar documentos ou informações que permitam a sua localização ou a de seus restos mortais. § 3º Ainda que a privação de liberdade tenha sido realizada de acordo com as hipóteses legais, sua posterior ocultação ou negação da privação da liberdade, ou ausência de informação sobre o paradeiro da pessoa, é suficiente para caracterizar o crime. Desaparecimento forçado qualificado

§4º Se houver emprego de tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou se do fato resulta aborto ou lesão corporal de natureza grave ou gravíssima: Pena – reclusão, de 12 (doze) a 24 (vinte e quatro) anos, e multa. § 5º Se resulta morte: Pena – reclusão, de 20 (vinte) a 40 (quarenta) anos, e multa. § 6º A pena aumenta-se de 1/3 (um terço) até 1/2 (metade): I – se o desaparecimento durar mais de 30 (trinta) dias; II – se o agente for funcionário público; III – se a vítima for criança ou adolescente, idosa, portadora de necessidades especiais, gestante ou tiver diminuída, por qualquer causa, sua capacidade de resistência. Colaboração premiada

23 Parecer ao Projeto de Lei do Senado Nº 245, de 2011. Comissão de Constituição e Justiça (Substitutivo).

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§ 7º Poderá o juiz, de ofício ou a requerimento das partes, conceder a redução da pena, de um a dois terços, ao acusado que, sendo primário, tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo criminal, desde que dessa colaboração contribua fortemente para a produção dos seguintes resultados: I – a localização da vítima com a sua integridade física preservada ou; II – a identificação dos demais coautores ou partícipes da ação criminosa e das circunstâncias do desaparecimento. § 8º Os delitos previstos neste artigo são imprescritíveis. § 9º A lei brasileira será aplicada nas hipóteses da Parte Geral deste Código, podendo o juiz desconsiderar eventual perdão, extinção da punibilidade ou absolvição efetuadas no estrangeiro, se reconhecer que tiveram por objetivo subtrair o acusado à investigação ou responsabilização por seus atos ou tiverem sido conduzidas de forma dependente e parcial, que se revele incompatível com a intenção de submeter a pessoa à ação da justiça. Consumação do desaparecimento

§ 10 A consumação dos delitos previstos nesse artigo não ocorre enquanto a pessoa não for libertada ou não for esclarecida sua sorte, condição e paradeiro, ainda que ela já tenha falecido.”

Este Projeto de Lei recoloca na agenda pública e política a persistência da prática de

desaparecimento forçado, no entanto, raramente temos acesso a essas histórias, porque essas

histórias situam-se na região do rumor (Das, 2008e). E a fenomenologia do rumor, como

escreve Veena Das, é a expressão de uma ruptura da comunicação social e, enquanto tal, só

pode se manifestar como uma voz que não se atribui a ninguém e que ninguém reclama como

própria. O rumor situa-se numa região da linguagem cuja animação de uma memória social é

composta de relatos sociais incompletos ou interrompidos. Diante do terror e da política do

medo a linguagem se manifesta através do rumor, da fala fragmentada ou do não-falar, mas

que ao não-falar insinua, sugere. E o desaparecimento forçado corresponde a uma prática de

terror e a uma política do medo. Nesse sentido, captar tais histórias implica percorrer ruínas,

silêncios, lugares inusitados.

Walter Benjamin, ao elaborar suas famosas “teses sobre o conceito de história”, a

partir de uma perspectiva do materialismo histórico, rejeitava a concepção

historicista/positivista da história como “progresso” ininterrupto. Em sua crítica da história

burguesa dizia que não havia um único documento de cultura que não fosse também um

documento de barbárie e se posicionava contrariamente à ideia de que a tarefa do historiador

seria simplesmente representar o passado “tal como propriamente foi”. Não existe história

neutra, portanto, escrever a história dos vencidos deveria, em sua concepção, levar em conta

também a ruína e a destruição. Palavras como “ruína”, “montagem”, “imagens dialéticas”,

Paula Lacerda
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108

“constelação”, fazem parte do vocabulário benjaminiano24 e me foram muito sugestivas para

pensar uma concepção de trabalho para lidar com a questão dos desaparecimentos forçados.

Afinal, para levar meu objetivo de registrar as histórias de desaparecimento forçado dos dias

atuais adiante, o que tive que fazer foi exatamente percorrer rumores, ruínas, lidar com

fragmentos e, a partir daí, realizar minhas montagens, compor minhas constelações. Sem

qualquer intenção de amostragem estatística ou de totalidade, o que desejei fazer foi apenas

registrar um outro lado, pouco visível, da questão dos desaparecimentos. Registrar essas

histórias de desaparecimento forçado foi um trabalho antropológico e quase arqueológico, que

incluía visitar arquivos e documentos, percorrer favelas, hospitais, IMLs, delegacias, circular

em eventos, fazer contatos. São algumas dessas histórias, relatadas nos dois capítulos

seguintes, que compõem a parte II desta tese.

24 Para uma leitura das teses “Sobre o conceito de história” de Walter Benjamin, conferir Löwy (2005). Este livro de Löwy inclui também uma publicação das teses de Benjamin traduzidas por Jeanne Marie Gagnebin e Marcos Lutz Müller.

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PARTE II

A MEMÓRIA DAS TRAGÉDIAS

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3. O DRAMA DO DESAPARECIMENTO NARRADO DESDE OS FAMILIARES:

PEQUENOS MAPAS DA DOR

Os relatos dos familiares, principalmente das mães, constituem verdadeiras narrativas

sobre o terror e o sofrimento. Quando narram suas histórias estes familiares falam da

violência que se abate sobre suas vidas, seus locais de moradia, do não acesso a direitos e à

justiça. Relatam experiências e percepções que os fazem sentirem-se como não cidadãos.

Direitos mais elementares como direito à denúncia, ao enterro dos filhos e a um atestado de

óbito ou de ausência, que comprove a morte, são negados a estes familiares.

As histórias apresentadas neste capítulo e no próximo expressam e denunciam a forma

como o desaparecimento de um filho ou de um parente afeta o sentimento de injustiça. Para

além da morte física de um ente querido, os relatos denunciam também a morte moral do

grupo familiar. Os relatos fazem emergir moralidades e categorias de entendimento com as

quais os familiares interpretam e dão sentido aos dramas que se abatem sobre eles. Essas

interpretações e categorias advêm, sobretudo, do universo moral que envolve as

representações, entre outras, sobre família, gênero, morte, sofrimento, violência e justiça.

3.1. As histórias que narram os familiares: memórias da dor e do luto

As histórias e os relatos apresentados a seguir são testemunhos do luto e configuram

pequenos mapas da dor, ao refazerem algumas trajetórias dos familiares diante dos casos.

Trata-se de um luto peculiar porque, em alguns casos, é desprovido de um dos elementos

fundamentais nos rituais de morte: o corpo. Em outros casos, há partes do corpo ou restos

mortais, o que só testemunha uma morte violenta, e não serve muito para aliviar a dor, embora

sirva para comprovar a morte.

Em um pequeno texto intitulado Luto, pobreza e representações da morte, Koury

(1993) analisa as relações entre luto, sofrimento e ausência de cidadania entre pessoas que

viviam de mendicância. Nesse artigo, ele relata o impacto que a morte de Maria, companheira

de um morador de rua, chamado no texto pelo nome de José, provocou nele. Embora a morte

seja uma constante na trajetória de vida de José e Maria, incluindo o falecimento de dois

filhos, ela raramente representa tristeza. Quando os dois filhos morreram, por exemplo, foi

como se já esperassem, numa espécie de luto antecipado. Afinal, a vida de mendicância, as

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111

andanças, a fome, tudo já indicava que o futuro seria a morte. Pelos cantos onde

perambulavam era comum o enterro de dois, três “anjinhos”: “Quem podia fazia um caixão

branco, quem não tinha nada, como ele e Maria, enrolava em um pano e saía em procissão até

o campo santo”. “Eram 'anjinhos' que já nasciam doentes e não tinham muito o que fazer”.

Embora a morte fosse uma constante, “os corpos eram acompanhados e as obrigações com

mortos cumpridas, realizando um ritual de passagem para a outra vida e garantindo aos que

ficavam todo um simbolismo que acalmava a ansiedade da dor e permitia a sua integração ao

corpo social, do qual foi afastado pelo desajuste causado pela perda” (Koury, 1993: 289-290).

Mas a morte de Maria foi diferente. O anonimato de sua morte foi motivo de

humilhação para José. Maria morreu atropelada, perto do local onde estavam acampados.

“Passou parte do dia no chão, no asfalto, à espera do Instituto Médico Legal (IML), a saia

levantada, rasgada. José arranjou um jornal e cobriu seu rosto, alguém arranjou uma vela”

(Koury, 1993: 290). No fim da tarde, o carro do IML apareceu e levou o corpo, que nunca

mais devolveram. Maria foi enterrada numa vala comum, com outros corpos não reclamados,

essa foi a informação passada a José quando este procurou saber que fim teria levado o

cadáver de Maria.

O processo de luto de José foi marcado pela tensão resultante da perda abrupta de

referenciais simbólicos relacionais que o construíram, como pessoa, ao longo da vida.

Segundo Koury, o anonimato da morte de Maria e a banalidade com que foi tratada

publicamente provocaram um esfacelamento da pessoa de José, aprofundando suas

dificuldades de integração social. Não bastasse a condição de pobreza, a desimportância com

que a morte da companheira foi tratada publicamente expressa, para José, a desimportância de

sua dor para os outros, e reforça sua condição de estar à margem do “social”. Como se seu

sofrimento estivesse fora das preocupações e do interesse social, aguçando a percepção e o

sentimento de ausência de cidadania.

Em relação aos familiares, ocorre algo similar ao descrito por Koury: a

impossibilidade de realização do trabalho de luto. A ausência do corpo, ou a presença de um

corpo destruído pela violência, juntamente com o tratamento indiferente e desprezível

recebido das instituições estatais que deveriam agir para resolver o caso, aprofundam um

sentimento de perda associado a atos e práticas de injustiça. O que os relatos dos familiares

apontam é que nem mesmo o sofrimento e o luto são reconhecidos, e esse não

reconhecimento significa a continuidade da violência e da injustiça. Para que o luto possa se

concretizar e se completar é preciso que a justiça se cumpra. Seu não cumprimento é sentido e

vivido como uma exclusão do mundo cívico.

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Como escreve Boltanski, na tópica dos sentimentos, uma das expressões mais plenas

da prova de humanidade dos seres humanos se manifesta na piedade. “O espetáculo do

sofrimento é a prova a qual os indivíduos devem ser afrontados para poder provar sua

humanidade. Esta prova é descrita na linguagem da sensibilidade e, mais particularmente, da

emoção” (Boltanski, 2007: 185). Entretanto, quando as condições não são propícias ao

reconhecimento da dor daquele que sofre, as memórias são compartilhadas em circuitos

restritos. Pode-se dizer que há um circuito restrito onde as memórias da tragédia são

compartilhadas e socializadas. A confiança é construída através dos laços de solidariedade que

se estabelecem a partir do compartilhamento da dor e do sofrimento da experiência

traumática. A lembrança da tragédia torna-se, assim, como escreve Candau, um recurso

identitário:

A memória das tragédias pertence ao registro dos acontecimentos que [...] contribuem para definir o campo do memorável. É uma interpretação, uma leitura da história das tragédias. É também uma memória forte. Memória das dores e memória dolorosa, memória da desgraça que é sempre “a ocasião de levantar as verdadeiras perguntas”, a memória das tragédias deixa marcas compartilhadas durante muito tempo por aqueles que as padeceram ou cujos seres queridos a padeceram, modificando profundamente suas personalidades. (Candau, 2001, p. 147-148).

A presença da morte e a dor provocada pelo corpo morto estimula a recorrência de

lembranças, conduz ao caminho da memória. No caso do desaparecimento, a ausência do

corpo, é um ponto de interrogação a partir do qual se compõe um quadro social da memória. A

circulação dos relatos em um nível mais privado ou mais público vai situar os casos ora em

um registro mais da emoção, ora em um registro mais da denúncia pública, mas sempre nessa

fronteira e tensão entre particularização e generalização.

3.1.1. A linguagem das emoções, o aprendizado da dor e o sofrimento como competência

política

Desde o início da pesquisa, esteve muito claro que estudar um evento crítico como o

desaparecimento forçado ou a execução de uma pessoa, enquanto uma prática do repertório

da linguagem da violência urbana, implicaria lidar a todo instante, durante toda a pesquisa,

com a questão do silêncio. Afinal, falar do desaparecimento significa tocar em recordações

dolorosas e, como escreve David Le Breton:

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113

O aparecimento de uma recordação dolorosa, no decorrer de uma conversa, corta o fôlego e obriga a uma recomposição ou a deixar caminho livre a um momento de emoção. Há então uma regra implícita que obriga o interlocutor a não insistir, a calar-se por sua vez durante um momento, antes de exprimir a sua solidariedade através do seu comportamento, por um olhar, uma palavra, pelo tom da sua voz... A dor interrompe a ligação social, criando uma solidão difícil de romper, a não ser pelo lento retorno ao prazer de viver. O sentimento dela é um factor pessoal, íntimo, que escapa a qualquer medida, a qualquer tentativa de a limitar ou descrever. As palavras, em relação aos outros, perdem o seu peso de conteúdo. É o embaraço de viver à margem de si próprio sem conseguir encontrar-se. A dor é um luto provisório ou durável do próprio eu, arrasta consigo a palavra. Fechada na obscuridade do corpo, a dor fica reservada à deliberação íntima do indivíduo. Há um indizível que esconde a linguagem, que prejudica a facilidade da palavra: o sofrimento, a separação, a morte não encontram palavras para se exprimir com intensidade suficiente. A língua fragmenta-se por momentos perante os conteúdos afectivos, demasiado poderosos, que varrem tudo à sua passagem. A dor quebra a voz e torna-a irreconhecível, suscita o grito, o lamento, o gemido, as lágrimas ou o silêncio, tanto por insuficiências da fala como do pensamento. (...) O grito nunca está longe do silêncio, duas formas próximas de assumir o luto da linguagem quando o sofrimento persiste. (Le Breton, 1997: 235-36)

A linguagem das emoções constitui para os familiares o dispositivo, por excelência,

para comunicar o sofrimento e buscar envolver os outros em suas dores, seus protestos e suas

reivindicações. As emoções dão forma ao protesto. A emoção é situada pelos familiares no

campo da prática política, sendo transformada e impregnada de significados políticos. Esses

familiares – as mães principalmente – fazem das emoções uma forma de expressar a denúncia

das mortes e desaparecimentos dos filhos e acusar os responsáveis.

Em todas as entrevistas que realizei com familiares, em algum momento ou situação

da entrevista o familiar chorou (ou choramos juntos), inclusive os homens entrevistados. Os

olhos se enchiam de lágrimas geralmente em dois momentos: quando falavam das boas

qualidades do filho, testemunhando sobre seu lado humano e buscando humanizá-lo, ou

quando falavam da forma brutal como se deu a morte. De repente, as lágrimas escorriam e um

clima de muita emoção tomava conta do ambiente e da situação.

Sobre o poder comovedor e contagiante das lágrimas, eis a citação seguinte de um

texto de Anne Vincent-Buffault, em que ela elabora uma história das lágrimas e mostra como

a leitura de romances no século XVIII influenciou a emergência de uma nova economia dos

signos corporais, modificando os gestos da emoção: Face às lágrimas de um ser humano é preciso participar ou compadecer-se. Raros são aqueles que não ficam emocionados com as lágrimas de um outro, sendo difícil reter as lágrimas diante daquelas que são derramadas. Esta tendência a emocionar-se com a dor alheia provoca curiosos fenômenos de contágio. Pouco a pouco, todos são vendidos pelas lágrimas. Desta forma é possível arrancar lágrimas até aos mais insensíveis. A uma dor visível responde-se com lágrimas. Nos enunciados romanescos frequentemente consola-se alguém, recolhe-se lágrimas, recebe-se lágrimas no seu seio. No romance existe uma obrigação de compadecer-se e de consolar. A frequência dessa situação indica que, face às lágrimas, existe uma

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resposta adequada, gestos apropriados. Como se fosse impossível deixar alguém chorar sem agir, ou seja, sem se aproximar e levar suas lágrimas em consideração. (Vincent-Buffault, 1988: 33-34)

“Entre silêncio e linguagem, correm as lágrimas”, como escreve Vincent-Buffault (op.

cit.,11). É nessa zona cinzenta, entre silêncio, linguagem e lágrimas, que a experiência de

sofrimento dos familiares é vivida, encenada, exorcizada, pública e privadamente. “Quando

os termos da troca não são a reciprocidade, tece-se o drama, e a inumanidade aparece” (op.

cit., 11). As lágrimas são signos que circulam e mais do que convidar a uma troca, expressam

um ideal de encontro, praticamente operando como imperativo que obriga aquele com quem

se interage a compartilhar a experiência.

O sofrimento dos familiares expressa-se através de um repertório de ação permeado

pela linguagem das emoções e cujos recursos incluem atos em memória dos filhos,

testemunhos, o choro e as lágrimas, as fotografias dos filhos, o desabafo e a indignação, a

raiva e certo sentimento de vingança. A luta é por justiça, mas nem por isso é possível negar

que, algumas vezes, emerge também certo sentimento de vingança, trabalhado com o tempo.

Vários familiares relataram que um dos primeiros sentimentos que tiveram quando ocorreu o

caso, junto com a dor, foi o desejo de vingança. Os familiares, quando entram em cena para

denunciar as mortes violentas dos filhos por policiais, produzem situações catárticas por onde

passam. Cada relato ou cada entrevista é um desabafo indignado e emocionado. O sentimento

de injustiça e de impotência diante da injustiça mata o sentimento de esperança e deixa os

familiares céticos em relação à justiça.

O tempo é um fator que transforma as emoções e os sentimentos. Transforma o

sentimento de vingança em luta por justiça, mas também traz decepção, frustração, resignação

e desencanto. Os familiares, com o tempo, aprendem a lidar com a dor, a transformá-la em

moeda política em seu favor. Lidar com a dor torna-se uma competência política e lidar com o

tempo, um dilema existencial.

Há uma dimensão performativa na forma como o corpo da mãe, diante da ausência do

corpo do filho, transforma-se em um recurso para expressão de uma linguagem do

sofrimento. O corpo dos familiares sente, fala e se expressa diante da ausência do corpo dos

filhos. A imagem da mãe segurando uma foto ou com uma reportagem de jornal noticiando a

morte do filho, buscando espaços para falar de seu caso e realizar sua denúncia, queixas e

protestos, tornou-se símbolo. A partir da noção de familiar de vítima constituiu-se um campo

de protesto onde o vínculo – principalmente o vínculo de parentesco – com a vítima, o morto,

é o que organiza o engajamento. A mesma análise que Pita faz da figura do familiar na

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argentina, serve para pensar os familiares daqui:

Los muertos – que ni muertos han perdido su nombre – operan en este sentido como una llave para la entrada al mundo moral de los familiares. Y ello sucede porque las formas de presentación de los muertos y las narraciones de las circunstancias en que han sido muertos por la policía hablan, no tanto de las relaciones sociales entre individuos vivos y muertos sino, fundamentalmente, señalaba más arriba, sobre las relaciones entre los vivos y, particularmente, sobre aquellas trazadas entre la sociedad civil y la policía. Los muertos se constituyen en un territorio de resistencia, sus nombres enarbolados son la prueba de una denuncia que no cesa, “hasta que se haga justicia”. A través de los muertos los vivos protestan y reclaman; sus muertos funcionan como demarcadores morales y son también generadores de nuevos actores sociales. Así, los muertos bajo estas circunstancias dan lugar al surgimiento del familiar (Pita, 2010: 17).

Os familiares expõem publicamente suas dores físicas e morais como forma de

despertar piedade e compaixão, além de reivindicar solidariedade. Transformam as emoções

numa via de expressão do protesto. Eles buscam engajar em seus sofrimentos aqueles que não

estão diretamente afetados pelo caso, e a via das emoções é uma das formas bem sucedidas

para isso. O imperativo ético de se engajar em uma ação para fazer cessar o sofrimento

daqueles que sofrem ganha força diante de estados emocionais. A exposição do sofrimento e o

clamor por ajuda e solidariedade através da exploração de uma linguagem das emoções são

recursos que se apresentam aos familiares. A dramaticidade é um fator que influi na

sensibilização e ampliação da circulação do caso Através da comoção que produz, visa

mobilizar o apoio e o engajamento de outros atores sociais. Os resultados positivos principais

geralmente são entendidos como sendo condenações de policias e indenizações financeiras.

Passemos então, agora, aos relatos de meus encontros com os familiares e do que

denominei pequenos mapas da dor. A ideia foi percorrer, através dos relatos, principalmente o

circuito que os familiares fizeram, descrevendo pequenas sequências de ação, com especial

atenção para os estados emocionais e para as experiências de sofrimento.

3.2. Izildete

Conheci Izildete25 numa manifestação em defesa do Estatuto da Criança e do

25 Alguns familiares pediram que seus nomes verdadeiros fossem mantidos no relato, porque entendiam que era mais uma forma de denunciar os casos. Em outras situações, principalmente quando não se tratavam de casos envolvendo denúncias públicas, os familiares solicitaram que fosse preservado o anonimato. Portanto, quando se tratar de casos públicos, ou quando solicitado ou permitido pelos familiares, os nomes verdadeiros serão mantidos. Por outro lado, nomes de pessoas e lugares foram alterados, também quando solicitados por meus informantes. Como observa Leite: “A categoria de 'mães de vítimas de violência’ também se constrói por

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Adolescente. Manifestação que foi simbolicamente programada para o dia 23 de julho de

2008: dia de aniversário da chacina da Candelária. Essa data foi incorporada ao calendário de

luta dos movimentos de direitos humanos, tornou-se um lugar de memória (Nora, 1993) da

luta contra a violência policial. Trata-se de uma data simbólica, associada ao luto

transfigurado em protesto, em razão de ser o dia em que os jovens foram exterminados numa

chacina. O evento foi organizado por entidades e organizações ligadas ao campo dos direitos

humanos. Contou com a presença de “familiares de vítimas de violência”, ONGs de direitos

humanos, participantes de projetos sociais ligados à infância e à juventude, estudantes

universitários, pesquisadores e militantes de partidos políticos. Nesse dia, conversei

rapidamente com Izildete, que estava com o filho cadeirante participando da manifestação.

Peguei seus contatos e fiquei de ligar para marcar uma entrevista.

No dia 15 de outubro de 2008, na tarde de uma quarta-feira quente e ensolarada, fui a

Queimados realizar a entrevista com Izildete. Quando entrei na rua em que Izildete morava,

ela já se encontrava do lado de fora do portão de sua casa, esperando por mim. Logo que

cheguei, a primeira coisa que Izildete me disse foi para não reparar na casa. Ela e os filhos

estavam, naquele momento, vivendo em condições bastante precárias. Ela me contou que sua

água havia sido cortada por falta de pagamento, e que a locatária da casa havia entrado na

justiça para exigir a reintegração de posse do imóvel. Segundo Izildete, por conta das

denúncias que ela vem fazendo, a locatária está com medo de que aconteça alguma tragédia

naquela casa, caso os policiais resolvam “fazer alguma coisa” com ela e os filhos.

3.2.1. Desaparecidos após uma abordagem policial

Seu filho Fábio e um amigo, de nome Rodrigo, estão desaparecidos desde 2003. O

desaparecimento ocorreu em um contexto de abordagem policial. Segundo ela, os jovens

foram abordados por quatro policiais que estavam numa viatura Blazer, ao voltarem de uma

festa junina realizada em um bar, no bairro São Roque. Segundo Izildete, a polícia afirma que

intermédio de uma alusão religiosa. O vínculo afetivo, que envolve intenso sofrimento com a perda do filho e fundamenta a credibilidade da mãe tanto para reclamá-lo quanto para doá-lo em prol de uma causa, aproxima cada uma e todas as mães de Maria, mãe de Jesus. No imaginário católico, Maria, mesmo sofrendo por seu martírio e morte na cruz, não se revoltou, nem odiou seus algozes. Perdoou-os, pois compreendeu que era necessário que um inocente morresse para a redenção de todos. Nesse sentido, o sacrifício de Jesus representa também parcialmente o sacrifício de sua mãe em aceitar essa perda e experimentar a dor de sua morte como uma doação à humanidade pecadora, mas também sofredora, que nesse movimento, é acolhida na condição de filha. Por isso mesmo, Maria desempenha na religião católica um certo lugar de mediadora, que se traduz na crença de que pedindo à Mãe o Filho atenderá” (2004: 159). Nesse sentido, aproveitando o simbolismo religioso presente na categoria “mães de vítimas de violência”, adotei como estratégia, para preservar o anonimato daquelas mães que assim o desejaram, nomeá-las por Maria e algum complemento, formando um nome composto.

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apenas “deu dura nos meninos” e os liberou. Fato é que os corpos dos dois jovens jamais

apareceram, tampouco voltaram os jovens vivos para contar o que se passou.

Izildete conta que tem enfrentado grandes dificuldades para levar o caso adiante em

razão da falta de informações, falta de provas, ameaças dos policiais e a burocracia das

delegacias e demais instâncias estatais por onde tem peregrinado em busca de solução para o

caso. A vida de Izildete tornou-se um verdadeiro calvário em busca do filho, peregrinando

para todos os lados em busca de informações sobre o paradeiro de Fábio.

Na entrevista Izildete disse que entrou para uma igreja após o desaparecimento do

filho. Quando a entrevista foi realizada ela frequentava a Igreja Mundial, mas, em conversas

posteriores, enquanto andávamos pelas ruas do bairro à procura de uma copiadora, ela

comentou de uma passagem pela Assembleia de Deus. Disse que na Assembleia de Deus

apareciam revelações relacionadas ao destino de seu filho desaparecido. Essas revelações a

incomodavam porque, segundo elas, o filho de Izildete estaria morto. Ela, por sua vez, ainda

hoje alimenta a esperança de encontrar o filho vivo. Acredita que o filho deva estar preso “em

algum lugar de onde não pode se comunicar”.

No lugar onde mora, rumores de casos de desaparecimento são constantes, segundo

Izildete. Ela disse que tomou conhecimento da história de uma mãe, vizinha sua, que teve

quatro filhos “desaparecidos”. Esse caso foi contado a ela e à pastora da igreja que ela

frequenta por outra “irmã”. Essa “irmã” da igreja, referindo-se ao caso da mãe que perdera os

quatro filhos, citou o nome de um lugar onde eles talvez pudessem estar. É um lugar, segundo

Izildete, “onde deixam as pessoas presas”.

Izildete cedeu-me vários documentos, incluindo reportagens de jornais, o registro de

ocorrência do caso, cartas que ela enviou e recebeu da governadora Rosinha Garotinho, carta

enviada ao presidente Lula, denúncia internacional do caso realizada pela ONG Projeto Legal,

ofícios e documentos diversos redigidos e encaminhados por entidades de direitos humanos

que, de algum modo, acompanharam ou instruíram Izildete. Queixa-se, no entanto, de que

todo seu reclame não deu em nada.

Na carta enviada ao então presidente Lula, ela contou a história do caso. Buscando

despertar o sentimento de piedade e compaixão, se apresentou, na carta, como uma “mãe

desesperada”, que vive em condições precárias de moradia, correndo o risco de ser despejada

porque não tem condições de pagar aluguel, sendo que o pouco que tem mal dá para ela e os

quatro filhos se alimentarem. Impossibilitada de trabalhar, porque dedica seu tempo a cuidar

de um dos filhos, que é “portador de deficiência física”, relata que as dificuldades só se

agravaram com o desaparecimento do filho, que era quem a ajudava com as despesas.

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Figura 1: Carta de Izildete ao então presidente Lula: a mobilização do sofrimento para

em busca de ajuda

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Após a entrevista dei uma volta com Izildete pelo bairro em busca de uma copiadora

para fotocopiar os documentos. Enquanto andávamos ela me apontava os lugares e narrava os

acontecimentos violentos e traumáticos ocorridos em cada local. Apontou-me o botequim

onde os policiais, que ela acusa de terem levado seu filho, costumavam se encontrar e a casa

de vários deles. Mostrou-me também os lugares por onde os carros passaram no dia da

Chacina da Baixada, disse que da rua onde mora foi possível ver quando os carros dos

“chacinadores” estavam passando próximos a um lava-jato, no alto de um morro que fica em

frente à sua casa.

Providenciar as cópias levou muito tempo, foram folhas e mais folhas. Enquanto as

cópias eram tiradas, Izildete me contava um ou outro caso. E eu me lembrava de que, quando

estávamos nos preparando para sair da casa de Izildete, ela me havia dito que não gostava de

fazer as cópias perto de onde morava, porque as pessoas ficavam olhando o conteúdo do

material, ficavam lendo, e muitas pessoas ali tinham conhecimento do desaparecimento de seu

filho. Ela ficava receosa de que as pessoas pudessem ler o conteúdo dos documentos dos

quais ela fazia cópia, por isso andamos bastante, até achar um lugar onde as pessoas não a

conheciam e nem o caso do filho. Enquanto esperávamos pelas cópias, Izildete expressou um

comentário cético: “Se cada papel desse fosse uma palavra certa!”.

O clima que Izildete relatou foi de muito medo e tensão em sua vida cotidiana e na dos

moradores da localidade. Segundo ela, há sempre um carro rondando, sempre um policial

ameaçando sumir com o outro filho, sempre uma experiência traumática nova, sempre um

clima de suspense e morte rondando. No relato de Izildete, expressa-se aquilo que Teresa

Caldeira chamou de “a fala do crime”. Ela também fala dos impactos da violência em sua

rotina, dos hábitos que mudaram e das medidas de segurança que tomou. Hoje, ela e os filhos

evitam andar tarde da noite pelas ruas de Queimados com medo de que algo venha a

acontecer a eles. Os filhos deixaram de estudar em Queimados, mudaram de escola, passando

estudar no Rio de Janeiro. Ela fez vários pedidos para entrar para o serviço de proteção a

testemunhas, mas diz que não foi atendida.

Segundo Izildete, vários recados lhe foram enviados pelos policiais, eles passam de

carro em frente à sua casa e verbalizam ameaças. Em uma ocasião, a mãe de um dos policiais

mandou um recado para Izildete, dizendo que Izildete “pagaria” caso qualquer coisa viesse a

acontecer com seu filho. A mãe do policial disse que se seu filho fosse preso, quando saísse da

prisão, ele “acabaria com a raça” de Izildete. Izildete chegou a prestar depoimento numa

delegacia registrando as ameaças que vinha sofrendo dos policiais e da mãe de um deles:

Paula Lacerda
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A depoente tem conhecimento de que seu filho saiu de casa na companhia de três parentes, sendo que até a presente data não tem notícias do paradeiro de seu filho Fábio Eduardo Soares Santos de Souza, bem como de seu sobrinho de consideração Rodrigo Abílio; que tomou conhecimento de que no dia do desaparecimento ambos foram abordados pelo policial militar Walter Tenório Mariotini Valim, fato este confirmado pelo próprio policial militar, que revelou à declarante ter realmente abordado o seu filho e seu sobrinho Rodrigo e os liberado a seguir; que desde então vem buscando informações no sentido de esclarecer todo o episódio; que em razão das suas buscas vem sendo pressionada pelo policial Walter que vinha lhe ameaçando, mandando parar de andar (lá embaixo), no centro do Rio de Janeiro, vez que o fato já estava arquivado e com as suas andanças, iria acabar por desarquivar, dizendo ainda que iria processá-la, tendo notícias de que efetivamente o policial Walter Mario deu início a uma notícia-crime em face da declarante, oportunidade em que deseja acrescentar que jamais acusou qualquer pessoa pelo desaparecimento de seu filho, cobrando apenas esclarecimento quanto ao sumiço deles: (Fábio e Rodrigo); e ainda segundo Walter Mário, a declarante deveria pensar bem no Flavinho (seu filho especial). Que no dia de ontem, ou seja, 20 de abril de 2005, por volta das 23 horas, chegaram na sua residência três pessoas, sendo um deles, o primo de Rodrigo e dois outros, cujo nome desconhece, tendo o nacional Dule (primo de Rodrigo) dito à declarante que a mãe de Walter Mario, que sabe chamar-se Maria Helena, teria telefonado algumas vezes para ele, dizendo para que comparecesse na casa dela (Maria Helena) pois desejaria que o mesmo fosse arrolado como testemunha de seu filho Walter Mario, tendo a referida senhora dito a Dule que ainda tinha muita gente solta e que quando seu filho saísse da cadeia, a primeira que ele iria acertar as contas seria com a própria declarante, pois ele já acreditava que iria perder a “farda”; que dois outros que chegaram com Dule ficaram apenas olhando para a declarante prestando atenção na conversa, tendo ainda Dule, ao sair, dito que iria testemunhar a favor de Walter Mario e que era para a declarante pensar bem e que tinha muita gente do lado de Walter Mario; tendo Dule logo após sair do portão de sua residência atravessado a rua Carlos Pereira Neto, ingressando no bar existente no número 314, cujo imóvel é de propriedade da família de Walter Mário, permanecendo conversando com o dono do bar Sr. Sérgio. (Termo de Depoimento de Izildete Santos da Silva, 21 de abril de 2005).

Izildete sempre fala da dificuldade que é viver muito próximo aos policiais acusados

de terem “sumido” com seu filho e o amigo. Ela se depara na rua com os policiais, eles

continuam ameaçando e nada os detém. Eles continuam soltos, a fazer ameaças e a intimidar

as pessoas, produzindo um clima de medo paralisante nas pessoas, que temem morrer ou

sofrer algum outro tipo de represália. Izildete recebeu vários “avisos” para não continuar

denunciando os policiais. Caso continuasse a levar à frente as denúncias poderia “ser pior”

para ela.

Ela conta também que muitos dos policiais envolvidos em grupos de extermínio se

candidatam nas eleições. A eleição é uma estratégia para adquirirem uma espécie de

“blindagem” ainda maior do que já possuem na condição de policial. Através da imunidade

parlamentar, tornam-se cada vez mais intocáveis e imunes à aplicação da lei. Muitos

conseguem se eleger e isso significa a desmedida do poder, passam a gozar de imunidade

parlamentar, tornando ainda mais difícil a investigação sobre seus crimes. Alguns dos

policiais acusados de serem os responsáveis pelo desaparecimento do filho de Izildete e de

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seu amigo mais tarde seriam acusados de participação na Chacina da Baixada26.

3.2.2. Humilhação, desrespeito, queixas e os obstáculos na construção de provas

A relação com os órgãos do sistema de justiça criminal é marcada pela humilhação.

Sobre a humilhação, Edgar de Decca escreveu um texto em que propõe uma discussão muito

pertinente para se pensar a relação dos familiares de vítima com o tema. Neste texto ele

discute se a humilhação seria um sentimento ou uma ação. Segundo o autor, nas primeiras

abordagens das ciências sociais, a humilhação foi enfocada como um sentimento próprio de

coletividades sujeitas a traumas psíquicos profundos. Contudo, a experiência do nazismo fez

com que as ciências sociais passassem a distinguir modalidades diferentes de sentimentos,

abordando de modo distinto, o trauma, a vergonha e a humilhação.

O que seria então a humilhação? Segundo as observações de Decca:

Para muitos, não seria sequer um sentimento, mas atitude, conduta, enfim, uma ação na qual envolvem-se tanto o ator como a vítima. Por exemplo, diante de um ato de alguém que nos coloque para baixo ou nos rebaixe, podemos sentir vergonha, por nos sentirmos ofendidos em nosso amor próprio. O ato ou a conduta de humilhar alguém, cria o sentimento de rebaixamento e de inferioridade. Além disso, diante da humilhação a vítima pode desenvolver sentimentos de ódio, de revolta ou de vingança. Por esse motivo, a humilhação assemelha-se mais a um ato de ofensa do que a um sentimento vivenciado pela vítima à qual é imposta uma conduta de rebaixamento. Entretanto, estamos acostumados a tratar a humilhação como um sentimento. Talvez seja um engano de nossa parte tratá-la dessa maneira, porque retiramos dela a intencionalidade e a responsabilidade social que ela deveria ter se fosse tratada como uma conduta ou uma ação passível de punição e condenação (Decca, 2005: 106).

Os relatos dos familiares, de um modo geral, são repletos de referências a situações de

humilhação. A humilhação aparece nos relatos como uma prática sofrida cotidianamente.

Izildete, por exemplo, conta que os policiais ficam “fazendo hora” com ela, somem com seus

documentos, dão informações erradas e se negam a fazer o serviço que caberia a eles fazer,

repassando a responsabilidade para a própria denunciante. Os policiais a orientam a desistir de

procurar o filho. Tudo isso produz um sentimento de impotência e quase certeza da

impossibilidade da justiça, da não punição dos responsáveis e de que jamais encontrará os

corpos. Apesar disso, Izildete luta, mas a única justiça que ela diz acreditar ser possível, na

altura em que o caso se encontra é a justiça divina. Sua fala oscila entre a esperança e a

26 A Chacina da Baixada ocorreu em 31 de março de 2005, nos municípios de Queimados e Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, e deixou 29 pessoas mortas. A chacina estaria ligada à prisão de policiais militares acusados de jogar uma cabeça dentro do 15º Batalhão de Polícia Militar (Duque de Caxias).

Paula Lacerda
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resignação; em certos momentos acha que o filho pode estar vivo, em outros, cogita a

possibilidade de ele estar morto.

Outro relato de humilhação descrito por Izildete refere-se a uma situação vivenciada

por outro filho, três meses antes do desaparecimento de Fábio. Esse filho foi a uma festa no

bairro e, lá, um grupo de pessoas, que ele não soube identificar porque estava bêbado, lhe deu

uma surra, tirou-lhe a roupa e o colocou para andar nu pelas ruas.

Izildete também manifestou, em sua fala, certa queixa em relação às ONGs de direitos

humanos que, segundo ela, pedem documentos e mais documentos que “nunca dão em nada”.

Ela conta também que uma entidade de direitos humanos que está acompanhando o caso

prometeu que a tiraria da casa onde está morando, por questões de segurança, mas isso não

chegou a acontecer27.

Uma das principais dificuldades para que se faça justiça e promova-se a reparação de

danos causados a familiares de vítimas de violência policial, mesmo que fora de serviço, é a

dificuldade de produção de provas que incriminem os acusados. Geralmente o ônus da prova é

repassado aos familiares da vítima. Quando se trata do crime de policiais a situação é ainda

mais complicada. A tarefa de investigação dos crimes é repassada para a família ou para a

própria vítima, quando esta não chegou a ser morta.

Segundo o relato de Izildete, a racionalidade da burocracia jurídico-policial consiste

em impedir e/ou destruir a construção de provas por parte dos familiares de vítimas, dando

maior margem para a impunidade e não responsabilização criminal do acusado. O caso do

desaparecimento forçado é paradigmático nesse sentido. Não havendo o corpo da vítima para

provar a materialidade do crime, torna-se quase impossível esclarecer a verdade dos casos,

fazer justiça e reparar as vítimas. Outro exemplo, nesse sentido, é o auto de resistência, onde o

policial acusado de matar é quem produz o documento que dá origem aos procedimentos

policiais e jurídicos de investigação do caso. Desse modo, a investigação tem início a partir da

versão do acusado e não da vítima que está fazendo a denúncia e a acusação.

Tendo os familiares iniciado uma denúncia pública acusando policiais de assassinato

ou desaparecimento forçado de uma pessoa e não conseguido provar as denúncias, exatamente

porque as provas são destruídas ou forjadas pelos próprios acusados, pode ocorrer um

processo de inversão, onde a vítima passa a ser acusada, tornando-se réu no processo.

Em 2010, quando o caso completou sete anos, acompanhei Izildete, com o apoio da

Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, em uma manifestação que ela

27 Em junho de 2012 fui informado por Izildete que ela havia ganhado uma casa de algum programa de assistência social que não me foi possível identificar.

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organizou em Queimados, em memória do filho. O protesto foi também uma cobrança por

justiça e consistiu em uma caminhada refazendo o trajeto que os jovens teriam feito pela

última vez, terminando com uma visita à delegacia. Éramos poucos, caminhando e segurando

uma faixa, sob um sol quente, e afixando cartazes em postes e bares. Enquanto parávamos

para pregar os cartazes, vez ou outra uma conversa se iniciava com moradores locais, e

ouvimos várias histórias de desaparecimento envolvendo policiais naquela área. Quando

tentávamos pegar os contatos dos familiares, entretanto, as pessoas ficavam medo, davam

uma desculpa e acabavam por não fornecer.

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Foto 3: Cartaz comunicando o desaparecimento de Fábio e Rodrigo

e solicitando que entre em contato quem tiver informações

Foto 4: Caminhada pelas ruas de Queimados

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Foto 5: Protesto em frente à Delegacia de Queimados

Foto 6: Izildete na porta da delegacia exigindo resposta para o caso.

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3.3. Maria do Retiro

Maria do Retiro tem por volta de quarenta anos, é moradora de uma área popular na

zona Norte do Rio de Janeiro, por alguns considerada favela, por outros bairro. A mediação

para a realização da entrevista foi feita por outra mãe, também do local, cujo filho também

havia sido morto, e que eu já havia entrevistado. Eram vizinhas e tinham histórias similares.

3.3.1. Milícia, tráfico e desaparecimento

Os filhos de ambas foram mortos, segundo elas, por milicianos. Uma encontrou o

corpo sem a cabeça e a outra encontrou a cabeça sem o corpo. Maria do Retiro aceitou o

convite para a entrevista, mas ponderou que, por motivo de segurança, a mesma não poderia

ser realizada em sua casa. A entrevista foi então realizada em minha casa, na Pavuna, e contou

com a participação de Marilene28.

Maria do Retiro tinha cinco filhos e dois netos, sendo que um dos filhos foi vitimado

na “comunidade”, como ela diz. Entre quinze e dezessete anos esse filho “foi envolvido no

tráfico”. Maria do Retiro faz questão de enfatizar que o filho “mudou de vida”, e lamenta que

“não estava trabalhando de carteira assinada porque não teve oportunidade”, mas trabalhava.

Era o responsável pela marcação dos jogos de futebol numa quadra construída pelo Viva Rio.

Em 2007, a milícia entrou na localidade e passou a controlar o território. Maria do

Retiro conta que, como já havia quase quatro anos que o filho encontrava-se afastado do

tráfico, ele estava “com a consciência limpa”. Muitas pessoas orientaram seu filho a retirar-se,

a ir embora da “comunidade”, porque temiam que “alguma coisa” pudesse lhe acontecer.

Confiante de que nada lhe aconteceria, o filho, acompanhado da mãe, procurou os milicianos

da área, que são policiais, ex-policiais e bombeiros, para explicar sua situação.

Fábio: Ele procurou esses policiais para conversar com eles? Maria do Retiro: É. Lá na praça mesmo. Chegando lá... Eu fui com ele. Chegando lá, ele explicou que não tinha mais nada a ver, que ele estava trabalhando, que ele queria criar o filho dele, que na época estava com três anos de idade. Ia completar três anos. Aí, eles falaram: “Não, se você quiser ficar assim, está legal, você pode continuar aqui. E não tiver envolvimento com ninguém, está tudo bem”. E os policiais ficaram um período lá na comunidade. Aí, não sei se vocês souberam, houve um assassinato de dois jovens militares em um baile funk lá dentro mesmo da comunidade. Lá, o pessoal falou que foi um dos filhos desse policial, desse Miranda, junto com uns outros que mataram os dois rapazes, porque eles moravam na [nome da localidade]. E mataram... Quer dizer, o delegado [nome] esteve lá, teve uma repercussão danada.

28 Marilene participou como assistente de pesquisa durante parte do trabalho de campo, realizando juntamente comigo algumas das entrevistas desta tese.

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Passou na televisão. Então os policiais se afastaram da comunidade. Ficou quem? Os agregados deles lá, os rapazes que eram da facção criminal da ADA, que eram inimigos da facção que meu filho frequentou. Fábio: Qual era facção? Maria do Retiro: É o Terceiro Comando. E eles continuaram lá, sozinhos. Então, a partir do momento que esses policiais saíram da comunidade, começou a matança em série. Eles matando, matando, matando. Aí, eu tenho uma filha que até hoje está em situação de rua, porque é viciada em crack. Já era antes de matarem meu filho. E ela, em uma ocasião, levou um tiro de bala perdida. E ela ficou usando uma bolsa de colonoscopia. Então, ela teve que ficar internada para fazer a reversão. E justamente eu estava no hospital com ela, para ver ela ser operada. Eu fui em casa tomar banho, trocar de roupa. E ele chegou com uma sapateira que eu estava precisando lá em casa. E ele: “Mãe, eu peguei essa sapateira com um rapaz, à prestação, para a senhora”. Aí me deu a sapateira, estava com biscoito, com uma latinha de coca-cola, me ofereceu. Aí, foi a última vez que eu o vi. Aí, eu falei para ele: “Válter., vou voltar para o hospital, que a Kelly já foi operada”. Aí tomei banho, comi uma coisinha lá e voltei para o hospital. Fábio: Ele morava com a senhora? Maria do Retiro: Não, ele morava com a namorada. Aí, eu cheguei no hospital e de madrugada teve um tiroteio lá para o lado da [nome da localidade]. Aí teve uns tiros lá, me deu um nervoso assim. Quando foi uma e pouca da manhã eu não conseguia dormir, com um coração inquieto, sabe! Uma respiração ofegante, um negócio. E eu querendo sair de lá. Aí, de manhã, meu irmão e minha irmã foram lá me buscar, dizendo que tinha acontecido um problema com ele. Eu já esperava, sabe. Eu falei: “Aconteceu alguma coisa”. Eles falaram: “Aconteceu um problema com o Válter. Vamos lá e tal”. Eles sumiram com o corpo dele. Ele foi degolado.

Pelo relato de Maria do Retiro, os milicianos atuavam em parceria com traficantes. E

os traficantes que estavam dominando a área nessa época eram de facção rival à que havia

pertencido o filho de Maria do Retiro. Essa história difere-se das versões que muitas vezes

circulam sobre as milícias no Rio de Janeiro, segundo as quais a milícia entra no território

para expulsar os traficantes e gerir o funcionamento de vários mercados ilícitos. O que se nota

nessa história são “ligações perigosas” entre policiais, milicianos e traficantes locais de droga,

cada um querendo seu “pedaço” na gestão dos mercados ilegais29. E cada um recorrendo às

“mercadorias políticas” (Misse, 1999) acessíveis para garantir seu poder local.

3.3.2. Corrupção policial e a denúncia fora do horizonte de ação da mãe

Outras vezes, o que se tem não é necessariamente o recurso às “mercadorias políticas”,

mas simplesmente a extorsão, como na situação a seguir relatada por Maria do Retiro,

envolvendo seu filho. Dessa vez o “desenrolo” não foi com os milicianos, mas com a polícia. Maria do Retiro: Um policial prendeu ele e mais um menor na comunidade, ficou a

29 “Gestão” é uma palavra que aparece na própria fala de Maria do Retiro. “No início da gestão dessa milícia lá, algumas pessoas que eles mataram, o pessoal estava dizendo que eles levavam a pessoa lá para a [Baixada Fluminense], que tinha um sítio que tinha um jacaré. O pessoal falava. Então, eles matavam a pessoa ou jogavam a pessoa viva”.

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tarde toda rodando na D20, com os dois dentro, procurando uma tal de Elisa, que era uma mulher envolvida na época com os rapazes lá do Terceiro Comando. Querendo o quê? Dinheiro. Aí eu procurando, andando tudo. Eles estavam de carro. Quando uma certa hora eles foram... A ousadia deles, eles saíram de onde eles estavam lá escondidos com eles, voltaram para a rua principal, para a calçada do posto policial. E eles dois dentro da viatura. Aí, eu cheguei perto, assim, pela frestinha e falei: “Válter”. E ele: “Mãe, mãe, vai para a casa”. Porque ele sabia que eles queriam dinheiro para soltar os dois. Aí, eu falei: “Válter, o que é que você está fazendo aqui, porque ainda não foi para a delegacia?”. Aí, um careca que eu não lembro o nome veio e disse: “Tia, tia”. Não sabia nem que eu era mãe dele, porque para lá todo mundo pensava que eu era irmã dele. Ele disse “Tia, afasta, afasta”. Fábio: Isso era o quê, um policial falando? Maria do Retiro: Um policial. Aí eu falei: “Afastar por quê? Meu filho está aí”. E ele: “Que filho?”. Aí ele “Vai embora mãe. Vai embora”. Aí ele: “Vai chamar a Elisa”. Que era essa mulher que... Fábio: A senhora conhecia essa Elisa? Maria do Retiro: De vista. Aí, ele “Vai chamar a Elisa”. E eu disse: “Vou chamar Elisa por quê?”. E ele disse: “Vai chamar a Elisa que a gente quer conversar”. Aí, eu falei: “Vocês querem dinheiro, não é”. Falei assim: “Vocês pegaram ele que é de menor e está esse tempo todo dentro da caçapa do camburão, coisa que é errada, ele é de menor. E vocês não vão levar eles na delegacia. Então, vocês vão pegar o dinheiro e eu vou na delegacia fazer uma queixa de vocês”. Foi aí que eles levaram os dois para a 21 DP. Aí os dois ficaram. O Válter com seis dias saiu, não é. Ficou depois com a Doutora Ângela, que é uma psicóloga. Ia toda semana fazer palestra com ela. Aí se envolveu... Eu soube que ele se envolveu mesmo de vez depois disso. Começou a ficar rebelde dentro de casa com droga. Aí se envolveu. Mas, assim, não ficou nem três meses envolvido.

Segundo Maria do Retiro, o que a chateia mais é o fato de o filho não ter tido

oportunidade de mudança e, nesse caso específico, ela refere-se à corrupção policial. Diz que

entende que é preciso lutar pelos direitos, mas a corrupção policial “corta” as chances das

pessoas. No decorrer de sua fala, polícia e milícia se confundem, sua crítica é dirigida aos

dois, como querendo apontar a conexão que existe entre estes dois atores. O cerne da crítica é

que aqueles deveriam proteger, aqueles que legalmente têm essa função, valem-se do poder

para vender proteção a alguns, permitir práticas ilegais de outros, torturar, matar e desaparecer

com os corpos de outros mais. Nesse contexto, até mesmo a possibilidade de denúncia sai do

horizonte. Fábio: A senhora chegou a denunciar o caso? Maria do Retiro: Não. No dia, minha irmã disse que foi lá para pedir para eles dizerem onde estava o corpo, para fazer o enterro. Aí eles falaram que não. Todas as pessoas que eles mataram. Eles disseram: “Não tem corpo, não tem corpo”. Fábio: Eles matam e somem com os corpos? Maria do Retiro: No início da gestão dessa milícia lá, algumas pessoas que eles mataram, o pessoal estava dizendo que eles levavam a pessoa lá para [nome do lugar], que tinha um sítio que tinha um jacaré. O pessoal falava. Então, eles matavam a pessoa, jogavam a pessoa viva.

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3.3.3. A peregrinação pelas instituições estatais: com exame de DNA, mas sem atestado de

óbito

O sofrimento de Maria do Retiro estende-se em cada passo que dá para tentar resolver

a morte do filho. Em cada visita a uma instituição ela é reencaminhada para outra repartição,

outra instância, sem que suas necessidades e seus direitos sejam garantidos. Essa reclamação

sobre a forma como as instituições estatais, através de seus agentes, lidam com a dor dos

familiares, de maneira humilhante e desrespeitosa, aparece de modo geral nas falas de todos

os parentes de vítimas que passam pelo assassinato e desaparecimento dos filhos. A luta para

conseguir fazer um exame de DNA para identificar o filho é sempre um desses momentos em

que os familiares são enviados de um lugar para outro, sem que ninguém resolva nada.

Marilene - Agora deixa eu te fazer uma pergunta. Quando você achou a cabeça do seu filho, você teve que esperar para fazer o DNA? Você conseguiu enterrá-lo com o nome dele? Maria do Retiro: Não. Até hoje só tenho o DNA. Eu demorei para fazer o DNA. Esse fato do encontro foi por volta de setembro. Eu fui fazer o exame, colher o sangue, em março do ano seguinte. Depois, demorou mais uns meses para pegar o [resultado]. E toda vez no telefone, eu ficava ligando, ligando e nada. Aí peguei o resultado, deu positivo, lá na DP. Aí fui no IML. Que até então, eu achava que com aquele DNA ali... Ele não trabalhava de carteira assinada, então não tinha essa preocupação de correr atrás de pensão para o meu neto. Mas aí eu achei que aquele DNA ali, fosse um documento que constasse que ele estava morto. Aí a moça falou assim. Até a Helena que uma vez falou assim: “Eu fiz o óbito do falecido Caio”. Que eu conhecia o filho dela desde pequeno. Aí ela disse: “Eu fui na Defensoria Pública e lá eles me indicaram”. Aí eu fui lá na Defensoria Pública. Aí a doutora falou: “Quem mandou a senhora vir aqui?”. Não, primeiro eu fui no IML e eles disseram: “Não, a senhora vai ter que ir à Defensoria Pública, porque o juiz é que vai autorizar fazer o óbito dele. Aí eu fui na Defensoria e os eles falaram que não. Falaram: “Mas a senhora não tem que...”. E eu falei: “O que eu tenho que fazer?”. E ela: “Não sei”.

Desorientada, Maria do Retiro segue de um lado para outro tentando resolver as

pendências legais que a morte do filho deixou, mas peregrina de instituição à instituição sem

que ninguém lhe dê sequer uma informação correta de como deve proceder, o que fazer,

aonde ir. Embora tenha conseguido identificar os restos mortais do filho, através do exame de

DNA, não conseguiu obter o atestado ou certidão de óbito.

3.3.4. Contar ao neto sobre o pai desaparecido

Pergunto a Maria do Retiro o que ela conta, ou como ela fala, sobre o desaparecimento

do filho ao neto:

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Eu falo que todo mundo que vive aqui na terra uma hora tem que ir embora. Não falei. Se ele souber, vai ser pela boca de outra pessoa. Não falo a realidade. Que ele já teve outras pessoas lá... A mãe do coleguinha dele ficou doente e faleceu. Aí eu falo: Você lembra da tia Madalena? Ela ficou aqui na terra, cumpriu o tempo dela aqui, viveu, agora ela foi lá para o céu, virou estrelinha, está lá com papai do céu”. Aí, às vezes comentando com minha patroa que o sofrimento me fez rir muitas vezes, sabe. Teve uma vez que indo para a casa da minha irmã com ele, aí o céu estava cheio de estrela, com muita estrela. Aí ele viu uma maiorzinha, brilhando pra caramba. Aí ele: “Olha lá vó, o céu está cheio de estrela. Aquela grande lá é o meu pai. Aí eu falei: “É, está vendo, todo mundo que vai com papai do céu, vai lá para o céu virar estrelinha”. Ele ficou andando, olhando para o céu. Aí chegou na casa da minha irmã, ele falou: “Todo mundo que vai com papai do céu vira estrelinha, meu pai está agora lá em cima”. Aí minha irmã, que é da igreja católica, falou: “É. Todo mundo, eu vou, sua avó, todo mundo, uma hora vai chegar e a gente vai. “Até você mesmo, vai viver um tempão e depois vai também”. Aí ele falou: “Mas para ficar parado lá em cima...”. Porque ele é elétrico, né: “Para ficar parado lá em cima, não quero não”. Quer dizer, a gente sofrendo, com o coração assim e ele vem. Quer dizer, é o que eu falo com a [nome de uma familiar amiga]. Ela tem a netinha dela, não é? Eles não vão substituir, não é? A gente vai ficar com os netos muito tempo. Mas pelo menos uma alegria eles dão para a gente.

3.3.5. Preocupações adicionais: a filha usuária de crack

Além de correr atrás da Justiça para resolver a morte do filho e cuidar do neto, é

preciso também administrar as relações perigosas da filha, viciada em crack e vivendo em

situação de rua. “A droga é o inimigo número um”, diz Maria do Retiro. Na mesma época em

que o filho morreu, a filha também passava por uma situação difícil com o crack.

Segundo Maria do Retiro, desde quando sua filha começou a usar maconha, aos

quinze anos, seu comportamento foi mudando dentro de casa. Quando ficava dentro de casa, a

abstinência da droga a deixava irritada. A irmã de Maria do Retiro chegou a ser atacada com

uma faca pela sobrinha. Maria do Retiro conta que sua casa tem dois andares e, com o vício

da filha, passou a trancar a porta debaixo para que ela não fugisse, mas como a janela de cima

não tinha tranca, a filha pulava e fugia pelos telhados dos vizinhos. Ficava dois ou três dias

fora de casa, depois voltava. Tempos depois fugia novamente, até que, após vários “derrames”

onde morava, teve que se mudar da área. Para preservar a segurança e a vida da filha, Maria

do Retiro chegou a comprar uma casa em outra localidade, porque pretendia se mudar de onde

mora atualmente. Como a casa tinha muitos problemas decidiu vender, mas enquanto não

vendia resolveu colocar a filha para morar nessa casa, para retirá-la da rua e protegê-la das

ameaças que estava sofrendo de milicianos. Porém, a filha alugou a casa para pessoas

desconhecidas e a milícia local passou a exigir que o aluguel da casa fosse repassado para a

Associação de Moradores, comandada pelos milicianos.

Eu cheguei a comprar uma casa naquele lugar que eu falei, perto da Via Light.

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Comprei uma casa lá. A casa é toda maquiada. Entra água de esgoto, entra refluxo do esgoto nos ralos, falta água para caramba. E eu confiei, era uma senhora de idade, então eu confiei nela. Eu estava doida para sair de lá. A casa deu problema. Aí, essa minha filha é usuária de drogas. Já esteve na cracolândia, em Manguinhos. Está fora de casa desde os quinze anos. Ela não pode ir lá porque eles querem pegar ela também. Só para você ter uma idéia da... Aí, em uma época, ela falou assim: “Mãe...” Ela estava no [nome do lugar]. “Mãe, eu quero sair daqui, eu quero dar um tempo dessas drogas, não quero usar droga mais não”. Aí, cheguei no Juizado de Menores, me deram um encaminhamento para ela fazer um tratamento. Só que não é um lugar onde fica internado. A pessoa vai periodicamente, semanalmente, sei lá. E vai fazer um tratamento. Aí não tive como porque eu que tenho o controle do horário dela, né? Quantas vezes eu marquei com ela para tirar a identidade e ela não aparecia. Aí eu falei: “Kelly, se você quiser, você fica na casa vazia até vender. E eu vou levando as coisas para você lá”. E ela: “Ah, mãe, eu vou para lá”. E foi lá para casa. Ficou uma maravilha. Engordou, fez amizade com as meninas, com uma senhora lá que é vizinha. Estava uma maravilha. Aí, de repente, entro lá e cadê Kelly. Ela alugou a casa para um casal. São trabalhadores, vendem peixe. Aí, alugou a casa para esse casal. E eu falei: “Kelly, por que você fez isso sem minha autorização? Errou você e erraram eles, porque eles sabem que você é menor de idade”. E ela: “Ah, mãe, vou morar na casa da Simone, é para essa casa não ficar vazia”. Confortável porque tinha que levar as pessoas lá para ver, não é? Em comunidade você sabe como é. Fui lá, conversei com o casal e tal. Eles disseram: “Não, a gente está aqui, mas na hora que tiver que sair, a gente vai e tal”. Mostrei a documentação da casa, foi registrada em cartório e tal. Aí Kelly sumiu de lá uns dias. E eu fui na casa dessa menina, da Simone, procurando e nada. Ela falou: “Ah, tia, o chefe daqui estava preocupado com ela”. Quer dizer, a Kelly teve uma recaída. Sabe o que ela fez? Ela veio para uma tal de Quitandinha, aqui para o lado da Pavuna. Veio e tal. Quer dizer, na certa atrás de droga, porque na área de milícia não tem. Sumiu. Aí eu fui lá. Eu falei: “Kelly, eles vão passar”. Porque eles pagavam no final do mês, aí mudou o dia. Ela: “Mãe, eles mudaram o dia, porque o pessoal lá do mercado mudou o dia do pagamento deles”. Aí eu falei: “Que dia?”. Ela: “Ah, eu vou ligar para eles e vou falar com a senhora”. Aí aconteceu isso. Aí eu fui lá para conversar com os dois [o casal que alugou a casa]. Aí, o rapaz foi me falar: “Olha, Maria, eu vou ter que pegar o aluguel, duzentos reais, e eu vou ter que dar lá na Associação, porque eles confiscaram o aluguel. A milícia está aqui agora”. Eles confiscaram o aluguel porque ela saiu de lá e veio para esse lugar, Quitanda, que é inimigo deles.

O circuito por onde circula a filha de Maria do Retiro é demarcado, de um lado, pelas

drogas e pelos traficantes de drogas, de outro, pela milícia e polícia. Mas as coisas não são tão

separadas assim. O que se tem são disputas, que ora resultam em acordos sempre provisórios,

ora resultam em mortes e desaparecimentos. No relato de Maria do Retiro, milícia e polícia

aparecem várias vezes como se fossem sinônimos.

Ao contar as histórias da filha, novamente aparecem as críticas à polícia, à forma

humilhante como são tratados os moradores de favelas quando precisam recorrer ao serviço

policial. Quando precisou recorrer a uma delegacia de polícia para registrar uma ameaça que a

filha vinha sofrendo, Maria do Retiro sentiu na pele o desprezo da funcionária que a atendeu.

Segundo o relato de Maria do Retiro, o olhar da atendente foi tão ofensivo que na mesma hora

ela desistiu de fazer o Registro de Ocorrência, pegou a filha e foi embora.

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Para você ver a indiferença da instituição policial. Nas delegacias é a Polícia Civil que atua, né, dentro das delegacias. Aí minha filha ficou, nesse tempo que ela ficou em Manguinhos, na cracolândia... Até mau cheiro ela tinha. Não conseguia ficar perto dela. Ela estava [fedendo] mesmo. Então, eu tentava levar ela para casa. Para a casa de um conhecido, porque lá em casa não podia. Ela falava: “Não, mãe, eu vou para a casa de uma amiga minha. Vou sair daqui e tal”. Quando foi um belo dia, eu estava em casa. O meu netinho estava meio doentinho, e eu estava fazendo uma sopinha para ele. Aí, toca meu celular. Atendeu e eu ouvi a voz dela assim, nervosa e uma voz de homem no fundo. Aí, ele: “Cadê, cadê, é sua mãe?”. Aí, ela falou: “Mãe!”.Começou a chorar e desligou o telefone. Aí, eu tentando ver [o número do] orelhão. Aí, uns cinco minutos depois, ela ligou de novo. Aí ele: “Vai me dar, vai me dar”. E ela: “Eu não peguei nada não”. E chorando. E eu falando: “Kelly, você está onde?”. E ela: “Mãe, eu vou para a delegacia”. E eu: “Que delegacia?” E ela: “[Número da delegacia]”. Eu falei: “Carla, termina aqui que eu vou lá correndo para a DP. Ela estava descalça, toda suja, com mau cheiro, como da última vez que eu tinha visto, dentro da delegacia. Eu entrei lá dentro e ela estava sentada, descalça. Sentada e nervosa, olhando para fora. E eu falei: “Kelly, o que aconteceu?”. E ela: “Mãe, eu fui pegar um táxi e... Peguei um táxi para ir para Bonsucesso, aí eu só tinha três reais. Falei com taxista se ele podia me deixar na Escola Bahia, na Brasil, ele tentou me agarrar, me levou para outro lugar, para uma rua deserta e tentou me agarrar. A pessoa nem conseguia ficar perto dela com o cheiro. E eu: “Kelly, com quem a gente vai falar aqui”. E ela: “Não, mãe, a gente vai embora”. Eu fui no balcão, falei com a menina que atende. Falei: “Minha filha está com um problema, me contou uma história, mas eu não estou acreditando. Ela...”. Ela perguntou: “Ah, ela mora onde?”. Eu disse: “Ela mora em [nome do lugar], mas ela estava aqui na cracolândia”. Aí a menina olhou para ela. Eu fiquei tão indignada com o olhar da garota para ela, que eu não quis nem fazer Boletim de Ocorrência. Ela falou assim: “Que problema?”. Com aquela indiferença. Eu olhei assim e falei: “Vou abrir BO aqui sem saber o que contar?”. Eu não acreditei na história dela, eles muito menos vão acreditar. Aí ela não queria sair, estava com medo. Eu falei: “Vamos embora, Kelly. Vamos lá que eu vou comprar um chinelo para você”. Ela falou: “Não, mãe, não posso ir”. Olhando para o vidro, procurando alguém. Quer dizer, pelo tempo que ela me ligou e eu cheguei na delegacia, eu acredito que ela estava em frente à delegacia. Ela estava sofrendo ameaça ali em frente. E entrou na delegacia, correndo, sozinha, no estado que estava e ninguém se manifestou, viu e não ofereceu uma ajuda. Ai, fiquei tão indignada. Aí, falei: “Então, espere aqui que eu vou lá fora comprar um chinelo para você”. Comprei o chinelo lá perto da Estação de Bonsucesso. Voltei com o chinelo, ela foi ao banheiro, molhou a mão, passou no cabelo”. E para ela sair de lá da delegacia!? Não queria sair, porque ela sabia que a pessoa que estava atrás dela estava ali fora. Aí, eu falei: “Kelly, tem alguém aqui? Você está com problema com alguém que está aqui perto?”. E ela: “Não, mãe”. Assim, meio desconfiada, não queria me falar. E eu: “Fala, Kelly”. E ela: “Não, mãe, vamos embora”. Aí veio o ônibus 576, dei sinal. Aí, não podia levar ela lá para casa. Na casa das minhas irmãs, ela ficou uns tempos, por causa do problema dela com vício. Aí minhas irmãs não querem mais ajudar. Acham até que eu tenho que abrir mão dela. Quando ela estava no apartamento, todo dia eu deixava a marmita pronta, a minha filha tinha que levar lá. Perto da Escola, levar comida para ela. Aí, minha irmã: “Assim ela nunca vai largar o vício, porque você fica levando comida para ela”.

Conforme nota-se no relato, a primeira pergunta que a atendente na delegacia fez foi:

“Ela mora onde?”. Ao responder, dizendo o nome do lugar onde a filha morava, e ressalvar

que ela encontrava em situação de rua, vivendo na cracolândia, estava armado o cenário para

a desconfiança. Ao procurar o serviço policial, apenas enunciar que mora em favela já é

motivo suficiente para desconfiança e para que o policial atendente construa hipóteses para o

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que provavelmente tenha ocorrido. Nesse caso específico, além de dizer que a filha morava

numa favela, a informação veio complementada pelo “estava na cracolândia”. A reputação do

reclamante ou denunciante é um artefato central na orientação do trabalho policial30. Os

usuários de crack, chamados pejorativamente de cracudos, correspondem a uma categoria que

goza de uma reputação muito negativa. São mal vistos pela sociedade e pela polícia. A

condição de usuário desautoriza e descredibiliza qualquer denúncia de um usuário de crack na

condição de vítima. Usuários de crack são antes de qualquer coisa vistos como corpos

abjetos31. (Rui, 2012).

3.4. Áureo

No dia 20 de novembro de 2008, dia da consciência negra, entrevistei Áureo. Ele teve

dois filhos assassinados pela polícia e um terceiro filho e a nora encontram-se desaparecidos.

Eu já tinha ouvido falar do caso do Áureo, porque ele é recorrentemente citado e usado

politicamente por militantes da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, em

razão do grande número de pessoas assassinadas e desaparecidas numa mesma família. É

sempre relatado como um caso exemplar da política de segurança pública repressiva que, há

vários governos, é implementada no Rio de Janeiro.

Quando o entrevistei, Áureo tinha 62 anos. Teve 9 filhos, porém apenas 6 estavam

vivos. A primeira vez que o vi foi na sala da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a

Violência, numa ocasião em que alguns familiares de vítimas de violência foram convidados

pela Rede a gravarem depoimentos sobre os casos de violência que os haviam atingido. Os

depoimentos seriam apresentados em um evento organizado pelo Ministério da Justiça e

30 O desaparecimento, dentro da hierarquia das ocorrências policiais, é em si uma ocorrência vista dentro do trabalho policial como sem importância. Associado ao local de moradia e à reputação da pessoa desaparecida, o policial geralmente elabora seu “olhar”, constrói suas hipóteses sobre o que poderia ter acontecido em cada situação. A esse respeito, Ferreira (2011: 148-149), em sua etnografia sobre uma delegacia especializada em investigar casos de desaparecimento, faz a seguinte observação: “A inferioridade do desaparecimento, da favela e de seus moradores anuncia um segundo artefato do trabalho policial em torno de casos de desaparecimento, que destaco a seguir: a construção de reputações. No cenário de desconfiança em que os casos são registrados, 'só de olhar' policiais levantam parcos conjuntos de hipóteses sobre o que pode ter passado a certos desaparecidos. [...], casos de homens jovens registrados como tendo ocorrido em favelas são frequentemente encarados a partir de um leque de hipóteses ainda mais restrito que o característico da rotina burocrática percorrida por desaparecimentos. Se [...] de modo geral, policiais trabalham com as hipóteses de morte, prisão e internação, diante de muitos casos esses mesmos agentes afirmam ter certeza do que se passou: os jovens estariam envolvidos com uso ou tráfico de drogas e teriam sido mortos em consequência disso. Já diante de casos protagonizados por mulheres jovens e meninas, muitas vezes policiais expressam suspeitas de que as desaparecidas estariam se prostituindo ou teriam sumido com seus namorados”. 31 Sobre o uso e comércio de crack, conferir a etnografia de Rui (2012).

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realizado em Brasília.

Enquanto esperávamos alguém chegar para abrir a porta da sala, conversávamos no

corredor Áureo, uma pesquisadora argentina e eu, quando um senhor que trabalhava em um

escritório na sala vizinha à da Rede aproximou-se de nós. Áureo nos contava sobre o caso de

desaparecimento do filho e da nora, quando este senhor se aproximou e parou perto de nós

para esperar o elevador. Notou que conversávamos sobre o desaparecimento de pessoas e quis

participar da conversa. Começou dizendo que, com o desaparecimento do corpo, o lado bom

era que a família não precisaria gastar dinheiro para fazer o enterro. E complementou, antes

de entrar no elevador, dizendo que se seus filhos sumissem ele não se incomodaria e não

perderia tempo procurando.

Alguns meses depois, encontrei Áureo novamente. Desta vez foi no enterro de Vera

Flores, uma das Mães de Acari. Foi nessa ocasião que combinei com ele de fazer a entrevista.

No dia da consciência negra, 20 de novembro, lá estava eu me dirigindo à casa de Áureo para

entrevistá-lo. Áureo combinou de encontrar comigo numa estrada próxima de sua casa.

Quando desci do ônibus, lá estava ele me esperando. Andamos alguns metros até chegarmos

no sítio onde ele mora. Há duas casas no sítio. Numa delas mora seu pai e sua mãe. Ele mora

na outra. A entrevista foi realizada na casa do pai e da mãe dele.

São todos lavradores e feirantes e Áureo se dedica a cuidar da roça do sítio. O

encontro com Áureo pode ser dividido em três momentos: primeiro, um momento de

conversas informais na cozinha da casa onde estavam presentes, além de mim e de Áureo, sua

mãe e seu pai. Enquanto eu tomava um café, eles foram me contando um pouco da história da

família. Falaram da vida de feirante, dos netos e bisnetos de dona Carlota, das filhas gêmeas

de Áureo. Seu pai ficava sempre calado, de vez em quando dava uma risada tímida.

O segundo momento foi a entrevista propriamente dita. Nesse momento nos dirigimos

para a sala da casa. Enquanto conversávamos, dona Carlota, a mãe de Áureo preparava o

almoço. Expliquei rapidamente a Áureo os motivos da entrevista, a pesquisa que eu estava

fazendo. Ele aceitou que a entrevista fosse gravada e conversamos por quase duas horas.

Deixei a entrevista correr o mais espontaneamente possível. Eu fazia poucas intervenções,

apenas um ou outro pedido de esclarecimento de algum ponto que havia ficado obscuro.

Embora minha experiência de entrevistar familiares de vítimas de violência me

dissesse que geralmente essas pessoas não se incomodavam em dar entrevistas porque tinham

necessidade de falar sobre o assunto para denunciar o caso e que esse tipo de entrevista tem

sempre algo de terapêutico e quase catártico quando os familiares relatam suas dores, seus

sofrimentos e suas experiências traumáticas, no caso da entrevista com Áureo, uma questão

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me apareceu mais nitidamente: até que ponto vai o nosso direito de ficar remoendo e

revirando com perguntas e mais perguntas as dores de nossos entrevistados? Digo isso porque

a estrutura narrativa da entrevista se iniciou com o caso do desaparecimento do filho e da

nora. No decorrer da entrevista ele fez comentários sobre os casos dos filhos assassinados. Em

um primeiro momento, tentei explorar o caso de um dos filhos assassinados. Mas ainda havia

outro filho assassinado e, quanto a este, não tive coragem de prosseguir com mais perguntas.

Fiquei constrangido.

O motivo de meu constrangimento era que a fala de Áureo se diferenciava dos relatos

de outros familiares de vítimas de violência. Enquanto que geralmente há um esforço de

“limpeza moral” por parte dos familiares de vítimas, com o objetivo de romper a associação

da vítima com o envolvimento no crime, no caso de Áureo não havia limpeza moral alguma.

Recorrentemente ele se referiu a envolvimentos dos filhos com a criminalidade,

particularmente com assaltos e roubos de carros. Diante da minha falta de coragem para

prosseguir perguntando sobre o terceiro caso do filho assassinado, com medo de produzir um

mal estar em meu entrevistado, limitei-me a perguntar se ele se incomodava de ficar falando

sobre esses casos. Essa pergunta foi fundamental para continuar a entrevista, porque tudo já

estava se encaminhando para um desfecho, mas, de repente, a possibilidade de continuar a

conversa se abriu novamente quando ele disse que, para ele, não era incômodo algum.

Prossegui retomando uma história que ele já havia brevemente comentado comigo, sobre suas

relações conflituosas com o Exército. Ele serviu o Exército e, depois de um tempo, já fora,

veio a ter alguns problemas, sendo inclusive preso e torturado. A entrevista é finalizada com

Áureo relatando sua experiência como militar.

Um terceiro e último momento foi o almoço. Sua mãe e seu pai já haviam almoçado

enquanto conversávamos. Enquanto almoçávamos continuamos a conversa. Um dos assuntos

foram os conflitos que ele teve com a “moçada do tráfico”. Disse que uma vez a “moçada do

tráfico” tentou entrar em seu sítio para pegar um porco e fazer um churrasco. Áureo disse ter

trocado tiro com os bandidos e “botado eles pra correr”. Depois disso mudou dali por um

tempo, foi morar no Lins, depois voltou de novo.

Passemos, agora, ao relato do caso em si.

3.4.1. Filho e nora desaparecidos

28 de novembro de 2006. Áureo liga para a nora Danielle para passar uma informação

ao filho Leandro. O filho ficara de levar um mecânico para consertar um carro para Áureo e a

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informação era que não precisava mais, pois ele mesmo já havia arrumado alguém para fazer

o serviço. Danielle aproveita a ligação e informa a Áureo que seu filho ligara dizendo que

estava na casa de um amigo em Quintino, e que havia se machucado, porém não sabia dizer se

era algo grave. Áureo pergunta à nora o que aconteceu, mas ela não sabe dar detalhes da

história. Ele então manifesta sua preocupação a Danielle, dizendo que Quintino é uma área de

milícia.

A nora, que trabalhava em uma creche, disse que acabaria de dar banho nas crianças,

pegaria um moto-táxi e iria para Quintino. Áureo perguntou se ela não queria que ele fosse

junto, ela disse que não precisava. Ela acabou indo e também sumiu, desapareceu. Insisto e

pergunto a Áureo o que teria acontecido ao filho, que versões teriam circulado. Sua reposta

foi que:

Não ficou esclarecido. Ficou falado que ele tinha feito um assalto e o negócio pegou. E ele foi perseguido pela polícia, porque até um...vamos dizer assim, não vou especificar, porque o cara é bem graduado dentro da polícia, mas ele próprio falou para a gente, para mim e outras pessoas que estavam junto comigo no quartel. Falando que meu filho tinha assaltado com um trinta e oito. “Pô, mas ele foi fazer assalto com um trinta e oito”. Quer dizer, fiquei sabendo disso por intermédio da própria polícia, que a gente não sabia de nada disso. Bom, quando chegou no outro dia, ligaram para mim, que ele não tinha retornado, que ele tinha desaparecido. Aí as minhas filhas indo nessa 24ª DP - Delegacia de Polícia -, que é a Delegacia de registro, era a 24ª DP lá em Quintino e eles não estavam querendo registrar. Eles não estavam querendo fazer o registro. Aí eu falei, ah eles não estão querendo fazer o registro, não? Aí eu fui procurar o pessoal da... nosso pessoal da rede, né, de direitos humanos. Não vou na delegacia sozinho. Quer dizer, eles deixaram uma filha, né, deixaram uma filha para mim com seis anos de idade. Como é que um casal vai abandonar o filho, vai passear, vai fazer isso e aquilo, e vai abandonar o filho, pô? Não tem cabimento. Se fosse um casal até sozinho, a gente até poderia [supor] que de repente eles estão num lugar, não querem falar para ninguém. Mas um casal com filho jamais ia fazer isso. Ainda mais eu sabendo do agarramento que ela tinha e meu próprio filho, que não estava há muito tempo na rua, tinha puxado uma cadeia e estava com a lei, né, garantia o direito dele, ele veio para a rua. Veio para rua, mas ainda estava devendo cadeia. Quer dizer, uma das coisas também que eu estou querendo entender é essa parte nossa jurídica, que o cara vem pra rua devendo. Ele chega aqui, ele arruma é mais cadeia, a gente está cansado de ver isso aí. Ele não se comporta. Quer dizer, ele não vem preparado para a rua. Eu acho que um cara desde o momento em que ele pratica um delito, para ele vir para a rua ele tem que estar no direito, né? Tem que estar preparado. Direito tem, mas o que adianta o direito sem a pessoa estar preparada para botar o pé aqui do lado de fora. Ele vai fazer as mesmas besteiras que ele fez anteriormente, e foi o que aconteceu.

No trecho da entrevista acima, Áureo expressa um entendimento amplamente

compartilhado na sociedade brasileira em geral, segundo o qual, quem comete crime no Brasil

não fica preso, embora o sistema penitenciário não pare de crescer. Áureo lamenta o não

funcionamento do sistema prisional brasileiro, que rapidamente coloca o preso na rua, sem

que este esteja preparado para retornar ao convívio social. Ele acredita que, se o filho

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estivesse preso, pagando pelos delitos que cometeu, talvez não tivesse morrido. Mas isso não

poupa a polícia de críticas, quando, por exemplo, ele conta, indignado, que policiais armados

de fuzis entraram em sua casa procurando o filho e dizendo que, se o pegassem, “era um

abraço”, “teriam o maior prazer em matá-lo”.

3.4.2. Crítica ao tratamento policial

O tratamento policial dispensado ao caso também é criticado por Áureo. Segundo ele,

praticamente não houve investigação do caso, a responsabilidade foi repassada à família.

Além disso, quiseram resolver o caso empurrando cadáveres encontrados pela polícia para a

família, dizendo que poderia ser o casal que Áureo procurava. Outras vezes, quando aparecia

apenas um corpo, descartavam a possibilidade de ser o filho de Áureo sem que fossem feitos

procedimentos para identificação do corpo, como, por exemplo, exame de DNA. No relato

abaixo, ele conta que foram feitos dois Registros de Ocorrências, que não deram em nada:

Fizeram um registro em nome da minha filha como desaparecimento e eu fiz um R.O. (Registro de Ocorrência) como homicídio que não foi investigado. Você vê que tem as duas opções, e nenhuma das duas até hoje, vai para dois anos, não deu em nada. Aí quando nós fomos fazer o registro na sexta-feira, o que aconteceu? Aparece um casal, dois cadáveres que foram encontrados no Engenho da Rainha. O carro pegou fogo, incendiaram o carro com as pessoas dentro. Carbonizados. Dois corpos carbonizados e tal e tal e tal. Aí o que eles fizeram? É a ordem, né, cara. Colocaram aquilo na mão da gente, como se fosse o suposto casal, o meu filho [e a nora]... Aí aparecem algumas pessoas de lá do Complexo do Alemão procurando também por esses cadáveres, que tinha desaparecido uma prima, uma parente de umas pessoas, e um cara. Quer dizer, desapareceu o casal, ela estava morando e namorando o cara, aí a polícia descartou. Entendeu, mas aí, quer dizer, quando está ali aquela discussão para eu fazer o depoimento, dei meu telefone para eles, mas eles não me deram o deles para mim, “não cara, não, porque já está aqui o casal”. Entendeu? Quer dizer, a gente estava mais próximo realmente, que era aqui em Quintino para Engenho da Rainha, mas não tem nada a ver uma coisa com a outra, o Complexo do Alemão também não está tão longe da rua do fato onde tinha achado os corpos carbonizados. Aí eles não me deram o telefone deles, eu dei o meu pra eles e falei, vamos ficar juntos, né, que talvez de repente... eu, hoje em dia, tenho quase certeza que era a pessoa que eles estavam procurando, porque a menina estava grávida, a pessoa que eles estavam procurando estava grávida. Quer dizer, depois quando foi feito o DNA, a menina estava com dois, três meses de gravidez, depois quando os corpos foram para a necropsia, para fazer o exame, ai foi descoberto que a menina estava realmente grávida. A minha nora não, que eu saiba não. Mas você também não pode falar nada, era uma gravidez precoce, de pouco tempo, mas, eles já vieram com essa hipótese, a minha prima, alguma coisa assim, a parente que nós estamos procurando está grávida de três meses. Quer dizer, hoje eu tenho quase certeza de que se a gente faz o DNA junto ali ia... Eles pelo menos tinham um [cadáver]... Eu ficava no que eu estou, mas de qualquer forma eu voltei à estaca zero. Mas, pelo menos, teria resolvido, porque os dois cadáveres foram colocados no cemitério de Campo Grande, quase que enterrados como indigentes lá, ficaram lá num lugar paupérrimo nesse cemitério. Se fosse meu filho e minha nora, a gente ia lá para realmente consumar, fazer o enterro. O que não aconteceu.

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O trabalho de investigação, como geralmente ocorre com os familiares, ficou a cargo

de Áureo. Ele conta que foi ao Ministério Público, e a promotora responsável pelo caso estava

de férias. O promotor substituto orientou Áureo a cobrar da polícia uma investigação da casa

onde supostamente seu filho teria ficado em Quintino, conforme relatado por sua nora.

Sem saber nada praticamente, porque não houve uma investigação, então o que o promotor mandou é eu cobrar isso aí. É o que eu sei, né, que foi na rua, quer dizer, aí tem um... A delegacia mandou uma intimação para a Rua da República, número 74, pô, eu tenho que ver lá, que diz que é uma vila. Eu fui uma vez lá e não tive coragem de parar, está me entendendo, eu fui lá cara, mas me deu uma coisa tão estranha, tão esquisita, que eu saltei no ponto de ônibus para ir lá, quase assim como daqui para ali perto, eu não consegui, não sei o que houve, eu peguei o ônibus e fui embora, nunca mais nem passei nessa rua.

Outra imperícia da polícia, ou desinteresse, segundo Áureo, foi deixar de intimar uma

testemunha que dizia ter visto o filho e a nora serem presos pela polícia. Na verdade, ele não

tinha certeza se essa testemunha chegou ou não a prestar depoimento. O fato é que ela viu os

dois presos pela polícia. Tinha uma outra testemunha. Essa menina eles não intimaram. Depois quando intimaram ela não compareceu. Não sei se ela foi. Ela viu. Ela não conhece meu filho, mas ela trabalhava aqui no Hospital da Marinha e ela conhecia a Danielle, a minha nora. E realmente falou a roupa que ela estava, que ela realmente estava, ela viu os dois presos com a polícia...

Nas várias visitas a delegacias, Áureo teve que ouvir diversas vezes dos policiais que o

filho era bandido e estava sendo procurado pela polícia. Isso era o que mais o incomodava. Os policiais que estavam me ouvindo na delegacia falaram para mim: “Seu filho é bandido. Seu filho está sendo procurado pela polícia”. Na segunda vez, um delegado, um dos delegados que mais contribuiu, que deu uma assistência, mas não demorou nada na delegacia, falou com o policial: “Ele está aqui procurando o filho dele desaparecido, não está querendo saber se o filho dele está sendo procurado”. Ele chamou atenção do policial, entendeu, por este fato aí. Mas eu tive esse grande constrangimento de na minha cara, eu estou procurando meu filho, como é que vai falar para mim que ele está sendo procurado. Não quero saber. Eu também estou procurando. Quero ver achar. Eu falei: “Quero ver é achar!”. “O juiz fulano de tal também está procurando, lá em Jacarepaguá o juiz beltrano também está procurando”. Quero ver achar ele, eu também estou procurando. Então como é que eles vêm falar isso comigo.

Neste caso, o fato de o filho estar sendo procurado pela polícia, praticamente retira o

direito do pai de fazer um registro de ocorrência e ter seu caso investigado. A acusação de

bandido que pesa sobre o filho e a trajetória de envolvimento com o crime, conhecida pelo

pai, leva Áureo a uma quase certeza de que o filho está morto. Diferente das mães que,

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mesmo após anos e mais anos do desaparecimento dos filhos, alimentam a esperança de

reencontrá-los vivos, o envolvimento do filho de Áureo com o crime não permite manter tal

expectativa.

Não tem corpo, mas eles estão mortos. Quer dizer, praticamente eu tenho essa noção concreta que eles realmente estão mortos, não estão desaparecidos. Quer dizer, o que eu tenho para falar para você? Já vai fazer dois anos agora, dia vinte e oito de novembro, e estou nessa situação que eu estou falando. Sem esclarecimento nenhum.

A cada encontro de ossadas ou de cadáveres divulgado nos jornais ou comunicado pela

polícia, lá estava Áureo novamente investigando se eram de seu filho e da nora. Foram várias

situações como esta. Apesar de não haver a materialidade do corpo, neste caso, o

desaparecimento é tido como certeza de morte.

3.5. Maria Cecília e Laura

O contato com Maria Cecília seu deu por meio de uma psicóloga que conheci quando

realizava um trabalho de campo no Bairro Peixoto, em Copacabana. Essa psicóloga foi

entrevistada por mim para uma pesquisa que, em termos gerais, tinha o objetivo de analisar as

formas como os moradores de espaços de classe média tematizam e problematizam a

violência urbana. Além de fazermos uma porção de perguntas para nossos entrevistados,

muitas vezes somos interpelados a falar de nós mesmos, o que fazemos, onde moramos, o que

pesquisamos etc. Foi numa dessas situações que falei a esta psicóloga sobre a pesquisa que eu

estava fazendo sobre desaparecimento de pessoas/pessoas desaparecidas.

A psicóloga ficou muito interessada no tema e foi nesta circunstância que me disse que

atendia em seu consultório uma mãe, cujo filho estava desaparecido, supostamente em razão

da ação de uma milícia. Disse que não poderia passar imediatamente o contato dessa mãe sem

que fosse autorizada, mas iria conversar com ela e provavelmente ela aceitaria me conceder

uma entrevista. Também recebi convites dessa psicóloga para falar em eventos por ela

organizados no Bairro Peixoto. Foi uma situação bem diferente das que eu estava acostumado

a participar. Falar para um público não acadêmico, embora muitos tivessem passado pela

universidade ou tivessem algum vínculo com ela, basicamente sobre o desaparecimentos de

pessoas pobres, quando meu interesse ali era também pesquisar como os moradores de classe

média lidam com a temática da violência urbana. Todos ficaram muito sensibilizados e

chocadas com as histórias que ouviram.

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A psicóloga, enfim, conversou com a mãe do jovem desaparecido e, após esta aceitar

me conceder a entrevista, me passou os contatos para que pudéssemos nos comunicar. A

entrevista foi realizada no local de moradia de Maria Cecília, e dela também participou sua

filha Laura.

3.5.1. O filho saiu com a namorada e “sumiu”

Maria Cecília é gari, moradora de uma área popular na Zona Sul. Segundo seu relato,

o filho caiu numa “cilada”, armada pela namorada. Em muitos relatos de familiares, a figura

da namorada, ou alguma mulher com outro tipo de vínculo, é apontada pelas mães dos jovens

desaparecidos como responsável por levar o filho para alguma “emboscada”, como nesse

caso.

Segundo Maria Cecília, o filho Ramon, de 20 anos, estava namorando Kátia, uma

menina de 18 anos, moradora de Duque de Caxias. O namoro iniciara há aproximadamente

um mês e a namorada frequentava o local de moradia de Ramon porque tinha uma avó que

também morava ali. O desaparecimento começou com a história de uma festa. Era o

aniversário da mãe de Kátia e aconteceria uma festa em Duque de Caxias, à qual Kátia

desejava que Ramon comparecesse. Maria Cecília não queria que o filho fosse, porque

segundo ela, ele não conhecia o “subúrbio”, e também porque não via com bons olhos essa

namorada.

Quando foi no dia 22 de novembro [de 2008], ela veio aqui em casa buscar ele, porque era o aniversário da mãe e eles iam. Ele ia conhecer os pais [da namorada]. Aí ele ficou naquela enrolação, que não ia, que não ia, que não ia. Estava chovendo, estava um tempo frio e na sexta-feira ele tinha arrancado dois dentes em cima, dois dentes em baixo. Aí, acabou, no fim, ele se arrumou, e a irmã [da namorada] ligando, ligando: “Você não vai vir ? Você não vai vir? Vai ficar aí por causa do seu namorado e não vai vir para o aniversário da sua mãe?”. Aí eu cheguei, falei para ela: “Vai porque a mãe é sua. Deixa ele, porque o Ramon não conhece o subúrbio”. Só que o Ramon não tinha juízo e o Ramon não conhecia o subúrbio, então eu pedi que ela [fosse]... E falei para ela: “Você vai e deixa ele aqui.” Aí ele estava com muita dor de dente. Eles almoçaram, passaram [o dia] juntos, eu pedi para ela fazer a minha unha. E fazendo... enrolando, enrolando. Ele tomou banho e se arrumou. Eu estava sentada aqui, minha irmã chegou e estava sentada ali. Minha irmã sentou ali e eu aqui. Aí ele veio me deu um abraço muito quente, um beijo muito quente. Aí eu falei para ele: “Meu filho, você não vai, porque isso está me cheirando a uma cilada”. Aí ele falou: “Não, mãe, eu não vou não. Vou fazer o que lá? Porque eu não conheço nada lá.”. Aí deu sete horas, isso era seis horas da noite, do dia vinte e dois, deu sete horas... deu oito horas. Quando foi quase nove horas da noite o telefone tocou, aí eu vim atender era ela, a menina: “Ô tia, já chegamos está tudo bem.” Eu falei: “Chegamos aonde?”. “Na minha casa”. Eu falei: “Não, mas eu disse para ele não ir.” “Tia, não precisa ficar com medo não porque aqui não tem negócio de facção não, aqui é milícia.”

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Após o telefonema de Kátia, Maria Cecília e a filha Laura comentam que essa

namorada do filho é “poderosa”, porque Ramon não tinha o hábito de sair de casa para lugar

nenhum e ela conseguiu retirá-lo de casa e levá-lo para um lugar que ele nem conhecia. Maria

Cecília diz que, quando Kátia ligou, quis falar com Ramon, mas nesse momento a ligação

caiu.

No dia seguinte à festa, os dois ficaram de aparecer para almoçar com Maria Cecília.

Ela conta que preparou o almoço, fez “um monte de coisa”, e nada dos dois aparecerem.

Depois de muito esperar, ela resolveu almoçar. “Vou almoçar porque eu estou com fome,

porque eu acho que não vem mais ninguém”. Nesse momento, o telefone toca. Quem atende é

a irmã de Ramon, e quem estava do outro lado da linha era Kátia.

Eu atendi o telefone, ela: “Laura, Laura, sou eu a Kátia”. Eu falei: “Ué, Kátia, você está bêbada?”. Porque eu pensei que ela estava no aniversário e para mim a festa tinha continuado, né? Ela: “Não, não, o Ramon”. Eu falei: “O que aconteceu com o meu irmão?” [em tom apreensivo]. Aí nisso, alguém tomou o telefone da mão dela, porque a voz era masculina e disse assim: “É que aconteceu uma coisa assim, tipo uma tragédia com o Ramon.” Eu falei: “O que aconteceu com meu irmão?”. Aí já entrei em desespero. “Ele foi para o campo jogar bola com o irmão da Kátia e chegou lá, simplesmente chegaram seis caras, sequestraram o Ramon e levaram. Atiraram dentro do carro e levaram.” Eu falei: “Não, não pode ser”. [Laura]

Após ouvir a notícia Laura desmaiou. Maria Cecília pegou o telefone e ouviu a mesma

história. Começava o drama e, para piorar a situação, não tinham o telefone da casa da

namorada de Ramon. Ligaram para toda a família comunicando o ocorrido, enquanto isso

procuravam perplexos explicações para o que estava acontecendo. “Isso não pode estar

acontecendo. Como é que chegam seis pessoas, um rapaz vai num local que nunca foi,

primeira vez, chega lá e simplesmente seis pessoas sequestram ele, e eles não viram o carro,

não denunciaram, não fizeram nada”, se questiona Laura.

Entre a perplexidade e a urgência de correr em busca de informações do paradeiro de

Ramon, lembraram de entrar em contato com a avó de Kátia, que era vizinha, morava ao lado.

E começou a roda-viva, a peregrinação.

Laura: Aí nós entramos em contato. Conseguimos entrar em contato com a avó. Entramos em desespero, ficamos desesperadas. Aí todo mundo: “Vamos pegar o telefone.” Aí fomos [andando] na casa da avó dela, pegar o telefone da casa dela. Fábio: Que mora aqui, né, a avó dela? Laura: Que mora aqui, entendeu. Mora aqui. Aí fomos. A menina, a tia dela veio. Até falei: “Vamos para Nova Campina, a gente tem que chegar lá. A gente tem que saber o que realmente aconteceu”. Porque até então... Fábio: Não sabia de nada, só isso. Laura: Não sabia de nada. Aí minha prima foi ligou para lá, para eles, e eles tinham

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falado que ouviram dizer que tinham tacado fogo nele. Fábio: Tacado fogo nele? Maria Cecília: É, que tinha [tacado fogo nele]... Ouviu dizer. Laura: A família [da namorada de Ramon] que falou. Maria Cecília: A família que falou por telefone que ouviu dizer. Mas nós não vimos. Eu não vi corpo, eu não vi onde está. Porque se está dentro do carro tinha que aparecer o carro velho. Não é? Com as ossadas dentro. E nós ficamos rodando. Aí uma hora eles diziam que tinham mandado o corpo, que tinham trazido ele vivo. Os caras disseram que tinha trazido ele vivo para o morro. E nós ficamos procurando e não ficamos sabendo de nada. Aí quando foi no dia vinte e quatro, já seria numa segunda-feira, nós saímos. Ela foi na 14ª, aí a moça disse que a gente teria que ir em Caxias, na delegacia mais próxima, porque aqui não registrava queixa, porque aqui não fazia parte para lá. Fábio: Tinha que fazer a ocorrência lá? Maria Cecília: Lá. Aí nós fomos na Cinquenta e Nove. Não temos nada a falar, fomos bem recebidos, mas assim tipo um descaso, como se fosse assim tanto faz, menos um. É pobre não tem dinheiro. Entendeu? É menos um, né. Aí nós saímos daqui fomos lá para a Cinquenta e Nove. Nós fomos para a Meia Dois, que é em Imbariê. Laura: Espera aí mãe, só interromper um pouquinho. No domingo mesmo nós ligamos para a tia dele e fomos para Nova Campina. Aí recebemos um telefonema dentro do ônibus que não era para nós irmos, porque ele não estava lá, tinham trazido para o morro daqui. Fábio: Morro daqui? Laura: É. Aí voltamos. Aí a gente começou a fazer contato com eles [os familiares da namorada de Ramon] de novo. Eles cada hora contavam uma história, cada hora diziam uma coisa. Aí eu fui na Décima Quarta... eu falei: “Não, agora a gente tem que resolver alguma coisa”. Já eram sete horas da noite e a gente não tinha ainda fundamento nenhum. Aí eu fui até a Décima Quarta registrar um registro de desaparecimento. Pior, aí eu falei, é assassinato, porque desde quando eles falam que ouviram dizer que tacaram fogo é porque mataram. Não é? Porque eles sabem melhor do que ninguém o que realmente aconteceu. Aí chegou lá, eu conversei com a delegada, como ele era usuário de drogas, ele usava drogas, aí ele teve uma [ocorrência] aí puxou, mas não teve nada assim. Só para não..., ele não ficou preso, nada disso. Maria Cecília: Quando ele era menor. Fábio: Quando ele era menor? Laura: É. Na época ele era menor, tinha 17 anos. Aí fomos, aí eu conversei com ela. [A delegada] foi ligou para a Cinquenta e Nove e tinham dito que tinham encontrado um corpo com as características do meu irmão. Aí ela falou, então você vai, porque de qualquer forma você vai lá e vê. Porque de qualquer forma a ocorrência tem que ser feita lá, porque a jurisdição é de lá. Aí fomos, nisso eu falei: “Mãe, já é sete, oito e pouca da noite, como a gente vai fazer?”. A gente não conhecia Caxias, não conhecia nada. Fábio: Vocês duas que foram lá? Laura: Segunda-feira de manhã. Maria Cecília: É, segunda de manhã. Fui eu, ela, meu irmão, meu genro, minha irmã. Laura: Aí fomos para o IML, fazer o reconhecimento do tal do corpo, mas quando chegou lá não era ele. Aí o rapaz falou: “Então vocês tem que ir para o IML no Hospital de Saracuruna”. Aí fomos e começamos a procurar o Hospital de Saracuruna, o Hospital antes de Caxias. Fomos procurando nos IMLs, fomos procurando, até que a gente chegou na Meia Dois [Delegacia]. Fábio: Meia Dois é lá em Caxias? Laura: Lá em Caxias, no Imbariê. E explicamos a situação para o investigador. Ele falou: “Mas olha, essa história aí está mal contada”. “Não tem história, né, não tem história”, eu falei. “Nós estamos falando o que a gente sabe, o que foi passado para a gente por telefone. Foi passado para a gente por telefone”. Chegamos a ir até Nova Campina, até o posto. Chegamos lá, conversamos com os policiais do posto que falaram que não tinha havido nenhum registro, nenhuma queixa. Não tinham ouvido

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nenhum caso e que na verdade a gente tinha que voltar para a Meia Dois e fazer o registro na Meia Dois. Aí continuamos procurando, aí no dia vinte e quatro, a gente conseguiu fazer o registro. Já era outro investigador. Aí não, desculpa. Aí voltei, voltamos para casa, voltamos de novo na Décima Quarta. Expliquei tudo de novo para o investigador da Décima Quarta. Ele falou: “Minha filha, essa história está mal contada e essa família tem que dar conta. Você vai para a Cinquenta e Nove, porque lá é a jurisdição deles para fazer o registro, porque eles têm que registrar e ver o que eles vão resolver”. Fomos na Cinquenta e Nove, chegamos na Cinquenta e Nove explicamos de novo ao investigador. O investigador falou: “Não, mas não é aqui, é lá na Meia Dois”. Aí voltamos para a Meia Dois de novo. Isso já era na terça-feira, fomos muito bem atendidos, com certeza, pelo investigador. Explicamos tudo, contamos toda a história que nós sabíamos. Ele falou que o que precisasse ia ajudar e ia chamar, ia intimá-los a depor, aquela coisa toda. Só que hoje já se passaram seis meses... Não encontraram o corpo, não sabemos... Nós vimos pouco interesse da polícia. Porque, infelizmente, é como é a realidade do mundo, né, se você tem dinheiro, você pode tudo, se você não tem...

Segundo os relatos de Maria Cecília e da filha Laura, os pais da namorada de Ramon a

proibiram de falar sobre o assunto e disseram que estão sendo ameaçados. Laura conta que, no

dia 31 de dezembro de 2008, foi liberada mais cedo do trabalho, em razão dos preparativos

para o festejo de ano novo. Como em sua casa não havia clima para festa diante do drama que

a família vivia com o “sumiço” do irmão, resolveu aproveitar que saíra mais cedo do trabalho

para se encontrar com o pai de Kátia:

Aí eu fui lá e conversei com o pai dela. Passei e perguntei ao pai dela: “Você sabe me dizer o que vocês resolveram? Vocês sabem alguma coisa? Alguém comentou?” “Não, nós não sabemos nada, e outra coisa, a senhora pode olhar dentro da minha cara porque nós conhecemos todos os três, mas nós não podemos falar. Meu filho viu, mas meu filho não pode falar porque se meu filho falar... os caras voltaram lá e falaram que vão matar a família inteira”.

No trecho a seguir, Maria Cecília assume que o filho era usuário de droga, e ainda

assim, faz uma limpeza moral do filho para, em seguida, lançar suspeitas sobre a família da

namorada, por eles morarem em favela.

Agora, como lá é uma favela, porque você não vai dizer para mim que não é, porque eu vi, com meus olhos, muito grande, com duas facções enormes. Aí quer dizer que a polícia não vai, porque é um qualquer, é menos um. Eu falei para ele: “É menos um”, falei para o pai. E eu falei para ele: “E o que eu estou falando para você, eu disse para o delegado”. E não menti, falei: “Olha, ele usava droga, ele usava droga, ele fumava maconha, mas ninguém dizia que ele fumava maconha, porque ele era uma pessoa... ele tinha um metro e oitenta, era uma pessoa tranquila, não falava gíria, não tinha andar de malandro. Ele andava muito bem vestido, porque o pai deixou uma pensão do INSS, então eu com o meu salário e o salário que o pai deixou é que eu mantenho a casa. Então eu nunca deixei nada faltar, sempre conversava com ele: “Olha muito cuidado.” Uma vez ele estava na patota, eu via, falava para ele: “Olha, muito cuidado, porque vagabundo mata, mas a polícia também mata.”. Só que eu disse, se fosse aqui nós saberíamos se foi vagabundo e saberia se era polícia. Só que lá, só quem pode dar essa resposta para a família, pra mim ter sossego, paz, botar minha cabeça no travesseiro e dormir são eles, e eles não falam.

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Em sua fala, Maria Cecília se orgulha de ser trabalhadora e de ter conseguido criar os

filhos, e por outro lado, lança suspeitas sobre o pai de Kátia, chega a dizer explicitamente que

em sua opinião ele está envolvido no desaparecimento do filho. Diz que ele ficou muito

tempo sem frequentar a localidade e, após o “sumiço” do filho, passou a reaparecer com

frequência. “Aí ele sempre está aqui na casa da mãe, ele sempre vem na casa da mãe. Eu

disse: ’Todos os assassinos voltam no lugar do crime, não é? A resposta é essa, não é?’”. Em

outros momentos da entrevista, no entanto, ela relativiza a participação dele, por falta de

provas.

Maria Cecília e a filha Laura contam ainda que vivem ligando e indo à delegacia, mas

esbarram sempre em um jogo de empurra-empurra. Em cada delegacia à qual se dirigem,

recebem a informação, ou a desculpa, de que o caso foi enviado para outra repartição e,

quando chegam à outra repartição, não há registro algum. Relatam também que os policiais

disseram que mandariam uma intimação convocando os familiares para prestarem

depoimento, o que também não chegou a acontecer.

3.5.2. “A vida para mim parou, não vejo mais graça em nada”

A situação de desaparecimento do filho produziu um impacto tão grande na vida de

Maria Cecília que ela chegou a entrar em um estado de prostração, parou de trabalhar e conta

que não vê mais sentido na vida. A sensação de frustração e vazio de quem dedicou toda a

vida a cuidar sozinha dos filhos, abrindo mão da juventude para viver a maternidade, e de

repente vê o direito à maternidade violado, aparece repetidamente em seu relato. Ao contar

sua história, Maria Cecília expressa todo o zelo e cuidado que teve em relação à educação e à

segurança do filho.

Olha, eu parei de trabalhar. Eu fiquei três meses de licença. Aí o médico tinha pedido que eu voltasse a ficar de licença de novo, mas eu voltei a trabalhar, porque é um problema muito sério. Assim, a vida parou, eu fiquei inútil, né. A vida para mim parou. Eu não vejo mais sentido em nada, eu não vejo mais graça em nada, porque ele era a alegria da casa. Porque ele tinha um metro e oitenta, com vinte anos. Às vezes parecia que tinha quinze, dezesseis anos. Então a vida para mim parou. Porque ele era aquele filho assim, ele escutava, mas não via. Eu chamava ele, eu conversava, eu falava, eu ia na escola. Eu consegui pelo juizado de menores uma bolsa para ele fazer curso de bombeiro. Tudo eu ficava ali, eu tomava conta. Do trabalho tomando conta, ainda falava para ele: “Você não tem vergonha? Você já homem, rapaz, e eu tomar conta de você?”. Eu não dormia enquanto não desse onze horas, onze e meia, enquanto ele não chegasse em casa. Mas infelizmente eu não sei porque aconteceu. Porque falta de tomar conta não foi. Sempre tive muito medo, porque se eu falar que não tenho, que não tive, eu estou mentindo, porque de acontecer... de estar ali embaixo, da polícia vir dando tiro e ele receber um tiro.

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Tinha medo de os caras entrarem aqui dentro dando tiro e ele receber...

O abatimento que o evento crítico do desaparecimento provocou foi capaz de alterar a

relação de Maria Cecília com o trabalho e com sua autoimagem. De tão desmotivada e

desencantada, chega a dizer que, porque parou de trabalhar, tornou-se uma “inútil”. A relação

com o trabalho passa a ser uma relação meramente instrumental, trabalha porque precisa de

dinheiro.

O relato de Maria Cecília, assim como praticamente todos os relatos dos familiares

que entrevistei, podem ser lidos a partir da ideia de “desenraizamento”, tal como esse conceito

foi concebido por Simone Weil. Para pensar o que é o desenraizamento, é necessário antes

apresentar o que a autora entende por enraizamento. Em “A condição operária e outros

estudos sobre a opressão”, Simone Weil escreve que “O enraizamento é talvez a necessidade

mais importante e mais desconhecida da alma humana e uma das mais difíceis de definir. O

ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural na existência de uma

coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do

futuro” (Weil, 1996: 347). Quando Simone Weil escreveu este texto, estava pensando na

condição dos operários, na opressão, na humilhação, enfim, nas formas de adaptação

desenraizadas que a própria modalidade da produção em série criava (Bosi, 2003: 177). No

caso de Maria Cecília, a causa do desenraizamento é o desaparecimento do filho e sua

provável morte, mas, não havendo o cadáver que comprove a morte, ainda paira a dúvida

eterna que a faz perecer com o tempo.

Nós não esperávamos, né? Nós não esperávamos, então nós ficamos assim sem saber o que fazer, porque eu fiquei vai aqui, vai ali, vai aqui, vai ali, vem aqui... Andei tudo, fiz o que pude e faria mais. Aí vai para... Como é que é o nome? Félix Pacheco, vai para o Instituto Médico Legal, para procurar corpos, quando chega lá, não tem corpo nenhum, não tem identificação de ossada, não tem nada. E volta e aquilo está só me roendo, aquilo está acabando comigo. Cheguei e fiquei numa depressão de quarenta e seis quilos. Fiquei com problema emocional. Vira e mexe estou fazendo... Então eu estou com dois ossos daqui da perna que estourou, aí os médicos querem operar, mas eu pedi que não operasse agora, porque eu estou com um problema emocional muito grande. Tenho medo de tomar anestesia e morrer, e falecer, não é? Aí vou agora semana que vem no outro médico para ele avaliar, para ele fazer uma avaliação, para ver o que ele pode me ajudar. Quer dizer me complicou toda. Porque foi o que eu falei, foi o que eu estava falando com a Doutora. Eu falei: “Olha, eles não mataram ele. Sabe por quê? Seja qual for o tipo da morte ele descansou, eles mataram fui eu, que estou viva. Foi a mim que eles deram o tiro no peito, foi a mim que eles tacaram fogo.” Porque sabe o que é criar um filho sozinho, sem pai? Só eu sou mãe e pai. Sempre fui. Dos três filhos, eu sou pai e mãe. Sempre dei duro, sempre trabalhei, sempre tomei conta. Perdi o resto da minha mocidade todinha para cuidar dos filhos e depois um vem e me dá um abraço.

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O passado e o futuro na vida de Maria Cecília aparecem “roídos”, para usar a palavra

dela. O fio que conduz o passado ao futuro era o filho. Esse filho, junto com os outros,

representou a perda da mocidade e a experiência da maternidade que, agora, diante do drama

e da tragédia que se abatem sobre sua vida, é violada.

Olha, você sabe que eu não tenho mais... Eu sentei, eu estou sentada, eu só estou indo trabalhar porque infelizmente eu preciso ir trabalhar. Eu preciso trabalhar porque eu tenho que pagar o apartamento, eu tenho que comer, eu tenho que vestir, eu tenho que calçar. Eu tenho os remédios para comprar. Então eu preciso ter dinheiro, se não eu não tenho dinheiro para comprar, mas eu preciso de trabalhar para ter o dinheiro. Fico dependendo de ter o dinheiro, porque por mim eu acho que só ficava deitada, dia e noite, e não fazia mais nada. Tipo assim, acabou. Tudo que está [lá fora], prédio, loja, tudo, para mim não tem mais graça para nada. Não aguento ficar dentro do supermercado, não aguento entrar dentro de uma loja, não aguento fazer mais nada. Mais nada. Quando eu estou na rua varrendo, que eu acho que a pessoa está me olhando, eu fico com medo daquela pessoa. Eu fico com medo dela. “Ué, por que está me olhando?”

É exatamente a participação em um mundo compartilhado que aparece abalada, um

pertencimento a uma humanidade comum que não existe mais, e gera um estado de

abatimento, de desenraizamento, de falta de energia, de esgotamento de qualquer “vontade de

potência”, no sentido nietzscheano. E a “vontade de potência” nietzscheana pode ser

entendida como a vontade de triunfar sobre o nada, de vencer a fatalidade e o aniquilamento,

é a busca da superação da catástrofe, da morte (Nietzsche, 2011). A catástrofe para Maria

Cecília já aconteceu (o desaparecimento do filho) e ela se encontra imersa dentro da

catástrofre. Com isso, o próprio devir da vida parece não existir mais, viver tornou-se uma

espera pelo passar das horas e dos dias. Maria Cecília chega a se autodefinir como uma “viva

morta”, ao dizer que, independentemente do que tenha sido feito com o filho, os responsáveis

pelo seu desaparecimento e pela sua morte presumida mataram-na, ela “que está viva”.

O desaparecimento produz uma sensação nos familiares de ter que lidar com a morte

permanentemente e em duplo sentido: por um lado, a morte não solucionada do desaparecido;

por outro lado, suas próprias vidas, em alguns casos, tornam-se processos de morrer lentos e

contínuos. Esse lidar constante com a morte pode ser considerado uma das formas como o

terror se manifesta neste tipo de experiência dos familiares.

Em relação ao relato de Maria Cecília, o que se tem parece ser uma associação entre

medo/dor/terror e uma angústia permanente sobre o fim que teria levado o filho. Teria tido

pelo menos o direito elementar de ter um enterro digno ou teria tido sua humanidade negada

até mesmo pela forma como morreu? Teria sido mais um corpo abjeto jogado nos rios ou nas

valas comuns do Rio de Janeiro? Uma das dimensões do terror é a incerteza, o fato de se lidar

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apenas com rumores. O impacto desse terror aparece até mesmo nos sonhos dos familiares,

como esse relatado por Maria Cecília: Nós ficamos sem saber se jogaram dentro do rio, nós ficamos sem saber se enterrou ele. Porque eu no começo sonhei com ele, eu não sei se tu acredita em sonho, porque tem pessoas que não, que não acredita, né? Eu tinha sonhado com ele que eu estava assim num terreno baldio, mas eu estava varrendo. E era cheio de capim verde miudinho. Varrendo trabalhando, mas eu estava chorando muito, trabalhando chorando, nisso meu relógio, esse relógio meu caiu. Quando eu fui para pegar o meu relógio aí eu vi ele de bruços. Eu falei: “Meu filho. o que você está fazendo aqui? Você veio encontrar comigo? Levanta.” Aí ele mexia com a boca: “Não posso, não põe a mão em mim, porque eu estou todo quebrado”. Aí eu acordei em desespero. Eu vi direitinho e até hoje eu sei contar o sonho.

A irmã de Ramon, Laura, reivindica no relato a seguir, o direito à informação, o direito

ao menos a uma morte digna para o irmão, e o direito da família de enterrar o ente querido. A gente foi no Fórum para poder saber como é que a gente podia fazer para poder dar andamento no processo para ter um advogado, porque a gente não tem condições de pagar advogado. A gente só quer ter uma resposta, porque é tão ruim você saber assim... Ah, diz que morreu, diz que não. Você não viu o corpo, você não viu nada. Você não sabe. É uma coisa, é aquela dúvida. A gente quer saber o que realmente aconteceu. O que houve e o porquê. Mesmo se ele fez alguma coisa, que nós não estamos sabendo, que não está no nosso conhecimento. Eu acho também que isso não dá direito de ninguém pegar e tacar fogo ou fazer coisas, não existe isso. Estando certo, errado ou não. Todo mundo tem direito de nascer, ter registro de nascimento e viver, de morrer e ter registro do óbito. Olha, essa incerteza, essa dúvida que corrói aos poucos, só quem está passando é que realmente sabe o que é a dor. Porque eu sei que tem vários casos de... Não é só o meu, tem outros casos até piores, que tem até mãe que sabe, que vê e não pode nem dizer. Entendeu? E convive sabendo que fizeram vários tipos de covardias com seu filho e você tem que passar e olhar.

A sensação de pequenez, de humilhação e de que teve a própria humanidade reduzida,

aparece na comparação que Laura faz de sua condição com a de um verme: “Nós somos

diminuídos como se fôssemos vermes, infelizmente. É triste, é doloroso”. O mesmo

sentimento é compartilhado por Maria Cecília, que completa: “Não tem nem trabalho mais

para os coveiros. Agora os coveiros estão desempregados, porque eles mesmo agora matam e

enterram”.

3.6. Maria das Dores

O caso de Maria das Dores, assim como outros registrados nesta pesquisa, permite

pensar em escalas de desaparecimento, ou seja, são casos em que a pessoa desaparece por

algum tempo mas, depois de certo período, consegue-se comprovar a morte, através do

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encontro de ossadas ou de partes do corpo, tornando possível a identificação através do exame

de DNA. Esse caso foi registrado quando decidi cruzar os registros policiais de

desaparecimento com os registros de encontro de ossada e encontro de cadáver.

O contato com Maria das Dores foi feito através de seu número telefônico, obtido

através de informações disponíveis no Registro de Ocorrência do desaparecimento. Após uma

ligação, ela aceitou conceder uma entrevista, que foi realizada em sua casa, na região de

Campo Grande, Zona Oeste do Rio de Janeiro, área com forte presença de milícias.

3.6.1. O “sumiço” do filho

Maria das Dores conta que o filho saiu para trabalhar e não voltou mais:

O caso foi assim, meu filho na época estava com 28 anos, né? E ele saiu para trabalhar na Michelin, só que ele trabalhava dentro de uma terceirizada da Michelin. Ele saiu no dia 27 de abril [de 2010]. Saiu normalmente, como ele fazia todos os dias e eu notei que quando chegou na terça-feira ele não retornou, mas como ele...tava com uma namorada, então ele tava com a namorada, né!? Só que ele não tinha o costume de dormir fora ou de não me avisar, mas pode acontecer e como se deu na quarta-feira já, então ele dormiu lá e foi para o trabalho. Esperei a quarta-feira de novo, ele não retornou e eu já comecei a ficar preocupada.

Ela conta que, diante do nervosismo, já pensava na cobrança que ia fazer ao filho

quando o encontrasse, dizendo não admitir que ele dormisse fora de casa sem que a

comunicasse. Mas o filho não voltara e começaram as buscas. A primeira atitude foi procurar

saber entre os amigos do filho quem era a namorada que ele havia arrumado. Após a

descoberta, o passo seguinte foi falar com a namorada, que disse que a última vez que havia

visto Wesley fora em um churrasco, no domingo anterior, depois disso não foi possível

encontrá-lo novamente porque ela estava trabalhando. Diante dessa informação da namorada,

Maria das Dores começou a ficar agitada e procurou uma delegacia de polícia. Na delegacia,

os policiais pediram que ela fosse primeiro ao local de trabalho do filho para averiguar se

conseguia alguma informação. No local de trabalho, os funcionários da empresa disseram que

na quarta-feira ele não retornou para trabalhar.

Maria das Dores voltou então à delegacia para fazer o Registro de Ocorrência e

aproveitou para deixar fotos do filho com os policiais. Na delegacia, os policiais perguntaram

sobre as últimas pessoas que haviam tido contato com Wesley. Ela passou os nomes das

pessoas aos policiais, que investigaram e descobriram que essas pessoas alegaram que o

estavam procurando para saírem para comer pizza. Maria das Dores conta que estranhou essa

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informação, porque o filho não tinha o hábito de sair de casa, a não ser para trabalhar. E

quando retornava do trabalho, o único lugar para onde costumava ir era uma terra que ele

tinha, onde gostava de criar animais. Fora esse trajeto, o filho não tinha o hábito de sair para

outros lugares. Conta que estranhou que por dias seguidos apareceu uma pessoa em sua casa

procurando por seu filho, segundo ela, pessoa conhecida, colega dele. No dia do “sumiço” do

filho, a mesma pessoa apareceu novamente perguntando se Wesley havia chegado.

E o desespero de Maria das Dores só aumentava. Relata que começou a recorrer a

todas as pessoas que estivessem ao seu alcance para pedir ajuda. Pastora de uma igreja

evangélica, disse que primeiramente buscou força em Deus e em si mesma, depois foi atrás de

amigos, vizinhos, “o povo da Igreja”. Chegaram a realizar várias manifestações fechando a

Avenida Brasil, carreatas dentro e fora do bairro, espalhou cartazes. Chegou a ir até a Rede

Record procurar por Wagner Montes, que apresenta um programa policial nesse canal de

televisão. O apresentador chegou a enviar uma equipe de reportagem à sua casa:

Mandou a reportagem até aqui. Eles entraram aqui dentro, fizeram a reportagem, tudo direitinho aqui comigo. Aí no meio disso tudo ainda teve um outro problema, porque depois a Record pegou meu número e passou para um outro repórter do Extra, que entrou dentro da minha casa, meu pediu para conversar tudo que tinha acontecido. Eu conversei, abri meu coração pra eles. Pegaram a reportagem, montaram uma reportagem e acusaram meu filho de miliciano, estuprador e que tinha poucos dias que ele estava fora da cadeia. Então naquela hora, além do meu filho estar desaparecido, ainda agora querem manchar a moral do meu filho.

Nota-se neste relato que a relação dos familiares com a imprensa passa por um dilema:

por um lado, há a necessidade de dar visibilidade ao caso na mídia, por outro, a incerteza

sobre o que e como será publicado. A circulação do caso na mídia pode tanto ajudar como

pode igualmente atrapalhar e gerar decepções. A atuação do jornalista e a política editorial do

jornal podem ser traduzidas em um engajamento ao sofrimento do outro, mas pode também

significar uma espetacularização desse sofrimento e um obstáculo a mais para os familiares.

Nesse caso particular, Maria das Dores conseguiu que o jornal fizesse uma retratação pública,

limpando moralmente o nome do filho. Ela diz que foi até uma delegacia, conversou com

“alguns coordenadores” e eles pediram ao jornal fosse feita a retratação.

3.6.2. Uma ossada no portão de casa

Maria continuou as buscas percorrendo lixeiras, lugares de desova, hospitais, valões de

esgoto, rios. Onde quer que aparecesse uma denúncia indicando onde o filho poderia estar, lá

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estava essa mãe atrás dele. Até que, quatro meses após o desaparecimento, mais uma situação

desoladora aconteceu. Maria das Dores relata que estava dormindo, quando, por volta de duas

e meia, três horas da madrugada, bateram forte em seu portão e ela acordou assustada. Como

é pastora de uma igreja evangélica e as pessoas tinham o hábito de procurá-la para pedir

orações, pensou que pudesse ser alguém precisando de ajuda. Correu e abriu o portão. Levou

um susto ao se deparar com uma ossada espalhada em seu portão. Deu um grito e fechou o

portão, voltou para dentro de casa assustada e não sabia o que fazer, até que começou a ligar

para os vizinhos que moram perto e pediu para que estes olhassem de suas janelas para seu

portão, para ver o que estava acontecendo em frente à sua casa. Os vizinhos olharam e

disseram que havia uma ossada em seu portão, mas que não havia nenhuma pessoa por perto.

Maria das Dores interrompe a entrevista por um instante, para pedir ao filho que

buscasse umas fotos para nos mostrar. Eram as fotos da ossada colocada em sua porta. Disse

que bateu umas fotos, começou a ligar para a polícia e ninguém atendia o telefone. Também

buscou ajuda ligando para alguns amigos policiais. Estes conseguiram, finalmente, ligar e

falar na delegacia, e pediram que fosse enviada uma viatura da polícia ao local. Quando a

viatura chegou, duas horas depois, o estado emocional de todos da casa já estava muito

abalado. O filho estava desaparecido e agora havia uma ossada diante o portão de casa.

Eu peguei tudo com a mão, coloquei num saco, botei do lado, até a policia chegar. Duas horas depois eles chegaram. Ai falaram pra mim que eu não poderia ter colocado a mão. Aí eu falei para o senhor: “Eu não vou deixar ninguém fazer chacota, nem mexer com o emocional da minha família nisso tudo, né?”. E tinha um bilhete né, que.... na hora estava escrito isso: “Fulano já foi, caiu o Beltrano”. Fulano era um moço, um jornaleiro que tinha aqui que mataram. E disse assim: “Caiu o Beltrano e quem tentar se levantar contra mim, vai ter o mesmo fim, vai ter o mesmo fim”. Ai dizia assim: “Cicrano não manda mais, quem manda agora sou eu”, alguma coisa assim. Aí eu peguei o bilhete, segurei o bilhete, entreguei pra polícia, e quando deu mais ou menos quase 12 horas, a polícia, a perícia veio com as pessoas, tiraram as fotos. Naquele dia ali eles pediram pra eu ir até a Delegacia de Homicídios. Eu falei que eu não tinha nem condições, porque eu precisava contar à mãe da minha neta o que tinha acontecido, ela não sabia. Aí, quando chegou de noite, chegaram 3 homens aqui, dizendo ser da P2, se identificaram rapidamente, nem me lembro o nome deles. E no outro dia eu parti para a delegacia, e ali dei meu depoimento do que tinha acontecido. E falei que essas pessoas tinham aparecido aqui, eles falaram que não sabiam informar que a P2 tivesse ordem para vir aqui.32

Segundo Maria das Dores, essas pessoas que foram até sua casa e se identificaram

como policiais da P2 disseram que ficaram sabendo do ocorrido e queriam saber se alguém

tinha visto quem colocou as ossadas em seu portão. Ela disse aos supostos policiais que não

tinha visto nada e não possuía qualquer informação sobre quem teria colocado as ossadas em

32 Todos os nomes que aparecem no bilhete foram retirados para preservar o anonimato.

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seu portão. Eles, por sua vez, disseram que em poucos dias seria requerido que ela e o esposo

fossem ao Instituto Médico Legal para fazer o exame de DNA.

3.6.3. Em busca de um exame de DNA para identificar o filho

O tempo foi passando e nada, a angústia só aumentava. Até que, certo dia, finalmente

alguém ligou do IML perguntando se ela tinha interesse naquela ossada, porque ela estava

ocupando espaço no IML e eles teriam que se desfazer dela em breve para liberar espaço.

Maria das Dores questionou ao funcionário do IML: Como eles poderiam se desfazer da

ossada, se ela sequer sabia se realmente se tratava de seu filho? O funcionário, por sua vez,

lhe respondeu que morre muita gente no Rio de Janeiro e aquela ossada estava ocupando o

lugar. Ela perguntou como ficaria se a ossada fosse de seu filho, ao que o funcionário

respondeu que então aguardaria mais alguns dias.

Desde então, começou a via crucis para conseguir fazer o exame de DNA. Pergunta

para um e pergunta para outro, até que os funcionários do IML, ao verem seu desespero,

segundo ela, começaram a ficar com pena dela e lhe passaram o nome e o número de alguém

da polícia técnica que fazia perícia. Ao ligar, a pessoa que atendeu disse que ela estava com

sorte, porque a bomba de água estava há meses com problema, impedindo a realização de

exames de DNA e o Estado não fazia nada. Mas, finalmente, a bomba acabara de ser

consertada e os exames de DNA voltaram a ser feitos. Maria das Dores conta que tentou

sensibilizar os funcionários do IML com sua história, disse a eles que quando se tem um filho

“marginal, maconheiro, miliciano, envolvido [com a criminalidade]”, talvez “o coração fique

esperando uma situação semelhante”, mas este não era o caso de seu filho. Ela faz questão de

enfatizar a identidade de trabalhador de seu filho, lembrando que ele trabalhava há 10 anos

em uma mesma empresa e era conhecido por todos no bairro. Para ela, a experiência pela qual

estava passando era absurda, inexplicável e injusta.

Conseguiu fazer o exame e, dentro de pouco tempo, segundo ela, saiu o resultado

positivo: realmente a ossada era de seu filho. Pergunto se ela chegou a ver o resultado do

exame, ao que ela diz que sim, no IML mesmo, e depois ele foi enviado para a Delegacia de

Homicídios: Vi, vi. Fui lá no IML, lá mesmo eles me mostraram e foram direto para a DH [Delegacia de Homicídios] e lá na DH também. Em principio eu não tenho o que falar da DH, eles me trataram com muita sensibilidade, como muita educação, foram meus amigos. Só a investigadora lá, que começou a me oprimir, que eu tinha que dar nomes, que eu sabia o nome de quem tinha feito aquilo ali e se tem milícia aqui. E

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eu falei, se tem milícia ou não tem milícia, quem tem que descobrir não sou eu. Eu acho que não é tão difícil de descobrir se num lugar tá tendo ocupação de milícia. É só botar investigador aqui dentro que vão saber se tem milícia no bairro ou não. E ela começou a gritar comigo, a gritar comigo e eu sai chorando de dentro da DH, comecei a passar mal. Aí um policial veio e me deu umas palavras, nesse meio tempo veio o outro policial e disse que o Doutor. [Fulano de tal] pediu pra eu retornar ao gabinete dele. Eu fui pra lá e ele me pediu desculpas pelo modo como a investigadora me tratou. Ele falou, me explicou: “Olha, a gente fica de mãos atadas, por que como a gente vai agir se a gente não sabe quem foi? Só as famílias, ou alguém, poderá dar as informações para que a gente possa pegar o caminho da investigação”. E eu falei: “Doutor, se eu abro a boca, se eu conto, se eu souber de alguma coisa e conto pra policia, qual é a cobertura que a policia vai me dar? O que o Estado vai poder fazer por mim? Pagar mais um sepultamento pra um dos meus filhos, meu marido ou até a mim mesmo? É isso que o Estado vai poder pagar? Porque nem isso o Estado pagou para o meu filho, nem isso ele pagou. Meu filho foi sepultado como indigente e eu que tive que pagar o túmulo, eu que tive que gastar tudinho. Porque essa história começou em abril, praticamente teve fechamento sexta feira de carnaval desse ano, quando me chamaram e falaram pra mim que agora poderia ter a hipótese de um óbito. E quando chegou na sexta feira de carnaval, fui chamada ao cartório pra receber lá o óbito. Paguei por isso, paguei.

3.6.4. Restituir a dignidade e a humanidade: um atestado de óbito e um enterro digno

O atestado de óbito ficou pronto na sexta-feira de carnaval. Maria das Dores foi

chamada ao cartório para tratar da documentação final do óbito. Em tom de indignação, relata

que ainda teve que pagar várias taxas no cartório, fazer uma declaração de próprio punho

atestando que a ossada era de seu filho. Depois de sair do cartório com o atestado de óbito,

veio ainda outra situação dolorosa:

Maria das Dores: Aí foi, eu acabei de pagar o resto da documentação. Tive na sexta-feira de carnaval o óbito final do meu filho. Eu fui, eu saí de lá quase 6 horas da tarde, naquele estado lamentável, querendo me recuperar, porque agora eu tinha outra missão. Eu tinha que procurar qual cova teriam enterrado meu filho e fui para o cemitério de Santa Cruz, me disseram que estava lá. Fábio: E eles enterraram à revelia assim, sem informar nada? Maria das Dores: Sem informar nada. Eu fui pra lá, chegando lá, na hora que estava sendo procurado, a senhora, a moça lá do cemitério ainda me erra o nome, a numeração e ainda fala pra mim: “Nossa, a morte do seu filho foi terrível”. Eu falei: “Como?”. “Mas o que fizeram! Tacaram ele no micro-ondas pra ele não ser reconhecido”. Eu falei: “Mais como? Não foi isso que a Justiça falou pra mim!” Eu estava com uma amiga minha e ela falou: “Moça, olha direito, ela está sofrendo demais. Não é morte de micro-ondas, olha aqui, é ossada (voz chorosa)”. Aí eu peguei, ela me deu o número da sepultura, e fui ver, procurar com o coveiro no meio do mato... cheio de mato que tava lá. Aí eu achei a sepultura do meu filho. Ali eu mesma fiz o papel de coveiro, jardineiro, limpei a cruz e ali eu fiquei (chorando) de um jeito assim... Como é que se diz? Agora terminou isso aqui! Uma cruz quebrada, com a numeração apagada, a numeração 1999 apagada. E ali na mesma hora, como diz, aparece todo mundo, os amigos entre aspas dos parentes dos mortos, cada um querendo... como diz, querendo a sua parte. E me cobraram 260 reais se eu quisesse fazer pelo menos um murinho, botar um pauzinho e umas florzinhas na cruz, isso foi na segunda-feira. E tudo terminou. Terminou como? Naquele dia, na segunda-feira de carnaval que eu achei meu filho, a ossada dele. Terminou agora, no dia 27 de abril fui fazer o túmulo dele e, por incrível que pareça, estava fazendo 1 ano de morto e eu

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tinha que, naquele dia, ter um coração pra chorar 1 ano de morto dele. Tinha que me alegrar, porque meu filho estava fazendo aniversário no mesmo dia. Então a data de 27 de abril era pra mim duas coisas. Fábio: E depois disso ninguém falou mais nada? Maria das Dores: A única coisa que as pessoas comentam no meu bairro foi essa, que a ossada foi colocada no meu portão, porque alguém pediu, alguém implorou para que as pessoas que fizeram isso devolvessem alguma coisa, que já não aguentavam mais ver meu sofrimento, não aguentavam me ver ficar pra lá, pra cá, pra lá, pra cima, procurando, como é que se diz, procurando um fantasma. Um fantasma porque meu filho já não existia mais. Desde o dia 27 de abril de 2007 acabou, acabaram com ele e colocaram um bilhete, porque talvez eu via que era alguma formação de milícia, então eles se aproveitaram pra colocar terror aqui dentro.

3.6.5. Adoecimento e medicalização na trajetória de uma familiar de vítima

Ao final de toda essa história ocorreu a Maria das Dores o que é comum a muitos

familiares, após o desgaste emocional e físico, o adoecimento e o processo de medicalização.

Ficou hipertensa, desenvolveu problemas cardíacos, passou a tomar remédios tarja preta e

vive com dores.

Terminou e hoje eu sou uma pessoa super hipertensa, eu sou uma pessoa que agora eu tenho dor muscular, devido eu ter segurado uma carga que acabou com a minha saúde, fiquei com problemas cardíacos né, vivo a base de rivotril, vivo a base de remédio de pressão, porque todo dia minha pressão sobe. Tento levar a vida ajudando outros Wesleys, outras Marias, que estejam passando por processos semelhantes ou iguais, [para evitar] que elas passem [o que passei], que outros Wesleys morram, sejam destruídos.

Em sua fala lamenta ter ficado com a saúde abalada, porque é uma pessoa que precisa

da saúde para ajudar outras pessoas. Luta para ajudar outras Marias e outros Wesleys,

sobretudo através de sua atuação religiosa como pastora.

3.6.6. “Muita terra pra uma pessoa criar bicho”: a milícia e a expropriação da terra

Em relação ao caso do filho, acha que o motivo do conflito que levou ao seu

desaparecimento e assassinato possa ser uma terra que ele possuía, onde cultivava alguns

animais. Segundo Maria das Dores “as pessoas” achavam que “era muita terra pra uma pessoa

criar bicho”. Por que o que as pessoas falam que mataram meu filho? Por que mataram meu filho? Só porque meu filho tem um pedaço de terra debaixo de uma Rede de Furnas, que é aquilo ali que vocês estão vendo.

Ela conta que “está tendo invasões” na área, mas as pessoas, quando invadiram

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“aquilo ali”, sabiam que era de seu filho. Disse que, tempos depois, ficou sabendo que o filho

vinha sofrendo ameaças de morte.

3.6.7. O engajamento religioso: entre “familiar de vítima” e “pastora evangélica”

Ao narrar sua história e sua trajetória, ela dá uma ênfase no trabalho religioso que

desenvolve numa igreja evangélica. Diz que precisa ter força, porque, além de mãe e esposa,

ainda tem que ser pastora. “Tenho uma igreja com 200 metros quadrados”, diz ela, que

considera que o trabalho na igreja é uma forma que encontrou de ajudar as pessoas. E

exatamente por se auto perceber como uma pessoa que trabalha em prol dos outros, não

consegue entender porque tamanha tragédia foi acontecer logo com ela, que dedica a vida a

“ajudar as pessoas”. E parece até brincadeira que, desde que eu fui denominada pastora, meu coração sempre foi esse ajudar moços, pessoas que tinham muitos problemas. Eu passei 15 anos da minha vida tirando da rua traficantes, drogados, prostitutas. No meio disso tudo eu não posso parar, porque diversas pessoas vêm bater na minha porta, chorando. Dizendo, pastora, me ajuda porque vão matar meu filho, pastora, me ajuda, tira meu filho do trafico, ajuda meu filho, leva pro centro de recuperação, pastora. E eu tenho que fazer esse papel, eu faço esse papel dentro do meu bairro.

A entrevista com Maria das Dores dividiu-se em torno de dois temas e em duas partes:

na primeira, nos contou a história do desaparecimento e morte do filho, e o restante da

entrevista consistiu em um relato do trabalho como pastora. Falou do trabalho no bairro, da

circulação por várias favelas, contou vários casos de traficantes jurados de morte que

conseguiu salvar e transformar em “pessoas do bem”. Sobre o “chamado de Deus”, ela assim

se expressou:

Olha, no princípio, quando eu comecei com isso tudo, eu não sei se vocês vão entender. Quando eu senti o chamado de Deus na minha vida, eu perguntei pra Deus o que ele queria comigo, e a voz de Deus, ele queria dar pessoas pra eu cuidar e Deus falou no meu coração: “O que tu quiser eu dou pra você cuidar”. As pessoas brincam até hoje, e dizem, “a senhora pediu, né?”. Eu pedi pessoas trabalhosas, pessoas impacientes, pessoas assim que as outras pessoas não tinha muita paciência, pra eu zelar por essas pessoas, né. E ali eu comecei a entrar dentro de bailes funk, ir pra porta de bailes funk, e comecei a entrar dentro das bocas de fumo, levar ajuda nos bailes. Eu gosto muito de conversar com as pessoas, né. Sentar com eles, conversar com eles e mostrar a expectativa de vida, que eles têm chances, que eles têm chances, se der chance eles vão...eles vão. E ali, muitas vezes, no decorrer dessa espera dessa libertação deles, um atrás do outro, dentro da minha igreja. Um que ele sabe que eu também ganhei a esposa dele, dessa vida, e ele veio para querer até me matar, até fazia ameaça pra mim. Dizendo que ia cortar minha cabeça e eu esperei e um dia e a coisa virou, alguém queria a cabeça dele. Eu fui atrás dele, falei pra ele e ele do outro lado não falava nada. Falei pra ele, se você quiser ajuda eu vou te

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ajudar. Pode me procurar, me procura na minha casa. E quando foi no outro dia ele veio, falou assim: “O que a senhora pode fazer pra me ajudar?” Talvez na mente dele eu tinha um lugar pra esconder ele das pessoas que tinham ameaçado ele. E eu falei, olha eu só conheço uma pessoa que muda a história de um homem, o nome dele é Jesus. Se você deixar esse homem entrar na tua vida você vai ver a tua história mudar. E comecei a conversar com ele chorou ali. “Eu quero esse homem na minha história”. E foi aqui na minha calçada e quando eu olhei pra ele eu vi um carro chegando perto e aqueles homens vinham pra entrar dentro da minha casa e ele disse: “Esses homens vão me matar”. E os homens falaram: “Pastora, pode botar o [Fulano] pra fora”. Eu falei: “Vocês chegaram tarde demais, alguém pegou ele primeiro”. Ele: “Não pegou porque nós vimos a senhora colocar ele dentro da sua casa”. “Um homem pegou e não vai abrir mão dele”. Eles: “Quem?”. Eu: “Jesus!”. Ele falou: “Ele tá se escondendo”. Eu falei: “Ele não tá se escondendo. Ele só quer uma chance”. Ele começou a olhar pra lá e xingar ele de pilantra, de safado. “Posso falar uma coisa pra vocês, se ele é safado vocês também são. Se ele é pilantra vocês também são. Mas tem uma diferença, querer mudar e permanecer no erro. Ele resolveu mudar, então agora tem que ser dada uma chance. E eu conversei com eles e brinquei com eles. “Vocês honram a calça que vocês vestem? Me dá um mês, um mês, se dentro de um mês esse homem não mudar a história dele... Eles falaram: “Não dou um dia pra ele sair da igreja”. Todo dia ele vinha na minha casa, todo dia eu ensinava ele, eu ensinei ele a até andar de novo.

Maria das Dores relatou várias histórias de conversão de traficantes e contou de suas

incursões no mundo do crime, para levar a palavra de Deus, e também histórias de sua relação

com policiais. Ao contrário de muitos outros familiares, Maria das Dores tem muitos amigos

policiais e se orgulha muito dessas relações e desses contatos. Isso ficou claro, por exemplo,

ao falar do caso do filho, quando disse que a viatura da polícia só apareceu em sua casa

quando seus amigos policiais entraram em cena. Em outro momento, essa relação aparece

pela via religiosa, quando disse que estava organizando um culto em um assentamento rural,

em parceria com policiais evangélicos do Bope. Segundo ela, a religião a faz conviver com

figuras, teoricamente, muito opostas, como traficantes, policiais e milicianos. Afinal, no reino

de Deus, todos são iguais.

3.7. Maria Auxiliadora

Tomei conhecimento do caso de Maria Auxiliadora quando sua irmã foi minha aluna,

no período em que lecionava numa escola pública na Pavuna, Zona Norte do Rio de Janeiro33.

Ela ficara sabendo da pesquisa que eu estava realizando sobre pessoas desaparecidas e se

disponibilizou a conversar com a irmã para que me concedesse uma entrevista. As duas

moram juntas e, no dia 13 de janeiro de 2010, fui à residência delas para entrevistar Maria

Auxiliadora. A entrevista foi curta, porque as informações sobre o caso são parcas, portanto, 33 Nessa época ouvi vários casos de desaparecimento forçado, mas que não me foram possíveis documentar, circulavam como rumores.

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não há muito o que falar.

3.7.1. Policiais também desaparecem Seu companheiro era policial e desapareceu. Ela, no entanto, não sabe dar muitos

detalhes do que aconteceu, apenas diz que ele saiu para ir trabalhar e não mais voltou. Maria Auxiliadora: Foi assim, ele saiu para trabalhar e não retornou, aí nós começamos a procurar. E aí minha sogra tomou a frente, ela foi em favela, levou corpo de bombeiros, uns diziam que estava enterrado, outros diziam que tinham jogado no rio. Aí prenderam um rapaz dizendo que este rapaz sabia, mas pelo jeito não sabia nada. Fábio: Ele era policial, né? Maria Auxiliadora: Policial. E aí ele ficou desaparecido. Aí nós demos entrada no quartel. Chegamos lá no quartel, fomos ver o coronel. O capitão queria dar ele como desertor, mas não podia dar como desertor, porque ele tinha saído para ir trabalhar. E aí começou minha trajetória né, de pegar pensão por causa do menino, uma que eu não era casada com ele. Fábio: Você chegou a ouvir alguma história do que talvez teria acontecido? Maria Auxiliadora: Não. Eu não ouvi falar o que possa ter acontecido, ninguém sabe. A pessoa desaparece assim, parece que... Fábio: Ele foi trabalhar e não voltou mais? Maria Auxiliadora: É, e não voltou mais. Fábio: Mas vocês nunca chegaram a receber alguma denúncia, assim, de que poderia estar em algum lugar? Maria Auxiliadora: Nunca. Não. Na favela, quando a minha sogra foi lá, em Caxias, teve um pessoal lá que falou: “Ah, mataram um rapaz por ali”. Aí ela foi, levou retro-escavadeira, sabe, Corpo de Bombeiros, escavaram tudo lá, não acharam nada, e falaram que tinham jogado naquele rio ali. Num tem um rio que tem um lamaçal preto? Aí falaram que jogaram ali, mexeram e não viram nada. Até hoje.

Maria Auxiliadora conta que sua sogra morreu procurando o filho, mas não obteve

nenhuma informação ou resposta concreta sobre seu desaparecimento, que ocorreu em 1993.

Uma das preocupações de Auxiliadora é que “eles querem tirar a pensão” que ela recebe.

Segundo ela, todo fim de ano a repartição policial que trata das pensões ameaça cortar o

benefício. Como não tem o atestado de óbito ou qualquer outro documento que comprove a

“ausência”, vive com medo de perder o direito à pensão.

Ela também conta que, após o desaparecimento do companheiro, engordou muito e

não consegue mais emagrecer. “Agora tudo me dói”, diz ela. E, diferentemente de outros

familiares que, após o desaparecimento do filho ou do companheiro, abandonam o trabalho,

Maria Auxiliadora teve que arrumar um trabalho para sustentar o filho pequeno. Passou a

trabalhar como costureira e faz questão de enfatizar que “não é porque eu queria não, era

porque eu precisava”.

Pergunto se mais alguém havia desaparecido junto com seu companheiro, ao que ela

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responde que houve o caso de uma mãe que disse que o filho, também policial, teria “sumido

junto com ele”. Porém, posteriormente, vieram a saber que os dois haviam “sumido em locais

diferentes”. Enquanto seu companheiro teria “sumido na Washington Luiz”, o outro policial

“desapareceu” nas proximidades de um viaduto dentro de Caxias. “Foi no mesmo dia, mas

não foi junto”, diz ela.

Segundo Auxiliadora, ela evita falar do “sumiço” do pai para o filho, com medo de a

história despertar algum sentimento de vingança que o leve a fazer “um monte de besteira”.

Mas ouvindo uma coisa e outra, o filho “vai juntando os pedacinhos”. Ela conta que, certa

vez, o filho virou-se para ela e disse: “Eu nunca vou ser policial, mãe. Mataram meu pai,

sumiram com meu pai”. Auxiliadora relata que o fato de o companheiro ser policial a deixava,

assim como à sua sogra, sempre em um estado de apreensão quando ele saía para trabalhar,

com medo de que algo lhe acontecesse. Conta que certa vez ele saiu para trabalhar e ela e a

sogra não conseguiram mais dormir, ouviam um barulho o tempo todo e davam “graças a

Deus” quando ele retornava. O momento mais tranquilo era quando o companheiro estava

dormindo, porque nesse caso sabiam que estava tudo tranquilo, que ele não corria perigo.

Maria Auxiliadora conta que, desde que o companheiro desapareceu, frequentemente

tem que comparecer a um setor da polícia para resolver pendências e questões jurídicas que a

ausência do companheiro gerou. Segundo conta, nessa repartição que frequenta há vários

familiares que passam por situação semelhante à sua:

Fábio: A senhora chegou a frequentar os batalhões para tentar resolver? Conheceu outras mães ou esposas com o mesmo problema? Maria Auxiliadora: Já. Tem uma que vai sempre comigo, tem uma que é uma sofredora coitada. Tem vinte anos que o marido dela sumiu e ela não tem notícias nem nada. Fábio: Vinte anos? Maria Auxiliadora: Vinte anos. Tem uma outra que tem quatorze anos que o marido dela sumiu também. Fábio: Todos policiais? Maria Auxiliadora: É. Aonde eu vou é justamente, onde dá o lugar dos policiais extraviados. Aí eu vou pra lá e é lá nessa parte que a gente vê o caso do pessoal. É muita coisa triste, muita. Entendeu? A gente vê pessoas até piores que a gente. E aí a gente fica lá, espera, sofre, porque tem gente que não sabe atender ninguém, tem pessoas boas e pessoas ruins, que não querem ajudar a gente nem pra levar uma palavrinha de consolo, não dá não, eles se acham o tal, eles acham que a mulher deles nunca vão passar por isso. Eu torço para eles não passarem por isso.

Pergunto a Maria Auxiliadora se ela já chegou a sonhar com o companheiro. Ela narra

uma história semelhante a que ouvi de outros familiares, conta que por muito tempo evitou

circular por Irajá, porque “cismava” que seu companheiro estava lá, sentado.

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Fábio: Você chegou a ter algum sonho assim com ele? Maria Auxiliadora: Ah eu cheguei, eu tive um problema sério de passar em Irajá, né? Eu não podia passar em Irajá. Fábio: Por quê? Lembrava dele? Maria. Auxiliadora: Não, porque eu passava em Irajá e parecia que eu via ele sentado lá. Fábio: Ah é!? Maria Auxiliadora: É. Aí eu passava em Irajá e nem olhava para o lado da praça. Eu olhava para o outro lado, porque eu cismava que ele estava sentado lá em Irajá. Passei muito tempo sem passar em Irajá.

3.8. Tânia e Celso

Tânia e Celso são os pais da engenheira da Barra desaparecida após um acidente de

carro. Foi um dos casos recentes de desaparecimento forçado que mais repercussão teve desde

a chacina de Acari34. Celso conta que o acidente que provocou o desaparecimento da filha,

Patrícia, ocorreu exatamente no dia de seu aniversário, em 14 de junho de 2008. Por volta de

sete e meia da manhã, uma inspetora de polícia ligou comunicando o acontecimento:

A minha esposa teve notícia, via telefone, em torno de 7 e vinte, 7 e meia da manhã, que a inspetora Cláudia da 16° ligou pra ela e perguntou ”A senhora é a mãe da Patrícia?”. Ela falou: ”Sou”. ”A sua filha sofreu um acidente, caiu num canal de Marapendi e sumiu o corpo dela”. Aí a gente se arrumou e foi correndo pra lá. Mas antes disso em torno de umas 6 e pouca da manhã, eu acordei minha esposa, porque eu já tinha acordado e falei ”Cadê a Patrícia?”. ”Ah ela foi à festa, mas ainda não voltou”. Eu liguei pra ela, mas ela não atendeu o telefone, entendeu, tava caindo em caixa postal, mas aí a gente esperou mais um pouco aí ela recebeu esse telefonema. Aí a gente foi correndo pra lá. [Celso]

Quando Celso e Tânia chegaram à delegacia, a inspetora que lhes havia ligado se

dirigiu aos dois dizendo ter encontrado uma bolsa no porta-luvas do carro e perguntou se a

34 A chacina de Acari aconteceu em 1990, provocou o desaparecimento de onze jovens moradores de Acari e redondezas. Segundo denúncias, os jovens teriam sido assassinados por um grupo de extermínio, formado por policiais, conhecido como Cavalos Corredores, que posteriormente teriam se desfeito dos corpos, que jamais foram encontrados. Em 2011 as mães dos jovens desaparecidos começaram a receber as primeiras certidões de óbito. O Estado de São Paulo chegou a publicar, em seu site, uma reportagem assinada por Luciana Nunes Leal, intitulada “20 anos depois, a certidão da dor das Mães de Acari”. Os primeiros parágrafos do texto diziam: “No mês passado, quando finalmente conseguiu a certidão de óbito da filha Rosana de Souza Santos, desaparecida aos 19 anos com outros dez moradores das imediações da favela de Acari, em julho de 1990, Marilene Lima de Souza fez um desabafo que repetiu na sexta-feira: "Continuo sem as respostas que procuro há mais de 20 anos." Ela foi surpreendida com o que foi escrito no espaço reservado para o local do falecimento: 'Chacina de Acari, nesta cidade.' Além da causa da morte 'ignorada', o documento deixa em branco os espaços do local de sepultamento e nome do médico que atestou o óbito. Como declarante da morte, aparece 'sentença judicial'. É o resumo dos esforços de 11 famílias pelo reconhecimento formal da morte de oito jovens e três adultos que passavam o fim de semana em um sítio em Magé, na Baixada Fluminense”. (Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,20-anos-depois-a-certidao-da-dor-das-maes-de-acari,716318,0.htm)

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bolsa era de Patrícia. Tânia afirmou que era e perguntou se a polícia estava procurando o

corpo. A inspetora respondeu que não, e disse que as buscas eram feitas apenas por uma hora.

Como o acidente havia ocorrido por volta de cinco e meia da manhã, seis e meia as buscas já

haviam sido interrompidas. Ao saber dessa informação Tânia e Celso ficaram duplamente

indignados: em relação à demora em entrar em contato e em relação ao término das buscas.

É o bombeiro que dá busca, numa hora só, e não se faz mais nada. Aí eu falei ”Como não se faz mais nada? Impossível isso! Vocês tem que procurar minha filha”. ”Mas não, nós não podemos fazer mais nada, a busca é só isso”'. Aí eu falei assim... eu peguei, arranquei a bolsa dela, da mão dela, né, da minha filha e falei ‘O celular também é dela?”, e ela me deu o celular. Aí eu peguei e fui pra lá aí ela falou assim: “A senhora sabe onde é?”.Eu falei: ”Vou achar né, vou lá”. Ninguém foi com a gente, só eu e ele, entramos no carro e fomos pra lá, não foi um policial pra orientar a gente onde seria. Só nós 2. Chegando lá, ficamos procurando o carro. Estava lá, em cima de umas pedras. Tem umas pedras antes de chegar ali na água e ficamos olhando como que a gente ia descer ali, porque a gente não sabia como ia descer ali. Não tinha um policial guardando a área. [Tânia]

Sem saber como desceriam até o local onde estava o carro, quem ajudou foi um

pedreiro que trabalhava em um condomínio próximo. Este pedreiro explicou que tinha um

caminho para se chegar lá e se ofereceu para ajudar, descendo junto com Celso. Tânia conta

que estava tão desesperada que não quis descer, preferiu ficar fazendo os contatos. Logo

parentes e curiosos foram se juntado no local onde o carro encontrava-se.

Aí nisso chegou... quando foi tipo umas 9 e pouquinho, começou a chegar bombeiro com meu primo, e chegou um pessoal pra ajudar, chegou jet-ski, chegou um monte de gente. Aí nisso apareceu, depois que meu primo chegou com todo mundo, apareceu uma patrulhinha lá e ficou lá parada, estacionou lá como... Querendo guardar o quê? Ajudar no quê? Porque na hora de ajudar mesmo, não tinha ninguém ali pra ir com a gente até o local pra mostrar. Não fizeram nada. Aí ficou lá uns 2 soldadinhos de chumbo lá parado, e não fizeram nada, não perguntaram. Só parado lá na guarita, na guarita.. no carro, encostado no carro e ficaram olhando os palhaços, vendo a cena da gente desesperado. Aí começaram a chegar outras pessoas, os parentes, os amigos, né? Aí meu outro filho, que tinha chegado praticamente de manhã em casa, parece que alguém ligou aqui pra casa, eu não tinha encontrado com meu filho ainda, porque quando eu saí ele não tinha chegado em casa, eu acho que alguém ligou, algum amigo dele, ligou pra cá, aí ele atendeu. Ele soube e apareceu lá descalço, sem camisa, desesperado. Cortou até o pé todo descendo nas pedras. As pedras têm uma lâmina, né, cortou o pé todo. Aí começou a procurar desesperado, desesperado. Daqui a pouco eu vejo ele, que nunca andou de Jet-Ski, pegou um Jet-Ski começou a andar de Jet-Ski pra lá e pra cá e foi pra baixo do viaduto que tem ali na São Conrado. Entrou ali por baixo, ele e um amigo olhando, um outro amigo veio de lancha e começou também a vasculhar tudo ali com os bombeiros também e não acharam nada. [Tânia]

Com a ajuda de pessoas influentes, com quem tinham contato, conseguiram fazer com

que as buscas se estendessem por volta de duas semanas. A perita, ao analisar o carro,

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constatou que o banco do motorista, onde Patrícia encontrava-se, estava todo reclinado para

trás, havia uma pedra grande, pesando em torno de dez quilos, dentro do carro, e o vidro

estava todo quebrado. Tânia conta que perguntou à perita se não iria coletar as impressões

digitais de dentro do carro, e a resposta da perita foi que não precisava, porque foi um

acidente e Patrícia provavelmente estaria na água.

Celso relata que, quando o caso saiu na imprensa, alguém chegou a ligar pedindo

resgate. Depois ligaram outras vezes, numa delas pediam 600 mil reais.

3.8.1. Um acidente que se transformou em crime praticado por policiais

Um dia após o acidente o carro foi retirado por um reboque e foram feitas fotos, mas

as coisas “não andaram”, como diz Tânia. Enquanto os dias passavam, a peregrinação pelas

delegacias continuava, mas não avançava em nada. O lamento e a indignação em relação ao

serviço policial mais uma vez se faz presente. Celso e Tânia criticavam os policiais por não

terem tido uma ação eficiente que buscasse resolver o caso, a polícia simplesmente não se

importou. E a indignação com a polícia só aumentou quando o irmão de Patrícia, por

insistência de uma irmã de Tânia, decidiu ir até a oficina para verificar novamente a situação

do carro.

Aí meu filho foi com um amigo lá na oficina, aí começaram a olhar o carro, aí ele viu no capô tinham 2 furos, só que ele não reconhece furo de bala, não tá acostumado com isso você não sabe. Aí ele falou assim: “Caramba isso aqui tá estranho, será que isso é furo de bala? Não sei o quê...”. Aí ele foi e ligou para o [nome do delegado], o [nome do delegado] já estava no caso... [Tânia]

O delegado que estava acompanhando o caso determinou que os peritos fossem à

oficina averiguar se os furos seriam mesmo de bala. Após terem descoberto que realmente se

tratava de furo provocado por bala, o carro foi levado para delegacia para novas perícias. Daí

em diante o caso mudou completamente, passou por uma reviravolta.

Aí mudou, aí começou a investigação, [o delegado] começou a pedir a escuta dos rádios, começou a pedir o GPS. Aí fez essas investigações todas, conversou com cada policial e achou o negócio tão esquisito que todo o grupamento da 31° estava no acidente, se deslocou pra lá. A coisa mais estranha, já que era um simples acidente. Por que ia ter tanta gente lá e tanto carro da polícia lá? Entendeu? Já achou isso estranho e aí, aí começou essa investigação. Aí os policiais continuaram soltos, ele interrogou todos os policiais né, todos que tiveram lá no dia, inclusive, tem mais de meia dúzia envolvidos entendeu? E, é claro, ninguém falou a verdade né, falou com o vigia também, entendeu, o vigia tava se tremendo todo, foi até com advogado, foi até estranho... [Celso]

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Celso suspeita que o vigia tenha sido ameaçado pelos policiais e diz achar estranho

que muitas pessoas tenham ido ao local e ninguém soubesse de nada. Um morador de rua que,

segundo Celso, presenciou os fatos, sumiu e não foi encontrado para depor.

Eles deram um tempo e sumiram. O pessoal do outro lado, onde é que fica as barracas abertas ali, onde pegam peixes, também ninguém viu nada. Mas depois foi até dito que... é... os policiais passaram lá no outro dia falando “ninguém viu nada né...”. [Celso]

Celso relata, em tom de deboche, o depoimento de um dos policiais envolvidos em que

este afirma que estava dormindo quando passou um carro em alta velocidade, que quase

acertou o carro dele, pelo que ele passou mal e foi parar no hospital. No depoimento deste

policial, ele afirmou que, desde quando chegou ao trabalho nesse dia, encontrava-se mal

disposto. O advogado da família de Patrícia perguntou a este policial por que, se ele estava

passando mal desde que chegou ao trabalho, apenas por volta de cinco, seis horas, decidiu ir

ao hospital, e por que não pediu aos bombeiros, quando estes compareceram ao local, para

medir sua pressão. A resposta do policial, segundo Celso, foi que no hospital eles já tinham

seu histórico. Com o tempo descobriu-se que vários policiais tinham comparecido ao hospital,

outros tinham ido a uma oficina de carros, tudo indicando que os policiais se movimentaram

para tentar encobrir o crime.

Outra situação que gerou indignação nos pais de Patrícia foi a decisão do advogado

dos policiais de arrolar Tânia como testemunha de defesa dos policiais acusados de

envolvimento no caso. No entendimento de Celso, foi uma estratégia de “jogar com o

emocional” deles. A estratégia de defesa dos policiais, como geralmente ocorre, foi lançar

suspeitas sobre a vítima. Celso conta que os policiais e o advogado de defesa forjaram

testemunhas com o objetivo de criar uma versão que associasse Patrícia a condutas ilícitas:

O que eles quiseram fazer foi jogar com a mãe, porque a mãe sempre acha que a filha está viva. É isso que eles queriam... então a gente sabe que eles fizeram isso, eles mexem com o emocional e com meu filho, né? Como [eles compraram] umas testemunhas, um flanelinha e outro rapaz, que é cozinheiro, né, um tal de [nome]. Esse flanelinha falou que viu o acidente, viu que tinha um rapaz dentro do carro, o rapaz saiu correndo. Ele pegou uma prancha junto com um amigo dele, atravessou a lagoa pra ver se ia socorrer a vítima, aí viu minha filha. Nesse mesmo dia, ele foi na Rocinha, viu ela parada lá. Um tal de [nome] pegou ela, porque ela foi pegar droga lá. Aí o [nome] pediu para o primo dele pegar o carro dela e sumir com o carro. Aí nisso ele veio de ônibus no Lagoinha, ali, né, aí o ônibus deixou ele lá perto, ele voltou, pegou o baseado, ficou fumando perto da lagoa e viu o acidente. [Celso]

Segundo o relato de Celso e Tânia, a versão que a defesa dos policiais adotou foi a de

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dizer que Patrícia era usuária de droga e o filho seria traficante.

[A testemunha dos policiais disse que] viu ela subindo, porque ela estava comprando droga e falou que meu filho é traficante, que ficava querendo droga. Meu filho nem fuma. Entendeu? Falaram mil coisas que a minha filha também usa droga... Só que eles quebraram a cara, eu tenho um documento que ela trabalhou na época numa multinacional, aí eu mostrei o papel, no dia que fui lá falar, eles começaram a falar, eu falei assim: “Seu Juiz, eu tenho um papel aqui, provando que minha filha não era alcoólatra, não era nada”. [Tânia]

Tânia conta que ficaram decepcionados quando compareceram às primeiras audiências

e souberam quem era o advogado dos policiais. Segundo ela, o advogado de defesa dos

policiais foi vizinho deles durante um tempo, sua esposa ficava na praia conversando com

Tânia, e ele era conhecido de um primo de Tânia, e seu filho conhecia Patrícia. Segundo

Tânia, no dia de uma audiência ela chegou a conversar com ele, disse que o conhecia, que

inclusive foi amiga da esposa dele e que não entendia como ele pôde ter pegado esse caso. A

resposta do advogado, segundo Tânia, foi que ele não se lembrava dela.

3.8.2. A mobilização dos familiares dos policiais

No dia 09 de setembro de 2009, compareci ao fórum para tentar acompanhar uma das

audiências do caso. Do lado de fora, alguns poucos parentes e amigos de Patrícia seguravam

uma faixa. Quando cheguei próximo à sala onde ocorreria a audiência, o corredor estava

repleto de pessoas, incluindo jornalistas, todos acompanhando e aguardando por informações

sobre os depoimentos.

Quando vi a aglomeração de pessoas no corredor, logo pensei que se tratava da

mobilização dos familiares de Patrícia, afinal, como é de costume nas ocasiões de julgamento,

os familiares das vítimas geralmente comparecem vestidos com camisas estampadas com a

foto dos parentes assassinados. Para minha surpresa, aquela mobilização não era dos

familiares de Patrícia, mas sim dos familiares dos policiais. O simbolismo geralmente adotado

pelos familiares de vítimas, dessa vez, estava sendo usado pelos familiares dos policiais

acusados.

As esposas dos policiais estavam de branco e os demais familiares e amigos vestiam

camisas azuis (cor de identificação da polícia), com os seguintes dizeres: “Policiais inocentes.

Cadê Patrícia”. Segundo informações que circularam pelos corredores, dois ou três ônibus

teriam sido alugados para levar os familiares, amigos e apoiadores dos policiais para a

audiência, como forma de pressionar. Os familiares e amigos de Patrícia, que compareceram,

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se sentiram constrangidos com a situação, viam aquilo como uma afronta. E a indignação

aumentou ainda mais quando os policiais acusados foram inocentados no inquérito militar.

Os familiares e amigos de Patrícia também organizaram várias manifestações de

protesto e cobrança, incluindo carreatas, um ato no Cristo Redentor, e organizaram um site

(www.cadepatricia.org.br) que contém todo o material referente ao caso. Faixas e banners

foram espalhados pela cidade clamando por informações. Até mesmo em um jogo do

Fluminense, no Maracanã, os jogadores empunharam um cartaz divulgando o caso. A

esperança dos pais de Patrícia é que os policiais sejam condenados no Tribunal de Júri.

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Foto 7: Jogadores do Fluminense entraram em campo no Maracanã com uma faixa de

protesto – 20/05/2009

Fonte: www.cadepatricia.com.br – Acessado em: 17/06/2012

Foto 8: Manifestação no Cristo Redentor

Fonte: www.gabrielasoudapaz.org.br – Acessado em: 17/06/2012

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3.9. O testemunho como via de sensibilização: o vocabulário dos sentimentos e o poder

de comoção das emoções

O detalhe do sofrimento opera como um elo de sensibilização entre quem sofre e quem

observa aquele que sofre. A descrição dos sofrimentos que aparece nos relatos dos familiares

pode trabalhar as emoções e transformar o sofrimento tanto em piedade como em compaixão.

O testemunho dos familiares ocupa um lugar importante tanto numa política da piedade como

numa política da justiça. Seja o testemunho dado em situações públicas, seja o testemunho

colhido no âmbito privado, quase como um segredo. A mobilização do sofrimento nos

testemunhos pode levar o espectador tanto a um sentimento de piedade como a um sentimento

de compaixão, pode direcionar a ação face àquele que sofre como face ao acusado de

promover o sofrimento da vítima.

Sobre a possibilidade que se apresenta ao espectador à distância, quando este não mais

simpatiza com o ressentimento dos infelizes contra seus perseguidores, engajando-se na via da

indignação, da denúncia e da acusação, mas com os sentimentos de gratidão face aos

sofredores, Boltanski argumenta que a piedade, nesse caso, segue a via dos sentimentos.

Busca-se, neste sentido, implicar o espectador no sofrimento a partir dos sentimentos daquele

que sofre, e não da transformação da indignação em acusação. O espectador que se sensibiliza

com o sofrimento daquele que sofre é intimado a se implicar nesse sofrimento, ele deve falar

aos outros do sofrimento daqueles que sofrem, atuar como um multiplicador.

Boltanski observa ainda que os meios de que dispõe o espectador para desenvolver um

discurso desde o enternecimento são, portanto, radicalmente diferentes daqueles que se abrem

a ele desde a indignação. O recurso de prosseguir rumo a uma acusação ou a uma denúncia

não se apresenta. Uma primeira consequência – que, segundo Boltanski, poderia parecer um

obstáculo a uma politização do sofrimento no quadro deste tópico dos sentimentos – é que ele

não pode tão facilmente, como no tópico da indignação, “fixar a linha da partilha que separa

os sofrimentos genéricos – inerentes a qualquer tipo de condição humana – dos sofrimentos

escandalosos, dignos de serem elevados à categoria das causas” (Boltanski, 2007: 152).

Segundo a descrição detalhista de Boltanski, uma das figuras principais nas quais se

manifesta a indignação é a urgência. Porém, à distância, a emoção ganha contornos

diferentes em relação a uma situação de co-presença. Enquanto que na indignação os recursos

corporais são reunidos para expressão da cólera, que supera o mutismo da emoção bruta

apontando em direção à manifestação da ameaça e da força, no tópico do sentimento eles são

mobilizados para provocar piedade e são controlados pela velocidade do modo de se

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expressar, pela contração da expressão e do corpo inteiro. À diferença da indignação, capaz de

desenvolver um aparelho de provas materiais, objetivas, a tópica do sentimento faz economia

da denúncia e da acusação e, por conseguinte, não atribui grande importância aos objetos. E, o

mais central, a tópica do sentimento “não se desenvolve numa metafísica da justiça, onde a

necessidade de fundar a crítica desvelando aquilo que faz do infeliz uma vítima conduz a

remontar o nível lógico ocupado pelas pessoas e pelos objetos face ao nível das convenções

de equivalência que estabelecem suas relações e cuja ativação permite controlar o caráter

justo ou injusto” (Boltanski, 2007: 153).

Por outro lado, se a tópica do sentimento não se desenvolve numa metafísica da

justiça, ela não é estranha a toda metafísica. A metafísica na qual a tópica do sentimento se

apoia é a metafísica da interioridade, na qual os estados interiores não são objetos de verdade.

A referência a estes estados não pode ser levada em conta em um julgamento, a menos que se

construa uma instância exterior às pessoas. Ainda segundo Boltanski, uma metafísica da

interioridade comporta dois níveis: um nível de superfície onde se estabelecem as relações

superficiais entre pessoas entregues à artificialidade, à mundanidade das convenções e à

separação é a indiferença; outro nível profundo, ao qual cada um pode aceder centrando a

atenção ao interior de si mesmo, este nível é o do coração. E para se sensibilizar com os

sofrimentos dos infelizes, o espectador deve não apenas lhes fazer face, vê-los do exterior, ele

deve também, em um mesmo movimento, fazê-los retornarem sobre si mesmo, dirigir-se à

interioridade, abrir-se à escuta de seu próprio coração.

Numa tópica do sentimento, a relação entre o espectador e o infeliz é real e autêntica,

sensível, quando é estabelecida não superficialmente, ao nível das aparências, mas de coração

a coração, de interioridade a interioridade. E o relato, o testemunho dos familiares

correspondem a uma forma de expressão a partir da qual essas interioridades e emoções que

vêm do coração podem se comunicar. A emoção, na tópica do sentimento, é índice de verdade.

A verdade, aqui, não vem das provas, mas das emoções. Nesta tópica, o acesso à verdade,

diferente da tópica da justiça, não passa nem pela exploração argumentativa de princípios

convencionais, nem pela aproximação com os objetos que sustentam uma generalização, mas

pelo desenvolvimento da interioridade na exterioridade. A emoção, afirma Boltanski (2007:

156), é concebida como a via de exteriorização da interioridade.

No caso dos familiares, o testemunho e toda a dimensão performativa através da qual

se expressa a emoção são os elos que ligam interioridade e exterioridade. A força dos relatos

tem o poder de chocar, comover, emocionar. Diante dos relatos dos familiares que apresentei

os espectadores são convidados, intimados a se implicar nesses sofrimentos, a expressar suas

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comoções e suas emoções. Aquilo que é interior se manifesta ao exterior a partir dos relatos e

das performances do ato de falar.

A colocação dos sentimentos em movimento, numa história, exige, além de uma

estrutura discursiva própria, a constituição e fixação de um vocabulário que permita descrever

com precisão quase técnica os fatos físicos e os diferentes estados que afetam um coração

sensível ao espetáculo do sofrimento. Boltanski seleciona três termos que considera centrais

para descrever o vocabulário dos sentimentos e que, igualmente, são fundamentais para nossa

reflexão sobre as relações entre violência, sofrimento e política na experiência dos familiares:

comoção/emoção, enternecimento e lágrimas.

Boltanski percorre algumas obras e alguns autores para mostrar como a nova estrutura

narrativa e o vocabulário dos sentimentos foram se fixando. Ele destaca, por exemplo, a

opinião de Rousseau, segundo a qual a emoção é um fato da interioridade, uma “agitação

interna”; já para Condillac, ela é “um movimento dos sentidos que vem de um sentimento

excitado interiormente”. Boltanski destaca que Rousseau associa a emoção ao universo das

paixões e desenvolve principalmente a análise das emoções doces, ternas, altruístas, estas que

engendram a piedade, o reconhecimento, a sensibilidade em relação ao pesar do outro.

A emoção principal que interessa Rousseau é o enternecimento, que é a emoção

simpática por excelência, “uma 'doce emoção' que tende a se opor à indignação que aumenta a

visão da injustiça, como duas respostas diferentes ao espetáculo das 'misérias humanas'.

'Imaginação do coração', o enternecimento consiste 'em sentir-se em seus companheiros', em

reconhecer, em um movimento de 'humanidade', o 'interesse comum' que liga o ser que ele

toca ao outro, e é associado principalmente à piedade 'diante da simples humanidade sofrida'”

(Boltanski, 2007: 173).

As lágrimas ocupam um papel central no dispositivo do sentimento, porque

juntamente com outras manifestações corporais como os suspiros, os gemidos, os gritos, elas

designam a operação pela qual a interioridade se transforma em exterioridade. As lágrimas

expressam emoções que têm por assento o coração e, além de estabelecer uma comunicação

com o mundo que se manifesta próximo, “o jogo das lágrimas é sempre o mais íntimo da

relação do ser humano com o outro e com si mesmo”.

Ao me dedicar, neste capítulo, sobre os relatos dos familiares, percorri pequenos

mapas da dor que expressam aquilo que Boltanski denominou de “metafísica da

interioridade”. Na medida em que são marcados pela emoção, esses testemunhos significam

uma via para a sensibilização dos espectadores e possuem grande poder de comoção. A força

dos relatos aproxima aquele que narra o sofrimento daquele que ouve, nesse caso, seja

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presencialmente ou à distância. E as emoções são estrategicamente trabalhadas para causar

comoção.

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4. NARRATIVA SOBRE O TERROR E O SOFRIMENTO: DESCRIÇÃO DENSA DE

UM CASO EXEMPLAR DE DESAPARECIMENTO FORÇADO

Se pensamos a dor como uma barragem que se opõe à corrente da narrativa, então vemos claramente que ela romperá onde a inclinação tornar-se suficientemente forte para levar tudo aquilo que a corrente encontra nesse caminho ao mar do feliz esquecimento.

Walter Benjamin

4.1. Aproximação ao campo do terror

A história que será apresentada neste capítulo pode ser interpretada como uma

narrativa sobre o terror e o sofrimento. Ela é repleta de imagens sobre terror e sofrimento, o

que não significa dizer que toda situação de sofrimento seja engendrada desde o terror. Será

útil, portanto, começarmos com uma reflexão sobre o terror. Afinal, o que seria o terror? Seria

possível uma aproximação sociológica e antropológica desta categoria?

Para esboçar uma breve reflexão sobre tais questões, estabelecerei um diálogo com o

interessantíssimo trabalho de Pereira (2004), uma etnografia sobre determinada instituição

que abriga portadores de Aids. Essa instituição, supostamente, procura dar condições para que

estes “sobrevivam”, “enquanto esperam a sua morte iminente” (p. 17). Um dos argumentos

defendidos pelo autor é que os portadores de HIV abrigados nessa instituição, convivem

cotidianamente com o terror. No desenvolvimento de seu raciocínio, Pereira incursiona pela

obra de diversos autores, principalmente no campo da filosofia e da antropologia, buscando

elaborar o que seria o sentido de uma antropologia do terror. Em sua pesquisa, assim como na

minha, o sentido de uma antropologia do terror estaria ligado, entre outras coisas, à

proximidade da morte e à submissão a castigos corporais. Em relação aos casos de

desaparecimento forçado analisados por mim, os relatos dos familiares permitiriam fazer um

inventário de castigos corporais aos quais as vítimas teriam sido submetidas. Assim como

também é possível observar, nesses relatos, a presença constante da morte rondando.

Mas, como adverte Pereira, “o terror é categoria arredia às investidas teóricas” (2004:

18).

O termo terror tem como equivalentes os vocábulos pavor, temor, medo, susto, apreensão, apresentando vasto campo semântico. Medo, uma das primeiras palavras que nos vêm à mente quando se fala em terror, seria o sentimento de inquietação ante a noção de perigo real ou imaginário. Outras noções, como as de apreensão, receio, pavor, susto, formam a teia que interliga determinados sentimentos e

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sensibilidades, que nos enreda e faz com que a definição precisa seja adiada. Afinal, se pudéssemos nos aproximar sem nos emaranhar nessa teia, sem nos deixar contaminar, a qualidade do terrível, daquilo que aterroriza, deixaria de estar presente; já não estaríamos no campo do terror (Pereira, 2004: 69).

O autor observa que áreas antes desprezadas pelas Ciências Humanas foram sendo

incorporadas ao pensamento das humanidades. Ele cita o exemplo de temas antes

considerados “sociologicamente invisíveis” como o imaginário, as emoções, as fantasias, o

desejo, a dor, o sofrimento e o medo. A partir destas incorporações surgiram áreas como

antropologia das emoções, antropologia da dor e do sofrimento. Entretanto, o terror

permanece sociologicamente invisível.

Ao contrário de outros temas, o terror permanece sociologicamente invisível. Pouquíssimos autores trabalham com a categoria e os que o fazem quase sempre desvanecem o conceito, nublando as análises. Outros tratam de assuntos semelhantes, mas o têm como objeto privilegiado de pesquisa. Quem sabe sejam as próprias características do tema que lhe conferem invisibilidade sociológica. Trata-se de um campo não demarcado e impreciso, ali aonde as análises não foram – não puderam ir ou não quiseram ir (Pereira, 2004: 18).

Para tentar avançar na reflexão sobre o terror, Pereira estabelece um diálogo com a

obra de vários pensadores da área das Humanidades, como Foucault, Freud, Heidegger, Roger

Dadoun, Hannah Arendt, Michel Taussig e Veena Das. O objetivo aqui não é reproduzir toda a

discussão formulada por Pereira, mas apenas pontuar alguns aspectos da discussão, que

contribuem para pensar as imagens do terror e do sofrimento que aparecem, a seguir, no relato

da mãe de um jovem desaparecido.

Freud foi um dos autores que Pereira considerou em seu inventário de abordagens

sobre o terror. Freud enfrentou as dificuldades no campo semântico envolvendo alguns dos

vocábulos equivalentes ao termo terror, conceituando e distinguindo pavor, medo e angústia.

Nestas definições notam-se as diferenças entre as relações dos sujeitos com o perigo. “A

angústia seria o estado caracterizado pela perspectiva iminente do perigo e pelas consequentes

reações de defesa. Já o medo pressupõe a existência de objeto definido e conhecido. O pavor

acentua-se com o fator surpresa e denota o estado em que se cai em situação perigosa de

modo inadvertido” (Pereira, 2004: .69). Pereira considera a definição apresentada por Freud

imprecisa, mas sugestiva, na medida em que o terror pode ser imaginado como o

embaralhamento das ideias de medo, pavor e angústia, que assumem configurações

imprevisíveis. “Ao embaralhar e confundir medo, angústia e pavor, o terror brinca com aquilo

que faz sentido, mas precisa do sentido para poder zombar e, assim, intensificar o sentido e a

sensação” (op. cit., 70).

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Em Foucault, Pereira encontrou uma definição do terror muito pertinente para

pensarmos os relatos sobre desaparecimento. Para Foucault, o terror é a exacerbação dos

suplícios e a tortura física era o fundamento do terror na Era Clássica. Por meio do caso de

Damiens, Foucault descreve as características do terror, mas, como nota Pereira, essa

descrição é menos uma definição direta do que uma construção de imagens para se aproximar

do terror. Nu, de camisola, Damiens recebeu sua punição em praça pública. Sobre um patíbulo

foi “atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a

faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que

será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre

derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro

cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinza, e suas cinzas

lançadas ao vento” . Os cavalos utilizados no esquartejamento, não afeitos à tração, não

conseguiram desmembrar as coxas do infeliz, de modo que, em vez de quatro, foi preciso

colocar seis cavalos. Ainda assim, foi necessário “cortar-lhe os nervos e retalhar-lhe as

juntas...” (Foucault, 1987: 9).

Diferente da Era Clássica, baseada no terror e na punição da carne e do corpo, a

modernidade estabelece um novo regime de verdade, em que a punição se fundamenta na

divisão de papéis no exercício da “justiça criminal” e na suavidade dos castigos. O corpo

continua sendo alvo de disputa, mas imerso em campo político. Na modernidade, a sujeição

dos corpos é sutil, sem necessidade de fazer uso do “terror”.

Enquanto Foucault faz uso das imagens do suplício para construir o terror, Hannah

Arendt se concentra na “representação hiperbólica do autoritarismo nos estados totalitários”

(Pereira, 2004). Nas palavras de Hannah Arendt, “o terror é a essência do domínio do

totalitarismo”.

Para ela, o terror – base dos governos totalitários – é a execução da lei do movimento, aquela que torna possível que a lei da natureza ou da história se propague por toda a humanidade. O terror objetiva fabricar essa humanidade, num processo em que os indivíduos são eliminados “pelo bem da espécie ou da história”. O terror não pode então ser caracterizado como a busca do poder despótico de um homem contra todos, mas deve ser entendido como a tentativa de anular a comunicação entre os homens. Conforme Hannah Arendt, em lugar dos canais de comunicação entre os homens, cria-se um “cinturão de ferro” que comprime as experiências de tal maneira que reduz a pluralidade a “um-só-homem de dimensões gigantescas”. Pressionando homens contra homens, o terror corrói e destrói os espaços entre eles, eliminando não só a liberdade do homem, como no caso da tirania, mas a própria possibilidade de “começar de novo”, ao suprimir a pluralidade e a comunicação. Observe-se que, para Arendt, existe a diferença entre a tirania, o governo não-tirânico e o governo totalitário. Para os governos tirânicos ou não-tirânicos a presença ou a ausência da legalidade estabelece o princípio de sua própria

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definição, visto que a “legalidade é a essência do governo não-tirânico e a ilegalidade é a essência da tirania”. Para o governo totalitário as leis positivas não têm valor, o que importa são as leis da natureza ou da história. (Pereira, 2004: 72).

Pereira observa ainda que Arendt está longe de localizar o terror apenas na esfera

política. Segundo o autor, ao indicar as características do terror nos contatos pessoais, ela

aponta que o terror “destrói a capacidade humana de sentir e pensar tão seguramente como

destrói a capacidade de agir” (Arendt, 1989: 527).

Percorrendo as abordagens de Freud, Foucault e Arendt temos identificados alguns

traços característicos do terror: embaralhamento das ideias de medo, pavor e angústia,

exacerbação dos suplícios, destruição da capacidade humana de sentir, pensar e agir. É

possível ainda incluir nesta lista as compreensões antropológicas de Michel Taussig e Veena

Das. Para Taussig a inefabilidade é o traço marcante do “espaço da morte e do terror”,

enquanto que, para Das, o terror tem a ver com a mutilação da linguagem que produz silêncio

e emudecimento.

Nas leituras de Taussig e Veena Das, o terror não está vinculado de maneira exclusiva nem ao discursivo nem ao extradiscursivo. Ele é um “dispositivo”, ou seja, uma malha de discursos, instituições, rumores, que, de forma diferenciada, responde ao exercício de poder em dado momento histórico. (Pereira, 2004: 76)

Segundo Pereira (2004: 76), todos esses autores conseguem nos fazer sentir o terror e

todos parecem afirmar que, para dizer o indizível, “nada melhor do que apresentar narrativas

que possam fazer o leitor compartilhar do campo terror”. Sigamos, então, a sugestão de

Pereira, e compartilhemos, a seguir, o caso de Maria.

4.2. Sobre a situação de entrevista e a circulação de relatos de terror

No final do ano de 2005, mais um evento traumático chocou a cidade do Rio de

Janeiro, o desaparecimento, inicialmente, de treze jovens da Favela Samambaia. O primeiro

registro que fiz desse caso foi através do material jornalístico que circulou. Durante um

evento na sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no dia 23 de setembro de 2006,

organizado pelo Fórum de Reparação do Estado do Rio de Janeiro, tive a oportunidade de

ouvir pela primeira vez o depoimento emocionado e emocionante da mãe de um dos jovens

desaparecidos. Seu relato falava de situações de terror envolvendo violência policial e

violência dos traficantes, tortura, além da saudade do filho, do não acesso à justiça e de sua

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dor35.

O relato impressiona pelas imagens de terror e sofrimento, pela contundência e pela

dimensão catártica. A dor expressa no relato é o meio através do qual se cria a memória do

evento. Memória dolorosa, que dói no coração, entala o peito, mas que também sai em certos

momentos, em um clima de muita emoção e comoção.

Meu nome é Maria. Eu estou feliz por estar aqui. Sou mãe de um rapaz de 16 anos que desapareceu no dia 13 de dezembro de 2005, na comunidade Samambaia. A reportagem diz oito, mas foram dez. Foram treze sequestrados, três foram liberados, porque eram marinheiros. Os outros dez foram condenados porque não tinham documento. Os traficantes da favela vizinha pagaram cinquenta mil reais para os policiais do batalhão colocarem o carro blindado, chamado caveirão, dentro da comunidade Samambaia, às duas horas da manhã. Meu filho estava vindo da casa da namorada, viu alguns rapazes. Alguns estavam na rua, em um campo de futebol, e outros dentro de casa dormindo. As vítimas foram escolhidas aleatoriamente, como dizem os três que foram libertados. O rapaz foi falando: “esse é traficante, esse aqui é, e aquele não é”. Os policiais estavam armando de levá-los para o DPO: “Se vocês não deverem nada vocês vão voltar”. E o menino disse que ele perguntou para o meu filho: “Teu documento!?”, ele disse “Eu tenho o protocolo da identidade, mas está com a minha mãe”. Ele disse “Vou levar para o DPO, se você não dever nada você volta”. Na divisa da comunidade, colocaram eles nus, amarraram eles, colocaram dentro do carro blindado e “Vamos levar pro DPO”, entregaram na mão do traficante da favela rival, do lado. Eu não sabia que meu filho estava passando por aquilo, porque muitas das vezes ligavam para ele ir pra lá. Como ele gostava de baile funk e cantava rap, ele vivia dentro dessa comunidade. Eu fui saber no dia seguinte, no meu trabalho, porque dormia na maioria das vezes na casa da minha mãe. Eu fui saber no meu trabalho. Quando eu cheguei na comunidade Samambaia para procurar o meu filho, eu fui até a divisa, junto às outras mães, e vi um rapaz sem camisa, de frente para o DPO, e os policiais, gritando: “Não foi esse o trato que nós fizemos. Vocês ganharam muito, para agora a imprensa toda estar aqui e estar acontecendo o que está acontecendo”. E aí eu perguntei para as outras pessoas que estavam ao meu lado “Quem é esse homem?”. “Esse o dono da boca aqui do lado, é o homem que levou os nossos filhos”. E aí, eu naquele desespero, várias repórteres tirando foto dele. Ele ordenou os policiais do DPO que tomassem a fita, o filme dela. Condenou os policiais o traficante, dono da boca. Que os policiais tomassem a fita dela. Eles tomaram o filme dela e de lá para cá eu venho sofrendo ameaças. Hoje faz nove meses que eu estou sem o meu filho e hoje de manhã eu ouvi uma pessoa dizer para mim assim: “É, Maria, nove meses. Foi tempo suficiente de você fazer outro”. Eu não quero outro. Eu quero o meu filho. E eu estou nove meses lutando e os três policiais estão desviados. O rapaz – um dos rapazes – que era traficante junto com esse que pegou o meu filho, eu fui lá na antiga Avenida Rio Branco, ele reconheceu todos os policiais, principalmente os policiais corruptos. Os quatro policiais que receberam os cinquenta mil ele apontou. E realmente, os policiais que estavam de serviço no DPO, naquele dia, foram os que receberam os cinquenta mil reais. Um mês depois eles prenderam um traficante e o outro traficante estava preparado para matar as mães, aí eu fechei a minha boca e fui procurar. Na última sexta-feira, eu acordei de manhã, ligaram para mim, eu estava já dormindo, na casa da minha mãe. Eu catei todas as minhas coisas e tornei a fugir novamente, estou desde o dia treze de dezembro sem deitar numa cama em casa (fala chorando), porque eu não posso. Ele [o traficante] está nas ruas. O juiz falou que colocou ele na rua porque não tem denúncia. O exame de DNA deu confirmado, três estão confirmados, que realmente as vítimas foram torturadas na casa onde eles comeram. Só que o juiz não aceitou a denúncia, porque ele disse que não há corpo não há crime. Mas foi confirmado.

35 Uma versão deste capítulo foi publicada em Araújo (2011).

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Então, o que quem mora numa comunidade ia fazer na outra duas horas da manhã? Uma comunidade que tem uma ocupação que chega seis horas da noite para sair seis horas da manhã, meio-dia... E os moradores de dentro da comunidade viram o caveirão entrando, os traficantes pendurados com a blusa da PM e de bermuda, entrando na comunidade e pegando o pessoal no meio da rua. Hoje estou sem o meu filho e a comunidade não fala nada.

Passados exatamente dois anos e onze meses, lá estava eu, reencontrando essa mesma

mãe para realizar uma entrevista. Nesse intervalo de tempo, encontrei Maria em duas outras

ocasiões: a primeira foi na entrega da Medalha Chico Mendes, numa cerimônia organizada

pelo Grupo Tortura Nunca Mais36; a segunda foi no enterro de Vera Flores, uma das Mães de

Acari, que também havia perdido uma filha e de quem Maria se tornara grande companheira,

unidas pela mesma dor do desaparecimento dos filhos. Durante todo o processo de negociação

da entrevista, Maria manifestou preocupação com as condições do local para a conversa.

Antes de tudo, deveria ser em um lugar seguro. O lugar que ela considerou mais seguro, onde

se sentiria mais à vontade, foi a igreja que ela costuma frequentar, o templo da Igreja

Universal do Reino de Deus em Del Castilho, no Rio de Janeiro, conhecida popularmente

como Catedral Mundial da Fé. Maria havia marcado comigo após o culto, mas quando

cheguei no local não a encontrei. Ela havia esquecido da entrevista e, quando liguei para fazer

contato, ela já se encontrava no ônibus retornando para casa, mas decidiu voltar para que

conversássemos. Eu nunca havia entrado lá, e a primeira impressão que tive foi que parecia

um shopping center, contendo lojas e até uma praça de alimentação. A entrevista foi realizada

em vários locais da igreja, o cuidado que devíamos ter exigiu que conversássemos sempre em

um local onde ninguém nos ouvisse. Toda vez que uma pessoa se aproximava de onde

estávamos, levantávamos e íamos para outro lugar em que não houvesse outras pessoas por

perto.

A entrevista funcionou como uma via de transmissão e externalização de uma

memória traumática. Tratava-se de uma memória da dor, memória dolorosa, agonística,

porque sua publicização pode gerar incompreensões, desentendimentos e estigmatização. Por

isso é contada quase como um segredo, com um grande cuidado, para um pequeno círculo de

interessados, apenas aqueles que inspiram um mínimo de interesse e confiança. A entrevista

foi uma forma de Maria narrar e compartilhar sua dor37.

36 Em seu site, o GTNM se apresenta da seguinte forma: “O Grupo Tortura Nunca Mais/RJ (GTNM/RJ) foi fundado em 1985 por iniciativa de ex-presos políticos que viveram situações de tortura durante o regime militar e por familiares de mortos e desaparecidos políticos e tornou-se, através das lutas em defesa dos direitos humanos de que tem participado e desenvolvido, uma referência importante no cenário nacional”. (Fonte: http://www.torturanuncamais-rj.org.br). 37 Para uma discussão sobre a produção social da identidade frente a situações limites, conferir Pollak (2006).

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Após terminarmos a entrevista, ela me disse que chegou a pensar em desistir, porque

não me conhecia, tinha medo e seus relatos na imprensa estavam lhe rendendo muitos

problemas. Sua família a criticava muito por sua exposição pública diante do caso. Segundo

ela, a decisão de levar a entrevista adiante se deu em razão de ter ligado para Patrícia, familiar

de vítima, militante da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, e quem

também acompanhava o caso, para pedir referências sobre mim. Só depois da mediação de

Patrícia ela se sentiu mais segura. Em relação à entrevista, foi impressionante como Maria

narrou com detalhes os acontecimentos; parecia até que os tinha vivido em primeira pessoa.

Outro traço marcante foi a emoção. Ao falar sobre o caso, ficou muito emocionada e chorou

em vários momentos. Descrevo estes detalhes da negociação da entrevista para enfatizar o

silenciamento e os obstáculos a serem enfrentados pela mãe para se fazer ouvida. Diante do

risco de morte é preciso tomar muito cuidado com quem se fala e do que se fala.

A confiança é construída através dos laços de solidariedade que se estabelecem a partir

do compartilhamento da dor e do sofrimento da experiência traumática. São essas marcas que

Maria gentilmente compartilhou comigo durante a entrevista. O teor dos acontecimentos

narrados chega a provocar, conforme se poderá perceber na descrição da entrevista, certo mal

estar. E o pesquisador, nessas horas, torna-se testemunha da testemunha (Jelin, 2001), ou seja,

desenvolve um trabalho de escuta da testemunha que fala em nome da vítima, já que esta

última não se encontra presente para testemunhar.

Há momentos em que as lágrimas escorrem pelo rosto de Maria, ao lembrar, com uma

riqueza impressionante de detalhes, a tragédia que se abateu sobre o filho, sobre ela e sobre a

família. Isso aconteceu, por exemplo, quando ela me narrou uma situação em que andava de

ônibus pelas ruas do Centro do Rio de Janeiro e, de dentro do ônibus, avistou uma pessoa do

lado de fora que parecia ser seu filho. Desesperada, desceu do ônibus e saiu à procura dessa

pessoa, seguindo seus passos e rastros, até encontrá-la e, ao encontrá-la constatou que não era

seu filho, o que me contou aos prantos.

A lembrança provoca um sentimento de saudade e os efeitos traumáticos do

acontecimento são tão fortes que chegam a transformar a saudade em angústia, em razão da

não localização do corpo do filho, nem vivo nem morto. Vive-se um luto permanente. Luto

que se estende pelo tempo, porque, como argumentou adequadamente a antropóloga Ludmila

Catela, ao estudar os casos de desaparecimento forçado relacionados à ditadura argentina, o

desaparecimento pode ser pensado como uma “morte inconclusa” (Catela, 2001: 142). Os

rituais de morte e de despedida são rompidos, na medida em que não há corpo, em que não há

um momento específico para o luto, e não há uma sepultura onde são depositados os restos

Paula Lacerda
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mortais.

Como não há o corpo para comprovar a morte, Maria prefere acreditar que o filho

esteja vivo. Ela me contou várias situações em que saía procurando o filho aleatoriamente

pelas ruas da cidade. Por onde seu olhar passasse, era sempre mais uma tentava de visualizar e

encontrar o filho. Em certo momento da entrevista, conversávamos de um lugar da igreja, pelo

qual era possível avistar a movimentação da rua. Estávamos no alto de uma igreja e, ao

observar o movimento no ponto de ônibus, Maria identificou e me mostrou uma pessoa que

parecia muito com seu filho. Nesse instante, seus olhos se encheram de lágrimas e ela

começou a me descrever os gestos corporais de seu filho. Segundo ela, o andar da pessoa que

estava passando lá fora era muito parecido com o andar de Alexandre. As formas de falar, de

se vestir, de gesticular e de andar das pessoas passaram a ser observadas por Maria, como se

isso fosse uma pista que ajudasse a identificar e localizar o filho.

4.2.1. O “sumiço” do filho: tomando conhecimento da notícia e dos fatos

Maria tem dois filhos, Manoel e Alexandre. Mora na proximidade de uma favela que

faz divisa com outra, em que facções rivais do tráfico de drogas vivem em conflito há

décadas. Essas favelas ficam na Zona Norte do Rio de Janeiro. Na época do desaparecimento

do filho, ela trabalhava como auxiliar de serviços gerais em um banco, em um bairro da Zona

Sul.

Quando chegou em casa, no dia 12 de dezembro de 2005, após voltar do trabalho,

ainda havia outra jornada a cumprir: a jornada escolar. Antes de seguir para a escola, passou

em casa rapidamente e sua mãe lhe informou que Alexandre já havia retornado da escola,

porém, havia saído novamente para jogar bola e, depois, ainda passaria na casa da namorada.

Ao voltar da escola, às dez da noite, Maria perguntou à sua mãe se Alexandre já havia

chegado. A resposta que obteve foi que Alexandre havia passado em casa antes de ela voltar

do trabalho e depois disso não aparecera novamente. Disse não ter dado muita importância e

fora dormir porque, segundo ela, Alexandre tinha o costume de dormir na casa da avó, quando

chegava muito tarde, com medo de receber broncas da mãe.

Quando acordou no dia seguinte, Maria olhou e viu que Alexandre ainda não estava

em casa. Como trabalhava em um banco e, no dia seguinte, devia chegar mais cedo no local

de trabalho pois, segundo ela, era dia de pagamento dos aposentados, seguiu direto para lá,

sem passar na casa de sua mãe para ver se seu filho já havia voltado para casa.

Paula Lacerda
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A primeira notícia Maria recebeu da irmã pelo telefone. Teria ocorrido uma operação

policial na favela e alguns jovens teriam sido levados dentro do “caveirão”, entre eles seu

filho. Acompanhemos um trecho do relato de Maria:

E aí, eu acordei muito cedo e não vi ele. Passei pela minha mãe direto, porque também pra não me atrasar, e fui embora. E eu fiquei o dia inteiro com aquele aperto no peito todo, e aquela coisa. Fica uma angustia, sabe? E eu ligava pra casa e ninguém atendia e ligava pra casa ninguém atendia. Aí eu me lembrei que tinha a minha irmã, pra mim ligar pra casa da minha irmã, que morava na rua de cima. Quando liguei pra minha irmã, minha irmã falou: “Cê tá sentada?”. E eu falei: “O que foi Conceição, o que aconteceu?”. Ela falou, “Cê tá sentada?”. Eu falei, “O que aconteceu, meu coração está apertado, o que houve com o Alexandre? O que foi? Aconteceu alguma coisa com o Alexandre?”. Aí ela falou pra mim assim: “Maria o que aconteceu foi o seguinte, aconteceu uma operação dentro da comunidade e alguns meninos foram levados dentro do caveirão”.

Pelo telefone Conceição disse que mandaria Manoel, o filho mais velho de Maria, até

a favela, para saber o que havia ocorrido. Enquanto Manoel ia à favela, Maria foi conversar

com o gerente do banco e pediu para ser liberada mais cedo, porque algo de errado estava

acontecendo em casa com seu filho. O gerente do banco, que, segundo Maria, era muito seu

amigo, compreendeu sua preocupação e a liberou. Maria trocou de roupa para ir embora, mas

antes ligou novamente para a irmã. A irmã de Maria lhe perguntou se já estava a caminho de

casa e recomendou que andasse rápido, porque a informação que havia chegado era a de que

Alexandre fora levado pelo “caveirão” e entregue aos traficantes da Favela Cutelo, favela

onde o tráfico é comandado por uma facção rival à da Favela Samambaia.

Outra versão que circulou era que os jovens menores de idade teriam sido levados para

o Juizado de Menor. Maria conta que, no meio do desespero, perguntava-se por que seu filho

teria sido levado ao Juizado de Menor, e a resposta que ouviu da irmã foi que Alexandre

estava saindo da favela, de madrugada, quando foi abordado. O simples fato de circular à

noite pela favela é compreendido pela irmã de Maria como motivo suficiente de suspeição.

Maria seguiu do trabalho direto para a favela, apesar de não conhecer ninguém. Por ser

obreira da igreja38 as pessoas rapidamente a identificaram. Quando ela chegou à

comunidade39 havia uma van estacionada e dentro estavam as mães e outros familiares dos

jovens desaparecidos, chorando. Quando os familiares de outros jovens se aproximaram de

Maria, ela foi logo perguntando o que estava acontecendo. Informaram-lhe que todos ali

estavam se dirigindo ao batalhão responsável pela área, para conversar com o comandante 38 Obreira da igreja: na linguagem evangélica, aquela pessoa que se engaja nas atividades e no trabalho da igreja. 39 Comunidade: termo utilizado em substituição à palavra favela, como forma de evitar a estigmatização. A esse respeito conferir o texto de Birman (2008).

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sobre a operação policial que ocorrera de madrugada, circunstância na qual os jovens teriam

desaparecido. Entretanto, segundo rumores que circularam, os jovens não foram levados para

a delegacia, mas sim entregues aos traficantes rivais da Favela Cutelo.

Segundo os moradores ouvidos por Maria, os policiais entraram na Favela Samambaia

com o caveirão para dar cobertura aos traficantes da facção rival que desejavam tomar as

bocas da favela. Um X940 teria se aproveitado da situação para se vingar do filho de Maria.

Ela, no entanto, continuava sem entender por que levaram logo o seu filho, e continuava

fazendo essa pergunta às outras mães e aos familiares dos outros jovens sequestrados. Até que

obteve uma resposta mais precisa de alguém que lhe disse:

Maria, eu soube que quando o X9 viu ele saindo de dentro da comunidade, quando o caveirão passou, o menino virou pra um dos traficantes que estava dentro do caveirão, e falou assim: ‘�Esse é� da favela, filho de um dos donos da favela. Aí pararam o caveirão, e colocaram ele’. Quando pegaram meu filho, diz que um dos chefes do tráfico falou o seguinte: ‘Ganhei na loteria, pequei o filho do cara’. Aí, diz que ele ainda olhou para o meu filho e falou pro meu filho: ‘Nunca vi negro de nariz fino!’. Porque meu filho tinha o nariz fino, mas fininho. ‘Nunca vi negro de nariz fino!’. Diz que pegou o cortador do bolso, tirou um cortador de unha, eu não sei, e cortou um pedaço do nariz do garoto. Cortou um pedaço do nariz do meu filho. Quem conta essa história é um dos sobreviventes, um dos meninos que foi liberado, porque foram treze sequestrados.

Dos treze jovens sequestrados, cinco foram liberados, dos quais dois nunca foram

identificados. Foram os três sobreviventes identificados que relataram a versão de que eram

treze os jovens sequestrados por traficantes da favela rival, com a participação da polícia e de

um X-9. Ao tomar conhecimento de que traficantes da Favela Cutelo estavam envolvidos no

sequestro, Maria quis seguir para lá, mas os outros familiares não a deixaram ir. Seguraram-na

dentro da Favela Samambaia e depois seguiram para a delegacia de polícia.

4.2.2. Da favela à delegacia

Na delegacia, encontraram o rapaz acusado de ser X-9. Ele estava preso e os familiares

dos jovens desaparecidos não sabiam. Uma menina, que estava no grupo de familiares dos

jovens desaparecidos foi quem trouxe a informação, dizendo: “Ele ta aí! Ele ta aí!”. Ao ouvir

a fala dessa menina, Maria ficou curiosa em saber “quem estava ali”. Guardava a esperança de

ouvir que fosse filho. Mas não era, quem estava ali era o X-9. Maria ficou espantada ao saber

40 X-9: na gíria do crime significa delator, traidor, dedo-duro, alcagüete, informante da polícia.

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quem era o X-9. Era um rapaz conhecido seu, para quem, segundo ela, “cansou” de fazer

doações de alimentos já que sua mãe era muito pobre. A mãe desse rapaz era frequentadora da

mesma igreja que Maria, e ele também tinha o hábito de acompanhar sua mãe à igreja, desde

muito cedo.

Maria relata que olhou “na parte de cima da delegacia”. Lá estava o X-9, com as mãos

algemadas. Segundo ela, quando ele “bateu o olho nela”, ficou “assim meio sem graça” e

baixou o olhar. No entanto, quando olhava para as outras mulheres, familiares dos outros

jovens, ele as ameaçava. Maria começou a se sentir mal na delegacia, mas ainda deu tempo de

reconhecer dois jovens moradores de Samambaia, que também estavam na delegacia. Ao

avistarem esses jovens os familiares passaram a perguntar por cada um dos desaparecidos, já

que foram todos pegos juntos. Maria se dirigiu a um deles para solicitar notícias de seu filho:

Virei pra esse rapaz, que me olhava muito arregalado, e perguntei pra ele assim: “Meu filho, por favor”, e peguei a foto do meu filho e mostrei pra ele. “Esse menino tava junto com vocês? Você viu se eles pegaram esse menino?”. Ele ficou paralisado. Ele olhava pra mim, mas não conseguia me responder, sabe? Eu via o terror no olho dele, no rosto dele, e eu falei: “Meu filho, me responde! Esse menino tava com vocês?”. E ele balançou um pouquinho a cabeça, quase não mexendo, assim pra mim, sabe? E aí ele abaixou a cabeça e a lágrima desceu no olho dele. Ai eu falei: “Meu filho, pelo amor de Deus, fala pra mim, o que foi que você viu? Esse menino tava no meio deles?”. Esse menino não piscava nem nada. Ele olhava fixo dentro dos meus olhos e ele ficava paralisado assim. O olhar dele me deu medo, de desespero. Porque eu olhei pra ele e tipo como se ele não quisesse falar! Aí eu virei as costas e bati com a mão na parede e falei: “O meu filho está morto! Eles mataram o meu filho e ele viu o meu filho morrendo”. Aí ele pegou e ficou assim... a lágrima dele descia. Ele abaixou a cabeça. Aí eu não via mais nada, quando eu acordei eu já estava lá dentro. Eu desmaiei e não conseguia falar. Eu fiquei oito horas sem ter voz. Fiquei paralisada, oito horas sem falar. Eu não conseguia falar uma palavra. Eu abria a boca e não saía. Eu fiquei paralisada, era como se eu tivesse tomado uma anestesia, alguma coisa, porque eu queria andar e minha perna não respondia. Aí eu fui tirada dali, me pegaram pelas pernas, me colocaram dentro de um carro e dali me levaram para um Hospital, para o Getúlio Vargas.

Após desmaiar na delegacia, Maria foi levada ao hospital. Segundo seu relato, quando

voltou a si já era madrugada do dia seguinte. Do hospital, foi levada para a casa de uma

“moça da igreja”, dentro da comunidade Samambaia. Ao acordar, de madrugada, ficou

desesperada ao ver que não estava em casa e perguntou o que estava fazendo ali:

Aí a menina disse pra mim: “Você não pode voltar pra tua casa”. Aí eu perguntei por que não. “Porque segundo o comentário que tá tendo aqui dentro da comunidade, o teu filho foi pego por causa do seu ex-marido, e se você voltar pra casa eles vão lá pra te matar”. Aí eu falei: “Gente, mas eu não tenho nada a ver com essa história. Eu trabalho, eu vivo a minha vida, e eu sou separada desse homem há doze anos. Quando eu vivia com ele, ele trabalhava, não era dessa vida”. E a menina disse: “Não, você não pode voltar pra sua casa”. E aí eu fiquei lá dentro da comunidade, naquele desespero, de madrugada, andando pra lá e pra cá. Não queria dormir, eu

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queria meu filho. E eu andava dentro da comunidade, amanheceu o dia e nós fomos para o batalhão.

4.2.3. Da delegacia ao batalhão: a conversa com o comandante

A conversa com o comandante foi marcada pela tensão. As mães ficaram irritadas ao

ouvirem da boca do comandante que, naquela madrugada, ele não havia liberado nenhum

carro blindado41. Sendo assim, era impossível que o caveirão42 tivesse circulado pela

comunidade. Maria contestou o comandante dizendo que na Favela Samambaia há uma

ocupação policial que chega às dezoito horas e sai às seis da manhã, mas, nesse dia, a

ocupação saiu da comunidade à uma e quarenta da manhã, para dar cobertura aos traficantes.

Vários moradores teriam visto dois caveirões entrando na favela.

Diante do impasse, as mães pediram ao comandante que enviasse uma equipe à favela

para procurar “os meninos”. Junto com as mães, estava o presidente da Associação de

Moradores, que também ouviu da boca do comandante que este não arriscaria seus policiais

em Samambaia porque, segundo ele, “o pessoal de Samambaia tem mania de dar tiro em

polícia”. As mães insistiram nesse pedido, mas não foram atendidas. Para encerrar a conversa,

o comandante disse que nesse momento era horário escolar e que seus soldados estavam

ocupados, lanchando.

Segundo o relato de Maria, o comandante chegou a afirmar que se o acontecimento

tivesse ocorrido na Favela Cutelo, os policiais iriam, “porque lá é mais tranquilo”. O

comandante do batalhão perguntou às mães se elas garantiriam a segurança dos policiais e se

falariam com os “bandidos” para a polícia entrar. No meio do desespero, as mães disseram ao

comandante que conversariam com quem quer que fosse, mas, ao final da conversa, saíram

dali sem resposta alguma. Quando as mães estavam de saída, na porta do batalhão, um dos

familiares dos jovens recebeu um telefonema informando que eles estariam no Hospital

Getúlio Vargas. Os familiares entraram na van e dali mesmo se dirigiram ao hospital. 41 Blindado: o mesmo que caveirão, carro blindado da polícia. 42 Caveirão: “O caveirão é um carro blindado adaptado para ser um veículo militar. A palavra caveirão refere-se ao emblema do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE), que aparece com destaque na lateral do veículo. Entre as modificações feitas nos caminhões blindados originais estão o acréscimo de uma torre de tiro, capaz de girar em 360 graus, e fileiras de posições de tiro em cada lado do caminhão. O caveirão tem capacidade para até 12 policiais com armas pesadas. Construído para resistir às armas de alta potência e aos explosivos, o caveirão tem duas camadas de blindagem, assim como uma grade de aço para proteger as janelas quando sustenta fogo pesado. Os pneus são revestidos com uma substância glutinosa que impede que sejam furados. As quatro portas travam automaticamente e não podem ser abertas pelo lado de fora – dois alçapões de escape, um na torre e outro no piso, podem ser usados em emergências. Embora pese cerca de 8 toneladas, o caveirão pode alcançar velocidades de até 120km/h”. (Fonte: Relatório da Anistia Internacional: “Vim buscar sua alma”: o caveirão e o policiamento no Rio de Janeiro, 19/07/2006).

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4.2.4. Do batalhão ao hospital: a presença ostensiva da polícia

Ao chegarem ao hospital não puderam entrar, pois havia uma grade de emergência

colocada justamente na entrada para impedir a passagem. Maria se agarrou à grade e olhou

para dentro do hospital. “Havia muita polícia”, segundo ela, e um grupo de PMs formava uma

roda de conversa. Do lado de fora da grade, Maria tentava conversar com esses policiais,

quando um deles seguiu em sua direção. Ela então lhe explicou o que havia acontecido e qual

era o caso. Esse policial que a atendeu seria um dos quatro policiais que receberam os

cinquenta mil reais pagos pelos traficantes pelo “aluguel” do caveirão. Os familiares só

souberam dessa informação mais tarde.

Sem saber que o policial que a atendeu era um dos envolvidos no caso, Maria pegou

uma foto do filho, mostrou a ele e perguntou se aquela pessoa estava ali, no hospital. Para

pressionar, disse ainda ao policial que esta informação de que o filho estava no hospital lhe

havia sido transmitida por um guardador de carro, morador da Favela Samambaia, que havia

machucado a perna e passado no hospital para se medicar. Esse guardador disse a Maria que

viu o filho dela com o nariz cortado e muito sangue escorrendo.

Após ouvir Maria, o policial pegou a foto, olhou e pediu para que esperasse um

minuto. O policial seguiu com a foto e entrou no setor de emergência do hospital, onde

estavam os demais policiais. Do lado de fora da grade, Maria via esse policial mostrar a foto

de seu filho aos colegas de profissão. Do lado de dentro, o policial olhava para a foto e olhava

para Maria. A fotografia rodou nas mãos de todos os policiais. Um falava com o outro e

alguns riam balançando a cabeça.

Maria estava acompanhada da irmã, e pediu a ela que desse um jeito de recuperar a

fotografia, que circulava de mão em mão entre os policiais. Enquanto a irmã tentava reaver a

foto, Maria pensou uma estratégia para conseguir entrar no hospital. Fez uma ficha médica,

como se estivesse passando mal.

Dei a volta por baixo do setor de entrada de emergência, fiz uma ficha como se eu tivesse lá passando mal. Me afastei dali, desci e fui sozinha, fiz uma fichinha e entrei no hospital. Consegui entrar. Quando eu cheguei lá dentro tinha dois rapazes numa maca. Um estava com a cabeça aberta, tipo que tinha ganhado uma machadada na cabeça, uma abertura horrível, com o rosto todo inchado, todo arrebentado. E eu tinha a outra foto comigo, né? Eu tenho um monte de fotos do meu filho dentro da bolsa. Aí eu perguntei para o rapaz assim: “Meu filho, você é do caso Samambaia?”. E o rapaz todo arrebentado, assim: “Não, não, eu não sei de Samambaia não. Eu não

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sei de nada não!”. Aí eu senti que era. Aí ele falou assim: “Eu não sou de Samambaia”. Aí eu virei as costas, quando eu virei as costas pra ele, quando eu dei uns cinco passos assim, ele virou e falou assim: “A senhora é a mãe do K?”. Aí eu falei pra ele assim, aí eu voltei e falei: “Eu não falei que você era de Samambaia? Você era do caso Samambaia?”.

Depois de muito insistir com esse garoto e não obter nenhuma informação, Maria

percorreu todo o hospital e, de novo, não encontrou nada, nenhum indício. Tampouco ouviu

alguma coisa relacionada ao caso Samambaia. Os familiares dos jovens desaparecidos se

reuniram novamente, entraram na van e prosseguiram na peregrinação em busca de

informações.

4.2.5. Esperança e desespero

Após o hospital, foram parar no Ministério Público. A passagem pelo Ministério

Público parece ter sido tão irrelevante que sequer mereceu uma descrição mais longa na fala

de Maria. De qualquer maneira, o Ministério Público fora comunicado, passando a ter

conhecimento do que estava acontecendo.

Os dias iam passando e a angústia das mães só aumentava. Até que, numa quinta-feira

à tarde, Maria foi a uma igreja evangélica e o pastor lhe disse que ligara para “dentro da

comunidade” e falara com um rapaz que já havia sido pastor dessa mesma igreja e agora era

traficante. O ex-pastor, convertido ao tráfico, falou com o chefe do tráfico, conhecido pelo

apelido de Cafunga, e este respondeu que liberava qualquer um dos meninos, menos esse,

porque esse era o filho do “cara”. Ou seja, não podia liberar o filho de Maria porque o pai do

garoto era um dos chefes do tráfico de uma facção rival. O poder sobre a vida e a morte do

filho do traficante rival era uma forma de vingança. Na interpretação de Maria, os jovens

sequestrados poderiam ser utilizados como escudo humano durante a invasão de uma favela

pela facção rival, ou também poderiam servir de moeda de troca para negociações.

O sentimento de desespero se misturava ao sentimento de esperança, e ambos se

embaralhavam. Afinal, se o pastor recebeu a notícia de que poderia liberar qualquer um,

menos o filho de Maria, isso significava que até aquele momento os jovens ainda estariam

vivos. Poucos dias depois outra informação chocante chegou aos ouvidos de Maria e das

outras mães:

Teve na sexta-feira um baile funk em comemoração a isso, em Cutelo. E a informação que chegou em Samambaia era que os meninos estavam todos sentados, amarrados e nus e, conforme o espeto do churrasco ia esquentando, eles furavam os

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meninos, colocavam eles no telefone para os traficantes de Samambaia ouvirem e falavam: “Oh, a gente tá assando a carne dos filhos de vocês. Aqui, oh!”. E aí os meninos gritavam, choravam no telefone, e eles ficavam furando os meninos e fazendo aquelas torturas. No decorrer do tempo fui recebendo bastante informação, que eles iam trocar aqueles meninos de lugares, que eles iam usar aqueles meninos quando eles invadissem. Os meninos iam mostrar a cara dos traficantes. E aí houve o comentário que eles tinham sido mortos e picados e jogados para os porcos e os policiais mataram os porcos fizeram análise e não tinha vestígio de carne humana, não teria como em dois dias aqueles porcos comerem oito pessoas.

Apesar das versões do caso que circularam, de que os jovens teriam sido mortos,

picados e jogados para os porcos, Maria não acredita nessa possibilidade, ainda prefere

acreditar que o filho está vivo. Passados mais de dois anos de quando ouvi o primeiro relato

sobre o caso, na ocasião em que realizei a entrevista com Maria, seu entendimento era de que

a intenção dos traficantes de Cutelo, ao entrarem em Samambaia, era tomar o tráfico de

drogas e não sequestrar os jovens. Para ela, os traficantes foram enganados pelo X-9.

Como K. tinha sido expulso da comunidade pelo traficante, por ter caguetado o pessoal do tráfico, passou para o pessoal de Cutelo e achou que ia concluir a vingança dele. Ele enganou os traficantes de Cutelo dizendo que sabia onde moravam os [traficantes de Samambaia]. Levou o chefe do tráfico somente na casa dos meninos que na época deram a surra nele. E eu fiquei sabendo que meu filho participou de bater nele. Então a vingança era do K. Ele usou o dono de Cutelo para concluir a vingança, mas o dono não sabia disso. E depois desses anos todos eu descobri que os meninos saíram de dentro da comunidade Samambaia nus. Que eles tiraram as roupas deles e os levaram para Cutelo nus. Quem mora na divisa viu pela janela que os meninos passaram todos eles amarrados. [O traficante] saiu de dentro da comunidade Samambaia de caveirão. Por isso que nós nunca conseguimos encontrar os nossos filhos. Por isso que na manhã seguinte a Policia Civil vasculhou tudo dentro da comunidade e não achou esses meninos. Porque eles estavam no subterrâneo43. Todas as denúncias que eu tive de lugares onde eles pudessem estar eu passei adiante. O coronel [nome] investigou e realmente encontrou vestígios. Parece que Cutelo fez um subterrâneo. É tipo um porão, onde ele [o coronel] encontrou uns cobertores. Do outro lado da favela, tinha um galpão abandonado. Encontraram vestígios de que realmente os garotos passaram por ali. E uma casa que ia ser uma igreja, teve denúncia de que eles foram torturados dentro dessa casa. Porque um dos meninos que foi libertado levou a polícia até esse local. E encontraram pedaços de dedos, encontraram muito sangue naquele lugar. Foi ali que foi feito aquele exame que se chama forense44, né? Aquele exame que joga o luminol45, que joga pra investigar sangue. Encontraram nove tipos de sangue diferentes.

43 Subterrâneo: porão utilizado pelos traficantes como cativeiro, para esconder pessoas sequestradas. 44 Forense (exame forense): exame pericial para encontrar material que sirva como prova nos autos de um processo jurídico. 45 “Luminol: é uma substância química criada em 1928 por H. O. Albrecht. É um produto que é preparado misturando-se o luminol propriamente dito, com uma substância à base de peróxido de Hidrogênio que possui o mesmo efeito da água oxigenada, que reage muito lentamente. Quando essa mistura entra em contato com o sangue humano, utiliza o ferro presente na hemoglobina como agente catalisador causando uma reação de quimiluminescência. Muito utilizado pela polícia cientifica, quando necessita saber se há vestígios de sangue em roupas, objetos ou lugares. No caso de tecidos, mesmo que a cena do crime tenha sido limpa, as fibras do tecido absorvem partes do composto de ferro, e assim, quando aplicado o luminol, ele causa uma reação de oxidação e 'ilumina', literalmente, o local, ficando uma cor azul-fluorescente. É mais útil quando usado junto com luz-negra, podendo-se assim ver mais claramente as evidências de sangue”. (Fonte: Wikipédia).

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4.2.6. O açougueiro, o caveirão, os traficantes com farda e a corrupção policial

Um dos garotos liberados participou da reconstituição dos fatos e apontou a casa de

onde teria saído o açougueiro46, responsável por picotar e sumir com os corpos47. No dia da

reconstituição, o açougueiro foi preso e seria levado pela Polícia Civil ao batalhão, mas os

policiais teriam recebido mais dez mil para o liberarem. Maria faz questão de lembrar que

todas essas informações foram divulgadas pela imprensa, foram publicizadas, e nenhuma

medida foi tomada, porque os envolvidos eram policiais. A expectativa de Maria era que o

açougueiro fosse dizer onde estavam os corpos dos jovens desaparecidos, mas, quando os

policiais voltaram ao Posto de Policiamento, que fica na divisa de Samambaia com Cutelo,

para conduzi-lo ao batalhão, constataram que ele já havia sido liberado.

Ainda segundo Maria, nesse dia, quando o delegado chegou à delegacia, encontrou os

policiais contando dez mil reais da propina que receberam. Entretanto, esse dinheiro não foi

citado como prova contra os policiais. Nas palavras dela: “Colocaram uma pedra em cima

disso, porque tinha policiais envolvidos, esses policiais ficaram em prisão administrativa

durante trinta dias”.

Maria contou também que o X-9 foi conduzido ao batalhão para fazer o

reconhecimento dos policiais que haviam liberado o caveirão para que fosse utilizado na

invasão da favela. Foram colocados duzentos policiais para que K. fazer o reconhecimento,

dentre eles o rapaz reconheceu quatro. Esses quatro policiais eram exatamente aqueles que

estavam escalados para o policiamento em Samambaia. Na versão dos policiais acusados, eles

teriam realmente sido chamados à Samambaia e houve uma operação policial.

46 Açougueiro: expressão utilizada para designar a pessoa, dentro do tráfico de drogas, responsável por torturar, matar, esquartejar e “sumir” com os corpos das vítimas. 47 Na etnografia de Antônio Rafael Barbosa sobre o tráfico de drogas, um de seus informantes ao falar do tratamento dispensado aos mortos, difere dois tipos, um dirigido para membros do próprio grupo de traficantes e moradores da localidade, outro, direcionado aos inimigos: “Tem os defuntos vivos. Aqueles que são obrigados a sumir, a sair fora. Aí pra ver a mãe, um irmão, tem que falar com alguém pra ir lá, mandar carta... marcar um lugar longe dali. Porque se pisar ali ele morre. […] Quando não é pra ser exemplo, um castigo de exemplo, aí tortura longe dos olhos da comunidade. Levam lá pra cima, pra um lugar em que ninguém vê, que pouca gente vê, pode ser uma casa, e ali mesmo dão cabo do cara. 'Passa o carro...' - é o cerol. Porque sempre alguém delata, a família do cara pode delatar, e assim é menos um crime para botar nas costas. […] Joga no poço, em um buraco no alto do morro, taca cal... […] Quando você ouve a expressão ‘panha o carrinho’, aí você já sabe, alguém vai cair. Esse carrinho é um carrinho de lixo. Tem um gari que tá ali com eles que bota o defunto no carro, joga um lixo por cima, e vai desovar em um lugar mais longe. Um local próximo e longe da favela. […] Também pode ser num porta-mala. Roubam muito carro pra isso. É a desova... aliviar o flagrante... Polícia também faz, joga em qualquer canto... Polícia não se mata. Porque se matar polícia acaba com a boca. Tem que ser um negócio muito bem feito, deschavado. […] Geralmente são esses polícia que já deu muito derrame no morro. […] Aí você pega e bota debaixo do morro do alemão. Quando você vê isso aí no jornal, que acharam o corpo de um policial em determinada área, é porque foi outro que fez. Não tem dúvida” (Barbosa, 1998: 104-5).

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Quando eles chegaram lá, tinha um menino que ia dizer pra eles onde os traficantes estavam e onde estavam as armas. K. ia conduzi-los às casas dos bandidos. Contaram no depoimento que foi isso que foram fazer lá. Só que em depoimento K não diz isso. Diz o seguinte: que eles [os policiais] ficaram encarregados de trazer o caveirão e dentro do caveirão estavam ele, outro traficante magro, e o Cafunga. E quando eles chegaram na porta do caveirão, o motorista do carro blindado falou o seguinte: “Uê! O que quê tá acontecendo? Oh, cara! Você vai entrar aqui assim?”. Porque esse traficante estava armado, estava com granadas penduradas. E aí diz que os policiais do posto de policiamento tranquilizaram os policiais que estavam indo ajudar eles. Disseram o seguinte: “Não, tá tranquilo, pode [deixar]. Eles são amigos, pode entrar que eles são amigos”. Eles estavam todos fardados, os traficantes, com farda da PM. E aí eles entraram em Samambaia dessa maneira, com traficantes dentro do caveirão. E aí [os policiais] alegam que só tinha um carro blindado, mas moradores de Samambaia ficam com medo de denunciar. [Os moradores] alegaram que eram dois carros blindados.

Maria contou que, através dos depoimentos dos policiais, os familiares descobriram

que eles eram de vários batalhões diferentes. Essa informação também já havia sido passada

pelo X-9, mas até então ninguém acreditava. As mães só acreditaram quando tiveram acesso

ao inquérito, onde constam os depoimentos dos policiais, os nomes dos policiais denunciados

e os respectivos batalhões aos quais eram vinculados.

Com o passar do tempo novos detalhes e informações apareceram e novas surpresas

também. Maria tomou conhecimento, a partir do relato das outras mães de que alguns dos

“meninos” foram retirados de dentro de casa por traficantes vestidos com o uniforme da

polícia.

Eles bateram de porta em porta. Alguns eles encontraram pelas vielas, pelos becos da comunidade. No caso do meu filho, na Ponte, já descendo. Então ele [o X-9] levou �os traficantes� na casa desses meninos, que antigamente eram amigos dele. Bateram na porta e falaram: “Vamos embora, vamos levar que é bandido”. E diz que os policiais falaram o seguinte [para as mães]: “Se ele não for bandido ele vai ser liberado, mas a gente vai levar para averiguação. Todos eles serão levados pra averiguação”. E aí, as mães naquele desespero, catando os documentos, indo atrás deles. Só que elas achavam muito estranho, porque elas olhavam para a cara de alguns que estavam vestidos de policiais e elas achavam que eram rostos conhecidos. Porque muitos moram na divisa de Samambaia e Cutelo. Mas como tinha polícia ali sempre, elas não achavam que eram bandidos. Só que quando o Cafunga entrou na casa de uma delas ela reconheceu, porque ele era de Samambaia e as pessoas conheciam. Algumas mães foram atrás e eles gritaram pra elas voltarem, porque se não as matariam. E alguns meninos foram tirados de dentro de casa. E essas mães alegam que eles, os traficantes, estavam vestidos de PM. Só que pra gente comprovar! Se a gente fala essas coisas, a polícia sempre vem contra a gente. A polícia sempre diz: “Cuidado com o que você diz, a gente pode te processar”. Eles estavam sempre falando esse tipo de coisa. E eu fui muito ameaçada. Porque as mães que moravam na comunidade, elas tinham muito medo, e eu já não tinha medo porque eu morava fora. Mas mesmo assim, era meu filho, eu tinha que correr atrás. Fui eu quem o botou no mundo. Ele dependia de mim, então eu tinha que fazer aquilo. E aí eu sei que elas [as outras mães] ficaram com muito medo. Eu fui ameaçada pelo comandante do [número do batalhão] várias vezes. Na casa da minha mãe, teve muitas vezes que eu ia pra abrir o portão e eu dava de cara com ele num gol bolinha, perto da minha casa.

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Em razão das ameaças que sofreu, Maria teve que se mudar de casa consecutivamente,

chegando a ter dezesseis endereços diferentes. Teve que abandonar tudo várias vezes, morar

na casa de pessoas que não a conheciam, mas que foram solidárias oferecendo-lhe abrigo. Diz

que teve a promessa do governador de que teria outra casa, conversou com autoridades

públicas que atuam na área dos direitos humanos, inclusive com o Ministro da Justiça Tarso

Genro, mas não obteve resposta alguma. Uma carta chegou a ser enviada por uma autoridade

à Caixa Econômica Federal, tratando de uma casa para Maria. Porém, também não resultou

em nada.

A única coisa que as mães receberam, por curto período de tempo, foram algumas

cestas básicas. A partir desse fato Maria elabora uma crítica às outras mães. No seu

entendimento, as cestas básicas eram dadas para poder calar a boca das mães, porque, diz ela,

“nós sabemos que as pessoas que vivem na comunidade, o que oferecem pra elas, elas

aceitam”. Já a interpretação que Maria faz de si mesma é a de que levantou uma bandeira,

porque foi contra a polícia, foi contra traficante, foi contra todo mundo, porque achava um

absurdo ninguém fazer nada.

Para Maria, as outras mães tiveram medo de se manifestar porque moravam dentro da

favela e qualquer manifestação significaria risco de morte. Por isso preferiram se calar (ou

melhor, foram silenciadas). Conta ainda que convidava as outras mães para reuniões,

manifestações, viagens para denunciar o caso e reivindicar providências, mas ninguém

aparecia. Uma das peregrinações solitárias de Maria se deu quando ela decidiu solicitar uma

dragagem de um rio que fica em Samambaia, após receber uma denúncia de que os corpos

poderiam ter sido jogados em um valão. O valão ficava próximo a um terreno da Marinha, só

sendo permitida a entrada com a autorização desta, e este foi o maior obstáculo. Maria chegou

a conseguir a draga para fazer a busca no rio e, depois de muito empenho e mobilização,

conseguiu, por intermédio de uma assessora do então senador e ex-ministro da justiça Renan

Calheiros (PMDB/AL), autorização para entrar na área.

Fui a única que botou peito pra dragar o rio. Andei na comunidade toda espalhando papel, colhendo assinatura, mobilizando pra poder pedir para dragar o rio. E não dragaram. Disseram que dragaram ali não sei quantos metros, cinquenta metros, cem metros. Mas se eles tivessem dragado pelo menos cinquenta metros, eu tenho certeza de que eles teriam encontrado pelo menos cem corpos. Qual foi o medo de dragar aquele rio? Porque se eles dragam aquele rio [seria] pior do que o Tsunami, [apareceriam] milhares de corpos. Ia ser um escândalo, e a [governadora] Rosinha não queria isso no final do mandato dela. Entendeu? Então tem sido uma luta muito grande. Eu cheguei pra uma das mães e falei pra ela: “Por que você não vai comigo?”. “Maria, é melhor você botar uma pedra em cima disso, eu não quero

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saber dessa coisa. É melhor deixar essa coisa pra lá”.

A crítica de Maria ao envolvimento das mães se situa na fronteira entre a compreensão

e a resignação. O choque e o trauma do acontecimento foram tão fortes e provocaram um

impacto tão grande sobre as outras mães, que Maria acaba relativizando a própria crítica:

Eu só via naquelas mães [sofrimento]. A Ângela até hoje sofre. A Ângela e a Joana sofrem. A Joana foi embora pra Pernambuco, ela é de lá. Ela foi embora e não quer mais voltar pra cá, entrou em estado de depressão, de choque, que não saía nem pra ir ao supermercado fazer compra. Então eu não estou questionando o sentimento das mães, porque cada um tem o seu sentimento e cada um reage de uma maneira. E eu sei que elas têm medo. E tinham medo porque foram ameaçadas naquela época, por causa de tudo. Porque nós estivemos no batalhão e elas tinham medo. E eu não, como eu já morava fora, eu tinha como me locomover. Eu ia pra qualquer lugar, não vivia presa dentro daquilo ali, dentro de favela, dentro de comunidade. Então eu sei que elas tiveram muito medo e elas largaram tudo. E até foi ter o julgamento e só a Maria estava no julgamento. Em todas as audiências só estava eu. Viagem pra Brasília, falar com o Ministro da Justiça, era eu. Direitos humanos, era eu. Vai pra uma manifestação, era eu.

Diante da negativa das outras mães em participar e levar o caso adiante, Maria sentiu

que não adiantava mais contar com elas. Em sua fala expressa uma grande indignação com o

fato de as mães se recusarem a procurar os filhos. Maria justifica sua força para prosseguir na

luta recorrendo à religião, diz que sentiu Deus falando dentro de seu coração: “Maria, cada

um daqueles meninos é teu filho, teu filho não é só o Alexandre. Acabou. Você não é mais

mãe só do Alexandre. Não conta com elas, porque você não pode contar com elas”.

É possível dizer que essa capacidade de socializar a maternidade constitui-se numa

competência que é desenvolvida a partir do momento em que a dor e o sofrimento são

politizados. O processo de socialização da dor e do sofrimento, o esforço de publicização, e a

construção da denúncia pública, são momentos de aprendizagem política. O contato com

outras mães, familiares e entidades de direitos humanos, é praticamente uma forma de

transmissão de saber. Maria lembra, em nossa conversa, a importância que foi para ela

conhecer Vera e Marilene (Mães de Acari). Duas mães que passaram por experiências muito

semelhantes à que Maria estava passando e que, portanto, tinham muita experiência a contar.

Embora não tenha achado o corpo do filho, Maria considera uma vitória a aprendizagem que

teve. Diz que conheceu pessoas, lugares, muitas portas se abriram, apesar de não ter

encontrado o filho. Mas outras dificuldades permaneceram.

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4.2.7. O jogo de denúncias e a manipulação das provas

Uma das principais dificuldades na luta das mães por justiça e reparação é a produção

de provas que incriminem os acusados. Mesmo quando existem fartas e evidentes provas, o

corporativismo policial aparece como obstáculo ao prosseguimento dos processos e/ou as

testemunhas e os familiares são intimidados e forçados a mudarem seus depoimentos, ou até a

se mudarem de cidade.

Diante da negação do comandante de que teria ocorrido uma operação policial naquela

madrugada e que nenhum caveirão havia entrado na favela, Maria enumera o que considera

provas suficientes para que sejam tomadas providências urgentes e sérias: “dedos”, “sangue”,

“restos de roupa”, “ossadas”, grande quantidade de dinheiro encontrada com policiais,

testemunhos de moradores que assistiram, de dentro de casa, aos acontecimentos, relatos das

mães que tiveram suas casas invadidas e o exame de DNA. Tudo isso, no entendimento de

Maria, é prova suficiente para demonstrar que a tragédia aconteceu e que é preciso que

providências sejam tomadas.

Alguns rapazes, acusados de serem “traficantes”, chegaram a ser presos e foram em

juízo fazer o reconhecimento dos policiais, no entanto, acabaram colocados em liberdade e

não mais apareceram no julgamento dos mesmos. A libertação dos “traficantes” presos

apavorou as mães, pois eles andavam dizendo que as matariam. Maria conta que estava dentro

da Defensoria Pública quando recebeu o telefonema da delegada dizendo que o advogado de

Cafunga havia conseguido uma liberdade condicional. Ela então perguntou ao defensor

público o que seria das mães com a libertação de Cafunga:

Eu falei pra ele: “Doutor, estão falando que o Cafunga vai sair hoje [da prisão], como vão ficar as mães? Ele vai querer matar as mães”. Ele falou o seguinte: “É dona Maria, eu te aconselho o seguinte: a senhora comprar uma pistola, esperar ele sair de dentro da delegacia e matar ele. Pode deixar que eu te defendo, você não vai presa não”.

Percebe-se que cada visita a um órgão público se tornava mais decepcionante e

traumática que a outra. As investigações do caso pelos delegados e pelas delegacias por onde

passou não progrediram em nada, segundo Maria. Os delegados responsáveis pela

investigação não lhe inspiravam nenhuma confiança. Um deles, numa ocasião, tentou

esconder os exames de DNA que as mães dos jovens desaparecidos fizeram. Quando o

delegado tentou negar a existência dos exames de DNA das três mães, Maria argumentou que

era impossível que eles não existissem, já que foram esses exames que serviram como prova

Paula Lacerda
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contra um dos traficantes, aquele que havia prometido matar as mães.

O delegado titular que acompanhava o caso chegou a dizer à Maria que ela poderia

ficar tranquila, pois o exame tinha dado positivo e isso serviria para manter Cafunga preso,

mas não mostrou o exame a ela. Em umas das idas à delegacia, ela foi informada que o

delegado titular havia entrado de férias. Quem a atendeu, nessa ocasião, foi o delegado

substituto. Depois de uma longa espera, segundo Maria, veio a decepção.

Ele não olhava nos meus olhos. E eu falei pra ele o seguinte: “Doutor José, eu vim pegar o exame de DNA que ficou pronto. E eu quero o resultado do exame de DNA, meu, da Ângela e da Joana”. Aí ele: “Ah! Mas você não pode pegar o delas, só pode pegar o teu”. Eu falei: “Não, elas me deram procuração, pra eu poder conduzir o caso”. Tenho procuração delas assinada até hoje. Aí ele falou pra mim o seguinte: “Espera só um minutinho”. Aí ele levantou e foi lá, pegou umas papeladas, sentou e olhou, olhou, olhou... E eu num tô vendo o que ele tava olhando. Ele tava levantando e olhando por debaixo das folhas. E aí a Carolina olhou pra mim e achou estranho. E eu falava com ele e ele não olhava pra mim. Ele olhava pra mesa, ele olhava pro lado, olhava pra tudo quanto é lado, mas ele não me encarava, não olhava dentro dos meus olhos. Ele olhava pra baixo, para os papéis, passando os papéis, e aquilo... Eu via que ele não tava olhando nada, e ele virou pra mim e falou o seguinte: “Não tem nenhum nome da senhora, da dona Joana e da dona Rosiléia”. E eu falei: “Como, se no mês passado o doutor Nílson diz pra mim que tinha e que foi o que manteve o Cafunga preso?”. Ele falou pra mim o seguinte: “Olha, o exame que eu tenho aqui é do Carlos, o de dona Valdeci e da fulana e da ciclana” . Aí eu falei: “Mas, doutor, no mês passado o meu exame estava com ele [o delegado titular] e essas [mães] daí nem tinham feito o exame. Acho que foi quase vinte dias depois da gente, um mês depois da gente [que elas vieram a fazer]”. “Não, o resultado de vocês não chegou pra mim, não”. Falei: “Como é que o doutor Fabrício disse que já tinha chegado?”. “Não, não! Deve ter tido um engano, vocês vão ligar para o departamento tal e procura saber direitinho”. Aí começou a minha luta tudo de novo. E aí o doutor Arcanjo, dizendo pra mim: “Não é assim não, senhora Maria. Esses resultados demoram”. “Como que demora se eles têm os resultados de outras pessoas lá, com ele, e eu tinha feito primeiro”. “Pode deixar que nós temos o sangue da senhora aqui e nós vamos resolver isso”. Aí nós fomos lá. Depois eu liguei e nada. E eu fui até lá, aí cheguei até lá e conversei com eles. Veio uma equipe de umas seis, sete, sei lá, oito pessoas. Sentaram numa mesa ali pra me explicar. “Ah! Porque o exame não ficou pronto. Porque as amostras de sangue que pegamos era muito pouca. Tinha nove tipos de sangues diferentes naquele lugar. Foi confirmado a veracidade do exame de quatro pessoas. Mas o do Mário, o do Felisberto e do Alexandre não tem”. Aí aquilo me desesperou, me deixou em pânico. Aí ele falou que ia fazer de novo. Sabe? Que ele ia fazer de novo o exame, novamente com a mostra do sangue que tinha lá. E diz ele que fez o exame de novo. Nunca me ligaram pra me falar o resultado do exame e eu fiquei perturbando, perturbando, perturbando. Até hoje ninguém nunca recebeu resultado desse exame e aí vem dizer que o nosso exame deu negativo.

Apesar de Maria nunca ter visto o resultado do seu exame e o das duas outras mães, as

autoridades policiais disseram a ela que os resultados haviam sido negativos. No entanto, para

ela isso não importava. O resultado de outros quatro exames havia dado positivo, o que

bastava. No seu entendimento, havia evidências suficientes para que a investigação

progredisse. Além de quatro resultados de DNA positivos, Maria pergunta: “Cadê o dedo que

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encontraram na casa?”. Ela mesma se encarrega de responder que ninguém nunca viu.

Até pedaços de carne humana e ossadas foram encontrados. A respeito das ossadas, os

policiais disseram que seriam de cavalo, mas mesmo assim foram levadas para a delegacia

junto com alguns restos de roupas para a perícia. As mães foram até lá fazer o reconhecimento

do material encontrado e Maria foi a última a chegar. Ela relata que era vista pelos policiais

como a mãe “cricri”, que “gostava de criar problemas”. Quando chegou à delegacia um

policial tocava no outro com o objetivo de informar que era ela a mãe “cricri”. Na delegacia

os policiais estavam mostrando dois sacos pretos às mães: um de roupas parcialmente

queimadas e o outro com a ossada. Para Maria mostraram apenas o saco de roupas. Não a

deixaram ver o saco com as ossadas, mas as mães que viram lhe informaram que era uma

ossada humana e que tinha uma perfuração na cabeça. No exame realizado pela polícia o

resultado informava que a ossada seria de um animal.

4.2.8. O pai, a favela e o baile funk: a presença do perigo e do mal

Na narrativa de Maria é possível identificar um conjunto de pessoas, eventos, lugares e

interações sociais que ela elege como perigosos, arriscados e condenáveis moralmente.

Pessoas, eventos, lugares e interações sociais que simbolicamente são associados ao mal e,

por isso, seria preciso evitá-los. Situações que Maria tentava evitar ou recomendava ao filho

que evitasse, como forma de gestão do risco e como medida de segurança.

Gerir o risco significa evitar todo um repertório de relações e práticas sociais

identificadas com o mal, ao impuro e ao perigo. Ao mal está associada a ideia de poluição, de

algo que contagia e contamina (Douglas, 1976). Por isso é preciso afastar-se, manter

distância. De acordo com Maria, o pai de seu filho, a favela e o baile funk são figuras, lugares,

e situações sociais associadas ao perigo e ao risco, e, por isso, devem ser evitados.

Maria não se conforma com a associação que é feita dela e do filho ao ex-marido. O

envolvimento do pai de Alexandre com o crime acabou por produzir uma “contaminação

moral” aos familiares e às pessoas mais próximas. Nas versões que circularam sobre o caso,

um dos motivos mencionados para justificar o desaparecimento era o fato de Alexandre ser

próximo de uma pessoa que já havia sido “do tráfico”.

Quando eu engravidei do Alexandre o pai dele foi morto, lá em Copacabana. Então eu levei a gravidez toda só. Quando o Alexandre nasceu, três meses depois, eu

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conheci esse rapaz. Aí eu fui morar com esse rapaz quando meu filho tinha três meses de nascido, né!? Eu vivi com ele durante quase oito anos. Então, eu morava em outro lugar, e quando eu vim morar em Samambaia [foi] durante só um mês. E quando eu fiquei com esse rapaz o Alexandre tinha três meses. Todo mundo pensa que ele era o pai do Alexandre, porque o Alexandre [era] bebezinho e ele ficava andando com o Alexandre no colo pra lá e pra cá. Então todo mundo achava que ele era o pai do Alexandre, né!? E eu não tirei isso dele porque o Alexandre amava ele como pai mesmo, independente de qualquer coisa. Porque quando eu fui viver com ele, ele estudava, ele trabalhava e depois ele entrou pra vida do crime. E quando ele entrou pra vida do crime eu fiquei morando com ele por um tempo, mas depois eu me separei quando ele resolveu entrar pra dentro da favela. Eu me separei porque eu sempre tive medo desse negócio todo de arma, favela. Então eu falei pra ele: “Já que você vai viver lá, eu vou viver por aqui”.

Ela não consegue entender como isso poderia justificar o desaparecimento do filho,

por dois motivos: ao mesmo tempo em que descreve uma relação de proximidade entre

Alexandre e o pai envolvido com a criminalidade, Maria tenta demarcar uma distância dela e

do filho em relação ao pai. Diz que esse rapaz que ela conheceu não era o pai biológico de

Alexandre. Quando ela o conheceu, ele não era do crime e hoje também já não é mais.

Então a distância foi nos afastando. Ele arrumou outras mulheres lá dentro e a gente acabou se separando, mas o Alexandre sempre teve contato com ele. Mas ele ficou muitos anos preso, ele ficou quatro anos preso. Na época, quando o Alexandre desapareceu, só tinha mais ou menos dois anos que ele tava na rua. Então o Alexandre ficou muito apegado, porque quando ele foi preso o Alexandre era pequeno, e quando ele voltou o Alexandre era um rapaz. Ele devia ter o quê? Nove, dez anos, quando ele foi preso. Só que quando ele voltou o Alexandre tava com dezesseis, já era quase um quase homem, né? Ele sempre tava dando as coisas pra ele, dava dinheiro, dava as coisas. E eu achava que ele não deveria dar aquela quantidade toda de dinheiro. Eu só [o] vi naquela época, quando o Alexandre sumiu, desapareceu. Eu só vim encontrar ele agora, há mais ou menos um mês. Um mês que eu vi ele, né!? E, graças a Deus, ele largou tudo, não quer saber mais de nada, sabe!? Ele jogou tudo pro alto.

A preocupação e o amor materno levam Maria a passar por situações e lugares

compreendidos por ela como poluídos moralmente, como a favela e o baile funk. Tudo em

nome da segurança do filho. Há toda uma noção de cuidado em sua fala. Cuidar significa,

nesse caso, tentar prever todas as possíveis situações de risco e perigo e evitá-las. O baile funk

é um desses lugares, ele está associado, nas representações sociais hegemônicas, às facções,

ao uso e tráfico de drogas, à promiscuidade sexual, ao perigo de chegar a polícia ou uma

facção rival “invadir”. Por tudo isso, Maria chega a subir o morro para buscar o filho nos

bailes.

A favela e o baile funk Tinha baile e o Alexandre tava lá. E eu brigava muito. Eu cansei, cansei de subir no moto táxi e pedir pra me levar dentro da comunidade, na hora do baile, pra mim

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buscar o Alexandre. As pessoas me viam e diziam: “Olha! Mas ela não é da igreja? Olha a obreira da igreja! O que ela tá fazendo aqui, no baile funk, de madrugada?”. E eu saía com ele, puxando pelo braço. [E ele] não sei o que: “Para mãe, vou dormir na casa do meu pai”. E eu falava pra ele: “Não! Volta pra casa agora”. Porque eu tinha aquele medo de acontecer alguma coisa com ele lá dentro, mas o Alexandre vivia lá dentro, todo mundo conhecia o Alexandre. Porque as pessoas da comunidade, ali fora, só tem uma escola, e ele não podia estudar no Brizolão, porque era divisa de Samambaia com Cutelo.

Como o filho tinha o costume de frequentar a favela, o trabalho de limpeza moral

(Leite, 2008) tornava-se mais difícil. Frequentar o baile era um fato negativo que pesava

contra a imagem do filho. Mas para mostrar que o filho não era bandido, Maria conta toda a

rotina diária e a ocupação do tempo de Alexandre como prova moral de que ele não tinha

tempo para se envolver em atividades criminosas e, portanto, não era bandido. Ocupar o

tempo do filho de todas as maneiras possíveis para evitar contato com o mundo da rua e do

crime, esta é mais uma forma de racionalizar e evitar a exposição do filho ao perigo do crime.

“Meu filho não é bandido”: a limpeza moral Então, o meu filho não saía de lá de dentro. Meu filho vivia lá dentro. Então o caso do meu filho eu sei o porquê que foi. Não vou dizer pra você assim: “Ah! Meu filho foi pego por engano”. Meu filho foi pego, mas ele não era bandido. Ele não era traficante. Eu sei que meu filho não era bandido. Eu sei! Mas eu não posso dizer também pra você assim, oh: “Ah! Maria”, que nem o delegado perguntou pra mim uma vez, “o teu filho fumava maconha?”. Eu falei pra ele: “Não sei!”. “O teu filho era bandido?”. Eu falei: “Não! Porque eu acho que um bandido não pode sair sete horas da manhã pra treinar futebol até meio dia e meia pra chegar em casa e uma hora ir pro colégio e chegar seis hora da noite”. Então pra ele ser bandido era de noite, né! [...] A vida do Alexandre era jogar bola. Ele chegava da escola e era bola de novo. Só que a minha revolta [era] que ele não jogava bola [nas] quadras lá fora. Ele não jogava bola do lado de fora, ele jogava bola dentro da favela. Entendeu? Ele vivia dentro da favela. Ele jogava bola dentro da favela. Se eu queria ir atrás dele, era só ir dentro da favela que eu achava.

Circular pela favela, à noite, aumenta as chances de se levar uma “dura” da polícia.

Pouco antes de ocorrer o desaparecimento de Alexandre, ele havia “passado pelas mãos da

polícia”. Chegou a ser agredido fisicamente, mas sua mãe só ficou sabendo disso tempos

depois, pela boca de uma vizinha.

A “dura” e o “esculacho” da polícia Quinze dias antes de acontecer isso [o desaparecimento], uma moça que mora em um prédio lá em Samambaia, [...] lá da igreja, ela falou pra mim: “Maria! Eu tava lá na janela e eu vi o seu filho passar, uma e pouco da manhã. Os policiais pegaram ele, deram o fuzil no peito dele três vezes. Bateram nele e perguntaram pra ele: “Cadê a sua mãe?” Ele falou: “Minha mãe tá em casa dormindo”. “Onde é que você tava?”. “Não, tava lá na favela na casa da minha namorada”. “Aí os policiais bateram nele, deram um monte de tapa na cara dele, e mandaram ele ir embora pra casa. Pode ir lá ver se ele não está com as costas roxas!”. Quando ele dormiu, eu levantei a blusa dele e a costa dele tava toda roxa. E ele não me falou que a polícia

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cercou e bateu nele.

Outra situação que deixa Maria desesperada era o fato de Alexandre compor letras de

funk. Dentre as representações sociais hegemônicas sobre o funk há aquelas que o associam a

uma forma de expressão e linguagem do tráfico. Os proibidões48 seriam uma forma de mandar

recado e ridicularizar a facção rival, e, ao mesmo tempo, celebrar o poder e a força da facção

à qual se está associado. Nas letras de funk de Alexandre ele cantava que iria arrancar a

cabeça de Cafunga.

O baile funk, o rap da cabeça arrancada e a vingança Ele fazia [funk], ele escrevia. Mas só aquelas coisas mesmas que você não pode ouvir, proibida, aquelas coisas de favela mesmo, que dava vontade de bater nele. Eu rasgava tudo quando ouvia. E aí ele cantava aquelas músicas e ele fez uma musica pro Cafunga que se o Cafunga botasse a cabeça no beco ele ia arrancar a cabeça, ele ia arrancar ia fazer ia acontecer. E o pai ficava satisfeito com aquilo, porque diz que quando tinha baile na favela meu ex-marido pegava o cordão de ouro jogava no pescoço do Alexandre e o Alexandre subia no palco, pegava o microfone e cantava. E ele ficava todo bobo: “Meu filho! Meu filho! Meu filho!”. Então eu acho que isso colaborou para o sequestro do meu filho. E naquele dia, quando eles pegaram o meu filho, porque entregou na mão do Cafunga e o Cafunga falou: “Eu vou arrancar tua língua fora, nunca mais vai cantar”. E aí nessa hora houve um tiroteio. Os caras do comando vermelho tentaram invadir e meu filho conseguiu fugir.

O tiroteio é outra forma de se medir o risco e o perigo na favela. No relato acima, o

tiroteio acabou por representar a salvação de Alexandre. Caso contrário, poderia ter sido

levado pela “moçada do movimento” e, muito provavelmente, seria morto.

Quando realizei a entrevista com Maria, ela contou que havia recebido uma notícia,

que não sabe se é verdadeira ou não, de que seu filho estaria vivo, teria virado traficante e

estaria morando numa favela na Zona Norte do Rio de Janeiro. Segundo Maria, a cada nova

chacina que acontece na cidade do Rio de Janeiro, ela se dirige ao Instituto Médico Legal

(IML) para verificar se seu filho encontra-se na lista dos mortos.

4.3. Práticas de luto reivindicativas de justiça

A partir do desaparecimento forçado e da ausência dos corpos, estabelece-se na

trajetória de Maria, uma relação entre luto e justiça. Viver o luto corresponde a reivindicar 48 Proibidões (de proibidão): é um estilo de funk carioca surgido durante a década de 1990 nas favelas do Rio de Janeiro. Comercializado de forma clandestina os proibidões tratam da realidade das comunidades onde ocorrem o tráfico de drogas. É considerado por muitos como uma forma de apologia ao tráfico de drogas e há também uma forte conotação sexual nas letras.

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justiça. Trata-se de um tipo de luto cuja perda se originou de um ato de injustiça e violência

física. Nesse contexto, o amor materno é o que move Maria em busca de justiça. O amor ao

filho desaparecido torna a luta por justiça uma forma de vivenciar o luto. Em trabalho anterior

(Araújo, 2008), sugeri que entre os coletivos de familiares de vítima de violência, surge uma

gramática política, cujo idioma de ação (Steil, 2002) pode ser pensado como práticas de luto

reivindicativas de justiça. Essa gramática política busca tematizar no espaço público, através

de um esforço tremendo de publicização das denúncias, alguns temas como, por exemplo, a

violência policial nas favelas e o direito à segurança e à justiça dos seus habitantes. Tudo isso

em um contexto no qual o tráfico de drogas e a violência policial aparecem como o cerne do

“problema”.

O desaparecimento do filho provoca uma série de alterações na vida de Maria e, entre

a vizinhança, gera uma série de fofocas, especulações, hipóteses e interpretações, com uma

forte dimensão moral, a respeito da pessoa desaparecida. Em maior ou menor grau, também

gera algum tipo de solidariedade entre os mais próximos. Mas, principalmente, implica em

um cuidadoso processo de gestão do risco por parte dos sobreviventes, familiares, pessoas

mais próximas das vítimas e testemunhas.

Por que “fulano” desapareceu? Será que “devia” alguma coisa e por isso teve que se

mudar? Era “metido com coisa errada”? Por onde e com quem andava? Usava drogas ou era

ligado ao tráfico? Tinha o hábito de frequentar baile funk? Por que frequentava a favela?

Havia algum motivo para justificar uma possível morte? Enfim, o que se coloca em questão é

o estatuto moral da vítima. Esse conjunto de questões que o desaparecimento provoca

expressa os fundamentos de uma moralidade que coloca em suspeita e estigmatiza a pessoa

desaparecida, gerando constrangimentos, ofensas e humilhações, com os quais os familiares

passam a lidar. Na verdade, o que se evoca em termos de moralidade no contexto de

desaparecimento de um morador de favela são exatamente as representações sociais sobre a

favela. Mais ainda, o que se expressa são as representações sociais que associam a favela ao

mal, ao crime, ao imoral.

A favela aparece no relato de Maria como um lugar em que os moradores, por viverem

em contiguidade com o “tráfico de drogas”, estão rotineiramente sujeitos a vivenciar

experiências traumáticas como a vivida por ela, associadas principalmente, mas não só, ao

crime violento. Desse modo, os segmentos da população que moram nas favelas do Rio de

Janeiro estão mais expostos, em relação a moradores de outras áreas da cidade, ao risco e ao

perigo, no que diz respeito à integridade física e ao direito à vida. Estão também à margem do

acesso à justiça.

Paula Lacerda
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As rotinas são, imprevisivelmente, alteradas por conta do evento crítico, que

desestabiliza e rompe a vida cotidiana. Situações as mais corriqueiras, de repente,

transformam-se em risco e ameaça à integridade física. Portanto, há um grande esforço na

gestão do risco cotidiano.

No relato de Maria, a favela aparece como um lugar-trauma. Trauma, nesse caso,

associado ao desaparecimento forçado do filho e às histórias de terror e sofrimento que o

envolvem . Trauma que também está vinculado ao conflito armado concentrado em torno da

favela, seja em razão da ação letal da polícia, seja em razão do poder de vida e de morte

através do qual os traficantes de droga submetem os moradores. A favela é tida como o locus

do mal, do impuro, da sujeira moral, do perigo, do ilegal e do ilícito, da desordem que ameaça

a cidade, como se ela mesma não fizesse parte da cidade, ocupando o lugar de “o outro” da

cidade. Diante de tamanho preconceito, lutar por justiça torna-se quase impossível, implica

um tremendo esforço em lidar com o estigma e administrar a apresentação de si no espaço

público. Por outro lado, não poderia vir de outro lugar, senão do universo simbólico da morte

e da maternidade, o idioma de ação acionado para reivindicar justiça.

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PARTE III

CRÍTICAS, DENÚNCIAS E PROTESTOS

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5. GRAMÁTICAS MORAIS E POLÍTICAS DOS FAMILIARES DE VÍTIMA DE

VIOLÊNCIA

Neste capítulo, analiso as tensões entre a linguagem da violência urbana, a linguagem

dos direitos humanos e a linguagem do sofrimento, a partir da experiência de familiares de

vítima de violência. Dialogando com o modelo teórico dos regimes de ação da sociologia

pragmatista de Boltanski e Thévenot (1991), pode-se dizer que a linguagem da violência

urbana é incompatível e conflitante com a linguagem dos direitos, enquanto a linguagem do

sofrimento apresenta-se aos familiares como uma linguagem alternativa para reivindicar

direitos. É principalmente pela via do sofrimento que os familiares falam de violência e

direito e reivindicam a condição de vítima que busca um reconhecimento público das mortes

dos familiares. É nessa trama que se situa o agir e a produção de práticas e significados

políticos/existenciais, percepções de justiça e direitos, interpretações e sentidos para as

emoções e os sentimentos dos familiares de vítima de violência. É neste contexto que são

construídas sociologicamente as categorias vítima e familiar de vítima de violência.

A descrição das experiências dos familiares de vítima permite analisar a sociabilidade

produzida diante dos eventos críticos e da memória dos traumas urbanos relacionados à

violência urbana e ao crime violento. Também permite pensar – para usar uma expressão cara

a Walter Benjamin (1989) – a fisiognomia da cidade, a partir das formas de viver e morrer em

cada território da cidade, e pensar como os lugares são vividos e experimentados por seus

citadinos, quase-cidadãos e pelos não-cidadãos. Certos lugares tornam-se lugares-trauma e a

experiência social é marcada pelo choque49. A partir das experiências dos familiares de

violência e sofrimento é possível acessar certos mapas da cidade, certas leituras do espaço 49 Ao me deparar com os relatos e experiências dos familiares, uma das primeiras ideias e imagens que me apareceram foi a de choque. Lembrei-me, então, de Walter Benjamin, para quem a experiência urbana nas grandes cidades é marcada pelo choque. Dentre as várias imagens utilizadas por Benjamin para escrever sobre a cidade, está a imagem da cidade como um labirinto ou um caleidoscópio, onde conforme se caminha e se descortina os espaços, experimenta-se o choque. O choque aparece como princípio da experiência urbana. Assim como para o poeta Baudelaire, ponto de partida da análise de Benjamin, o choque aparece como princípio poético: o tumulto das ruas, o tráfego, o impacto sensorial das tecnologias e equipamentos urbanos, a multidão, a circulação na cidade grande, o efeito entorpecente do haxixe e a experiência urbana que possibilita, eis algumas imagens do choque em Benjamin e Baudelaire. Os temas de um confundem-se com os temas do outro, de tão bem tramadas e costuradas as relações entre um autor e outro. “O mover-se através do tráfego implicava uma série de choques e colisões para cada indivíduo. Nos cruzamentos perigosos, inervações fazem-no estremecer em rápidas sequências, como descargas de uma bateria. Baudelaire fala do homem que mergulha na multidão como em um tanque de energia elétrica” (Benjamin, 1989: 124-125). Esta referência benjaminiana ao choque deve-se ao fato de ela ser pertinente para se pensar a experiência dos familiares de vítima de violência nos termos de uma experiência do choque. A experiência da guerra é lembrada por Benjamin como a experiência por excelência do choque. Em relação ao Rio de Janeiro, a ocorrência de episódios violentos (tiroteios, invasões, chacinas, mortes, desaparecimentos etc.) tem sido a própria expressão do choque e do trauma.

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urbano e das relações de força, através das quais o estigma e a desconfiança marcam as

interações e a sociabilidade. E como, ainda assim, resistir e levar a vida e a luta adiante.

5.1. Mais humanos e menos humanos: agir diante de modalidades de desumanização

As histórias e os relatos dos familiares sobre o terror, a tortura e as formas das mortes

permitem identificar o aparecimento de certa ideia de desumanização/humanização50, que

pode ser entendida como uma metafísica, no sentido de Boltanski e Thévenot, a qual os

familiares recorrem para justificar seu senso de justiça ou injustiça. A metafísica da

desumanização/humanização possibilita aos atores questionar a aplicabilidade universal da

categoria “humano”, sugerindo uma relativização da ideia de humanidade e mostrando como

tal ideia é construída sociologicamente, conforme os contextos e as situações. Jussara Freire

(2010) formulou um esboço de modelo para análise da sociabilidade urbana na Região

Metropolitana do Rio de Janeiro, no qual formula a questão da desumanização nos seguintes

termos:

O que chamarei de regime de desumanização não equivale a um regime de violência, por não se tratar de um regime no qual se enfrentam meras forças (que podem explicar estados de guerra ou de exceção, mas dificilmente a sociabilidade do Rio de Janeiro, ainda que esta seja afetada por situações de recurso à força) sem exigência de justificação e com estados fixos dos seres. O regime de desumanização, em vez disso, se caracteriza por uma metafísica (no mesmo sentido daquele proposto pelos autores) orientadora de uma gramática de justificação pública que busca extrair certos seres de uma humanidade comum. No regime de desumanização, o princípio de humanidade comum é também – como no regime de justificação pública analisado pelos autores – a premissa das justificações públicas na cidade do Rio de Janeiro. Entretanto, essa gramática se articula em torno não da dignidade dos seres, e sim do pertencimento a uma humanidade comum. (Freire, 2010: 120)

Essa desumanização pode ser pensada como uma modalidade específica de relação

social, como um estágio de mediação entre um regime de força e um regime de justificação,

um estado liminar entre um regime de força e um regime de justificação.

50 Alguns trabalhos antropológicos, como os de Das (1995, 2008, 2008a) e Uribe (2008), têm explorado ideias de desumanização e humanização diante de diferentes contextos nacionais de situações de terror relacionados à “linguagem dos conflitos armados”. Estes autores têm destacado o papel que tem tido o terror como elemento pedagógico e dissuasivo nas “culturas do terror” (Taussig, 1993). Ao analisar as experiências dos familiares das vítimas do gatillo fácil, como passaram a ser referidas as mortes produzidas pela violência do Estado argentino, especificamente pelas polícias, Pita (2010) também faz referência ao “trabalho simbólico de restituição da humanidade” que os familiares levam a cabo para reconstruir a dignidade dos filhos assassinados como a un perro. Tanto Pita como Uribe, a partir de seus materiais etnográficos, referem-se a situações de animalização das vítimas. Uribe argumenta que a animalização pode ser lida como uma metáfora da dominação.

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Como viver, conviver e agir diante de contextos envolvendo eventos violentos

disruptivos da vida cotidiana? Agir diante de modalidades de desumanização implica situar-se

em um jogo de disputas, denúncias, críticas e acusações em que as posições e os lugares de

cada um, em que pesem hierarquias sociais, são intercambiáveis e podem mudar conforme o

desenrolar das situações de denúncia (Boltanski, 2001). A desumanização/humanização, em

um de seus aspectos, pode ser entendida como um continuum de posições intercambiáveis

dentro de um sistema actancial em que os actantes ora podem acionar recursos e dispositivos

de humanização, ora de desumanização. Ora ocupando o lugar de vítimas da desumanização,

ora sendo os algozes da desumanização. Nesse ponto, uma ressalva deve ser feita, embora as

posições possam ser intercambiáveis, algo que é próprio do regime de desumanização é certo

endurecimento de posições e das hierarquias.

Qual humanidade (ou quais humanidades) comporta os direitos humanos? Direitos

humanos podem ser pensados como um dispositivo de proteção que busca incluir alguém ou

algum grupo social em uma humanidade comum (Boltanski e Thévenot, 1991). Decorre então

que, diante do dispositivo segregatório que é a desumanização, entendida como a redução da

humanidade do outro, as pessoas se qualificam e se hierarquizam em termos de humanidade.

Essa hierarquização de humanidades é que organiza o debate sobre o acesso aos direitos de

cidadania e justiça no julgamento moral cotidiano e o merecimento ou não da violência. Mais

direitos para os mais humanos e menos direitos para os menos humanos.

Recuperando a ideia de Lautier (1997), de uma cidadania de geometria variável,

expressão usada para referir-se às desigualdades no acesso aos direitos, seria possível pensar,

por analogia, em uma espécie de geometria variável das humanidades. Na linguagem dos

direitos, a humanidade é um pressuposto universal contextualizado por algum princípio

superior comum. Na linguagem da violência urbana a humanidade é uma prova de acessos

diferenciados aos direitos, havendo relação direta entre a humanidade de cada um e o grau de

acesso aos direitos de cidadania e justiça, ou seja, a cada um conforme a sua humanidade. Daí

a disputa para ver quem se estabelece como o juiz definidor da humanidade de cada um em

cada situação. Por outro lado, a ideia de “metáfora da guerra” (Leite, 2001) leva a pensar na

extração total da humanidade.

Destituir e restituir a humanidade de certos grupos sociais ou pessoas pertencentes a

grupos sociais específicos, desde o processo de colonização do Brasil, muitas vezes funciona

como dispositivo de ação diante de situações de opressão em que a eliminação moral e física

da pessoa era iminente. Decorre então que, diante desse quadro de desumanização do outro e,

inversamente, de luta para se humanizar, as pessoas se qualificam e se hierarquizam em

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termos de humanidade. Essa hierarquização de humanidades organiza o debate sobre o acesso

aos direitos de cidadania e justiça no julgamento moral cotidiano. Mais direitos para os mais

humanos e menos direitos para os menos humanos. Deste modo, pode-se pensar em uma

espécie de escala de humanidade, havendo uma relação direta entre a humanidade de cada um

e o grau de acesso aos direitos de cidadania e justiça, ou seja, a cada um conforme a sua

humanidade. Daí a disputa para ver quem se estabelece como juiz definidor da humanidade de

cada um.

5.1.1. A metáfora da guerra e as tensões na definição das humanidades

Para se levar adiante, de maneira razoável, as ideias de desumanização/humanização, é

preciso delimitar o sentido exato desta noção para podermos nos referir a um contexto tão

específico e particular como a violência urbana no Rio de Janeiro. A

desumanização/humanização, como argumenta Freire, a partir de sua leitura de Boltanski,

constitui-se em uma metafísica que, originalmente, remete-se à linguagem da guerra, e, na

medida em que a violência urbana tomou de empréstimo a linguagem da guerra, tal metafísica

e os dispositivos a ela associados passaram a ser adotados pelos atores sociais como forma de

nomear a violência, seus perpetradores e suas vítimas. Correlatos dessa linguagem da guerra

são as noções de vítima absoluta, crime contra a humanidade, testemunha e sobrevivente, que

também tiveram suas reapropriações para usos políticos em outros contextos históricos de

conflitos armados.

Ao analisar a circulação de metáforas da guerra, Veena Das sustenta que o conceito de

“circunstâncias excepcionais” para a aplicação do direito não é novo, mas a linguagem do

conflito armado ganhou força e se firmou a partir do 11 de setembro de 2011. A autora

argumenta que uma das maiores dificuldades nas análises de questões de segurança é a

“destruição contínua de materiais relevantes”. Segundo Das, ainda assim, os conceitos de

“conflito armado” que se formularam pela primeira vez nos discursos do presidente George

Bush, em referência ao 11 de setembro, “já estavam disponíveis nos diversos exercícios

teóricos simulados que realizaram os institutos de investigação especializados para

conceitualizar as ameaças aos Estados Unidos” (Das, 2008: 507). Compreender essas

conexões lineares é fácil, difícil é compreender a circulação da metáfora da guerra:

O mais difícil é ver como a linguagem do “conflito armado”, usado em relação a causas denominadas como “boas”, como a guerra contra a enfermidade, a guerra contra a pobreza, a guerra contra as drogas etc., tem o potencial de oferecer uma

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202

solução a qualquer ameaça recorrendo à linguagem da erradicação. Movendo-se de uma configuração a outra entre diferentes classes de agentes humanos e agentes não humanos, essa linguagem tem o efeito de dissolver em última instância as distinções entre o que significa ter que tratar com outro ser humano e o que significa tratar com um agente infeccioso, como uma doença viral. (Das, 2008a: 509)

Para Das, a linguagem da guerra tem se “normalizado”, como forma de “interromper

qualquer discussão acerca dos direitos dos cidadãos uma vez que se descreve uma situação

como constitutiva de uma emergência”. Os estados de exceção se transformam em algo

cotidiano, mas, diferentemente da ideia de Agamben (1998), “da conexão entre soberania e

direito na hora de declarar um estado de exceção, aqui a ideia mesma de soberania tem se

tornado plural e com frequência se dissolve”, argumenta Veena Das. Deste modo, outros

agentes, que não o Estado, podem decretar um estado de exceção. Pode ser, por exemplo, a

Organização Mundial de Saúde (OMS) a declarar um estado de exceção, para manejar uma

epidemia. Ou uma empresa global, cujos interesses por controlar as condições laborais ou o

crime em um determinado lugar possam dar origem a certas áreas declaradas como fora da

soberania de um Estado. A circulação da metáfora da guerra é a possibilidade de “trasladar

ideias e instituições a outros lugares” que terminam por configurar a segurança, a saúde e o

desenvolvimento em formas que incidem na vida cotidiana e fazem erodir a normalidade da

linguagem (Das, 2008a: 515). A metáfora da guerra, assim, aparece como o grande dispositivo

da desumanização: ela produz uma situação de excepcionalidade e o saber sobre o outro, que

legitima e justifica o exercício de um poder sobre ele.

Em relação ao Rio de Janeiro, ao longo da década de 1990, a cidade assistiu apavorada

e amedrontada à emergência de uma nova representação que fez ruir a imagem de “cidade

maravilhosa”. No lugar de uma “cidade maravilhosa” emergia agora uma “cidade partida”

(Ventura, 1994), marcada pela violência. Novas modalidades de violência associadas ao

tráfico de drogas, aos conflitos entre policiais e bandos criminosos e destes entre si,

irradiaram no imaginário coletivo a imagem de uma cidade em guerra: uma guerra da cidade

contra seus morros e favelas.

Segundo a análise de Leite (2001), a “metáfora da guerra” passou a ser utilizada como

forma de interpretar e compreender a violência urbana carioca. Liderada por parte do aparato

policial civil e militar e contando com adesão de políticos, setores da mídia e parcela dos

moradores da cidade (oriunda principalmente das camadas abastadas), a “metáfora da guerra”

tornou-se um “pacote interpretativo” para a violência da cidade. Como argumenta Leite, essa

perspectiva interpretativa considerava que “a situação de excepcional da cidade – de guerra –

não admitia contemporizações com políticas de direitos humanos e com reivindicações pelo

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203

respeito aos direitos civis dos moradores nos territórios conflagrados” (Leite, 2001: 79).

A percepção de ineficiência das políticas de segurança pública e a vivência de

situações características de contextos de guerra (alto índice de mortos, tortura,

desaparecimentos, tiroteios, invasões, cerco etc.) propiciaram o desenvolvimento de uma

“cultura de medo”. A “metáfora da guerra” foi gestada a partir de uma série de episódios

violentos e reafirmada, ao longo da década de 1990 toda vez em que se ampliou a percepção

do agravamento da violência51. Diante desse contexto, a violência policial em territórios e

sobre os grupos estigmatizados ganhou grande aceitação e inaugurou-se a “era das chacinas”,

envolvendo a participação de policiais, sendo as três mais marcantes desse período: a chacina

de Acari, em 1990, com o sequestro e desaparecimento dos corpos (jamais encontrados) de

onze jovens de Acari; a chacina da Candelária, em julho de 1993, com o assassinato de sete

menores que dormiam às portas da igreja da Candelária; e a chacina de Vigário Geral, em

agosto de 1993, com vinte e um mortos.

É neste contexto que categorias como vítima e familiar de vítima emergem no cenário

público e político como uma forma de interpretar a violência através de uma outra chave de

leitura, mas que também opera, em certa medida, com a “metáfora da guerra”, já que fala em

“pacificação e integração da cidade”. Porém, a via de pacificação proposta por esta

interpretação alternativa à “metáfora da guerra”, seria através da combinação de “valores

associados à noção de cidadania e a redes de solidariedade constituídas com o objetivo de

promovê-las” (Leite, 2001: 76).

Considero que é a partir deste contexto de disputa entre os dois “pacotes

interpretativos” apresentados por Leite, de um lado a “metáfora da guerra”, de outro, a

“pacificação e integração da cidade”, que faz sentido falar em

desumanização/humanização52. A ideia de desumanização/humanização, para analisar a

violência urbana na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, passa a fazer sentido com a

circulação da “metáfora da guerra”. 51 “Essa versão sobre a violência sustentava que o cenário de paraíso chocara em suas entranhas um 'ovo de serpente' (Ventura, 1994), que se transmutava em crimes, tráfico de drogas e meninos de rua, delinquência e desordens urbanas. Evocava como seu espaço privilegiado e eixo de irradiação para a cidade, as favelas espalhadas nos morros de suas áreas mais valorizadas e nos bairros pobres em seus subúrbios, espraiando-se ainda por sua periferia. Seus personagens seriam os moradores desses locais, em especial seu segmento mais jovem, além de bandidos e traficantes que, entrincheirados nas favelas, distribuíam a droga na cidade. Difundia a ideia de uma sociedade em crise, que não mais dispunha de mecanismos institucionais eficazes para administrar os conflitos sociais e, por isso, perdera o controle de suas 'classes perigosas'. As demandas por ordem encontravam justificativa em Hobbes, aludindo à quebra do pacto civil/civilizatório e à irrupção do estado de guerra: os 'bárbaros' invadiam a cidade” (Leite, 2001: 81). 52 O fato de tomar as duas perspectivas para análise, a da “metáfora da guerra” e a da “pacificação da cidade”, não significa que as interpretações para o fenômeno se resumem a estas duas. Como chama atenção a própria autora, os arranjos discursivos e as interpretações são reelaborados e novos sentidos são criados.

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204

Ainda sobre este aspecto, gostaria de chamar atenção para a forma como certas ideias,

interpretações, categorias, visões de mundo, dispositivos, circulam de uma situação para outra

conforme as apropriações políticas realizadas pelos atores no curso de suas ações. Se, por um

lado, o dispositivo de desumanização/humanização como repertório da linguagem da guerra

tem relação histórica com o surgimento das categorias vítima absoluta e crime contra a

humanidade, por outro, no contexto da linguagem da violência urbana no Rio de Janeiro,

desumanização/humanização tem relação direta com categorias como vítima, bandido53 e

polícia. Essas três categorias são significativas na análise das gramáticas da violência urbana

e também na gramática dos direitos humanos, na medida em que violência coloca à prova a

humanidade de cada um.

O intuito dessa discussão sobre desumanização não é elaborar uma teoria geral dos

regimes de desumanização, mas sim analisar como essa metafísica é acionada pelos atores

sociais concretos no curso de suas ações igualmente concretas, sobretudo em situações em

que está em jogo o poder de matar. O objetivo aqui é analisar como os atores sociais e

políticos, ao adotarem a linguagem da guerra e a metafísica da desumanização, se

hierarquizam em termos de humanidade, agindo entre a desumanização e a humanização.

Nesta perspectiva, desumanizar corresponde a colocar a humanidade de alguém para baixo,

equivale a rebaixar a humanidade. Por sua vez, humanizar significa reintegrar a uma

humanidade comum. A linguagem da guerra suspende as equivalências, afinal, em um regime

de força não há equivalência, há força.

A metafísica da desumanização/humanização é acionada pelos familiares de vítima de

violência para realizar julgamentos morais e políticos sobre a grandeza ou a pequenez da

humanidade de cada um sobre o merecimento ou não dos infortúnios e sofrimentos a que cada

um é submetido e sobre o direito ou não de ter direitos e em que grau. Diante de situações

específicas, os familiares de vítima mobilizam repertórios de desumanização/humanização,

hierarquizando humanidades, para formular suas críticas e justificar suas reivindicações, suas

denúncias e seus protestos. O trabalho dos familiares é, sobretudo, um trabalho simbólico e

político de restituição da humanidade de seus mortos (Pita, 2010) diante da desumanização da

qual denunciam ser vítimas.

O que as experiências de sofrimento e os relatos de violência dos familiares parecem

demonstrar é que a violência que se abate sobre as vítimas é tão exagerada, tão radical, que

contém certa dimensão de extremo, de algo que passa dos limites. As queixas ora tornam-se

53 Para uma discussão da categoria bandido, conferir Misse (2010) e Teixeira (2011).

Paula Lacerda
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205

críticas mais ou menos orgânicas, ora não passam de lamentos e sentimentos de indignação

em relação à crueldade expressa no exercício, praticamente ritual, do ato de matar. O

simbolismo da morte fere o limite daquilo que é considerado pelos familiares como humano.

5.2. A figura da vítima

Não é minha intenção aqui reificar a categoria vítima. Vítima aparece aqui como uma

categoria nativa e minha intenção é analisar como se dá o uso político desse estatuto. A noção

contemporânea de vítima vincula-se às políticas de reparação de danos, inicialmente frente às

atrocidades da guerra e, posteriormente, de regimes totalitários e autoritários como, por

exemplo, as ditaduras latino-americanas. A figura da vítima surge simultaneamente com a

construção da noção de crime contra a humanidade e de uma justiça penal internacional que

consistiria, enquanto projeto, basicamente em aplicar a justiça a crimes de massa que dizem

respeito a toda a comunidade internacional.

O crime contra a humanidade introduz-nos na categoria da vitimização absoluta. A ideia de vítima vem do vocabulário religioso do sacrifício, correspondendo a um ser – animal ou humano – morto ritualmente em homenagem aos deuses. Simboliza, portanto, a passividade total, a vitória definitiva sobre o corpo do outro, excluído do próprio combate. A figura do herói, tal como a do vencido, subsiste ligada ao combate, logo, à acção. A vítima absoluta encarna um novo ser no mundo ou, mais exactamente, um não ser. O aparecimento da vítima é inseparável de uma experiência histórica radicalmente inédita, que é a negação de qualquer laço humano. Se o combatente ocupa um lugar, o do adversário, já a vítima não tem lugar para ocupar, mesmo no meio da pátria humana. Ter um lugar é, efetivamente, reconhecer a possibilidade de fazer valer direitos, mesmo que extremamente reduzidos. O combate permanece uma forma de reconhecimento, enquanto crime contra a humanidade é um crime de indiferença. (…) O que caracteriza a vítima é o involuntário, a impossibilidade de exercer um qualquer tipo de controle sobre a sua sorte, a incapacidade de agir, inclusive de fugir ou de se render, duas saídas possíveis para o combate. Para ela, não há refúgio algum sobre a terra, nem mais nenhum recurso. As vítimas designadas vivem na expectativa de uma morte atroz a todo o momento e em qualquer lugar: de dia ou de noite, tanto em casa como na rua. O domicílio familiar, o lugar mais íntimo, é escolhido para cometer os raptos, seguidos de desaparecimento, de forma a tornar o mundo definitivamente indiferenciado e hostil. É vítima aquele a quem não é dada outra escolha senão a de deixar-se levar para o matadouro, ou até, como na Ruanda, implorar – e pagar – para não ver o seu próprio corpo mutilado. (Garapon, 2004: 108)

Desde então a noção de vítima ampliou-se e passou a ser usada em diversos contextos

para conferir legitimidade moral às reivindicações daqueles que são afetados por algum tipo

de sofrimento decorrente de experiências traumática em diversos contextos políticos. A

antropóloga Cynthia Sarti, ao refletir sobre o sofrimento associado à violência, tem se

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indagado a respeito da construção social e histórica da pessoa como vítima e a extensão que

essa figura tem adquirido na sociedade contemporânea como forma de legitimação moral de

demandas sociais. Como é “produzida” a vítima? Qual a perspectiva dos atores envolvidos

nessa produção e seus modos de agência? Em que contextos emerge a figura da vítima e que

significados assume?

A análise de Sarti tem como ponto de partida a construção da violência como

problema na área de saúde, interrogando-se sobre “o contexto em que se nomeia a violência,

que agentes sociais a nomeiam, como e quem define a vítima e o agressor e como se expressa

o sofrimento por quem a vivencia ou vivenciou” (Sarti, 2011: 51). A partir desta perspectiva,

Sarti buscou problematizar como políticas públicas de atendimento aos casos de violência na

área de saúde são desenhadas a partir da noção de vítima. A autora argumenta que essa noção

constitui a razão de ser das políticas públicas, não só de atendimento aos vitimados, como

também de prevenção e combate à violência, abrangendo as áreas de saúde e segurança

pública. O campo empírico das pesquisas de Sarti inicialmente foi o atendimento em um

hospital de emergência de casos de violência.

A entrada da questão da violência na área da saúde, segundo o argumento de Sarti, se

deu em razão, entre outros fatores, do impacto social e político de movimentos sociais de

cunho identitário, a partir de suas reivindicações de direitos. A forte presença do movimento

feminista nesse processo tornou a perspectiva de gênero significativa e marcante na

orientação do atendimento à vítima de violência na área da saúde, sendo a figura da mulher

construída como vítima potencial da violência. Disso resultaram ações focalizadas de

atendimento à violência na área da saúde para atender a demandas de grupos específicos.

A construção da vítima e a constituição de uma noção de direito, em termos

particulares, focalizando-se em grupos identitários específicos compreendidos como

vulneráveis, têm como dilema, a cristalização de certas identidades tidas como merecedoras

de uma ação reparatória, enquanto outros grupos não têm o mesmo mérito. Ou seja, há uma

tensão entre particularidade e universalidade dos direitos na administração social dos

conflitos. Se, por um lado, os movimentos sociais de cunho identitário serviram para dar

visibilidade a certas violências até então invisíveis, por outro, incorre-se no problema da

“delimitação do que constitui culturalmente um grupo discriminado” (Sarti, 2011: 53). Como

alerta Sarti, o problema na definição de quem é a vítima e de quem é o agressor é a

construção de identidades positivas de certos grupos, diante das quais a alteridade é vista

como polo negativo.

O dilema de uma definição rígida da figura da vítima, na medida em que esta definição

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207

pode priorizar alguns grupos e desconsiderar a vulnerabilidade de outros, é ilustrado por Sarti

quando ela apresenta um caso que registrou durante o trabalho de campo no hospital em que

realizou sua pesquisa. Trata-se de um homem jovem que se dirigiu ao hospital buscando

atendimento frente à violência sexual por ele sofrida. Este homem foi dispensado segundo a

justificativa inicial de que o serviço de atendimento era integrado exclusivamente por

ginecologistas e obstetras, restrito às mulheres, vistas como vítimas potenciais. A situação

desestabilizou a figura da vítima que os profissionais tinham em mente e apontou para as os

deslocamentos que podem ocorrer quando se trata de definir quem ocupa o lugar de vítima e o

lugar de agressor.

Ao se problematizar o lugar atribuído à vítima e ao agressor no processo de

construção social da violência, o que se tem é não apenas uma indagação sobre a definição de

prioridades no desenho das políticas públicas, mas também a problematização e reflexão

sobre as “formas contemporâneas de sociabilidade entre as quais se circunscreve o sofrimento

e o cuidado que lhe corresponde” (Sarti, 2011: 52). A construção da pessoa como vítima no

mundo contemporâneo tem como objetivo conferir-lhe reconhecimento social em relação ao

seu sofrimento.

O alargamento do espaço social ocupado pela vítima no mundo atual está historicamente relacionado às melhores intenções. Daí a delicadeza da questão em pauta. No que se refere, pelo menos, ao mundo ocidental moderno, a identificação da vítima faz parte dos anseios de democracia e justiça, dentro do problema da consolidação dos direitos civis, sociais e políticos de cidadania. Remete à responsabilização social pelo sofrimento em face de catástrofes de várias ordens, desde guerras até acidentes naturais (terremotos, etc.) e à questão do reconhecimento como exigência básica do ser no mundo. Categoria histórica, seu significado define-se contextualmente, na dinâmica dos deslocamentos de lugares que marca as relações intersubjetivas, situadas em estruturas sociais de poder no interior das quais os conflitos são negociados. Trata-se de compreender os mecanismos sociais e políticos de reconhecimento e nomeação da violência pelos quais a pessoa, na acepção de Mauss, é construída como vítima, a gramática moral que lhe dá a sustentação e, no plano do sujeito, a percepção subjetiva de si mesmo como tal. (Sarti, 2011: 54).

Na mesma linha de argumentação desenvolvida por Sarti, Kleinman e Kleinman

(1997) argumentam que o sofrimento é o assunto mestre do nosso tempo mediatizado.

Imagens de vítimas de desastres naturais, conflitos políticos, migrações forçadas, fome, abuso

de substâncias, a pandemia de HIV, doença crônica de dezenas de tipos, crime, abuso

doméstico, e as privações profundas da miséria estão por toda parte. E as câmeras de vídeo

nos leva e traz os detalhes íntimos de dor e desgraça, tornando-nos espectadores do

“sofrimento à distância” (Boltanski, 2007). As memórias de violação são transformadas em

Paula Lacerda
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208

histórias-trauma e estas, por sua vez, tornam-se moeda política e são apropriadas profissional,

econômica, política e culturalmente de diversas formas.

Kleinman e Kleinman chamam atenção para os processos de patologização do

sofrimento social que reescrevem as experiências sociais em termos médicos, reduzindo os

eventos reais a uma imagem de núcleo cultural de vitimização – “a marca pós-moderna”. “A

pessoa que sofre tortura, primeiro, torna-se uma vítima, uma imagem de inocência e

passividade, alguém que não pode representar a si mesmo, que deve ser representada. Então

ela se torna um paciente, especificamente um paciente com o transtorno por excelência do fim

de século (ou seja, transtorno de estresse pós-traumático)”. (p. 9-10). Os autores acrescentam

que as imagens do trauma são parte da nossa economia política e as imagens de sofrimento

tornaram-se uma forma de entretenimento.

Um obstáculo para a passagem de uma situação de violência à uma situação de paz, ou

de um regime de força para um regime de justificação cívica nos termos de Boltanski e

Thevenot (1991), é a não aplicação de uma política sistemática de justiça punitiva contra

agentes estatais, principalmente policiais criminosos. Reconhecer o sofrimento da vítima

significa reconhecer a necessidade de reparação, portanto, de agir em seu benefício. Um dos

pontos centrais e que se torna obstáculo para a aplicação da justiça, nos casos envolvendo

violência policial, consiste em reconhecer a responsabilidade dos agentes policiais e puni-los.

Neste caso, reconhecer a vítima significa reconhecer os crimes praticados por policiais e puni-

los.

É preciso retomar aqui o contexto em que se dá a produção da figura da vítima e o

jogo de posições que se estabelece em torno dela. Ser vítima não significa ocupar um lugar

fixo em um sistema de denúncia. Tanto a condição de vítima como a de algoz podem sofrer

alterações conforme as disputas políticas e simbólicas.

A violência urbana, pensada enquanto representação social (Machado, 1993; 2004),

traz em seus repertórios uma coleção de personagens, cenários, figuras, categorias e situações,

que conformam certo imaginário. Gostaria de destacar uma tríade de figuras que corresponde

a certas posições que cada agente social ocupa diante dos processos de acusação e dos jogos

de denúncia em que cada um se movimenta e se mobiliza para formular suas críticas e fazer

suas reivindicações e protestos. Essa tríade é composta pelas figuras da vítima, do bandido e

da polícia. Essas figuras ocupam lugar central nas gramáticas da violência urbana e podem ser

substituídas por categorias equivalentes como acusador, réu e juiz. É neste contexto do agir

competente, de passagem de uma situação a outra, de um regime de ação a outro, que os

agentes sociais são envolvidos numa situação que vai se fabricando, inventando e

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209

conformando os princípios e as gramáticas morais e políticas que coordenam as ações.

5.3. A construção da categoria familiar de vítima: tensões entre ser familiar de vítima e ser

familiar de bandido

A família constitui, na sociedade brasileira como um todo, mas especialmente entre as

camadas populares, um valor muito importante na produção de significados e formas de

compreensão do mundo. Seria impossível discutir a experiência dos familiares de vítima sem

nos determos sobre o lugar da família entre os pobres (pobres aqui é categoria nativa), afinal,

uma das questões centrais que aparecem nos relatos é o que significa ser mãe nos espaços

populares, em contextos de violência urbana e sem recursos para se proteger. E, no caso dos

familiares de vítima de violência, o parentesco, a família e a maternidade aparecem como

recursos morais, fontes de legitimação moral, que autorizam a falar em nome da vítima, dada

a proximidade em razão dos laços de sangue.

A família, enquanto unidade simbólica, estrutura formas e regras de convivência que

permitem pensar, organizar e dar sentido ao mundo social, dentro e fora do âmbito familiar.

Em muitos contextos, como, por exemplo, as periferias de São Paulo estudadas por Cíntia

Sarti, na década de 90, a família “se torna o parâmetro simbólico para definir, inclusive, os

termos da atuação dos indivíduos no plano político (2003: 9)”.

A autora complementa seu argumento dizendo que essas formas de se fazer política a

partir da família “não se associam necessariamente a formas populistas de fazer política, mas

ao fato de que as demandas e práticas políticas de qualquer segmento da população estão

associadas ao seu modo de viver e ao sentido que atribui à sua vida”. E dentre os vários

modos de se viver das camadas populares, as redes de parentesco sempre foram uma das

principais formas de proteção social, sobretudo a figura da mãe, que corresponde à ideia de

proteção no seio familiar.

No caso dos familiares de vítima de violência que esta pesquisa investigou, nota-se um

ponto de confluência em relação ao argumento de Sarti. Nota-se nesse caso como a família e a

maternidade representam duas gramáticas morais que fornecem um quadro de referências

para produzir sentido sobre suas “experiências subjetivas de opressão” cujo episódio central é

a morte dos filhos, mas cuja dor e sofrimento não cessam com ela.

O desenrolar jurídico do caso e a luta por condenação dos envolvidos, reparações

morais e financeiras (na forma das indenizações), coloca os familiares diante de situações e

relações que até então não faziam parte de suas rotinas, mas que, agora, diante do evento

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crítico, passam a ocupar boa parte de seu tempo e de suas vidas. Lutar nos tribunais pela

condenação de policiais é na maior parte das vezes, para os familiares de vítima, ver o tempo

passar sem muita possibilidade de que a justiça seja feita. Diante da impunidade e da barreira

que existe na justiça brasileira para a condenação de policiais, para os familiares fica a

sensação marcante de que a justiça tarda e falha.

As demandas por justiça diante de casos de violência policial têm constituído um

campo de protestos e reivindicações protagonizado pela figura dos familiares de vítima,

especialmente a imagem da mãe. Através da figura do familiar de vítima, aparece com força

uma alusão aos laços de sangue como o motivo que impulsiona a intervenção e ação pública

de reclame. Alguns estudos sobre a construção das categorias vítima e familiar de vítima, em

diferentes contextos de violência, têm possibilitado a realização de análises comparativas

sobre o tema (Das, 1995; Uribe, 2008, 2004, Jimeno, 2008; Pita, 2010; Araújo, 2007; Birman

e Leite, 2004, entre outros).

Ao analisar a experiência dos familiares de vítima de violência policial em Buenos

Aires, Pita (2010) descreve um contexto semelhante ao que acontece no Rio de Janeiro,

guardadas as devidas especificidades dos contextos locais. Um desses pontos convergentes é a

aparição pública e a centralidade da categoria familiar no contexto de denúncia contra a

violência policial, conformando um campo próprio de protesto, um universo moral baseado

no mundo dos familiares. Esta autora argumenta que os organismos de direitos humanos

constituíram um vigoroso campo de protestos e intervenções contra a violência estatal

promovida pela última ditadura militar. A luta em prol dos direitos humanos foi o tópico que

organizou a resistência ao Terrorismo de Estado. Neste contexto, várias ações foram

desenvolvidas buscando esclarecer o destino das vítimas, reclamar o esclarecimento dos fatos

e demandar justiça. As experiências dos atores envolvidos nas diversas formas de

coletivização da dor e do sofrimento e os reclames por justiça e reparação ante a violência

patrocinada pelo Estado foram conformando certo campo de atuação que genericamente

podia denominar-se o movimento de direitos humanos da Argentina.

Com o fim da ditadura, sob o regime democrático, simultaneamente ao movimento de

direitos humanos, apareceu no cenário público um novo campo de protestos, relacionado

agora à violência policial. Embora essas mortes também se enquadrem no espectro de

violações de direitos humanos praticadas pelo Estado, começaram a ganhar lugar como

questão particular, com entidade e visibilidade própria.

Através do contato com os familiares de vítima de violência foi possível acompanhar

certos momentos de construção das categorias familiar de vítima e vítima. A evocação da dor

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211

e do sofrimento e o uso da linguagem das emoções são traços sempre presentes para falar e

estabelecer o estatuto de vítima e o uso político que dela se pode fazer. A condição de vítima

não significa ocupar sempre o mesmo lugar na ordem política, social e moral. Ser ou deixar

de ser vítima depende da capacidade de se engrandecer ou não, de fazer uso político da

categoria quando for útil ou não. Em outros momentos é preciso se desvincular da categoria

de vítima, porque ela também serve para apagar qualquer possibilidade de agência dos atores,

qualquer capacidade de ação. O uso da condição de vítima ocorre conforme a conveniência

política de cada situação; algumas vezes pode ser interessante apresentar-se enquanto vítima,

outras vezes pode ser mais eficiente afastar-se da vitimização.

A própria categoria familiar de vítima, simultaneamente, aproxima e afasta. Serve

tanto para demarcar hierarquicamente a proximidade e o sofrimento de familiares e amigos da

vítima e reivindicar a legitimidade para falar em nome da vítima, como para indicar a

distância daqueles que não sofrem. Distingue as pessoas implicadas diretamente no

sofrimento e, portanto, em um sistema de obrigações diante da vítima. É utilizada com o

sentido político de diferenciar aqueles que encontram-se enlutados daqueles que não; aqueles

que sofrem diretamente com o evento daqueles que não; aqueles que têm uma relação direta

com a vítima daqueles que não. A mesma definição elaborada por Pita, ao estudar os

familiares do gatillo fácil, em Buenos Aires, aplica-se para pensarmos os familiares do Rio de

Janeiro:

Familiar puede definirse entonces como una categoría nativa del campo de la protesta contra la violencia policial, que revela una dimensión moral que, condensada em esta figura, incide en la construcción de significados que potencian la politización de la protesta. Pero también la nominación de familiar – en tanto categoría nativa – funciona como un demarcador de posiciones respecto de los actores que intervienen em este campo de protesta. Así, su análisis posibilita dar cuenta de posiciones diferenciales, autoridades y jerarquías, así como de obligaciones, tanto entre familiares, como entre estos y no familiares, revelando de este modo su valor político, es decir, como una categoría nativa que interviene en la deficinión de un tipo particular de activista político en este campo de protesta. (Pita, 2010: 185)

O trabalho político dos familiares consiste em ressignificar a morte violenta ou o

desaparecimento dos filhos, elaborando o evento como um caso, enquanto uma forma política

(Claverie, 1998; Boltanski, 2001). O tratamento dado aos mortos converte-se em um valor

exibido e manipulado durante as denúncias e protestos e compreende um tremendo esforço de

restituição da humanidade dos filhos, retirando-os da categoria matáveis (Agamben, 1998).

Nesse ponto, faz-se presente certa dimensão do sagrado que, como nota Pita, retomando um

texto da antropologia política de Balandier (2004), corresponde a uma das dimensões do

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campo político que intervêm na construção da legitimidade daquele que age. A estratégia de

manipular o sagrado equivale a uma forma de competência política que visa construir e

legitimar a autoridade moral.

A figura do morto associada à noção de vítima torna-se o centro do protesto e o

elemento a partir do qual os familiares constroem e manifestam sua autoridade moral,

tornando-se atores quase-sagrados. Os familiares constroem uma forma de protesto que é

também uma forma de luto e vice-versa (Pita, 2010). O próprio enterro, quando há corpos a

serem enterrados, converte-se em um ato de denúncia. E, mesmo quando não há corpo, há os

rituais para a dor, que geram velórios sem corpo, como os denominou Novaes e Catela

(2004).

Nos rituais da dor há todo um trabalho simbólico de restituição da humanidade negada

às vítimas: lembrar o nome, recordar a identidade do morto, recuperar o status social do

morto, reafirmar as qualidades de pessoa, tirar a morte do anonimato e nomear os

responsáveis. Tudo com base no vínculo com o morto. A dor pela morte violenta do filho

pode significar a construção de um espaço social a partir da esfera moral que se constrói em

torno da dor e do sofrimento e em torno da figura da vítima. Ocorre uma retomada da palavra

a partir da dor e de uma linguagem das emoções.

Os moradores dos chamados territórios da pobreza – cujo arquétipo, no Rio de

Janeiro, é representado pela favela – são silenciados, por um lado, pela violência criminal e

pela violência policial, por outro, pela classe média que acusa e associa este segmento à

criminalidade e à violência. Pelo simples fato de morar em territórios onde se estabeleceu

uma modalidade do tráfico de drogas baseada numa sociabilidade armada, marcada pelo

recurso permanente ao uso da força, todos os moradores são associados indistintamente ao

crime. Por viverem emparedados pela sociabilidade violenta (Machado, 2008), são

geralmente desacreditados no espaço público, porque são vistos como bandidos ou coniventes

com a bandidagem.

A revolta, os protestos e as manifestações de indignação diante da morte violenta não são as mesmas em todos os casos, variam em intensidade e força conforme o perfil da vítima, sobretudo no que diz respeito às variáveis de classe e local de moradia. Há também uma forte dimensão moral que traduz percepções e representações em relação à vítima, que inclusive influi muito na intensidade da indignação ou da falta dela. É como se houvesse necessidade de atestado de bons antecedentes para que a moral humanitária seja evocada em sinal de compaixão pela vítima. Quando ocorre uma morte violenta, um conjunto de perguntas com uma forte carga moral logo se coloca, com o objetivo de saber se a vítima era passível de compaixão ou não. Quem era a vítima? Era uma pessoa do “bem”, “boa” gente? Ou seria um menino de rua? Ou seria um bandido? Ou um favelado? Ou um traficante? (Araújo, 2007: 84-85)

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Outro fator que se apresenta como obstáculo para o acesso ao espaço público desse

segmento de moradores da cidade é a predominância na sociedade como um todo (inclusive

entre muitos familiares) e no Estado brasileiro de um entendimento segundo o qual o uso da

violência policial é aceitável e desejável para a manutenção da ordem pública. Desde que a

violência seja aplicada aos elementos devidos (para usar o jargão policial), ela é justificável,

porque o uso de castigos físicos e a inflição da dor diretamente nos corpos têm ampla

aceitação na sociedade brasileira.

Ilustrativo desse entendimento é o relato de uma mãe que diz: “Se tivesse essas três

coisas: se ele [o filho] estivesse roubando, vendendo e fumando maconha e eles pegassem

assim, aí eu deixava para lá”. O que move esta mãe a buscar pelo filho desaparecido é a

presunção de sua inocência. Se soubesse que ele “rouba, vende e fuma maconha”, abriria mão

do direito de procurar. Abriria mão de procurar ou se sentiria sem esse direito, porque sabe

que há um entendimento dominante de que bandido merece e deve morrer, como forma de

limpeza social, de depuração do social. A morte pública do bandido no Rio de Janeiro é

experimentada como um rito de purificação do tecido social. Isso justifica, pelo menos em

parte, o fato de que os familiares que mais aparecem em público para denunciar os casos são

os familiares cujos filhos não tinham envolvimento com a criminalidade.

Os familiares se queixam por serem tratados pela polícia sempre como familiares de

bandidos, portanto, como suspeitos. Quando vão às delegacias de polícia registrar os casos,

são colocados em suspeita e a responsabilidade pela investigação do caso é repassada aos

familiares. Nesse ponto, a reclamação dos familiares é que passam a ter que provar para a

polícia que o caso merece ser investigado, que merece entrar na lista de prioridades dos casos

que serão investigados. Veja-se o relato a seguir em que o policial orienta os familiares a

procurar o “dono da favela” para obter informações sobre o paradeiro do filho:

Quando a gente foi na Civil, né, na Policia Civil... nós fomos todo mundo lá, para a cidade, e chegando lá eles queriam saber, né? Que nós moramos na favela, que nós tínhamos que saber o nome dos caras. Tínhamos que falar com ele porque nossos filhos foram sequestrados. [O policial] queria saber porque os nossos filhos estavam sumidos, nós tínhamos que achar os nossos filhos, mas tínhamos que falar os nomes do pessoal de onde a gente morava, né? [Eu disse]: “Eu não sei, nós não sabemos. Eu saio de manhã para trabalhar. Eu não sei... Meu filho saiu para fazer um passeio e não retornou mais. Nós não sabemos o nome de ninguém”. Então, foi que eles foram imprensando, que eles imprensaram ali as mães para querer saber, entendeu?

A dor pela morte violenta do filho pode significar a construção de um espaço social a

partir da esfera moral da dor e do sofrimento e em torno da figura da vítima.

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214

5.4. As críticas dos familiares de vítima à polícia

O quadro cognitivo que conforma seu regime de ação tem como núcleo central a

experiência e a situação dolorosa da morte dos filhos, ou de parentes, por policiais. A

compreensão da morte do filho não como uma fatalidade, como é geralmente argumentado

por policiais, mas sim como fruto de uma injustiça praticada pelos mesmos, impulsiona e

alimenta uma vontade, praticamente uma missão de fazer justiça (Leite, 2006). E nesse

processo de lutar por justiça, nos embates travados, a polícia é o alvo central das críticas. E

nas críticas que fazem à polícia, a forma é marcada pela linguagem das emoções (dor,

indignação, raiva, sofrimento, medo, luto, humilhação, ofensas morais, amor aos filhos) e o

conteúdo, pelo questionamento de uma humanidade comum. Os relatos a seguir exemplificam

bem o entendimento dos familiares de vítima acerca da compreensão que os policiais fazem

de seus filhos como “bandidos”.

A polícia nos considera todos bandidos. Então por isso o Caso Acari não foi pra frente, porque eles dizem que são onze traficantes. Onze pessoas que sumiram, desapareceram, e que hoje a mamãe chora porque hoje não tem mais dinheiro do filhinho. Isso aí eu ouvi de todas as autoridades. [Disseram] que eu era mãe de bandido. Infelizmente você ainda tem que escutar isso.

Eu tive constrangimento por duas vezes. Os policiais que estavam me ouvindo na delegacia falaram para mim: “Seu filho é bandido, seu filho está sendo procurado pela polícia”.

Antigamente nós éramos taxadas de mães de bandido.

Se, por um lado, policiais acionam a categoria bandido para justificar moralmente o

“direito de matar” (“porque eram bandidos”), por outro, os familiares de vítima acionam essa

mesma categoria para criticar a polícia, manifestando um entendimento de que polícia e

bandido se equivalem, porque ambos causam sofrimento. Humanizar e desumanizar são

recursos acionados por todos. Polícia e bandido seriam iguais, no entendimento geral dos

familiares de vítima, por isso, da mesma forma que policiais desumanizam os bandidos,

familiares também desumanizam os policiais. Mas há que se notar que não se trata de um

inverso recíproco, enquanto os policiais adotam uma justificação cívica de bastidor, podendo

se deslocar facilmente dela, os familiares de vítima adotam uma justificação cívica

propriamente dita, combinada com outra, doméstica.

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Desse modo, “os direitos humanos” dos policiais são questionados pelos familiares.

Bandido é uma categoria acusatória usada também pelos familiares para se referir aos

policiais e igualá-los aos bandidos que eles se encarregam de eliminar. Eis alguns relatos de

familiares de vítima que demonstram a incorporação do policial na categoria bandido:

Para mim, a polícia é pior do que bandido. Porque o bandido é assim: ele faz tudo que ele faz de ruim, ele faz dominado pela droga. Ele faz porque ele é drogado. Ele é usuário de droga, então ele faz aquilo ali.

Eu acho muitas vezes que o governo tem muita culpa, porque não são somente os traficantes [os responsáveis pela violência], porque os polícia estão agindo da mesma forma. Então a gente não sabe quem é quem. Estão todos juntos, estão agindo juntos. Eu costumo falar para minha mãe que são dois diabos brigando. Porque antigamente a polícia ajudava agente, hoje em dia eles estão lá em cima do morro, e estão fazendo e acontecendo. Entendeu? Já chegam atirando. Quantas vezes pessoas inocentes já morreram aí. Porque eles já sobem os morros atirando, né? Então agente não sabe quem é quem. Não sabe quem é a policia e quem é o bandido. Porque eles estão misturados.

Eles [os policiais] têm licença para matar sim e a instituição passa a mão pela cabeça. É uma coisa assim, eu acho que se tivesse, se nós tivéssemos políticos sérios, uma galera séria no poder sabe? Que se preocupasse realmente com a população, eles já teriam exterminado a PM ou teriam feito uma reformulação muito grande. Porque são pessoas, hoje eu já questiono se eles entram já com a intenção de cometer todos os atos ilícitos e serem absolvidos. Entendeu? E ser dado como foi o caso do [nome do filho] é simplesmente um desvio de conduta ou se a instituição que os torna bandidos, porque eles são bandidos oficiais. Entendeu? A gente não tem a menor dúvida sobre isso, entendeu? Se você tivesse um caso, um caso, seria uma coisa, agora toda semana tem policial militar envolvido em morte de inocente, aí você vê auto de resistência com mão na nuca né, e o cara dá um tiro na nuca, auto de resistência, eu queria saber até onde eles vão assim e até onde a própria sociedade vai permitir entendeu? Porque eles só estão continuando, porque os políticos não vão fazer nada de fato, mas a sociedade continua permitindo. A sociedade é a grande culpada disso tudo porque se fosse um caso isolado é uma coisa, mas toda semana é um caso e, infelizmente, a sociedade não se movimenta, porque os casos acontecem nas comunidades.

Se na narrativa policial o bandido é um sujeito criminal (Misse, 2010), que tem sua

subjetividade marcada pelo crime e pela violência, exatamente por saberem que policiais

pensam desta forma, este é um dos tópicos que mobiliza as falas dos familiares tanto em

relação aos policiais como em relação os filhos. “Polícia é igual ou pior que bandido”, eis

uma frase comum de acusação aos policiais. Por outro lado, “Meu filho não era bandido”, eis

uma frase sempre dita pelos familiares e que expressa o tremendo esforço que fazem para

limpar a moral e a memória dos filhos. As relações perigosas envolvendo polícia, crime e

violência, tem um poder impressionante de produzir “contaminações morais” das quais todos

os envolvidos precisam se livrar.

O núcleo central da crítica dos familiares é que, em razão de morarem em territórios

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216

de pobreza, têm seu pertencimento a uma humanidade comum questionado ou negado, e isso

se manifesta na forma violenta como a polícia age contra este grupo específico, vistos todos

como bandidos, quase bandidos ou coniventes com bandidos. Essa desigualdade de

tratamento e de direitos aparece reconhecida no relato dessa mãe de classe média alta,

moradora do Leblon, que teve um filho assassinado por um policial, que, no momento do

crime, trabalhava como segurança em uma boate:

Infelizmente, cara, é lamentável esse fato também, de [os policiais] acharem que eles [os moradores de favelas] não têm direitos. Entendeu? Que eles não são seres humanos como os outros que moram em Ipanema, Leblon etc. Infelizmente tem essa desigualdade, infelizmente. Eu lamento muito, mas eu acho, eu sou totalmente a favor de que a sociedade vá lutar mesmo, vá para frente da Secretaria de Segurança. Quebrem aquilo tudo, gente. Exijam que todos os policiais envolvidos em crime, em autos de resistência, sejam expulsos. Eu acho que tem que ser por aí. Não adianta passeata pedindo paz. Não adianta, não adianta, não vai mudar, não vai mudar. O negócio não é por aí: “ah, mas isso é partir pra violência”. Não é violência, mas eu acho que você tem que se rebelar de alguma forma. Se você está vindo pedir paz há uma vida, pedir paz há quantos anos tem essas mães aí? Há 20 anos estão fazendo caminhada, passeata e pedindo paz e elas são ridicularizadas.

Na fala acima da mãe, moradora do Leblon, aparece claramente a distância que separa

os moradores das favelas do pertencimento a uma humanidade comum aos demais moradores

da cidade. A desproteção social e civil torna os moradores de favelas expostos ao risco de

morrer, presas fáceis da violência policial. Uma mãe de vítima, moradora de favela, chega a

dizer numa entrevista que “Eu tenho que preservar a minha vida, eles não vão me dar

segurança”. Mais do que apenas ‘não dar segurança’, representam ameaça à vida, ao corpo.

Da mesma forma que a polícia, quando age no regime de desumanização, utiliza sempre como

recurso construir uma “carreira criminosa” para comprovar que uma pessoa era bandida, a

crítica dos familiares de vítima replica o mesmo recurso para provar como policiais também

são bandidos na mesma proporção, ou mais, na medida em que cometem crimes com o

pretexto de combatê-los. Ao invés de orientarem suas condutas pela moralidade pública e pela

legalidade, enquanto agentes da lei que são, os policiais se orientariam, segundo as críticas,

pela moralidade do crime. O relato a seguir é emblemático neste sentido:

Um policial prendeu [meu filho] e mais um menor na comunidade. Ficou a tarde toda rodando na D20, com os dois dentro, procurando uma tal de [nome da pessoa], que era uma mulher envolvida na época com os rapazes lá do Terceiro Comando. Querendo o quê? Dinheiro. Aí, eu procurando, andando tudo. Eles estavam de carro, né? Quando uma certa hora eles foram... Olha a ousadia deles, eles saíram de onde eles estavam lá escondidos com eles, voltaram para a rua principal, para a calçada do posto policial. E eles dois dentro da viatura. Aí, eu cheguei perto, assim, pela frestinha e falei: “[Fulano]”. E ele: “Mãe, mãe, vai para a casa”. Porque ele sabia que eles queriam dinheiro para soltar os dois. Aí eu falei: ”[Fulano], o que é que

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você está fazendo aqui, porque ainda não foi para a delegacia?”. Aí um careca que eu não lembro o nome veio e disse: “Tia, tia”. Não sabia nem que eu era mãe dele, porque lá todo mundo pensava que eu era irmã dele. Ele disse “Tia, afasta, afasta”. Um policial. Aí eu falei: “Afastar porque, meu filho está aí”. E ele: “Que filho?”. Aí ele “Vai embora, mãe. Vai embora”. Aí ele: “Vai chamar [Fulana]”. Que era essa mulher que... Aí ele: “Vai chamar [Fulana]”. E eu disse: “Vou chamar [Fulana] por quê?”. E ele disse: “Vai chamar [Fulana] que a gente quer conversar”. Aí eu falei: “Vocês querem dinheiro, não é?”. Falei assim: “Vocês pegaram ele que é de menor e está esse tempo todo dentro da caçapa do camburão, coisa que é errada, ele é de menor. E vocês não vão levar eles na delegacia. Então, vocês vão pegar o dinheiro e eu vou na delegacia fazer uma queixa de vocês”. Foi aí que eles levaram os dois para a DP.

O relato acima denuncia algumas práticas ilícitas de policiais como tentativa de

extorsão e detenção policial arbitrária de um menor. Mas o repertório de denúncias de

corrupção policial e práticas violentas, para além do uso comedido e legal da força, amplia-se

conforme os relatos de familiares de vítima. O próximo relato é de um pai que teve seu

domicílio invadido por policiais que procuravam seu filho. Nota-se em sua fala a perplexidade

diante do fato e a falta de recursos para lidar com a situação.

O 9º Batalhão quando eu morava na [nome da rua] com ele, os caras foram lá na minha casa atrás dele. Falaram para mim que se botasse a mão nele que era um abraço. Quer dizer, dentro da tua casa a polícia chegar, né, e mandar. O que eu posso responder para você?

As queixas e denúncias dos familiares geralmente têm como fundamento principal a

crítica à indistinção dos policiais entre “bandido” e “pessoa do bem”. E como bandido é visto

como algo que deveria ser eliminado, diante da indistinção, todos os moradores de favela se

encontram em risco, sujeitos ao poder discricionário do policial, que não reconhece as

hierarquias sociais locais e identifica todos como suspeitos potenciais.

5.5. Mudanças na figura do bandido e o impacto no trabalho policial nas UPPs

Durante a realização de trabalho de campo em duas favelas cariocas, acompanhando

as atividades rotineiras do trabalho policial nas Unidades de Polícia Pacificadora, as UPPs,

como ficaram conhecidas, pude observar alguns impactos que a presença permanente dos

policiais provocou e provoca na sociabilidade local, e os rearranjos nas disputas para definir a

organização das formas de viver nesses territórios.

O primeiro deles diz respeito aos policiais, às mudanças que tiveram que efetivar na

forma de olhar os moradores a partir desta nova modalidade de policiamento. O argumento

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dos policiais de rua é que a presença ostensiva da polícia interferiu na dinâmica local do

crime. O tráfico de drogas não teria acabado, isso é reconhecido por todos os policiais, mas

teria passado a funcionar de outra maneira, sem a ostensividade e visibilidade das armas. A

figura midiática do bandido com cabelo pintado, associado ao funk e segurando um fuzil, teria

saído de cena. Esta é a imagem central de bandido presente no imaginário coletivo em geral e,

particularmente, dos policiais. Neste sentido, os policiais afirmam que ficou mais difícil

identificar o bandido, porque alguns fugiram da favela com a ocupação policial, mas os que

ficaram e não tinham passagem pela polícia tiveram que mudar o visual e a hexis corporal

para não serem identificados.

O segundo ponto diz respeito às expectativas dos moradores desses territórios,

principalmente as mães, de que a presença policial significasse de fato um processo de

pacificação e uma atuação policial que respeitasse os direitos destes moradores e que as

mortes violentas de jovens cessassem. Havia uma expectativa de que as equivalências entre os

moradores da cidade fossem restabelecidas e todos se reconhecessem numa humanidade

comum. Neste sentido, a expectativa era de que a implementação das UPPs seria o carro chefe

de um conjunto de intervenções estatais, através de políticas públicas em todas as áreas

sociais, que garantissem a passagem de uma situação de violência para uma situação de paz,

de um regime de força para um regime de justificação.

Os pontos de vista das expectativas dos policiais (combater o crime) e dos moradores

(viver com segurança) encontram-se em um dilema. Diante da dificuldade por parte dos

policiais de identificar quem são os bandidos, já que houve uma mudança visual e corpórea

destes para disfarçar da polícia, o poder discricionário do policial, que se imaginava e buscava

ser mais controlado, corre o risco de não se dar desta forma. A paz sonhada pelos moradores

pode não acontecer em razão do aumento do poder discricionário dos policiais que passam a

ampliar seu escopo de atuação, inclusive sobre a vida privada dos moradores. O que pode

ocorrer, aliás, é o acirramento dos conflitos, como tem acontecido, às vezes, em algumas

favelas com UPP. Na medida em que os policiais argumentam que a dificuldade para

identificar o bandido aumentou, porque este agora se disfarça, se camufla e não corresponde

mais à figura midiática a que estávamos acostumados, transformou-se este dado da realidade

em justificativa para ampliar a área de abrangência do trabalho policial. E o dilema que se

coloca é o de como combater o crime sem violar a segurança e a vida privada dos moradores,

como combater o crime agindo dentro da lei.

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219

5.6. Direitos civis, corpos incircunscritos e formas de matar e morrer

A violência é uma experiência que afeta os direitos civis. A inviolabilidade do corpo, a

proteção da pessoa e a liberdade de ir e vir com segurança constituem as bases do direito civil

moderno e da ideia de direitos humanos. A noção de direitos do homem, advinda de uma

concepção liberal de indivíduo possuidor de direitos naturais, pressupõe consequentemente

que direitos são para humanos, porém nem todos são considerados humanos, ou nem todos

são dignos de serem incorporados acertas humanidades comuns. A humanidade comum não é

dada a priori. O próprio status de ser humano é colocado à prova, sendo aqueles considerados

não-humanos abstraídos da proteção do direito e excluídos moralmente da humanidade.

Ao examinar a reação de não-indignação e aceitação de violações do direito à vida

provocadas pelo Estado, Cardia (1995) argumenta que essa não-indignação pode ser o

indicador de um processo coletivo de exclusão moral que tem como consequência a exclusão

de certos grupos sociais da comunidade moral e, portanto, as relações com esses grupos não

mais envolvem princípios de justiça. Eles podem ser humilhados, torturados, maltratados,

assassinados, sem que isso viole as regras consensuais de justiça. Ao contrário, estes

procedimentos são considerados desejáveis e até mesmo indispensáveis.

Este argumento de Cardia pode ser associado e relacionado ao argumento de Caldeira

(2000), segundo o qual persiste na sociedade brasileira uma associação da violência com o

desrespeito aos direitos civis e a uma concepção de corpo que a autora denomina de corpo

incircunscrito:

O corpo é concebido como um locus de punição, justiça e exemplo no Brasil. Ele é concebido pela maioria como o lugar apropriado para que a autoridade se afirme através da inflição da dor. Nos corpos dos dominados – crianças, mulheres, negros, pobres ou supostos criminosos – aqueles em posição de autoridade marcam seu poder procurando, por meio da inflição da dor, purificar as almas de suas vítimas, corrigir seu caráter, melhorar seu comportamento e produzir submissão. (Caldeira, 2000: 370)

Teresa Caldeira chama a atenção para a naturalidade com que os brasileiros veem na

inflição da dor com objetivos corretivos toda legitimidade para intervir e manipular o corpo

de outras pessoas ou o próprio corpo em muitas áreas da vida social.

Todavia, o que todas as intervenções revelam é uma noção de corpo incircunscrito. Por um lado, o corpo incircunscrito não tem barreiras claras de separação ou evitação; é um corpo permeável, aberto à intervenção, no qual as manipulações de outros não são consideradas problemáticas. Por outro lado, o corpo incircunscrito é desprotegido por direitos individuais e, na verdade, resulta historicamente da sua

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ausência. No Brasil, onde o sistema judiciário é publicamente desacreditado, o corpo (e a pessoa) em geral não é protegido por um conjunto de direitos que o circunscreveriam, no sentido de estabelecer barreiras e limites à interferência ou abusos de outros. (Caldeira, 2000: 370).

Embasando-se em algumas interpretações clássicas, como as de Bakhtin e Elias, sobre

a passagem, nas sociedades europeias, da predominância de “imagens grotescas do corpo”

para “imagens de um corpo civilizado”, Caldeira busca mostrar como a formação da

modernidade significou nesse tipo de sociedade a prevalência de novas sensibilidades e

valores culturais. Também correspondeu ao triunfo de novas relações sociais, controle e

sujeição.

Elias descreve esta passagem nos termos de um “processo civilizador” caracterizado

pela formação dos Estados-nações modernos baseados no monopólio legítimo do uso da força

e pelas teorias de cidadania e direitos. Além disso, o processo civilizador descrito por Elias

aponta para o autocontrole das pulsões e do corpo, de modo que a pessoa civilizada aprendeu

a encerrar seu corpo, controlar seus fluídos, evitar a mistura e controlar a agressividade. O

indivíduo moderno europeu aprendeu a circunscrever o corpo (Elias, 1994 apud Caldeira,

2000: 372).

Diante do processo de pacificação interna das sociedades nacionais, que configura o

processo civilizador moderno, conforme a interpretação de Elias, também houve mudanças

em relação à representação da morte e das formas de morrer na vida moderna. A primeira diz

respeito ao prolongamento da vida e da esperança de vida, o que faria com que as pessoas

afastassem de si por um tempo da vida o pensamento da própria morte. Em segundo lugar está

a representação da morte como fim natural do ciclo da vida, construído por meio do progresso

da ciência médica e das práticas de higiene. Em terceiro lugar, a pacificação do modo de vida

e o maior grau de pacificação interna das sociedades possibilitaram pensar a morte

primordialmente como algo não violento, como uma morte pacífica, branda, consequência da

velhice ou do adoecimento, em um leito de hospital (Elias, 2001).

Concomitante ao contexto de formação dos Estados-nações europeus, em que a

violência generalizada, inclusive a punição violenta, foi enterrada com a primazia da “era dos

direitos”, na América Latina ocorriam as marcações dos corpos durante os processos de

colonização e a criação de uma cultura do terror e de um espaço da morte54 (Taussig, 1993)

54 “A inefabilidade é o traço mais marcante deste espaço da morte. (...) O espaço da morte é importante na criação do significado e da consciência, sobretudo em sociedades onde a tortura endêmica e onde a cultura do terror floresce. Podemos pensar no espaço da morte como uma soleira que permite a iluminação, bem como a extinção. De vez em quando uma pessoa a ultrapassa e volta até nós para dar seu depoimento... (...). No entanto este espaço da morte é proeminentemente um espaço de transformação: através de uma experiência de

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que perduram e se reatualizam com o tempo e conforme os novos contextos políticos.

Expressões dessa cultura do terror e da constituição de um espaço da morte, descritas no

contexto do processo de colonização da Colômbia, podem ser encontradas nos relatos dos

familiares de vítima:

Degolado: uma cabeça em decomposição Eles sumiram com o corpo dele. Ele foi degolado. Dois meses depois, eu vim a achar a cabeça no IML, que já estava lá há um certo tempo. Eu estava indo no IML quase todos os dias. Eu fui no IML de Niterói. Aí eles falaram: “Vai no IML de Magé que de repente está lá”. Nem existe IML em Magé. Eu fui lá em Magé. Isso tudo sozinha, porque eu tive uma discussão com eles e eles me juraram de morte. Então, eu não queria chamar ninguém para ir comigo, prezando a segurança da pessoa, não é? Então, andei tudo sozinha. No IML da Mém de Sá eu fui para perder as contas. Aí, um belo dia a menina que sempre me atendia, a [Fulana], falou: “Quando foi mesmo o desaparecimento?”. Eu falei: “Foi no dia quinze de julho”. E ela falou assim: “Olha só, tem uma cabeça, tem umas partes que foram encontradas entre dois e oito dias depois da morte do seu filho, em lugares perto”. Aí ela me mostrou a cabeça que já estava em estado de decomposição. E eu falei assim para ela: “Foi encontrado no dia dezenove, mas não estaria assim”. Aí ela me explicou, porque fica na água. Ela explicou.

Rechaçada como tabu na vida cotidiana, ainda assim a morte insiste em se fazer

presente entre os vivos. Apesar da dissimulação cotidiana da morte, grandes segmentos da

população convivem rotineiramente com a morte violenta em seus espaços de moradia,

resultante de conflitos armados envolvendo disputas entre facções do tráfico, entre estas e a

polícia e, mais recentemente, começou-se a falar da atuação de milícias no Rio de Janeiro e

sua região metropolitana. Policiais, traficantes e milicianos são atores com marcante presença

nos relatos dos familiares que entrevistei e com quem tive contato. Estes três personagens

aparecem sempre nos relatos, acusados pela responsabilidade das mortes de filhos e parentes.

Torturado com um espeto de churrasco A informação que chegou em Samambaia era que os meninos estavam todos sentados, amarrados e nus, e conforme o espeto do churrasco ia esquentando, eles furavam os meninos, colocavam eles no telefone para os traficantes de Samambaia ouvirem e falavam: “Oh, a gente tá assando a carne dos filhos de vocês. Aqui, oh!”. E aí os meninos gritavam, choravam no telefone, e eles ficavam furando os meninos e fazendo aquelas torturas. Picados e jogados para os porcos No decorrer do tempo fui recebendo bastante informação, que eles iam trocar aqueles meninos de lugares, que eles iam usar aqueles meninos quando eles

aproximação da morte poderá muito bem surgir um sentimento mais vívido da vida; através do medo poderá acontecer não apenas um crescimento de autoconsciência, mas igualmente a fragmentação e então a perda de autoconformismo perante a autoridade...”. (Taussig,1993: 25-26-28-29).

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invadissem. Os meninos iam mostrar a cara dos traficantes. E aí houve o comentário que eles tinham sido mortos e picados e jogados para os porcos e os policiais mataram os porcos, fizeram análise e não tinha vestígio de carne humana, não teria como em dois dias aqueles porcos comerem oito pessoas. Pedaço de nariz Maria, eu soube que quando o X9 viu ele saindo de dentro comunidade, quando o caveirão passou, o menino virou pra um dos traficantes que estava dentro do caveirão e falou assim: “�Esse é� da favela, filho de um dos donos da favela. Aí pararam o caveirão e colocaram ele”. Quando pegaram meu filho, diz que um dos chefes do tráfico falou o seguinte: “Ganhei na loteria, pequei o filho do cara”. Aí diz que ele ainda olhou para o meu filho e falou pro meu filho: “Nunca vi negro de nariz fino!”. Porque meu filho tinha o nariz fino, mas fininho. “Nunca vi negro de nariz fino!”. Diz que pegou o cortador do bolso, tirou um cortador de unha, eu não sei, e cortou um pedaço do nariz do garoto. Cortou um pedaço do nariz do meu filho. Quem conta essa história é um dos sobreviventes, um dos meninos que foi liberado, porque foram treze sequestrados. Corpo queimado Aí minha prima foi ligou para lá, para eles, e eles tinham falado que ouviram dizer que tinham tacado fogo nele. A família que falou por telefone, que ouviu dizer. Mas nós não vimos, eu não vi corpo, eu não vi onde está, porque se está dentro do carro tinha que aparecer o carro velho não é, com as ossadas dentro e nós ficamos rodando, aí uma hora eles diziam que tinham mandado o corpo, que tinham trazido ele vivo, os caras disseram que tinha trazido ele vivo para o morro. E nós ficamos procurando e não ficamos sabendo de nada. Aí quando foi no dia vinte e quatro, já seria numa segunda-feira nós saímos, que ela foi na Décima Quarta, aí a moça disse que a gente teria que ir em Caxias na delegacia mais próxima, porque aqui não registrava queixa, porque aqui não fazia parte para lá, de lá.

Em alguns casos, a morte de familiares de maneira violenta como as descritas aqui

pode ser vivida de maneira indiferente; em outros, estas mortes provocam mudanças radicais

na vida dos familiares das vítimas e das pessoas mais próximas, e muitos passam a ver em

estado de “perturbação”. É um evento de enormes proporções para os parentes, porque a

morte mutila, quebra o curso normal da vida e questiona as bases morais da sociedade,

ameaçando a coesão e a solidariedade do grupo ferido em sua integridade e dignidade. Lutar

contra a morte é lutar pela preservação do grupo, a morte põe em risco a vida social. A morte

põe à prova a manutenção ou a destruição do vínculo social, produz um estado afetivo

marcado pela cobrança dos sentimentos que devem ser expressos através de determinados

códigos da emoção (Mauss, 1981; Rodrigues, 1975).

“Deparei com uma ossada espalhada no meu portão” E eu continuei a procurar nas lixeiras... nos lugares de desova, nos manicômios eu entrei em todos os manicômios do Rio de Janeiro, eu fui pras colônias procurar meu filho, falaram que estava no valão eu fui, falaram que viram o corpo vagando no Guandu, eu fui atrás No Guandú não era meu filho e foi passando o tempo, quando

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tinha 4 meses de desaparecido eu tava dormindo uma volta 2 e meia... 3 horas da manhã deram um soco no meu portão e eu peguei, levei aquele susto, pensei até que alguém tava querendo ajuda de alguma coisa, porque as vezes as pessoas me procuram muito entendeu pra pedir oração... Sou pastora, então eu levei o susto e corri, quando eu corri, eu abri o portão e levei um susto, eu deparei com uma ossada espalhada no meu portão. Aí, quando eu deparei com essa ossada, nisso meus filhos, meu marido, todo mundo acordou. Mas como eu sou meio assim, eu gosto, eu assim eu vou logo para resolver as coisas que eu abri o portão e dei de cara com aquela ossada eu dei um grito e bati de novo o portão porque eu fiquei assustada com aquilo ali então eu fiquei dentro de casa aqui e eu não sabia o que fazer. Ai eu comecei a ligar pros vizinhos que moram aqui perto que se eles podiam olhar das janelas, se aproximar para ver o que estava acontecendo aqui fora que eu não sabia o que estava acontecendo. Aí os vizinhos começaram a olhar, não realmente aqui tem uma ossada aqui no seu portão, aqui fora não tem ninguém. “Meu filho não tinha cabeça” Acharam ele dentro d’água. Ele ficou nove dias, porque do dia cinco até o dia treze, dá nove dias, né? Estava em estado de decomposição. Agora, quando eu fui ao IML, depois no dia que era para fazer o enterro, que foi que eu consegui depois... Eu só consegui lá para o dia dezoito... Acho que foi dezoito ou dezessete, um negócio assim, que eu consegui fazer o enterro no [Cemitério do] Caju, porque eu estava resolvendo os negócios. Porque a moça falou que eu não podia enterrar ele com o nome dele porque estava muito em estado de decomposição. Então eu falei: “Então tá.” [A funcionária do IML falou]: “Então a gente vai fazer um exame.” Eu falei: “Eu aceito fazer, porque eu sei que é ele.” Quando eu cheguei ao IML no dia para enterrar, ele estava lá, meu filho não tinha cabeça. “A pessoa não tem como enterrar”

Veio o comentário que mataram ele e sumiram, mas eu digo que é assim: eles não deixam direito nenhum da família enterrar. Entendeu? Porque a primeira coisa que vem na sua cabeça: eu perdi meu pai e minha mãe. Meu pai enterrou normal que nem todo ser humano, teve óbito, minha mãe também, morreram como pessoas direitinhas dentro dos padrões normais. Mas no caso do meu esposo e do sobrinho dele como é que pode? Como é que vai provar? Na justiça que tinha alguém da sua vida, da sua família que viveu e daqui a pouco aquela pessoa sumiu da face da terra. Não é complicado? Outra coisa é você ver aquela pessoa sair, aquilo já esta na sua mente, e ela estava bem. E de repente aquela pessoa desapareceu... E aquilo ali vai ficar assim, até nos meus últimos momentos em que eu respirar de vida, antes de morrer, aquilo ali vai ficar na minha mente: “Puxa, eu vou morrer, vou ser enterrada e aquela pessoa não. Não teve direito”. Então que nem você me perguntou se o processo ia ser o mesmo da dor? Ia. Mas no que eu ia me conformar: que eu enterrei. Você enterra o seu morto, porque você querendo ou não aquele morto ali é seu, é da sua família. Você enterrou, você vai para casa... Mas ali não, não tem isso, não tem. Eles arrancam, como eu falei, sempre os direitos da gente. E a pessoa não tem como enterrar. E você fica pensando assim: “Caramba, como é que pode?”. Até para você falar com as pessoas que fulano morreu é uma coisa engraçada, né? É uma coisa dolorosa, mas você sabe que seus vizinhos vão lá em condolência aquela pessoa.

Nos relatos dos familiares nota-se, expressivamente, o susto e o choque que

desamparam e o desenraizamento que o sofrimento decorrente da morte associada à violência

produz. A forma e o simbolismo das mortes ferem a dignidade da vítima e da família e, mais

do que matar a pessoa, em alguns casos, busca-se, ao que parece, matar a morte. Apagar a

morte e o outro. Isso acontece, por exemplo, nos casos de desaparecimento, em que os

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familiares não têm sequer o direito de enterrar os corpos, ou quando os corpos são mutilados e

esquartejados. Pode até ser que “matar a morte”, “sumir com o outro”, “fazer desaparecer”

sejam para os protagonistas da sociabilidade violenta (Machado, 2004) tão somente formas de

se precaver contra eventuais ações penais. Mas é possível que, pelo menos em uma parte das

mortes violentas, seja mais do que isso. Para os familiares, além de uma mera questão de

logística, a fim de facilitar a “desova” de um cadáver, picotar um corpo produz medo,

aterroriza. É uma forma extrema de matar e inscrever a dor, de controle social através de uma

política do medo.

Um dos traços característicos do processo de desumanização no contexto da “violência

urbana” na Região Metropolitana do Rio de Janeiro expressa-se no simbolismo das mortes

violentas, marcadas pelo excesso, numa espécie de teatro do absurdo. Uma pessoa sem

cabeça é o sinal mais evidente do rompimento com a humanidade comum. A morte ocorre de

tal forma que não se encerra em si mesma, seu impacto extrapola e multiplica-se sob a forma

de narrativas sobre o terror e de sofrimento que se reproduzem ad infinitum. A morte

prolonga-se no terror que se inscreve nos corpos das vítimas, buscando-se diminuir, destruir

ou apagar qualquer resquício de humanidade55.

A violência desproporcional que desfigura os corpos tem o objetivo de fazer ecoar o

medo através do terror. Terror que se expressa na exacerbação dos suplícios e nas formas de

mortes violentas. Na “cultura do terror e no espaço da morte”, escreve Taussig (2003), a

política operante é o medo através da tortura. Taussig chama atenção para o fato de que um

dos traços característicos da “cultura do terror e do espaço da morte” é o excesso da violência

física – a tortura principalmente – no processo de dominação56.

Mutilar, destroçar, reduzir a nada, servir os corpos das vítimas a animais como jacarés,

porcos e leões. Apagar todos os vestígios passíveis de comprovar a existência de uma pessoa.

Insultar e ofender através de uma linguagem do terror. A linguagem do terror é uma

55 Quando me encontrava em fase de conclusão da tese, tomei conhecimento do trabalho da antropóloga colombiana Elsa Blair Trujillo (Blair Trujillo, 2005), intitulado Muertes violentas: la teatralización del exceso. Não me foi possível fazer uso da obra no âmbito desta tese, mas foi possível identificar pontos de interesse comuns que futuramente serão explorados, em novas pesquisas. O argumento geral da obra é que a morte é a expressão máxima da violência na Colômbia, e possui duas dimensões, a primeira, claramente física, observável pelas estatísticas; a segunda, simbólica. Segundo o argumento da antropóloga, a morte violenta se executa e se representa em quatro atos: a execução, a interpretação, a divulgação e a ritualização, onde se apresentam os símbolos que são capazes de reconstruir as significações do ato. 56 Tausssig (1993), ao se debruçar sobre os apavorantes relatos de torturas e massacres a que eram submetidos, por volta de 1910, os índios da região do rio Putumayo, na Colômbia, pelos integrantes das companhias exploradoras de borracha, notou o excesso de violência física. Ele observou que, mesmo correndo o risco de perder parte da mão-de-bra indígena morta diante dos excessos de castigos, torturas e todas as formas de violência física às quais eram submetidos, muitos exploradores de borracha optaram por efetivar a “conquista” através da força e do terror.

Paula Lacerda
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linguagem do excesso: excesso de significado.

Quando um “traficante” mata uma pessoa no “micro-ondas”; quando um policial vira e

pergunta à sua vítima como prefere morrer, se como um cachorro ou um porco; ou quando

milicianos esquartejam e espalham pela favela partes dos cadáveres. Algumas vezes o

simbolismo da morte permite reconhecer a autoria, a forma de matar. Outras vezes não fica

tão claro, mas o importante é que tanto traficantes, como milicianos e policiais, abusam do

excesso da violência e de seus significados. Todos estes atores recorrem à linguagem do

terror, acionam um modus operandi baseado na violação e destruição extrema dos corpos.

O que está em jogo nessas formas de matar são as disputas entre estes atores para ver

quem ditará as regras do jogo. O simbolismo dessas mortes violentas tem pelo menos dois

significados importantes: primeiro, o de destituir a humanidade daquele que morre (a vítima);

segundo, o de colocar-se no lugar de juiz, no lugar daquele que define e julga a humanidade

de cada um e o merecimento ou não de viver ou morrer. As formas de matar são usadas como

provas de força. Destruir os corpos e a linguagem das vítimas, para que ela desapareça do

social.

5.6.1. Os corpos sofredores e a capacidade de suscitar compaixão

Se, por um lado, as formas de matar que infligem sofrimento extremo sobre os corpos

das vítimas têm a intenção de destruir os corpos e a linguagem das vítimas, por outro, os

detalhes sobre os corpos sofredores também têm a capacidade de suscitar a compaixão.

Thomas Laqueur, em seu ensaio intitulado Corpos, detalhes e a narrativa humanitária, lança

uma pergunta e uma reflexão muito pertinentes para se analisar os relatos dos familiares de

vítima sobre as formas violentas das mortes dos filhos e a inscrição da dor e do sofrimento em

seus corpos. O autor se coloca a questão sobre “como os detalhes sobre os corpos sofredores

dos outros suscitam a compaixão, e de que modo esta compaixão passa a ser entendida como

um imperativo de ações mitigatórias” (Laqueur, 1992: 240).

O ensaio trata das origens do humanitarismo do século XVIII e primórdios do XIX.

Nele Laqueur argumenta que, no começo do século XIII, um novo corpo de narrativas passou

a abordar, de forma extraordinariamente minuciosa, os sofrimentos e as mortes das pessoas

comuns, de modo a evidenciar cadeias causais que criassem um elo entre a ação dos leitores e

o sofrimento dos sujeitos. O autor toma o empreendimento estético, o qual analisa a partir de

diversas formas, sob a rubrica de “narrativa humanitária”, caracterizando-o, em primeiro

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lugar, “por sua confiança no detalhe enquanto signo de verdade”. Em segundo lugar, a

narrativa humanitária “fundamenta-se no corpo pessoal, não apenas como o locus da dor ,

mas também como o elo comum entre os que sofrem e os que ajudariam, e com o objeto do

discurso científico através do qual se estabelecem as ligações causais entre um infortúnio,

uma vítima e um benfeitor”. (Laqueur, 1992: 240).

Além de objeto do discurso científico o corpo é também objeto da misericórdia cristã.

Mas, na exortação de Cristo, os atos de vestir, alimentar e abrigar os necessitados são

interpretados no sentido de fazer o mesmo ao seu corpo. O corpo de Cristo serve como elo

entre o sofredor e aquele que pratica o ato de misericórdia. Segundo o argumento de Laqueur,

muito útil para analisar o relato dos familiares de vítima, na narrativa humanitária do século

XVIII e XIX, o corpo individual, vivo ou morto, adquiriu um poder próprio, mas é, sobretudo,

o cadáver, “ainda mais que a carne vivificada”, que “permitiu que a imaginação penetrasse a

vida de um outro” (Laqueur, 1992: 241).

Assim como Boltanski, ao analisar a piedade ou a compaixão que o sofrimento pode

inspirar, Laqueur também apresenta como a dimensão mais importante da política humanitária

o fato de a ação mitigatória “ser representada como possível, eficaz e, portanto, moralmente

imperativa”. A narrativa humanitária oferece um modelo de ação social e, ao oferecer um

modelo de ação social, significa que a morte e o sofrimento poderiam ser evitados. Ao

contrário de uma tragédia ou fatalidade, o sofrimento dos familiares poderia ter sido evitado.

No caso dos familiares, o sofrimento é relatado em detalhes ao serem narradas as

formas violentas das mortes, marcadas pela exacerbação dos suplícios. E é o sofrimento

específico que tem o poder de mobilizar e não a generalidade. Embora o trabalho político de

denúncia consista em transformar o particular em geral, através de um trabalho de

generalização, são os detalhes específicos dos casos particulares que possuem a capacidade de

suscitar a compaixão. Foram os sofrimentos de um homem e não os crimes abstratos da

escravidão, que levaram muitos a aderir à causa abolicionista, afirma Laqueur. O corpo

sofredor, portanto, teve um papel fundamental na exposição do mal e na criação de uma

sensibilidade humanitária. Neste contexto da ação humanitária, os relatos dos familiares

representam formas e possibilidades de produzir sentimentos de solidariedade a partir da dor e

do sofrimento.

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227

5.6.2. Formas de morte que desumanizam

As formas e estilos de matar também dizem muito sobre as formas de vida. Entre as

formas de morte e as formas de vida, o que se tem é a interrogação sobre os limites daquilo

que pode ser representável como humano. Em um fecundo diálogo da antropóloga Veena Das

(Das, 2008) com a filosofia de Wittgenstein, a autora argumenta que a pertinência do

pensamento de Wittgenstein para a sociologia e a antropologia reside na ideia de formas de

vida. A antropóloga indiana escreve que Wittgenstein considera a linguagem como a marca da

socialidade humana, “daí que as formas de vida se definam pelo fato de que são formas

criadas por quem possui a linguagem e para quem possui a linguagem”.

Veena Das retoma uma questão levantada por Stanley Cavell, quando este analisa a

obra de Wittgenstein. Cavell deseja chamar atenção para a absorção mútua, entre o natural e o

social, na ideia de forma de vida, criticando o sentido convencional da ideia de forma de vida

que enfatiza a forma, mas não a vida. A questão de interesse para Veena Das é “o que é que as

sociedades humanas podem representar como o limite?”. Das se questiona sobre como ideias

semelhantes a esta podem ressoar na imaginação antropológica. Consideremos a

argumentação de Das a respeito deste assunto:

Cavell sugiere una distinción entre lo que llama el sentido etnológico u horizontal de forma de vida, y su sentido vertical o “biológico”. El sentido etnológico implica la idea de la diversidad humana, el hecho de que las instituciones sociales, como el matrimonio y la propiedad, varían de una sociedad a otra. El sentido biológico se refiere a las distinciones implicadas em el lenguaje entre “las formas de vida llamadas 'inferiores' o 'superiores', entre, por ejemplo, puyar la comida, quizá con un tenedor, o tomarla con las garras o picotearla. Es el sentido vertical de forma de vida el que, para él, marca el límite de lo que se considera humano en una sociedad, y suministra las condiciones para el uso de criterios como se aplican a los demás. Así, el criterio del dolor, por ejemplo, no se aplica a lo que no exhibe signos de ser una forma de vida – no preguntamos si una grabadora que puede reproducir alaridos está sintiendo el dolor (Das, 2008: 312).

Veena Das, ao longo de seu trabalho, tem empenhado-se em compreender a relação

entre a violência nos contextos domésticos (em especial a violência sexual) e a violência no

contexto extraordinário dos distúrbios ocorridos com motivos políticos, como a Partição da

Índia e a violência contra os sijs depois do assassinato da primeira Ministra Indira Gandhi .

Para pensar a ideia de forma de vida, Das apresenta a história de uma mulher, Manjit, que

sempre aparece em seus textos. Manjit foi raptada e violada durante a Partição da Índia e logo

foi desposada por um parente. O argumento de Das é que, enquanto a violência súbita e

traumática que fez parte da Partição, a qual foi submetido o esposo de Manjit, parece ter a

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228

qualidade de um tempo congelado, do qual é possível falar, algo diferente ocorre com a

violência que passa pelo tecido da vida vivida no universo do parentesco, como se esta tivesse

o sentido de um passado contínuo, indizível. Das considera que os limites horizontais e

verticais são de particular importância para a formulação desta diferença entre um tipo de

violência e outro, um do qual se fala e outro do qual não se fala:

Es esta idea de forma de vida, por ejemplo, en su sentido vertical de probar los criterios de qué significa ser humano, la que creo que está implicada em la comprensión de la relación de Manjit con la no-narrativa de sua experiencia de abdución y violación. Los hombres golpean a sus esposas, cometen agresiones sexuales, las avergüenzan dentro de sus propias creaciones de masculinidad, tales agresiones, sin embargo, son “decibles” en la vida punjabí a través de diversos tipos de gestos performativos y a través de relatos (no quiero decir con esto que se la acepte em forma pasiva – por el contrario, todo el relato de Manjit muestra que se la resiente profundamente –). Comparemos esto con la violencia temible em la cual las mujeres fueran desnudadas y se las hizo marchar desnudas por las calles; o las magnitudes implicadas; o la fantasía de escribir lemas políticos em las partes privadas de las mujeres. Esta producción de cuerpos a través de la violencia, que se vio que destrozaba el tejido de la vida, fue tal que los reclamos sobre la cultura a través de la disputa se hicieran imposibles. Si ahora aparecen palabras, son como sombras rotas del movimiento de las palabras cotidianas... Tales palabras fueron ciertamente pronunciadas y han sido grabadas por otros investigadores, pero era como si el roce con estas palabras y, por tanto, con la vida misma, hubiera sido quemado o anestesiado. La hipérbole en la narración que hace Manjit de la Partición recuerda la idea de Wittgenstein de la conjunción de lo hiperbólico con lo carente de fundamento (Das, 1996: 23 apud Das, 2008: 313).

O que Das está a dizer é que há certos tipos de violência que encontram resistência em

serem incorporados ao cotidiano, porque correspondem a “formas de vida que não são

consideradas como pertencentes à vida”. Acompanhemos um pouco mais do raciocínio de

Veena Das, através de suas próprias palavras, ainda tratando do caso de Manjit.

He tomado este ejemplo en algún detalle porque sugiere, a través de una etnografía, que aun cuando el rango y la escala de lo humano se prueba, se define y se extiende em las disputas características de la vida cotidiana, puede mover-se a través de la inimaginable violencia de la Partición (ejemplos similares pueden hallarse em muchas de las contemporáneas etnografías de la violencia) hacia formas de vida que no se consideran como pertenecientes a la vida en sentido propio. ¿Fue un hombre o una máquina el que clavó un cuchillo en las partes pudendas de una mujer después de violarla? ¿Eran hombres o animales quienes se dedicaran a matar y a coleccionar penes como signos de sus proezas? Hay una profunda energía moral em la negativa a representar algunas violaciones del cuerpo humano, pues estas son vistas como violaciones contra la naturaleza, como algo que define los límites de la vida misma. El alcance y la escala precisos de la forma de vida humana no se conocen de antemano, como tampoco el alcance preciso del significado de una palabra. Pero la intuición de que algunas violaciones no pueden verbalizarse em la vida cotidiana equivale a reconocer que no se puede trabajar en ellas dentro de una cotidianidad quemada y anestesiada. Llegamos a través de una ruta diferente a la pregunta acerca de qué significa tener un futuro en el lenguaje. Creo que los límites de las formas de vida – los límites el los cuales las diferencias dejan de ser diferencias de criterio – se encuentran em el contexto de la vida como se vive y no solo em la reflexión del

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filósofo sobre ella. Estos son los momentos em que podemos estar tan envueltos por la duda sobre la humanidad del otro que el mundo parece perdido. (Das, 2008: 314)

Vários trabalhos etnográficos em contextos de violência permitem colocar em uma

perspectiva comparada as formas de violações do corpo humano que, como assinala Veena

Das, são vistas como “violações contra a natureza, como algo que define os limites mesmos

da vida”. Um desses interessantes trabalhos é o de María Victoria Uribe, sobre a situação da

Colômbia (Uribe, 2008), no qual ela se dedica a sistematizar e analisar os processos de

construção e formalização das memórias acerca do conflito armado e suas modalidades

gestadas na sociedade colombiana. Em um texto já sugestivo pelo título, Mata, que Dios

perdona. Gestos de humanización em medio de la inhumanidade que circunda a Colombia, a

autora busca explicar alguns procedimentos mediante os quais aqueles que têm sido

violentados e marginalizados pela ação da guerra e do conflito armado na Colômbia se valem

de recursos materiais e simbólicos com o fim de lidar com a violência que tem dilacerado suas

vidas. A autora parte inicialmente de uma comparação entre o que ela denomina as

“tecnologias do terror”, presentes nos contextos nacionais da Colômbia e do Sri Lanka, para,

em seguida, se dedicar sobre as “táticas de resistência que buscam a humanizar seres humanos

que foram assassinados no curso do conflito e condenados ao esquecimento” (Uribe, 2008:

172).

Não me deterei aqui em apresentar uma contextualização histórica dos conflitos

internos nos dois países, para não fugir demais da discussão que me interessa aqui. Apenas

gostaria de destacar, para fins comparativos com meu material empírico e minhas questões de

pesquisa, a dimensão da desumanização presente nas formas de violências e, por outro lado, o

trabalho de humanização que as pessoas imersas na violência levam adiante para reconstruir

os mortos como pessoas.

Dentre os vários traços de semelhança entre os dois países, ambos em contextos de

violência política, sobre os quais Uribe centra suas análises, e que interessam diretamente para

as questões que me mobilizam nesta tese, está o papel que tem desempenhado o terror “como

elemento pedagógico e dissuasivo em ambos contextos” (Uribe, 2008: 175). O terror tem sido

usado nos dois países por diversos atores envolvidos nos conflitos armados, com dimensões

macabras e com o objetivo de causar espanto e desordem. No caso do Sri Lanka, os membros

do grupo Janata Vimukti Peramuna, um partido singalês de extrema esquerda, construíram

cenas surrealistas associando elementos dificilmente associáveis para os budistas, como

cabeças decapitadas colocadas ao lado de um reservatório de água e em proximidade a um

templo religioso. Enquanto, na Colômbia, os bandoleros utilizaram a mesma intenção

Paula Lacerda
Paula Lacerda
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desordenadora durante um período de conflitos que ficou conhecido como La Violencia.

Desmembravam os corpos colocando a cabeça decapitada sobre a região do púbis e o pé na

boca. Extraíam as vísceras e as instalavam para fora do corpo, com a intenção de aterrorizar a

partir da introdução de uma desordem absoluta no sistema de classificação corporal (ibidem,

2008: 176).

Em meu trabalho de campo ouvi relatos similares aos registrados por Uribe na

Colômbia. A antropóloga colombiana relata, por exemplo, a história de uma mãe de doze

filhos, que ficou viúva desde que grupos paramilitares levaram seu esposo, o assassinaram e

jogaram seu corpo em um rio. Segundo o depoimento dessa mãe à antropóloga Maria Victoria

Uribe, “O rio Magdalena é o maior cemitério que existe na Colômbia”. Relato semelhante me

foi feito por uma mãe que me disse que se realmente houvesse interesse em investigar os

casos de desaparecimento de pessoas no Rio de Janeiro, seria preciso começar por fazer a

drenagem de rios e córregos próximos às favelas da cidade. Em novembro de 2009, vários

jornais publicaram reportagens que corroboravam o argumento dessa mãe. Durante os

trabalhos de dragagem para a despoluição de um canal na Baía da Guanabora, sete corpos

foram encontrados.

A prática de desaparecer com corpos atirando-os em rios não é nova na Colômbia,

entretanto, “es una práctica deshumanizante que se intensificó com el crecimiento de los

grupos paramilitares, a partir de la década de 1980”, argumenta Uribe (2008: 177). Devido

ao grande número de desaparecidos, os cemitérios de alguns povoados têm uma grande

quantidade de tumbas marcadas com a sigla NN, que indica que aqueles são seres anônimos,

cuja identidade se desconhece. “La trágica figura del NN em Colombia es el prototipo de essa

muerte que no encuentra palabras que le den un sentido” (idem, ibidem: 178).

Além de jogar corpos em rios, o terror também deixou várias fossas comuns, depósitos

de ossos em abismos e aterros e numerosas tumbas na parte traseira dos cemitérios. Segundo

Uribe, não há dados confiáveis sobre o número de desaparecidos nos conflitos armados na

Colômbia, há quem fale em 10.000, outros em 20.000. Algumas pessoas desaparecidas

figuram nas listas oficiais, mas há milhares que figuram apenas na memória de seus

familiares, porque se tratava de gente humilde que vivia nas zonas rurais.

Uribe apresenta dois casos deste tipo de morte diante do qual é impossível encontrar

palavras que lhe deem sentido, e mostra como as pessoas buscam incorporar estes eventos

críticos ao cotidiano. O primeiro caso é a existência de um cemitério onde se observa uma

geografia política das tumbas. Localizado na província de Huila, região onde, desde a década

de 1960, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) instalaram uma de suas

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bases, o cemitério é dividido em dois setores claramente diferenciados. No lado direito

encontram-se várias tumbas com mausoléu e lápide de pedra que conformam um tipo de

grupo. Este setor é frequentado por habitantes do povo, que se ocupam de fazer a manutenção

das tumbas e levar flores aos mortos. No lado esquerdo, coberto pelo mato que cresce

descontroladamente, estão enterrados os mortos anônimos. Uribe escreve em seu texto que, ao

percorrer esta parte do cemitério, foi descobrindo por entre o matagal várias tumbas marcadas

com cruzes de madeira, sobre as quais havia letreiros rudimentares que diziam: “N.N.”, ELN

e FARC. Segundo ela, nessa parte do cemitério haviam sido enterrados os excluídos, os

rebeldes e os marginais, que não faziam parte do pacto social.

Rompendo a lógica binária do cemitério, a antropóloga descobriu em meio às tumbas

correspondentes aos NN duas que tinham lápide de pedra e sobre as quais haviam sido

depositadas algumas flores. Ao perguntar porque essas duas tumbas estavam ali e não do

outro lado, ouviu de uma mulher que ali estava enterrado um guerrilheiro, que morreu durante

os combates do Exército na parte alta das montanhas e cujo corpo, desfigurado, havia sido

arrastado por um mula até as ruas do povoado. Os soldados que o levaram atiraram o corpo na

entrada do cemitério e disseram aos poucos paroquianos presentes que enterrassem o corpo.

Alguns civis pegaram o corpo, costuraram as feridas e o sepultaram. Com o passar do tempo,

o homem que havia sido enterrado, que era baixo, de pele escura e feições indígenas, foi se

transformando no imaginário popular em um homem alto, de olhos claros e cabelos longos, e

aos poucos começou a fazer milagres. Segundo Uribe, uma clara alusão a figura de Cristo.

Na outra tumba, jaziam os restos mortais de uma menina de treze anos que havia sido

esquartejada pela madrasta em um ataque de ciúmes. Igual ao guerrilheiro, a menina também

era milagrosa. Após ouvir a história dos dois casos, a pergunta que Uribe fez foi: “Por que

faziam milagres?”. A resposta que obteve foi: “Porque morreram de morte violenta”. (Uribe,

2008: 179). Nesses dois casos, as relações entre a violência e o sagrado apontam para

operações simbólicas de santificação das vítimas de morte violenta. Seres anônimos

transformam-se em santos e passam a ser devotados por pessoas dos setores populares em

razão do sofrimento e da dor oriundos da morte violenta.

O outro caso narrado por Uribe se passa na província de Antioquia, em um povoado

chamado Puerto Berrío, com cerca de 40.000 habitantes e que tem sido flagelado pelo conflito

social e político, que remonta aos princípios do século XX. O que gostaria de destacar na

história contada por Uribe é a forma como as pessoas lidam com a violência, incorporando-a

ao cotidiano e atribuindo um sentido para situações que, em princípio, destroem todo sentido

e toda linguagem. Em razão dos constantes massacres que assombram a vida cotidiana, Uribe

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define os moradores de Puerto Berrío como um povo de “testemunhas e sobreviventes do

horror”. Produto da violência histórica e da presença de cadáveres que descem pelo rio e

concentram-se em um redemoinho em frente ao povoado, o cemitério da cidade também está

repleto de uma grande quantidade de tumbas anônimas marcadas com a sigla NN. Uma parte

das tumbas abriga indivíduos mortos que pertenceram a organizações gremiais e juntas de

ação comunal e que morreram enredados pelos paramiliatres. Outra parte recebe os corpos de

pessoas mortas em combates entre o Exército, a guerrilha e os grupos paramilitares. São

mortos que foram enterrados sem identificação e, portanto, não têm familiares.

Sus tumbas son rudimentarias e individuales y están ubicadas una al lado de la outra formando un grand muro en el cual se materializa una serie de operaciones de grand contenido simbolico y en las cuales están implicados los habitantes pobres del pueblo. El muro deja ver la existencia de una serie de prácticas de resistencia a la violencia, al terror y al olvido que compromete a quienes están empeñados en construir un nuevo tejido de significaciones sociales profundamente humanizantes Los habitantes pobres de Puerto Berrío adoptan a los NN a partir de marcar su tumba con la palabra “escogido” y desde ese momento el NN tiene dueño. Los adoptantes establecen con los NN un trato de reciprocidad que implica un intercambio: al NN se le pide que cumpla con los deseos de su adoptante a cambio de sus cuidados. Estos se traducen en el arreglo y pintura de la tumba, em la ofrenda permanente de flores y en la colocación de placas conmemorativas que recuerdan los favores recibidos. El pacto entre el NN y su adoptante está sustentado em la creencia popular que obliga a los creyentes a darle descanso a las ánimas mediante rezos que buscan aliviar su sufrimiento. La adopción es temporal y permite al NN que cumple con su papel de benefactor adoptar una nueva identidad y entrar a formar parte del mundo de los vivos. Cuando el ánima le hace favores al rogante, este le promete osario y le da su apellido, lo vuelve parte de sua familia. El osario y el nombre convierten al NN nuevamente en persona. (Uribe, 2008: 181).

María Victoria Uribe realizou várias entrevistas com pessoas que se encontravam no

cemitério, no setor correspondente aos NN. Um dos entrevistados contou que havia marcado

uma tumba com um X, com o fim de pedir favores ao morto. Durante meses esteve pedindo,

sem obter resultados. Decorridos seis meses, chegou outra pessoa, escolheu esse mesmo NN e

obteve resposta aos seus desejos. Outro entrevistado de Uribe tinha escolhido vários NN, aos

quais havia dado um nome. Os habitantes de Puerto Berrío, ao incorporarem os mortos

anônimos em suas vidas, dando-lhes um lugar social, os retiram do anonimato e do

esquecimento.

Em relação às formas das mortes, Uribe remete-se ao livro de Janina Barman, Winter

in the Morning, para destacar um aspecto que Barman considera mais cruel da crueldade:

desumanizar as vítimas antes de destruí-las (Uribe, 2008: 183).

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5.7. As críticas dos familiares a um Estado que não reconhece seus sofrimentos

A dor de quem sofre uma injustiça demanda reparação, mas, para isso, é colocada à

prova. É preciso provar primeiro que se sofre e, depois, que o sofrimento do qual se padece é

injusto. Neste sentido, o trabalho dos familiares consiste em politizar as mortes dos parentes.

Para isso, recorrem à construção da figura do morto como vítima. Afinal, a vítima é aquele

que sofre injustamente. Sofrimento infligido com justiça não produz vítima, portanto, o lugar

da vítima exige uma justificação moral, uma comprovação moral do não merecimento do

sofrimento do qual se padece

O núcleo da crítica dos familiares, ao falarem de suas experiências de sofrimento, é a

distribuição injusta das injúrias e feridas que forças sociais infligem sobre a experiência

humana. O conteúdo da crítica é que as instituições protegem uns e expõem

outros,principalmente quando se trata do exercício do poder policial. A crítica também se

dirige à falta de interesse do Estado em fazer suas instituições funcionarem eficientemente, a

ponto de intervirem e fazerem cessar a dor e o sofrimento dos familiares daqueles que o braço

armado do Estado matou. O Estado não leva a sério suas vidas, tampouco se esforça para agir

em nome das vítimas e dos familiares. Essa é a crítica dos familiares ao Estado.

O que está em jogo, em relação ao sofrimento dos familiares, são os significados

atribuídos e as apropriações políticas de tal sofrimento. Afinal, o sofrimento pode tanto ser

transformado em espetáculo e comercializado como uma mercadoria qualquer, como pode ser

capaz de produzir indignação. Mais do que produzir indignação, os familiares necessitam que

essa possibilidade de despertar indignação venha acompanhada de engajamentos em ações de

solidariedade àqueles que sofrem.

As imagens de sofrimento que emergem das experiências relatadas pelos familiares de

vítima não podem ser compreendidas dissociadas das imagens e discursos que circulam e

associam favela e outros espaços populares (subúrbios, periferias etc.) à violência, ao crime

violento e ao tráfico de drogas. Estas imagens de sofrimento devem ser compreendidas dentro

do contexto político em que a segurança pública é pensada a partir da “metáfora da guerra”,

da política do enfrentamento e da repressão, da suposta guerra às drogas e aos traficantes e da

criminalização e estigmatização dos territórios da pobreza e de seus moradores.

As imagens que circulam abundantemente sobre as favelas e os espaços populares

representam esses territórios como ilegais, repletos de atividades ilícitas e criminosas,

marcados pela presença de traficantes armados até os dentes e, mais recentemente, pela

entrada em cena de milicianos como protagonistas também da violência urbana, acrescida da

Paula Lacerda
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violência policial.

Há um excesso de sofrimentos e experiências traumáticas que emergem dos eventos

críticos que irrompem no cotidiano dos moradores dos espaços populares (sendo a favela o

arquétipo desses espaços). Este excesso de circulação de imagens do sofrimento pode acabar

tornando o espectador insensível. Sobrecarregado pelo grande número de atrocidades, o

espectador pode se deparar com situações de sofrimento em que parece ter muito para ver e

pouco ou nada a fazer. O senso dominante de que os problemas são tão complexos que não

podem ser compreendidos nem enfrentados pode produzir fatiga moral, esgotamento de

empatia e desespero político (Kleinman e Kleinman, 1997).

Que tipos de significados e apropriações podem ocorrer com o sofrimento dos

familiares diante de uma política de segurança pública baseada na guerra e através da qual,

sob o pretexto de pacificar um território, todos os moradores se tornam alvo? Diante de uma

percepção de esgotamento dos mecanismos institucionais de preservação e manutenção da

ordem pública e de uma perspectiva hegemônica que defende o uso da violência policial

como única solução possível, quais as possibilidades dos familiares de vítima ganharem

visibilidade e reconhecimento?

A experiência dos familiares é vivenciada como um drama. Drama e aflição que só

aumentam ao não disporem de recursos (econômicos, políticos, midiáticos etc.) para dar

visibilidade a seus casos, demandar reconhecimento para seus sofrimentos e,

consequentemente, justiça e reparação para os danos sofridos. O sofrimento dos familiares é

um ponto de partida através do qual constitui-se uma esfera moral e uma “comunidade

emocional”. O conteúdo político da denúncia que os familiares tentam fazer circular é o de

que as mortes são produzidas pela forma como o Estado opera nas “margens”57 (Das e Poole,

57 Veena Das e Deborah Poole, juntamente com outros pesquisadores, têm investido na proposta de uma “antropologia das margens do Estado”. A ideia geral é tratar as formas como o Estado se faz e desfaz a partir das “margens”. A proposta das autoras compreende uma crítica às teorias do estado, sugerindo que este se torne objeto de uma inspeção etnográfica. Deste modo, os trabalhos reunidos no livro Anthropology in the Margins of the State compõe-se de etnografias do Estado, que se dedica a analisar as práticas, lugares e linguagens que são consideradas às margens do Estado-nação. A estratégia analítica e descritiva adotada pelos autores foi o distanciamento da ideia consolidada do estado como forma administrativa de organização política racionalizada, que tende a debilitar-se ou desarticular-se ao largo de suas margens territoriais e sociais. As margens exploradas no livro são aqueles lugares onde a natureza pode ser imaginada como selvagem e descontrolada e onde o estado está constantemente redefinindo seus modos de governar e de legislar. Estes lugares são considerados não apenas no sentido territorial, mas também como lugares de práticas nos quais a lei e outras práticas estatais são colonizadas mediante outras formas de regulação que emanam das necessidades prementes das populações, com o fim de assegurar a sobrevivência política e econômica. Os temas do livro foram articulados a partir de três noções de “margens”. A primeira é a ideia de margem como periferia, onde estão contidas aquelas pessoas consideradas insuficientemente socializadas nos marcos da lei. O interesse é analisar as tecnologias específicas de poder, através das quais os estados intentam “manejar” e “pacificar” estas populações, tanto através da força como através de uma pedagogia da conversão que logra transformar “sujeitos rebeldes” em sujeitos legais do

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2004): sem levar em conta a segurança e a proteção dos moradores.

Os familiares buscam criar mecanismos e recursos para denunciar a indiferença e a

desimportância com que as mortes dos entes queridos são tratadas no espaço público.

Denunciam que as operações policiais não se preocupam com a integridade física dos

moradores, de modo que todos se tornam suspeitos e alvos da abordagem policial, e a

possibilidade de terem seus direitos civis violados é sempre grande. O sofrimento dos

familiares, portanto, aparece encapsulado no imbróglio da violência urbana e da segurança

pública.

Estado. Um segundo enfoque das margens gira em torno dos temas da legibilidade e ilegibilidade. As práticas escritas para o estado moderno, através da pesquisa documental e estatística, estão a serviço da consolidação do controle estatal sobre os sujeitos, as populações, os territórios e as vidas. Os autores se posicionam contrários à ideia de que o Estado relaciona-se exclusivamente em termos de sua legibilidade, e argumentam que seus trabalhos apontam “diferentes espaços, formas e práticas através dos quais o Estado está constantemente sendo experimentado e desconstruído mediante a ilegibilidade de suas próprias práticas, documentos e palavras”. Dentre os tipos de práticas consideradas nesse enfoque estão os deslocamentos, as falsificações, as interpretações em torno da circulação e o uso de documentação de identificação pessoal. Este ponto é útil e relevante para pensar a forma como a polícia atua nos territórios da pobreza e a questão da circulação e documentação/identificação dos moradores. Relatos de familiares de desaparecidos apontam que o simples fato de se estar sem o documento de identificação, circulando por áreas consideradas “perigosas” e “suspeitas”, em virtude da presença do tráfico de drogas nessas áreas, pode significar o ponto de partida de um desaparecimento forçado. A terceira noção compreende a margem como o espaço entre os corpos, a lei e a disciplina. O poder soberano exercido pelo estado não é exercido apenas sobre o território, mas também sobre os próprios corpos. As autoras lembram, neste ponto, que muitos antropólogos têm usado a noção de biopoder para rastrear as formas pelas quais o poder estende seus tentáculos pelos ramos capilares do social. Destaca-se, neste caso, a forma de colonização da lei e disciplinamento dos corpos, através do crescente poder da medicina em definir o “normal” e o “patológico”.

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6. ENGAJAMENTO POLÍTICO E MOVIMENTO CRÍTICO: A CONSTRUÇÃO DA

CRÍTICA E DA DENÚNCIA

Neste capítulo, analiso o que chamarei de um evento-ação político. Trata-se do

“Tribunal Popular: o Estado brasileiro no banco dos réus”, um evento organizado por

movimentos sociais ligados à causa dos direitos humanos com o objetivo de denunciar as

violações dos direitos humanos por parte do Estado, seus agentes e suas instâncias. Minha

intenção é descrever e analisar momentos e situações de construção de uma causa, de uma

denúncia, de um protesto. Dedico-me a explorar situações que permitem uma ação coletiva a

diferentes modalidades de vítimas, unificadas pela categoria violência de Estado, na

realização de um evento/ato político. O Tribunal Popular significou politicamente a

construção de um espaço político de fortalecimento de laços de solidariedade e de formulação

e fundamentação de críticas políticas capazes de mobilizar atores políticos na defesa de uma

causa: a luta contra a violência estatal e por justiça.

Nesse sentido, meu objetivo, neste capítulo, é repertoriar os objetos, dispositivos e

críticas políticas mobilizados na ação política. Estou aqui considerando a realização do

Tribunal Popular como uma ação política. Afinal, colocou em ação vários atores políticos com

objetivos igualmente políticos: familiares de vítimas, militantes de direitos humanos,

sobreviventes de chacina, ONGs, movimentos sociais, juízes, advogados, promotores,

deputados, procuradores, imprensa, sindicalistas, pesquisadores, entre outros. Cada um desses

atores corresponde a uma fala, um conjunto de argumentações que fundamenta críticas,

protestos e reivindicações. Busco explorar também questões sobre como são organizados e

construídos dispositivos de denúncia e que tipos de recursos e apoios são mobilizados e

acionados. Que condições precisam ser rompidas para se ter acesso ao espaço público? Como

construir espaços políticos? Que tipos de argumentos e críticas (internas e externas) são

formulados nas acusações? Qual o conteúdo e o significado político das críticas? Como, a

partir destes eventos, circulam experiências e conformam-se atores e práticas políticas?

Mais uma vez categorias centrais de análise utilizadas nesta tese aparecem com toda a

força: vítima, familiar de vítima, sobrevivente de chacina, sofrimento, comunidades morais,

memória e experiência traumática, protesto, reivindicação, reparação, denúncia, práticas

políticas, voz e silêncio, testemunho, emoções.

O Tribunal Popular pode ser entendido como um evento-ação político, organizado por

um conjunto de entidades, instituições, movimentos e familiares comprometidos com a causa

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dos direitos humanos, com a pretensão de unir e organizar a luta das vítimas da violência

estatal, particularmente da violência policial. Analiticamente, podemos distinguir três atores e

esferas de ação, cada um com tarefas políticas diferentes em relação ao evento: (l) entidades e

movimentos de direitos humanos, que podem ser considerados como especialistas em criar

dispositivos de denúncia58; (2) os profissionais do direito que colocam o trabalho e a

linguagem jurídica a favor da construção do caso e da causa; (3) as vítimas, seu sofrimento e

sua luta por justiça, em nome dos quais todos os engajados na atividade se movimentam. O

evento representou o encontro e a passagem entre o tempo do choque e o tempo da política, o

compromisso de engajamento em nome das vítimas da violência estatal.

6.1. A forma caso como dispositivo de denúncia

Elisabeth Claverie tem se dedicado em recentes trabalhos (Claverie, 1988) ao estudo

da constituição da causa como forma social nos séculos XVIII e XIX – debruçando-se mais

precisamente sobre o caso Calas e o caso Dreyfus. Em sua perspectiva, estão estreitamente

vinculados história judicial e história política, a emergência da forma caso e a construção da

concepção republicana de cidadania. Segundo a análise de Claverie, foi Voltaire que, apoiado

nos processos de Calas e de La Barre, inventou o caso enquanto forma política. Foi ele quem

inventou o “tríptico moderno”, hoje banal, no controverso sistema político da esquerda: a

transformação de um processo em um caso e de um caso em causa. A forma caso consiste em

uma operação para manifestar um desacordo valendo-se de uma réplica do processo

judiciário.

Segundo Claverie, o vocábulo caso já existia na época do caso do Cavaleiro La Barre,

podendo ser encontrado nos dicionários do século dezessete e dezoito, sendo que uma de suas

terminologias mais correntes já o ligava à noção de “coisa debatida na justiça”. O que Voltaire

teria feito de novo seria atribuir ao termo uma significação mais ampla ao por em questão um

juiz institucional, seu veredicto e seu raciocínio: ele fez do juiz, o acusador, um acusado.

O sentido analítico que Claverie atribui ao termo caso é o de coisa julgada em tribunal

e então contestada do exterior e, desse modo, oferecida ao julgamento público que, ao

construir um juízo oposto ao oficial, libera as vítimas de suas funções iniciais no processo e

lhes proporciona mobilidade dentro de um sistema até então rígido onde cada um ocupa um 58 Esta ideia das entidades de direitos humanos, principalmente ONGs, como especialistas em criar dispositivos de denúncia foi sugerida por Luiz Antonio Machado da Silva numa das reuniões de pesquisa do CEVIS.

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lugar fixo. O caso faz daquele que é acusado pelo tribunal uma vítima para o público. Desse

modo, há uma inversão: aquele que era o acusador se torna acusado, e a vítima se torna

acusador. Para ambas as partes, acusação e defesa, o justo é sempre o público, em sua

totalidade (Claverie: 1998, 193-94). A noção de caso passou a fazer parte do repertório de

recursos políticos, sendo sempre suscetível a ser mobilizada e de reconstruir situações

diversas, de acordo com o formato recém adquirido e experimentado de uma gramática

política.

Boltanski, por sua vez, a partir dos estudos sobre a forma caso elaborados por

Claverie, argumenta que tomar os casos como objeto e tratá-los como uma forma social,

própria de uma sociedade determinada, cuja história poderia elaborar-se, implica em romper

com a separação sobre a qual descansam as disciplinas dentro das ciências humanas – e

mesmo dentro das ciências sociais –, entre o que remete ao singular e o que remete ao geral,

ou ao individual de um lado e o coletivo do outro, o microssocial e o macrossocial (Boltanski,

2000: 23). O estudo dos casos supõe, portanto, a renúncia a qualificar previamente o objeto de

estudo e estabelecer suas dimensões.

Em lugar de tratar com coletivos já estabelecidos ou com indivíduos isolados,

Boltanski propõe apreender as operações de construção dos coletivos examinando a formação

das causas políticas, ou seja, a dinâmica da ação política. São os processos, portanto, a serem

analisados pelo sociólogo, que estabelecem o caráter individual ou coletivo do objeto. Afinal,

no curso de um caso, é precisamente essa dimensão mais individual ou coletiva, singular ou

geral, que a aposta principal da disputa.

A eficácia do caso enquanto um dispositivo que opera a construção de coletivos

consiste exatamente na capacidade de dessingularização. A ideia do caso como forma de

construção de uma causa, como operação de construção de coletivos, é muito adequada para

pensarmos o que foi a realização do Tribunal Popular. Uma denúncia pública é tanto mais

eficaz quanto mais capaz ela for de provar que concerne a “todo o mundo”. Como argumenta

Boltanski (2000: 25), “é a esse preço que se transforma em uma causa coletiva”.

No curso de um processo de denúncia, tanto seres humanos como coisas são arrolados

nas disputas. São essas relações entre estados-pessoas e estados-coisas que constituem o que

Boltanski e Thévenot (1991) chamam de situação. São essas operações de qualificação das

coisas e das pessoas que interessam acompanhar. Neste sentido, o Tribunal Popular é tomado

aqui como uma situação, e a partir desta situação é possível acompanhar as operações

cognitivas fundamentais das ações sociais cuja coordenação exige um trabalho contínuo de

reconciliação, de designação comum, de identificação. O Tribunal Popular consistiu na

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239

elaboração de uma situação em que se colocam sob análise as dimensões e os princípios de

justiça do Estado.

6.1.1. O Tribunal Popular: o Estado brasileiro no banco dos réus

Milhares de pessoas são julgadas todos os dias e sentenciadas pelo Estado. O

julgamento é feito com advogados de acusação e defesa, promotores, juízes, tribunal de júri,

testemunhas, apresentação de provas etc. O evento de julgar acontece dentro de um espaço

judiciário, um tempo judiciário, com um gesto judiciário e seus atores: o acusado, os

acusadores, o público e o juiz. Mas quem julga os crimes do Estado?

Uma delegação do Rio de Janeiro, com dois ônibus, saiu no dia 03 de dezembro de

2008 para participar das atividades do Tribunal Popular. Nos dias 4, 5 e 6, seguintes, ocorreu

em São Paulo, na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, o “Tribunal Popular: o

Estado brasileiro no banco dos réus”. O Tribunal Popular foi uma iniciativa que nasceu em

2008, com o aniversário de 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, quando

uma série de entidades começou a discutir e refletir sobre as violações dos direitos humanos

cometidas pelo Estado brasileiro e como se organizar neste contexto59. Durante o processo de

organização, várias reuniões e atividades preparatórias foram organizadas em vários estados,

desencadeando vários momentos e situações de mobilização.

59 Toda a reconstrução do Tribunal Popular apresentada neste capítulo foi escrita a partir de minha presença no evento, dos registros que fiz e dos que foram feitos pela organização do evento, sobretudo as “peças” das sessões de instrução, disponibilizadas no blog do Tribunal Popular. A maior parte das citações refere-se aos textos-denúncia apresentados pelos acusadores do Estado Brasileiro durante as sessões de instrução.

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240

Desde maio de 2008, várias entidades de direitos humanos, movimentos sociais,

familiares de vítima de violência policial, sindicatos, bem como militantes de diferentes

estados (São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia, Rio Grande do Sul e Pará – estes

dois últimos estados participaram com casos envolvendo a questão agrária), elaboraram um

conjunto de denúncias baseadas em provas e testemunhas, para apresentá-las no Tribunal

Popular, sob a forma de análises, depoimentos orais, vídeos, peças de processos jurídicos,

laudos periciais. A ideia era reunir uma farta documentação para julgar simbolicamente os

crimes cometidos pelo Estado brasileiro.

A ideia era utilizar a linguagem jurídica do Estado para desconstruir sua própria lógica

de ação. Buscava-se evidenciar como as próprias instâncias do Estado não cumprem a

legislação do Estado democrático de direito. O objetivo do evento era dar forma e visibilidade

às críticas à criminalização da pobreza e à construção de um Estado Penal, segundo o

entendimento dos organizadores, repertoriando os dispositivos jurídicos dos quais o Estado

Figura 2: Logo do Tribunal Popular – O Estado

brasileiro no banco dos réus –

Charge de Diego Novaes

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241

lança mão nessa empreitada. Alguns desses dispositivos jurídicos elencados e denunciados

foram: utilização de interditos proibitórios; classificação de homicídios cometidos por

policiais em categorias como “resistência seguida de morte” ou “auto de resistência”;

desaparecimento de pessoas; prisões ilegais; flagrante forjado, acusação de esbulho

possessório contra movimentos sociais que praticam ocupação de prédios públicos; tipificação

de pequenos delitos como crimes hediondos etc.

A proposta de realização do Tribunal Popular, conforme os organizadores, era analisar

profundamente e julgar alguns “crimes institucionais” emblemáticos inspirando-se em eventos

similares, entre os quais o Tribunal que julgou o Estado estadunidense pelo descaso em

relação às vítimas do Furacão Katrina, em New Orleans, em 2007; além do Tribunal

Tiradentes que, em 1993, julgou os crimes cometidos em nome da Lei de Segurança Nacional,

em evento realizado no TUCA/PUC-SP.

O evento buscou articular diferentes casos emblemáticos, abordando temas como

redução da maioridade penal, violência policial contra adolescentes e jovens pobres e negros,

a questão racial e a racialização da violência e a criminalização dos movimentos sociais. De

um modo geral, intentava-se tecer os fios que ligam um caso a outro, a fim de mostrar que tais

situações não constituem fatos isolados, específicos, mas que existe uma articulação entre

elas. Visava-se, portanto, construir uma denúncia pública e para isso, como argumenta

Boltanski (2001), é necessário passar da singularidade à generalidade, evidenciar como o

mesma lógica se opera em todas as situações, de modo a transformar um caso isolado em um

procedimento rotineiro, planejado, que se repete em muitas situações.

Ainda seguindo com Boltanski, no âmbito da ação cívica, a denúncia põe em relação

os atores envolvidos na situação – os actantes – e visa oferecer à opinião pública a injustiça

cometida por um grupo contra outro. No caso do Tribunal Popular, tinha-se em vista focalizar

o olhar sobre a lógica violenta e autoritária do Estado, através, sobretudo, da denúncia do uso

que este faz das instâncias e mecanismos jurídicos e policiais para violar direitos. Em torno da

condição de vítima de violência do Estado buscava-se, através da realização do Tribunal

Popular, conformar uma “comunidade moral e política” capaz de agregar pessoas e

movimentos, e impulsionar a denúncia dos casos e a luta por justiça e reparação.

Para levar a cabo a tarefa de formular a crítica e a denúncia do Estado brasileiro como

um todo, suas práticas violentas e o julgamento simbólico por meio de leis internacionais e

nacionais que ele mesmo reconhece, o Tribunal Popular foi organizado com as seguintes

características, formato e procedimentos: partindo-se de casos ocorridos recentemente nos

estados participantes do evento, buscava-se relacioná-los entre si, por meio de vasta

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documentação e testemunhas, procedendo aos passos de um julgamento convencional com

sessões de instrução (acusação, apresentação de provas, dados, testemunhos, defesa etc.),

chegando à sessão final com um veredicto referente ao Estado brasileiro como um todo,

sintetizando traços comuns presentes em todos os casos. Foram realizadas quatro sessões de

instrução para acusação, com a seguinte organização:

1ª Sessão de instrução: Violência estatal sob pretexto de segurança pública em

comunidades urbanas pobres. O caso principal apresentado foi o Caso do Complexo

do Alemão, no Rio de Janeiro.

2ª Sessão de instrução: Violência estatal no sistema prisional: a situação do sistema

carcerário e as execuções sumárias da juventude negra pobre na Bahia.

3ª Sessão de instrução: Violência estatal contra a juventude pobre, em sua maioria negra:

os crimes de maio de 2006 em São Paulo e o histórico genocida de execuções

sumárias sistemáticas.

4ª Sessão de instrução: Violência estatal contra movimentos sociais e a criminalização da

luta sindical, pela terra e pelo meio ambiente.

Sessão final de acusação e defesa.

Como a ideia era criar um espaço de encontro e, ao mesmo tempo, de denúncia e

protesto, era preciso mobilizar apoios, engrandecer a causa, buscar parcerias e adesões. Era

preciso lançar mão de todas as vias e recursos possíveis e acessíveis para a realização do

evento. Nesse sentido, foram convidados observadores internacionais com o objetivo de que

estes contribuíssem na circulação internacional das denúncias, mobilizassem e reforçassem

apoios internacionais, como por exemplo, o da Anistia Internacional. Também foi

providenciado o registro audiovisual das atividades do Tribunal, com o objetivo de produzir

materiais de divulgação e de trabalho político.

Há que se destacar a dimensão emocional transbordante nos relatos apresentados por

familiares e sobreviventes de chacinas policiais, sendo que a parte do testemunho mais

chocante é sempre a descrição das formas macabras como os filhos foram mortos. As

situações experimentadas a partir dos relatos traumáticos dos familiares das vítimas podem

ser definidas como catarses da dor. Um desses momentos ocorreu quando uma mãe, cujo

filho foi morto na Fundação Casa, em São Paulo, narrava a história de seu filho. Esta história

está registrada nos autos da sessão de instrução III, que tratou do tema da morte de jovens na

Fundação Casa. Eis o registro:

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Sidnei Moura Queiroz, de 18 anos, estava internado na Unidade de Tatuapé, da Febem, e morreu queimado de forma misteriosa. Segundo nos relatou sua mãe, Solange, no dia 20/08/2003, por volta das 20 e 30, a psicóloga ligou para sua casa comunicando que havia acontecido algo grave com o Sidnei. Pediram para que ela comparecesse no outro dia à Febem. Ao chegar o diretor a fez esperar para só depois avisar que seu filho estava internado no Hospital do Tatuapé. Ao chegar lá ela levou um choque quando ficou sabendo que ele estava com 70% do corpo queimado, sendo que o pescoço, a linha da cintura, os pés, os braços e as unhas pareciam carvão. Durante o tempo em que esteve hospitalizado foi vigiado por funcionários da Febem. O médico disse que Sidnei havia engolido muita fumaça. Sidnei estava em um quarto isolado e de castigo e a Febem diz que foi ele que ateou fogo ao colchão, em uma tentativa de suicídio. Mas a tragédia aconteceu sobretudo porque os outros adolescentes, vendo fumaça saindo do quarto, pediram ajuda aos funcionários que levaram um bom tempo para encontrar a chave, o que teria sido fatal.

Enquanto narrava essa história para o público presente no Salão Nobre da Faculdade

de Direito do Largo São Francisco, a mãe não aguentou e acabou desmaiando. Muitas das

pessoas presentes naquele salão nobre enxugavam as lágrimas enquanto era providenciado o

socorro. Os momentos mais fortes do evento eram sempre quando se tratava da participação

dos familiares de vítima. Eram relatos e mais relatos de dor.

Diante da rica sistematização dos casos que fizeram parte das sessões de instrução do

Tribunal Popular, com documentos, informações, relatos de testemunhas etc., considero

importante explorar essa riqueza de dados. Começarei por registrar e destacar as denúncias

referentes a execuções sumárias praticadas por agentes do Estado em São Paulo. Na “peça de

instrução”, as execuções sumárias foram classificadas em três categorias:

1. Execuções sumárias feitas por policiais a serviço, "legalizadas" com a desculpa de um enfrentamento e da reação de legítima defesa, caracterizada como RSM (resistência seguida de morte); 2. Execuções sumárias realizadas por "grupos de extermínio", policiais em trajes civis, às vezes por cima das fardas, encapuzados, fato que geralmente a imprensa costuma classificar de "chacina"; 3. Desaparecidos, pessoas que foram vistas pela última vez dentro de um camburão da polícia ou sendo abordadas por policiais, cujos corpos nunca apareceram até hoje, o que constitui um crime continuado de ocultamento de cadáver.

Gostaria de, entre essas três modalidades, destacar a categorização do desaparecimento

como um tipo de extermínio. As denúncias sobre desaparecimentos de pessoas, relacionados a

práticas de extermínio, são difíceis de serem feitas pela falta de provas. A polícia sempre lança

mão do argumento de que “não tem corpo não tem crime” e os familiares, que geralmente são

os principais reclamantes, não têm como comprovar os rumores que chegam aos ouvidos. Em

que pesem as dificuldades de publicização, várias denúncias de desaparecimentos de pessoas

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relacionados a grupos de extermínio começam a circular com mais frequência60. Durante a

realização do Tribunal Popular vários desses casos de desaparecimento praticado por policiais

foram relatados. Selecionei quatro desses casos para apresentar aqui:

Desaparecimento após prisão Rodrigo Isac dos Santos, de 17 anos, foi visto pela última vez dentro da parte traseira de um camburão da Polícia Militar (viatura Vtr-M 31114, do 31º Batalhão da Polícia Militar) na madrugada de 19 de novembro de 2001, em uma via secundária na altura do nº 3000, da Av. Miguel Ackel, em Guarulhos, conforme duas testemunhas oculares, um amigo e uma vizinha. Voltava com cinco amigos de uma discoteca, encontraram outros rapazes, quando chegaram os policiais militares. Todos correram, mas Rodrigo foi preso. A prisão de Rodrigo foi precedida pelo assassinato de seu irmão Leandro Isac dos Santos, de 19 anos, jamais esclarecida. Tendo contraído dívidas com traficantes locais, começou a ser extorquido por eles e por policiais, até que foi baleado em uma loja próxima à sua casa. Rodrigo ficou bastante revoltado com o envolvimento da polícia, que depois desse assassinato passou a provocar a família cercando a casa e ameaçando. O corpo de Rodrigo nunca apareceu, apesar dos esforços do pai, Sr. Elias Isac dos Santos, que passou 40 dias buscando pessoalmente o cadáver do filho, percorrendo IMLs e lugares de desova de cadáveres. Foi o Sr. Elias que encontrou partes do corpo de seu filho, já em decomposição, e pôde reconhecê-lo por um par de tênis. Os avanços na investigação foram todos devidos ao trabalho do Sr. Elias. Mas os exames de DNA, feitos de forma a misturar restos mortais de várias pessoas, deram negativo. No Inquérito Policial Militar um dos policiais testemunhou ter visto Rodrigo no camburão. Os outros seis envolvidos nesse desaparecimento chegaram a ficar presos por 11 dias, em dezembro de 2001. Mas foram soltos porque a Justiça Militar rejeitou o pedido de prisão preventiva deles. Na Corregedoria da Polícia Militar tentaram desacreditar a denúncia do Sr. Elias. Só três anos depois o DHPP chamou o Sr. Elias para prestar depoimento sobre o desaparecimento. Durante muito tempo, antes e depois da morte de Rodrigo, a família sofreu perseguições e provocações por parte de policiais. Hoje, sete anos depois, o processo se encontra ainda em fase de instrução na Vara do Júri de Guarulhos. Enterrado numa vala comum como “indigente” Maycon Carlos Silva desapareceu no dia 15 de Maio de 2006, no bairro da Casa Verde (zona norte de São Paulo), perto da quadra da Escola de Samba Império da Casa Verde, e seu corpo foi enterrado numa vala comum como "indigente". Documentos da Ouvidoria da Polícia apontam fortes indícios de que Silva foi levado por PMs da Força Tática. Após insistência por parte de seus familiares, a Polícia de São Paulo descobriu que Maycon era um dos 38 mortos no Estado que haviam sido enterrados sem identidade. Até hoje, o governo não diz quem são 22 dos enterrados como "indigentes". Desaparecido após abordagem policial da Rota Paulo Alexandre Gomes, 23 anos, saiu de sua residência, no dia 16/05/06, por volta das 21 horas, dizendo que ia para casa da namorada Janaína. Foi visto pela última vez, na mesma noite, por volta das 23 horas, bem próximo à sua casa, no bairro de

60 Gostaria uma vez mais de deixar claro que não estou considerando que desaparecimento corresponde sempre a práticas de extermínio. Há várias modalidades de desaparecimento de pessoas, esta é apenas uma entre várias. Estou falando de uma delas, porque é a que me possibilita uma perspectiva empírica e analítica para discutir alguns temas de meu interesse como: polícia, violência, sofrimento, ação política, comunidades morais, circulação de relatos da dor, construção da categoria vítima e familiar de vítima, entre outros.

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Itaquera, zona leste da capital. Segundo a versão da testemunha Leandro, por volta deste horário, Paulo o teria chamado para ir a uma biqueira (ponto de vendas de droga), localizada bem próxima do local. Afirma Leandro que Paulo entrou em uma viela, da favela Vila Progresso, rumo à biqueira. Antes de Paulo entrar foi possível que ambos visualizassem uma viatura da ROTA entrando na mesma favela, por uma rua paralela. Mesmo vendo a viatura Paulo teria entrado na viela. Leandro ficou aguardando Paulo por cerca de 30 minutos. Ao ver a viatura da ROTA sair da favela, saiu do local, mesmo sem Paulo. Desde então, Paulo não foi mais visto. Sem dúvida por estar com medo, Leandro negou esta versão na Corregedoria de Polícia e na Delegacia de Desaparecidos. Nestes órgãos ele referiu que esteve, sim, com Paulo por volta das 23 horas do dia 16/05 e depois o deixou no ponto de ônibus para que o mesmo fosse à casa da namorada, local onde nunca chegou. Outros amigos de Paulo afirmam que souberam por Leandro que naquela noite Paulo, Leandro e outros amigos foram abordados por uma viatura da ROTA. Alguns correram, dentre eles Leandro e Paulo, que, desde então, nunca mais foi visto. As investigações da Corregedoria afirmam ainda que, na noite de 16/05/06, nenhuma viatura da ROTA esteve nesta região, fato facilmente contestável tendo em vista que a própria família viu ao menos duas viaturas circulando na rua onde residem. Os familiares de Paulo procuraram o 103º D.P, a Corregedoria da Polícia Militar, a 2ª Delegacia de Desaparecimento de Pessoas do DHPP, além de terem feito buscas, sem lograr êxito, em ao menos 6 IMLs da capital e região metropolitana. Em 12/06/06 participaram de uma reunião com o secretário de Segurança Pública, Ronaldo Marzagão, que não deu nenhum resultado. Desaparecidos após detenção policial No dia 14/05/06, Diego Augusto Sant’anna, 15 anos, negro, desapareceu no Bosque Maia, região central da cidade de Guarulhos, em companhia de Everton Pereira dos Santos, de 26 anos. Ambos foram abordados e detidos por policiais militares da Força Tática. Diego cumpria medida sócio-educativa de prestação de serviço à comunidade, em virtude de ter se envolvido em um furto de vasos de bronze, no cemitério. Com relação a seu desaparecimento, alguns de seus amigos disseram ao Sr. Agostinho, pai do adolescente, que o sequestro de Diego e Everton foi realizado por policiais da Força Tática. Tais amigos, ao serem ouvidos na Corregedoria da Polícia Militar, negaram a versão contada ao pai. Seguramente com medo, disseram aos policiais que Diego e Everton teriam ido para Santos. Everton tinha passagem pela polícia por envolvimento com drogas, era dependente químico e, à época de seu desaparecimento, estava em liberdade condicional. Na data do desaparecimento dos dois amigos, Everton saiu de casa por volta das 16 horas. Saiu sozinho, sem a companheira Daniela. Esta teria ido ao encontro de Everton, no mesmo dia, por volta das 20 horas. Quando chegou no Bosque ficou sabendo que Everton e Diego tinham sido abordados e levados pela viatura da Força Tática. Segundo as informações fornecidas pela família, Everton já estaria visado por estes PMs que já tinham-no ameaçado após um desentendimento. Os pais de Everton referem que, quando souberam que o filho foi detido, estiveram na 1ª Delegacia de Polícia. No local receberam informações desencontradas. Um policial lhes disse que Everton não estava detido ali. No entanto, outro referiu ao pai que Everton estava, sim, detido no local e que no dia seguinte ele seria levado ao Centro de Detenção Provisória. No dia seguinte, 15 de maio de 2006, o Sr. João esteve no local e desesperou-se ao saber que o filho não estava na Delegacia. Segundo os policiais, sequer esteve detido ali na noite anterior. As duas famílias das vítimas registraram queixa na Delegacia de Polícia, na Corregedoria da Polícia Militar, na 2ª Delegacia de Desaparecimento de Pessoas do DHPP, além de terem feito buscas, sem lograr êxito, em IMLs da capital e região metropolitana. Em 12/06/06 participaram de uma reunião com o secretário de Segurança Pública, Ronaldo Marzagão, que não teve nenhum resultado.

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6.1.2. Crítica interna: questionando o uso da linguagem jurídica

Alguns poderiam questionar a eficácia de se realizar um Tribunal Popular para julgar

simbolicamente o Estado. Que eficácia teria julgar apenas simbolicamente? Esta é um crítica

que ouvi durante o evento, vinda de certos “militantes de esquerda”, que questionavam a

eficácia e a estratégia do movimento social usar a mesma linguagem jurídica do Estado para

criticá-lo. Estes críticos defendiam um outro formato de evento, argumentando que a justiça

popular não deve adotar os mesmos instrumentos e a mesma linguagem jurídica de um Estado

burguês.

Nesse sentido, foi questionada e criticada, por exemplo, a centralidade dos operadores

do direito (advogados, juízes, promotores, desembargadores, procuradores, defensores

públicos) na participação do evento. Esta crítica sustentava que, se é para usar a ideia do

Tribunal, que pelos menos então os lugares na hierarquia fossem quebrados. Reclamava-se

que as vítimas continuavam ali enquanto vítimas, nem simbolicamente mudavam de status.

6.1.3. Crítica externa: crime de Estado ou crime dos agentes do Estado

Outra crítica que registrei no debate público que a organização e realização do

Tribunal Popular suscitou foi de origem principalmente acadêmica, e sustentava que não tem

cabimento falar em crime de Estado, porque Estado não comete crime. Quem comete crime

são os agentes do Estado. Consequentemente, o empenho em realizar denúncias internacionais

e recorrer a dispositivos jurídicos internacionais, como a Organização dos Estados

Americanos (OEA), é pouco eficaz porque as sanções que estes mecanismos podem aplicar

são apenas ao Estado e não aos agentes do Estado. Esta crítica procede só em parte, porque se

é verdade que estes Tribunais Internacionais, como a OEA, não podem julgar, condenar ou

punir indivíduos, ou pelo menos têm tido essa atribuição até o momento, por outro lado, eles

podem condenar o Estado a pagar indenizações e recomendar a implementação de políticas

reparatórias, e as indenizações financeiras são parte das reivindicações dos familiares. Outra,

de primeira ordem, é a condenação penal de cada um dos envolvidos nos crimes.

A reparação financeira não deve ser entendida como um pagamento pelos mortos de

cada um. Não é disso que se trata, ou pelo menos não deveria ser. A reparação financeira deve

fazer parte de um programa de ações que vise reconstruir o mundo daqueles que foram

abalados por experiências desestabilizadoras de violência. Reparar significa recompor os

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vínculos sociais e os laços de pertencimento a uma comunidade moral e política. Recompor

equivalências perdidas.

6.1.4. A dimensão pedagógica do evento: espaço de troca, aprendizado político e

denúncia

Para além dessas críticas, há também as conquistas. Sem dúvida uma das mais

importantes foi ter conseguido unir uma diversidade de setores sociais, políticos e

profissionais, de vários estados do país. Ex-presos políticos, familiares de presos comuns de

hoje, familiares de vítima de violência policial, sobreviventes de chacinas, sindicalistas,

jornalistas, pesquisadores etc. Foi um espaço para trocar experiências, socializar e politizar a

dor. A Comissão Organizadora do Tribunal, em um texto intitulado “A importância do

Tribunal Popular: o Estado brasileiro no banco dos réus”, ressalta que “algumas atividades do

Tribunal permitiram estreitar laços entre ex-presos políticos, vítimas e familiares que

sofreram a violência do Estado durante a ditadura militar e familiares e vítimas da violência

do Estado hoje”.

O período de organização do evento, o evento em si, os materiais produzidos

apontaram caminhos que possam se desdobrar no fortalecimento dos laços, da luta e do

trabalho político dos familiares de vítima. Entre eles, os organizadores do evento destacam:

(1) a construção de uma rede nacional e local de familiares que sofreram violações do Estado;

(2) utilização do Site do Tribunal Popular para servir como uma rede de divulgação de

denúncias, de dados e textos referentes aos temas tratados pelo Tribunal; (3) importância do

registro e da construção de formas pedagógicas de socializar e difundir o que ocorreu no

Tribunal através da edição de vídeos e livro.

Nota-se, assim, uma pretensão pedagógica na realização do evento, porque foi um

espaço para os familiares trocarem experiências de como levar as denúncias adiante. O evento

propiciou um espaço importante para a elaboração das experiências traumáticas originárias

dos eventos críticos relacionados ao repertório da violência urbana. Foi um espaço para a

politização das mortes provocadas pela violência do Estado, sobretudo através das instâncias

jurídicas e policiais.

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6.2. Circulação e atualização da metáfora da guerra

No início deste capítulo me referi à discussão coletiva que um grupo de pesquisadores,

ao qual pertenço, tem estimulado sobre a ideia de um dispositivo ou regime de desumanização

para pensar a sociabilidade urbana na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. O argumento

que busquei apresentar era o de que a desumanização pode ser pensada como um estágio de

mediação entre um regime de força e um regime de justiça. A desumanização seria marcada

pela supressão de princípios de equivalência (Boltanski e Thévenot, 1991), portanto, de

justiça, passando as relações sociais a serem coordenadas pela força. Também expressei o

entendimento de que a desumanização é o repertório da linguagem da guerra.

Na construção desse argumento, retomei um texto de Veena Das sobre os significados

da segurança no contexto da vida cotidiana, no qual ela manifesta sua preocupação com a

circulação de metáforas da guerra e de como a linguagem da guerra, do conflito armado, é

normalizado, a fim de evitar qualquer discussão sobre o respeito aos direitos do cidadão. Em

nome da segurança constrói-se a política e, ideologicamente, um contexto em situação de

emergência, de excepcionalidade, e faz-se a guerra. Um caso exemplar nesse sentido,

apresentado no Tribunal Popular, foram as operações militares no Complexo do Alemão, no

Rio de Janeiro.

O Rio de Janeiro foi apresentado no Tribunal Popular como um laboratório militar. A

apresentação da denúncia da situação do Rio de Janeiro, particularmente da Chacina do

Complexo do Alemão, ficou a cargo dos advogados do Instituto de Defensores dos Direitos

Humanos. A denúncia foi apresentada sob a forma de um processo contra crime de lesa-

humanidade e estruturada da seguinte forma: inicialmente uma contextualização histórica das

práticas institucionais voltadas para a gestão violenta da pobreza e o aprimoramento de uma

política militarizada de segurança pública; apresentação dos fatos; cobertura do caso pelos

veículos de comunicação; apresentação dos direitos violados; e recomendações.

A contextualização dos advogados do IDDH buscou apresentar o processo histórico de

construção da política de segurança baseada na guerra. Para isso, destacou-se uma série de

mecanismos, dispositivos, momentos e decisões que foram legitimando publicamente uma

política pautada na suspensão de direitos em nome da segurança diante de situações de

guerra: auto de resistência, gratificação faroeste, caveirão, mandado de busca e apreensão

genérico, realização de megaoperações policiais. Vale a pena retomar de perto alguns pontos

da denúncia elaborada pelos advogados do IDDH:

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No plano da racionalidade governamental do Estado do Rio de Janeiro atualmente impera o uso oficial de um discurso que prega a necessidade de proteção da sociedade em situação de guerra. Tal ótica militarizada se baliza na demonização das áreas pobres da cidade e na glorificação do combate armado contra o atual “inimigo público” do Estado - o tráfico de drogas. Desta forma, calcula-se que “os despojos de ‘guerra’ – as armas, a morte do inimigo, o território – encontram-se muito acima, como supostos resultados da proteção da vida”. – como tão bem exemplifica a declaração feita ao jornal “O Globo”, em 27 de fevereiro de 2003, quando da implementação do programa “Operação Rio Seguro”, pelo então Secretário de Segurança Pública, Sr. Josias Quintal: “Nosso bloco está na rua e, se tiver que ter conflito armado, que tenha. Se alguém tiver que morrer por isso, que morra. Nós vamos partir pra dentro.

Três meses depois da declaração de Josias Quintal, foi a vez do novo secretário de

segurança pública, Anthony Garotinho, ganhar destaque na edição do dia 11 de maio de 2003,

do jornal O Globo, comemorando abertamente a morte de mais de 100 pessoas em menos de

15 dias no cargo. A eficiência policial era medida então em termos de quantidade de mortos

de supostos “bandidos”. Em 2004, o então vice-governador Luiz Paulo Conde, Secretário

Estadual de Meio Ambiente, propõe a construção de muros de concreto para cercar as favelas

da Rocinha, do Vidigal e do Parque da Cidade, visando “conter a violência” das ruas nas áreas

nobres da cidade.

O texto-denúncia registra uma série de declarações de autoridades emitidas diante de

situações e episódios de violência que marcaram a cidade, alguns casos e situações

repercutindo internacionalmente. O governo Sérgio Cabral é identificado como o ápice da

institucionalização de uma política de segurança baseada na guerra e no extermínio. Em maio

de 2007, após uma operação policial na Vila Cruzeiro que deixou 16 mortos e mais de 50

pessoas feridas por balas perdidas, o Secretário de Segurança Pública José Mariano Beltrame

declarou: “Não se pode fazer um omelete sem quebrar alguns ovos” e que “o remédio para

trazer a paz, muitas vezes, passa por alguma ação que traz sangue”. O então Secretário

Nacional de Segurança Pública, Luiz Fernando Corrêa, com referência ao modelo de política

criminal adotado no Rio de Janeiro, disse que “os mortos e os feridos geram um desconforto,

mas não tem outra maneira”61.

Em 15 de abril de 2008, após uma operação policial que contou com 180 agentes e

deixou nove mortos e sete feridos, o Chefe do Comando de Área da Capital, o coronel da

Polícia Militar Marcus Jardim, declarou: “A PM é o melhor inseticida contra a dengue.

Conhece aquele produto, [inseticida] SBP? Não fica mosquito nenhum em pé. A PM é o

melhor inseticida social”62.

61 Jornal do Brasil, 29/06/2007, pp. A8. 62 Folha de São Paulo, 16/04/2008, “Nove morrem em ação do Bope; coronel diz que PM do Rio é o 'melhor

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6.3. Premiação por bravura: a “gratificação faroeste”

A racionalidade do modelo se segurança pública baseado na guerra aparece na adoção

de vários instrumentos e recursos considerados eficientes na “cruzada contra o mal”. Vale,

inclusive, premiar por bravura a capacidade de matar dos policiais. A eficiência é medida no

número de mortes. Quanto mais mortes, mais eficiência: esta tem sido a lógica da segurança

pública. Em novembro de 1995, o governador do Rio de Janeiro, Sr. Marcelo Alencar, criou,

através do Decreto 2.753/95, a “Gratificação por Encargos Especiais”, uma gratificação

monetária para os policiais que mais matassem. Com este decreto, o policial que participasse

de uma operação com morte de supostos criminoso era premiado por seu trabalho.

Essa gratificação ficou conhecida como “gratificação faroeste” e foi extinta em 1998.

Enquanto esteve em funcionamento houve um aumento mensal grande do número de civis

mortos pela polícia, sendo que, em 1996 e 1997, passou de 15 para 30. Uma pesquisa do

ISER, citada pelos advogados no texto-denúncia, apontou que em muitas dessas mortes não

houve confrontos, foram execuções, com tiros na nuca, sem perícia ou testemunhas.

6.4. O mandado de busca e apreensão genérico

Outro dispositivo acionado pelo Estado para fazer a repressão e o controle social das

favelas e seus moradores é o “mandado de busca e apreensão genérico”. Segundo a

argumentação dos advogados: “Consiste na extrapolação do direito processual brasileiro pelo

poder judiciário que age em cumplicidade com a política de segurança do Governo Estadual

do Rio de Janeiro”. E ainda: “Na rotina de operações policiais nas favelas, o mandado de

busca apreensão é formulado pelos juizes em termos tão gerais e abstratos que permitem à

polícia, antes mesmo de se ter iniciado o inquérito policial, fazer a revista de qualquer

morador e invadir qualquer residência sem individualização e especificidade, contrariando

todas as garantias constitucionais que regem o ordenamento jurídico brasileiro”.

Para legitimar o uso arbitrário de um instrumento jurídico recorre-se novamente à

noção de “circunstâncias excepcionais”. A justificação do abuso deste instrumento legal é

exemplificada no primeiro mandado deste tipo, numa decisão do juiz Alexandre Abrahão Dias

inseticida social'”, Malu Toledo. Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u392620.shtml.

Paula Lacerda
Paula Lacerda
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Teixeira, contra a Comunidade da Grota, que assim se expressou:

“Frise-se, por derradeiro, que a medida excepcional está calcada em diversas denúncias semelhantes, provavelmente endereçadas por cidadãos humildes e honestos da comunidade local que, certamente indignados com os desmandos do Elias Maluco e sua gangue, bem como o triste envolvimento de parca parcela de policiais corruptos com estes elementos espúrios, busca o único meio de reagir à impunidade crescente neste país; ou seja, denunciar as escuras! Destarte, este grito de socorro e justiça promovido pelo povo deve ser atendido COM URGÊNCIA E RIGOR, não só pelos policiais honestos, mas também e, principalmente, pelo Poder Judiciário, que ciente e consciente das dificuldades investigatórias dos incorruptíveis policiais e da fragilidade dos cidadãos que se aventuram em “denunciar” o lixo

genético que lhes amedronta, cala e mata, não pode simplesmente encastelar-se de forma alienada para discutir meras filigranas jurídicas”. (Grifos dos advogados, conforme o texto-denúncia apresentado na I Sessão de Instrução)

Atenção aos termos utilizados pelo juiz para se referir aos traficantes: “lixo genético”.

Diante do “grito de socorro” dos cidadãos que se aventuraram em “denunciar”, o juiz

argumenta que não se deve ficar preso a “filigranas jurídicas”. Por filigrana jurídica, neste

caso, pode-se entender todos os direitos de todos os moradores do Alemão. Em nome do bem

destes moradores, seus direitos podem ser violados pelo Estado, a fim de erradicar o “lixo

genético”.

As declarações das autoridades e as decisões judiciais são carregadas de preconceito.

No mesmo diapasão do juiz que emitiu esse mandado genérico de busca e apreensão, o

governador Sérgio Cabral também aproveitou o momento para emitir suas opiniões. Em 25 de

outubro de 2007, numa entrevista ao Portal G1, o governador declarou que defendia a

legalização do aborto como forma de controlar a violência nas favelas. Segundo ele, as

favelas seriam “verdadeiras fábricas de marginais”. Estas declarações de Cabral não foram

incluídas no texto-denúncia, mas vale a pena recuperá-las:

A questão da interrupção da gravidez tem tudo a ver com a violência pública. Quem diz isso não sou eu, são os autores do livro "Freakonomics" (Steven Levitt e Stephen J. Dubner). Eles mostram que a redução da violência nos EUA na década de 90 está intrinsecamente ligada à legalização do aborto em 1975 pela suprema corte americana. Porque uma filha da classe média se quiser interromper a gravidez tem dinheiro e estrutura familiar, todo mundo sabe onde fica. Não sei por que não é fechado. Leva na Barra da Tijuca, não sei onde. Agora, a filha do favelado vai levar para onde, se o Miguel Couto não atende? Se o Rocha Faria não atende? Aí, tenta desesperadamente uma interrupção, o que provoca situação gravíssima. Sou favorável ao direito da mulher de interromper uma gravidez indesejada. Sou cristão, católico, mas que visão é essa? Esses atrasos são muito graves. Não vejo a classe política discutir isso. Fico muito aflito. Tem tudo a ver com violência. Você pega o número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e Copacabana, é padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é uma fábrica de produzir marginal. Estado não dá conta. Não tem oferta da rede pública

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para que essas meninas possam interromper a gravidez. Isso é uma maluquice só63.

A utilização de qualificativos como “lixo genético” (para referir-se a “traficantes de

droga”) e “fábrica de marginais” (para referir-se às favelas), já dá uma ideia da inversão que

ocorre no tratamento jurídico das mortes consequentes da violência policial. Quem passa a ser

julgado é o morto. Melhor seria, conforme o tratamento epidemiológico proposto por Cabral,

evitar o nascimento do favelado (bandido potencial), mas como isso não é possível, o que

resta a fazer é matar, para isso recorre-se à figura do bandido e à política do confronto. Se

“bandido bom é bandido morto”, dentro desta mesma lógica, policial bom, por sua vez, é

policial que mata bandido. Deste modo:

No tratamento jurídico dado às mortes pela Polícia, nos poucos casos em que os fatos chegam a ser julgados, o ponto chave da defesa costuma estar centrado em mostrar que o falecido era realmente um bandido, o que aumenta as possibilidades de absolvição por parte do júri. Em função disso, muitas vezes quem é julgado é o morto e não o autor.

Na construção dos argumentos da denúncia, os advogados retomam algumas

pesquisas com o objetivo de demonstrar, com vários dados, como todas as conclusões

apontam para um uso desmedido e exacerbado da letalidade policial. Um dos dados

apresentados é o de que a polícia do Estado do Rio de Janeiro é a polícia que mais mata e

mais morre no mundo. Mesmo sendo preocupante o número de policiais mortos, mais

alarmante ainda é o número crescente de civis mortos pela polícia64 e as ilicitudes na produção

da legalidade dessas mortes.

63 Portal G1 – Cabral defende aborto contra violência http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,MUL155710-5601,00. 64 Na época de realização do Tribunal Popular (4, 5 e 6 de dezembro de 2008) ainda não havia sido inaugurada a primeira Unidade de Polícia Pacificadora/UPP. A primeira UPP foi inaugurada no Santa Marta, em 19 de dezembro de 2008. A questão da UPP corresponde a um novo capítulo na discussão sobre segurança pública/linguagem da guerra/pacificação, que será realizada em outra ocasião.

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Ano Número de Civis Mortos Pela Polícia (Autos de resistência)

2007 1330 2006 1069 2005 1104 2004 983 2003 1.195 2002 897 2001 596 2000 427 1999 289 1998 397

Fonte: Instituto de Segurança Pública (ISP)

Uma pesquisa de Ignácio Cano (1988), que analisou as mortes entre 1993 e 1996,

estudou as necropsias dos cadáveres das vítimas da intervenção policial. Os indicadores

médico-legais confirmaram o uso excessivo da força e a ocorrência de execuções sumárias:

• 46% dos cadáveres apresentavam 4 ou mais perfurações de bala; • 61% dos mortos tinham recebido ao menos um disparo na cabeça; • 65% deles mostravam ao menos um disparo na região posterior (pelas costas); • um terço das vítimas tinha lesões adicionais às provocadas por arma de fogo, o que poderia

indicar que muitas foram golpeadas antes de ser executadas; • foram encontrados 40 casos de disparos à queima-roupa, feitos à curta distância, o sinal mais

evidente de execução.

A pesquisa de Cano indica que o excesso da violência policial, o uso abusivo da força,

ocorre de maneira mais dramática nas favelas do que no restante da cidade. As vítimas fatais

costumam ser homens jovens, pardos ou pretos, e pobres. Após os incidentes armados, as

vítimas são geralmente levadas para o hospital, mesmo mortas, numa tentativa de produzir a

legalidade da morte alterando a cena do crime e inviabilizando a perícia. Os fatos são

apresentados na versão dos policiais como confronto e há relatos de que os policiais colocam

armas nas mãos das vítimas para sustentar a tese de que houve troca de tiros, simulação do

conflito. Essa versão – a dos policiais – é a privilegiada no sistema de justiça criminal.

Os estudos de Verani (1996) e Cano (1999), citados na argumentação da denúncia,

apontam para outro aspecto importante referente ao desdobramento jurídico dos casos. Os

dois autores comentam que os casos de autos de resistência são sistematicamente arquivados,

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a pedido da promotoria, mesmo quando há fortes indícios de execução. Duas irregularidades

jurídicas contribuem para esta situação:

1. A abertura, em alguns casos, de sindicância em vez de inquérito, para apurar esse tipo de mortes. A sindicância não tem validade jurídica e constitui um expediente que pode ser arquivado administrativamente, sem intervenção de um juiz; 2. A aplicação de uma espécie de “arquivamento preventivo” nesses casos, nos quais o promotor pede arquivamento, apesar de existir prova de materialidade e indícios de autoria. A rigor, a apreciação de excludentes de ilicitude caberia ao juiz ou ao jurado, como de fato acontece quando um civil mata outro em legítima defesa.

6.5. A criminalização de ativistas e defensores de direitos humanos

Os responsáveis pela acusação do Estado também destacam no texto da denúncia a

desqualificação que é feita por parte das autoridades públicas das críticas à violência policial

por parte de entidades defensoras dos direitos humanos. Segundo a denúncia, uma das formas

de criminalizar os defensores de direitos humanos tem sido historicamente a associação destes

ao tráfico de drogas, como ocorreu em junho de 2007, com relação à operação no Complexo

do Alemão.

Em 24 de julho de 2007, situação semelhante ocorreu quando três jovens foram

detidos quando pichavam o símbolo dos jogadores Pan-Americanos, em um muro do Colégio

Pedro II, no centro do Rio de Janeiro. O símbolo do Pan foi apelidado oficialmente de Cauê, e

batizado ironicamente pelos críticos à segurança pública do governo Sérgio Cabral como Caô.

Para protestar contra a segurança pública, os pichadores desenharam um fuzil no símbolo do

Pan. Os três presos foram autuados por apologia ao crime e pichação, e um deles, ativista

israelense com cidadania britânica, foi ameaçado de deportação.

A imagem do Cauê armado com um fuzil foi uma criação do cartunista Latuff, como

forma de expressar uma crítica à militarização da segurança pública e de replicar as acusações

de que os movimentos sociais que se opunham à realização dos jogos Pan-Americanos não

passam de grupos que fazem apologia ao crime. No desenho de Latuff, Cauê segurava um

fuzil ao lado do carro blindado da Polícia Militar, conhecido como caveirão.

A charge do Cauê armado passou a ser utilizada nos vários protestos organizados pelos

movimentos sociais contra a realização dos jogos Pan-Americanos. Por iniciativa da Rede de

Comunidades e Movimentos Contra a Violência, a charge foi parar em camisas, cartazes,

faixas e grafites espalhados pela cidade.

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Figura 3: Cauê armado – charge do cartunista Latuff criticando

a militarização da segurança pública durante o período de realização

dos jogos Pan-Americanos no Rio de Janeiro, em 2007,

e utilizada nos protestos políticos dos movimentos sociais.

A circulação e repercussão pública do desenho do Cauê armado irritaram o governador

Sérgio Cabral e o então prefeito César Maia. A charge chegou a virar matéria do repórter

André Zahar, do jornal O Dia, em 12 de julho, com o título “Pandemônio: sem-teto espalham

imagens de Cauê de fuzil e vendem camisetas”. A reportagem publicada pelo jornal O Dia

tinha um tom criminalizante, o que levou a Rede de Comunidades e Movimentos Contra a

Violência a enviar uma nota pública de esclarecimento, defendendo-se das acusações

apresentadas pelo jornalista e solicitando que fossem feitas as devidas retificações65.

Desde o início do mês de junho de 2007, a Rede Contra a Violência vinha produzindo

e distribuindo camisetas com a charge do cartunista Latuff e com os dizeres: “Jogos

Panamericanos/Rio de Janeiro 2007/Sol e lucros para os ricos/Violência contra os pobres”.

Embora tudo tivesse sido abertamente divulgado no site e em outros locais, no dia 20 de

junho, policiais civis da Delegacia de Repressão aos Crimes Contra a Propriedade Imaterial

aproveitaram a chegada de um ativista da Rede, que trazia um lote de camisetas, para autuá-lo

em “flagrante”, por violação de direito autoral (artigo 184 do Código Penal). O ativista que

65 A íntegra da nota da Rede está incluída nos Anexos.

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chegava com as camisas, outra que se encontrava na sala da Rede e outro que chegou depois

foram então levados para a DRCPIM. Os três foram autuados, prestaram depoimentos e, em

seguida, foram liberados. Após a detenção, os policiais chamaram a imprensa e exibiram as

camisas apreendidas.

No dia 23 de julho, uma semana após a abertura do Pan, o cartunista Latuff foi

intimado a prestar depoimento na Delegacia de Repressão aos Crimes contra a Propriedade

Imaterial (DRCPIM). Em uma entrevista, publicada no jornal da Associação Brasileira de

Imprensa, o cartunista Latuff assim se expressou sobre o caso:

Não cheguei a ser maltratado pela Polícia. Fui intimado e resolvi comparecer à Delegacia no mesmo dia em que os policiais foram à minha casa. Mas duas pessoas da ong foram presas e indiciadas por uso indevido de marca. Para o Poder Público, quem luta por direitos humanos nas favelas está a serviço do tráfico. Na minha opinião, o fato se desenrolou baseado em dois motivos: o primeiro, porque eu não trabalho para jornalões; o segundo porque se trata de repressão a uma ong que denuncia violência contra moradores de favelas. Fica então evidenciado que a liberdade de expressão está ligada à conta bancária de quem se expressa. (Jornal da ABI, nº 321, setembro/2007).

Na ocasião desses fatos, a Comissão de Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da

Associação Brasileira de Imprensa (ABI) chegou a aprovar e publicar uma moção de

solidariedade ao cartunista Latuff. A nota destaca que o fato de os policiais aparecerem na

casa do cartunista de camburão representou visivelmente uma tentativa de intimidação, e as

acusações de violação de direitos autorais, por ter usado o mascote do Pan para denunciar a

violência policial, não teriam o menor fundamento, já que outros cartunistas também

utilizaram a marca para fazer “gozações” e nada aconteceu.

6.6. A política do caveirão: o blindado da polícia que diz que vai levar a alma das pessoas

A política do caveirão também é apresentada como um dos dispositivos mais

emblemáticos da política de segurança que vem sendo implementada, desde a década de 90,

pelos governos do Estado do Rio de Janeiro. Trata-se de um automóvel militar de combatente

utilizado pelas Polícias Militar e Civil do Rio de Janeiro nas incursões às favelas e outros

espaços populares compreendidos como “focos de perigo” em razão da presença de

“bandidos”. Contra o terror dos bandidos é oferecido aos moradores desses territórios o terror

da polícia.

Este automóvel, que se tornou o símbolo da política do confronto do governo Sérgio

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Cabral, também ficou conhecido como blindado e pacificador. É equipado com alto-falantes

e duas camadas de blindagem (a máxima permitida no Brasil). É munido de uma torre de tiros

rotatória capaz de girar 360 graus e dispõe de cavidades laterais para tiros estratégicos. Possui

janelas retangulares, de tamanho reduzido e à prova de bala. O para-brisa do caveirão leva

uma chapa de aço que serve de proteção durante tiroteios. O automóvel é totalmente preto,

com vidros fumê e marcado pelo símbolo sinistro do Bope: uma caveira empalada numa

espada sobre duas pistolas douradas. Expressa de longe o confronto, a guerra e a morte.

Inicialmente utilizado apenas pelo Batalhão de Operações Especiais (BOPE), o “blindado”

agora vem sendo usado em vários Batalhões de Polícia Militar e pela Coordenadoria de

Recursos Especiais (CORE) da Polícia Civil. O caveirão tem capacidade para até 12 pessoas

com armas pesadas. Os pneus são revestidos com uma substância glutinosa que impede que

sejam furados. As quatro portas travam e não podem ser abertas pelo lado de fora. Dois

alçapões de escape, um na torre e outro no piso, podem ser usados em emergências.

Figura 4: Mãe com filho baleado por policial e o caveirão ao fundo.

Charge do cartunista Latuff utilizada por movimentos sociais em campanhas

contra o uso do caveirão pela polícia do estado do Rio de Janeiro.

A Anistia Internacional chegou a elaborar um relatório em 2006 intitulado “'Vim

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buscar sua alma': o caveirão e o policiamento no Rio de Janeiro”. Logo na página de

introdução, consta o seguinte depoimento de uma moradora do Caju sobre o caveirão: Imagine um carro oficial blindado, tendo como distintivos uma caveira e uma espada, com policiais que entram atirando nos postes de iluminação primeiro e depois nos moradores do seu bairro... isto é o caveirão. Um garoto de 11 anos teve a cabeça arrancada do corpo com os tiros que partiram do caveirão. E nós, moradores, ainda temos que provar que foi a polícia. (Moradora do Caju, Rio de Janeiro, 2 dezembro 2005. In: Anistia Internacional. Relatório “Eu vim buscar sua alma”. Rio de Janeiro/Londres, 19/07/2006)

Ainda segundo informações do Relatório da Anistia Internacional, o modelo inicial do

caveirão custou R$ 135.000,00, e, apesar do alto valor, tem sido adquirido por governos de

outros estados, como Santa Catarina, que, em 2004, realizou a compra de um blindado.

Planejado para ser usado em situações “especiais”, de “exceção”, seu uso tem praticamente se

tornado regular.

A Anistia Internacional afirma ter recebido relatos de moradores dando conta de que o

caveirão entra em favelas atirando a esmo e colocando a vida das pessoas em risco, que têm

que sair correndo para escaparem com vida. O trecho a seguir, do Relatório da Anistia,

descreve um dia de terror na favela de Acari, protagonizado pelo caveirão:

No dia 1° de setembro de 2005, a favela de Acari viveu um dia de terror, quando o BOPE montou um ataque-relâmpago com o caveirão. De acordo com relatos de alguns membros da comunidade, durante o ataque-relâmpago, um rapaz de 17 anos, Michel Lima da Silva (Michelzinho) levou um tiro na cabeça. Seu corpo foi então içado num gancho no caveirão que transitou pela favela, exibindo o cadáver e exigindo dinheiro pela entrega do corpo. Sancleide Lima Galvão, de 46 anos, morreu cerca de uma hora depois de Michelzinho. Ela estava sentada nos degraus de sua loja de roupas com o neto no colo, e seu filho, que estava tocando violão, ao seu lado. Quando o caveirão virou a esquina, uma bala atingiu Sancleide no peito, por pouco não atingindo seu neto. Ela havia batalhado incansavelmente para melhorar as condições no bairro Fim do Mundo na extremidade da favela de Acari. (Anistia Internacional. Relatório “Eu vim buscar sua alma”. Rio de Janeiro/Londres, 19/07/2006)

Há registros de que os alto-falantes, localizados na parte externa do veículo, anunciam

aos moradores a chegada do caveirão e se comunicam com frases das mais variadas, como:

“Senhores moradores, estamos aqui para defender a comunidade. Por favor, não saiam [de

casa], é perigoso”; “Crianças, saiam da rua, vai haver tiroteio”; “Se você deve eu vou pegar

sua alma”; “Ei, você aí! Você é suspeito. Ande bem devagar, levante a blusa, vire... pode ir”.

O tom e a linguagem agressivos e hostis têm provocado efeitos traumatizantes nas favelas,

principalmente nas crianças, que passam a sofrer com problemas emocionais e psicológicos; o

medo do “bicho papão” tem sido substituído pelo medo do caveirão. Há inclusive no relatório

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referências a casos de crianças que urinam na roupa toda vez que vêem um caveirão. Ao final

do Relatório, a Anistia Internacional resume suas principais preocupações:

• O caveirão muitas vezes é usado em operações que fazem uso excessivo de força,

infringindo o Artigo 3 do Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei, das Nações Unidas, que afirma que só se deve usar força quando estritamente necessário e que “a força usada não deve ser desproporcional aos objetivos legítimos a serem alcançados”.

• O caveirão é usado como parte de uma estratégia geral de policiamento discriminatório para intimidar comunidades inteiras, através de tiroteios a esmo, o uso agressivo de megafones e o simbolismo ameaçador (o emblema da caveira).

• Longe de dar proteção, o caveirão é detestado pelas comunidades nas quais é usado, que temem e ressentem a forma insensível e desrespeitosa do policiamento dos seus bairros.

• As operações que usam o caveirão colocam em perigo as vidas dos residentes, vários dos quais foram mortos ou feridos por balas atiradas pela polícia de dentro do caveirão.

• O uso de equipamento de estilo militar agravou ainda mais a corrida às armas entre a polícia e as gangues de traficantes, contribuindo para a escalada da violência e dos abusos dos direitos humanos.

• O caveirão oferece anonimato aos policiais, tornando muito mais difícil a instauração de processos contra eles. (Anistia Internacional. Relatório “Eu vim buscar sua alma”. Rio de Janeiro/Londres, 19/07/2006)

A Anistia Internacional conclui o relatório “clamando” que as autoridades estaduais

deixem de usar o caveirão para matar indiscriminadamente, intimidar comunidades inteiras e

realizar operações policiais violentas, envolvendo o uso excessivo da força.

6.7. As megaoperações policiais e o excesso de uso da força

Outro dispositivo que compõe o repertório da militarização da segurança pública e dos

territórios da pobreza, e que aparece denunciado pelos acusadores do Estado, de seus agentes

e suas instâncias, é a realização de megaoperações policiais sob pretexto de repressão ao

tráfico de drogas. Mais uma vez o excesso da força aparece como alvo da denúncia. São

operações marcadas por uma grande quantidade de agentes das forças de segurança estadual e

federal (incluindo as polícias militar, civil e federal), com uso de armamentos de guerra e com

ampla cobertura midiática, muitas vezes sendo transmitidas em tempo real.

Essas megaoperações, segundo as autoridades da segurança pública, têm como

objetivo “uma ação pacificadora para erradicar a força armada”. Nota-se aqui mais uma vez a

presença da linguagem da guerra e da erradicação (Das, 2008a) como justificação para

intervir de maneira violenta. Dois exemplos recentes são as megaoperações ocorridas no

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Complexo do Alemão, no dia 27 de junho de 2007, e na favela da Coréia, em 17 de outubro

de 2007. No primeiro caso houve uma matança, enquanto o segundo notabilizou-se pelas

imagens, exibidas em tempo real, que mostravam um policial atirando de um helicóptero e

matando um “traficante”, que corria como um animal em perseguição para não ser abatido.

Os advogados argumentam, no entanto, que há um paradoxo pelo fato de que estas

“ações para erradicar a força armada” acabam na maior parte das vezes produzindo ações

policiais com alta letalidade, e acionam novamente um artigo do sociólogo Ignácio Cano,

intitulado “Política de segurança a sangue e fogo”, publicado no jornal O Globo, do dia 24 de

agosto de 2007, em que este apresenta as seguintes ponderações e questionamentos:

Não se discute que um dos principais legados que um governo poderia deixar no Rio seria libertar as comunidades carentes do domínio dos narcotraficantes e de qualquer outro grupo armado irregular. O que está em discussão é como e a que custo. Operações como as do Alemão precisam responder a três questionamentos. O primeiro é se elas são realizadas dentro da lei. O segundo é se elas compensam os danos e a insegurança (balas perdidas, crianças sem escola etc.) causados àquelas comunidades as quais, em tese, se pretende proteger. O terceiro é que tipo de plano existe para garantir que, depois de intervenções policiais desse porte, que não podem ser mantidas indefinidamente, o controle do tráfico não será retomado.

Para reforçar a linha de argumentação de que o padrão “pacificador” das

megaoperações policiais tem mobilizado um grande número de policiais e deixado um

elevado saldo de mortos, sempre apresentados como “traficantes”, é apresentada também

pelos autores da denúncia uma seleção de casos noticiados pela mídia, todos referentes ao ano

de 2007:

Operação policial no Rio deixa 5 mortos O Globo OnLine 06/03/2007

Tiroteio no Complexo do Alemão pára trânsito e deixa dois mortos

O Globo On Line 15/05/2007

Madrugada violenta deixa dois mortos no Complexo do Alemão O Globo On Line 23/06/2007

Desvio de fuzis: 500 PMs poderão depor O Globo OnLine 15/07/2007

No terceiro dia de ações policiais depois do Pan, 20 morrem em 24 horas segundo IML

O Globo OnLine 01/08/2007

Jovem baleado na Grajaú-Jacarepaguá será enterrado na quinta-feira

Portal G1 01/08/2007

Polícia mobiliza 500 homens, mata duas pessoas e prende 9 Folha de S. Paulo, 11/08/2007

Mãe que levava filhos para escola é morta durante operação policial no Jacarezinho

O Globo On Line 15/08/2007

Megaoperação em Vigário Geral deixa cinco mortos e sete feridos

O Globo OnLine14/08/2007

Operação policial deixa 4 mortos no Rio Terra Notícias 15/08/2007

Moradores do Muquiço dizem que jovens foram executados O Globo OnLine 24/08/2007

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Mãe acusa PMs de matar portador de deficiência mental no Rio de Janeiro

Folha de S. Paulo, 28/08/2007

Sete morrem em ação policial no RJ O Tempo, 04/09/2007

Suspeita de envolvimento com tráfico de drogas leva 52 PMs para a cadeia

O Globo, 17/09/2007

Operação da PM no Complexo do Alemão deixa três feridos O Tempo, 20/09/2007

Ação policial deixa três mortos no Complexo do Alemão Agência Brasil 26/09/2007

Operação policial deixa sete suspeitos mortos em favela do Rio Bol Notícias 03/10/07

Operação da polícia termina com 2 mortos e 2 presos no Rio Folha On Line 03/10/2007

Megaoperação policial em favelas do Rio deixa 12 mortos O Globo On Line 17/10/07

Polícia mata Thiaguinho, traficante acusado de assassinar policial e universitária

O Globo On Line 31/10/2007

Operação policial em Vigário Geral deixa dois mortos O Globo On Line 31/10/07

Operação do Bope na Favela da Rocinha deixa mais de duas mil crianças sem aula

O Globo On Line 31/10/07

Operação deixa três mortos em Realengo O Globo On Line 01/11/07

Os autores da denúncia ressaltam ainda que, além dos mortos nas megaoperações,

amplamente divulgados nos veículos de comunicação, há inúmeros homicídios e

desaparecimentos que não são registrados pela mídia, mas que fazem parte do cotidiano dos

moradores de favelas.

Para mostrar a desproporção entre o número de civis mortos pela polícia e o número

de policiais (militares e civis) assassinados, são citados dados divulgados pelo jornal Folha de

São Paulo, em 16 de julho de 2007. Segundo estes dados, na gestão Sérgio Cabral, a

proporção de civis mortos para cada policial assassinado é quatro vezes maior que a média

internacional. Para cada grupo de 41 pessoas mortas pelas força de segurança do Estado morre

um policial. Segundo a reportagem da Folha de São Paulo, a Secretaria de Segurança Pública

diz reconhecer que o número de pessoas mortas pela polícia é alto e que isso se deve à adoção

de uma postura “mais ativa” do governo.

A reportagem traz ainda a opinião de especialistas consultados pelo jornal. José

Vicente da Silva Filho, coronel da reserva da PM, ex-secretário nacional de Segurança Pública

e diretor do Instituto Pró-Polícia, observa que: “Quando passa da taxa de dez civis mortos

para um policial e, principalmente, acima de 20 para um, não há dúvidas de que há excesso de

força e execuções”. Outra entrevistada pela reportagem, a socióloga Sílvia Ramos, do Centro

de Estudos de Segurança e Cidadania, da Universidade Cândido Mendes (Cesec), afirma que

“o caso [de uso de força excessiva pela polícia] do Rio é não apenas o mais grave do Brasil,

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como o mais grave do mundo. Só a polícia do Rio mata mais que a polícia dos EUA inteira,

que matou 375 em 2006, em uma população de 300 milhões de pessoas. A polícia de Portugal,

país com população semelhante à do Rio, matou só uma pessoa em 2006, contra 1.063 do

Rio”.

6.7.1. A megaoperação policial no Complexo do Alemão

O caso mais emblemático das megaoperações policiais no Rio de Janeiro, apresentado

no Tribunal Popular foi a megaoperação policial no Complexo do Alemão, no dia 27 de junho

de 2007. Segundo informações apresentadas pelos advogados no texto-denúncia e na sessão

de instrução, participaram da megaoperação mais de 1300 (mil e trezentos) militares, civis e

membros da Força Nacional, e resultou na morte de 19 pessoas, além de nove feridos,

incluindo crianças. O massacre do dia 27 de junho de 2007 representou o ápice de um período

marcado pelo confronto sistemático, sendo que, entre o dia 2 de maio e 17 de agosto de 2007,

foram contabilizados 44 mortos e 81 feridos durante as operações policiais militares no

Complexo do Alemão. A taxa de mortos é realmente digna de uma guerra, mas uma guerra

onde as baixas são apenas de um lado.

As operações suscitaram indignação, repúdio e repercussão internacional. Uma

comissão de entidades e defensores de direitos humanos esteve na comunidade da Grota, no

Complexo do Alemão, no dia 28 de junho de 2007, um dia após a operação policial. Os

integrantes da comissão se encontraram com presidentes das associações de moradores de

diversas “comunidades” que formam o Complexo do Alemão, que os acompanharam numa

caminhada pelas ruas das favelas. O Complexo do Alemão é formado por 16 favelas e está

localizado na zona norte do Rio de Janeiro.

Durante o trajeto, o que se viu foi um cenário de guerra. A metáfora da guerra havia

sido efetivada, deixara de ser metáfora para se tornar política realizada. Foram observados

“rastros de sangue pelo chão, colchões e fios utilizados para remover corpos, carros

queimados, casas incendiadas e lojas saqueadas”. Os moradores também foram ouvidos e

relataram a violência a que foram submetidos no dia anterior.

Nas imediações do local conhecido como Areal, região onde ocorreu o maior número de mortes, um morador informou que, durante a entrada da polícia, ele, sua companheira e seus três filhos, ainda crianças, estavam escondidos dentro do banheiro da sua casa tentando se proteger dos tiros; em determinado momento eles perceberam uma fumaça, correram para sala para ver o que se tratava, sentindo então

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que seus olhos e boca começavam a arder. Uma bomba de pimenta tinha sido jogada dentro da casa. O morador contou que foram horas de pânico enquanto eles estavam sufocados com a fumaça da bomba de pimenta, pois não podiam sair de casa por causa do tiroteio na rua. Ele relatou que ligou o ventilador e colocou seus filhos para respirar próximos ao aparelho em uma tentativa de aliviar a ardência dos olhos e bocas das crianças. Diferentemente do que divulga a mídia sobre a suposta aprovação dos moradores do Complexo do Alemão em relação da megaoperação realizada, o que a comissão que visitava o local ouviu foram depoimentos unânimes de desaprovação e medo: “Você não imagina quando a polícia [es]tá aqui o que a gente passa”. O morador que teve sua casa violada pela bomba de pimenta mostrou ainda um saco plástico com mais ou menos 40 cartuchos de balas colhidos na frente da sua casa após o conflito. Um dos mais graves relatos foi feito por uma moradora que viu policiais invadirem sua residência – estava escondida na casa de uma vizinha na companhia de seus cinco filhos – e espancarem com um fio duas crianças que lá se encontravam, quase as matando. As crianças que apanharam ficaram escondidas dentro do banheiro, os policiais mataram um outro rapaz na sala da casa com uma faca e depois teriam colocado os outros dois para limpar o local, não deixando marcas do que havia acontecido. Relatou que os policiais roubaram seu celular, aparelho que lhe auxiliava em seu trabalho. Ela encontrou cartuchos de balas dentro de casa. Segundo a moradora, “eles são abusado demais, eles não respeitam...”

Segundo a denúncia, muitos moradores relataram que policiais colocaram armas na

cabeça de crianças e jovens, “perguntando se sabiam o que acontecia com quem era do bando

do Tota”. De acordo com os moradores, os policiais teriam entrado no Complexo do Alemão

gritando “eu quero sangue”. Isso levou ao entendimento, por parte dos denunciantes, de que

ocorreram execuções sumárias. O balanço da megaoperação policial no Complexo do Alemão

constatou 19 pessoas assassinadas, com 78 tiros desferidos, sendo que 32 foram disparados

pelas costas das vítimas.

A Comissão de Direitos Humanos da OAB consultou o médico legista Odoroílton

Larocca Quinto, que analisou os 19 laudos cadavéricos produzidos pelo Instituto Médico

Legal (IML) do Estado do Rio de Janeiro. Em suas conclusões o médico legista ressaltou que

exames complementares, mais importantes, não foram realizados, como, por exemplo, exame

nas vestes das vítimas, que chegaram despidas ao IML. Isso impossibilitou a verificação de

marcas de pólvora, “a chamada 'orla de tatuagem', que identificaria se houve disparos a curta

distância”. Também não foram usados equipamentos adequados, a máquina de raio-X estava

inoperante, impossibilitando a localização de projéteis nos corpos. O perito salientou ainda

que “não houve realização de exames no local das mortes, sequer a preservação dos mesmos”.

Diante dos desacordos na interpretação e explicação dos acontecimentos, vários

peritos foram convidados a se manifestar tecnicamente sobre os fatos, para se chegar à

conclusão se houve ou não execuções sumárias. Nesse sentido, uma perícia também foi

encomendada pela Secretaria Especial de Direitos Humanos do Governo Federal e elaborada

por três peritos. As conclusões foram semelhantes às do perito consultado pela Comissão de

Paula Lacerda
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Direitos Humanos da OAB. • Não houve perícia do local, apesar de fotos publicadas em jornais apresentarem a

presença de populares e jornalistas. • Todos os corpos chegaram despidos no Instituto Médico Legal. • Não foram feitas radiografias nos corpos. • Não foram coletados estojos (cápsulas das balas) no local. • Não foram coletadas amostras de sangue das vítimas. • Entre 14 vítimas havia um total de 25 projéteis na região posterior. • Entre seis vítimas havia um total de oito perfurações nos crânios e nas faces. • Cinco vítimas sofreram disparos à queima roupa. • Houve uma média de 3,8 disparos por vítima. • Duas execuções comprovadas pela trajetória das balas em vítimas que se encontravam

em posição decúbito dorsal, além de suspeitas de execuções em outros casos. Nestes dois casos, ainda, verifica-se a impossibilidade de defesa da vítima, uma vez que o disparo letal foi dado de trás para a frente.

Com as conclusões apresentadas nos laudos periciais, os responsáveis pela denúncia

argumentam que “a não adoção pelas autoridades de segurança pública dos procedimentos

técnicos recomendados pelos princípios internacionais de investigação prejudica a produção

de provas técnicas necessárias para uma comprovação legal de execução sumária”. Esse é um

dos fatores responsáveis pela garantia de impunidade dos agentes de segurança pública

envolvidos em atos ilegais.

Os autores da denúncia ainda reservam um espaço no texto para comentar a cobertura

do caso pelos veículos de comunicação. Em contraposição a uma pesquisa divulgada pelo

jornal O Globo, no dia 10 de julho de 2007, sob o título “População aprova operação

policial”, é citada outra pesquisa realizada pelo Grupo Cultural Raízes em Movimento, em

parceria com o jornal Fazendo Media, que chegava a uma constatação diferente: a maioria

absoluta (91%) dos 787 moradores residentes nas favelas da Grota, Pedra do Sapo, Morro do

Alemão e Morro dos Mineiros, todas pertencentes ao “Complexo do Alemão”, disseram não

apoiar as invasões da polícia, como a megaoperação que ocorreu no dia 27 de junho. A

pesquisa do jornal O Globo, realizada pelo Ibope, é criticada por não especificar a residência

dos entrevistados, limitando-se a informar apenas que mil pessoas foram entrevistadas entre 3

e 4 de julho.

Após a contextualização histórica das políticas de segurança pública, da apresentação

dos fatos e da cobertura pelos veículos de comunicação, finalmente são apresentados os

direitos humanos violados:

Paula Lacerda
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DOS DIREITOS HUMANOS VIOLADOS

• Não houve perícia do local, apesar de fotos publicadas em jornais apresentarem a

presença de populares e jornalistas. • Todos os corpos chegaram despidos no Instituto Médico Legal. • Não foram feitas radiografias nos corpos. • Não foram coletados estojos (cápsulas das balas) no local. • Não foram coletadas amostras de sangue das vítimas. • Entre 14 vítimas havia um total de 25 projéteis na região posterior. • Entre seis vítimas havia um total de oito perfurações nos crânios e nas faces. • Cinco vítimas sofreram disparos à queima roupa. • Houve uma média de 3,8 disparos por vítima. • Duas execuções comprovadas pela trajetória das balas em vítimas que se

encontravam em posição decúbito dorsal, além de suspeitas de execuções em outros casos.

• Nestes dois casos, ainda, verifica-se a impossibilidade de defesa da vítima, uma vez que o disparo letal foi dado de trás para a frente.

• Proteção à vida e dignidade da pessoa humana. • Prestação universal do serviço público de segurança. • Direito à convivência comunitária. • Direito à locomoção. • Liberdade. • A incolumidade física e psicológica das crianças e dos adolescentes, e demais

moradores das comunidades atingidas. • Inviolabilidade de domicílio Art 5º, XI da Constituição Federal de 1988 (CF/88) • Princípio da legalidade e devido processo legal. • Vedação da tortura ou tratamento desumano ou degradante Art. 5°, XLIII da

Constituição Federal. • Crime de lesa-humanidade.

(Texto-denúncia apresentado na Sessão I de Instrução, assinado pelos advogados João Tancredo

do IDDH/RJ e Nilo Batista)

Diante do conjunto de direitos violados, os representantes dos movimentos sociais e da

sociedade civil que subscrevem a denúncia, os advogados João Tancredo e Nilo Batista,

oferecem denúncia contra crime de lesa-humanidade contra:

• Luiz Inácio Lula da Silva: Chefe Executivo do Governo da República

Federativa do Brasil. • Luiz Fernando Corrêa: Chefe da Secretaria Nacional de Segurança Pública; • Luiz Antônio Ferreira: Comandante Geral da Força Nacional de Segurança

Pública; • Sérgio Cabral Filho: Chefe do Executivo do Governo do Estado do Rio de

Janeiro; • José Mariano Beltrame: Chefe da Secretaria de Estado de Segurança Pública

do Estado do Rio de Janeiro; • Ubiratan Ângelo: Comandante Geral da Polícia Militar do Estado do Rio de

Janeiro; • Gilberto Ribeiro: Chefe da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro.

Os autores da denúncia também apresentam uma série de recomendações aos governos

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federal e estadual e demais autoridades públicas, que tratam desde as formas de treinamento e

abordagem policial, fim do uso do caveirão, instrumentos técnico-investigativos,

independência dos Institutos Médico Legais, das Corregedorias e Ouvidorias de Polícia, entre

outras instâncias. Abaixo segue a íntegra das recomendações:

RECOMENDAÇÕES

1. Recomenda-se ao Governo da República Federativa do Brasil e ao Governo do Estado do Rio de Janeiro que sejam tomadas medidas no sentido de DESAUTORIZAR, por completo, o uso dos CARROS BLINDADOS pelas polícias militar e civil do Estado do Rio de Janeiro induzindo a uma reformulação das políticas governamentais de segurança pública para uma estratégia pautada na inteligência policial e no policiamento sócio-comunitário. 2. Recomenda-se ao Governo da República Federativa do Brasil e ao Governo do Estado do Rio de Janeiro que sejam tomadas medidas no sentido de APROVAR o projeto de Lei que prevê a ampliação da competência da justiça comum na elucidação e no julgamento dos crimes praticados por policiais militares em suas atividades de policiamento, de modo a incluir homicídio culposo, lesão corporal e tortura. 3. Recomenda-se ao Governo da República Federativa do Brasil e ao Governo do Estado do Rio de Janeiro que sejam tomadas medidas no sentido de dar plena autonomia e independência as Corregedorias e Ouvidorias de Polícia, além de recursos suficientes para sua capacitação e desempenho competente das funções. Os ouvidores devem ser autorizados a examinar integralmente cada queixa, assim como submeter propostas de representação aos promotores. Além disso, os ouvidores devem ter o poder de requisitar judicialmente pessoa e documentos (ou seja, ter o poder de tomar testemunhos sob pena de perjúrio e requerer documentos sob pena de omissão de provas). Finalmente, as autoridades devem garantir a integridade física e a segurança dos ouvidores e suas equipes. 4. Recomenda-se ao Governo da República Federativa do Brasil e ao Governo do Estado do Rio de Janeiro que sejam tomadas medidas no sentido de efetivação do Controle Externo da Atividade Policial pelo Ministério Público e criação de órgãos de investigação independentes. As autoridades brasileiras devem elaborar e regulamentar a criação de órgão de investigação dentro dos Ministérios Públicos estaduais e federais. Estes órgãos devem estar autorizados a requerer judicialmente documentos, intimar testemunhas e investigar repartições públicas, inclusive delegacias e outros centros de detenção para conduzir investigações completas e independentes. 5. Recomenda-se ao Governo da República Federativa do Brasil e ao Governo do Estado do Rio de Janeiro que sejam tomadas medidas no sentido de dar independência e controle social dos Institutos de Medicina Legal, bem como ampliação e modernização de sua estrutura e desvinculação dos setores periciais da área de Secretaria da Segurança Pública. 6. Recomenda-se ao Governo da República Federativa do Brasil e ao Governo do Estado do Rio de Janeiro que sejam tomadas medidas no sentido de valorização do enfoque preventivo, ampliando a capacidade do sistema de justiça e segurança pública de evitar a ocorrência de danos, ao invés de investir simplesmente na representação aos crimes já ocorridos. 7. Recomenda-se ao Governo da República Federativa do Brasil e ao Governo do Estado do Rio de Janeiro que sejam tomadas medidas no sentido de adoção por parte das autoridades da segurança pública do Estado de um plano semestral de redução de homicídio, através de utilização de policiamento preventivo, comunitário e permanente que vise a redução de danos, da punição de policiais infratores e responsáveis, e do controle e fiscalização de armas.

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8. Recomenda-se ao Governo da República Federativa do Brasil e ao Governo do Estado do Rio de Janeiro que sejam tomadas medidas no sentido de criação de programas que retirem das ruas policiais que se envolverem em eventos com resultado de morte, até que se investigue as motivações e proceda a necessária avaliação psicológica do envolvido. 9. Recomenda-se ao Governo da República Federativa do Brasil e ao Governo do Estado do Rio de Janeiro que sejam tomadas medidas no sentido de elaborar rigoroso estatuto sobre abordagem de suspeitos, a fim de reduzir o número de vítimas fatais durante esses procedimentos e unificação progressiva das Academias e Escolas de Formação, e estabelecimento de convênios com as Universidades para formação do corpo policial. 10. Recomenda-se ao Governo da República Federativa do Brasil e ao Governo do Estado do Rio de Janeiro que sejam tomadas medidas no sentido de melhorar a remuneração dos policiais e busca de alternativas como o pagamento de horas-extras para evitar os “bicos” dos policiais. 11. Recomenda-se ao Governo da República Federativa do Brasil e ao Governo do Estado do Rio de Janeiro que sejam tomadas medidas no sentido de treinamento para todos os policiais no emprego de técnicas não letais nas operações policiais (tiro defensivo, forma de abordagem, etc.). 12. Recomenda-se ao Governo da República Federativa do Brasil e ao Governo do Estado do Rio de Janeiro que sejam tomadas medidas no sentido de modificar os regulamentos policiais para que agentes que sofram atentados ou que de alguma forma estejam envolvidos com o episódio não continuem participando das investigações,para diminuir ações vingativas. 13. Recomenda-se ao Governo da República Federativa do Brasil e ao Governo do Estado do Rio de Janeiro que sejam tomadas medidas no sentido da não utilização de armas de fogo em operações como reintegração de posse, estádios de futebol, greves e outros eventos com multidões. 14. Recomenda-se ao Governo da República Federativa do Brasil e ao Governo do Estado do Rio de Janeiro que sejam tomadas medidas no sentido de implementar um programa eficaz de proteção à testemunha e vítimas da violência, assim como garantia de investigações isentas e apuração de todos os casos de ameaça à vida e integridade pessoal denunciados por testemunhas. 15. Recomenda-se ao Governo da República Federativa do Brasil e ao Governo do Estado do Rio de Janeiro que sejam tomadas medidas no sentido de facilitar os relatos de abuso. Todos aqueles que defendem os direitos humanos, assim como todos os que tiverem direitos humanos violados, devem ter acesso a um procedimento efetivo para apresentação das queixas sem medo de represálias. Tais queixas deveriam ser automaticamente levadas às divisões de direitos humanos dos Ministérios Públicos estaduais. 16. Recomenda-se ao Governo da República Federativa do Brasil e ao Governo do Estado do Rio de Janeiro que sejam tomadas medidas no sentido de garantir a investigação policial e a comunicação obrigatória ao ministério público para qualquer caso de execução dentro das prisões. 17. Recomenda-se ao Governo da República Federativa do Brasil e ao Governo do Estado do Rio de Janeiro que sejam tomadas medidas no sentido de ampliar a capacidade investigativa da Polícia Civil, com modernização e capacitação da polícia técnica e científica; criação imediata dos sistemas de rastreamento de armas e de veículos, inclusive os oficiais, usados pela polícia através da ampliação do uso de sistemas como o GPS, identificação balística, identificação de impressão digital e identificação fotográfica. 18. Recomenda-se ao Governo da República Federativa do Brasil e ao Governo do Estado do Rio de Janeiro que sejam tomadas medidas no sentido de criar um único órgão de informação

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e inteligência, sob controle do executivo e com Regimento Interno único, com objetivo exclusivo de combater o crime organizado, prevenir e inibir a prática de delitos cometidos por agentes do Estado, e subsidiar o planejamento estratégico da ação policial. 19. Recomenda-se ao Governo da República Federativa do Brasil e ao Governo do Estado do Rio de Janeiro que sejam tomadas medidas no sentido de priorizar o combate dos homicídios dolosos com policiamento investigativo e preventivo e repressão sistemática aos grupos de extermínio. 20. Recomenda-se ao Governo da República Federativa do Brasil e ao Governo do Estado do Rio de Janeiro que sejam tomadas medidas no sentido de afastar, imediatamente, o agente penitenciário ou policial acusado de tortura, homicídio ou corrupção, durante a fase de investigação. 21. Que a Organização das Nações Unidas (ONU) recomende ao Governo da República Federativa do Brasil e ao Governo do Estado do Rio de Janeiro que sejam tomadas medidas no sentido de afastar, imediatamente, o agente penitenciário ou policial acusado de tortura, homicídio ou corrupção, durante a fase de investigação. 22. Recomenda-se ao Governo da República Federativa do Brasil e ao Governo do Estado do Rio de Janeiro que sejam tomadas medidas no sentido de apuração e conclusão dos inquéritos policiais arquivados permitindo o acesso à justiça aos familiares de vítima de violência institucional. 23. Recomenda-se ao Governo da República Federativa do Brasil e ao Governo do Estado do Rio de Janeiro que sejam tomadas medidas no sentido de impedir quaisquer tentativas de mudanças nas cláusulas pétreas da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em especial aquelas que visam restringir direitos e garantias individuais, como a atual tentativa de redução da idade mínima de responsabilização penal (maioridade penal). [Grifos do original]

(Texto-denúncia apresentado na Sessão I de Instrução, assinado pelos advogados João Tancredo do IDDH/RJ e Nilo Batista)

Em relação às violações de direitos humanos no estado do Rio de Janeiro, foram

basicamente estas as denúncias oferecidas contra o Estado brasileiro perante o Tribunal

Popular brasileiro. Vinculado ao cumprimento das referidas recomendações, os representantes

jurídicos dos denunciantes requerem ainda a notificação de vítimas e testemunhadas para

deporem no plenário, em caráter de imprescindibilidade. No rol de testemunhas arroladas no

processo estão: Lúcia (Complexo do Alemão), José Luís (Acari), Marilene (Mães de Acari),

Márcia Jacintho (Lins de Vasconcelos), todos familiares de vítima do Rio de Janeiro.

6.8. A sessão final de acusação e defesa do Tribunal Popular

A presidência da mesa que conduziria os trabalhos da sessão final foi composta

coletivamente por Hamilton Borges – Membro da Associação de Familiares e Amigos de

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Presos e Presas da Bahia e militante do Movimento Negro Unificado; Valdênia Paulino,

coordenadora do Centro de Direitos Humanos de Sapopemba (SP); e Kenarik Boujikian, juíza

e diretora da Associação de Juízes para a Democracia.

A acusação final ficou a cargo de Plínio de Arruda Sampaio, presidente da Associação

Brasileira de Reforma Agrária (e também ex-promotor público e ex-deputado federal

constituinte). Depois de uma breve retrospectiva das sessões anteriores, Plínio passou a

acusação, afirmando que o Estado deve ser julgado por crime doloso, pois os casos

comprovavam que não se tratavam de casos isolados, mas sim de uma política pública de

extermínio da população “excedente”.

O Estado brasileiro, no banco dos réus, é acusado de: tortura, execução sumária, tratamento desumano de presos e menores, insuficiência no gasto social nas periferias pobres da cidade. E o Estado cometeu o delito de criminalização da pobreza e não tem idoneidade moral para conduzir o povo brasileiro. Tem o seguinte problema: quando o Tribunal da Justiça impõe uma pena, a eficácia dessa pena, a efetivação dessa pena, ela é feita pelo oficial de justiça, ela é feita pela polícia, o cidadão é preso. Nós aqui...Olha! Então, qual é a eficácia da nossa pena. A nossa pena é uma condenação moral. E essa condenação moral dele [do Estado], vale pra nós. Ela é a grande motivação pra nós fazermos a condenação que está nas nossas mãos, que é a condenação política. A condenação política. Nós vamos através da condenação política tirá-los do poder. [Fala de Plínio Arruda Sampaio na sessão final do Tribunal Popular].

Ao pedir a pena para o Estado, Plínio argumentou que, se fosse pedir uma pena média,

pediria uma reforma do aparelho estatal, mas o Estado está corrompido de uma tal maneira

que nenhuma reforma o salvaria. Assim, Plínio pediu a pena máxima: a destruição do Estado

burguês e em seu lugar o poder popular. Ele também ressaltou a necessidade das entidades e

dos movimentos participarem ativamente da política, como forma de enfraquecer o Estado

burguês.

No lugar do réu, uma cadeira vazia representava simbolicamente o Estado brasileiro. E

como o Estado não havia mandado representante para sua defesa, ela ficou a cargo do

promotor Roberto Tardelli, que começou sua defesa elogiando o acusador, e dizendo que se

encontrava numa situação delicada tendo que defender o Estado naquela situação. Seu

argumento era que o Estado realmente deveria ser julgado por crime doloso, mas as mortes

têm uma justificativa: são consequências do combate ao crime. Dentro da encenação do ritual

judiciário, o promotor expressou exatamente os argumentos que geralmente são utilizados na

defesa de policiais acusados de homicídios ilegais e, ao fazer tal afirmação, recebeu uma

grande vaia do público. Mas prosseguiu sua defesa concluindo com um pedido de pena média

ao Estado.

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Em seguida vieram as avaliações dos jurados sobre os crimes a serem julgados. A

composição dos jurados buscava representar a diversidade da sociedade civil e dos

movimentos sociais. Entre os convidados estavam: Adriana Fernandes, integrante da

Associação de Familiares e Amigos de Presos e Presas da Bahia; Cecília Coimbra, presidente

GrupoTortura Nunca Mais-RJ; Ferréz, escritor e MC; Índio Guajajara, militante de

movimento indígena, membro do Centro de Étnico Conhecimento Sócio-Ambiental Cauieré;

Ivan Seixas, diretor do Fórum Permanente de Ex-Presos e Perseguidos Políticos de São Paulo;

José Arbex Jr., jornalista e escritor; Marcelo Freixo, deputado estadual PSOL-RJ; Marcelo

Yuka, músico e compositor; Maria Rita Kehl, psicanalista e escritora; Paulo Arantes, filósofo,

professor aposentado da USP; Wagner Santos, músico, sobrevivente da chacina da

Candelária; Waldemar Rossi, metalúrgico aposentado e coordenador da Pastoral Operaria da

Arquidiocese de São Paulo; Dom Tomás Balduíno, Bispo Emérito da cidade de Goiás Velho e

conselheiro permanente da Comissão Pastoral da Terra, também foi convidado, mas não pôde

comparecer. A sessão final também teve uma participação especial de Kali Akuno,

coordenador do Black Panthers e Grass Roots Mouvement (EUA), e convidado como

observador internacional.

A posição do júri foi unânime em condenar o Estado. Todos consideraram que o

Estado tem descumprido as normas dos Direitos Humanos, seja através dos tiros disparados

pela polícia ou da não garantia de condições básicas para uma vida digna da maioria da

população. Muitas das falas dos jurados destacavam a importância da organização e da

mobilização para monitorar, denunciar e impedir a violação de direitos por parte do Estado.

Alguém chegou a propor que o Tribunal Popular fosse um espaço permanente, de modo que,

assim que acontecesse alguma violação de direito por parte do Estado, o caso fosse julgado no

Tribunal Popular.

A fala final foi da juíza e diretora da Associação Juízes para a Democracia, Kenarik

Boujikian, que julgou que “o Estado brasileiro é implementador e sujeito ativo das políticas

neoliberais, que utiliza o instrumento do medo para que o povo não queira alterar a ordem das

coisas.” Ainda segundo a juíza, o medo é um instrumento utilizado pela globalização

hegemônica e seu principal meio é a repressão penal. Em sua fala, Kenarik fez uma

retrospectiva das sessões, destacando os testemunhos das vítimas que, segundo ela, mostrou

as faces ocultas e não ocultas do Estado, através da ação ou omissão de seus poderes.

Terminou propondo uma votação, pedindo que todos aqueles que condenassem o Estado

brasileiro ficassem de pé. Todos se levantaram e, com uma salva de palmas, emergiu o grito

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coletivo de: “Viva!”. Após a sessão final, houve uma caminhada seguida de vigília na frente

do Tribunal de Justiça de São Paulo.

6.9. Caminhada e vigília: ato em memória das vítimas da violência estatal

Durante os dias de realização do Tribunal Popular, além das sessões de instrução, que

reproduziam e teatralizavam o ritual judiciário, ocorreram outras atividades culturais e

políticas. Apresentações de grupo de teatro e de hip hop, realizações de reuniões políticas,

lançamentos de livros e relatórios de denúncia, exibição de vídeos. Poderíamos dizer que as

sessões de instrução eram as atividades principais do evento, e as demais, atividades

complementares. Existiam duas formas de expressão da voz: a voz que se expressava dentro

do ritual judiciário e a voz que se expressava através de outras linguagens, como a das artes, a

religiosa e a política. A própria diversidade dos atores presentes em cada situação definia a

pluralidade de linguagens usadas e expressas em cada momento e formato do evento.

Uma dessas atividades realizadas nos marcos da programação do “Tribunal Popular: o

Estado Brasileiro no Banco dos Réus”, no dia 04 de dezembro de 2008, foi a realização de

uma caminhada da Faculdade de Direito da USP (no Largo São Francisco) até o Tribunal de

Justiça de São Paulo (na Praça da Sé). Com fotografias, velas acesas, faixas, cartazes,

palavras de ordem e consígnias de protesto, o ato culminou numa vigília em frente ao

Tribunal de Justiça e, em seguida, encerrou-se na escadaria da Igreja da Sé.

Cada entidade com seus símbolos e palavras de ordem. Durante a concentração, em

frente à Faculdade de Direito, no chão foram expostos banners com fotos de vítimas e várias

faixas da Rede Contra a Violência, movimento do Rio de Janeiro, denunciavam a

continuidade histórica da violência estatal: a violência estatal da ditadura civil-militar e a

violência contra os pobres de hoje. Entre os textos das faixas lia-se: “31de março – Golpe

Militar de 1964 / 31 de março – Chacina da Baixada em 2005 / A ditadura continua na

violência contra os pobres”. Outra faixa trazia os dizeres: “Os ricos querem paz para

continuar ricos, nós queremos paz para continuar vivos”. Uma terceira faixa foi utilizada para

aproveitar a ocasião e expressar no espaço público o tema da integração das favelas à cidade e

se posicionar contrariamente à política de remoções. Essa faixa trazia a seguinte frase: “Nem

caveirão, nem remoção: favela é cidade”. Desse modo, criticava-se a violência policial e a

política de remoções de favelas no Rio de Janeiro.

Durante os dias de realização do Tribunal Popular, no dia 05 de dezembro, mais uma

vítima do Estado foi somada às estatísticas. Mateus, um garoto morador da Maré, no Rio de

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Janeiro, havia saído de casa para ir à padaria comprar pão e levou um tiro, decorrente de uma

operação policial. Sua morte, assim como várias outras, foi lembrada durante a vigília.

Os manifestantes concentraram-se em frente ao Tribunal de Justiça. O chão se

transformou em um tapete com banners, faixas, fotos, velas. Familiares de vítima e militantes

de direitos humanos fizeram falações lembrando as vítimas e responsabilizando o Estado

pelas mortes. O clima foi marcado por muita emoção e muito choro.

6.9.1. Morte violenta, movimento crítico e engajamento político

A morte violenta, consequência das práticas englobadas pela categoria violência

urbana, coloca em movimento vários atores sociais, agindo em diferentes regimes de ação.

Enquanto os familiares se engajam na luta por justiça e contra a violência policial, pela via do

amor materno e dos laços de parentesco, os militantes se engajam por razões e convicções

político-ideológicas. Se os familiares se engajam pela via do conhecimento venenoso, os

militantes se engajam pela via de uma compreensão política da luta de classes, que interpreta

as mortes violentas e o sofrimento provocado pela violência policial ou pelo crime violento

como frutos da luta de classes. Como consequência de uma sociedade capitalista, em que os

aparelhos repressivos do Estado, estão a serviço dos poderosos, principalmente do poder

econômico, e contra as classes trabalhadoras e populares.

Alguns familiares queixam-se em seus relatos de que se apresentam como defensor de

direitos humanos pode soar mal, pode produzir consequências negativas, como, por exemplo,

ser visto e compreendido como defensor de bandido. Como boa parte da população da cidade

(principalmente as camadas abastadas e as camadas médias, mas também entre segmentos

populares) compartilha do entendimento que bandido bom é bandido morto, enunciar a voz

para dizer o contrário é correr o risco de ser acusado de cumplicidade com a “bandidagem”.

No relato abaixo, de uma mãe de vítima, ela denuncia que o enraizamento e aceitação

desse tipo de pensamento e mentalidade constituem um duplo obstáculo: primeiro para o

trabalho dos defensores de direitos humanos, que se veem ameaçados constantemente,

segundo porque muitos familiares de vítima acabam abrindo mão de denunciar seus casos

porque no fundo compartilham do entendimento de que futuro de bandido é a morte precoce e

o fato de ter se envolvido com a criminalidade retira-lhe todos os direitos, inclusive o direito

de a família enterrar o corpo do filho.

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273

Uma coisa que eu percebo, assim, geralmente quando as famílias sabem que o filho está envolvido, o sobrinho, tem essa coisa de achar que ele tem que morrer mesmo. Se acha que isso é justiça? Não existe pena de morte aqui. Não existe. O que é que tem que acontecer? Uma prisão, uma condenação. Então, eu acho que há esse conformismo da própria família antes do acontecido: “Não, se meu filho está dentro do tráfico, ele vai morrer mesmo, eu já estou esperando ele morrer”. Geralmente, não pensa nem na prisão. Que é um caso em que já está preservando a vida. Mas eu vejo muito esse conformismo. Por que isso? Você sabe explicar isso? Assim, é uma questão de cultura das comunidades, é uma questão de cultura da própria família que acha que... Da própria família não, da sociedade, porque não é nem a família, é a sociedade que cultua que bandido bom é bandido morto. E aí se cria essa dificuldade quando se chega e você fala assim: “Ah, eu sou militante de direitos humanos”. Em um primeiro momento você é mal vista. Por quê? “Direitos humanos! Direitos humanos é pra bandido!”. E essa cultura, ela está infiltrada na sociedade, você não consegue mudar isso. Por quê? A morte ficou banalizada.

A mãe que fala no relato acima chama atenção para o fato de que o envolvimento com

o “tráfico” é tido praticamente como sinônimo de morte, não se cogitando nem mesmo a

prisão. Nesse caso, não há nenhum horizonte de direito para quem está envolvido no

“movimento”. Nesse contexto, as possibilidades de engajamento dos familiares são reduzidas.

Ser familiar de vítima não significa necessariamente tornar-se um militante dos direitos

humanos. O sofrimento gerado pela morte do filho pode levar ou não a algum tipo de

engajamento.

Na experiência dos familiares há um ponto de contato entre “violência urbana” e

“direitos humanos”, mas ele não se apresenta como mediação ou contradição, e sim como

alternativa entre duas linguagens incomensuráveis. Essa linguagem alternativa, ponto de

contato entre “violência urbana” e “direitos humanos”, é a linguagem do sofrimento. O

sofrimento é o ponto de interseção entre os familiares para criticarem a violência e ajustarem-

se à

linguagem dos direitos. O Tribunal Popular foi um espaço político de encontro entre as duas lógicas, ou dois

regimes de ação: a dos familiares e a dos militantes. Os militantes, ONGs e movimentos

sociais atuam, para usar o conceito gramsciano, como intelectuais orgânicos, buscando

fornecer um repertório de críticas sociais e políticas aos familiares e promover uma

politização do sofrimento. A politização do sofrimento consiste, sobretudo, na passagem do

caso singular ao geral, na dessinguralização dos casos. Nesse sentido, o Tribunal Popular foi

marcado por uma coleção de testemunhos e de casos, que era uma forma, ao mesmo tempo,

de considerar o detalhe, porque é a descrição do detalhe que sensibiliza, e de situá-lo em

algum grau de generalização.

Ao apresentar, no primeiro capítulo desta tese, em linhas gerais, alguns aspectos da

teoria de Luc Boltanski e Laurent Thévenot, destaquei que, para estes autores, os registros de

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justificação de cada cité não dependem apenas de princípios de justiça. Os mundos são feitos

também de objetos e dispositivos convencionais que podem, assim, ancorar o modelo de

justificação na realidade. Neste capítulo, por sua vez, ao descrever o Tribunal Popular

enquanto um evento político, tentei identificar alguns dos objetos e dispositivos sobre os

quais se apoiam as críticas políticas dos militantes e dos movimentos sociais em interação no

âmbito desse espaço político.

Cada objeto e cada dispositivo manipulado corresponde a uma peça na construção de

um caso. Só que, diferente do caso enquanto forma jurídica, cujos objetos correspondem

apenas a peças de natureza jurídica, o caso enquanto forma política considera como peça tudo

aquilo que possa ser arrolado como prova no debate político e moral, travado no espaço

público. Estes objetos, incluem, entre outros, o uso político dos testemunhos dos familiares, o

uso de argumentos acadêmicos, estatísticas, charges, reportagens. Vários objetos são reunidos

com o objetivo de fornecer elementos para se produzir uma crítica que seja capaz de

ultrapassar os casos específicos e atingir a generalidade. Nisto consiste o trabalho de

politização, na capacidade de generalização. Dentro deste quadro político geral, que visa a

generalização, são apresentados e trabalhados os casos particulares, no sentido de construir

uma coleção de casos que sustente uma crítica à violência promovida pelo Estado.

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275

IMAGENS DA VIGÍLIA

Foto 9: Concentração do ato em memória das vítimas da violência estatal em frente à

Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco, cidade de São Paulo.

Faixas e murais com fotografias das vítimas de ontem e de hoje.

Foto 10: Faixa da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência/RJ,

com os dizeres: “Nem caveirão nem remoção, favela é cidade”.

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Foto 11: Faixas de protesto

Foto 12: Fotografias, cartazes, bandeiras e instrumentos musicais:

objetos do protesto

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277

Foto 13: Luto e protesto: fotos de mortos e desaparecidos de ontem e de hoje

Foto 14: Maicon X Justiça

Foto 15: O cenário do protesto

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278

Foto 16: Criança observa e participa da

vigília Foto 17: Colocando uma foto no mural

Foto 18: Ajeitando a foto

Foto 19: Uma ajuda da mãe e o interesse do

fotógrafo

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279

Foto 20: Mural com fotos de presos políticos da

ditadura Foto 21: Moradora de rua se

junta à vigília

Foto 22: Mural com fotos dos mortos e desaparecidos

de hoje Foto 23: Vela e foto - símbolos

do protesto

Foto 24: A cobertura midiática do ato Foto 25: A chama da esperança

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NOTAS FINAIS

Longe de querer excursionar pela miséria alheia e consolidar na academia os

profissionais do sofrer, como alerta Pereira (2004: 15), o que busquei nesta tese foi

aproximar-me do mundo dos familiares de vítimas de desaparecimento forçado, de um mundo

que se torna estranho pela experiência desoladora da violência. Para isto, compartilhei das

histórias e narrativas sobre o terror e o sofrimento destes familiares e também das formas de

resistência através das quais se busca reabitar a vida e o cotidiano. Procurei abordar as

linguagens da dor através das quais as ciências sociais poderiam olhar, tocar ou converter-se

em corpos textuais sobre os quais se escreve esta dor, compartilhando as preocupações

também colocadas por Veena Das (Das, 1995). Ao percorrer essas histórias e narrativas,

várias categorias foram se construindo, entre elas, a de vítima, familiar de vítima e

desaparecimento forçado.

O centro das histórias foi o desaparecimento dos filhos. O desaparecimento foi tomado

como um evento crítico, a partir do qual analisei as relações entre violência, sofrimento e

política. Argumentei que as possibilidades de abordagem do fenômeno do desaparecimento de

pessoas são diversas e a categoria desaparecido engloba uma pluralidade semântica capaz de

abarcar situações e circunstâncias bem diferentes. Dada esta pluralidade, a categoria

desaparecido é marcada pela ambiguidade e passível de várias figurações, conforme os usos

políticos que dela fazem os atores envolvidos na disputa, sendo o desaparecimento tematizado

ora como “questão de segurança pública”, ora como “questão de assistência social”. Uma

destas figurações possíveis, trabalhada nesta tese, corresponde a uma modalidade particular

de casos que pode ser classificada como desaparecimento forçado.

O desaparecimento forçado corresponde, dentro da problemática geral dos

desaparecimentos de pessoas, a um “caso particular do possível”, para usar a expressão de

Bachelard (1995: 55). Se, durante a última ditadura brasileira, o desaparecimento forçado foi

usado como método de repressão política, hoje ele corresponde a uma prática do repertório

da linguagem da violência urbana. As histórias analisadas apontaram o envolvimento de

policiais, milicianos e traficantes neste tipo de crime, que atualmente passa por um processo

de tipificação penal, através de um projeto de lei do senado federal brasileiro.

A partir das histórias de desaparecimento forçado, construí pequenos mapas da dor

contando as trajetórias dos familiares diante do evento. Este foi o fio condutor que nos levou

a um emaranhado de temas que trataram de dor, sofrimento, morte violenta, terror, luto,

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281

saudade. As histórias tratam de experiências desenraizadoras cujo limite é a percepção e o

sentimento de não pertencer a uma humanidade comum. Por outro lado, também são histórias

que falam de amor e justiça, em meio a um sentimento, ao mesmo tempo, de resignação e

esperança. Ao longo dos capítulos, tentei mostrar como as experiências dos familiares

situam-se entre um tempo do choque e um tempo da política. O tempo é um agente que

“trabalha” nas relações, transformando sentidos e significados das experiências de dor e

violência vividas pelos familiares.

O sofrimento e a forma como ele é expresso e socializado ocupam papéis centrais no

trânsito entre uma política da piedade e uma política da justiça. Enquanto numa política da

piedade a tentativa de generalização ocorre pela via do sentimento e da emoção, como forma

de romper a distância, numa política da justiça a generalização, é buscada pela via da

denúncia pública e da crítica. Crítica e denúncia que se apoiam em provas e objetos,

conforme as conveniências de equivalência que organizam as ordens de grandeza entre os

seres que agem em um mesmo mundo, regido pelo mesmo princípio superior comum. E não é

que não haja lugar para a emoção no quadro de uma política da justiça, conforme o argumento

de Boltanski. É que as emoções que o sofrimento mobiliza no quadro de uma política da

piedade são diferentes daquelas mobilizadas no quadro de uma política da justiça. Quando o

sofrimento insere-se numa política da piedade, a atenção tem como foco o infeliz e seus

sofrimentos. Já numa política da justiça, a atenção é orientada face ao perseguidor da vítima.

Se, por um lado, a dor é o meio através do qual a sociedade estabelece sua propriedade

sobre os indivíduos, por outro, é também o meio disponível de representar para um indivíduo

o dano histórico que lhe tem sido causado. E que, às vezes, toma a forma de uma descrição

dos sintomas individuais; outras vezes, a de uma memória inscrita sobre o corpo. Se, por um

lado, a dor destrói ou estabelece obstáculos à capacidade de comunicação, por outro, também

cria uma comunidade moral, emocional e política, a partir de quem sofre.

É neste contexto de liminaridade, de tensão entre a voz e o silêncio, de passagem de

um tempo do choque para um tempo da política, que os familiares de vítimas se constroem

enquanto sujeitos da dor e agentes da dignidade. A comunicação das experiências de

sofrimento dos familiares, referentes ao desaparecimento dos filhos e, neste caso, sinônimo de

uma morte inconclusa (Catela, 2001), permite criar uma comunidade emocional que alenta a

recuperação das pessoas enquanto sujeito “e se converte em um veículo de recomposição

cultural e política” (Jimeno, 2008).

O testemunho dos familiares é uma das modalidades principais de comunicação e

politização do sofrimento, bem como uma das vias de recomposição cultural e política dos

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familiares. O conceito de testemunho recebeu um impulso decisivo com os estudos sobre a

experiência concentracionária, depois estendeu-se para a análise de diversos traumas sociais,

envolvendo outros eventos críticos. O testemunho deve ser compreendido tanto no sentido

jurídico e de testemunho histórico, como no sentido de “sobreviver”. No caso dos familiares

de vítimas de desaparecimento forçando, o sentido jurídico tem sido pouco valorizado,

porque a justiça encontra-se em um horizonte muito distante, para muitos impossível e

inalcançável. Afinal, como é comum policiais dizerem aos familiares, “não tem corpo, não

tem crime”. E, se não tem crime, não tem porque haver testemunho, no sentido jurídico,

porque raramente há processos judiciais.

Para além do sentido jurídico, os testemunhos dos familiares que entrevistei têm o

sentido de testemunhar a morte violenta, clandestina e silenciosa, que não tem visibilidade

nem importância pública. São as pequenas mortes do dia a dia, que estabelecem uma relação

entre luto e justiça. Consequência destas pequenas mortes cotidianas, também ganham forma

práticas de luto, que se transformam em práticas reivindicativas de justiça.

Sair da violência e reabitar o mundo só é possível com a realização do perdão ou da

justiça. As mães podem perdoar os filhos pelos atos mais violentos que estes cometerem,

porque o amor materno fundamenta-se na ausência de cálculo e não tem limites. O amor das

mães pelos filhos corresponde a uma forma de amor conceituada como ágape. A pessoa em

estado de ágape não recorda as ofensas sofridas nem espera boas ações como reparação, por

isso a faculdade de perdoar, somada a de dar gratuitamente, é a mais frequentemente

associada à noção de ágape (Boltanski, 2000: 166).

A mulher foi em todos os tempos um símbolo do dom. No interior da família, o dom

da vida é o dom por excelência, mas é carregado de obrigações, pela razão de ser família

(Godbout e Caillé, 1997). A linha divisória que estabelece a passagem dos familiares de

vítima de um regime do amor a um regime de justiça é a violação do dom da vida,

consequentemente, violação do direito à maternidade. Para uma mãe, a morte violenta do

filho significa uma violação do dom de dar a vida. A maternidade transfigura-se em um dom

violado e essa violação torna-se o idioma de ação (Steil, 2002) mediante o qual familiares

engajam-se na luta por justiça. Contra o direito de matar do Estado é mobilizado o direito à

maternidade e o direito familiar.

A vida e a morte correspondem a dois polos entre os quais os familiares se movem. A

vida, representada pela maternidade, e a morte, pelo desaparecimento, são dois

acontecimentos marcados por profunda energia moral e emocional. É do universo da vida e da

morte e dos significados elaborados para estes fenômenos, a partir da maternidade, da

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283

religião, de percepções de justiça e injustiça, que se constituem as gramáticas morais e

políticas e os modos de fazer política dos familiares.

Se, por um lado, é possível para as mães perdoar os filhos, por outro, não é possível

fazer o mesmo em relação a seus assassinos, quando a reivindicação se der pela via da justiça.

Quando se trata da realização da justiça, a introdução do perdão representa uma forma de

negação do direito. Como argumenta Lefranc (2005), ao analisar as políticas do perdão

aplicadas como recurso para transição política de regimes autoritários, a neutralização,

supressão ou refundação do direito não podem ser consideradas como momentos jurídicos.

Neste sentido, perdão e ordem jurídica são incompatíveis.

Este tem sido um obstáculo enfrentado pelos familiares de vítima de violência no Rio

de Janeiro. Quando se trata da violência praticada por agentes do Estado, principalmente a

polícia, é difícil realizar a justiça, porque a polícia goza da permissividade de grande parcela

da população para abusar do direito de matar, e o Estado, por sua vez, tem operado a partir da

linguagem da guerra e da metafísica da desumanização. É praticamente impossível aplicar

uma justiça punitiva quando há autorização para o excesso do uso da força e do direito de

matar.

O que tem aparecido muitas vezes como equivalente ao pedido de perdão é o pedido

de desculpas. É o que tem feito o governador Sérgio Cabral Filho (PMDB) em várias

ocasiões, após mortes de inocentes cometidas por policiais. Uma destas ocasiões foi a morte

de um trabalhador, em 19 de maio de 2010, durante sua folga, ao subir no terraço de um

prédio, para consertar um toldo de plástico. A morte ocorreu quando policiais do Batalhão de

Operações Especiais (Bope) checavam uma denúncia sobre um ponto de venda de drogas nos

arredores de uma vila de classe média, em um dos acessos ao Morro do Andaraí. Segundos

após subir ao terraço um projétil de fuzil atingiu o corpo de Hélio Barreira Ribeiro, que

morreu no mesmo instante. Os policiais teriam confundido a furadeira usada por Hélio para

reformar o toldo com uma metralhadora.

Diante do erro da polícia, o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, pediu

desculpas à família. No dia do enterro, a prima da viúva disse que a família não aceitava o

pedido de desculpas e repudiou as explicações do comandante do Bope para o crime:

“Mostrar que uma furadeira pode ser confundida com uma metralhadora? Para um policial, o

exame de vista deve estar ok para poder distinguir os dois. Os policiais estão nervosos,

estressados e com medo. Se a atitude é suspeita, eles atiram”66.

66 Depoimento publicado em matéria do portal do jornal O Estado de São Paulo: http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,cabral-se-desculpa-com-familia-de-homem-morto-por-engano-pelo-

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O pedido de desculpas aparece quando há corpo e evidência absoluta da morte e do

erro. Quando não há, como no caso dos desaparecidos, nem mesmo o pedido de desculpas

aparece no horizonte de reconhecimento do sofrimento dos familiares. Pelo contrário, o que

eles ouvem é que, como não há corpo, não há crime. Enquanto a justiça não se realiza, como

diz uma mãe de desaparecido, não para de crescer no Rio de Janeiro a família dos familiares

de vítima.

bope,554423,0.htm. Acessado em 07 de julho de 2012.

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Texto-denúncia apresentado na II Sessão de Instrução do Tribunal Popular: [Disponível em: http://www.tribunalpopular2008.blogspot.com].

Texto-denúncia apresentado na III Sessão de Instrução do Tribunal Popular: [Disponível em: http://www.tribunalpopular2008.blogspot.com].

Relatório da Anistia Internacional: “Vim buscar sua alma”: o caveirão e o policiamento no

Rio de Janeiro. 19/07/2006. Relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Desaparecimento de Crianças e

Adolescentes. Câmara dos Deputados. Relatora: Deputada Andreia Zito. Novembro/2010.

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Rio de Janeiro, 26 de setembro de 2011. [Disponível em: http://www.redecontraviolencia.org/Documentos/830.html].

Jornais

O Dia Jornal do Brasil O Globo Folha de São Paulo Estado de São Paulo

Sites e blogs

www.redecontraviolencia.org.br [Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência]. www.global.org.br [Justiça Global]. www.amnesty.org.br [Anistia Internacional]. http://www.torturanuncamais-rj.org.br [Grupo Tortura Nunca Mais] www.tribunalpopular2008.blogspot.com [Blog do Tribunal Popular]. www.riodepaz.org.br [Ong Rio de Paz]. www.isp.rj.gov.br [Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro]. www.wikipedia.org [Wikipedia]. www.gabrielasoudapaz.org.br [Gabriela Sou da Paz]. Fotos

Fotos de trabalhos de campo. Fotos de acervos particulares e fotos de Internet.

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ANEXOS

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ANEXO 1 – RELAÇÃO DE ENTREVISTADOS

Com o objetivo de situar os entrevistados e suas histórias ou áreas de atuação elaborei uma lista com a relação de entrevistados citados na tese. Em alguns casos a citação não ocorrer de maneira nominal, valendo-me apenas do relato ou de informações contidas nas entrevistas. Conforme o pedido dos entrevistados em alguns casos nomes verdadeiros foram mantidos e em outros substituídos por nomes fictícios. Familiares

[Izildete]: Viúva, tem três filhos, mora na Baixada Fluminense. Um dos filhos desapareceu junto com um colega, após uma abordagem policial, quando saíam de um bar. [Maria]: Moradora de uma favela na zona norte do Rio de Janeiro, trabalhava como auxiliar de serviços gerais na época em que o filho desapareceu juntamente com mais doze pessoas. Segundo a versão da mãe traficantes teriam alugado um caveirão e como o apoio da polícia sequestraram 13 pessoas de uma facção rival. [Áureo]: Feirante, mora na zona norte do Rio de Janeiro, em um sítio numa região cercada por favelas. Dois filhos foram mortos pela polícia e um terceiro e a nora estão desaparecidos. Há suspeita de envolvimento de policiais no caso do filho e da nora desaparecidos. [Maria das Dores]: Moradora de uma área dominada por milícia e pastora evangélica. O filho ficou alguns meses desaparecido, quando uma ossada representando seus restos mortais foram deixados numa madrugada no portão de casa. A ossada estava sobre um saco preto, aberto, com um bilhete da milícia. [Heloísa]: Moradora do Leblon, o filho foi morto por um policial que trabalhava como segurança numa boate, após uma briga. [Maria de Fátima]: Moradora de uma área na zona norte do Rio de Janeiro, o marido sumiu quando foi visitar a família que morava numa área dominada por milicianos. Jamais teve notícias do marido ou encontrou o corpo. [Maria do Retiro]: Moradora de uma área na zona norte do Rio de Janeiro dominada por milicianos. O filho ficou desaparecido por um período e após alguns meses encontrou apenas a cabeça do filho no Instituto Médico Legal. [Ana Lúcia]: Moradora de uma área na zona norte do Rio de Janeiro dominada por milicianos. O filho ficou desaparecido por um período e após alguns meses encontrou o corpo sem a cabeça no Instituto Médico Legal. [Maria Clara e Rosa]: Maria Clara não tem endereço fixo. Vive pequenos períodos de tempo em cada lugar, precisando se mudar constantemente em razão das ameaças que sofre. O filho encontra-se desaparecido, segundo ela policiais à paisana teriam levado o filho quando este esperava em um ponto de ônibus. Anos mais mais tarde seu neto, filho de Rosa, também desapareceu. Durante anos participou das reuniões das Mães da Cinelância na escadaria da Câmara de Veradores do Rio de Janeiro.

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[Maria Cecília e Laura]: Gari, moradora de uma área popular, na Zona Sul do Rio de Janeiro. O filho de 20 anos desapareceu após sair de casa para ir a uma festa da família da namorada, em Duque de Caxias. Segundo os rumores que chegaram aos ouvidos de Maria Cecília, o filho foi morto por milicianos e o corpo carbonizado, entretanto o cadáver jamais foi localizado ou identificado. [Celso e Tânia]: Pais da engenheira Patrícia, desaparecida após um acidente na Barra da Tijuca. Os indícios apontam envolvimento de policiais. [Maria da Glória]: Moradora de uma favela na zona norte do Rio de Janeiro e mãe de um jovem desaparecido em uma chacina cuja denúncia aponta o envolvimento de policiais que atuariam como um grupo de extermínio. [Maria de Fátima]: Moradora de uma favela na zona norte do Rio de Janeiro e mãe de um jovem desaparecido em uma chacina cuja denúncia aponta o envolvimento de policiais que atuariam como um grupo de extermínio. [Cláudia Helena]: Moradora da Baixada Fluminense, o filho foi sequestrado dentro de uma lan house, próxima de sua casa, por um policial vizinho. [ Maria Auxiliadora]: Moradora da Pavuna, o marido, que era policial, desapareceu. Outros

[Simone]: defensora pública que atua na área da criança e do adolescente. [Leonardo Chaves]: Subprocurador-Geral de Justiça de Direitos Humanos do Ministério Público. [Mara e Eloísa] Assistentes sociais da FIA. [Amaral]: delegado de polícia lotado numa delegacia na Baixada Fluminense. [Isabel Mansur e Rafael Dias]: pesquisadores da ong Justiça Global. [Fábio]: assistente social que atua na ong Projeto Legal. [Antônio]: advogado que atua na ong Projeto Legal.

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ANEXO 2 – PARECER E PROJETO SUBSTITUTIVO DE LEI DO SENADO SOBRE

DESAPARECIMENTO FORÇADO

SENADO FEDERAL

Gabinete do Senador Pedro Taques

PARECER Nº , DE 2011

Da COMISSÃO DE CONSTITUIÇÃO, JUSTIÇA E CIDADANIA, em caráter terminativo, sobre o Projeto de Lei do Senado nº 245, de 2011, do Senador Vital do Rêgo, que acrescenta o art. 149-A ao Código Penal, para tipificar o crime de desaparecimento forçado de pessoa.

RELATOR: Senador PEDRO TAQUES

I – RELATÓRIO

Vem a esta Comissão, para análise, em caráter terminativo, nos termos do art. 101, II, d, do Regimento Interno do Senado Federal, o Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 245, de 2011, de autoria do Senador Vital do Rêgo. A proposição legislativa em exame, na esteira da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos proferida no Caso Gomes Lund e outros em 24 de novembro de 2010, pretende tipificar o crime de desaparecimento forçado de pessoa. De igual modo, merece ser destacado que o Brasil assinou a Convenção Interamericana sobre Desaparecimentos Forçados, cuja aprovação foi realizada pelo Congresso Nacional, por meio do Decreto Legislativo nº 127, de 08 de abril de 2011, que ora aguarda a ratificação e o decreto presidencial de execução. Da justificação do autor, destacamos:

Em termos gerais, o tipo penal delineado começa com a privação de liberdade de alguém, seguida da não informação de sua sorte ou paradeiro, ou da falta de amparo legal. Por percepção interna, não fixada em instrumentos internacionais, acreditamos que para caracterizar esse crime a pessoa deve ficar desaparecida, no mínimo, por quarenta e oito horas. Se for superior a trinta dias o desaparecimento, aumentamos de metade a pena, que na origem é de doze a vinte anos, dando o mesmo tratamento quando a vítima for criança ou adolescente, portador de necessidade especial, gestante, ou tiver diminuída, por qualquer causa, sua capacidade de resistência (§3º do art. 149-A, conforme redação proposta). Inspirados pelo Estatuto de Roma, consideramos que a ação ora censurada pode ser cometida não apenas em nome do Estado, mas de qualquer

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organização política, sem excluir a responsabilidade penal dos agentes envolvidos de forma indireta (mediante autorização, apoio ou aquiescência), mesmo quando, por exemplo, o crime for praticado por grupos irregulares, o que é muito comum. Igualmente, na mesma pena incorrerá o mandante do crime ou qualquer pessoa que colabore para ocultar os fatos ou a pessoa desaparecida (§ 3º do art. 149-A, conforme redação proposta). Ademais, determinamos no § 2º do art. 149-A proposto que o desaparecimento forçado de pessoas terá caráter de crime permanente, enquanto não for esclarecida a sorte ou destino da pessoa desaparecida. […] Por fim, importa esclarecer que o tipo penal básico ora alvitrado concentra-se nas ações de ocultar o fato, negar informação e deixar a vítima sem amparo legal, por isso a pena base pode ser considerada pequena (de dois a seis anos). Contudo, destacamos o fato de que a aplicação desta não elide a das penas correspondentes a outras infrações penais, como as referentes à tortura, lesão corporal e homicídio.

Não foram oferecidas emendas até o momento. II – ANÁLISE

Registramos que a matéria sob exame não apresenta vícios de constitucionalidade, porque o direito penal está compreendido no campo da competência legislativa privativa da União, consoante dispõe o art. 22, I, da Constituição Federal. No caso do desaparecimento forçado de pessoa, com mais razão ainda, impõe-se a ação do Parlamento diante da decisão da Corte Interamericana e dos termos da Convenção Interamericana de que o Brasil é signatário citados acima. Nesse contexto, embora louvando a iniciativa e competência do Senador Vital do Rêgo no enfrentamento de tão intrincado tema, temos que o respectivo projeto de lei pode ser aperfeiçoado com base em sugestões que nos foram encaminhadas por Luiz Carlos dos Santos Gonçalves e Marlon Alberto Weichert, membros do Ministério Público Federal com destacada atuação na área objeto da proposição. Assim, propomos substitutivo com nova redação para o tipo principal com penas de reclusão de seis a doze anos e multa. Também fazemos a previsão de dois tipos qualificados: o primeiro, pelo emprego de tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou se do fato resultar aborto ou lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, com penas de reclusão de doze a vinte anos e multa, e o segundo, qualificado pelo resultado morte, com penas de reclusão de vinte a trinta anos. O crime é comum, mas entre as causas de aumento de pena previstas inicialmente pelo PLS nº 245, de 2011, acrescentamos a de ser o agente funcionário público. Com a nova redação do § 1º, pretendemos abranger o comportamento doloso, comissivo e omissivo, de colaboração posterior à privação da liberdade não alcançado pela cláusula genérica do art. 39 do Código Penal (CP). Com o novo § 2º, procuramos evitar a invocação da obediência devida como causa de exculpação, indicando o caráter ilegal e ilícito de qualquer ordem para a prática do desaparecimento forçado. Para o fiel cumprimento do Artigo III da Convenção Interamericana sobre os Desaparecimentos Forçados, reformulamos a disposição sobre o caráter permanente do novo tipo penal e estabelecemos hipótese

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específica de colaboração premiada que permita a localização da vítima com a sua integridade física preservada ou a identificação dos demais coautores ou partícipes do desaparecimento ou de suas circunstâncias. Por fim, convencidos de que o desaparecimento forçado de pessoa atende aos requisitos de hediondez material, procedemos a sua inclusão no rol do art. 1º da Lei nº 8.072, de 1990.

III – VOTO

Por essas razões, opinamos pela aprovação do Projeto de Lei do Senado nº 125, de 2011, na forma do substitutivo a seguir:

EMENDA Nº – CCJ (SUBSTITUTIVO)

PROJETO DE LEI DO SENADO Nº 245, DE 2011

Acrescenta o art. 149-A ao Código Penal, para tipificar o crime de desaparecimento forçado de pessoa.

O CONGRESSO NACIONAL decreta: Art. 1º O Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, passa a vigorar acrescido do seguinte art. 149-A:

“Desaparecimento forçado de pessoa

Art. 149-A. Apreender, deter, sequestrar, arrebatar, manter em cárcere privado, impedir a livre circulação ou de qualquer outro modo privar alguém de sua liberdade, em nome de organização política, ou de grupo armado ou paramilitar, do Estado, suas instituições e agentes ou com a autorização, apoio ou aquiescência de qualquer destes, ocultando ou negando a privação de liberdade ou deixando de prestar informação sobre a condição, sorte ou paradeiro da pessoa a quem deva ser informado ou tenha o direito de sabê-lo: Pena – reclusão, de 6 (seis) a 12 (doze) anos, e multa. § 1º Na mesma pena incorre quem ordena, autoriza, consente ou de qualquer forma atua para encobrir, ocultar ou manter ocultos os atos definidos neste artigo, inclusive deixando de prestar informações ou entregar documentos que permitam a localização da vítima ou de seus restos mortais ou mantém a pessoa desaparecida sob sua guarda, custódia ou vigilância. § 2º Para efeitos do presente artigo, considera-se manifestamente ilegal qualquer ordem, decisão ou determinação de praticar o desaparecimento forçado de uma pessoa ou ocultar documentos ou informações que permitam a sua localização ou a de seus restos mortais. § 3º Ainda que a privação de liberdade tenha sido realizada de acordo com as hipóteses legais, sua posterior ocultação ou negação da privação da liberdade, ou ausência de informação sobre o paradeiro da pessoa, é suficiente para caracterizar o crime. Desaparecimento forçado qualificado

§4º Se houver emprego de tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou se do fato resulta aborto ou lesão corporal de natureza grave ou gravíssima: Pena – reclusão, de 12 (doze) a 24 (vinte e quatro) anos, e multa. § 5º Se resulta morte: Pena – reclusão, de 20 (vinte) a 40 (quarenta) anos, e multa. § 6º A pena aumenta-se de 1/3 (um terço) até 1/2 (metade):

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I – se o desaparecimento durar mais de 30 (trinta) dias; II – se o agente for funcionário público; III – se a vítima for criança ou adolescente, idosa, portadora de necessidades especiais, gestante ou tiver diminuída, por qualquer causa, sua capacidade de resistência. Colaboração premiada

§ 7º Poderá o juiz, de ofício ou a requerimento das partes, conceder a redução da pena, de um a dois terços, ao acusado que, sendo primário, tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo criminal, desde que dessa colaboração contribua fortemente para a produção dos seguintes resultados: I – a localização da vítima com a sua integridade física preservada ou; II – a identificação dos demais coautores ou partícipes da ação criminosa e das circunstâncias do desaparecimento. § 8º Os delitos previstos neste artigo são imprescritíveis. § 9º A lei brasileira será aplicada nas hipóteses da Parte Geral deste Código, podendo o juiz desconsiderar eventual perdão, extinção da punibilidade ou absolvição efetuadas no estrangeiro, se reconhecer que tiveram por objetivo subtrair o acusado à investigação ou responsabilização por seus atos ou tiverem sido conduzidas de forma dependente e parcial, que se revele incompatível com a intenção de submeter a pessoa à ação da justiça. Consumação do desaparecimento

§ 10 A consumação dos delitos previstos nesse artigo não ocorre enquanto a pessoa não for libertada ou não for esclarecida sua sorte, condição e paradeiro, ainda que ela já tenha falecido.”

Art. 2º O art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, passa a vigorar acrescido do seguinte inciso VIII:

“Art. 1º. ......................................................................... …....................................................................................... VIII – desaparecimento forçado de pessoa (art. 149-A). ................................................................................” (NR)

Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Sala da Comissão,

, Presidente

, Relator

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ANEXO 3 – NOTA DE ESCLARECIMENTO E SOLICITAÇÃO DE RETIFICAÇÃO

DA REDE CONTRA VIOLÊNCIA AO JORNAL O DIA

Ao Jornal o Dia A/C Redator-chefe

À Imprensa do Rio de Janeiro e do Brasil

Nota de Esclarecimento e Solicitação de Retificação

Em relação à notícia “‘Pandemônio’: sem-teto espalham imagens de Cauê de fuzil e vendem camisetas”, publicada no Dia Online hoje 12/07/2007, a Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência, citada na matéria, vem esclarecer o seguinte:

1) A faixa e uma das camisetas expostas em fotografias no site são de fato da Rede e seus desenhos e dizeres vêm sendo divulgados por nós já há algum tempo, inclusive em nosso site, como parte das denúncias que temos feito da intensificação da violência e da arbitrariedade policial que cerca a realização dos Jogos Panamericanos no Rio, cujo exemplo mais trágico foram as mortes nas operações no Complexo do Alemão, muitas das quais já podem ser caracterizadas como execuções sumárias, baseado em depoimentos e laudos. Versões em inglês tanto da faixa como das camisetas foram inclusive levadas para a Europa na recente viagem feita por dois companheiros nossos. Nesta viagem, divulgamos as denúncias em entrevistas a meios de comunicação e reuniões com organismos defensores dos direitos humanos.

A faixa e as camisetas, portanto, são manifestações legítimas de protesto e denúncia contra a prática e política de extermínio e criminalização da pobreza conduzidas pelo Estado no Rio de Janeiro, bem como contra a conivência governamental com a corrupção policial, fatos que têm sido objeto de denúncias internacionais há vários anos. 2) O companheiro Joel Valentim, a companheira Antônia Ferreira dos Santos e vários outros moradores e moradoras da Ocupação Zumbi dos Palmares, afirmam pessoalmente que “em nenhum momento deram qualquer declaração ao jornal admitindo a autoria dos grafites executados no Maracanã e outras partes da cidade”, conforme informa falsamente a matéria. A informação veiculada pelo jornal, se não é um equívoco, trata-se de uma tentativa flagrante de criminalizar movimentos sociais legítimos como a Rede e o movimento dos sem-teto que ocupam organizadamente prédios públicos abandonados há anos, sem cumprir função social conforme determina a Constituição. É particularmente grave que esta tentativa de criminalização aconteça às vésperas da realização do ato de protesto contra a violência e a corrupção no Pan, organizada e convocada por mais de 30 organizações e movimentos sociais para amanhã, 13/07, com concentração às 11h em frente ao Centro Administrativo da Prefeitura na Cidade Nova. A realização desse ato foi notificada a todas as autoridades devidas e divulgada publicamente, dentre outras formas, numa coletiva de imprensa realizada ontem 11/07. Além da notícia de O Dia, as declarações do prefeito César Maia sobre a mesma e aquelas publicadas hoje no Jornal O Estado de São Paulo, junto com a notícia sobre o ato de amanhã, podem ser vistas como tentativas de se justificar uma ação repressiva violenta da polícia contra a manifestação. Esse tipo de atitude é irresponsável, provocadora e digna dos piores tempos do regime de exceção no Brasil, que infelizmente parece que estamos voltando a viver nesses dias de realização do Pan no Rio de Janeiro.

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3) A caricatura do companheiro Latuff, que nunca foi condenado por anti-semitismo conforme parece sugerir a matéria de O Dia, tem sido utilizada publicamente por diversos movimentos e organizações, sites e materiais impressos desde setembro de 2006. É inevitável que partes dela ou sua idéia geral (associar a realização dos Jogos, da maneira como vem sendo feita pelos governos federal, estadual e municipal, com o aumento da violência policial sobre os moradores de favelas e periferias no Rio) tenham sido apropriadas por indivíduos ou grupos dos mais diferentes tipos. A imagem do Cauê com o fuzil foi percebida por setores importantes da população como símbolo do que tem sido reservado à população pobre da cidade no Panamericano: violência, descaso e inexistência de verdadeiros investimentos sociais. Entretanto, não há como daí associar qualquer coisa que tenha sido feito com essa imagem aos movimentos organizados contra a violência do Estado ou por moradia, ou às organizações e movimentos que convocam o ato de amanhã. Repetimos, fazer isso é mais uma demonstração da sórdida estratégia de criminalização dos movimentos e lutas sociais que vêm sendo posta em ação pelos governos no Brasil.

Diante disso tudo, estamos publicamente denunciando os fatos acima, e solicitando correção da informação incorreta publicado por O Dia, em todos os meios e espaços em que ela tenha sido feita, bem como direito de resposta nos termos da lei. Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência

Rio de Janeiro, 12 de julho de 2007.

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ANEXO 4 – CADERNO DE IMAGENS

Reportagem 4: Mães de Acari: um parto que já dura 15 anos67

67 Em 26 de julho de 2012, o Caso Acari completou 22 anos.

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Reportagem 5: Polícia procura ossadas e acha leões em Magé

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Reportagem 6: Milícia é acusada de sequestrar dois jovens em Ramos

Reportagem 7: Milícia acusada de sumiço de jovens na Praia de Ramos

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Reportagem 8: Menores somem na Baixada Reportagem 9: Seis corpos

achados no Juramento

Reportagem 10: Corpos fatiados em Manguinhos

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Reportagem 12: PMs suspeitos de matar engenheira

Reportagem 11: Jovem some

após acidente

Reportagem 13: Mais PMs suspeitos

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Reportagem 14: Uma nova esperança para achar desaparecidos

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Foto 26: Manifestação em memória dos 20 anos do Caso Acari

Foto 27: Painel com imagem de Edméia, uma das Mães de Acari,

assassinada em 1993 quando saía de uma visita em um presídio

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Foto 28: Bonecos no chão representando os jovens desaparecidos de Acari

e faixas com consígnias de protesto

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Foto 29: Faixas, cartazes e fotos

Foto 30: Faixa das Mães de Maio: grupo de mães e familiares de mortos

e desaparecidos durante os ataques do PCC em São Paulo e a

represália da polícia. As Mães de Maio estiveram presentes em Acari

para participar do ato em memória dos 20 anos do caso.

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Foto 31: Os objetos do protesto

Foto 32: Concentração para o ato em frente ao Hospital de Acari

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Foto 33: A memória afetiva - objeto de lembrança de Patrícia

Foto 34: Mãe da engenheira desaparecida com fotos de recordação

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Foto 35: Cláudia Helena com reportagem de jornal sobre o caso do filho desaparecido

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Foto 36: Manifestação em memória dos 4 anos da chacina da Baixada Fluminense

Foto 37: Cenário do ato – faixas e banners

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Foto 38: Flores e jornais com notícias sobre a chacina

Foto 39: Manchete do jornal – Ele queria voltar para a nossa terra

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