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Mensagem Quaresmal do Cardeal Jorge Bergoglio
«Rasgai os vossos corações e não as vossas vestes, convertei-vos ao Senhor, vosso
Deus, porque Ele é clemente e compassivo, paciente e rico em misericórdia» (Joel 2, 13).
Pouco a pouco acostumámo-nos a ouvir e ver, através dos meios de comunicação, a
crónica negra da sociedade contemporânea, apresentada quase com perverso regozijo, e
também nos acostumámos a tocá-la e a senti-la em torno de nós e na nossa própria carne.
O drama está na rua, no bairro, na nossa casa e, por que não, no nosso coração.
Convivemos com a violência que mata, que destrói famílias, aviva guerras e conflitos em
muitos países do mundo. Convivemos com a inveja, o ódio, a calúnia, o mundanismo no nosso
coração.
O sofrimento de inocentes e pacíficos não deixa de nos esbofetear; o desprezo pelos
direitos das pessoas e dos povos frágeis não nos são tão distantes; o império do dinheiro com
os seus efeitos demoníacos como a droga, a corrupção, o tráfico humano - incluindo crianças –
a par da miséria material e moral são moeda corrente.
A destruição do trabalho digno, a emigrações dolorosas e a falta de futuro unem-se
também a esta sinfonia. Os nossos erros e pecados como Igreja também não ficam fora deste
panorama.
Os egoísmos mais pessoais justificados, e não por causa disso menores, a falta de
valores éticos dentro de uma sociedade que faz metástases nas famílias, na convivência dos
bairros, vilas e cidades, falam-nos da nossa limitação, da nossa debilidade, e da nossa
incapacidade de transformar esta lista inumerável de realidades destrutivas.
A armadilha da impotência leva-nos a pensar: Será que faz sentido tentar mudar tudo
isto? Podemos fazer algo diante desta situação? Vale a pena tentá-lo se o mundo continua a
sua dança carnavalesca disfarçando tudo por um tempo? No entanto, quando a máscara cai,
aparece a verdade e, embora para muitos soe anacrónico dizê-lo, reaparece o pecado, que
fere a nossa carne com toda a sua força destrutiva, desfigurando os destinos do mundo e da
história.
A Quaresma apresenta-se-nos como grito de verdade e de esperança certa que nos
responde que sim, que é possível não nos maquilharmos e esboçarmos sorrisos de plástico
como se nada se passasse.
Sim, é possível que tudo seja novo e diferente porque Deus continua a ser «rico em
bondade e misericórdia, sempre disposto a perdoar», e encoraja-nos a começar uma e outra
vez.
Hoje, novamente, somos convidados a empreender um caminho pascal até à Vida,
caminho que inclui a cruz e a renúncia; que será incómodo mas não estéril. Somos convidados
a reconhecer que algo não está bem em nós mesmos, na sociedade ou na Igreja, a mudar, a
fazer uma viragem, a convertermo-nos.
Neste dia, são fortes e desafiadoras as palavras do profeta Joel: «Rasgai os vossos
corações e não as vossas vestes, convertei-vos ao Senhor, vosso Deus». São um convite a todo
o povo, ninguém está excluído.
Rasguem o coração e não as roupas de uma penitência artificial sem garantias de
futuro.
Rasguem o coração e não as roupas de um jejum formal e de cumprimento que nos
continua a manter satisfeitos.
Rasguem o coração e não as roupas de uma oração superficial e egoísta que não chega
às entranhas da própria vida para a deixar tocar por Deus.
Rasguem os corações para dizer com o salmista : «pecámos». «A ferida da alma é o
pecado: Oh pobre ferido, reconhece o teu Médico! Mostra-lhe as chagas das tuas culpas. E
uma vez que ele não são ocultos os nossos pensamentos, faz-lhe sentir o gemido do teu
coração. Leva-o à compaixão com as tuas lágrimas, com a tua insistência, importuna-o! Que
ouça os teus suspiros, que a tua dor chegue até Ele, de modo que, no fim, possa dizer-te: “O
Senhor perdoou o teu pecado”»" (S. Gregório Magno).
Esta é a realidade da nossa condição humana. Esta é a verdade que pode se
aproximarmo-nos da autêntica reconciliação… com Deus e com os homens. Não se trata de
desacreditar a autoestima mas de penetrar no mais fundo do nosso coração e cuidar do
mistério do sofrimento e da dor que nos liga desde há séculos, milhares de anos... desde
sempre.
Rasguem os corações para que por essa fenda possamos olharmo-nos de verdade.
Rasguem os corações, abram os vossos corações, porque só num coração rasgado e
aberto pode entrar o amor misericordioso do Pai que nos ama e nos cura.
Rasguem os corações diz o profeta, e Paulo pede-nos quase de joelhos "deixai-vos
reconciliar com Deus". Mudar o modo de vida é o sinal e fruto deste coração reconciliado por
um amor que nos ultrapassa.
Este é o convite, frente a tantas feridas que nos magoam e que nos podem levar à
tentação de endurecermos: Rasgai os corações para experimentar na oração silenciosa e
serena a suavidade da ternura de Deus.
Rasguem os corações para sentir o eco de tantas vidas rasgadas e que a indiferença
não nos deixe inertes.
Rasguem os corações para poder amar com o amor com que somos amados, consolar
com o consolo que somos consolados e partilhar o que recebemos.
Este tempo litúrgico que inicia hoje a Igreja não é só para nós mas também para a
transformação da nossa família, da nossa comunidade, da nossa Igreja, da nossa pátria, do
mundo inteiro.
São 40 dias para que nos convertamos à santidade mesma de Deus; nos convertamos
em colaboradores que recebemos a graça e a possibilidade de reconstruir a vida humana para
que todo o homem experimente a salvação que Cristo nos ganhou com sua a morte e
ressurreição.
Juntamente com a oração e a penitência, como sinal da nossa fé na força da Páscoa
que tudo transforma, também nos dispomos a começar como nos outros anos o nosso "Gesto
quaresmal solidário”.
Como Igreja em Buenos Aires que marcha rumo à Páscoa e que crê que o Reino de
Deus é possível necessitamos que, dos nossos corações rasgados pelo desejo de conversão e
pelo amor, brote a graça e o gesto eficaz que alivie a dor de tantos irmãos que caminham ao
nosso lado.
«Nenhum ato de virtude pode ser grande se dele não resulta proveito para os outros…
Assim pois, por mais que passes o dia em jejuns, por mais que durmas sobre o chão duro, e
comas cinza, e suspires continuamente, se não fazes bem a outros, não fazes nada grande».
(São João Crisóstomo)
Este ano da fé que percorremos é também a oportunidade que Deus nos dá para
crescer e amadurecer no encontro com o Senhor que se faz visível no rosto sofredor de tantas
crianças sem futuro, nas mãos trementes dos idosos esquecidos e nos joelhos vacilantes de
tantas famílias que continuam a dar o peito à vida sem encontrar ninguém que as sustenha.
Desejo-vos uma santa da Quaresma, penitencial e fecunda Quaresma e, por favor,
peço-vos que rezem por mim. Que Jesus vos abençoe a Virgem Santa vos proteja.
Mensagem quaresmal do cardeal Jorge Mario Bergoglio (Papa Francisco)
Buenos Aires, 13.2.2013, Quarta-feira de Cinzas