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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA A ERA DA REFORMA PR. ARY QUEIROZ VIEIRA JÚNIOR

Estudos em história da igreja a era da reforma protestante

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Pr. Ary Queiroz Vieira Júnior

Estudos de História da Igreja

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

ESTUDOS DE HISTÓRIA

DA IGREJA

A ERA DA REFORMA

PR. ARY QUEIROZ VIEIRA JÚNIOR

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Sumário I. A Causa Imediata da Reforma, Lutero e o Avanço do Luteranismo ......................................... 3

1. Introdução. ............................................................................................................................ 3

2. Martinho Lutero (1483-1546). .............................................................................................. 3

3. O impacto de Lutero. ........................................................................................................... 12

4. O avanço do Luteranismo. .................................................................................................. 13

II. Ulrich Zwínglio, a Reforma na Suíça e os Anabatistas .......................................................... 15

1. Introdução. .......................................................................................................................... 15

2. Ulrich Zwínglio. .................................................................................................................. 15

3. Os Anabatistas. .................................................................................................................... 20

III. João Calvino e a Reforma em Genebra ................................................................................. 26

1. João Calvino e a Reforma em Genebra. .............................................................................. 26

2. Atividades missionárias de Calvino. ................................................................................... 31

3. Missões Calvinistas no Brasil Colonial. .............................................................................. 33

4. A obra, a pregação e a influência de Calvino. ..................................................................... 37

5. O pensamento de Calvino: Calvinismo ou Fé Reformada. ................................................. 42

IV. O Calvinismo Além da Suíça ................................................................................................ 50

1. O Calvinismo na Alemanha e o Catecismo de Heidelberg. ................................................ 50

2. O Calvinismo na Hungria, Escócia e Irlanda. ..................................................................... 51

3. O Calvinismo na França. ..................................................................................................... 53

V. O Calvinismo Além da Suíça ................................................................................................. 57

1. A Reforma na Holanda. ....................................................................................................... 57

2. A Confissão Belga, a Controvérsia Arminiana e o Sínodo e os Cânones de Dort. ............. 60

3. O Calvinismo Holandês no Brasil Colônia. ........................................................................ 65

VI. A Reforma na Inglaterra ....................................................................................................... 71

1. Introdução. .......................................................................................................................... 71

2. A Reforma sob Henrique VIII (1509-1547). ....................................................................... 71

3. A Reforma sob Eduardo VI (1547-1533). ........................................................................... 73

4. A reação católica de Maria Tudor (1553-1558). ................................................................. 74

5. A reforma sob Elizabeth: a Era Elizabetana (1558-1603). .................................................. 76

6. O puritanismo. ..................................................................................................................... 77

7. Os puritanos congregacionais: separatistas e independentes............................................... 78

8. O governo da Igreja e sua relação com o Estado nas diversas tradições protestantes. ........ 86

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9. Ascensão e declínio do puritanismo. ................................................................................... 91

VII. A (Contra-)Reforma Católica Romana, a ameaça sociniana e a síntese da Reforma

Protestante ................................................................................................................................... 97

1. A (Contra-)Reforma Católica Romana................................................................................ 97

2. A ameaça sociniana. .......................................................................................................... 101

3. A síntese da Reforma. ....................................................................................................... 103

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A Reforma Protestante

I. A Causa Imediata da Reforma, Lutero e o Avanço do Luteranismo

1. Introdução.

Diversos fatores se conjugaram para formar o ambiente no qual floresceu a

reforma religiosa do século XVI, dentre eles as transformações nos campos político,

social, econômico, intelectual e geográfico. Entretanto, a causa imediata da Reforma

Protestante envolveu diretamente as ações corajosas de um monge alemão agostiniano

chamado Martinho Lutero, sobre quem nos concentraremos nesse momento de nosso

estudo.

2. Martinho Lutero (1483-1546).

2.1) Da formação à experiência da torre. Lutero nasceu em 10 de

novembro de 1483, na vila de Eisleben, na Saxônia, Alemanha. Seu pai, Hans Luder, era

minerador de prata e sua mãe, Margarethe, uma católica fervorosa, embora bastante

supersticiosa. Seu pai tudo fez para que Lutero seguisse a carreira jurídica, dando-lhe a

melhor educação possível.

Sobre a infância do reformador, Justo L. Gonzalez escreveu o seguinte:

“Seus pais eram extremamente severos com ele e muitos anos mais tarde ele mesmo

contava com amargura alguns dos castigos que lhe eram impostos... Na escola suas

primeiras experiências não foram melhores, pois também posteriormente se queixava de

como o tinham golpeado por não saber suas lições”.

Aos 14 anos, foi enviado para estudar em Mansfeld, e depois em

Magdeberg, onde estudou com os Irmãos da Vida Comum. Entre os anos de 1498 a 1501,

estudou na escola de Eisenach. Em 1501, já estava na Universidade de Erfurt, onde

recebeu grau de bacharel em artes (em 1502) e de mestre em artes (em 1505).

Tudo estava como planejado pelo velho Hans. Chegara o momento de

ingressar no curso de direito. Mesmo Lutero tinha a intenção de tornar-se advogado. Mas,

num certo dia de 1505, durante uma tempestade, ele foi atingido por um raio e, lançado

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ao chão, clamou por Santa Ana, a padroeira dos mineiros: “Santa Ana, salve-me! E me

tornarei monge”. Para a completa insatisfação dos pais, Lutero manteve a promessa e no

dia 17 de julho de 1505, com 22 anos, ingressou no convento dos monges agostinianos.

Em 1507, Lutero foi ordenado sacerdote na Catedral de Santa Maria e, em

1508, seu superior, Johann von Staupitz, o compeliu a tornar-se doutor em teologia, grau

que colou em 1512. Antes, porém, entre os anos de 1510 e 1511, sua ordem o enviou a

Roma, ocasião em que ficou impressionado com a luxúria da Igreja Romana.

Em 1512, começou a preparar-se para fazer uma série de preleções na

faculdade de teologia da Universidade de Wittenberg. Entre 1513 e 1515, deu aulas sobre

os Salmos; entre o fim de 1515 e 1517, lecionou sobre Romanos, Gálatas e Hebreus; e,

entre 1518 e 1519, sobre os Salmos outra vez. Foi durante essas preleções que o

reformador começou a adquirir uma nova compreensão das Escrituras. Escrevendo mais

tarde, ele disse: “No transcorrer desses estudos, o papado soltou-se de mim” (citado por

Franklin Ferreira).

Enquanto monge, Lutero era de uma dedicação quase obcecada. Estava

sempre atormentado com a ideia da majestade de Deus e pelo senso de sua

pecaminosidade. Às vezes, engajava-se em penitências que extrapolavam os limites

suportados pelo corpo, chegando a jejuar três dias e a dormir no inverno sem cobertor.

Sobre sua primeira missa, ele disse: “Eu estava completamente estupefato e aterrorizado.

Pensava comigo mesmo: ‘Quem sou eu para erguer os olhos e as mãos para a divina

majestade? Pois sou pó e cinzas, e cheio de pecado, e estou falando com o Deus vivo,

eterno e verdadeiro’”.

Anos depois, Lutero falou o seguinte sobre a sua conduta como monge: “Eu

obedecia as regras tão rigidamente, que posso afirmar que, se um monge fosse para o céu

por sua dedicação, esse monge seria eu. Se tivesse continuado dessa forma por mais

tempo, teria me matado com vigílias, orações, leituras e outros trabalhos”. Durante esses

anos tentando aplacar a agonia da alma, o confessor de Lutero o orientou que ele amasse

a Deus, e um dia ele desabafou: “Eu não amo a Deus! Eu o odeio!”

Assim Lutero seguiu até novembro de 1515, quando começou a expor a

Epístola de Paulo aos Romanos, aulas que perdurou até setembro de 1516. Foi nesse

período que compreendeu a doutrina paulina da justificação pela fé somente, a partir da

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leitura de Romanos 1:17: “visto que a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em

fé, como está escrito: ‘o justo viverá por fé’”. Ele escreveu o seguinte sobre a experiência

da torre (como é chamada, por ter ocorrido na torre do Castelo Negro de Wittenberg):

“Ansiava muito por compreender a Epístola de Paulo aos Romanos, e nada me

impedia o caminho, senão a expressão ‘a justiça de Deus’, porque a entendia

como se referindo àquela justiça pela qual Deus é justo e age com justiça

quando pune os injustos... Noite e dia eu refletia até que... captei a verdade de

que a justiça de Deus é aquela justiça pela qual, mediante a graça e a pura

misericórdia, Ele nos justifica pela fé. Daí em diante, senti-me renascer e

atravessar os portais abertos do paraíso. Toda a Escritura ganhou novo

significado e, ao passo que antes ‘a justiça de Deus’ me enchia de ódio, agora

se me tornava indizivelmente bela e me enchia e maior amor. Esta passagem

veio a ser para mim uma porta para o céu” (citado por F. F. Bruce).

2.2) Das 95 teses ao rompimento com Roma. Enquanto Lutero descobre a

futilidade das obras e a suficiência da fé no sacrifício de Jesus para a salvação, um monge

dominicano chamado Johann Tetzel, representando o papa Leão X, começou a vender

indulgências em Juterborg, próximo a Wittenberg, cuja parte da arrecadação seria

destinada a Roma, à construção da Catedral de São Pedro.

A venda de indulgências tanto tinha relação com os interesses do papa, em

Roma, como com os poderosos senhores feudais locais. Alberto de Brandeburgo, membro

da casa dos Hohenzollern, que já tinha duas sedes episcopais, desejava ocupar também o

arcebispado de Mainz. Para tanto, acordou com Leão X no sentido deste lhe conceder o

desejo em troca de dez mil ducados, uma soma considerável de dinheiro. Foi para

arrecadar esse valor que o papa autorizou Alberto a lançar uma venda em larga escala de

indulgências, que, a seu turno, encarregou Tetzel da mercancia. “Logo, a grande basílica

que hoje é o orgulho da igreja romana foi uma das causas indiretas da reforma protestante”

(J. L. Gonzalez).

Indulgências eram diplomas que garantiam o pleno perdão de pecados, ou a

redução da punição. Enquanto oferecia seu “produto”, Tetzel afirmava: “‘Não vale a pena

atormentar-se: podes resgatar seus pecados com dinheiro! Pagando, podes escapar dos

sofrimentos do purgatório e aliviar os dos outros!’, e tudo embalado pelo cântico: ‘Na

hora em que a moeda no cofre cai, uma alma do purgatório sai’” (Franklin Ferreira); “As

indulgências deixam o pecador mais limpo do que quando saiu do batismo”; “A cruz do

vendedor de indulgências tem tanto poder quanto a cruz de Cristo”...

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Em resposta àquilo que considerou abusivo, Lutero afixou suas 95 teses na

porta da Igreja do Castelo de Wittenberg, no dia 31 de outubro de 1517, com o título

Debate para o Esclarecimento do Valor das Indulgências. Ele escolheu aquela data

propositalmente, pois no dia seguinte se comemoraria a festa de Todos os Santos. Flaklin

Ferreira anotou que “O fato de afixar uma tese na porta da igreja não era grande coisa,

pois os eruditos naquele tempo faziam isso; mas, com a invenção da imprensa, essas teses

foram traduzidas e se espalharam pela Europa, dando início à batalha”.

Eis algumas teses de Lutero:

1ª. Tese: Dizendo nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo: “Arrependei-vos”,

certamente quer que toda a vida dos crentes na terra seja contínuo

arrependimento. 2ª. Tese: E esta expressão não pode e não deve ser interpretada

como referindo-se ao sacramento da penitência, isto é, à confissão e satisfação,

a cargo do ofício dos sacerdotes. (...) 21ª. Tese: Eis porque erram os

apregoadores de indulgências ao afirmarem ser o homem perdoado de todas as

penas e salvo mediante a indulgência do papa. (...) 27ª. Tese: Pregam

futilidades humanas quantos alegam que no momento em que a moeda soa ao

cair na caixa a alma se vai do purgatório. 28ª. Tese: Certo é que no momento

em que a moeda soa na caixa vem o lucro e o amor ao dinheiro cresce e

aumenta; a ajuda, porém, ou a intercessão da Igreja tão só correspondem à

vontade e ao agrado de Deus. (...) 62ª. Tese: O verdadeiro tesouro da Igreja é

o santíssimo Evangelho da glória e da graça de Deus. 63ª. Tese: Este tesouro,

porém, é muito desprezado e odiado, porquanto fez com que os primeiros

sejam os últimos. 64ª. Tese: Enquanto isso o tesouro das indulgências é

sabiamente o mais apreciado, porquanto faz com que os últimos sejam os

primeiros. (...) 82ª. Tese: Eis um exemplo: Porque o papa não tira duma só vez

todas as almas do purgatório, movido por santíssima caridade e em face da

mais premente necessidade das almas, que seria justíssimo motivo para tanto,

quando em troca de vil dinheiro para a catedral de São Pedro, livra um sem

número de almas, logo por motivo bastante insignificante? (...) 86ª. Tese:

Ainda: Por que o papa, cuja fortuna hoje é maior que a dos mais ricos, não

prefere edificar a Catedral de São Pedro de seu próprio bolso em vez de o fazer

com o dinheiro dos fieis pobres?

Lutero atacou a tiara do papa e a barriga dos frades. “Tiara” é símbolo do

poder papal. A ganância dos frades, por outro lado, foi sacudida. O machado estava posto

à raiz da arvore. Em 15 dias, toda a Alemanha sabia dessas teses. Em quatro semanas,

toda a cristandade sabia delas e, nesse período, foram traduzidas para o holandês e para o

espanhol. Até em Constantinopla foram vendidas.

O papa demorou para reagir. A princípio, acreditou tratar-se de uma briga

entre frades, sem maiores sequelas. A vida de Lutero, por outro lado, mudou

radicalmente. De pacato professor de teologia, dá início a uma sequência de debates e

“Dietas”. O primeiro debate ocorreu em Heidelberg, em maio de 1518, em sua própria

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ordem, sem maiores consequências, visto que só compareceram aqueles que aceitavam

suas ideias, dentre eles Martin Bucer (1491-1551).

O segundo aconteceu em outubro de 1518, na Dieta de Augsburgo. O

cardeal Tomás Cajetano era o representante do papa. Foi ele que exigiu que Lutero se

retratasse e tentou levá-lo cativo a Roma. Lutero se escondeu e, durante a noite, retornou

a Wittenberg. Steven J. Lawson escreve a respeito: “Desde João Huss nenhuma outra

pessoa tinha falado tão ousadamente contra a autoridade papal – e Huss fora executado.

Lutero saiu de Augsburg temendo por sua vida, e retornou a Wittemberg sob a proteção

do príncipe-eleitor Frederico III, da Saxônia”.

Foi em 1518 que chegou em Wittenberg para ensinar grego e hebraico o

jovem Filipe Melanchton (1497-1560), com então 21 anos. Ele nasceu em Bretton, Baden,

em 1947. Seu nome era Philipp Schwarzert (o sobrenome significa “terra negra”), mas,

por muito amar a língua grega, helenizou seu sobrenome, adotando-o como

“Melanchton”, “terra negra” em grego. Melanchton tornou-se muito amigo de Lutero e

útil ao reformador pelo espírito moderado e pelo domínio das línguas originais da Bíblia.

Foi ele o autor e compilador da Confissão de Fé de Augsburgo, de 1530, sobre a qual

ainda teceremos breves comentários.

A disputa seguinte ocorreu em Leipzig, em junho de 1519. Aqui, Lutero não

debate, mas suas ideias são debatidas. Johann Eck representou o papa e Carltadt, Lutero.

Nessa disputa, Lutero negou a infalibilidade dos concílios e rejeitou a autoridade do papa.

Eck acusou Lutero de “hussita” e o declarou inimigo do papa.

Em 1520, Lutero escreveu três importantes panfletos: Discurso à Nobreza

Cristã da Nação Alemã, Do Cativeiro Babilônico da Igreja e Sobre a Liberdade Cristã.

Bruce L. Shelley afirma que essa última obra (Sobre a Liberdade Cristã), “talvez seja a

melhor apresentação de suas principais ideias. Ele não desencorajava boas obras, mas

afirmava que a liberdade espiritual interior que vem da certeza encontrada na fé que leva

à realização de boas obras – por todos os verdadeiros cristãos. ‘Boas obras não tornam o

homem bom’, dizia, ‘mas o homem bom realiza boas obras’”.

Em junho de 1520, o papa Leão X publicou a bula Exsurge Domine, que

condenava Lutero e lhe dava 60 dias para retratar-se de suas ideias, sob pena de

excomunhão. Lutero recebeu a bula em 10 de outubro e, em resposta, em 10 de dezembro

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de 1520, queimou a bula papal, o direito canônico e alguns livros papistas. Aqui, ele

rompe definitivamente com o papado.

No início de 1521, Lutero foi convocado a Worms, para comparecer perante

o imperador Carlos V e os príncipes da Alemanha, para prestar contas de seu ensino. Com

a garantia de proteção de Frederico e outros príncipes germânicos, Lutero compareceu.

Em Worms, depois de dois dias de debates, ele foi instado a retratar-se e a retornar à

comunhão com Roma. Por sentir a gravidade do momento, o reformador pediu um tempo

e, no dia seguinte, ele respondeu:

“Já que me pede uma resposta simples, darei uma que não deixa margem a

dúvidas. A não ser que alguém me convença pelo testemunho da Escritura

Sagrada ou com razões decisivas, não posso retratar-me. Pois não creio nem

na infalibilidade do papa, nem na dos concílios, porque é manifesto que

frequentemente se têm equivocado e contradito. Fui vencido pelos argumentos

bíblicos que acabo de citar e minha consciência está presa na Palavra de Deus.

Não posso e não quero revogar, porque é perigoso, e não é certo agir contra

sua própria consciência. Que Deus me ajude. Amém.”

Assim, na noite de 18 de maio de 1521, Lutero foi excomungado. O

imperador Carlos V ficou impressionado com sua teimosia e o declarou proscrito, um

fora-da-lei. Lutero tinha 21 dias para retornar à Saxônia, antes que a sentença viesse a ser

prolatada.

Sabendo Frederico, o Sábio, que o imperador forçaria a Dieta a condenar

Lutero, tramou uma forma de salvá-lo. Gonzalez narra o episódio: “Um grupo de homens

armados, debaixo de instruções de Frederico, sequestrou o frade e o levou até Wartburgo.

Devido às suas próprias instruções, nem o próprio Frederico sabia onde o tinham

escondido. Muitos o deram por morto e corriam rumores de que fora morto por ordem do

papa e do imperador”.

2.3) De Worms à morte. Durante sua estada no Castelo de Wartburgo, entre

maio de 1521 e março de 1522, Lutero não perdeu tempo. Foi ali que ele deu início à

tradução do Novo Testamento para o alemão, obra concluída dois anos depois. O Antigo

Testamento ainda demorou mais dez anos para estar pronto, em 1534.

Enquanto Lutero estava oculto em Wartburgo, a reforma prosseguia em

passos largos, sobretudo pela operosidade de Carlstadt e Melanchton, influenciando a

forma de vida e de liturgia da Igreja alemã. O culto tornou-se simples e os sermões

começaram a ser pregados em alemão. As missas pelos mortos foram abolidas, os fieis

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começaram a partilhar o cálice e muitos monges e freiras deixaram os conventos. Lutero,

segundo Gonzalez, estava vendo tudo com bons olhos, mas aconselhou moderação

quando Carlstadt e outros de seus seguidores se dedicaram a derrubar imagens.

Nesse período, apareceram em Wittenberg três homens procedentes de

Zwickau, a cidade vizinha, dizendo-se profetas. Para eles, não havia necessidade das

Escrituras, visto que Deus lhes falava diretamente. Melanchton, inseguro quanto ao modo

de responder aos “profetas”, pediu conselhos a Lutero, ainda exilado em Wartburgo. Até

Carlstadt chegou a ser influenciado por eles.

Foi esse episódio que levou o reformador a sair do exílio e a retornar a

Wittenberg. Cairns anota a respeito desse momento da vida do reformador o seguinte:

“Mesmo sob risco de vida, Lutero retornou a Wittenberg em 1522. Depois de oito dias de

sermões candentes, em que salientou a autoridade da Bíblia e a necessidade de uma

mudança gradual na Igreja, Lutero aniquilou os profetas de Zuickau. O setor radical da

Reforma, então, sentiu que não poderia contar com a ajuda de Lutero, que em 1935

rompeu abertamente com o movimento anabatista”.

Entretanto, 1525 foi um dos anos mais agitados na vida agitada de Lutero.

Primeiro, porque foi nesse ano que estourou a revolta dos camponeses; segundo, no

mesmo ano ele também rompeu com os humanistas, tais como Erasmo; terceiro, foi

também em 1525 que ele se casou com a noviça Catherina von Bora, com quem teve seis

filhos.

Para o nosso interesse, vale destacar o debate ocorrido entre Lutero e

Desidério Erasmo (c. 1466-1536), sendo este cerca de dezessete anos mais velho que o

reformador alemão. Erasmo e Lutero tinham muitas coisas em comum. Ambos haviam

passado pela ordem agostiniana, eram dotados de grande erudição e lutaram contra as

crendices e superstições que predominavam na fé popular, com a chancela do papa.

A princípio, Erasmo parecia ser um aliado de Lutero. Mas, Lutero desafiava

os ensinos de Roma sobre salvação e Erasmo continuava doutrinariamente romano. Eles

discordavam acerca do “livre arbítrio”. Para o humanista Erasmo, os homens podem

conquistar a sua salvação. Para Lutero, a salvação é recebida pela graça divina, mediante

a fé somente.

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Conhecido por sua erudição, Erasmo foi pressionado a defender o “livre

arbítrio”, e, apesar de Lutero haver-lhe solicitado que não fizesse tal coisa, o humanista

holandês cedeu e publicou, em 1524, a obra Discussão Sobre o Livre-Arbítrio, tendo

escrito a Henrique VIII o seguinte: “Os dados foram lançados. O livrete sobre o Livre-

Arbítrio acaba de ver a luz do dia”. O livro agradou ao papa, ao Santo Império Romano

e foi elogiado por Henrique VIII.

No ano seguinte, em 1525, Lutero disparou sua resposta na obra A

Escravidão da Vontade, que a introduz com as seguintes palavras: “Martinho Lutero, ao

venerável D. Erasmo de Rotterdam, com os votos de Graça e Paz em Cristo”. Na obra,

Lutero contra-ataca a tese de Erasmo expondo a doutrina do pecado original. “Para

Lutero, a livre vontade é um termo divino, e não cabe a ninguém, a não ser unicamente à

majestade divina. Conceder ao ser humano tal atributo significaria nada menos do que

atribuir-lhe a própria divindade, usurpando a glória do Criador” (Gilson Santos).

Lutero considerava A Escravidão da Vontade sua melhor obra. Gilson

Santos fala com razão, quando observa o seguinte: “O atual ensino de muitos que se

denominam ‘protestantes’ está mais em harmonia com os dogmas papistas, ou com as

ideias de Erasmo, do que com os princípios dos Reformadores; analisando criticamente,

tal ensino está em maior harmonia com os Cânones e decretos do Concílio de Trento do

que com as Confissões de Fé Protestantes e Reformadas”.

Por volta de 1527, Lutero dava claros sinais de cansaço. Sua saúde não

andava bem e a Peste Negra grassava na Alemanha. Enquanto muitos fugiam para

escapar, Lutero permaneceu em Wittenberg e usou sua casa como um hospital, momento

em que quase perdeu um filho pequeno. Foi em meio a essa crise que escreveu seu famoso

hino Castelo Forte, baseado no Salmo 46. Segue uma tradução literal do Hino da

Reforma, como Castelo Forte é conhecido (tradução de IIson Kayser; fonte:

http://www.luteranos.com.br/conteudo/salmos-46-1-7-1-11. Com acesso em

21/08/2014):

“Castelo firme é nosso Deus

Boa defesa e armamento,

Ele nos livra de toda a aflição

Que agora nos atingiu.

O velho malvado inimigo

Agora Investe para valer,

Grande poder e muita astúcia

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São seu cruel armamento.

Sobre a terra não existe igual a ele.

Ainda que o mundo estivesse

cheio de demônios e nos quisesse devorar,

Não nos apavoraremos demais,

Pois venceremos apesar de tudo.

O príncipe deste mundo,

Por mais raivoso que ele se apresente,

Nada nos fará,

Isso porque já está julgado,

Uma palavrinha pode derrubá-lo.

Com nossa força nada alcançaremos,

Logo estaremos perdidos,

Por nós luta o homem certo,

Que o próprio Deus escolheu.

Perguntas quem é Ele?

Seu nome é Jesus Cristo

O Senhor Zebaote

E não há outro Deus.

Ele há de vencer.

A Palavra eles têm de deixar de pé,

Mesmo que não o queiram,

Ele está agindo entre nós

Com Seu Espírito e dons.

Se [nos] tirarem o corpo,

Bens, honra, filhos e esposa,

Que se vá!

Isso não lhes trás nenhum proveito,

O Reino mesmo assim há de ser nosso”.

Em 1929, Lutero não soube conjugar forças com o reformar suíço Ulrich

Zwínglio, quando teve oportunidade de fazê-lo. Em junho de 1529, o imperador Carlos

V concluiu a guerra contra a França e resolveu voltar-se contra o movimento protestante.

Havia necessidade de uma aliança entre os príncipes de fé luterana e as cidades

reformadas da Suíça para enfrentar o Santo Império.

Assim, em outubro de 1529, com a mediação de um nobre alemão, Filipe de

Hesse, encontraram-se no Castelo de Marburg Lutero e Melanchton, Zwínglio e Johann

Oecolampadius e Bucero, com o fim de fazerem a desejada aliança. Concordaram em 14

pontos dos 15 propostos. O ponto controvertido foi a presença de Cristo na Ceia. Como

Lutero insistiu na interpretação de literal da expressão “isto é o meu corpo”, escreveu-a

em latim (hoc est corpus meum), com giz, na mesa, e cobriu-a com um cetim. Durante a

reunião, quando Zwínglio questionou a posição luterana, o reformador alemão retirou o

pano e grifou a frase previamente escrita. Não houve acordo. Lutero ensinava a

consubstanciação. Para Zwínglio, a Ceia é um memorial. E, mais tarde, Calvino viria a

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ensinar a presença espiritual de Cristo na Ceia. Ainda em 1529, Lutero concluiu a

elaboração dos seus Catecismos Maior e Menor.

Em 1530, foi convocada a Dieta de Augsburgo. Nela, o imperador pediu que

se lhe apresentasse uma exposição dos pontos doutrinários controvertidos. Para tanto,

Melanchton preparou um documento que ficou conhecido como Confissão de Augsburgo.

Esta confissão tornou-se o credo oficial da Igreja Luterana, “o primeiro dos sete credos

que fizeram do período entre 1517 e 1648 o grande período de formulação doutrinária do

protestantismo, assim como o período de 325 a 451 fora o da formulação dos credos

ecumênicos da Igreja, como o de Nicéia” (Cairns).

Lawson constatou que “Cada conflito fazia que ele [Lutero] perdesse um

pouco de si, deixando-o mais fraco”. Seus amigos temeram por sua morte em 1537,

devido a cálculos de ácido úrico, artrite severa e problemas cardíacos e digestivos.

Restaurado, voltou a ficar doente em 1541. Mas, sua morte só ocorreu em 18 de fevereiro

de 1546, quando tinha 62 anos, em Eisleben, sua terra natal. Suas últimas foram: “Somos

todos mendigos. Isso é verdade”. Seu corpo foi levado a Wittenberg, com milhares de

pranteadores no cortejo fúnebre, e sepultado abaixo do púlpito da Igreja do Castelo, a

mesma onde afixou suas 95 teses, há quase 29 anos.

3. O impacto de Lutero.

Lutero falava com razão, quando disse: “Sou bastante conhecido pelo céu e

pelo inferno”. A propósito do lamento pela morte do reformador, sua esposa Catherina

escreveu: “Quem não se afligiria e se entristeceria com a perda de homem tão precioso

quanto era meu amado senhor. Ele fez grandes coisas, não apenas para a cidade ou para

uma única terra, mas para o mundo inteiro”. Concordamos com Catherina!

Lutero não foi um homem perfeito. Ele transigiu com a bigamia de Filipe

de Hesse. Fez declarações antissemitas assustadoras. Mas, sua contribuição, sobretudo no

campo religioso, foi profunda, extensa e permanente. Lutero foi, acima de tudo, um

pregador das Escrituras. Ele pregou sete mil sermões entre 1510 e 1546, o que significa

uma média de quatro sermões por semana e duzentos por anos. Mesmo em 1528, o ano

marcado pela Peste Negra, Lutero pregou cerca de duzentos sermões.

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

Os dogmas papais que persistiram durante mil anos de trevas foram todos

sacudidos pelo reformador. Se tomarmos como paradigma da doutrina de Lutero a

Confissão de Augsburgo, veremos que ela estabelece a salvação pela graça, mediante a fé

(Artigo 4), sendo as obras resultado e não causa da salvação (Artigos 6 e 20), define a

igreja cristã como “a congregação de todos os crentes e santos” (Artigo 8), afirma ser

impossível ao “livre-arbítrio” agradar a Deus sem as operações do Espírito Santo (Artigo

18), reconhece apenas dois sacramentos e concede o cálice aos leigos (Artigos 9, 10 e

22), propugna pelo casamento dos sacerdotes (Artigo 23) e retira o aspecto sacrificial da

missa (Artigo 24). Ademais, questiona o culto aos santos (Artigo 21) e o voto monástico

(Artigo 27).

Mais ainda, Lutero questionou a autoridade papal e asseverou o slogan Sola

Scriptura. A Igreja Romana via o papado como acima das Escrituras, e em pé de

igualdade com elas estavam os credos, os concílios e os pais da igreja. Para o reformador,

todavia, somente a Escritura deveria governar a Igreja. Certa vez, dirigindo-se

diretamente ao papa, Lutero declarou: “Meu querido papa, vós não deveis dominar sobre

as Escrituras, nem eu ou qualquer pessoa, de acordo com nossas ideias próprias. É o diabo

que toma tal atitude! Pelo contrário, devemos permitir que a Escritura nos reja e domine,

não sendo nós mesmos os mestres que colocam nossas próprias loucas cabeças acima da

Escritura” (citado por Lawson).

Para Lutero, o Espírito Santo é o autor da Bíblia e o “púlpito é o trono da

Palavra de Deus”. Ele afirmou que “O mais alto culto a Deus está na pregação, porque ali

são louvados o nome e os benefícios de Cristo”. Por isso mesmo, o reformador não

poderia tolerar nada que assumisse o lugar da pregação da Palavra de Deus. Eis a sua voz

de lamento:

“A Palavra de Deus foi silenciada e apenas a leitura e o cântico permanecem

nas igrejas. É o pior dos abusos. Uma multidão de fábulas e mentiras não

cristãs, nas lendas, hinos e sermões foram introduzidos, de maneira horrível de

se ver. A fé desapareceu e todos eram pressionados a entrar no sacerdócio, em

conventos, monastérios, e construir e paramentar igrejas. Uma congregação

cristã jamais deverá se ajuntar sem a pregação da Palavra de Deus e a oração,

por mais breve que seja a reunião, conforme diz o Salmo 102: ‘Quando o rei e

o povo se ajuntam para servir ao Senhor, eles declararão o nome e o louvor de

Deus’. E Paulo em I Coríntios 14:26-31 diz que quando se ajuntam, deve haver

profecia, ensino e admoestação. Assim, quando a Palavra não for ensinada, é

bom que não se cante nem leia, nem mesmo se ajuntem” (citado por Lawson).

4. O avanço do Luteranismo.

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

Quando o imperador livrou-se dos inimigos externos, voltou-se para

combater o protestantismo alemão. Por esse motivo, tiveram lugar as chamadas guerras

esmalcádicas, entre 1546 e 1552, que só cessaram com a Paz de Augsbrugo, de 1555, que

deu ao luteranismo igualdade com o catolicismo romano na Alemanha.

A partir da Alemanha, a fé luterana alcançou os países escandinavos. Hans

Tausen (1494-1561) fez na Dinamarca o que Lutero fez na Alemanha e, desde essa época,

o luteranismo é a religião oficial daquele país. Da Dinamarca, a fé luterana foi à Noruega,

onde se tornou a religião oficial.

Eisnasen foi o reformador luterano na Islândia e, desde 1554, o luteranismo,

por decreto, tornou-se ali a religião oficial. O reformador na Suécia foi Olavus Petri

(1493-1552), onde desde 1527 o luteranismo foi oficialmente adotado. Da Suécia, a

Reforma passou à Finlândia, onde já em 1528 a fé luterana foi adotada. O reformador

neste país foi Miguel Agricola.

Uma dos principais fatores a influenciar o avanço do luteranismo nos países

escandinavos foi a tradução da Bíblia para os seus respectivos idiomas. “A autoridade da

Bíblia, que os líderes luteranos traduziram para as línguas de seus países, e a doutrina da

justificação pela fé tornaram-se os lemas destes países no século XVI” (Cairns).

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II. Ulrich Zwínglio, a Reforma na Suíça e os Anabatistas

1. Introdução.

A Suíça era o território mais livre da Europa. Com efeito, tratava-se de uma

confederação de 13 cantões que possuíam autonomia para reger os próprios negócios.

Essa é a razão pela qual nesse país a Reforma decorreu de uma decisão de governos locais,

livres que estavam para adotar a fé que quisessem. Ademais, o humanismo suíço exerceu

forte influência sobre os acontecimentos religiosos da nação. Foi no ano de 1516, em

Basileia, que Erasmo de Rotterdam editou seu Novo Testamento grego, fato que

influenciaria decisivamente o reformador Ulrich Zwínglio, homem cuja história está

necessariamente ligada à Reforma na Suíça.

Como veremos, a Reforma na Suíça não foi resultado direto da obra de

Lutero, mas ocorreu paralelamente aos episódios na Alemanha. Justo L. Gonzalez

lembrou que “mais tarde o próprio Zwínglio diria que antes de ter conhecido as doutrinas

de Lutero, havia chegado a conclusões semelhantes com base em seus estudos da Bíblia”.

Poder-se-á também observar que na Suíça se desenvolveram três tipos de teologias: os

cantões do Norte, de fala alemã, seguiram Zwínglio; os do sul, liderados por Genebra,

seguiram Calvino; além dos anabatistas, que formavam um setor mais radical da Reforma

cujos líderes haviam trabalhado com Zwínglio.

2. Ulrich Zwínglio.

2.1) Da infância à conversão. Já sabemos que Lutero nasceu em 10 de

novembro de 1483, em uma pequena cidade da Saxônia. Pois bem, quase dois meses

depois, em primeiro de janeiro de 1484, nasceu Ulrich Zwínglio em Wildhaus, no cantão

de St. Gallen, na Suíça de língua alemã. Ele era filho de fazendeiro e magistrado que pode

lhe dar a melhor educação possível para o sacerdócio.

Sabe-se que estudou em Berna, na Universidade de Viena, na Áustria, e em

Basileia, Suíça, onde se tornou bacharel em artes, em 1504, e mestre em artes, em 1506.

Nesse mesmo ano, foi ordenado sacerdote em Constança, no sul da Alemanha, e foi servir

na paróquia de Glarus, na Suíça. Aqui, ele continuou seus estudos e tornou-se grande

erudito no grego. “Diz-se que Zwínglio chegou a decorar todas as epístolas paulinas – em

grego!” (Franklin Ferreira).

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Zwínglio não foi despertado para a fé evangélica como Lutero, através de

grandes embates espirituais e de forma dramática, mas de forma mais racional, pelo seu

estudo do Novo Testamento editado por Erasmo, em 1516, em Basileia. Ele mesmo

escreveu que, nessa época, foi “Dirigido pela Palavra e pelo Espírito de Deus”, quando

viu “a necessidade de deixar de lado todos esses [ensinamentos humanos] e aprender a

doutrina de Deus diretamente de sua própria Palavra”. Em 1518, um ano após Lutero

haver afixado suas 95 teses na Catedral de Wittenberg, Zwínglio também atacou o sistema

medieval de penitências e relíquias.

Em 1519, Zwínglio foi chamado para ser o sacerdote da Grossmünster, a

Grande Catedral de Zurich, onde ficou até o fim de sua vida. Foi nessa época, ou pouco

antes, que Zwínglio decidiu e anunciou que só pregaria sermões expositivos, capítulo por

capítulo, a partir do evangelho de Mateus, e que dispensaria as homilias tradicionais. Até

1525, o reformador suíço já havia percorrido todo o Novo Testamento, a exceção de

Apocalipse, momento em que se voltou ao Antigo Testamento. Segundo seu amigo e

sucessor Heinrich Bullinger, Zwínglio se recusava “a cortar em pequenos pedaços o

evangelho do Senhor” (citação de F. Ferreira).

2.2) Do rompimento com Roma à morte. O ano de 1522 - um ano após

Lutero haver enfrentado na Alemanha a Dieta de Worms -, marcou o início do

rompimento entre Zurich e Roma. Foi nesse ano também que Zwínglio se casou

ocultamente com a viúva Anna Reinhard, união que só foi legitimada com um casamento

público em 2 de abril de 1524. Nesse mesmo ano, Zwínglio ainda contendeu com o setor

mais radical da Reforma, cujos seguidores insistiam no “rebatismo”, razão pela qual

foram apelidados de “anabatistas”. Sobre isso, falaremos em um tópico à parte.

Nessa época, Zwínglio havia pregado contra as leis do jejum e da

abstinência, razão pela qual alguns membros de sua paróquia se reuniram para beber

cerveja e comer salsichas na época da quaresma. Esse fato levou o bispo de Constança a

acusá-lo perante o conselho, mas como o reformador defendeu-se com base na Escritura,

foi-lhe permitido continuar pregando.

Pouco depois, o celibato começou a ser criticado por Zwínglio e, a despeito

do papa Alexandre VI fazer-lhe ofertas tentadoras, ele persistiu com seus ataques e

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conseguiu que o bispo marcasse um debate público entre ele e seu vigário geral, Johannes

Fabri, sobre as doutrinas que ele estava pregando.

Chegado o momento do debate, centenas de pessoas compareceram para

assisti-lo. Zwinglio levou consigo seus “Sessenta e Sete Artigos (sculssreden), nos quais

insistia que Jesus Cristo é o único salvador; a verdadeira igreja católica é composta de

todos os crentes em Cristo; as Sagradas Escrituras são a única autoridade em questões de

fé; as boas obras são realizadas unicamente por Cristo; Deus é o único que pode nos

absolver de pecados, rejeitando a confissão auricular; os sacerdotes têm o direito de se

casarem; e condena as práticas católicas não aprovadas pelas Escrituras, como os jejuns

e as vestes clericais” (Flanklin Ferreira).

Quando deram oportunidade a Fabri para que ele demonstrasse os erros de

Zwínglio, ele se negou a fazê-lo. Em consequência, o Conselho da cidade determinou que

já que ninguém refutou as doutrinas de Zwínglio, ele poderia “continuar e manter-se como

antes, proclamando o santo evangelho e as corretas divinas Escrituras com o Espírito de

Deus, de acordo com sua capacidade”. Essa decisão, como ponderou Gonzalez, “marcou

o rompimento de Zurich com o episcopado de Constança e, portanto, com Roma”.

Após o rompimento, a Reforma acelerou os passos. As taxas de batismo e

sepultamento foram abolidas, os fieis passaram a receber o pão e o vinho na Ceia, muitos

monges e freiras se casaram e, em 1525, a missa foi suprimida em Zurich. A partir de

julho desse ano, em todos os dias, exceto nas sextas-feiras e nos domingos, ministros e

estudantes de teologia reuniam-se na Grande Catedral para uma hora de aprofundamento

bíblico. Flanklin Ferreira narra como essas reuniões ocorriam:

“Perante todos os estudantes reunidos, um capítulo da Bíblia era interpretado

da seguinte maneira: depois da oração, um capítulo da Vulgata (tradução latina

da Bíblia) era lido; em seguida, o professor de hebraico – primeiramente o

talentoso Jakob Wiesendanger, e depois da morte deste, aos 26 anos, o famoso

erudito Konrad Pellikan – lia o texto em hebraico e comentava em latim,

comparando com o texto da Vulgata; depois, o próprio Zwínglio lia e

interpretava o mesmo trecho na Septuaginta (tradução grega do Antigo

Testamento). Finalmente, Leo Jud, o ministro da Igreja de São Pedro e amigo

de Zwínglio, explica em alemão o capítulo, segundo a interpretação de

Zwínglio. Varios cidadãos de Zurich ouviam estes sermões, quando paravam

na catedral, no caminho para o trabalho”.

A cidade suíça de Berna foi conquistada para a Reforma através de um

debate semelhante ao que ocorreu em Zurich. Zwínglio participou do debate com suas 10

teses e, em consequência, em 1528, o Conselho da cidade aceitou oficialmente os

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princípios da Reforma. Em 1529, a missa foi abolida em Basileia. Antes, porém, um

sínodo das igrejas que aceitavam as doutrinas zwinglianas foi formado, em 1527, e a

Bíblia foi traduzida à língua do povo.

Entretanto, os cantões que permaneciam fieis a Roma organizaram a União

Cristã de Cantões Católicos – a União dos Cinco Estados - e, em 1529, estourou a guerra

entre cantões católicos e protestantes. Após um período de trégua, na qual ficou acordado

que cada cantão escolheria sua religião, em 11 de outubro de 1531, a União católica

iniciou um ataque surpresa a Zurich. Zwínglio saiu com os primeiros soldados para

oferecer a resistência que pudesse enquanto o exército se preparava.

Na fatídica batalha de Kappel, Zurich foi derrotada, ocasião em que 500 dos

seus soldados e 25 pregadores evangélicos morreram. Zwínglio estava entre os que

faleceram. Seu corpo foi esquartejado e queimado. Seu capacete e espada levados como

troféus, ainda hoje reservados no Museu Nacional Suíço. Uma pedra marca o lugar onde

o reformador morreu, e nela está escrito: “Eles podem matar o corpo, mas não a alma;

assim disse neste lugar Ulrich Zwínglio, morto como herói pela verdade e liberdade da

igreja cristã, em 11 de outubro de 1531”.

Zurich manteve sua independência, mas os cantões do sul se mantiveram

católicos. O sucessor de Zwínglio foi seu amigo Heinrich Bullinger.

2.3) Zwínglio e Lutero. Nesse passo, anotaremos sucintamente as

diferenças entre aqueles que são contados entre os primeiros reformadores: Lutero e

Zwínglio. Se não, vejamos:

Primeiro, Lutero foi, no dizer de Gonzalez, “uma alma atormentada que por

fim encontrou sua paz na mensagem bíblica da justificação pela fé”, enquanto Zwínglio

foi um “erudito humanista”. É dizer, enquanto Lutero conheceu o evangelho de forma

dramática e em meio aos incômodos de uma alma inquieta, Zwínglio o fez através do

estudo do Novo Testamento grego. Para Gonzalez, isso explica por que “a teologia de

Zwínglio é mais racionalista que a de Lutero”.

Segundo, os reformadores discordaram também quanto ao alcance da

Reforma. Para Lutero, era permitido à Igreja cristã tudo aquilo que a Bíblia não proibia.

Zwínglio, a seu turno, ensinava que só deveria ser mantido aquilo que estivesse

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claramente indicado na Bíblia. Esse princípio norteou o movimento puritano na

Inglaterra, onde foi chamado “princípio regulador”.

Terceiro, Lutero e Zwínglio discordavam quanto à presença de Cristo na

Ceia. Para o reformador alemão, a Ceia possuía um valor sacramental e ele insistia na

presença real de Cristo nos elementos. Para o suíço, os elementos materiais eram sinais

da realidade espiritual e a expressão “isto é o meu corpo” queria dizer simplesmente “isto

simboliza o meu corpo”. Foi essa divergência que fez malograr a tentativa de união no

Colóquio de Marburg, de 1529, como observado alhures. A. A. Hodge apresentou a

concepção zwingliana dos sacramentos com as seguintes palavras: “Resta dizer que Deus,

por meio dos sacramentos, exibe-nos a sua graça, não conferindo-a de fato por meio deles,

mas apresentando-a e colocando-a diante de nossos olhos por meio deles como sinais

claros e evidentes. [...] E essa eficácia não é mais objetiva, exigindo (da nossa parte) uma

faculdade cognitiva que possa aprender aquilo que o sinal apresenta objetivamente à

(nossa) mente. [...] Eles operam sobre nós como sinais, representando à mente a coisa da

qual são sinais. Não se deve procurar neles nenhuma outra eficácia”.

É mesmo possível que muito das diferenças entre Lutero e Zwínglio seja

explicada em termos de certa influência do neo-platonismo no pensamento do reformador

suíço. Nesse sentido, Gonzalez afirmou o seguinte: “O mais notável desses elementos é

a tendência a menosprezar a criação material e estabelecer um profundo contraste entre

ela e as realidades espirituais. Esta era uma das razões pelas quais Zwínglio insistia num

culto simples, que não levasse o crente ao material mediante o exagero dos sentidos.

Lutero, por sua vez, afirmava a doutrina bíblica da criação como boa e, portanto, tratava

de não exagerar no contraste entre o material e o espiritual. Para ele, o material não é um

obstáculo, mas sim uma ajuda à vida espiritual”. Essa divergência pode ser percebida

tanto na concepção do culto quanto na rejeição zwingliana do aspecto sacramental da

Ceia.

2.4) Bulinger e as Confissões Helvéticas. Johann Henrich Bullinger (1504-

1575) foi convertido ao evangelho em 1522 e no ano seguinte conheceu Zwínglio, do

qual se tornou amigo e, em 1531, sucessor na liderança da Reforma suíça. Com vários

colegas, escreveu a Primeira Confissão Helvética.

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

A Primeira Confissão Helvética foi resultado das atitudes conciliatórias dos

reformadores de Estrasburgo, Martin Bucer e Wolfgang Capito, de unir zwinglianos e

luteranos. Apesar da desejada unidade não haver sido conquistada, essa Confissão foi

aprovada formalmente em 27 de março de 1536 pelos delegados dos Conselhos

municipais e todas as cidades suíças que abraçaram a Reforma a adotaram (Zurich,

Basileia, Berna, Schaffenhausen, St. Gallen, Muhlhausen e Biel). Assim, ela tornou-se a

primeira confissão suíça e a primeira confissão reformada com autoridade nacional.

A Segunda Confissão Helvética foi completamente escrita por Bullinger.

Em 1565, o príncipe alemão Frederico III pediu a Bullinger uma exposição detalhada da

fé reformada para apresentá-la ao Parlamento. Além disso, os suíços reclamaram por uma

descrição mais completa de sua fé. Em resposta, Bullinger fez o documento que ficou

conhecido como Segunda Confissão Helvética, publicada em Zurich em 12 de março de

1566 e aceita por todos os cantões reformados. Alderi Souza de Matos afirmou que

posteriormente “foi recebida na Escócia, Hungria, França, Polônia, Inglaterra e Holanda,

tornando-se, ao lado do catecismo de Heidelberg, o documento reformado mais estimado

e influente. Reflete o pensamento maduro de Bullinger e destaca-se por sua catolicidade

e moderação”.

3. Os Anabatistas.

Os anabatistas são parte de um setor mais radical da Reforma na Suíça e na

Alemanha. Como veremos, foram perseguidos por luteranos, zwinglianos e católicos

romanos, em parte por motivos teológicos, em parte porque estavam em diversos pontos

de sua fé além do seu tempo. Os menonitas e os huteritas são ramos que descendem

diretamente dos anabatistas do século XVI.

Lutero desejava retirar da igreja tudo quanto a Bíblia expressamente proibia.

Zwínglio queria mais, e sustentou que só deveria ser praticado pela igreja aquilo que a

Bíblia expressamente prescrevia. Entretanto, tanto Lutero como Zwínglio mantiveram a

usual relação entre Igreja e Estado, nos termos assimilados a partir dos dias de

Constantino, de modo que sociedade e Igreja se confundiam. Em Zurich, por exemplo,

todo recém-nascido batizado era considerado membro da Igreja e, na Alemanha e nos

países escandinavos, as igrejas luteranas eram mantidas pelo Estado e seus ministros,

pagos com os cofres públicos.

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

Para os anabatistas, essas reformas não eram suficientes. Eles acreditavam

que toda a união entre Igreja e sociedade deveria ser completamente banida. Insistiam

que uma pessoa não era cristã pelo simples fato de nascer em uma sociedade dita cristã,

visto que a Igreja é uma comunhão voluntária formada pelos verdadeiros discípulos de

Jesus, pessoas que professam conscientemente sua fé em Cristo.

A consequência natural desse pensamento foi o desprezo pelo batismo

infantil e a ênfase na necessidade de um novo batismo na fase adulta, razão pela qual

foram chamados pelos seus inimigos de “anabatistas” (ou seja, “rebatizadores”). Como

explica Justo Gonzalez, “esse nome não era de todo exato, porque o que os supostos

rebatizadores diziam não era que era necessário batizar-se de novo, mas sim que o

primeiro batismo não era válido e que assim o que se recebia depois de confessar a fé era

o primeiro e único batismo”.

Inclusive Zwínglio manteve a princípio uma concepção de que “o batismo

infantil não tinha base bíblica”, segundo Cairns. “Ao mesmo tempo”, ainda afirmou esse

historiador, “porque muitas pessoas perderiam sua cidadania, Zwínglio desistiu da sua

primitiva concepção da falta de fundamento bíblico para o batismo infantil”.

Entretanto, devemos observar que o principal motivo pelo qual o batismo

infantil foi praticado a partir dos primeiros séculos e pela Igreja Católica medieval era

noção de batismo como fonte de regeneração. Com o advento da Reforma e a consequente

rejeição da doutrina da regeneração pelo batismo, duas perspectivas surgiram nas

tradições protestantes: a construção de uma nova teologia que justificasse a prática ou o

se abandono.

Os anabatistas e posteriormente os batistas enfatizaram que o batismo

deveria ser ministrado somente àqueles que já foram regenerados. Os menonitas ainda

hoje praticam a aspersão e alguns anabatistas e batistas, que a princípio batizavam por

efusão, passaram a batizar somente por imersão. Por outro lado, Zwínglio e Bullinger,

conforme lição de Flanklin Ferreira e Alan Myatt, perceberam que “o que estava em jogo

não eram apenas as questões doutrinais, mas também questões de ética ‘e os princípios

de ordem a autoridade essenciais a uma sociedade estável’”. Assim, foi nesse debate com

os anabatistas que Zwínglio e Bullinger desenvolveram a teologia da aliança, “uma defesa

inédita do batismo infantil” (Ferreira e Myatt).

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

Em 1534, Bullinger escreveu a primeira exposição da teologia da aliança, a

obra Do Único e Eterno Testamento ou Pacto de Deus (De Testamento seu Foedere Dei

Único et aeterno). Embora Bullinger já houvesse lidado com a noção da aliança nos anos

anteriores, essa obra foi escrita no contexto do debate com os anabatistas.

Outras características dos anabatistas ainda serão consideradas logo mais.

No momento, basta citar a sua doutrina do pacifismo extremo. Para os anabatistas, a

consequência natural do ensino do sermão do monte é a completa recusa em participar de

toda e qualquer forma de organização política mundana, inclusive de assumir cargos

públicos e fazer juramentos. Para eles, era também necessário que o cristão jamais

pegasse em armas para se defender. No contexto da Reforma, sobretudo considerando

que a Alemanha vivia ameaçada pelos muçulmanos e que as cidades reformadas alemãs

e suíças viviam na iminência de ataques das regiões e cantões católicos, o pacifismo

anabatista não soou coerente.

3.1) Conrad Grebel e Felix Manz: os primórdios do movimento. Ideias

semelhantes às dos anabatistas ocorreram simultaneamente em diversos lugares da

Europa no século XVI, mas foi em Zurich que foram concebidas de primeira mão, ligadas

a Conrad Grebel e Felix Manz.

Grebel se converteu em 1522 e trabalhou com Zwínglio, até romperem em

1525. Em 1524, a esposa de Grebel deu à luz e sua convicção foi posta à prova. A decisão

dos Grebel foi no sentido de que a acriança não seria batizada, exemplo seguido por

outros. Para solver a celeuma, o Conselho de Zurich marcou um debate em 17 de janeiro

de 1525. Seu resultado foi que representantes do povo declararam Zwínglio e seus

discípulos vencedores e, em consequência, o Conselho concedeu uma semana para que

as famílias batizassem seus filhos, sob pena de serem banidas da cidade.

No dia 21 de janeiro daquele ano, o Conselho proibiu Grebel e Manz de

continuarem seus estudos bíblicos. Como um claro ato de provocação, nesse mesmo dia

- apenas quatro dias após o Conselho haver ordenado que as famílias batizassem seus

filhos no prazo de oito dias – Grebel batizou o padre George Blaurock, junto à fonte que

estava no meio da praça de Zurich. Blaurock, por sua vez, batizou outros irmãos na

mesma ocasião. Após o batismo, o pequeno grupo se retirou para Zollikon, aldeia próxima

de Zurich, dando azo ao surgimento, no final de janeiro de 1525, da congregação

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

anabatista, “a primeira igreja livre (dos laços do Estado) dos tempos modernos” (Bruce

L. Shelley).

O Conselho de Zurich não tardou a reagir. Em 7 de março de 1526, decidiu

que puniria com morte por afogamento a toda pessoa que se rebatizasse. Em 5 de janeiro

de 1527, Felix Manz foi afogado no rio Limmat, tornando-se o primeiro mártir anabatista.

George Blarouck foi apanhado pelas autoridades católicas romanas e queimado na

fogueira em 6 de setembro de 1529.

Em 1528, o imperador Carlos V expediu o decreto da pena de morte aos

anabatistas, aprovado na Dieta de Spira em 1529. A decisão imperial foi obedecida pelos

príncipes luteranos e católicos romanos na Alemanha, a exceção de Felipe de Hesse, que

não aplicou o decreto em seus territórios por razões de consciência. O número de mártires

foi enorme. Talvez em torno de quatro a cinco mil anabatistas executados pelo fogo,

espada ou afogamento.

A dura perseguição forçou os anabatistas a irem ao norte. Encontraram

tolerância na Morávia, onde fundaram uma duradoura comunidade (chamada Bruderhof),

consolidada pela liderança de Jakob Hutter. Hutter morreu em 1536, mas sua influência

foi tal que esses grupos passaram a chamar-se huteritas.

3.2) O anabatismo não pacifista. A distância entre os protestantes alemães

e suíços e os anabatistas aumentou sensivelmente em 1535, com a chamada rebelião de

Münster, cidade próxima dos Países Baixos.

Tudo começou em Strasbourg, a partir da pregação de um homem chamado

Melchior Hoffman. Nessa cidade, onde o anabatismo era relativamente forte, Hoffman

começou a pregar que o dia do Senhor estava próximo e que Strasbourg seria a Nova

Jerusalém. Predisse que seria encarcerado por seis meses e depois viria o fim, em 1533.

Também abandonou o pacifismo inicial e insistiu que nos últimos dias seria necessário

que os cristãos pegassem em armas na batalha contra os filhos das trevas.

A primeira parte da ‘profecia’ cumpriu-se. Hoffman foi encarcerado e uma

multidão afluiu para Strasbourg, a esperar o momento da revolução apocalíptica.

Entretanto, tudo ficou nisso. As autoridades da cidade recrudesceram o combate aos

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

radicais e Hoffman permaneceu preso. Essa foi a ocasião na qual alguém profetizou que

a Nova Jerusalém não seria em Strasbourg, mas em Müntser.

O líder do movimento em Münster foi um anabatista quiliasta vindo de

Strasbourg chamado Jan Matthijs. Ele proclamou-se Enoque e enviou delegados a

Münster em 1534, lugar aonde o reino supostamente viria. Matthijs e seu discípulo, Jan

de Leiden, apoderaram-se da cidade, expulsaram os católicos e consideraram infiéis

também os protestantes moderados. O bispo, em represália, sitiou a cidade e conseguiu

matar diversos anabatistas que caíam em suas mãos. Em uma das saídas militares contra

as tropas do bispo, em 1534, Matthijs tombou morto e Jan de Leiden o sucedeu,

apoderando-se do governo e o exercendo como um absoluto tirano, inclusive tomando

para si o título de “Rei Davi”.

Como a matança da batalha e a deserção fizeram o número de homens da

cidade cair, o “Rei Davi” adotou a poligamia e decretou que toda mulher deveria casar-

se com algum homem. Talvez cansados dos desmandos do seu “Rei”, alguns habitantes

da Nova Jerusalém abriram os portões da cidade e as tropas do bispo reconquistaram a

cidade, prenderam “Rei Davi” e seus principais assessores em jaulas individuais e os

expuseram publicamente. Assim caiu a Nova Jerusalém em Münster.

3.3) O anabatismo (re)organizado e a Confissão de Schleitheim. O

anabatismo revolucionário chegou ao fim com a execução de Jan de Leiden, em 1536.

Nesse mesmo ano, um sacerdote católico romano holandês se converteu ao anabatismo.

Seu nome era Menno Simons (c. 1496-1561). Ele se destacou de tal forma na liderança

de um grupo anabatista holandês, a princípio liderado por Obbe Philips, que o grupo

passou a ser chamado “menonita”.

Menno Simons viajou por extensas áreas no norte da Europa pregando a sua

fé. Para ele, pacifismo era fundamental. Os cristãos não podiam também prestar

juramentos e ocupar cargos públicos, para os quais eram exigidos. O batismo seria

realizado jugando água sobre a cabeça, mas somente sobre os adultos que professassem

sua fé. Nem o batismo nem a Ceia conferem graça, sendo somente sinais externos da

graça interna operada por Deus. Ademais, Menno Simons e seus seguidores praticavam

a lavagem mútua dos pés.

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

Em 24 de fevereiro de 1527, na cidade de Schleitheim, atualmente na

fronteira entre a Suíça e a Alemanha, foi aprovada pela Conferência dos Irmãos Suíços a

Confissão de Schleitheim, obra principalmente da lavra do jovem monge beneditino

Michael Sattler. Sattler e sua esposa foram mortos pouco tempo depois, ele na fogueira

e ela por afogamento, nas proximidades de Rottenburg-am-Neckar. Na década seguinte a

Confissão de Schleitheim foi adotada por anabatistas de toda a Europa.

Para Cairns, os anabatistas eram “apenas humildes crentes na Bíblia, alguns

dos quais enganados por líderes ignorantes, que interpretavam a Bíblia literalmente para

proveito próprio. Nem os menonitas nem os batistas se envergonhariam de colocá-los

entre os seus predecessores espirituais. Seu conceito de igrejas livres influenciou os

Puritanos Separatistas, Batistas e Quacres”.

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III. João Calvino e a Reforma em Genebra

Uma apreciação da Reforma na Suíça não estaria completa sem uma detida

observação em como ela ocorreu em Genebra, história necessariamente entrelaçada com

a vida do reformador francês João Calvino, conforme nosso estudo demonstrará.

Com efeito, foi Calvino que realizou na Suíça a obra iniciada por Zwínglio

e deu forma à terceira tradição protestante – ao lado do luteranismo e do anabatismo -,

denominada “fé reformada”, nome virtualmente idêntico ao que tem sido chamado

também de “calvinismo”. Essa é a tradição herdada pelos presbiterianos e muitas igrejas

congregacionais e batistas, e pelas igrejas reformadas na Alemanha e Holanda.

1. João Calvino e a Reforma em Genebra.

1.1) João Calvino: da infância ao encontro com Farel. João Calvino

nasceu na pequena cidade de Noyon, cidade da província da Picardia, a 160 km a noroeste

de Paris, no dia 10 de julho de 1509. Seu pai, Gérard, foi um advogado e secretário do

bispo e sua mãe, Jeanne, uma mulher piedosa.

Foi enviado para estudar na Universidade de Paris aos quatorze anos, de

onde saiu com mestrado em 1528, aos dezenoves anos. Quando em Paris, certamente

manteve contato com as discussões teológicas em torno das doutrinas de Wycliffe, Huss

e Lutero. Mas, como ele mesmo veio a dizer, “estava obstinadamente atado às

superstições do papado” (citado por Gonzalez). Naquele mesmo ano, foi enviado à

Universidade de Orleans para estudar direito e, depois, estudou grego na Universidade de

Bourges.

Com a morte do pai, em 1531, Calvino retornou a Paris e dedicou-se ao

estudo dos clássicos, seu principal interesse na época. Um ano antes, em 1530, ele fez um

comentário à obra de Sêneca, De Clementia, que veio a ser publicado em 1532.

Entretanto, em 1533, dois anos após a morte de Zwínglio e quatro anos após o Colóquio

de Marburg, converteu-se à fé evangélica de forma “súbita”, como costumava dizer.

Escrevendo anos depois, Calvino afirmou sobre sua conversão: “Minha mente, que a

despeito de minha juventude, estivera por demais empedernida em tais assuntos, agora

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estava preparada para uma atenção séria. Por uma súbita conversão, Deus transformou-a

e trouxe à docilidade”.

No ano seguinte, em 1534, Calvino foi obrigado a fugir de Paris, por haver

sido acusado de ser a influência que estava por detrás de um discurso reformista de

Nicholas Cop, então reitor da Universidade de Paris. O reformador encontrou refúgio em

Basileia, onde, em março de 1535, aos 26 anos de idade, publicou a primeira edição das

Institutas da Religião Cristã, obra em que Calvino trabalhou durante quase toda a vida.

As Institutas foram escritas na ocasião em que o rei francês católico romano

Francisco I intentava perseguir os protestantes franceses. Calvino desejava defender os

huguenotes e pedir ao rei, a quem a obra foi endereçada, que aceitasse as ideias da

Reforma. Sobre as Institutas da Religião Cristã, Flanklin Ferreira anotou o seguinte:

“O êxito dessa obra foi imediato e surpreendente. Em nove meses se esgotou

a edição, que, por estar em latim, era acessível a leitores de diversas

nacionalidades. Calvino continuou preparando edições sucessivas das

Institutas, que foi crescendo conforme iam passando os anos. Foram editadas

cerca de nove vezes, sendo que as últimas edições datam de 1559 e 1560 e se

tornou uma das obras mais influentes do pensamento cristão e ocidental”.

Em 1536, quando viajava a Strasbourg, Calvino pernoitou em Genebra, uma

vez que a guerra entre a França e a Espanha havia fechado o caminho àquela cidade.

Strasbourg era, segundo Calvino pensava, a cidade ideal para os seus propósitos. Lá, a

causa da Reforma havia avançado, para não falar da “atividade teológica e literária que

lhe parecia oferecer um ambiente propício para seus trabalhos” (Justo Gonzalez).

Em Genebra, Calvino planejou passar apenas uma noite, visto que a cidade

vivia tempos caóticos e não lhe iria propiciar, segundo pensava, o isolamento adequado

que tanto desejava para dedicar-se aos estudos. Foi nesse pernoite providencial que

encontrou-se com Guillaume Farel (1489-1565).

Farel, cerca de vinte anos mais velho que Calvino, foi um grande batalhador

pela causa da Reforma. Era francês e ainda bem cedo, em 1521, aceitou a doutrina

luterana da justificação pela fé. Participou de debates em Berna e Basileia, e ganhou para

a causa protestante as cidades de Montbelliard, Neuchatel e Aigle. Em 1532, Farel iniciou

seu trabalho em Genebra e, em 1535, um ano antes do encontro com Calvino, venceu um

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debate com os inimigos da Reforma, o que fez a cidade, no ano seguinte, adotar

formalmente as ideias dos reformadores na Assembleia geral dos Cidadãos.

Assim, quando Calvino pousou em Genebra naquela noite, Farel não pode

deixar de perceber que a Providência tinha-o conduzido e, ao mesmo tempo, não perdeu

tempo algum. Tão logo soube da presença do jovem francês, Farel foi ao seu encontro,

lhe falou sobre as grandes necessidades de Genebra e lhe pediu veementemente que ali

ficasse. Quando Calvino declinou do convite, alegando que tinha estudos especiais a

realizar, Farel respondeu: “Deus amaldiçoe teu descanso e a tranquilidade que buscas para

estudar, se diante de uma necessidade tão grande te retiras e te negas a prestar socorro e

ajuda” (citado por Gonzalez). Calvino ficou aterrorizado e permaneceu em Genebra.

Sobre esse encontro com Farel, veio a escrever: “essas palavras me espantaram e me

quebrantaram e desisti da viagem que tinha empreendido”.

Mais tarde, Calvino escreveu o seguinte sobre como Deus o conduziu por

caminhos que ele mesmo jamais ambicionou:

“Por [eu] ser por natureza um tanto anti-social e tímido, sempre apreciei o

isolamento e a paz (...). Mas Deus me envolveu com inúmeros acontecimentos

e nunca me deixou descansar em lugar nenhum. E apesar de minha inclinação

natural, empurrou-me para o palco e me obrigou a ‘entrar no jogo’, como se

diz” (citado por Sheley).

1.2) Do encontro com Farel à morte. Em Genebra, Calvino recebeu um

emprego de “Mestre das Sagradas Escrituras” e deu início a um árduo trabalho com Farel.

Em 1537, Calvino e Farel prepararam a Instrução na Fé, ocasião em que conseguiram

que a cidade adotasse datas pré-estabelecidas para a Ceia do Senhor, o canto

congregacional e a disciplina da excomunhão a membros impenitentes.

Entretanto, os embates na cidade recrudesceram quando os reformadores se

recusaram a dar a Ceia do Senhor para alguns, o que soou ao Conselho da cidade como

um rigor desnecessário. Shelley anota que o programa moral e disciplinar que imprimiram

foi o mais rigoroso “dentro do protestantismo, e ia um pouco além daquilo que as

autoridades religiosas da cidade haviam negociado”. Até que em 1538 o Conselho da

cidade determinou que Calvino e Farel deixassem a cidade. Farel foi a Neuchatel;

Calvino, para Strasbourg.

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Calvino permaneceu em Strasbourg entre 1538 e 1541. Nesse período, ele

foi pastor de uma igreja de refugiados franceses, tornou-se amigo de Martin Bucer e Filipe

Melanchton e casou-se com Idelette de Bure, viúva de um pastor anabatista e mãe de dois

filhos. Com Idelette, teve um único filho que morreu ainda criança.

Ainda em Strasbourg, Calvino produziu sua segunda edição das Institutas,

publicou seu Comentário de Romanos e produziu uma liturgia em francês para os

refugiados franceses, chegando a traduzir vários Salmos e outros hinos para o canto

congregacional do culto dos refugiados.

Em 1541, as forças reformadas tomaram outra vez Genebra, ocasião em que

o Conselho da cidade o convidou a retornar. Persuadido por Bucer, Calvino retornou a

Genebra em 13 de setembro daquele ano e foi nomeado pastor da Catedral de Saint-

Pierre. Em Genebra, uma das primeiras ações de Calvino foi preparar as Ordenanças

Eclesiásticas. Nesse documento, ele estabeleceu quatro tipos de oficiais para a igreja: os

pastores, que dirigiam a disciplina; os mestres, que ensinavam a doutrina; os diáconos,

que administravam as obras de misericórdia; e o Consistório, composto pelos ministros e

doze anciãos, responsável pelo governo da igreja. O nome presbiteriano origina-se da

forma de governo utilizada por Calvino em Genebra.

Em abril de 1549, Idalette faleceu. Calvino nunca mais casou-se. Ele

permaneceu na companhia dos dois enteados que criou e compartilhando a casa com o

irmão e oito filhos deste.

Como se podia esperar, houve épocas de muita oposição. Várias vezes,

Calvino esteve perto de novo banimento. Segundo Gonzalez, “houve conflitos repetidos

entre o Consistório e o governo da cidade, pois o corpo eclesiástico, seguindo a inspiração

de Calvino, tratava de regular os costumes com uma severidade que nem sempre era do

agrado do governo”. A influência do reformador fez de Genebra um lugar adequado para

refugiados oriundos de perseguições católicas romanas e treinamento de pastores que

depois regressariam a seus países de origem para disseminar a fé reformada. Um dos seus

alunos foi o fundador do protestantismo escocês, John Knox, para quem Genebra era “a

mais perfeita escola de Cristo jamais vista na terra desde os tempos dos apóstolos”.

Entretanto, houve abusos em Genebra. “Para garantir a eficácia do sistema”,

afirma Cairns, Calvino estabeleceu penalidades mais severas que a excomunhão. Em

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1546, diz esse historiador, “28 pessoas foram executadas e 76 exiladas”. Em 1553,

segundo Shelley, “durante um momento de menor influência de Calvino”, o médico

espanhol Miguel Servetus refugiou-se em Genebra por negar o dogma da Trindade,

quando fugia da perseguição católica romana, mas lá não teve destino melhor. Servetus

morreu na fogueira!

É difícil para o homem do século XXI ler essas “histórias horrendas”, o que

de fato são. Não é possível justificar Calvino, nem o Consistório da igreja genebrina. No

entanto, devemos nos recordar que no século XVI não se concebia generalizadamente

uma completa dissociação entre Igreja e Estado. Assim, desobedecer à religião oficial do

Estado era desobedecer ao Estado. Religião não era um tema de mera convicção pessoal,

mas uma questão de Estado.

Em 5 de maio de 1559, Calvino fundou a Universidade de Genebra,

iniciando com seiscentos alunos e aumentando ainda no primeiro ano para novecentos.

Foi na Universidade de Genebra que estudaram alunos vindos de outras cidades da Suíça,

França, Holanda, Inglaterra, Escócia, Alemanha e Hungria. “A academia tornou-se

grandemente respeitada em toda a Europa” (Flanklin Ferreira).

Em 6 de fevereiro de 1564, Calvino, bastante doente, foi transportado para

a igreja em uma cadeira, ocasião em que pregou seu último sermão. Em 2 de abril, foi

levado à igreja pela última vez e, mesmo enfermo, participou da Ceia e cantou com a

congregação. No dia 28 de abril, convocou os ministros de Genebra à sua casa e despediu-

se com as seguintes palavras:

“A respeito de minha doutrina, ensinei fielmente e Deus me deu a graça de

escrever. Fiz isso do modo mais fiel possível e nunca corrompi uma só

passagem das Escrituras, nem conscientemente as distorci. Quando fui tentado

a requintes, resisti à tentação e estudei a simplicidade. Nunca escrevi nada com

ódio de alguém, mas sempre coloquei fielmente diante de mim o que julguei

ser a glória de Deus”.

João Calvino morreu em 27 de maio de 1564, faltando menos de dois meses

para completar cinquenta e cinco anos. Suas últimas palavras, extraídas de uma carta

endereçada a Farel no mês da sua morte, são estas: “É suficiente para mim viver e morrer

para Cristo, que é, para todos os seus seguidores, um ganho tanto na vida quanto na

morte”. Informa-nos Flanklin Ferreira que ele foi enterrado em cemitério comum e, em

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atenção a sua vontade, “não se ergueu nenhuma lápide sobre a sepultura. Ele não queria

que nada obscurecesse a glória de Deus”.

Seu sucessor foi Theodore Beza, outro refugiado francês. Quando Beza foi

levar aos alunos da Universidade de Genebra a notícia da morte de Calvino, suas palavras

foram: “Tenho sido um expectador de sua vida por 16 anos... agora posso declarar que

nele todo homem pode ver um belo exemplo do caráter de Cristo, um exemplo que é fácil

vituperarmos e difícil imitarmos” (citação de Joel Beeke).

2. Atividades missionárias de Calvino.

Tem sido corriqueiro admitir que os reformadores em geral - e Calvino em

particular - eram contrários a empreendimentos missionários. De fato, os protestantes não

se lançaram em missões ao novo mundo do modo como fizeram os católicos romanos.

Primeiro, porque estavam mais preocupados em se proteger ante ao forte movimento de

contra-reforma; segundo, porque o mundo em volta estava-lhes fechado. Nesse sentido,

Fred Klooster escreveu:

“Sabemos o quão difícil era para [os reformadores] propagar o evangelho

mesmo dentro da Europa sob governos geralmente controlados por príncipes,

reis e imperadores Católicos Romanos. Praticamente todas as portas para o

mundo pagão estavam fechadas a Calvino, bem como para outros

reformadores, pois o mundo do Islã ao sul e a leste eram guardados por

exércitos turcos, enquanto as marinhas da Espanha e Portugal impediam o

acesso ao novo mundo recém-descoberto. O Papa Alexandre VI em 1493 deu

às coroas Portuguesa e Espanhola direitos exclusivos para essas áreas e,

posteriormente, papas e tratados reafirmariam essas doações” (citado por

Michael Horton).

De fato, Ruth A. Tucker anotou que “Martinho Lutero tinha tanta certeza da

volta iminente de Cristo que negligenciou a necessidade de missões estrangeiras”. Tucker

acrescentou que Lutero defendia que a Grande Comissão só se aplicava aos apóstolos do

Novo Testamento, e que estes haviam cumprido sua missão. Quanto a Calvino, por outro

lado, ela observou: “O próprio Calvino, porém, era pelo menos aparentemente o

missionário mais inclinado às missões entre os reformadores”.

De fato, Genebra tornou-se um frutífero celeiro de missionários, na medida

em que recebia refugiados oriundos de várias nacionalidades, treinava-os e enviava-os

aos países de origem. Philip E. Hughes escreveu a respeito:

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“A Genebra de Calvino, todavia, era algo mais do que um abrigo de refúgio

para os aflitos: era também uma escola, na qual, com a ajuda de aulas regulares

e sermões por dia, as pessoas eram instruídas e edificadas para serem fortes na

fé cristã. Ainda mais significativo, havia uma escola de missões: aberta, não só

para receber os refugiados, mas também para enviar testemunhas que iriam

espalhar o ensino da Reforma em terras distantes [...] era um centro dinâmico

de ocupação e atividade missionária”.

Embora não se encontre, da lavra de Calvino, um tratado missiológico, é

certo afirmar que o reformador jamais se opôs à ideia, para dizer o mínimo, e, mais que

isso, que captou a relevância da responsabilidade evangelizadora da Igreja, o que se pode

concluir a partir da análise dos seus comentários bíblicos.

Em seu comentário Harmonia dos Evangelhos Mateus, Marcos e Lucas

(Harmony of Mattheu, Mark and Luke), ao tratar sobre a Grande Comissão, Calvino

afirmou:

“[...] nós aprendemos a partir da enumeração destes eventos que nos são dados

por Mateus que o último destes não aconteceu antes deles terem entrado na

Galileia. O significado é este, ou seja, pela proclamação do evangelho em todos

os lugares, eles deveriam trazer todas as nações à obediência da fé e, depois,

eles deveriam selar e ratificar a doutrina deles pelo sinal do evangelho. Em

Mateus, eles são ensinados, em primeiro lugar, simplesmente a ensinar; mas

Marcos expressa o tipo de doutrina, a fim de que eles pudessem pregar o

evangelho; e, logo depois, o próprio Mateus acrescenta este limite, qual seja,

‘ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado. (1) Ide,

portanto, (2) fazei discípulos de todas as nações, (3) batizando-os [...] fazei

discípulos de todas as nações’. Aqui, Cristo, ao remover a distinção, faz os

gentios iguais aos judeus e admite ambos indiscriminadamente a participar da

aliança” (citado por José Roberto de Souza).

Ainda sobre a Grande Comissão, Calvino asseverou: “o Senhor ordena aos

ministros do evangelho que preguem em lugares distantes, com o propósito de espalhar a

salvação em cada parte do mundo”. Comentando I Tm 2:4, declarou que “não existem

pessoas nem classe social no mundo que sejam excluídas da salvação, porque Deus deseja

que o evangelho seja proclamado a todos sem exceção. Agora a pregação do evangelho

dá vida, e por isso... Deus convida todos igualmente a participar da salvação”.

Sobre Gl 4:16, Calvino anotou que “a Igreja enche o mundo todo e é

peregrina sobre a terra”, o que fez Hermisten Maia observar, a propósito do comentário

do reformador, que a “peregrinação da igreja tem um sentido missionário (“até aos

confins da terra”) e escatológico (“até a consumação do século”). Enquanto ela caminha,

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

confronta os homens com a mensagem do evangelho, chamando todos ao arrependimento

e à fé em Cristo Jesus, até que ele volte” (citado por José Roberto de Souza).

Em seu percuciente artigo A Presença dos Reformadores Franceses no

Brasil Colonial, Flanklin Ferreira anotou que “Calvino, na realidade, liderou tanto os

protestantes franceses como os de Genebra. E mais de 155 pastores, treinados em

Genebra, foram mandados à França, entre 1555 e 1556”. Ferreira ainda considera os

números do “Registro da Companhia dos Pastores” e de “outras fontes”, sobretudo no

período compreendido entre 1555 e 1562:

“Os nomes mencionados chegam a 88, enviados – sob pseudônimo, a maioria

– para quase todos os campos da Europa, Mas muitos nomes, por medida de

segurança não são mencionados, e por outras fontes, no ano de maio envio,

1561, o número de missionários chega a 142, mais do que muitas forças

missionárias atuais”.

Portanto, pode-se afirmar com Frank James III que “longe de ser

desinteressado em missões, a história mostra que Calvino foi arrebatado por elas”.

3. Missões Calvinistas no Brasil Colonial.

Na década de 1550, a França chegou a ver um aumento notável da presença

protestante, a despeito da cruel perseguição que os huguenotes sofriam. O almirante

Gaspard de Chantillon Coligny era o líder da população protestante e foi ele que, aos 36

anos, patrocinou o envio de huguenotes ao Brasil, atendendo a solicitação do aventureiro

e portador de uma farta experiência militar, o almirante Nicolas Durand de Villegaignon.

Com efeito, o envio de protestantes ao Brasil redundou do encontro de

motivações envolvendo Coligny e Villegaignon. Este, em uma conversa informal, ouviu

sobre o recém-descoberto Brasil e interessou-se pela aventura de explorá-lo. Como sabia

precisar da ajuda de Coligny, o flertou com a ideia de que o Brasil poderia ser um lugar

onde os refugiados franceses perseguidos conseguiriam viver a fé reformada livremente.

Segundo Jean de Léry, o historiador reformado da expedição, Villegaignon manifestou a

vários líderes franceses o desejo não só de “retirar-se para um país longínquo onde

pudesse livremente servir a Deus, de acordo com o evangelho reformado, mas ainda

preparar um refúgio para todos os que desejassem fugir das perseguições” (citado por

Flanklin Ferreira).

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Após os preparativos para a viagem, que incluíram o recrutamento de

seiscentos colonos, a expedição partiu do porto de Havre em 12 de julho de 1555. Mas,

como enfrentou uma forte tempestade que a fez aportar na costa da Inglaterra, em Dieppe,

foi desertada por muitos e partiu definitivamente somente em 14 de agosto de 1555, com

apenas oitenta homens. Após uma viagem perigosa e cheia de contratempos, finalmente,

chegou ao Rio de Janeiro em 10 de novembro de 1555.

Ao aportar na Baía de Guanabara, Villegaignon enfrentou diversos

problemas, tais como a falta de alimento e de água potável e a rebelião de alguns

franceses. Nessa circunstância desfavorável, o almirante da expedição tentou, mas não

logrou conseguir apoio militar com Henrique II, fato que o levou a pedir o apoio de

Genebra, o que fez escrevendo uma carta a Calvino.

Na carta, Villegaignon pediu à Igreja de Genebra que esta enviasse ministros

da Palavra de Deus e com eles pessoas “bem instruídas na religião cristã” a fim de

reformá-lo e a seu povo e “levar os selvagens ao conhecimento da salvação” (citado por

Flanklin Ferreira). Segundo R. Pierce Beaver, “a Igreja de Genebra em uma só voz deu

graças a Deus pela extensão do Reino de Jesus Cristo em um país tão distante, igualmente

tão diferente e entre uma nação inteira sem o conhecimento do Deus verdadeiro”.

Calvino estava em Frankfurt, Alemanha, mas foi informado e deu

orientações. E a Igreja de Genebra escolheu dois ministros para enviar ao Brasil, Pierre

Richier e Guilhaume Chartier, o primeiro com cinquenta e o último com trinta anos. Além

dos ministros, foram recrutados mais onze homens: Pierre Bourdon, Matthieu Verneuil,

Jean de Bourdel, André La Fon, Nicolas Denis, Martin David, Nicolas Raviquet, Nicolas

Carmieau, Jacques Rousseau, Jean Gardien e Jean de Léry. Quatro deles eram

carpinteiros, um trabalhava com couro, um era ferreiro, um era alfaiate e, Jean de Léry, o

historiador, era também sapateiro. Phillipe de Corguilleray, o Senhor Du Pont, foi enviado

por Coligny para liderar o grupo huguenote.

Os huguenotes partiram de Genebra no dia 8 de setembro de 1556, levando

cartas de Calvino a Villegaignon, e, após uma breve estada em Paris, reuniram-se a um

grande grupo de huguenotes em Honfleur, perto da Normandia. Ao todo, cerca de

trezentas pessoas partiram ao novo mundo. Em 10 de março de 1557, chegaram no Rio

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de Janeiro, onde foram muito bem recebidos por Villegaignon, a quem apresentaram suas

credenciais e entregaram as cartas de Calvino.

Nesse mesmo dia, 10 de março de 1557, uma quarta-feira - 57 anos após a

celebração da primeira missa, em 26 de abril de 1500; 40 após Lutero haver fixado suas

teses na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg; quando Calvino tinha 47 anos – o pastor

Pierre Richier dirigiu o primeiro culto protestante das Américas. Na ocasião, com toda a

população reunida, a congregação cantou o Salmo 5, metrificado por Clement Marot, com

música de Louis Bourgeois, e Richier pregou a partir do Salmo 27:4. Uma semana depois,

em 21 de março, um domingo, foi celebrada a primeira Ceia das Américas nos moldes

calvinistas.

Entretanto, a paz esvaeceu em poucas semanas. Um homem que havia vindo

ao Brasil com a promessa de Villegaignon de que seria bispo, chamado Jean Contac,

começou a semear discórdia, polemizando acerca da natureza da presença de Cristo na

Ceia e a propagando a necessidade de incluir água no vinho. Após violentos debates,

decidiu-se que Gulhaume Chartier voltaria a Genebra para aconselhar-se com Calvino, o

que fez em 4 de junho de 1557, em um navio carregado de pau-brasil.

Antes da orientação de Calvino, todavia, Richier foi proibido de celebrar a

Ceia segundo o rito calvinista e Villegaignon mandou acrescentar água ao vinho e

determinou que ela fosse celebrada conforme a prática católica romana. O tratamento para

com os huguenotes mudou radicalmente e, após padecerem sob severas humilhações, eles

se refugiaram por dois meses em um povoado chamado La Briqueterie, até que

embarcaram em um navio francês em 4 de janeiro de 1558.

Devido ao excesso de carga, o pequeno barco, o Le Jacques, estava à

iminência de naufragar. Após os reparos, a maioria dos huguenotes decidiu arriscar-se e

seguir a bordo, mas frente à argumentação do comandante do navio quanto à insegurança

da viagem, Jean de Léry e mais cinco protestantes decidiram permanecer no Brasil. Na

hora da saída, um dos huguenotes suplicou a Léry: “Peço-vos que fiqueis conosco, pois

apesar da incerteza que estamos de aportar em França, há mais esperança de nos

salvarmos do lado do Peru ou de qualquer outra ilha do que das garras de Villegaigon,

que, como podeis imaginar, nunca vos dará sossego” (citado por Flanklin Ferreira).

Assim, Jean de Léry foi salvo de colher destino semelhante ao dos irmãos que retornaram,

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os quais foram: Pierre Bourdon, Jean du Bourdel, Mettieu Verneuil, André La Fon e

Jacques le Balleur. Os cinco huguenotes lançaram-se no mar em um escaler sem mastro

e, após várias intempéries, chegaram ao Forte.

Villegaignon, buscando ocasião para executá-los, fez um questionário com

pontos controversos e determinou que lhe dessem resposta no prazo de doze horas. Eles

escolheram Jean du Bourdel para redigir a Confissão de Fé da Guanabara (Confessio

Fluminensis), com dezessete artigos. A Confissão inicia assim:

“Segundo a doutrina de S. Pedro Apóstolo, em sua primeira epístola, todos os

cristãos devem estar sempre prontos para dar razão da esperança que neles há,

e isso com toda doçura e benignidade, nós abaixo assinados, Senhor

Villegaignon, unanimemente (segundo a medida de graça que o Senhor nos

tem concedido) damos razão, a cada ponto, como nos haveis apontado e

ordenado, e começando no primeiro artigo”.

O primeiro artigo da Confissão Fluminense reza sobre a Trindade; o

segundo, sobre a dupla natureza do Salvador. O terceiro artigo ratifica o ensino da Palavra

de Deus, da doutrina apostólica e do “símbolo” sobre o Filho de Deus e o Espírito Santo;

e o quarto afirma a segunda vinda do Salvador para julgar os vivos e os mortos.

Os artigos V, VI, VII e VIII respondem aos pontos polêmicos envolvendo a

Ceia do Senhor. O nono artigo afirma o batismo e nega as tradições católicas romanas. O

décimo reconhece livre-arbítrio somente em Adão, e antes da Queda, afirma que o livre-

arbítrio é restaurado no cristão, “não todavia em perfeição”, e que os predestinados para

a vida eterna não caem em impenitência.

O artigo XI confere o perdão de pecados somente ao evangelho e à virtude

do Espírito, e nega que o ministro possa realizá-lo; o XII discute a imposição de mãos e

os artigos XIII e XIV estabelecem o ensino sobre casamento, enquanto o XV reprova os

votos monásticos. O artigo XVI confessa que somente Jesus Cristo é o “Mediador,

intercessor e advogado” e o XVII proíbe a intercessão pelos mortos.

A Confissão termina com estas palavras:

“Esta é a resposta que damos aos artigos por vós enviados, segundo a medida

e porção da fé, que Deus nos deu, suplicando que Lhe praza fazer que em nós

não seja morta, antes produza frutos dignos de seus filhos, e assim, fazendo-

nos crescer e perseverar nela, lhe rendamos graças e louvores para sempre,

Assim seja. Jean du Bourdel, Metthieu Verneuil, Pierre Bourdon, André la

Fon”.

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No dia 9 de fevereiro de 1558, os professantes foram levados a

Villegaignon, ratificaram a Confissão e foram presos. Na manhã de 10 de fevereiro, uma

sexta-feira, o “Caim da América” (como depois ficou conhecido) tentou fazer os

huguenotes negarem sua fé, mas eles mantiveram-se firmes. Jean du Bourdel foi

violentamente esbofeteado e, após estimular os companheiros e cantar um Salmo, foi

lançado ao mar. Metthieu Verneuil foi levado à rocha e, após negar-se a se retratar,

proferiu suas últimas palavras: “Senhor Jesus, tem piedade de mim”. André la Fon foi

poupado por Villegaignon por ser alfaiate, e Jacques Le Balleur, por ser ferreiro. Pierre

Bourdon não havia ido à ilha por estar doente, razão pela qual Villegaignon foi aonde ele

estava e, uma vez que este não negou sua fé, foi estrangulado por um carrasco e seu corpo

foi jogado ao mar. As últimas palavras de Bourdon foram:

“Senhor Deus, sou também como aqueles meus companheiros que com honra

e glória pelejaram o bom combate pelo teu Santo Nome e, por isso, peço-te me

concedas a graça de não sucumbir aos assaltos de Satanás, do mundo e da

carne. E perdoa, Senhor, todos os pecados por mim cometidos contra tua

majestade, e isto eu te imploro em nome do teu Filho muito amado Jesus

Cristo”.

Assim encerrou a missão genebrina-calvinista em terras brasileiras. Calvino

permanece na história como o reformador que enviou missionários para estender o Reino

de Cristo no novo mundo. Não logrou fazer trabalho permanente, pelas razões aqui

apresentadas. Mas, a semente haveria de frutificar, ainda que somente quase trezentos

anos depois.

4. A obra, a pregação e a influência de Calvino.

Calvino foi o grande sistematizador do pensamento da Reforma. Suas

Institutas da Religião Cristã foram editadas pela primeira vez em Basileia, no ano de

1536. Em seu primeiro formato, era um livro de 516 páginas capaz de caber nos amplos

bolsos da época. Como antes adiantamos, a obra foi escrita em defesa dos huguenotes,

que viviam sob cruel perseguição, e endereçada ao rei Francisco I. Como disse Calvino

em sua dedicatória ao rei francês, ele se dedicou “a este trabalho sobretudo pelos nossos

franceses: embora entendesse que muitos deles estivessem famintos e sedentos de Cristo,

percebia que muito poucos eram imbuídos de um conhecimento minimamente correto”.

Anos mais tarde dessa primeira edição, Calvino escreveu o que o

impulsionou ao labor de escrever as Institutas:

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

“Mas eis que, enquanto me encontrava escondido em Basileia e era conhecido

por poucos, muitos fieis e não poucos santos estavam sendo queimados vivos

na França (...) Pareceu-me que, a menos que opusesse [aos perpetradores] com

o máximo da minha habilidade, meu silêncio não poderia ser inocentado da

acusação de covardia e traição. Foi essa a consideração que me induziu a

publicar minha Institutas da Religião Cristã (...) Elas foram publicadas por

nenhum outro motivo, senão aquele de fazer com que os homens soubessem

qual a fé daqueles que vi tão vilmente e cruelmente caluniados” (citado por

John Piper).

Quando em Strasbourg, no ano de 1539, publicou a segunda edição das

Institutas. Estas primeiras edições (de 1536 e 1539) foram publicadas em latim. Em 1541,

em sua segunda estada em Genebra, foi publicada a primeira edição em francês. Gonzalez

anota que a partir de então “as edições surgiram aos pares, uma latina seguida de uma

versão francesa, como segue: 1543 e 1545, 1550 e 1551, 1559 e 1560”.

No prefácio da última edição, escrito em primeiro de agosto de 1559,

Calvino falou sobre sua dedicação em enriquecer a obra com “não poucos acréscimos”,

deixou claro que a obra não tinha outro propósito senão o de contribuir para o avanço da

Igreja de Cristo e afirmou sua firmeza em labutar pela edificação dos fieis com as

seguintes palavras:

“Engana-se o diabo, com toda a sua caterva, se, ao me oprimir com fétidas

mentiras, considera que haverei de ser mais alquebrado ou mais indolente,

porquanto confio que Deus, por sua imensa bondade, há de me dar tolerância

equânime para perseverar no curso de seu santo chamado, cujo novo exemplo

exibo nesta edição para os leitores fieis. Além disso, neste trabalho, foi este

meu propósito: preparar e instruir os candidatos ao aprendizado da palavra

divina da sagrada Teologia, para que possam ter um acesso fácil a ela, assim

como prosseguir livremente em seus passos, pois considero ter reunido uma tal

suma da religião em todas as suas partes e a tenha classificado em tal ordem,

que qualquer um que a considere retamente não terá dificuldade em estabelecer

e buscar o que é principal na Escritura, e possa aquele, ao final, referir tudo

que nela está contido”.

A versão final das Institutas é composta de quatro livros, com um total de

80 capítulos. O primeiro livro (com 18 capítulos) trata sobre o conhecimento de Deus

criador; o segundo (com 17 capítulos), sobre Deus redentor, como Ele se nos apresenta

no Antigo Testamento e depois no evangelho de Jesus Cristo; o terceiro (com 25

capítulos), sobre como o Espírito nos leva a participar da graça de Jesus Cristo; e, o quarto

(com 20 capítulos), sobre os “meios exteriores” pelos quais Deus nos chama e nos matem

unidos a Cristo.

Além das Institutas da Religião Cristã, Calvino escreveu comentários, uma

ampla correspondência com quase toda a Europa e participou de inúmeras conferências.

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Entretanto, ele foi antes de tudo um pregador. Quando esteve em Strasbourg,

apascentando a congregação de refugiados franceses, pregou quase todos os dias e duas

vezes aos domingos. Em Genebra, costumava pregar aos domingos pela manhã e à tarde

no Novo Testamento, pregando algumas vezes em Salmos durante a tarde. Nas manhãs

de semanas alternadas, pregava no Antigo Testamento.

Seu estilo de pregação era a lectio continua – exposições consecutivas -, por

meio do qual ele percorreu quase toda a Bíblia pregando verso após verso e livro após

livro. De 25 de agosto de 1549 a março de 1554, pregou uma série de exposições em

Atos. Depois de Atos, pregou 46 sermões em I e II tessalonicenses, 186 em I e II

Coríntios, 86 nas pastorais, 43 em Gálatas e 48 em Efésios, até 1558. Após um intervalo

em que esteve enfermo, retomou em 1559 com a Harmonia dos Evangelhos, série de

sermões que só foi interrompida por sua morte, em 1564. Nestes últimos anos, pregou

159 sermões em Jó, 200 em Deuteronômio, 353 em Isaías, 123 em Gênesis e assim por

diante.

Pelo que se sabe, Calvino pregou do primeiro ao último versículo nos

seguintes livros: Gênesis, Deuteronômio, Jó, Juízes, I e II Samuel, I e II reis, todos os

profetas maiores e menores, os evangelhos, Atos, I e II Coríntios, Gálatas, Efésios, I e II

tessalonicenses, I e II Timóteo, Tito e Hebreus. Seus últimos sermões foram no dia 2 de

fevereiro de 1564, em Reis, e no dia 6 de fevereiro de 1564, nos evangelhos. Segundo

Hernandes Dias Lopes, “calcula-se que Calvino pregou uma média de 290 sermões por

ano. No entanto, muitos desses sermões se perderam. Só 800 foram publicados durante a

vida do pregador e só pouco menos de 1,1 mil estão em edições eruditas modernas.

Calcula-se que mais de 1 mil deles desapareceram”.

Calvino era tão apegado ao estilo lectio continua que, em setembro de 1541,

quando reassumiu o púlpito em Genebra, ele reiniciou suas exposições exatamente no

versículo seguinte ao que havia pregado pela última vez, três anos antes. O mesmo fez o

reformador quando ficou doente em outubro de 1558 e só voltou a pregar em 12 de junho

1559, uma segunda-feira, ocasião em que sequência às exposições de Isaías no ponto em

que havia parado. Para Calvino, “o assunto que deve ser ensinado é a Palavra de Deus e

a melhor forma de ensiná-la... era por meio de uma exposição metódica e constante, livro

após livro” (citado por Steven Lawson).

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Com efeito, as vantagens da lectio continua são inúmeras, mas me contento

em ressaltar as seguintes: primeiro, impede o pregador de selecionar a seu bel prazer os

temas que lhe são mais atraentes, de evitar certas doutrinas e omitir-se quanto aos Textos

mais complicados da Palavra de Deus, a fim de que todo o Conselho de Deus seja pregado

(At 20:27). Segundo, o estilo em comento é uma expressão da confiança do pregador na

inerrância, autoridade e suficiência de toda a Escritura para edificar o povo de Deus (II

Tm 3:16, 17). Terceiro, pela pregação expositiva, a mensagem é necessariamente ditada

pelo Texto, ela emana do Texto, ou seja, o pregador não alimenta consigo uma ideia

preconcebida e, então, parte à Bíblia em busca de amparo. Quanto a isso, Calvino

afirmou: “Quando adentramos o púlpito, não podemos levar conosco nossos próprios

sonhos e fantasias” (citado por John Piper). Quarto, como a lectio continua é nada mais

que a explicação e aplicação do texto, ou, noutro dizer, é uma busca pelo sentido original

do Texto tal qual pretendido por Deus, ela é o melhor remédio contra interpretações e

aplicações fora do contexto, que não podem ser seriamente verificadas no Texto por meio

de uma séria exegese. Finalmente, exposições consecutivas são a melhor forma para quem

escolheu para o ministério os alvos da maturidade espiritual da igreja e a glória de Deus!

Mas, voltemos à pregação do reformador franco-suíço. Calvino conhecia os

idiomas originais das Escrituras, e pregava com os textos do Antigo Testamento em

hebraico e do Novo testamento em grego, sem quaisquer anotações. Foi um homem

chamado Denis Raguenier que começou a fazer um registro escrito dos sermões de

Calvino, utilizando um sistema de taquigrafia. Posteriormente, chegou a ser contratado

para o serviço. Steven J. Lawson registra que “Raguenier realizou seu trabalho com

surpreendente exatidão, dificilmente perdendo uma palavra. Essas exposições escritas

logo foram traduzidas em várias línguas, conquistando uma ampla distribuição”.

Nesse passo, urge responder a questão sobre por que Calvino tanto valorizou

a pregação as Escrituras. As respostas devem, dentre outras, contemplar ao menos os

seguintes pontos: primeiro, Calvino cria que Deus revela Sua majestade nas Escrituras e

a autentica como a Sua Palavra mediante o testemunho interno do Espírito. É dizer, é

através da Escritura que Deus, mediante o testemunho interno do Espírito, concede um

“conhecimento salvador” e põe a Escritura diante de nós como digna de reverência e

aceitação acima de qualquer controvérsia. Ouçamos o próprio Calvino a respeito:

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“Portanto, iluminados pelo poder [do Espírito], acreditamos que as Escrituras

são de Deus não pelo nosso próprio julgamento nem pelo julgamento de

qualquer outra pessoa; mas, acima de qualquer julgamento humano, afirmamos

com absoluta certeza (como se estivéssemos contemplando a majestade do

próprio Deus) que esta certeza nos chegou da própria boca de Deus, e não

através do ministério de homens”.

Em segundo lugar, Calvino cria que uma das marcas de uma verdadeira

igreja de Cristo era a pregação bíblica fiel. Para o reformador, onde a Palavra de Deus

não for pregada com exatidão e os sacramentos não forem administrados com pureza, não

trata-se de uma igreja cristã genuína. Ele disse que “uma assembleia na qual não se ouve

a pregação da doutrina sagrada não merece ser reconhecida como igreja” e, noutro lugar,

que “a piedade enfraquece rapidamente quando a vivificante pregação da doutrina cessa”

(citações de Lawson).

Em terceiro lugar, a pregação era tão imprescindível no ministério de

Calvino porque acreditava que ela ocupa o lugar proeminente no culto. Lawson resume o

pensamento de Calvino quanto à primazia da Escritura no púlpito:

“O que Deus tem a dizer ao homem é infinitamente mais importante do que as

coisas que o homem tem a dizer para Deus. A fim de que a congregação adore

apropriadamente, os crentes sejam edificados e os perdidos sejam convertidos,

a Palavra de Deus deve ser explicada. Nada deve tirar as Escrituras do lugar

mais importante no ajuntamento público” (grifo do autor).

Calvino influenciou pessoas em toda a Europa com sua pregação, obras

escritas e correspondências, que, a seu turno, levaram sua influência aos mais diversos

países a ao novo mundo. Muito contribuíram à larga influência de Calvino a Academia

de Genebra o alcance das Institutas. Some-se a isso, ter a cidade de Genebra tornado-se

um centro protestante reformado que recebia refugiados da França, da Escócia e da

Inglaterra, e da Hungria, Polônia, Países Baixos e Itália.

Embora a Alemanha tenha permanecido firmemente luterana, o pensamento

de Calvino a afetou consideravelmente. Muitos foram influenciados pela sua doutrina,

dentre os quais Filipe Melanchton, e após a morte de Lutero se uniram à Igreja Reformada

da Alemanha.

Na França, a influência e liderança do reformador se fizeram sentir. Estima-

se que quando Calvino morreu, em 1564, 20% da população francesa, cerca de 2.000.000

de pessoas, confessavam a fé reformada. “Por um tempo, parecia que a França abraçaria

oficialmente a fé reformada. Contudo, a perseguição por parte da Igreja Católica e a

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guerra civil interromperam a propagação do ensino reformado. De certo modo, o

movimento reformado francês nunca se recuperou desse golpe de perseguição a ataque

no século XVI” (Joel Beeke).

Na Escócia, o avanço da Reforma se deveu em grade parte a John Knox

(1513-1572). Foi ele que, após estudar em Genebra, como porta-voz dos princípios da

Reforma, contribuiu para a rejeição da autoridade papal em 1560 e da organização da

Igreja Reformada Escocesa.

Na Inglaterra, o pensamento de Calvino despertou o puritanismo inglês, a

partir de 1560, que nada mais era do que “um tipo de calvinismo vigoroso” (Joel Beeke),

movimento que abarcava presbiterianos, episcopais e congregacionais. Da Inglaterra, a

influência de Calvino foi levada ao novo mundo, quando, em 1620, os pais peregrinos

vieram à América no May Flower e se estabeleceram em Massachussets.

A partir de 1620, os calvinistas holandeses estabeleceram a colônia de

New Netherlands, mais tarde chamada New York, para onde acorreram aos milhares os

huguenotes franceses no final do século XVII, os alemães no século XVIII e, finalmente,

os irlandeses e escoceses, a maioria dos quais presbiterianos.

Pelo que percebemos, a influência da fé reformada ou calvinismo afetou

diretamente a Holanda, a Alemanha, a Hungria e a Grã-Bretanha, ainda no século XVI, e

a partir do primeiro quartel do século XVII, a América do Norte, através de imigrações.

O trabalho permanente no Brasil, como ainda teremos oportunidade de demonstrar,

querendo Deus, só logrou realizar-se no século XIX, com as imigrações alemãs e o

pioneirismo do escocês presbiteriano-calvinista Robert Kalley, fundador do

congregacionalismo brasileiro.

5. O pensamento de Calvino: Calvinismo ou Fé Reformada.

A tradição protestante denominada Fé Reformada tem suas origens na

Suíça, com Ulrich Zwínglio e Heinrich Bullinger, história que já repisamos celeremente

em ocasião anterior. Com a morte prematura de Zwínglio, em 1531, Calvino surgiu no

cenário histórico para tornar-se o maior expoente da tradição reformada, fato que tornou

as nomenclaturas Fé Reformada e Calvinismo praticamente sinônimas. Conforme

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relembra Joel Beeke, “Calvino preferia reformado porque se opunha a que o movimento

fosse designado por seu nome”.

Calvino não diferia substancialmente de Lutero em termos teológicos e a

predestinação não era uma crença distintamente calvinista. Ambos a aceitavam. Ademais,

Gonzalez observa que “Lutero havia dado boa acolhida às Institutas de Calvino”. De fato,

enquanto os reformadores viveram, o que os distanciava era a noção de cada um quanto

à presença de Cristo na Ceia. Calvino opunha-se a Zwínglio, por acreditar que a Ceia não

era apenas um simbolismo, e a Lutero, quando afirmava que é o Espírito que eleva os

crentes a uma comunhão com Cristo e não que Cristo desce do céu e, pessoalmente, faz-

Se presente nos elementos.

Entretanto, é também possível afirmar que diferentes ênfases eram dadas

pelos reformadores alemão e francês quanto a diversas facetas doutrinárias. Enquanto

Lutero permaneceu enfatizando a doutrina da justificação pela fé somente, Calvino

percebeu a soberania de Deus como sendo a doutrina central e ressaltou mais que o monge

alemão a busca pela santidade pessoal e a vida para a glória de Deus. Segundo Bruce L.

Shelley, “O último texto de Lutero foi ‘O justo viverá pela fé’, e o de Calvino, ‘Seja feita

a tua vontade, assim na terra como no céu’”. Quanto ao culto, os reformadores também

diferiam acerca do modo como as Escrituras o regulam. Lutero propôs uma reforma mais

moderada, ensinando que no culto pode haver o que não está expressamente proibido nas

Escrituras. Para Calvino, a seu turno, a igreja não tem permissão para incluir no culto o

que o Novo Testamento não ordena.

Pois bem, agora chegamos ao ponto central em nosso estudo, ocasião em

que sugerimos as seguintes questões: o que é Calvinismo ou Fé Reformada? O que o

define? Qual o seu princípio dominante? Em que crê um calvinista? Como o Calvinismo

transforma a visão de mundo daquele que o confessa?

Em termos sotereológicos (‘soteriologia’ significa ‘doutrina da salvação’,

vocábulo composto por ‘soteria’, salvação, e ‘logos’, palavra, tratado ou estudo), o

calvinismo tem sido resumido através do acróstico TULIP, cujas letras indicam às

doutrinas da Total Depravity (depravação total), Unconditional Election (eleição

incondicional), Limited Atonement (expiação limitada), Irresistible Grace (graça

irresistível) e Perseverance of the Saints (perseverança dos santos).

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O acróstico TULIP não foi formulado por Calvino. Historicamente, suas

raízes repousam na controvérsia sotereológica que envolveu Jacob Arminius (de onde

vem o nome ‘arminianos’) e seus discípulos, os remonstrantes, no seio da Igreja

Reformada Holandesa. Após a morte de Arminius (em 1609), os remonstrantes

apresentaram cinco questionamentos à Fé Reformada que exigiram atenção especial.

Nesse documento, eles afirmaram a crença na eleição condicional, na expiação universal,

na depravação parcial, na graça resistível e na possibilidade de perda da salvação.

Em resposta, os delegados do Sínodo de Dort (reunido em 1618-1619)

apresentaram os chamados Cânones de Dort, formulação doutrinal que deu origem ao

TULIP. Assim, desde o início do século XVII, a soteriologia reformada tem sido resumida

sob a designação do acróstico, que também não escapa a críticas. Primeiramente, observa-

se que ele simplificou e reorganizou a ordem dos Cânones de Dort, fato que levou Joel

Beeke a vaticinar que os “cânones dizem muito mais do que apenas o que é apresentado

pelo TULIP e dizem-no com muito mais vitalidade e numa ordem melhor”. Em segundo

lugar, deve-se pontuar igualmente que o TULIP não resume toda a teologia calvinista ou

reformada, sendo esta muito mais ampla. Mesmo uma mais profunda compreensão do

acróstico só pode ocorrer quando analisado dentro de um exame mais completo da Fé

Reformada, que não pode prescindir das doutrinas de Deus, de Cristo e do Espírito Santo,

tampouco da justificação pela fé somente. Segundo Muller (citado por Beeke): “Quando

aquele grande número de pontos ensinados pelas confissões reformadas não é respeitado,

os famosos cinco pontos são ameaçados e, de fato, dissolvidos – e a saúde espiritual

contínua da igreja é colocada em perigo”.

Entretanto, o TULIP pode ser usado com proveito porque realmente

sintetiza a sotereologia calvinista, razão pela qual apresentaremos breve explicação de

cada doutrina na ordem sugerida pelo acróstico.

À doutrina arminiana da depravação parcial, os calvinistas responderam

com sua crença na depravação total. Para os remonstrantes, a Queda não privou

totalmente o homem da capacidade de escolha, razão pela qual ele pode cooperar ou não

com a “graça preveniente”, e, quando arrepende-se e crer em Cristo, o faz através do

exercício do seu “livre-arbítrio”. Para os calvinistas, a solidariedade da humanidade com

Adão é tal que todos os homens, sem exceção alguma (Rm 3:9-12), por aquilo que ele fez

como seu representante, nascem culpados (Rm 5:12, 15-18) e participantes de sua

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natureza corrompida (Rm 5:19). Em consequência do “pecado original”, a Queda afetou

cada membro da humanidade em todas as suas faculdades (Rm 3:13-18), a inclinação da

natureza humana é constantemente má (Rm 8:6-8; Gn 6:5; Jr 17:9) e todos estão

impossibilitados de, por si mesmos, discernirem a verdade (I Co 2:14), desejarem a

salvação (Fp 2:13), verem o reino e entrarem nele (Jo 3:3, 5) e irem a Deus (Jo 6:44, 65)

sem que antes sejam para isso renovados pela onipotência divina.

A doutrina da eleição incondicional foi uma resposta ao ponto arminiano

que afirmava a eleição condicional. Segundo esta, Deus elegeu aqueles que Ele previu

que creriam em Cristo. A crítica calvinista a uma eleição baseada em previsão de fé está

em que ela, na prática, perverte a noção de eleição divina, porque lhe rouba a força

realizadora e percebe o homem como o sujeito ativo de sua própria eleição. O calvinismo

insiste em ver com seriedade conceitos como “eleição”, “predestinação” e “propósito”

(Ef 1:4, 5, 11; Rm 8:29, 30; 9; 11:5; I Co 1:26-29; I Ts 1:4, 5; II Ts 2:13, 14; II Tm 1:9,

10; I Pe 1:1, 2), dos quais nenhum leitor da Escritura pode escapar, e luta por preservar a

noção de Deus como o verdadeiro autor da eleição.

Quando os arminianos defenderam a tese da expiação universal, embora

com eficácia limitada àqueles que vierem a crer, os calvinistas reagiram com a sua

doutrina da expiação limitada. Para os discípulos de Arminius, Cristo morreu com a

intenção de salvar a todos, sem exceção alguma, embora não tenha assegurado a salvação

ninguém, sem exceção alguma. Os calvinistas têm observado diversas dificuldades com

a doutrina arminiana em apreço, que passo a destacar:

Primeiro, que os atributos de Deus são postos em jogo. O amor de Deus, por

exemplo, seria, nesse caso, um amor que é vencido e que, no final, se torna em ira

inexaurível para todos aqueles que vieram a recusá-lo. Tratar-se-ia, igualmente, de um

amor que teria desejado a salvação de todos, levado Cristo a morrer no lugar de todos sem

exceção, mas que não teria provido os meios para que todos viessem a ser salvos, visto

que sabidamente nem todos da espécie humana têm ouvido, ouvem e ouvirão a pregação

do evangelho.

A justiça de Deus também seria objeto de questionamento, se adotássemos

a noção de que Cristo sofreu a penalidade no lugar de todos os pecadores e, por rejeitá-

lO, muitos destes viriam a padecer no inferno. Isso criaria uma situação injusta, visto que

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

os mesmos pecados seriam duplamente punidos, em Cristo e nos próprios pecadores

impenitentes.

Semelhantemente, a sabedoria, a onisciência, a vontade e o poder soberanos

de Deus ficam sob forte suspeita, se acolhida a doutrina arminiana. A expiação universal

entende que Deus planejou uma salvação que de fato não viria a se concretizar. Na prática,

Ele teria provido um pagamento para os pecados de todos, sabendo que não salvaria a

todos, que esse pagamento não seria aproveitado por todos. Se interpusermos a ideia de

que Deus não sabia que não alcançaria a todos com a salvação que propôs-Se a realizar,

as dificuldades só aumentam. A doutrina arminiana equivoca-se por não reconhecer a

soberania de Deus, porque, segundo essa compreensão, Deus não conseguiu realizar Seu

intento, Sua vontade não foi exercida completamente e, no máximo, atribui-se a Deus

uma vontade frustrada e impotente.

Em segundo lugar, a expiação universal perverte a unidade funcional da

Trindade e questiona a eficácia da obra de Cristo e das operações do Espírito Santo. Uma

vez que entende que Deus escolheu aqueles que Ele previu a quem a obra de Cristo

aproveitaria, por que Cristo teria substituído a todos sem exceção alguma na cruz? Por

que não haver morrido somente pelos “eleitos”, isto é, aqueles que pela fé receberiam os

benefícios da cruz? Na prática, Cristo teria feito algo não tencionado pelo Pai.

Mais que isso. Se Cristo morreu por todos sem exceção alguma, Ele não

apenas teria feito algo não pretendido pelo Pai, mas teria feito mais do que o que Espírito

Santo haveria de realizar. Como sabemos que o Espírito não conduz a todos sem exceção

a gozar os benefícios da cruz, Sua obra não estaria em consonância com a obra do Filho.

Também digno de nota, é que a eficácia da cruz de Cristo seria igualmente

objeto de controvérsia, caso Ele tivesse morrido para pagar por todos os pecados, a

exceção do pecado da incredulidade. O argumento irrespondível de John Owen (citado

por Joel Beeke) demonstra a seriedade desse ponto:

“Deus impôs sua ira devida, e Cristo suportou as aflições do inferno, ou por

todos os pecados de todos os homens, ou por todos os pecados de alguns

homens, ou por alguns pecados de todos os homens. Se este último caso for

verdade, alguns pecados de todos os homens, então todos os homens têm

pecados pelos quais terão que responder; logo, ninguém será salvo. Se o

segundo caso for verdade (isto é o que afirmamos), Cristo, em lugar e por eles,

sofreu pelos pecados de todos os eleitos do mundo. Se o primeiro caso for

verdade, então por que nem todos são libertos da punição de todos os pecados?

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

Você dirá: ‘Por causa da sua incredulidade. Eles não querem crer’. Mas essa

incredulidade é um pecado ou não? Se não, por que eles devem punidos por

ela? Se é pecado, então Cristo sofreu a punição devida a esse pecado, ou não?

Se ele sofreu, por que esse pecado os impede, mais do que os seus outros

pecados pelos quais Cristo morreu, de participar do fruto de Sua morte? Se

Cristo não sofreu por esse pecado, ele não sofreu por todos os pecados deles”.

Finalmente, basta observar que todo o senso de segurança que cantamos

alegremente perder-se-ia, se pensássemos que Deus não fez mais por nós do que fez por

Judas Iscaraiotes, Saul e Esaú. Se aceitarmos a doutrina arminiana da expiação, estaremos

dizendo que Cristo, embora tenha morrido no lugar de todos, não garantiu a salvação de

ninguém e que, deveras, correu o risco de não salvar ninguém. Nesse sentido, a pergunta

de Joel Beeke é de todo pertinente: “E, se há no inferno alguns pelos quais Cristo morreu,

como posso ter certeza de que a expiação será eficaz para mim?”

Em relação aos termos “mundo”, “mundo inteiro” e “todos” (Jo 3:16; I Jo

2:2; Rm 8:32; II Co 5:15; I Tm 2:4-6), referidos no contexto da obra expiatória do

Salvador, os calvinistas têm observado que elas não significam “todos sem exceção

alguma”, mas, a depender do contexto, o “mundo eleito”, “todos os eleitos de todas as

nações” ou “todos os tipos de pessoas”. Positivamente, têm apresentado provas

escriturísticas de que Cristo morreu e intercedeu para salvar os pecados do Seu povo (Mt

1:21) - suas ovelhas (Jo 10:10-15, 26, 28; 17:9), Sua igreja (Ef 5:25-27; At 20:28), “os

que procedem de toda tribo, língua, povo e nação” (Ap 5:9). Cristo substituiu

especificamente a “muitos” (Mt 20:28), e não a “todos”, se com isso queremos dizer todos

sem exceção alguma. Assim, a obra de Cristo não é apenas preparatória, ela é

assecuratória. Ela não apenas potencializou a salvação, mas de fato a garantiu. Por isso,

todos quantos o Pai elegeu, Ele os deu a Cristo para ser este o fiador eficaz do Seu povo,

em favor de quem verdadeiramente morreu e conquistou todos os dons necessários à

salvação, cuja síntese é a dádiva do Espírito.

A doutrina calvinista da graça irresistível foi apresentada para resistir ao

ponto remonstrante que defende a graça resistível. Para os arminianos, não há distinção

entre graça comum e especial. Noutras palavras, a graça comum é especial, é preparatória

para que o pecador não regenerado possa crer e ser salvo; e a graça especial é comum,

porque concedida a todos os homens e mulheres, sem exceção alguma. Logicamente, para

os arminianos, essa graça é sempre resistível, e sua eficácia fica a depender da decisão do

pecador em cooperar com ela.

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

Os calvinistas opuseram-se à graça resistível reconhecendo a distinção entre

chamada exterior e chamada eficaz. Compreenderam que há uma chamada exterior,

estendida a todos que ouvem o evangelho (Mt 11:28; II Co 5:19-21), que pode ser

resistida e, de fato, sempre seria, se não acompanhada de uma chamada interior e eficaz

em certas ocasiões (Rm 8:30; I Co 1:23, 24). Mesmo Cristo ofereceu um chamado

resistível (Lc 13:34; Mc 10:21, 22), ao passo que afirmou: “As minhas ovelhas ouvem a

minha voz; eu as conheço, e elas me seguem” (Jo 10:27). Assim, quando através da

pregação da igreja Deus chama interior e eficazmente, esse chamado é sempre irresistível.

O pecador é de fato iluminado para compreender o evangelho (At 16:14) e regenerado,

operações que o conduzem necessariamente ao arrependimento e à fé salvadora.

Finalmente, os remonstrantes questionaram a segurança da salvação

também quando passaram a defender a possibilidade de um verdadeiro salvo apartar-se

da graça, noção resistida pelos calvinistas com a doutrina da perseverança dos santos.

Com “perseverança dos santos”, a Fé Reformada não deseja comunicar que os crentes

verdadeiros não pecam ou que não podem eventualmente estagnar ou regredir em

santificação, tampouco que não haja falsos professantes no seio da igreja. Quer, sim,

afirmar que é impossível que um eleito pelo Pai, substituído por Cristo e chamado

eficazmente e regenerado pelo Espírito venha a perder-se final e irreversivelmente. A

“corrente de ouro” de Rm 8:28-30 encerra a discussão na medida em que coloca como

certa a obra da glorificação (inclusive no tempo verbal no passado, como se já tivesse

ocorrido) para todos quantos foram justificados. A lógica insofismável de Rm 8:32 requer

que concluamos que uma vez que Deus fez o improvável por nós – “não poupou o seu

próprio Filho, antes, por todos nós o entregou” -, todos os demais benefícios decorrentes,

essenciais à consumação da nossa salvação, ser-nos-ão necessariamente doados. Para os

calvinistas, a obra da salvação é de Deus, do começo ao fim. Por isso, Ele concluirá a

obra que começou (Fp 1:6), guardando Seu povo eleito do tropeço e o recebendo

finalmente em Sua glória (Jo 10:27-30; Ef 5:25-27; I Pe 1:5; Jd 24, 25), sem perder um

só sequer (Jo 18:8).

Eis uma suma do que tem sido chamado de sotereologia calvinista. É o que

a ocasião nos permitir dizer. No entanto, ainda devemos enfatizar que os cinco pontos do

calvinismo – o TULIP -, não são nem a expressão completa da teologia reformada nem a

essência mesma do calvinismo enquanto sistema de percepção de mundo. Com efeito,

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podemos conceituar calvinismo como a cosmovisão mais puramente cristã, construída

sobre o alicerce da soberania amorosa e infalível de Deus, cujo teocentrismo influencia

todos os aspectos da existência e todas as relações daqueles que o confessam e praticam.

Os calvinistas são, por assim dizer, pessoas absorvidas pela Trindade e Sua

glória. Mason Pressly (citado por Joel Beeke) distingue o calvinismo em relação a outras

expressões do cristianismo com as seguintes palavras:

“Assim como o metodista coloca na vanguarda a ideia da salvação de

pecadores; o batista, o ministério da regeneração; o luterano, a justificação pela

fé; o morávio, as chagas de Cristo; os católicos gregos, o misticismo do

Espírito Santo; e o romanista, a universalidade da igreja, assim também o

calvinista coloca na vanguarda o pensamento sobre Deus”.

O teocentrismo calvinista faz da fé reformada um sistema de vida

completamente distinto. A maneira como Deus é compreendido e o modo como é central

à percepção calvinista, conferem significados próprios à natureza da salvação, às razões

do evangelismo, ao lugar do inferno, ao significado do pecado, e altera a forma como nos

relacionamos com Deus, com o nosso semelhante e com o mundo.

Em Calvino, muito mais que em Lutero, “os próprios crentes eram a Igreja

porque pela fé permaneciam em contato com o Poderoso” (Abraham Kuyper). No

calvinismo, mais do que no luteranismo, todos os homens, ricos e pobres, foram vistos

em posição de igualdade perante a glória excelsa de Deus. Finalmente, a fé reformada

reconhece Deus no mundo, na medida em que vê as operações do Espírito na graça

comum como abrangentes e inclusivas, atenuando os efeitos da maldição.

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IV. O Calvinismo Além da Suíça

Parte I

1. O Calvinismo na Alemanha e o Catecismo de Heidelberg.

A primeira manifestação da fé reformada na Alemanha surgiu nas três

cidades do Reno e em Strasbourg, cuja expressão escrita (a Confissão Tetrapolitana) foi

apresentada na Dieta de Augsburgo, em 1530. No Palatinado, uma influente província

alemã governada pelo eleitor Frederico III (1516-1576), o calvinismo também exerceu

forte influência.

Após uma disputa pública ocorrida em 1560, Frederico decidiu-se pelo

calvinismo de eclesiologia presbiteriana, e encarregou a Zacarias Ursinos (1534-1583) e

Gaspar Olevianus (1536-1587) de prepararem um catecismo reformado para ensinar a

doutrina bíblica aos jovens. Segundo Joel Beek, Ursinus responsabilizou-se pelo

conteúdo, Olevianus, pela composição e edição final e “Frederico indicou que muitos

outros, incluindo o corpo docente de teologia e os mais importantes oficiais da igreja do

Palatinado, contribuíram para o documento final”.

O catecismo foi escrito em Heidelberg (daí o nome Catecismo de

Heidelberg) e publicado em 1562. Em janeiro de 1563, um sínodo realizado nessa cidade

o aprovou. Por ocasião de sua primeira edição, a Bíblia alemã ainda não estava dividida

em versículos, razão pela qual as referências bíblicas eram indicadas somente por livro e

capítulo. Essa dificuldade só foi corrigida pela versão latina, que também dividiu o

Catecismo para ser pregado em 52 domingos, em cada “Dia do Senhor” do ano.

O Catecismo contém 129 perguntas. As duas primeiras (Domingo 1) tratam

do conforto e segurança do crente. As perguntas 3 a 11 (Domingos 2 a 4) estabelecem a

doutrina da depravação total. As perguntas 12 a 85 (Domingos 5 a 31) ensinam a salvação

realizada por Cristo, expõem o Credo Apostólico (perguntas 22 a 58) e as doutrinas da

justificação pela fé somente (perguntas 59 a 64) e dos sacramentos (perguntas 65 a 82).

Na seção sobre os sacramentos, e em tom polêmico, o Catecismo pergunta: “Que

diferença há entre a Ceia do Senhor e a Missa do papa?” (pergunta 80). Eis a resposta:

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

“A ceia do Senhor nos testemunha de que temos completo perdão de todos os

nossos pecados, pelo único sacrifício de Jesus Cristo, que ele mesmo, uma

única vez, realizou na cruz; e também que, pelo Espírito Santo, somos

incorporados a Cristo que, agora com seu verdadeiro corpo, não está na terra,

mas no céu, à direita do Pai e lá quer ser adorado por nós. A missa, porém,

ensina que Cristo deve ser sacrificado todo dia pelos sacerdotes, em favor dos

vivos e dos mortos; e que esses, sem missa, não têm perdão dos pecados pelo

sofrimento de Cristo; e também, que Cristo está corporalmente presente sob a

forma de pão e vinho e, por isso, neles deve ser adorado. A missa, então, no

fundo, não é outra coisa senão a negação do único sacrifício e sofrimento de

Cristo e uma idolatria abominável”.

As perguntas 86 a 129 (domingos 32 a 52) tratam da nossa gratidão a Deus

por tão grande salvação. A resposta à pergunta 87 ensina por que, “de maneira alguma”,

podem ser salvos os que continuam vivendo sem Deus, sem gratidão e que não se

convertem. Nesta seção são abordados os dez mandamentos (perguntas 92 a 115) e a

oração do Pai Nosso (perguntas 116 a 129).

Sobre o Catecismo de Heidelberg, Joel Beek assevera:

“Tem circulado mais amplamente do que qualquer outro livro, exceto a Bíblia,

A Imitação de Cristo, escrito por Thomas à Kempis, e O Peregrino, escrito por

John Bunyan. Corretamente reformado, mas moderado, em tom pacífico em

espírito, esse ‘livro de conforto’ permanece como um dos catecismos da

Reforma mais usados e mais apreciados”.

Cairns pontua que o Catecismo de Heidelberg “transformou-se no credo

oficial das igrejas alemãs reformadas”, aduzindo ainda que quando “a fé reformada

finalmente se estabeleceu depois de um breve interlúdio luterano, a Universidade de

Heidelberg tornou-se o centro do calvinismo”.

2. O Calvinismo na Hungria, Escócia e Irlanda.

O luteranismo não foi bem aceito na Hungria, em face do cisma racial dos

magiares com os alemães. A partir de 1550, húngaros que estudaram em Genebra

retornaram ao seu país disseminando as ideias da reforma. Concorreu também para que o

povo húngaro adotasse o protestantismo a tradução do Novo Testamento para a língua

magiar, realizada por Erdosi. Mateus Devay foi um dos responsáveis pela reforma na

Hungria. Em 1570, a Confissão Húngara, redigida em 1558, alcançou grande circulação.

Na Escócia, o estado mundanizado da igreja católica romana foi uma das

causas da reforma. Patrick Hamilton, influenciado pelas ideias luteranas, pregou sobre a

justificação pela fé e que o papa seria o anticristo, o que o levou à execução na fogueira

em 1528. George Wishart, que exerceu forte influência espiritual sobre John Knox,

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

também começou a pregar a doutrina protestante e foi queimado em 1546. Entretanto, o

grande nome do protestantismo escocês foi realmente John Knox (1513-1572).

Nascido em família pobre, John Knox educou-se na Universidade de

Glasgow e tornou-se sacerdote católico romano em 1530. Sua conversão ocorreu em

algum ano da década de 1540, pela influência de Wishart e outros, momento após o qual

pode ser encontrado no acampamento de St. Andrews, onde foi praticamente obrigado a

pregar aos soldados protestantes.

Quando St. Andrews foi capturada pelo exército francês, Knox foi feito

escravo e obrigado a trabalhas nas galés de uma embarcação francesa, mantendo-se nesse

estado por dezenove meses. Sobre esse período da vida do reformador, Martyn Lloyd-

Jones anotou: “Foi uma experiência extenuante, na qual ele sofreu, não só os rigores desse

tipo de vida, como também uma intensa crueldade. Isso, sem dúvida, deixou sua marca

em toda sua vida, porque minou a saúde dele; consequentemente teve que manter

constante luta contra a enfermidade”.

Após sua libertação, que ocorreu através de uma troca por prisioneiros,

Knox se tornou ministro e pregador em Berwick e Newcastle, entre os anos de 1549 a

1551. Depois, morou em Londres, quando reinava Eduardo VI, ocasião em que se tornou

pregador e capelão da corte.

Com a morte de Eduardo (aos dezesseis anos), Maria Tudor (Maria a

sanguinária) ascendeu ao trono e Knox teve que fugir da Inglaterra. A princípio, foi a

Genebra, onde estudou sob João Calvino, a quem considerava “o mais notável servo de

Deus”. Depois, persuadido por Calvino, foi ser ministro de uma comunidade de

refugiados ingleses em Frankfurt. Mas, como de lá foi mandado embora juntamente com

outros refugiados, retornou a Genebra, onde pastoreou a igreja inglesa entre os anos de

1556 a 1559. Finalmente, em abril de 1559, após a morte de Maria Tudor, John Knox foi

à Escócia, onde realizou sua obra de reformador até morrer, em 24 de novembro de 1572.

Na Escócia, o Tratado de Edimburgo, de 1560, fez cessar o controle francês

sobre aquele país. No mesmo ano, o Parlamento, orientado por John Knox, começou a

obra da Reforma: “pôs fim ao domínio do papa sobre a Igreja Escocesa, declarou ilegal a

missa e revogou todos os decretos contra os hereges e aceitou a Confissão de Fé que os

“Seis Johns” (Knox e mais cinco outros homens de prenome John) elaboraram em menos

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de uma semana” (Cairns). Esta Confissão, claramente calvinista, tornou-se o credo

escocês até ser substituída em 1647, pela Confissão de Fé de Westminster. Após tentativas

de estabelecimento do sistema episcopal, em 1690 o presbiterianismo se estabeleceu

definitivamente na Escócia.

Na Irlanda, a Reforma está relacionada à influência anglo-escocesa. Em face

de uma revolta de irlandeses contra a Inglaterra, o Parlamento inglês, em 1557, confiscou

terras dos rebeldes derrotados e as destinou a colonos ingleses. Esse fato inaugurou uma

política de colonização que causou a divisão na Irlanda que perdura até hoje. Com a

ascensão ao trono de Tiago I, este rei resolveu recolonizar a Irlanda do Norte com

protestantes vindos da Escócia. Assim, a cidade de Belfast tornou-se presbiteriana e o

mesmo ocorreu ao condado de Ulster. “São estes presbiterianos irlando-escoceses os

ancestrais dos atuais habitantes da Irlanda do Norte” (Cairns).

3. O Calvinismo na França.

Muitos franceses estudaram na Itália, onde, influenciados pela renascença,

sentiram-se impulsionados à busca dos documentos antigos. Dentre estes humanistas

bíblicos, um doutor em teologia e professor da Universidade de Paris de nome Jacques

Lefévre d’Etaples (1455-1536) rompeu com a teologia vigente e insistiu na necessidade

de retorno às Escrituras. Em 1523, Lefévre concluiu a tradução francesa do Novo

Testamento, feita a partir da Vulgata. A cidade de Meaux tornou-se o centro desse

entusiasmado teológico, onde também se reuniram luminares como Guillaume Briçonnet

e Guillaume Farel. Outro fator que fomentou a reforma na França foi a influência dos

escritos de Lutero.

O rei Francisco I, deveras impressionado com a franca divulgação e

aceitação das ideias protestantes, resolveu empreender dura perseguição contra o

movimento. Em 1524, o cardador de lã e pastor da igreja de Meaux foi morto e, em 1525,

o grupo foi disperso, ocasião em que muitos deixaram a França.

Embora os humanistas bíblicos e as obras de Lutero muito tivessem feito

pelos franceses, nada se comparou em importância à conversão e influência de Calvino.

Foi a perseguição contra os protestantes franceses que levou o reformador franco-suíço a

publicar a primeira edição das Institutas da Religião Cristã, em 1536, conforme

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

anteriormente observado. Na verdade, tem-se verificado que Calvino liderou tanto a

reforma em Genebra quanto na França.

A partir de 1538, uma feroz perseguição aos huguenotes (nome dado aos

protestantes calvinistas franceses, de origem desconhecida) teve início. Em 24 de julho

de 1539, Francisco I as reforçou através de um édito. Morto em 1547, Francisco foi

sucedido por Henrique II (esposo de Catarina de Médicis), que deu continuidade às

perseguições, sem, contudo, fazer cessar o sempre crescente número de conversões.

A igreja de Paris foi organizada em setembro de 1555. Nesse período,

haviam somente mais quatro igrejas (em Meaux, Angers, Poitiers e Loudon), além da de

Paris. As congregações se reuniam clandestinamente. Os crentes, nessas assembleias

secretas, liam as Escrituras, oravam e cantavam Salmos, utilizando-se de qualquer

pregador que estivesse em trânsito.

Nos dias 26 a 28 de maio de 1559, reuniu-se em Paris, secretamente, o

primeiro Sínodo Nacional das Igrejas Reformadas, ocasião em que, segundo Theodoro de

Beza, firmaram “um acordo na doutrina e na disciplina, em conformidade com a Palavra

de Deus”. O Sínodo foi presidido pelo pastor François de Morel, e reuniu representantes

das sessenta das cem igrejas já existentes na França.

Os huguenotes tornaram-se uma espécie de reino dentro do reino, cujo

grande e respeitado líder era o almirante Gaspar de Coligny. Diz-se que na década de

1560, chegou a haver cerca de mil congregações protestantes. Assim, por motivo de

política, e não de religião, a ambiciosa Catarina de Médicis, viúva de Henrique II, buscou

ganhar a simpatia dos huguenotes. Em 1562, o edito de São Germano conferiu liberdade

de expressão religiosa aos protestantes franceses, proibindo-os, no entanto, de construir

templos, recolher fundos, manter exércitos e reunir-se em sínodos sem permissão do

estado.

Entretanto, diversas e intermináveis batalhas entre os exércitos católicos e

protestantes ocorreram durante a década de 1560, até que a paz de 1570 despontou com

previsões de durabilidade. Catarina de Médicis se mostrou mais interessada que nunca

em manter a paz com os huguenotes. Em 1571, Coligny apresentou-se na corte ao rei

Carlos IX, um dos filhos de Catarina, por quem foi chamado de “meu pai”. Além disso,

foram feitos arranjos visando casar a filha de Catarina e irmã do rei, Margarida Valois,

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com Henrique de Bourbón, rei de Navarra, filho de Antônio de Bourbón, um líder e

protetor dos huguenotes.

O futuro parecia alvissareiro para os huguenotes. A celebração de casamento

de Henrique de Bourbón com Margarida Valois ocorreu em 18 de agosto de 1572. Na

ocasião, se encontravam em Paris os principais chefes huguenotes, todos jubilosos porque

anteviam não apenas a liberdade religiosa, mas sua real representação na corte. Jamais

poderiam imaginar a traição já tramada.

Após a celebração, Coligny dirigia-se à sua casa, quando foi alvejado por

um disparo que lhe decepou o dedo indicador direito e o feriu no braço. As suspeitas

pairaram sobre a casa do duque de Guiza, representante de uma forte família que

rivalizava em poder com os Médicis, e sobre o irmão do rei, Henrique d’Anjou. Nesse

ínterim, Catarina de Médicis convenceu Carlos IX que Coligny planejava uma

conspiração para tomar o poder, armando desse modo o cenário para a chacina.

Na macabra noite de 24 de agosto de 1572, dia de São Bartolomeu, a

matança realmente ocorreu. Coligny foi morto pelo próprio duque de Guiza, que também

indicou aos assassinos as casas onde estavam alojados os huguenotes. Morreram cerca de

dois mil deles em Paris. O sangue dos huguenotes correu nas escadarias do palácio do

Louvre. Matanças semelhantes em outras partes da França levaram à morte cerca de vinte

mil protestantes. Segundo Gonzalez,

“O papa Gregório XII, a princípio comovido, quando entendeu que o

protestantismo tinha sido extirpado da França ordenou que se cantasse um Te

Deum em celebração da noite de São Bartolomeu e que se fizesse o mesmo

todos os anos para comemorar o supostamente glorioso acontecimento”.

Carlos IX morreu em 1574, e foi sucedido pelo seu irmão, Henrique d’Anjou

(Henrique III), um dos responsáveis pelo massacre de São Bartolomeu, sob quem as

guerras religiosas continuaram no país. Morto Henrique III, foi sucedido pelo que seria o

único herdeiro legítimo do trono, Henrique de Bourbón, rei de Navarra, que tomou o título

de Henrique IV.

Em face das pressões dos católicos, do papa e dos espanhóis, Henrique IV

tornou-se católico mais uma vez e ocupou o trono em Paris. Sob o seu reinado, houve

trégua em várias décadas. Em 13 de abril de 1598, promulgou o Edito de Nantes, que

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concedia aos huguenotes liberdade de culto em todos os lugares, exceto em Paris.

Socorremo-nos outra vez de Gonzalez, quando afirmou sobre Henrique IV:

“Apesar de suas instabilidades amorosas e religiosas, Henrique IV foi um dos

melhores reis da França, devolvendo ao país sua antiga paz e prosperidade.

Morreu em 1610, depois de um longo e memorável reinado, vítima do fanático

assassino François de Ravalaic, que estava convencido de que Henrique IV era

um herege protestante”.

Os huguenotes mantiveram forte presença na França até 1685, quando

foram então forçados pelo rei Luiz XIV a fugir para a Inglaterra, Prússia, Holanda, África

do Sul e Estados Unidos. Esse fato fez Cairns afirmar que desde essa época “o

protestantismo reformado não tem exercido mais qualquer influência na França; os

protestantes são uma pequena minoria da população”.

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V. O Calvinismo Além da Suíça

Parte II

Próximo à desembocadura do Reno, existia um grupo de regiões conhecidas

como as “Dezessete Províncias”, territórios que hoje compreendem a Holanda, Bélgica e

Luxembrugo. Quando eclodiu a Reforma, quem reinava sobre o vasto império que incluía

possessões na Alemanha, Espanha e Países Baixos era o imperador Carlos V (1515-1556),

representante da famosa casa dos Habsburg.

As Dezessete Províncias eram bastante diferentes entre si, do ponto de vista

cultural e linguístico. No sul se falava o francês, denominado “valão”; no norte, holandês;

na região central, falava-se a língua flamenga. Foi sob o governo de Carlos V que as

Dezessete Províncias alcançaram seu único momento de unidade.

Nesse ponto de nossa caminhada, dedicar-nos-emos ao estudo da conquista

da Holanda para o calvinismo, o único país a tornar-se protestante após a instalação da

contra-reforma católica romana.

1. A Reforma na Holanda.

O ensino da Reforma alcançou os Países Baixos por volta de 1520.

Devemos, antes de tudo, lembrar-nos da presença dos “irmãos da vida comum” e da

influência positiva de Erasmo de Rotterdam, principalmente face à publicação, em 1516,

do seu Novo Testamento em grego.

Primeiramente, temos a influência do luteranismo. Para refreá-lo, Carlos V

aprovou a instalação da inquisição e, em 1523, foram queimados os primeiros mártires

protestantes em Bruxelas, os monges agostinianos Hendrick Voes e Johannes Esch. A

tradição anabatista também fez grande número de adeptos, mas, depois da decepção de

Munster, muitos se tornaram seguidores de Menno Simons e não poucos foram

barbaramente perseguidos. Sob os editos de Carlos V, milhares de anabatistas foram

executados, seus chefes, queimados, seus seguidores, decapitados, e suas mulheres,

enterradas vivas.

Entretanto, o calvinismo seria a tradição protestante a predominar na região,

sobretudo devido a pregadores procedentes da França, Suíça e sul da Alemanha,

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

movimento que redundou na adoção da fé reformada na Holanda, com a consequente

formação Igreja Reformada Holandesa. Com efeito, a Igreja Reformada nos Países

Baixos considerava-se uma continuação da Igreja Cristã, mas que vislumbrava a

necessidade de uma reforma em face das deturpações acumuladas ao longo dos séculos.

Frans Leonard Schalkwijk anotou que a Igreja Reformada:

“Reformava a sua doutrina e pregação conforme o ensino bíblico. Reformava

o interior dos templos cristãos para um culto mais simples. Os ministros

reformavam suas vidas, oficializando seus casamentos, registrando seus filhos.

Reformou-se o calendário litúrgico, que sofreu cortes importantes pela

eliminação de inúmeros dias santos, preservando apenas o domingo e outros

dias cristológicos (como Páscoa e Pentecostes), dando indiretamente um

grande impulso à economia nacional. Os mendigos foram retirados das ruas e

postos a trabalhar, ou, quando realmente impossibilitados, sustentados pela

diaconia eclesiástica. A própria posição social da mulher melhorou, e os

processos movidos contra supostas bruxas cessaram. Em todos os setores da

vida sentiu-se o movimento da renovação da velha Igreja Cristã. E esta

consciência de ser a continuação da Igreja Cristã estava bem patente desde o

início da época em apreço, tanto entre cristãos germânicos, eslavos ou latinos,

tanto franceses como portugueses”.

A perseguição ao protestantismo foi recrudescida quando Filipe II (1555-

1598) sucedeu seu pai, Carlos V, que abdicou em 1555. Impopular desde o início, Filipe

permaneceu na capital holandesa até 1559, momento em que se transferiu definitivamente

para a Espanha. Ele estava realmente decidido a erradicar a Reforma dos Países Baixos,

“declarando que preferia perder a coroa e a vida, a governar sobre hereges” (Frans

Leonard Schalkwijk). Para tanto, facilitou a penetração da inquisição espanhola e deu

início a uma série de editais que se tornaram conhecidos como “editais de sangue”, por

terem levado milhares à morte. Nada obstante, o movimento reformador só ganhava

adesões.

Em 1565, os nobres holandeses firmaram o “Compromisso de Breda”, e

marcharam para apresentar suas demandas à regência, ocasião em que foram

desdenhosamente chamados de “mendigos”. Insurreições protestantes ocorreram em

1566, quando grupos iconoclastas saquearam 400 templos católicos romanos e destruíram

suas imagens, altares e demais símbolos da velha religião. Cultos eram realizados ao ar

livre, sob a proteção dos mendigos. Os ânimos só foram acalmados com a intervenção

sábia de Guilherme de Orange-Nassau.

Filipe II decidiu enviar Ferdinand Alvarez, o católico romano Duque de

Alba, para assumir o governo nos Países Baixos (1567-1573). Ele chegou ao país com

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Estudos de História da Igreja

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

um exército formado por soldados espanhóis e italianos. Tão logo assumiu, disposto a

exterminar a Reforma, organizou o “Conselho das Desordens”, um tribunal inquisitorial

que cedo foi denominado “Conselho de Sangue”, face ao horror que provocou. Gonzalez

fala sobre os resultados da atuação desse conselho: “Os mortos foram tantos que os

cronistas da época falam do mau-cheiro no ar, e de centenas de cadáveres dependurados

nas árvores à beira do caminho”. Foi nesse período que o filho mais velho de Guilherme

de Orange, Filipe Guilhermino, com então onze anos, foi sequestrado e levado preso à

Espanha, para nunca mais ver o pai. O próprio príncipe de Orange precisou retirar-se para

suas herdades na Alemanha.

Então, eclodiu a “Guerra dos Oitenta Anos” (1568-1648), a revolta popular

contra a tirania espanhola. Sobre ela, Schalkwijk declara: “Sob a liderança de seus

legítimos representantes, as províncias neerlandesas desafiaram a Espanha, a maior

potência militar do mundo, e conseguiram a vitória. Havia, inclusive, grupos de

guerrilheiros, tanto na terra quanto no mar, denominados ‘geuzen’ [mendigos]”. Os

“mendigos do mar” eram piratas organizados por Orange. Foram eles que em 1572

capturaram a cidade portuária de Brielle, ainda que não tivessem recebido a ajuda do

almirante francês Gaspar de Coligny, face ao assassinato deste na chacina de São

Bartolomeu.

O Duque de Alba conseguiu de forma violenta recapturar várias cidades que

haviam aderido à revolta. Mas, em 1573, o príncipe de Orange se declarou calvinista e a

cidade de Alkmaar resistiu às tropas espanholas. No ano seguinte, Leiden foi capturada

pelos “mendigos”. Nesta batalha, morreu dom Luiz de Zuniga e Requesens, o sucessor

do Duque de Alba, que havia renunciado ao cargo.

Com a morte de Requesens, os soldados passaram a saquear as cidades do

sul, fato que causou a união das províncias em 1576, numa reunião em Gante, onde foi

firmada a “Pacificação de Gante”. Entretanto, Filipe II não desistiu dos Países Baixos e

em mais uma ocasião invadiu o país com um exército. Outra vez as províncias do sul

capitularam, enquanto as do norte (Holanda, Zelândia, Utrecht, Frísia, Groningen e

Gélria) formaram uma aliança à parte (em 1579), à qual aderiram cidades como Gand e

Antuérpia, para lutarem por sua liberdade. Em 1580, a fé reformada foi oficialmente

adotada pelas províncias nórdicas e, em 1581, a soberania do rei espanhol foi formalmente

repudiada.

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Estudos de História da Igreja

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

Nesse mesmo ano, Filipe anunciou a promessa de uma grande recompensa

a quem matasse Guilherme de Orange. Três anos mais tarde, em 1584, o príncipe foi

assassinado à traição por um pseudo-huguenote, atraído pela recompensa. “Havia

tombado o ‘pai da pátria’, cujo nome se preservou no hino nacional holandês” (Frans

Leonard Schalkwijk). Quanto às províncias meridionais, foram reconquistadas ao

catolicismo romano a partir de 1585 e, após um período de declínio econômico,

conquistaram sua independência em 1830, com o nome de Bélgica.

Em virtude da grande imigração de cidadãos flamengos às províncias

nórdicas, estas se beneficiaram grandemente. Guilherme foi sucedido por Maurício de

Orange-Nassau, este com dezoito anos. Melhor general que seu pai, Maurício dirigiu o

exército numa serie de campanhas militares vitoriosas contra a armada espanhola e, em

1609, a Holanda celebrou uma paz com a Espanha, a “Trégua dos Trinta Anos” (1609-

1621). Nesse período, a Holanda foi ainda beneficiada por uma nova onda de imigração,

gerada pela “Guerra dos Trinta Anos” (1618-1648), na Alemanha. Ocorreu uma

verdadeira “era de ouro” nos Países Baixos. A vida cultural desenvolveu-se

enormemente. Universidades foram fundadas. As belas artes e a ciência floresceram. O

comércio se expandiu para variadas partes do mundo, tanto que foram organizadas

diversas companhias mercantis, dentre as quais a “Companhia das Índias Orientais”,

fundada em 1602.

Todavia, o fim da guerra e a independência formal da República Holandesa,

na época composta de maioria calvinista, só ocorreram em 1648, com o Tratado de

Westfália.

2. A Confissão Belga, a Controvérsia Arminiana e o Sínodo e os Cânones de

Dort.

Enquanto se travava a guerra contra a Espanha, as igrejas só se reuniam em

‘sínodos’ no exterior, como os ocorridos nas cidades alemãs de Wesel (1568) e Emden

(1571). Nesse último, decidiu-se que a igreja adotaria o sistema presbiteriano de governo.

O mesmo sínodo adotou a Confissão Belga, redigida por Guido de Bres (1527-1567), em

1561, e revisada por Francis Junius, um pastor calvinista da Antuérpia. Quando refugiado

no Palatinado, o pastor Petrus Dathenus traduziu para o holandês o Catecismo de

Heidelberg, recentemente publicado por Ursinus e Olevianus, e compôs a tradução dos

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

cento e cinquenta salmos metrificados por Theodoro de Beza e Clement Marot, do francês

para o holandês.

Com a vitória em Alkmaar, em 1573, no mesmo ano um sínodo provincial

holandês se reuniu naquela cidade. Um sínodo nacional em solo holandês só se reuniu em

Dort, em 1578, ocasião em que foram formal e nacionalmente adotados a Confissão Belga

e o Catecismo de Heidelberg, que tornaram-se os principais documentos, ao lado dos

Cânones de Dort (composto no sínodo de Dort de 1618-1619, na ocasião da controvérsia

arminiana), da Igreja Reformada Holandesa.

A Igreja Cristã Reformada era uma “igreja do estado”, razão pela qual

muitas autoridades civis desejavam intervir em seus assuntos. Seu controle pelo estado

gerou diversos debates e, durante a “Trégua dos Doze Anos” (1609-1621), o tema

retornou à tona nas disputas envolvendo “arminianos” e “gomaristas”, sobre as quais nos

debruçaremos.

Jacob Arminius (que dá origem ao nome “arminianismismo”), nasceu em

1559, na cidade holandesa de Oudewater. Estudou em Leiden de 1576 a 1582 e, após a

graduação, foi aluno de Theodoro de Beza em Genebra. Durante os exames que

antecederam sua ordenação, ao detectar problemas com suas ideias, o consistório lhe

perguntou se poderiam ser eliminados nove dos doze artigos do credo apostólico, a fim

de apaziguar os heréticos. Entretanto, “apesar das dúvidas por parte do consistório”,

afirma Frans Leonard Schalkwijk, “Arminius foi ordenado pastor em 1587”. Em 1590,

casou-se com Lijsbet Reael, filha de um dos homens mais fortes de Armsterdã. Em 1603,

tornou-se professor de teologia da Universidade de Leiden, fato que muito preocupou o

consistório da igreja de Armsterdã. Arminius morreu em Leiden, em 1609.

Em 1604, um ano após assumir a cátedra em Leiden, Arminius propôs uma

revisão das doutrinas da predestinação e da eleição. Para ele, Deus elege ou reprova com

base na fé ou incredulidade anteriormente prevista. Sobre a maneira de ver os efeitos da

queda sobre a humanidade, Arminius era tão agostiniano como Calvino e Lutero. Ele

afirmava sem rodeios a completa ruína do livre-arbítrio e insistia na escravidão da

vontade. Em certo lugar, ele declarou: “Nesse estado, o livre-arbítrio do homem em

direção ao Verdadeiro Bem fica não apenas ferido, mutilado, débil, torto e enfraquecido

[attenuatem], mas também prisioneiro [captivatum], destruído e perdido. E seus poderes

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

não são apenas debilitados e inúteis a não ser que sejam assistidos pela graça, como não

têm quaisquer poderes exceto os que são despertados pela graça divina...” (citação de R.

C. Sproul). Segundo Sproul, “As maneiras de se expressar de Agostinho, Martinho Lutero

ou de João Calvino dificilmente são mais fortes do que a de Armínio”.

Mas, quanto à eficácia da graça, Arminius afirmou sem rodeios a sua

resistibilidade. Para ele, a obra da salvação é iniciada pela graça preventiva ou

preveniente. Sem essa graça, o pecador é incapaz de qualquer bem espiritual. É essa graça

que liberta o pecador da sua escravidão moral e o capacita a fazer o que anteriormente

não podia. Entretanto, após receber essa graça, porque ela não é eficaz e regeneradora, o

pecador pode não se submeter a ela e não cooperar com ela, caso em que ela resultará

frustrada. Para Arminius, portanto, somente Deus pode conceder a obra da graça, e

somente o homem pode desejar cooperar com ela. A obra de Deus afeta a impotência

humana, mas não muda sua vontade.

Arminius cita Agostinho e Bernardo, nesta ordem, para explicar seu ponto:

“A graça subsequente ou seguinte, de fato auxilia o bom propósito do homem;

mas esse bom propósito não existiria a não ser por meio da graça precedente

ou preventiva. E, embora o desejo do homem, que é chamado bom, seja

assistido pela graça quando começa a existir, não começa sem a graça, mas e

inspirado por ele...”

“‘O que, então’, você pergunta, ‘o livre-arbítrio faz?’ Eu respondo brevemente,

‘Ele salva’. Tire o livre-arbítrio, e nada será deixado para ser salvo: Tire a

graça, e nada será deixado como fonte da salvação. Essa obra [da salvação]

não pode ser efetivada sem as duas partes: Uma, de quem ela pode proceder;

A outra, a quem ou em quem ela pode ser [trabalhada]. Deus é o autor da

salvação: o livre-arbítrio é apenas capaz [tantum capere] de ser salvo.

Ninguém, exceto Deus, é capaz de conceder salvação; e nada, exceto o livre-

arbítrio, é capaz de recebê-la” (citação de R. C. Sproul).

Por outro lado, para os reformadores, a todos quantos Deus concede as

operações da graça especial, real e eficazmente são chamados e regenerados, de modo

que voluntaria e espontaneamente vêm a Cristo em arrependimento e fé, visto que a graça

é tanto necessária e suficiente quanto eficaz. Ela não muda o pecador apenas da

incapacidade para a capacidade de desejar a Cristo e ir a Ele, mas realmente efetua nele

o querer e o realizar (Fp 2:13). Os calvinistas jamais afirmaram a estranha caricatura de

que haja pessoas que vão a Cristo forçadas, uma vez que foram incondicionalmente

eleitas. Para a fé reformada, a obra de Deus não pode ser frustrada. Quando Deus chama

interiormente - uma graça que não é dada a todos, porque se fosse todos sem exceção

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

alguma se salvariam -, o que foi eficazmente chamado, porque iluminado em sua mente

e renovado em sua vontade, não pode fazer outra coisa senão corresponder ao chamado.

O debatedor de Arminius foi Franciscus Gomarus, que ainda em 1604

defendeu a posição calvinista ortodoxa ao enfatizar que a escolha de Deus para a salvação

deve-se somente à Sua graça soberana. O debate ganhou repercussão nacional e

influenciou a política do país. Ambas as partes receberam críticas e adesões de

autoridades e civis holandeses. Finalmente, Arminius pediu a realização de um sínodo

nacional. A permissão foi dada pelo governo holandês em 1606, mas Arminius morreu

antes (em 1609) de sua realização (1618-1619).

Após a morte de Arminius, em 1610, um de seus pupilos de nome Simon

Episcopius e demais discípulos redigiram uma declaração de fé denominada

“Remonstrância”, razão pela qual passaram a ser chamados “remonstrantes”. Em 1611,

foi organizada uma conferência que permitia aos remonstrantes interagir com defensores

do pensamento ortodoxo, que, na ocasião, apresentaram sete artigos como resposta aos

pontos controvertidos, documento denominado de “Contra-Remonstrância”. Além da

divergência teológica, os gomaristas alegaram que quaisquer objeções a Confissão

deveriam ser apresentadas perante a Igreja e não ao Estado.

Mauricio de Orange-Nassau, o segundo filho de Guilherme, parente

próximo do Maurício de Nassau que foi governador do Brasil holandês, deu um passo

decisivo quando em 1617 passou a frequentar o culto em uma igreja gomarista. O debate

continuou acalorado, até que em 13 de novembro de 1618 o sínodo nacional teve início,

na cidade de Dort (ou Dordrecht), convocado pelos “Estados Gerais” (o governo do país)

em outubro do ano anterior.

A primeira parte foi realmente um sínodo internacional, com

representação das igrejas de diversos países. Segundo Cairns, “28 dos 130 presentes eram

calvinistas vindos da Inglaterra, de Bremen, do Palatinado, da Suíça e de ouros países. Os

13 arminianos participaram do encontro na posição de defensores”. Em abril de 1619, o

sínodo adotou os Cânones de Dort, reconhecidos como uma das três “fórmulas da união”,

ao lado da Confissão Belga e do Catecismo de Heidelberg. Em um segundo momento,

teve prosseguimento como sínodo nacional. Foram realizadas ao todo 154 sessões durante

os sete meses em que o sínodo esteve reunido, de novembro de 1618 a maio de 1619.

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Estudos de História da Igreja

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

Os Cânones de Dort contêm 4 seções de doutrina, que, em verdade, trazem

5 pontos (que respondem aos 5 pontos da remonstrância), uma vez que o capítulo 3

contém a corrupção do homem e a sua conversão a Deus. Nessa ordem, os Cânones

tratam: da eleição divina e da reprovação; da expiação definida; da corrupção do homem;

do chamado eficaz; e da perseverança dos santos. Sobre a eleição incondicional, declaram

que “é o imutável propósito de Deus, pelo qual ele, antes da fundação do mundo, escolheu

um número grande e definido de pessoas para a salvação, por graça pura”, e negam que

ela é baseada “fé prevista, em obediência de fé, santidade ou qualquer outra qualidade ou

disposição”. Quanto à morte de Cristo, afirmam que “foi o soberano conselho, a vontade

graciosa e o propósito de Deus, o Pai, que a eficácia vivificante e salvífica da

preciosíssima morte de seu Filho fosse estendida a todos os eleitos”.

Após asseverarem a incapacidade total dos homens, como estando

“incapazes de qualquer ação que os salve, inclinados para o mal, mortos no pecado e

escravos do pecado”, os Cânones descrevem a conversão como resultado da operação

eficaz do Espírito Santo e indicam o caráter da regeneração:

“Deus realiza seu bom propósito nos eleitos e opera neles verdadeira conversão

da seguinte maneira: ele faz com que ouçam o Evangelho mediante a pregação

e poderosamente ilumina suas mentes pelo Espírito Santo de tal modo que

possam entender corretamente e discernir as coisas do Espírito de Deus. Mas,

pela operação eficaz do mesmo Espírito regenerador, Deus também penetra até

os recantos mais íntimos do homem. Ele abre o coração fechado e enternece o

que está duro, circuncida o que está incircunciso e introduz novas qualidades

na vontade. Esta vontade estava morta, mas ele a fez reviver; era má, mas ele

a torna boa; estava indisposta, mas ele a torna disposta; era rebelde, mas ele a

fez obediente, ele move e fortalece esta vontade de tal forma que, como uma

boa árvore, seja capaz de produzir frutos de boas obras (I Co 2:14).

Esta conversão é aquela regeneração, renovação, nova criação, ressurreição

dos mortos e vivificação, tão exaltada nas Escrituras, a qual Deus opera em

nós, sem qualquer contribuição de nossa parte... é uma obra sobrenatural,

poderosíssima, e ao mesmo tempo agradabilíssima, maravilhosa, misteriosa e

indizível... Consequentemente todos aqueles em cujos corações Deus opera

desta maneira maravilhosa são, certamente, infalível e efetivamente

regenerados e de fato passam a crer...”.

Finalmente, como sempre expressando preocupação pastoral, os Cânones

ensinam que mesmo os eleitos regenerados não estão livres de pecado e, de fato, podem

chegar a cair em pecados grosseiros. Os efeitos de tais “pecados sérios” na vida dos rentes

são inúmeros: “eles causam a ira de Deus, se tornam culpados de morte, entristecem o

Espírito Santo, suspendem o exercício da fé, ferem profundamente suas consciências e

algumas vezes perdem temporariamente a sensação de graça”. Entretanto, os eleitos são

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

renovados efetivamente para o arrependimento e de fato hão de perseverar, “não por seus

próprios méritos ou forças, mas pela imerecida misericórdia de Deus”. O fundamento

desta certeza é triplo: primeiro, a fé nas promessas de Deus, reveladas em Sua Palavra;

segundo, pelo testemunho do Espírito Santo, que testifica com o nosso espírito que somos

filhos e herdeiros de Deus; terceiro, pelo zelo sério e santo por uma boa consciência e por

boas obras.

Joel Beeke afirmou corretamente sobre os Cânones de Dort: “Ainda que

esses pontos não representem todo o calvinismo e sejam considerados mais corretamente

como as cinco respostas do calvinismo aos pontos de erro do arminianismo, eles estão,

de fato, no âmago da fé reformada, pois fluem do princípio da absoluta soberania divina

na salvação de pecadores”.

3. O Calvinismo Holandês no Brasil Colônia.

Depois de 63 anos da expulsão dos franceses do Rio de Janeiro, nova

possibilidade de implantação do calvinismo no Brasil colônia surgiu pela iniciativa dos

holandeses, que ocuparam grande parte do nordeste brasileiro entre os anos de 1630 a

1654.

Diversos motivos, não apenas o religioso, trouxeram a Igreja Cristã

Reformada ao Brasil. Primeiro, podemos destacar a razão econômica. A Companhia das

Índias Ocidentais foi fundada em junho de 1621, dezenove anos após a fundação da

Companhia das Índias Orientais, em 1602. Seu propósito era basicamente financeiro,

visto que pretendia enriquecer os seus sócios, dentre os quais o flamengo Willen Usselinx.

Além disso, havia também uma séria questão política envolvendo a Holanda e a Espanha,

que também dominava Portugal desde 1580. Nesse sentido, a navegação holandesa era

um instrumento na guerra contra a Espanha, que os holandeses a entendiam como justa.

Finalmente, a Companhia também nutria pretensões religiosas e

missionárias, misturando, portanto, os objetivos dos lucros, da contenda contra a Espanha

e da divulgação do cristianismo reformado. Na Holanda, quando as igrejas se reuniram

no Sínodo de Dort (1618-1619), resolveram acerca da “propagação do Evangelho nas

Índias e em outras regiões”, sobretudo “onde nossos países têm comércio", assunto que

foi apresentado ao governo holandês (citação de Frans Leonard Schalkwijk).

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

Frans Leonard Schalkwijk dividiu os 24 anos da presença holandesa no

Brasil em três períodos: os anos 1630 a 1636 denominou de período da resistência

portuguesa; observou que entre 1637 e 1644, o período áureo, sob o governo de Maurício

de Nassau-Siegen, houve resignação por parte dos portugueses; e, finalmente,

acrescentou que os anos 1645 a 1654 foram de “insurreição lusa, com o fenecimento do

domínio flamengo”.

Antes desse período de ocupação, todavia, os holandeses atacaram a Bahia

em 1524, onde organizaram uma igreja reformada. Entretanto, com a derrota frente à

armada espanhola, no ano seguinte, foram expulsos e a igreja desapareceu com os

invasores. Foram sepultados em solo baiano os pastores Enoch Sterthenius e Johannes

Neander. Quando a frota holandesa chegou na Bahia, Salvador já havia sido retomada

pelos portugueses, razão pela qual rumou ao norte, havendo aportado na Baía da Traição,

ao norte da Paraíba.

Na Baía da Traição, os índios viram nos holandeses uma oportunidade de

libertação do jugo português. Ao perceberem que a frota holandesa estava apenas de

passagem, muitos indígenas desejaram embarcar, o que foi permitido a apenas seis moços

potiguares, dentre os quais um cearense chamado Gaspar Paraupaba, com cerca de

cinquenta anos, e outro de nome Pedro Poti, da Baía da Traição. Na Holanda, os

potiguares aprenderam a ler e escrever e foram instruídos na fé reformada. Alguns desses

“brasilianos” (como eram chamados pelos holandeses) chegaram em Recife seis meses

após a nova invasão, em 1530, e foram efetivamente úteis nas missões holandesas aos

índios nordestinos. Conta-nos Frans Leonard Schalkwijk que, ao regressarem, “pouco a

pouco os índios treinados foram ocupando um lugar mais importante como tradutores,

num contato essencial com as aldeias”.

Em 15 de fevereiro de 1630, os holandeses atacaram Pernambuco, que

sucumbiu. Primeiro, Olinda foi capturada e, quinze dias depois, Recife cessou a

resistência. Em 1631, parte da ilha de Itamaracá foi ocupada pelos holandeses, onde foi

construído o forte Orange. Em 1632, Domingos Fernandes Calabar aderiu ao lado invasor

e tornou-se membro da Igreja Reformada. Em 1633, toda a ilha de Itamaracá já havia sido

tomada e o Rio Grande do Norte foi ocupado pelos holandeses, sendo a fortaleza Reis

Magos vindo a denominar-se “forte Ceulen”, nome de um dos altos conselheiros do

governo.

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

Em véspera do natal de 1634, as fortalezas paraibanas e a cidade de Filipeia,

também na Paraíba, se renderam. No ano seguinte, foi a vez de Goiana. Em Porto Calvo,

pertencente atualmente a Alagoas, a guarnição holandesa não resistiu e Calabar caiu nas

mãos de Matias de Albuquerque, em junho de 1635. Em apenas dez meses depois de

assistir o batismo do filho na Igreja Reformada do Recife, Calabar, ao ser apanhado, foi

estrangulado e esquartejado pelas forças de Matias de Albuquerque, em virtude de haver

aderido aos invasores em 1632. A viúva de Calabar recebeu do governo holandês, para

cada um dos seus três filhos menores, o salário de um soldado.

Na medida em que uma área era ocupada, uma igreja era organizada. No

início, foram implantadas as igrejas reformadas de Recife e Olinda. Com a conquista de

parte de Itamaracá, uma igreja foi iniciada no forte Orange. Com a conquista do Rio

Grande do Norte, em 12 de dezembro de 1633, foi realizado um culto reformado no atual

forte Reis Magos. Com a pacificação do sul do Pernambuco, foram plantadas igrejas

como as de Serinhaém, Cabo de Santo Agostinho e Porto Calvo.

Frans Leonard Schalkwijk afirmou que a época de invasão e resistência foi

de “crueldades... perpetradas por ambas as partes”. Aduziu ainda:

“Era uma guerra de exaustão, e os líderes holandeses reconheceram que

precisavam se organizar, se quisessem tirar algum proveito da conquista... A

situação na própria Igreja Cristã Reformada era igualmente crítica, por causa

da falta de disciplina até mesmo entre os pastores. E na administração civil, o

pastor espanhol Soler considerava os encarregados como ‘ratos políticos’, que

roíam a companhia até o osso. Precisava-se de uma mão forte e sábia para

dirigir o destino da área ocupada...”.

A “mão forte e sábia” escolhida foi o Conde João Maurício de Nassau-

Siegen. Ele nasceu em 1604, no castelo de Dillenburg, no condado de Nassau, em um lar

evangélico. Seu avô paterno era João “o Velho”, irmão do príncipe Guilherme de Orange-

Nassau. Em 1636, a Companhia das Índias Ocidentais o nomeou governador da Nova

Holanda.

João Maurício chegou ao Brasil em 23 de janeiro de 1637, aos 32 anos. Sob

seu governo, a Nova Holanda expandiu geograficamente e desenvolveu-se culturalmente,

com atenção especial à ciência e às artes, e medidas ecológicas foram adotadas, dentre as

quais uma proibição de mais derrubada de pau-Brasil. Nassau era um calvinista convicto

e um assíduo frequentador das reuniões da igreja e, segundo Schalkwijk, “de maneira

geral, foi reconhecido como um governador sábio, virtuoso e temente a Deus”.

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

Um mês após sua chegada, o governador do Brasil Holandês reconquistou

Porto Calvo. Em dezembro de 1637, tomou o Ceará, e no presbitério de janeiro de 1638

procurou-se um “consolador” para a fortaleza ali existente. Em 1641, conquistou as

capitanias de Sergipe e Maranhão.

Ao todo, estima-se que existiram durante algum tempo 22 igrejas

reformadas no Brasil. Em Salvador, Bahia; um pequeno grupo em Sergipe; no forte

Maurício no Rio São Francisco (atual cidade de Penedo); em Alagoas do Sul (um pouco

ao sul da atual cidade de Maceió); em Porto Calvo e nas cidades de Sirinhaém, Ipojuca,

Cabo de Santo Agostinho (atual Suape) e Santo Antônio do Cabo (atual Cabo). Havia

igrejas nas cidades de Recife, Olinda e Maurícia na ilha de Antônio Vaz, além de haver

pregação em Igaraçu. Ao norte, havia as igrejas em Itamaracá e Goiana e existiram três

congregações reformadas compostas de indígenas entre Itamaracá e Paraíba: em

Itapecerica, na aldeia de Maurícia e em Massurepe (ou Maireba). Na Paraíba, havia as

igrejas da capital e no forte Cabedelo. No Rio Grande do Norte, uma igreja se reunia no

“forte Ceulen” (atual Reis Magos) e outra na fortaleza do Ceará. Finalmente, havia uma

igreja no Maranhão e uma pequena congregação na ilha de Fernando de Noronha.

Portanto, durante o governo de João Maurício, “havia uma igreja reformada nos lugares

mais importantes do Nordeste de então” (Frans Leonard Schalkwijk).

Quando os holandeses chegaram ao Brasil, entenderam que já havia

templos cristãos, que tão somente careciam de uma reforma, razão pela qual poucos

outros foram construídos. Assim, removeram as imagens, os altares e os paramentos

sacerdotais dos templos católicos romanos, colocando no lugar o púlpito (e sobre ele um

exemplar da Bíblia), a pia batismal e a mesa da Ceia. A liturgia dos cultos era simples e

seguia o modelo indicado no Sínodo Nacional de Dort. Schalkwijk o descreve assim:

“O pastor iniciava o culto com o ‘votum’: ‘O nosso socorro vem do Senhor

que fez o céu e a terra’, saudando em seguida a igreja com ‘Graça e paz a vós

outros por parte de Deus Pai e do Nosso Senhor Jesus Cristo na comunhão do

Espírito’. Em seguida a igreja cantava alguns salmos de Davi e confessava seus

pecados numa oração dirigida pelo pastor. Logo após a promessa de perdão

vinha a leitura dos dez mandamentos, como norma para a vida de gratidão. Em

seguida a outro canto congregacional de um salmo vinha a pregação, que

durava quase uma hora... O culto se encerrava com cântico, oração, bênção

apostólica e uma coleta para a diaconia”.

Com a reforma do calendário litúrgico, os dias santos foram abolidos e

permaneceram somente as comemorações especiais relacionadas à vida de Cristo: natal,

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

páscoa, ascensão e pentecostes. A música utilizada era a do saltério de Petrus Dathenus

(uma tradução dos salmos metrificados por Theodoro de Beza) e a Ceia era realizada

quatro vezes ao ano. Nas tardes dos domingos, a congregação reunia-se para o culto de

doutrina, momento em que a pregação seguia a sequência do Catecismo de Heidelberg.

Em maio de 1644, João Maurício deixou a Nova Holanda, para tristeza de

todos os grupos populacionais. Em sua época, o Nordeste tinha 90.000 habitantes, assis

distribuídos: um terço de luso-portugueses; um terço de escravos e um terço composto

por índios (16.000), holandeses e outras nacionalidades europeias (12.000) e judeus

(1.500). Os portugueses não queriam que ele os deixasse, chamando-o de seu “padroeiro”,

seu “Santo Antônio”. Os índios o chamavam de “irmão”, e afirmavam estarem prontos

para viver e morrer com ele. Os judeus lhe ofereceram três mil florins por ano, caso

permanecesse no Brasil. Os holandeses e os membros em geral da Igreja Cristã

Reformada insistiram para que ficasse. Elben M. Lenz César pontuou: “Nassau tinha

então 40 anos. Se ele tivesse ficado, talvez o Nordeste brasileiro viesse a falar holandês e

a maioria da população se tornasse cristã reformada. Até o jesuíta padre Antônio Vieira

era a favor do parecer que entregava Pernambuco aos holandeses”.

Após o período áureo sob o governo de João Maurício, diversas tensões

relacionadas aos campos étnico e cultural, econômico e jurídico e moral e religioso

causaram a insurreição lusa que culminou na expulsão dos invasores. Em 26 de janeiro

de 1654, a rendição de Taborda foi assinada. Vinte anos depois, em 1674, a Companhia

das Índias Ocidentais foi dissolvida. “Por essa época, já haviam falecido os poucos

remanescentes brasileiros da Igreja Cristã Reformada do Brasil, o tapuia João Pregador

na cidade do Recife, e o pastor Bartholomeus Heinen, o ‘paraíba-brasiliano’, que morreu

longe de sua terra natal” (Frans Leonard Schalkwijk).

Portanto, embora a tentativa da criação da Nova Holanda tenha fracassado,

o Brasil evangélico possui dívida impagável para com as expedições da Holanda

calvinista. É que em uma situação semelhante à vivida no Brasil, a Holanda estava

ocupando posses portuguesas na Indonésia, onde nasceu, depois da fundação do forte

Batávia, em 1619, uma Igreja Cristã Reformada de fala portuguesa. Essa igreja de luso-

indonésios chegou a ter cerca de quatro mil membros pelo fim do século XVII. Um dos

pastores dessa igreja foi o português João Ferreira de Almeida (1628-1691). Foi ele que

traduziu para o português o Novo Testamento e grande parte do Antigo, a partir das

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

línguas originais. “Foi esta Bíblia em português que as Sociedades Bíblicas introduziram

mais tarde no Brasil, século e meio após a expulsão dos holandeses” (Schalkwijk).

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

VI. A Reforma na Inglaterra

1. Introdução.

Em nosso presente estudo, observaremos o nascedouro da quarta tradição

protestante (ao lado da luterana, da anabatista e da reformada): a anglicana.

Em parte, a Reforma da Inglaterra está relacionada com as ideias

reformadoras largamente difundidas na primeira metade do século XVI; por outro lado,

ela apresenta vieses distintos, sobre os quais nos debruçaremos. Enquanto caminharmos

pela Reforma Anglicana, destacaremos também o movimento puritano inglês e o

denominacionalismo protestante, com os movimentos presbiteriano inglês, batista e

congregacional.

Concorreram à Reforma na Inglaterra os seguintes fatores: a propagação do

ensino dos lolardos, que espalhavam as ideias de John Wycliffe (1320-1384); o retorno

ao estudo da Bíblia nas línguas originais, sobretudo a partir da publicação do Novo

Testamento grego de Erasmo de Rotterdam; a tradução da Bíblia para o inglês, realizada

por William Tyndale (1494-1536), considerado o primeiro puritano, e Miles Coverdale;

e, a circulação dos escritos de Lutero, que influenciaram homens como Tyndale e Thomas

Cranmer.

Entretanto, a causa direta a provocar a Reforma Anglicana estava

relacionada com questões públicas e privadas, envolvendo o rei Henrique VIII, a par de

uma crescente formação da consciência nacional, o que ensejaria o apoio necessário ao

rei em seu rompimento com Roma, conforme veremos.

2. A Reforma sob Henrique VIII (1509-1547).

O irmão mais velho de Henrique, Artur, casou-se com Catarina de Aragão

(filha de Fernando e Isabel da Espanha), então com quinze anos, matrimônio que

aproximou a Espanha da Inglaterra. Como Artur faleceu quatro meses depois do

casamento, e a despeito de haver uma lei canônica que proibia o casamento com a viúva

de um irmão, conseguiu-se uma dispensa com o então papa Júlio II e tão logo Henrique

alcançou a idade suficiente, casou-se com Catarina.

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Estudos de História da Igreja

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

Henrique e Catarina, em um casamento infeliz, tiveram cinco crianças, mas

a única que sobreviveu foi a filha que mais tarde reinaria como Maria Tudor. E, quando

o decurso do tempo tornou claro a Henrique que Catarina não mais lhe daria um herdeiro

homem, deduziu que essa trágica situação só poderia ser explicada como uma

manifestação da ira divina. Bruce L. Shelley anota que em “1525, a rainha tinha 40 anos

e o rei ponderava mais e mais sobre os caminhos do Todo-Poderoso: ‘Estarei sob a

maldição de Deus?’”.

Consequentemente, Henrique iniciou uma luta com Roma para conseguir a

anulação do casamento. Em 1527, pediu ao papa Clemente VII para revogar o casamento,

considerando-o nulo desde a origem, há dezoito anos. Entretanto, tal anulação não seria

conseguida de modo simples, apesar da embaixada (com a presença de Cranmer) enviada

a Roma por Henrique, a fim de pleitear sua causa, em 1530. É que Catarina era tia do

poderoso Carlos V, o então rei da Espanha e imperador da Alemanha, que exercia forte

domínio sobre o papa. Assim, o papa não concederia a anulação do casamento de

Henrique sem conquistar a antipatia de Carlos. O resultado não poderia ter sido outro: o

Clemente VII recusou o pedido de divórcio de Henrique, feito através do cardeal Wolsey.

Henrique cansou de esperar e resolveu definir a questão com os próprios

recursos. Em uma consulta com Thomas Cranmer, este aconselhou o rei a consultar os

eruditos de Oxford e Cambridge sobre o assunto e, a pedido do rei, escreveu seu parecer,

no sentido de que “o Bispo de Roma não tinha autoridade que lhe permitisse dispensar a

Palavra de Deus” (John Foxe). A resposta dos eruditos não foi unânime, mas Henrique

percebeu que o momento era-lhe propício para impor sua vontade à nação.

Possivelmente já apaixonado por Ana Bolena, e ao perceber que o papa não

lhe daria divórcio, Henrique o conseguiu através do clero inglês. Em 1531, obrigou o

clero a aceitá-lo como chefe da Igreja da Inglaterra. Em janeiro de 1533, casou-se

secretamente com Ana Bolena. Em maio do mesmo ano, seu casamento com Catarina foi

anulado por Cranmer em sua corte eclesiástica, e em setembro a nova rainha deu à luz

uma menina, Elizabeth. Em 1534, finalmente, foi assinado o Ato de Supremacia, que

declarava: “A majestade do rei justa e corretamente é, e deve ser, reputada como o único

chefe supremo na terra da Igreja da Inglaterra chamada Anglicana ecclesia”. Estava

consumada a ruptura política com Roma.

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

Na verdade, esse rompimento com Roma não significava nenhum tipo de

reforma religiosa. Henrique sempre manteve suas convicções católicas romanas. Em

1521, ele havia contra-atacado a negação de Lutero aos sete sacramentos com uma obra

tacanha de nome “Afirmação dos Sete Sacramentos”, onde chamou o reformador alemão

de “serpente venenosa” e “lobo do inferno”. Henrique foi muito mais movido a ambições

e planos políticos. Em 1536, ordenou o fechamento dos mosteiros menores e seu confisco

aos cofres da coroa. Em 1539, promoveu a aprovação dos Seis Artigos pelo Parlamento,

reafirmando a consubstanciação, a Comunhão sob uma espécie, o celibato e a confissão

auricular. “Em teologia, a igreja da Inglaterra continuava fiel a Roma”, conforme

observou Cairns.

Os fracassos conjugais de Henrique não pararam. Ana Bolena, que lhe dera

Elizabeth, foi condenada em 1536 por adultério e decapitada. Henrique casou-se com

Jane Seymour, com quem finalmente teve um filho homem, Eduardo. Na época da morte

de Jane, Henrique sentia-se ameaçado tanto pela França quanto por Carlos V, fato que o

levou a casar-se com Ana de Cleves, cunhada do príncipe protestante Frederico da

Saxônia, e a aproximar-se dos príncipes luteranos. Quando concluiu que os alemães

protestantes não abririam mão de suas convicções religiosas, divorciou-se de Ana de

Cleves e mandou decapitar o ministro que fez os arranjos para o casamento.

Após, Henrique casou-se com Catarina Howard, período em que diversas

dificuldades foram criadas ao partido reformista. Catarina foi também decapitada.

Finalmente, casou-se com Catarina Parr, partidária da Reforma, que sobreviveu a ele.

Quando Henrique morreu, em 1547, a igreja inglesa era doutrinariamente católica,

embora dirigida pelo rei.

3. A Reforma sob Eduardo VI (1547-1533).

Eduardo VI, filho de Henrique que lhe dera Jane Seymour, ascendeu ao

trono aos nove anos. Em face de sua tenra idade, a regência ficou a cargo, por três anos,

do protestante duque de Somerset, irmão de sua mãe. Nesse período, a Reforma avançou

rapidamente. Conta-nos Cairns que “em 1547, o Parlamento permitiu aos leigos tomarem

o cálice na Comunhão, repeliu as leis de traição e heresia e os Seis Artigos de feição

católica, legalizou o casamento de sacerdotes em 1549 e acabou com as chantries, capelas

doadas para a celebração de missas pelas almas de quem fizera a doação... Os cultos

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

deveriam ser em inglês e não em latim”. O Ato de Uniformidade, em 1549, estabeleceu o

uso do Livro de Oração Comum, preparado por Cranmer, “que deu ao povo inglês, pela

primeira vez, uma liturgia em seu próprio idioma” (Gonzalez).

O duque de Somerset foi substituído pelo duque de Northumberland, sob

quem a Reforma permaneceu avançando. A segunda edição do Livro de Oração Comum,

de 1552, refletia influências calvinistas. Com pequenas modificações no reinado de

Elizabeth, este é o Livro de Oração usado até hoje pela Igreja Anglicana. Nasceram nesse

período, sob o empenho de Cranmer, os Quarenta e Dois Artigos que se tornaram a

confissão da Igreja Anglicana por decreto real em 1553. Logo depois da assinatura deste

ato, o jovem rei morreu, com quase dezesseis anos.

4. A reação católica de Maria Tudor (1553-1558).

Eduardo VI foi substituído por Maria, filha de Henrique VIII com Catarina

de Aragão. Seu reinado, que perdurou de 1553 a 1558, representa a Contra Reforma na

Inglaterra. Ela era uma católica-romana fervorosa, cujo objetivo deliberado era a

restauração das práticas religiosas inglesas ao ponto em que deixou seu pai, em 1547,

repudiando as mudanças introduzidas por Eduardo. Sem olvidar ao fato de que para Maria

“o movimento reformador havia começado com a desonra que tinha sido objeto em sua

juventude, quando foi declarada filha ilegítima” (Gonzalez). Ademais, havia um ódio de

Maria por Cranmer, tanto pelo divórcio da sua mãe quanto pela mudança de religião no

país, que muito se deveu ao bispo de Cantuária.

A princípio foi cautelosa em suas “reformas”. Mas, tão logo sentiu-se segura

no trono, Maria conduziu a Inglaterra à obediência ao papa, em 1554, e desencadeou uma

série de medidas que desfaziam os editos parlamentares sob as regências de Henrique e

Eduardo. Os sacerdotes que se casaram deveriam separar-se de suas esposas. Os dias

santos e as datas tradicionais deveriam voltar a ser observadas.

Finalmente, Maria conduziu uma perseguição cruel aos quase oitocentos

ministros que recusaram-se a acatar suas mudanças. Eles perderam suas paróquias e foram

forçados a fugir para Genebra e Frankfurt. Diz-se que duzentos e oitenta e oito pessoas

foram martirizadas por sua fé. A barbárie liderada por Maria lhe rendeu o epíteto de

“Maria, a sanguinária”, que lhe dera John Foxe no seu famoso Livro dos Mártires (de

1571).

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

O mártir mais conhecido do período foi sem dúvida Thomas Cranmer. De

início, quando acossado pelas forças da rainha, Cranmer retratou-se de sua fé protestante

e afirmou-se católico-romano. Após uma prisão de três anos, tempo durante o qual,

segundo Foxe,

“os astutos papistas formavam bandos ao seu redor, assediando-o com

ameaças, com elogios, com súplicas e promessas. Alimentavam-lhe a

esperança de que ele não apenas pouparia sua vida, mas também seria

reconduzido à sua antiga dignidade... Mas se ele se recusasse, não haveria para

ele esperança de salvação ou perdão, pois a rainha estava determinada a ter um

Cranmer católico ou então não existiria Cranmer nenhum. Por fim, o arcebispo,

vencido, acabou cedendo”.

No dia anterior ao da execução, Cranmer foi visitado pelo Dr. Cole,

delegado da rainha e a quem esta conferira o encargo de pregar o sermão no dia fatídico.

Cole desejava verificar nessa visita se Cranmer ainda se mantinha como um firme

católico-romano, nos termos da retratação assinada anteriormente por ele. Em seguida,

Cranmer foi visitado por um frade espanhol, a testemunha de sua retratação, que lhe deu

um papel constando dos artigos que Cranmer deveria confessar publicamente, em uma

retratação perante o povo, antes de ser executado.

Chegado o dia, Cranmer foi levado da prisão em uma pomposa procissão à

Igreja de Sta. Maria. A parte final do sermão de Cole foi dirigida a ele, encorajando-o a

aceitar sua própria morte. Após o sermão, foi dada a Cranmer a oportunidade professar a

fé católica-romana, ocasião em que disse, para a surpresa dos circunstantes:

“... Quero, portanto, declarar perante vós minha verdadeira fé, sem máscara ou

sem dissimulação alguma, pois esta não é a hora de disfarçar,

independentemente do que eu disse ou escrevi no passado. Eu acredito em

Deus... E agora chego à questão mais importante, que tanto atribulou minha

consciência, acima de qualquer outra coisa que fiz ou escrevi em toda a minha

vida. Refiro-me a publicações de escritos contrários à verdade. Agora e aqui

eu renuncio a elas e as rejeito como algo escrito pela minha mão, mas que é

contrário à verdade em que sempre acreditei no meu coração. Escrevi aquilo

por medo da morte e, se fosse possível, para salvar a minha vida. Estou falando

de todos aqueles bilhetes e textos que escrevi e assinei de meu próprio punho

desde a minha degradação. Ali escrevi muitas coisas falsas. E pelo fato de que

minha mão direita pecou ao escrever contra o meu coração, ela será a primeira

a chegar ao fogo, a primeira a ser queimada. Quando ao Papa, eu o rejeito,

como inimigo de Cristo, como anti-Cristo, com todas as suas falsas doutrinas”

(John Foxe).

O que se podia ver na plateia era um misto de perplexidade e fúria. Dali,

Cranmer foi arrastado para a fogueira. Chegando ao lugar da execução, ajoelhou-se e orou

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e, em seguida, foi amarrado com uma corrente de ferro e atearam fogo. Era 21 de março

de 1556. Thomas Cranmer, arcebispo de Cantuária, tinha sessenta e seis anos.

Foxe nos conta o fim da história:

“Quando a lenha foi acesa e o fogo começou a queimar perto dele, estendendo

o braço, pôs a mão direita no meio das chamas e ali a segurou firme, imóvel

(exceto quando a recolheu para passá-lo sobre o rosto). Ele queria que todos

pudessem ver a mão queimando antes que seu corpo fosse tocado pelas

chamas... Tinha os olhos erguidos para o céu e foi repetindo as palavras ‘sua

indigna mão direita’ enquanto a voz lhe permitia...”.

5. A reforma sob Elizabeth: a Era Elizabetana (1558-1603).

Maria morreu em fins de 1558, fato que deu azo à subida ao trono, com

então 25 anos e mediante uma série de obstáculos, Elizabeth, filha de Ana Bolena.

Elizabeth era mais política que religiosa. Sua fé protestante, como a fé

católica-romana de sua irmã Maria, também estava imiscuída com questões delicadas. É

que caso o papa Paulo VI permanecesse no comando da Igreja da Inglaterra, o casamento

de Henrique com Catarina permaneceria válido e ela é que seria a filha ilegítima.

A Inglaterra, na época, estava divida entre catolicismo e protestantismo.

Assim, Elizabeth, que não era uma protestante extremista, desejava a unificação do país

através de uma única igreja, embora concedendo razoável liberdade religiosa. Nesse

diapasão, nem havia espaço para catolicismo romano nem para protestantismo puro. Foi

escolhido, portanto, “o Via Media, o caminho do meio entre protestantismo e

catolicismo”.

Em 1559, o Parlamento aprovou o Ato de Supremacia, que fez da rainha “o

único governo supremo deste reino”, em assuntos espirituais e temporais. O Livro de

Oração Comum de 1552 foi ligeiramente modificado e instituído em um Ato de

Uniformidade. Os Quarenta e Dois Artigos foram revisados e tornaram-se em Trinta e

Nove, que, em 1563, foi aceito pelo Parlamento como a confissão da Igreja Anglicana.

Esta confissão, com pequenas alterações introduzidas em 1571, é até hoje o credo da

Igreja da Inglaterra.

Em 1570, Elizabeth foi excomungada pelo papa Pio V. Felipe da Espanha

tentou reconquistar debalde a Inglaterra para Roma em 1588, através de sua Armada

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Espanhola, que veio a ser derrotada pela esquadra inglesa. Com isso, a última esperança

do papa em reconquistar a Inglaterra foi perdida.

No reinado de Elizabeth, retornaram do exílio no continente refugiados dos

tempos de Maria Tudor que, por influência de seus estudos em Genebra e outras paragens

protestantes, entenderam que a Igreja Anglicana, nos termos do “caminho do meio”, não

representava uma reforma completa da Igreja. Esses pregadores foram um desafio para

Elizabeth e seus sucessores. Eles são conhecidos como “puritanos”, alcunha que

receberam pelos idos de 1568, segundo Cairns.

6. O puritanismo.

A vitória contra o papado não deu descanso à rainha, em virtude da crescente

influência dos puritanos, que entendiam que muitos “trapos do papado” continuavam na

Igreja Anglicana.

Na definição de Flanklin Ferreira, os “puritanos eram ministros ingleses –

e, depois, escoceses – que buscavam purificar a Igreja da Inglaterra de vestígios de rituais

e costumes católicos. Para isso, combinavam piedade e disciplina com o desejo de

reformar a maior parcela possível da igreja e da sociedade”.

As origens do puritanismo se encontram “numa tradição inglesa de

dissidência que remonta a John Wycliffe e os lolardos, mas especialmente até às labutas

teológicas dos reformadores ingleses da primeira geração” (M. A. Noll, in Enciclopédia

Histórico-Teológica da Igreja Cristã). Seus líderes mais destacados incluíam homens do

calibre de William Ames (1576-1633), cuja influência marcou as colônias inglesas na

América, e William Perkins (1558-1602), professor da Universidade de Cambridge.

Perkins havia sido um alcóolatra. Após passar por uma experiência de

conversão, abandonou a bebida e o estudo da magia. Considerado um dos “pais do

puritanismo”, escreveu obra de volume considerável, cujo livro O Católico Reformado,

escrito em 1597, é dos mais importantes. O Católico Reformado foi, segundo estudo

percuciente de Frans Leonard Schalkwijk, o livro mais usado no Brasil Holandês, depois

da Bíblia e do Catecismo de Heidelberg. Na observação de Schalkwijk,

“Esse livro queria mostrar ‘quão perto podemos chegar da atual igreja de Roma

em vários pontos de religião, e em que temos de nos desviar dela para sempre’.

Para estudar os assuntos em pauta, ele sempre apresentava, em primeiro lugar,

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

a concordância entre Roma e a Reforma; em segundo lugar a diferença; depois

os motivos dos reformados, comentando em seguida as objeções dos católicos

romanos. Em vinte e dois capítulos estudavam-se os pontos de controvérsia

mais importantes, como a justificação do pecador, a Escritura, as imagens, a

missa, o purgatório etc”

O que unia o movimento puritano era a sua inconformação com uma

“reforma pela metade”. Seus proponentes queriam purificar a Igreja Anglicana de acordo

com a Bíblia. Na lição de Cairns, os puritanos se opunham à permanência, na liturgia

eclesiástica, do ritual e das vestes, à guarda dos dias santos, à absolvição clerical, ao sinal

da cruz, à presença de padrinhos no batismo, ao ajoelhar-se na hora da Ceia, ao uso da

sobrepeliz pelos ministros e à inobservância do domingo. Cambridge tornou-se a

principal universidade influenciada pelos puritanos.

Quanto ao mais, o puritanismo não foi um movimento dotado de coesão e

uniformidade. Eles asseveravam que a Bíblia deveria ser obedecida em todos os aspectos

da vida da igreja, inclusive quanto à liturgia e ao governo, e que os cristãos somente

deveriam fazer aquilo que a Bíblia ordenava. Mas, divergiam entre si sobre o que a Bíblia

realmente ordenava, sobretudo nas questões que envolviam o governo da igreja. Nesse

sentido, Martyn Lloyd-Jones sugeriu a seguinte definição para os puritanos:

“Aproximadamente até 1570 os puritanos eram pessoas que podem ser

descritas como membros da Igreja da Inglaterra incessantemente críticos e

ocasionalmente rebeldes, e que desejavam alguma modificação no governo da

Igreja e no culto... Seu único interesse era que a Reforma fosse além. Achavam

que a Igreja da Inglaterra tinha parado a meio caminho entre Roma e Genebra,

e desejavam que a Reforma fosse realizada mais completamente nas questões

de cerimônia, disciplina e coisas semelhantes...”.

Dentre os puritanos, alguns defendiam uma reforma sem mudanças no

sistema episcopal anglicano, como é o caso de Richard Hooker (1554-1600). Outros,

como Thomas Cartwrigth (c. 1535-1603) e seus seguidores, queriam a implantação do

governo presbiteriano, nos moldes do modelo calvinista de Genebra, em uma Igreja de

caráter estatal. Cartwrigth, considerado fundador do presbiterianismo inglês, tornou-se

professor da Universidade de Cambrigde. Em suas aulas sobre o livro de Atos, ele opôs-

se ao sistema episcopal e defendeu que a igreja deveria estar “sob o controle de um

presbitério de bispos ou anciãos com funções apenas espirituais, facultando-se a escolha

de seus ministros” (Cairns). A primeira Igreja Presbiteriana foi fundada em Wandsworth,

em 1572.

7. Os puritanos congregacionais: separatistas e independentes.

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

Outro grupo puritano foi posteriormente denominado congregacional,

sendo este de dois tipos: os independentes e os separatistas.

7.1) Os congregacionais separatistas. Os separatistas pugnavam por uma

ruptura mais radical entre Igreja e Estado, cuja principal característica residia na ideia de

pacto eclesiástico. Richard Fyts fundou uma igreja baseada nesse modelo em 1567, razão

pela qual é considerado o pastor separatista mais antigo.

Talvez o primeiro teólogo a elaborar ideias congregacionalistas tenha sido

Robert Browne (c. 1550-1633). Browne era clérigo anglicano, formou-se em Cambrigde

em 1572, e em 1581 juntou-se com Robert Harrison na fundação de uma congregação

separatista em Norwick. Daí, foi forçado a fugir com sua congregação à Holanda, onde

escreveu três livros nos quais abordou os princípios do congregacionalismo separatista,

dentre os quais se destacou a obra Reformação Sem Esperar por Ninguém. Sobre esse

livro, Cairns anotou: “Browne sustentava que os crentes deviam se unir a Cristo e uns aos

outros por um pacto voluntário; que os oficiais deviam ser escolhidos pelos membros; e

que nenhuma congregação deveria ter autoridade sobre a outra”. Browne foi, por isso,

considerado o primeiro teórico do movimento. Da Holanda, Browne foi à Escócia, onde

foi aprisionado pelos presbiterianos. Em 1584, retornou à Inglaterra e, em 1591,

reintegrou-se na Igreja Anglicana, onde serviu como cura de uma paróquia até a morte,

em 1633. Apesar de Browne haver se retratado e voltado a ser ministro da Igreja

Anglicana não afetou a influência dos princípios que ele destacou.

Os princípios brownistas foram realmente utilizados, embora ligeiramente

modificados, por uma congregação surgida em 1586, sob a liderança de Henry Barrow e

John Greenwood, que foram presos e, após sete anos de cativeiro, em 1593, enforcados,

juntamente com John Penry. Desde a prisão de Barrow e Greenwood, em 1587, o grupo

ficou sendo apascentado por Henry Ainsworth e Francis Johnson. Mas, em 1602, teve

também que buscar refúgio na Holanda, onde os líderes se desentenderam e formaram

grupos separados. Sobre as características e destino desses grupos, Porto Filho pontua:

“Um, o de Johnson, com tendências presbiterianas mais radicais, se extinguiu

praticamente depois de sua morte em 1610. O outro, o de Ainsworth,

praticando uma teoria mais suave de presbiterianismo, em que os diáconos e

os anciãos (presbíteros apontados pela igreja para esse cargo) eram não os

legisladores ou diretores da igreja, mas formadores de um Conselho de

coordenação e assessoria de suas assembleias. Depois da morte de Ainsworth,

ocorrida em 1618, esse trabalho também se dissolveu”.

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

Um terceiro grupo separatista surgiu em Gainsborough, em 1602, liderado

por John Smyth (c. 1565-1612). Em seguida, parte do grupo passou a reunir-se em

Scrooby, na residência de William Brewster, chefe dos Correios da localidade, sob a

liderança de John Robinson (c. 1575-1625). Em face da perseguição movida pelo rei

Tiago, que havia ascendido ao trono em 1603, ambas as congregações tiveram que

refugiar-se na Holanda: primeiro, em 1606, a de Gainsborough; depois, em 1608, a de

Scrooby, com Richard Clifton no pastorado e John Robinson como mestre.

Na Holanda, o grupo vindo de Gainsborough, sob a liderança de John

Smyth, foi influenciado pelos menonitas. Em 1608 ou 1609, Smyth convenceu-se que o

batismo infantil era anti-bíblico, razão pela qual batizou a si mesmo e a seus

companheiros, dentre os quais Thomas Helwys, por afusão. Nesse período, também

foram influenciados pelas ideias arminianas, largamente debatidas na Holanda. Thomas

Helwys, John Murton e seus seguidores retornaram à Inglaterra e, em 1612, organizaram

a Primeira Igreja Batista, fruto do trabalho congregacional separatista. Eles batizavam

somente adultos, por afusão, e eram doutrinariamente arminianos. Ficaram conhecidos

como Batistas Gerais, por causa da doutrina da expiação universal.

O grupo liderado por John Robinson (o que veio de Scrooby) mudou-se de

Amsterdã para Leyden em 1609. A princípio contando com cerca de cem membros, a

congregação logo passou a trezentos, momento em que uma parte retornou à Inglaterra,

sob a liderança de Henry Jacob (1553-1624), de convicções independentes (e não

separatistas), como veremos. Esse grupo organizou-se em 1616, em Southwark, Londres,

como a Primeira Igreja Congregacional inglesa.

Em 1633, a congregação de Jacob foi dividida por um grupo que defendia o

batismo só de adultos, embora conservando a teologia calvinista. Esse grupo foi liderado

por Samuel Eston. Em 1636, no pastorado de Henry Jessey, nova discussão se travou na

Igreja Congregacional e outros membros foram congregar com o grupo dissidente, então

dirigido por John Spilsbury, dando origem à tradição dos Batistas Particulares (assim

chamados por sua doutrina da expiação limitada), a mais influente do movimento batista

inglês. A questão em torno da forma de batismo imersionista só surgiu em 1640. Em

1644, 14 igrejas batistas particulares firmaram uma confissão com 50 artigos, na qual

afirmaram o imersionismo como a forma correta de batismo.

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Estudos de História da Igreja

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

Sobre essas divisões, M. Porto Filho anotou que “o mais notável... foi o

clima de compreensão e caridosa tolerância em que elas se realizaram: em assembleias

onde cada grupo se despedia um do outro ‘com orações e muito amor’”.

7.2) Os congregacionais independentes, Henry Jacob e a Primeira

Igreja Congregacional.

A princípio, havia um puritanismo não separatista (ou estatal) do tipo

anglicano ou presbiteriano e, por outro lado, movimentos separatistas (não estatais), que

propugnavam, como antes observado, por uma radical separação entre Igreja e Estado.

Os congregacionais independentes, a seu turno, propuseram uma igreja oficial inglesa de

governo congregacional, compreensão que Martyn Lloyd-Jones atribui à originalidade de

Henry Jacob, chegando a afirmar sua convicção de que John Robinson foi persuadido por

Jacob a passar de separatista a independente.

Segundo Lloyd-Jones,

“os independentes não consideravam a Igreja da Inglaterra como sendo

totalmente errada, não se opunham ao comparecimento ocasional aos cultos da

Igreja da Inglaterra e, na verdade, não se opunham realmente à ideia de uma

Igreja do Estado como tal. Oliver Cromwel, por exemplo, era um verdadeiro

independente...”.

Mais adiante, Lloyd-Jones enfatizou:

“Eles [os independentes] estavam dispostos a conceder que a Igreja da

Inglaterra era uma Igreja verdadeira; em todo caso, que existiam igrejas

verdadeiras dentro da Igreja da Inglaterra, e cristãos verdadeiros; e não se

separaram inteiramente... Com razão têm sido chamados semi-separatistas”.

Henry Jacob nasceu no condado de Kent, em 1553. Estudou na escola de

Santa Maria, Oxford, e foi ordenado ministro, cargo que ocupou até 1591. Após, foi à

Holanda. Em 1599, escreveu uma obra chamada Defesa das Igrejas e do Ministério da

Inglaterra, para contra-argumentar com o separatista Francis Johnson, que havia

afirmado que a Igreja Anglicana não era uma verdadeira igreja. Jacob, com ideias

puritanas, chegava a afirmar as muitas corrupções da Igreja da Inglaterra, mas não dizia,

como os separatistas, que ela não era uma Igreja verdadeira.

Por volta de 1600, Jacob pastoreou um rebanho de exilados ingleses em

Middleburg, Zeeland, na Holanda. Em 1604, publicou um livro intitulado Razões

Extraídas da Palavra de Deus e dos Melhores Testemunhos Humanos que Provam a

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Estudos de História da Igreja

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

Necessidade de Reformar as Nossas Igrejas na Inglaterra. Lloyd-Jones esboçou um

resumo das afirmações de Jacob nessa obra:

“(1) A absoluta perfeição das Escrituras Sagradas em todas as questões de fé e

disciplina, sem quaisquer tradições humanas; (2) Que o ministério e as

cerimônias da Igreja da Inglaterra tinham necessidade de Reforma; (3) Que

durante duzentos anos depois de Cristo as igrejas de Cristo não eram

diocesanas, e sim congregacionais; (4) Que o Novo Testamento contém uma

forma particular de governo da Igreja; (5) Que essa forma de governo da Igreja

não é para ser mudada pelo homem e, portanto, nenhuma outra forma é

legítima”.

Em 1605, Henry Jacob encontrava-se na Inglaterra e juntou-se ao que foi

chamado “Terceira Súplica Humilde” ao rei Tiago, na qual muitos puritanos fizeram uma

solicitação de tolerância. Nesta súplica, pediu-se

“Permissão para reunir-se nalgum lugar para servir e cultuar a Deus, e para

usar e usufruir pacificamente só entre nós o completo exercício do culto a Deus

e do governo da Igreja, a saber, por um pastor, presbítero, e diáconos em nossas

diversas assembleias, sem nenhuma tradição dos homens...” (citação de Lloyd-

Jones).

Nessa época, Jacob escreveu uma obra chamada Princípios e Fundamentos

da Religião Cristã, na qual ele definiu uma verdadeira igreja visível de Cristo e afirmou

o modo como ela deve ser constituída:

“Por um livre e mútuo consentimento, os crentes se unem e concertam viver

juntos como membros de uma sociedade santa em todos os deveres da religião

e da virtude conforme Cristo e Seus apóstolos os instituíram e os praticaram

mediante o evangelho...” (citação de Lloyd-Jones).

Nessa obra, Jacob defendia a formação de uma “Igreja Independente ou

Congregacional não separatista” a partir de um pacto livremente acordado entre os

crentes.

Henry Jacob conheceu John Robinson por volta de 1610. Nesse ano, ele

publicou um livro que ajudou Robinson a deixar de ser separatista, intitulado O Divino

Princípio e a Instituição da Verdadeira, Visível e Ministerial Igreja de Cristo. No ano

seguinte, publicou outro livro, no qual asseverou que “o governo da Igreja deve ser com

consentimento do povo” e que

“Uma Igreja verdadeira, sob o evangelho, não tem mais que uma congregação

(ou igreja local). Os membros da Igreja, criados de novo em Cristo Jesus, têm

o direito e a autoridade de escolher pastores para a obra pela graça de Deus, e

não pela influência transmitida por meio do corrupto canal do papado” (citação

de Lloyd-Jones).

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Estudos de História da Igreja

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

Em 1616, Jacob voltou à Inglaterra e estabeleceu uma igreja em Southwark,

Londres, nos moldes dos livros por ele publicados. Lloyd-Jones afirma haver falhado em

sua busca do nome da rua, sabendo somente que foi em Southwark. Jacob e outros

notáveis marcaram um dia exato para buscar ao Senhor em jejum e oração e no final do

dia fizeram confissão de fé e arrependimento e uma aliança no sentido de “andar em todas

as veredas de Deus como Ele as tinha revelado ou que lhes fizesse conhecer” (citação de

Lloyd-Jones). Assim começou a igreja.

No mesmo ano, Jacob publicou uma confissão consistente de vinte e oito

artigos, após um breve prefácio. Seu propósito era justificar o início de uma nova igreja

e esclarecer que não tratava-se de um cisma. Socorrer-nos-emos mais uma vez de Lloyd-

Jones, a fim de fazer algumas anotações sobre o que tratava cada um dos artigos da

primeira capela congregacional inglesa cuja existência permaneceu. Se não, vejamos.

O artigo 1 trata sobre Os Ofícios de Cristo, e afirma que Cristo é o Rei da

Igreja nas questões de ordem e governo; o artigo 2 estabelece a Suficiência das Escrituras,

onde se diz que Cristo exerce Seu senhorio através do que vemos na Palavra de Deus; no

artigo 3 se descreve as diferentes formas da Igreja.

O artigo 4 define o modo como a verdadeira igreja de Cristo deve organizar-

se:

“Cremos que a natureza e a essência da verdadeira Igreja visível de Cristo sob

o evangelho é uma livre congregação de cristãos para o serviço de Deus, ou

um verdadeiro corpo espiritual e político que não contém mais que uma

congregação (ou igreja local) regular, e essa independente. Onde se deve

observar mormente dois pontos: primeiro, que uma verdadeira Igreja visível e

política sob o evangelho é tão somente uma congregação (ou igreja local)

regular... [e] que pela ordenança de Deus, esta única congregação regular de

cristãos é um corpo espiritual e político; e, assim, é uma congregação livre e

independente. Isto é, ela tem, da parte de Deus, o direito e a autoridade para

administração espiritual e para o governo, nela e sobre ela, graças ao comum e

livre consentimento do povo, independentemente, e imediatamente sob Cristo,

sempre na melhor ordem possível...”.

O artigo 5, igualmente instrutivo, estabelece que

“poderá haver, e que oportunamente deveria haver na terra uma associação de

congregações ou igrejas, a saber, por meio de sínodos. Não, porém, uma

subordinação, nem, certamente, uma sujeição das congregações a alguma

autoridade espiritual superior e absoluta, exceto a de Cristo e das Escrituras

Sagradas. Os que negam isto, defendendo uma Igreja visível e política que seja

diocesana e provincial (e nem nós nem eles sabemos quão universal), tanto em

termos absolutos como representativa, nisso se afastam da regra do

evangelho”.

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

O artigo 6 nega a existência de uma Igreja visível universal sob o evangelho:

“Sob o evangelho Cristo nunca instituiu, nem Deus, alguma Igreja visível e

universal, quer propriamente dita, quer representativa, que ordinariamente

devesse exercer o governo espiritual externo sobre todas as pessoas do mundo

que professam o cristianismo. Nenhuma igreja desse tipo se vê no Novo

Testamento”.

O artigo 7 nega a existência de uma Igreja visível e política provincial ou

diocesana e nacional. Quanto à chamada Igreja Anglicana, o mesmo artigo vaticina:

“de nossa parte reconhecemos que existem muitas igrejas visíveis, sim, igrejas

políticas na Inglaterra... mas negamos também que uma Igreja nacional,

provincial ou diocesana seja, sob o evangelho, uma verdadeira Igreja visível e

política... A razão pela qual negamos estas também é que nada que se

assemelhe se vê estabelecido em parte alguma da Palavra de Deus no Novo

Testamento... Todavia somente se vê no Novo Testamento uma congregação e

assembleia livre e comum, como foi demonstrado pouco antes”.

O artigo 8 demonstra que mesmo as verdadeiras igrejas locais da Inglaterra

se acham em estado de escravidão. O artigo 9 afirma serem contrárias ao Novo

Testamento as hierarquias eclesiásticas. O artigo 10 esclarece que “a essência da vocação

dos ministros sob o evangelho é a aprovação da congregação...”. O artigo 11 reconhece

que um ministro da Igreja Anglicana pode ser verdadeiramente vocacionado, apesar do

sistema de que é parte. O artigo 12 trata Sobre a pluralidade de pastores e não residentes.

A questão disciplinar é tratada no artigo 13, segundo o qual

“a legítima ministração das censuras sagradas também deve ser com a

aprovação da congregação. E, portanto, não será feita legitimamente por uma

autoridade diocesana ou provincial; isto é, se for feita sem qualquer

assentimento ou aprovação daquela congregação, que é a principal

interessada”.

O artigo 14 diz que deve haver pelo menos um pastor em cada igreja, além

de presbíteros e diáconos. O artigo 15 prevê o perigo à pureza da igreja ante à excessiva

tolerância para com pessoas profanas. O artigo 16 condena as tradições humanas. Ao

contrário, segundo o artigo 17, a tradição apostólica que se pode provar como tal pelas

Escrituras é divina e não pode ser alterada por homens.

O artigo 18 chama de profecia a prática da pregação expositiva, e estabelece

que qualquer membro da igreja pode exercitá-la, menos as mulheres. O artigo 19 assevera

não ser permitida a leitura de sermões na igreja como substituta de um pastor pregador.

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

O artigo 20 explica o pensamento de Jacob sobre a descida de Cristo ao

inferno, que, para ele, significa tão somente que nosso Senhor esteve sob o poder da

morte. Lloyd-Jones esclarece que por volta de 1600, Jacob se envolveu numa controvérsia

com um bispo sobre o tema, o que explica a expressa menção ao tema.

O artigo 21 trata sobre Oração. Nele, afirma-se não ser muito proveitoso o

uso de um Livro de Oração, através do qual os cristãos falem sempre as mesmas palavras.

Há um perigo do zelo e da piedade desvanecerem, além do fato de o Novo Testamento

não impor uma uniformidade desse tipo, deixando “todas as igrejas com a sua piedosa

liberdade, sabedoria, entendimento e diligente consideração de si mesmas...”.

O artigo 22 declara que sob o evangelho não há dias santos, além do dia do

Senhor, nem dias de jejuns nem ocasiões especiais que devam ser continuamente

observados. O artigo 23 considera ilegítimo um ministro tomar como seu encargo

ministerial e função o casamento e o sepultamento de mortos, que são considerados atos

civis e não espirituais. O artigo 24 considera ilegítimo que os ministros também sejam

magistrados do Estado.

O artigo 25 é uma palavra de ânimo para que os cristãos tragam ofertas

voluntárias. O artigo 26 acrescenta: “Cremos que os dízimos para o sustento do pastor,

sob o evangelho, não são o meio justo e apropriado. Não obstante, não consideramos estes

dízimos absolutamente ilegítimos, se forem voluntários”.

O artigo 27 trata do dever do magistrado civil para supervisionar e dirigir as

igrejas nas questões espirituais. Sobretudo nesse ponto, os independentes distanciam-se

dos separatistas. Nesse artigo, percebe-se que os independentes não concebiam uma plena

separação entre Igreja e Estado, cabendo a este o direito de intervir na Igreja mesmo em

assuntos eclesiásticos. Leiamos o referido artigo:

“Cremos que nós e todas as verdadeiras igrejas visíveis devemos ser

supervisionados e mantidos em boa ordem e em paz, e devemos ser governados

(sob Cristo), tanto supremamente como sub-ordenadamente pelo magistrado

civil; certamente nas causas da religião, quando necessário for”.

Finalmente, o artigo 28 estabelece a necessidade que pesa sobre os cristãos

de obedecerem a Cristo, e não ao homem, no uso das legítimas ordenanças eclesiásticas

referidas nos artigos precedentes.

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

Henry Jacob pastoreou a igreja de Southwark até 1624, ano em que viajou

a Virgínia, na América, onde morreu no mesmo ano. “Seguiu-se-lhe uma sucessão de

homens piedosos, e esta foi realmente a primeira capela ou igreja independente ou

congregacional formada neste país [Inglaterra] que teve uma história contínua e

ininterrupta” (Martyn Lloyd-Jones).

8. O governo da Igreja e sua relação com o Estado nas diversas tradições

protestantes.

Antes de procedermos algumas anotações sobre o desenvolvimento e

declínio do movimento puritano, o que faremos em nosso próximo estudo, nos

dedicaremos nesse passo em compreender os tipos de igrejas e tradições surgidas no

protestantismo quanto a dois temas deveras importantes: o modo como Igreja e Estado

devem se relacionar e os tipos de governo da Igreja. Sigamos, pois.

8.1) A relação entre a Igreja e o Estado. A visão de Constantino durante

a batalha da Ponte Mílvio, no dia 28 de outubro de 312, e sua suposta conversão ao

cristianismo, alteraram as relações entre a Igreja e o Estado. Nesse novo panorama

histórico, os imperadores romanos cristãos passaram a exercer ingerência sobre os

assuntos eclesiásticos. No período da Reforma, a doutrina que sustentava que o Estado

tem o direito de intervir na Igreja, inclusive para excomungar qualquer dos seus membros,

veio a chamar-se erastianismo. O nome deve-se a Thomas Erasto (1524-1583).

Erasto nasceu em Baden, estudou teologia em Basileia e, posteriormente,

medicina e tornou-se o catedrático de medicina de Heidelberg. A. M. Renwick resume o

pensamento de Erasto sobre as relações entre a Igreja e o Estado, sobretudo nas questões

disciplinares:

“Erasto enfatizava fortemente o direito de o Estado intervir nas questões

eclesiásticas. Sustentava que a Igreja não possui autoridade bíblica para

excomungar qualquer dos seus membros. Visto que Deus tinha confiado ao

magistrado civil (i.é., ao Estado) a soma total do governo visível, a Igreja num

país cristão não tem poder repressor separadamente do Estado. Ter duas

autoridades visíveis num país seria absurdo. A Igreja pode simplesmente

advertir ou censurar ao magistrado civil. A Igreja não tem o direito de recusar

os sacramentos aos transgressores”.

No contexto da Reforma, o nome “erastiano” surgiu na Assembleia de

Westminster. As Igrejas Ortodoxa e Anglicana são erastianias.

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

Após a destruição do império romano, a autoridade do bispo de Roma foi

crescendo no Ocidente, dando azo ao surgimento e ascensão do papado. Gregório, o

Grande, bispo de Roma no século VI e considerado o primeiro papa, agiu tanto na esfera

espiritual quanto secular, chegando a construir aquedutos, alimentar os pobres e defender

Roma frente à ameaça bárbara. Foi nesse contexto que as relações entre Igreja e Estado

foram alteradas, no Ocidente, passando a Igreja Católica Romana, ainda hoje, a defender

a ideia de que a Igreja, na pessoa do papa, tem autoridade também sobre o Estado. No

“erastianismo”, a Igreja está subordinada ao Estado; para o catolicismo medieval, o

Estado está subordinado à Igreja.

Lutero defendeu uma tese que foi posteriormente desenvolvida por Filipe

Melanchthon, chamada “semi-erastianismo”, segundo a qual o Estado, através dos

governantes, tem ingerência sobre alguns assuntos eclesiásticos, sendo outros reservados

à administração exclusiva da própria Igreja. Apesar do reformador alemão ter concepção

bastante precisa sobre a natureza da Igreja como “povo de Deus”, comunidade de cristãos

e, no termo credal, “comunhão dos santos”, ele não concebia a ideia de separação entre

Igreja e Estado.

Ainda no período da Reforma, os anabatistas desenvolveram o ideal da

completa separação entre Igreja e Estado. Segundo essa tendência, Igreja e Estado agem

em esferas completamente distintas e os cristãos não podem participar do Estado.

Calvino, que delineou a posição aceita pelos reformados e presbiterianos,

ensinou a mútua cooperação entre Igreja e Estado nos seguintes termos: a Igreja auxilia

o Estado na esfera estatal e o Estado auxilia a Igreja na esfera eclesiástica. O reformador

franco-suíço divergia de Lutero, porque concebia a Igreja com mais autonomia frente às

ingerências do Estado, mas não vislumbrou a plena separação entre Igreja e Estado. A

posição dos reformadores explica a existência de Estados confessionais luteranos e

reformados.

A par das posições apresentadas supra, os congregacionais separatistas

defenderam a separação radical entre Igreja e Estado e rejeitaram a noção de uma Igreja

do Estado, mas sem os excessos do anabatismo. Como vimos anteriormente, o

separatismo remonta a homens como Richard Fytz e Robert Browne. O

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

congregacionalismo não separatista, fundado por Henry Jacob, equiparou-se

posteriormente ao separatismo.

8.2) Os tipos de governo eclesiástico. Outro fator de divergência entre as

tradições e Igrejas protestantes diz respeito à forma de governo eclesiástico. Além do

sistema católico romano, que ode ser chamado de monárquico-sacerdotal, em face da

posição despótica assumida pelo papa, há três formas básicas de governo eclesial: o

episcopal, o presbiterial e o congregacional.

O sistema episcopal é o governo centrado em bispos. Segundo os seus

defensores, o governo pelos bispos é uma espécie de reprodução da igreja neo-

testamentária, onde se pode verifica, argumenta-se, o governo exercido pelos apóstolos.

Alguns lançam mão da sucessão histórica de apóstolos, como sói ocorrer na Igreja

Anglicana. Outros, como os luteranos e metodistas, adotam o episcopalismo sem a adoção

da sucessão histórica. Em nossos dias, o episcopalismo tem sido adotado, com

modificações, pelas igrejas pentecostais e neo-pentecostais, isso para não mencionar a

nova tentativa de restauração do governo apostólico da Igreja, com a nomeação infindável

de novos apóstolos.

O sistema presbiterial é o governo centrado em presbíteros. As igrejas

permanecem independentes entre si quanto à administração dos interesses locais, além de

eleger democraticamente seu(s) pastor(es) (presbíteros docentes) e presbíteros regentes.

O conselho (para os presbiterianos) ou consistório (para os reformados) da igreja local

administram a igreja, como representantes da congregação. Sobre as igrejas locais de cada

região, há o presbitério (para os presbiterianos) ou classe (para os reformados). Sobre

estes, existem os sínodos, formados por igual número de presbíteros docentes e regentes

escolhidos elos presbitérios ou classes. Finalmente, há o supremo concílio ou assembleia

geral.

Sobre a defesa do presbiterianismo entre seus adeptos, Leon Morris

escreveu:

“Seus adeptos geralmente não sustentam que esta forma de governo é a única

no NT. Na ocasião da Reforma, os líderes presbiterianos pensavam que

estavam restaurando a forma original do governo eclesiástico, mas isto não

seria rigorosamente defendido por muitos presbiterianos, hoje. Reconhece-se

que houve muito desenvolvimento, mas sustenta-se que ele ocorreu sob a

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orientação do Espírito Santo e que, neste caso, os pontos essenciais do sistema

presbiteriano são bíblicos”.

Finalmente, temos o sistema congregacional de governo, centrado na

congregação. Para os congregacionalistas, o sistema de governo deve ser o encontrado no

Novo Testamento e firmado sobre os alicerces doutrinários que os apóstolos

estabeleceram. Seus fundamentos são basicamente dois: primeiro, que Cristo é o Rei e

Cabeça da Igreja, permanecendo Ele mesmo como Aquele que a governa diretamente e a

cada crente, por meio do Seu Espírito (cf. Cl 1:18); segundo, que cada crente, sem

quaisquer outras mediações além da de Cristo, oferece a Deus sacrifícios espirituais e

pode achegar-se à Sua presença (cf. Hb 10:19,20), doutrina conhecida como “sacerdócio

universal dos crentes”.

Os congregacionalistas observam ainda que não há no Novo Testamento

algo como “Igreja Provincial” ou “Igreja Nacional”, em termos de estrutura e

organização. Nesse sentido, vale anotar as palavras precisas de M. Porto Filho:

“[No Novo Testamento] Cada comunidade local é uma verdadeira igreja,

autônoma, independente administrativamente de suas coirmãs, embora a elas

ligada pela fraternidade da fé e pela participação da mesma vocação em Cristo.

Cada uma delas é um microcosmo, uma especializada localização no corpo

universal da Igreja. Não são unidades que, somadas, formam a Unidade Maior,

mas pontos em que a Igreja [universal] se manifesta em sua plenitude de

significado, natureza e missão (I Co 1:2; I Ts 1:1)”.

Outro ponto a ser destacado no sistema congregacional é o caráter

democrático das decisões da comunidade local. Quanto isso, deve-se pontuar que a

democracia eclesial do congregacionalismo não deve ser equiparada à democracia

política, tão preconizada hodiernamente pelos valores liberais da revolução francesa. Nas

assembleias congregacionais, o que se almeja não é a imposição de posturas e decisões

mediante a simples contagem do voto majoritário, mas da percepção da vontade de Cristo

pelos membros da congregação.

8.3) O denominacionalismo.

Ao estudarmos a Reforma Protestante, sobretudo no contexto do

puritanismo inglês, não poderíamos omitir uma palavra, ainda que breve, sobre o

denominacionalismo.

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

Podemos definir “denominação” como uma associação de congregações que

mantêm uma tradição comum. O nome surgiu entre os puritanos congregacionais e por

uma razão prática: para demonstrar que é possível a colaboração entre os cristãos de

diversas tradições sem que se tenha que abrir mão de suas convicções particulares não

essenciais. Ou seja, a ideia de denominação surgiu para enfatizar que o grupo de igrejas

reconhecidas por um nome comum é apenas uma parte da Igreja de Cristo.

Nas palavras de Franklin Ferreira e Alan Myatt:

“A ideia de denominação implicava que uma associação especial de cristãos

era apenas uma parte da igreja cristã total, chamada – ou denominada – por um

nome particular, como por exemplo, presbiterianos, congregacionais e batistas,

os principais grupos surgidos do movimento puritano”.

Jeremias Burroughs, um dos principais líderes congregacionais na

Assembleia de Westminster, tinha o seguinte entendimento da teoria denominacional, de

acordo com o resumo fornecido por Ferreira e Myatt:

“1) as diferenças doutrinárias sobre questões secundárias... são inevitáveis; 2)

as diferenças doutrinárias em questões secundárias continuam sendo

importantes, pois são abordadas na Escritura; 3) as diferenças podem ser úteis,

à medida que os cristãos são fortalecidos na troca ocorrida nos ‘debates,

orações, leituras e meditações’ acerca das questões secundárias; 4) nenhuma

estrutura pode representar sozinha a igreja de Cristo em sua totalidade, em

oposição à crença sectária que identifica a verdadeira igreja com a expressão

de uma única organização; 5) a verdadeira unidade é baseada na fé comum e

deveria ser expressa pela cooperação entre as denominações; 6) a separação

denominacional não é divisionista, uma vez, mesmo divididos em

denominações, os cristãos se entendem como parte da única igreja”.

Como se pode perceber, o denominacionalismo se distancia tanto do

catolicismo organizacional quanto do sectarismo. O denominacionalismo preconiza uma

filiação voluntária, enquanto o catolicismo de Roma, por exemplo, entende que tem o

direito de incluir todos os cristãos desde a infância como parte do seu rebanho. Contra o

sectarismo, o denominacionalismo se distingue porque aquele a única expressão

institucional legítima do cristianismo.

Hodiernamente, o denominacionalismo tem enfrentado diversas oposições

nas mais variadas frentes. Há aqueles que defendem um completo abandono das

denominações e sustentam que os cristãos devem se reunir simplesmente como igrejas de

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

Cristo, discípulos, irmãos e outras “denominações”. Entretanto, como se pode observar,

essa tem sido somente mais uma maneira de aumentar o número de denominações e seitas,

“geralmente com a relutância da parte do grupo em reconhecer esse fato” (D. G. Tinder).

Não sabemos o futuro do denominacionalismo. Sabemos somente que, na

prática, o sistema ainda permanece útil porque permite o companheirismo em torno das

crenças essenciais da fé cristã (cooperação e comunhão entre crentes de diversas

denominações) e a garantia da liberdade de adoção de crenças secundárias. Ademais,

reconhece a impossibilidade de uma única organização para expressar a fé cristã, modelo

historicamente comprovado como pernicioso.

9. Ascensão e declínio do puritanismo.

Muitos dos primeiros puritanos, como referimos alhures, tinham sido

exilados nos dias do reinado de Maria Tudor (1553-1557) e ido a Genebra, o centro da fé

reformada, de onde voltariam para inflamar os ingleses com suas ideias. Um caso típico

foi o de John Knox, que obteve êxito em levar a Escócia a abraçar o calvinismo e o sistema

de governo presbiteriano.

Nesse momento, veremos como os puritanos influenciaram a Inglaterra até

inaugurarem um Parlamento e um governo de acordo com os seus ideais, para, por

motivos de discórdia interna, sucumbirem diante da restauração do episcopalismo

anglicano.

9.1) Os puritanos sob o reinado de Elizabeth I (1557-1603).

O governo de Elizabeth foi marcado por relativa tolerância religiosa. Os

puritanos puderam bradar o quanto desejaram contra as vestes clericais, o sinal da cruz e

o Livro de Oração Comum. Entretanto, a “rainha virgem” nunca permitiu que a Igreja

Anglicana saísse das mãos dos bispos e do controle da coroa. Em 1593, ela promulgou

um ato contra os puritanos, que permitia às autoridades prendê-los por faltarem à Igreja.

Um dos fatores que dificultou o governo de Elizabeth foi a popularidade da

Bíblia de Genebra. O nome advém do fato de que ela resultou do labor de ingleses

exilados em Genebra, dentre eles Milles Coverdale. Essa Bíblia foi impressa nos

primeiros anos do reinado de Elizabeth, em 1560. Ela foi a primeira Bíblia em inglês com

versículos numerados. Possuía linguagem clara e notas explicativas, e só foi substituída

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

pela versão autorizada do rei Tiago (James I). R. C. Sproul comenta o alcance da Bíblia

de Genebra nos seguintes termos:

“A Bíblia de Genebra dominou o mundo de fala inglesa durante cem anos. Foi

a Bíblia usada por Shakespeare. A Bíblia ‘King James’ foi publicada em 1611,

mas não suplantou a Bíblia de Genebra senão cinquenta anos depois. Os

peregrinos e puritanos trouxeram a Bíblia de Genebra ao Novo Mundo.

Colonos americanos foram educados na Bíblia de Genebra. Eles a levaram,

estudaram e procuraram viver por sua luz”.

9.2) Os puritanos sob o reinado de James I (1603-1625).

Quando James VI da Escócia tornou-se o James I da Inglaterra, muitos

puritanos imaginaram que esse rei, calvinista, adotaria o sistema presbiteriano de governo

na Igreja Anglicana. Mas, as esperanças logo esvaneceram, porque ao rei agradou lidar

com os bispos ingleses mais do que com os ministros presbiterianos escoceses. Segundo

ele, o presbiterianismo escocês “se harmoniza tanto com a monarquia quanto Deus com

o diabo”. Ademais, o único pedido atendido na Conferência da Corte de Hampton, em

1604, em resposta à Petição Milenar de 1603, assinada por cerca de cem ministros

puritanos (dentre eles Henry Jacob), foi a autorização para uma nova tradução da Bíblia,

trabalho feito por um grupo de teólogos que resultou na King James Version (Versão do

rei Tiago).

Desde cedo, James deixou claro que reinaria como um déspota. Em 1611,

ele dissolveu o Parlamento e governou a Inglaterra sem ele por dez anos. No campo

religioso, ele perseguiu os puritanos. Os separatistas foram perseguidos, fato que obrigou

as congregações de Scrooby e Ganisborough a buscarem exílio na Holanda.

Após cerca de dez anos na Holanda, John Robinson, pastor da congregação

oriunda de Scrooby, juntamente com um grupo de sua congregação estabelecida em

Leyden, retornou à Inglaterra e, em setembro de 1620, com 102 peregrinos, embarcou no

porto de Plymouth em um navio chamado Mayflower. Em dez de novembro daquele ano,

a tripulação avistou o litoral da Nova Inglaterra. Eram as praias de Cap Cod. Em 20 de

novembro, mudaram-se para um porto que oferecia melhores condições de abrigo que

denominaram Plymouth, em lembrança ao porto inglês de onde haviam partido. Porto

Filho destaca que

“a bordo, os Peregrinos haviam assinado um Pacto, relativo à colônia que iriam

fundar e à fidelidade com que se conduziriam em relação a Deus e uns aos

outros. Na base desse pacto foi organizada a primeira comunidade

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Estudos de História da Igreja

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

congregacionalista na América, como extensão da Igreja de Scrooby, emigrada

na Holanda”.

9.3) Os puritanos sob Carlos I (1625-1649).

Em 1625, Carlos I (1600-1649), também opositor dos puritanos, foi coroado

rei. Ele, como seu pai, cria firmemente nos direitos divinamente outorgados aos reis.

Como se não bastasse, Carlos era casado com uma princesa católica romana francesa de

nome Henriqueta Maria.

Politicamente, tudo fez para tornar-lhe o Parlamento subserviente e, quando

não conseguiu, governou sem ele de 1629 a 1640. Para lidar com a importunação puritana,

nomeou William Laud (1573-1645) para o arcebispado de Cantuária.

Laud era um anglicano de teologia arminiana, cujo objetivo concentrava-se

em fazer resistência aos puritanos. Um grupo liderado pelo arcebispo começou a adotar

“vitrais coloridos, cruzes e até crucifixos. Elevaram a mesa de comunhão e a chamaram

de altar, insistindo que o culto fosse conduzido segundo o Livro de Orações, e não outro”

(Shelley). Em virtude da política encetada por Laud, várias levas de imigrantes rumaram

à Nova Inglaterra. Segundo Shelley, “dez anos após Laud tornar-se arcebispo, vinte

cidades e igrejas haviam sido fundadas na Baía de Massachusetts – eram ao todo 16 mil

pessoas, incluindo as 400 que ouviram as despedidas de John Cotton em Sauthampton”.

Em 1628, um desses grupos de puritanos anglicanos, comandado por John

Endicott, estabeleceu-se em Salém, em Massachussetts, ao norte de Plymouth. Como a

colônia composta de 50 habitantes padeceu de escorbuto e outras enfermidades e foi

atendida pelo Dr. Samuel Fuller, da colônia de Plymouth, a relação entre ambas se

estreitou.

Na primavera de 1629, outro grupo de anglicanos, composto de 300 homens

e três ministros, comandado por John Winthrop, juntou-se à colônia de Salém. No Novo

Mundo, em virtude da política anti-puritana do arcebispo Laud, os colonos não

receberiam apoio da Igreja Anglicana, nem do rei, fato que levou a colônia de Salém a

perceber as conveniências da adoção do sistema congregacional da vizinha Plymouth e

realmente adotá-lo. Face à importância dessa colônia, pensou-se que ela teria trazido o

congregacionalismo para a América, como nos conta Porto Filho:

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

“Assim, a igreja de Salém, organizada em agosto de 1629, tomou o nome de

Igreja Congregacional, sendo imitada pelas seguintes. A generalização do

nome congregacional por essas igrejas e a importância histórica que elas e a

nova colônia, mais próspera que a de Plymouth, alcançaram no

desenvolvimento dos Estados Unidos, veio a criar a imagem de que aqueles

colonos de Massachussetts foram os representantes e os introdutores do

congregacionalismo na América”.

Os problemas para Carlos I aumentaram quando ele tentou impor aos

escoceses, em 1637, o Livro de Oração Comum. Cairns nos informa que foi nessa época

que “Jenny Geddes foi acusada de ter jogado a cadeira onde estava assentada na cabeça

de um ministro por sua audácia de ‘rezar missa em meu ouvido’, na histórica Sta. Giles

Church, em Edinburgh”.

Os escoceses, em resistência, invadiram a Inglaterra em duas ocasiões. O rei

precisou convocar o Parlamento para lhe dar suporte nas batalhas contra os escoceses.

Convocado, o Parlamento entrou em choque com Carlos, mas estava dividido quanto à

forma de governo da Igreja. Nele, havia membros episcopais, que formavam o Partido

Monarquista, e membros puritanos presbiterianos e congregacionais (também conhecidos

como Roundheads, os Cabeças-Redondas), que integravam o Partido Parlamentar.

Em 1640 o Parlamento restringiu o poder de Carlos. Quando este tentou

punir os opositores, eclodiu a guerra civil, em 1642, que durou até 1648. Os membros

monarquistas deixaram Londres para unir-se às forças que defendiam o rei. Sobretudo

pela habilidade militar do congregacional Oliver Cromwell (1599-1658), finalmente

ocorreram a vitória puritana e a oportunidade de reformar a Igreja Anglicana.

Para tanto, em 1643, o Parlamento instaurou a Assembleia de Westminster,

em Londres, assim chamada por reunir-se na abadia de Westminster. A Assembleia se

reuniu de 1643 a 1649, em 1163 sessões diárias. Era composta por 121 ministros ingleses,

30 membros do Parlamento, além de 8 presbiterianos escoceses. Dentre os ingleses,

encontravam-se episcopais, erastianos, independentes (incluindo Thomas Goodwin) e

presbiterianos. A maioria desses homens era calvinista. A divergência envolvia a forma

de governo da Igreja. Os independentes, que defendiam os princípios congregacionalistas

e eram uma voz minoritária, não dividiram em torno do tema polêmico, pois, segundo

Shelley, “procuraram alguma forma de expressar a unidade cristã mesmo quando os

cristãos não concordavam”.

Richard Baxter, que não fez parte da Assembleia, afirmou sobre ela:

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“Os teólogos aí congregados eram homens de grande erudição, piedade,

capacidade ministerial e fidelidade (...) e segundo a informação de toda

História a esse respeito e de outras fontes de evidência, o mundo cristão nunca

teve, desde os dias apostólicos, um sínodo de teólogos mais excelentes do que

este e o Sínodo de Dort” (citação de Guilherme Kerr).

Os principais resultados dessa magnânima Assembleia foram a Forma de

Governo de Igreja e Ordenação, concluída em 1645 e adotada pelo Parlamento em 1648,

que advogava o sistema presbiterial para a Igreja da Inglaterra; a Confissão de Fé de

Westminster, concluída em dezembro de 1646 e aprovada em 22 de março de 1648; o

Catecismo Menor para a instrução das crianças, concluído em 1647; e, o Catecismo Maior

para uso no púlpito, concluído em 1648. Dessa forma, em 1648, a Igreja oficial da

Inglaterra tornou-se presbiteriana calvinista, regida pelos documentos redigidos na

Assembleia de Westminster, e assim permaneceu até 1658.

Em 1648, a guerra entre os vinte mil homens de Cromwell (os Ironsides, i.é,

oposição de ferro) e as forças do rei recomeçou. Dessa vez, Cromwell derrotou os aliados

do rei, expulsou os presbiterianos da Casa dos Comuns e o remanescente do Parlamento

criou uma alta corte para julgar Carlos I. Em janeiro de 1649, o rei foi levado ao patíbulo

e executado. Com o Parlamento abolido, a Casa dos Comuns proclamou a república da

Inglaterra – a Commonwealth. Mas, 1653, o exército depôs a Commonwealth e instaurou

o Protetorado, através do qual Cromwell governou ditatorialmente até 1658, quando

morreu, morrendo com ele o governo puritano.

9.4) Os puritanos sob Carlos II (1660-1685).

Ao morrer, Cromwell deixou um herdeiro fraco e, em 1660, Carlos II (1630-

1685) ascendeu ao trono, restaurou a monarquia e o sistema episcopal na Igreja

Anglicana. As consequências para os puritanos foram desastrosas. Flanklin Ferreira nos

conta que

“em 1662, mais de dois mil pastores puritanos foram demitidos ou destituídos

de suas paróquias, e quem não fosse anglicano não poderia colar grau nas

universidades de Oxford e Cambridge. Essas ações marcaram o fim do período

puritano, minado e fragmentado por intrigas políticas. Somente com a

Revolução Gloriosa de 1689 a liberdade de culto foi assegurada aos não

conformistas, como passaram a ser conhecidos os puritanos”.

Dentre os puritanos mais destacados do período encontram-se John Bunyan

(1628-1688), batista particular, Richard Baxter (1615-1691), anglicano de tendências

presbiterianas, e John Owen (1616-1683), teólogo congregacional. Os batistas

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particulares prepararam a Primeira Confissão Batista de Londres em 1644, que foi

revisada em 1689, originando a Segunda Confissão Batista de Londres. Em 1658, os

congregacionais escreveram sua Confissão, a Declaração de Savoy sobre Fé e Ordem.

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VII. A (Contra-)Reforma Católica Romana, a ameaça sociniana e a

síntese da Reforma Protestante

1. A (Contra-)Reforma Católica Romana.

Em meados da década de 40 do século XVI, tudo indicava que o norte da

Europa iria, em peso, abraçar os ideais reformadores protestantes. O luteranismo estava

em vias de enraizar-se em boa parte da Alemanha e na Escandinávia (Dinamarca,

Noruega, Suécia, Islândia e Finlândia). A fé reformada fazia adeptos no Palatinado, na

Morávia, na Hungria, na França, na Escócia, na Irlanda do Norte e, por um breve período,

na Polônia. Os anabatistas mantiveram forte presença na Holanda e a Inglaterra já havia

rompido politicamente com Roma.

Entre as décadas de 1520 e 1530, o catolicismo romano nada fez que

representasse um sério obstáculo ao avanço protestante. Parte da explicação é política,

uma vez que Carlos V e os papas travavam uma ferrenha batalha em torno da convocação

de um concílio geral. Por outro lado, os papas desse período estavam mais concentrados

em questões políticas e seculares que em assuntos doutrinários e espirituais.

Leão X (1513-1521) era o papa quando Lutero cravou suas teses na porta da

Igreja. Seus objetivos giravam em torno do embelezamento de Roma e do crescimento

do prestígio dos Médicis, sua família. Ele foi seguido pelo papa Adriano VI (1522-1523),

cujo pontificado foi interrompido por sua morte precoce. Após Adriano, assumiu a

cátedra da Sé Romana Clemente VII (1523-1534), primo de Leão X, que em nada

diferenciou-se do seu parente. Foi durante o seu pontificado que as tropas de Carlos V

tomaram Roma e a saquearam.

Entretanto, a (Contra-)Reforma finalmente acendeu. Após o seu surgimento,

somente a Holanda tornou-se protestante, em 1560. A Polônia, a Bélgica e a França foram

definitivamente tomadas pelo catolicismo. Com o movimento de Contra-Reforma,

Shelley pontua: “Enfrentando a oposição de quase metade da Europa, o catolicismo

conseguiu reduzir a onda protestante a tal ponto que, no final do século XVI, o

protestantismo limitava-se aproximadamente ao terço norte da Europa, como acontece

atualmente”.

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Internamente, a Contra-Reforma também foi um movimento de renovação

interna e reforma da igreja de Roma, cujos primórdios antecedem o movimento

protestante, conforme destacaremos.

Portanto, o movimento católico romano do século XVI tanto foi uma

Contra-Reforma, porque muitíssimo moldado pelo desafio protestante, quanto uma

reforma, porque também interessado em um retorno à piedade.

1.1) Os movimentos de reforma interna e o papa (contra-)reformador.

Pouco antes de Martinho Lutero escrever suas teses, um grupo de aristocratas fundou em

Roma uma fraternidade denominada Oratório do Amor Divino. Seu objetivo era dedicar-

se a uma vida espiritual mais profunda, através de exercícios espirituais e de obras de

caridade. Seus membros não eram numerosos (talvez 50), mas tinham enorme influência

e incluíam nomes como Jacopo Sadoleto, que debateu com Calvino, e Giovanni Pietro

Caraffa (1476-1559), que tornou-se o papa Paulo IV em 1555 (1555-1559).

Mas, nenhuma reforma efetiva ocorreu até que Paulo III ascendeu ao trono

papal (1534-1549), pelas razões supra indicadas. Ele fez cardeais alguns dos homens que

compunham a Oratório do Amor Divino, dentre eles Caraffa. Em 1537, a comissão

escolhida por ele para elaborar um plano de reforma religiosa apresentou um documento

relatando os abusos da igreja romana e dos pontífices anteriores. Justo González

acrescenta: “Este informe, que mostrava até que ponto havia chegado a corrupção, chegou

de algum modo nas mãos dos inimigos do papado, e logo se converteu nas principais

fontes de materiais para os protestantes em seus ataques contra essa instituição”.

O reinado do papa Paulo III foi marcado, como o dos seus antecessores, pelo

nepotismo. Ele também fez cardeais a seus netos quando ainda eram adolescentes.

Entretanto, sob sua batuta, a Contra-Reforma avançou, visto que foi ele quem chancelou

a Sociedade de Jesus (em 1540), criou a Inquisição Romana (em 1542), aprovou o Índex

de livros proibidos (em 1543) e promulgou a bula convocando o Concílio de Trento (em

1544). Discorreremos brevemente sobre essas ações da Contra-Reforma Católica Romana

nos tópicos seguintes.

1.2) A Sociedade de Jesus. A fraternidade Oratório do Amor Divino

inspirou também o surgimento de novas ordens, que muito ajudaram a obstaculizar o

avanço protestante. A ordem dos capuchinhos foi fundada em 1525 por Matteo da Bascio,

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como uma facção reformada dos franciscanos. Tereza d’Ávila, uma mística dedicada à

contemplação, fundou a ordem feminina das “carmelitas descalças” e a ordem masculina

dos “carmelitas descalços”. Todavia, nenhuma ordem se destacou tanto em importância

à Contra-Reforma quanto a Sociedade de Jesus, a ordem dos jesuítas, fundada por Ignácio

de Loyola.

Ignácio era filho de uma família aristocrática e cresceu sonhando com a

carreira militar. Em uma batalha contra a invasão francesa, no sítio de Pamplona, foi

atingido na perna por uma bala de canhão. Em seu leito, afirmou em sua Autobiografia,

teve uma visão da “imagem de Nossa Senhora com o santo menino Jesus”, através da

qual sentiu “nojo” da vida de pecado que levava. Meses depois, dedicou-se à Virgem

Negra na abadia beneditina de Montserrat.

Dali rumou à cidade espanhola de Manresa, onde dedicou-se à vida de

eremita. Ali, entregou-se a excessos de austeridade, em uma luta ferrenha contra as

tentações e em profundo senso de pecado, até que, segundo ele, conheceu a graça de Deus,

saindo daquela noite escura da alma certo de que havia sido perdoado de seus pecados.

Após a sua experiência de “conversão”, Ignácio foi a Palestina, em 1523, de

onde foi expulso pelos franciscanos, que temiam que ele pudesse lhes causar problemas

na região. Então, decidiu que deveria estudar para melhor servir à Igreja Romana. Estudou

em Barcelona, Alcalá, Salamanca e Paris. Após, congregou um grupo de admiradores e,

em 1534, regressou com ele a Montserrat, onde fizeram votos de castidade, pobreza e

obediência ao papa. Esse é o núcleo do que veio a ser a influente Sociedade de Jesus.

A Sociedade de Jesus (como era chamada) foi aprovada pelo papa Paulo III

em 1540, e veio a ser uma das principais armas contra a ameaça protestante. Tanto

nutriram interesses missionários quanto se dedicaram em retomar para o catolicismo

romano as terras conquistadas pelos protestantes. “Sua organização quase militar e sua

obediência absoluta ao papa, lhe permitiram responder rápida e eficientemente a qualquer

desafio” (Cairns). Quando Ignácio morreu, em 1566, sua ordem já contava com 1.000

monges.

Foram os jesuítas que reconquistaram para a igreja romana as províncias ao

sul da Holanda e a Polônia, além de haverem detido a onda protestante na França.

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

Ademais, a participação dos jesuítas da primeira geração no Concílio de Trento foi

decisiva.

Nessas lutas anti-protestantes, os jesuítas foram deveras cruéis. Cairns

observa que “seu relativismo ético fê-los justificar os meios pelos fins e o envolvimento

com os reis na luta contra a heresia levou-os à interferência indevida na política, o que

mais tarde os tornaria impopulares”.

1.3) A Inquisição Romana. A Espanha era a nação de vanguarda da Contra-

Reforma. A Inquisição organizou-se ali, com autorização do papa, em 1480 e, sob a

liderança de Tomás de Torquemada (1420-1498), 10.000 pessoas foram executadas, além

das 2.000 execuções sob Ximenes.

Pela insistência de Caraffa, a Inquisição Romana, de inspiração fortemente

espanhola, foi proclamada por uma bula do papa Paulo III em 1542, como um instrumento

de combate à heresia em todo o mundo. Cairns relata o modus operandi da Inquisição

Romana com as seguintes palavras:

“Presumidos como culpados até que provassem sua inocência, os acusados não

podiam ser acareados com seus acusadores, eram forçados a testemunhar

contra si mesmos, e eram obrigados a confessar sob tortura. Se condenados,

eram punidos com o confisco de bens, prisão, queima na fogueira, a menos que

confessassem e se retratassem. Estas punições eram executadas pelas

autoridades seculares sob os olhos vigilantes dos inquisitores”.

1.4) O Índex. A disseminação das ideias protestantes se deveu, sobretudo,

em face do desenvolvimento da imprensa. Para contê-la, a Igreja Romana elaborou o

Índex, uma lista contendo os livros proibidos de serem lidos pelos fieis. “Todos os livros

dos reformadores foram listados, assim como as Bíblias protestantes. Por muito tempo, o

simples fato de se possuir um desses livros condenados, era passível de punição com

morte na Espanha. O Índex esteve em vigor até 1959 e foi finalmente abolido pelo papa

Paulo VI” (Bruce L. Shelley).

1.5) O Concílio de Trento. Durante as primeiras décadas do século XVI,

os papas evitaram o quanto puderam a convocação de um concílio. Eles, como nos faz

ver González, temiam que ressurgisse o espírito do conciliarismo do século anterior,

quando se acreditava que “a autoridade de um concílio universal era superior à do papa”.

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Entretanto, Paulo III, em 1544, promulgou a bula que convocou o Concílio

de Trento, considerado pelos católicos romanos o décimo nono concílio ecumênico. A

cidade sede do concílio foi escolhida pela influência de Carlos, que queria que ocorresse

em uma cidade sob seu controle.

O Concílio de Trento foi aberto em 13 de dezembro de 1545 e perdurou até

1563. Sempre esteve sob o controle do papa, visto que a votação não era por nação, mas

individualmente, e os italianos sempre consistiam em três quartos dos presentes. A

princípio, reuniram-se 31 prelados, além de 3 legados do papa. Foram ao todo 25 sessões

em três séries delas, intercaladas por longos recessos, durantes as quais pouco mais de 75

clérigos estiveram presentes. Os decretos finais eram assinados por 255 deles. Os

decretos, em parte diziam respeito à regulação interna das obrigações dos bispos e em

parte dedicavam-se a contra-atacar as doutrinas protestantes.

A primeira série de sessões ocorreu entre 1545 e 1547, ocasião em que

várias respostas doutrinais aos protestantes foram articuladas. O Concílio declarou que

não somente a Bíblia, mas os livros apócrifos da vulgata de Jerônimo e a tradição da

Igreja também constituem autoridade normativa para os fieis. Quanto à doutrina da

justificação, a decisão é que o homem não é justificado apenas pela fé, mas também por

suas obras. Os sete sacramentos foram confirmados.

A segunda serie de sessões ocorreu entre 1551 e 1552. Nesse passo, o dogma

da transubstanciação foi ratificado, além de outras decisões sobre a reforma interna. A

terceira série de sessões, entre 1562 e 1563, concentrou-se em regras sobre os outros

sacramentos, inclusive sobre o casamento, além da ratificação da ideia do purgatório.

Segundo Cairns, o significado do Concílio foi tão somente “a transformação

da teologia medieval escolástica num dogma acabado para todos os fieis”. Nada houve

de teologicamente novo. Nesse mesmo sentido, Shelley afirma:

“O papa permaneceu, os sete sacramentos permaneceram, o sacrifício da missa

permaneceu. Santos, confissões e indulgências permaneceram. O trabalho do

concílio foi essencialmente medieval, apenas a ira era nova... o espírito do

Concílio de Trento era que existiam os católicos e seus inimigos, que

representavam uma falsa versão do mesmo”.

2. A ameaça sociniana.

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

Católicos romanos e protestantes, apesar das muitas e profundas diferenças,

concordaram em várias questões doutrinais fundamentais, a exemplo dos dogmas da

Trindade e do pecado original. Em linhas gerais, as formulações dos concílios ecumênicos

dos séculos IV e V foram mantidas pelos dois grupos. Mas, houve no século XVI outro

movimento que foi considerado herético tanto por protestantes quanto por católicos

romanos, o socinianismo.

2.1) Lélio Socínio (1525-1562) e Fausto Socínio (1539-1604). Lélio

Socínio envolveu-se com o protestantismo, mas, posteriormente, adotou ideias

antitrinitárias. Quando morreu, seu sobrinho Fausto Socínio pegou suas anotações e

tornou-se também antitrinitário.

Após passar algum tempo em vários países, Fausto Socínio fixou residência

na Polônia, onde já existia uma comunidade anabatista unitariana. Essa seita, a princípio,

recusou-o como membro porque ele ensinava que o batismo não era um ato necessário.

Entretanto, aos poucos, ele persuadiu o grupo a abraçar suas ideias e veio a ser seu

principal líder.

2.1) As crenças de Fausto Socínio. Ele acreditava que as Escrituras deviam

ser interpretadas racionalmente, o que fez dele um dos primeiros a sujeitá-las à crítica

racional. Seu sistema filosófico também o levou a abandonar a divindade de Cristo.

Para ele, Cristo tinha somente uma natureza, a humana, e somente após a

ressurreição teria se tornado Deus, momento em que o Pai lhe conferiu poderes divinos.

Essa ideia fez de Socínio um antecedente dos modernos unitarianos, embora não tenha

chegado tão longe quanto os adeptos da seita Testemunhas de Jeová, visto que estes

negam todo e qualquer papel divino de Jesus.

Para Socínio, a morte de Cristo não é a base para o perdão de pecados.

Segundo seu ensino, Deus não precisava de qualquer pagamento pela penalidade do

pecado. Deus poderia perdoar o pecado quando quisesse, sem exigir qualquer preço.

Assim, o propósito da vida e da morte de Jesus foi tão somente inspirar as pessoas a

imitarem-no, a fim de que conseguissem o perdão de pecados e a vida eterna pelo

arrependimento, boas obras e obediência à Lei. Vê-se que Socínio tanto ressuscitou o

velho arianismo quanto o velho pelagianismo.

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

O socinianismo é também um dos antecedentes dos modernos Teísmo

Aberto e Teologia Relacional, sobretudo no que tange a compreensão quanto à

onisciência de Deus. Lélio e Fausto concluíram que os calvinistas estariam corretos em

dizer que se o conhecimento de Deus do futuro deve basear-se no fato de que Deus

determinou tudo que aconteceria. Mas, também, os arminianos estão certos em negar que

Deus determinou tudo que ocorre, porque isso violaria a liberdade humana.

A solução sociniana foi, então, que Deus nem preordenou tudo que viria a

acontecer nem conhece de antemão o futuro. Somente assim, a noção arminiana de

liberdade do homem poderia ser preservada, uma vez que se Deus conhece todo o futuro,

os homens não são realmente livres. Como os homens são realmente livres, Deus não

poderia prever suas ações. Portanto, contra os calvinistas, o socinianismo negou que Deus

determinou soberanamente, desde a eternidade passada, todas as coisas; e, contra os

arminianos, negou a presciência de Deus, e, consequentemente, Sua onisciência.

A semelhança entre o socinianismo e a Teologia Relacional “é notável”,

como observou Augustus Nicodemus. Ricardo Gondim, principal propagador da

Teologia Relacional no Brasil e fundador das Igrejas Assembleia de Deus Betesda,

defendeu a velha tese sociniana nos seguintes termos:

“Na Teologia Relacional (TR) o conceito de onisciência compreende a

afirmação de que Deus conhece tudo que é passível de conhecimento, ou que

pode ser conhecido. Assim, na TR não redimensionamos a onisciência divina,

apenas o nosso conceito de futuro... Torna-se necessário enfatizar: o futuro não

pode ser conhecido não porque Deus seja limitado, mas porque ainda não

existe... Apenas afirmamos que Ele amorosamente nos convocou para sermos

arquitetos do amanhã”.

3. A síntese da Reforma.

O século XVI pôs fim à hegemonia espiritual católico romana. A Reforma

desencadeou o surgimento de igrejas oficiais nacionais, tais como a Anglicana, os países

luteranos e os reformados, além do surgimento do denominacionalismo e das igrejas

livres.

Se, por um lado, protestantes e católicos romanos podiam concordar com o

Credo Apostólico e os credos de Niceia e Niceno-constantinoplano, somente os

protestantes acordaram quanto à autoridade exclusiva da Escritura, à salvação pela graça

mediante a fé somente e o sacerdócio universal dos crentes. Essas doutrinas

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ESTUDOS DE HISTÓRIA DA IGREJA | A ERA DA REFORMA

exclusivamente protestantes eram de fato suficientes para causar uma ruptura irreparável,

uma vez que a autoridade da Bíblia fez implodir a autoridade da Igreja e a salvação

somente pela fé e o sacerdócio dos crentes, juntos, questionaram todo o sistema

sacramental e o sacerdotalismo, ambos desenvolvidos na idade média.

Por outro lado, as tradições protestantes mantinham suas doutrinas

particulares que as distinguia umas das outras. Questões tais como formas de governo e

de batismo, batismo infantil, a relação que deveriam ter para com o Estado, os

significados da eleição e predestinação e o sentido as Ceia do Senhor resultaram nas

variadas denominações e tendências protestantes.

Earle E. Cairns propôs o relacionamento uma divisão entre essas posições

protestantes e católicas numa pirâmide em cuja base estão os “credos sustentados em

comum pelas igrejas católica, ortodoxa e protestante (325-451)”, no plano intermediário

“as doutrinas e credos protestantes (1530-1648)” e no topo as “características

denominacionais”.

É produto direto da Reforma uma reforma na própria Igreja Católica

Romana, que desde então não foi mais a mesma em sua degradação moral e em seus

abusos, próprios dos seus piores momentos na era medieval. Da Reforma também

resultaram um renovado interesse pela educação e pela ciência, tanto quanto deu azo ao

surgimento da democracia.

Acreditamos que a mensagem permanente da Reforma está nos chamados

cinco slogans ou lemas, conhecidos como os “cinco solas” da Reforma Protestante, quais

sejam: Sola Scriptura (somente a Escritura), Sola Gratia (somente a graça), Sola Fides

(somente a fé), Solus Christus (somente Cristo) e Soli Deo Gloria (glória somente a

Deus). O Sola Scriptura define a questão da autoridade. O Sola Fide, o Sola Gratia e o

Solus Christus refletem a soteriologia protestante. A adoração está insculpida no lema

Soli Deo Gloria. Esses slogans foram adotados ainda muito cedo, por todos os

reformadores de primeira geração, tais como Lutero e Zwínglio.