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O caminho dos sonhos

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  2. 2. 2 O Caminho Dos Sonhos Marie Louise Von Franz Em Conversa Com Fraser Boa Marie Louise Von Franz Agradecimentos Muitas pessoas contriburam para a criao da srie de filmes da qual resulta este livro. Sou especialmente grato a Chris Aikenhead, que durante um ano trabalhou comigo escrevendo o roteiro original, organizando e viajando com a equipe por mais de 40.000 quilmetros e editando a maior parte dos filmes. E tambm a Richard Leiterman, cuja energia e conhecimento de cinema muito contriburam para as entrevistas de rua. Eu gostaria tambm de agradecer a todas as pessoas que relataram os sonhos e associaes que tornaram possvel a realizao deste trabalho. Foram muitos os que nos apoiaram e auxiliaram: Daryl Sharp e o dr. James Hall, cujo entusistico endosso ao projeto inicial permitiu que uma idia se transformasse em possibilidade; o patrocinador financeiro, que acreditou no valor do empreendimento; o professor Ross Woodman e Marion Woodman, que colaboraram com muitas sugestes e alteraes editoriais. Acima de tudo, eu gostaria de agradecer a duas pessoas. Uma Jenny Donald, minha companheira, por projetar e editar o livro com tanto zelo quanto ao seu significado e por sua infalvel pacincia ao lidar com os caprichos de um intuitivo. A outra a dra. Von Franz a quem realmente este livro pertence pelo tempo, conhecimento, viso e sabedoria que to generosamente concedeu a mim e a este trabalho. Prefcio Milhes de pessoas hoje em dia procuram saber mais a respeito de si mesmas. Querem saber quem so, para poderem ser quem so. No nvel pessoal, essa necessidade de compreender melhor nosso interior
  3. 3. 3 revelada pelo crescente interesse por grupos de autoconhecimento e pela enorme afluncia de livros e artigos sobre novas tcnicas de auto- realizao. Analogamente, no plano coletivo, as empresas e as grandes instituies comeam a se preocupar com o desgaste humano, o estresse e a correlao entre bem-estar psicolgico e produtividade, a tal ponto que muitas delas passam a reestruturar sua organizao e a estimular seus empregados a participar de seminrios de conscientizao. Essa percepo crescente corresponde emergncia de uma rea desprezada da cincia, ou seja, o estudo da influncia que a experincia subjetiva ou "interior" exerce sobre a sade e o comportamento do ser humano. Dada a dificuldade de obter dados objetivos, alguns pesquisadores vm se concentrando exclusivamente nos sonhos para proceder a uma investigao sistemtica desse vasto universo interior. As descobertas iniciais demonstram que os sonhos revelam uma profunda relao entre os nossos estados interiores e os exteriores, e proporcionam um tipo de contato com a profundidade da mente humana at hoje no explorado pelo intelecto consciente. Uma vez decifrados, os sonhos contm informaes importantes sobre a sade fsica e mental do indivduo. O psiquiatra suo CG. Jung foi um pioneiro na pesquisa dos sonhos. Ele descobriu que os sonhos procuram regular e equilibrar as nossas energias fsicas e mentais. Eles no apenas revelam a causa bsica da desarmonia interior e da angstia emocional, como tambm indicam o potencial de vida latente no indivduo; apresentam solues criativas para os problemas dirios e idias inspiradas para o potencial criativo da vida. Jung descobriu que enquanto dormem, atravs dos sonhos, as pessoas despertam para aquilo que realmente so. Neste livro, Marie-Louise Von Franz, a mais importante seguidora viva de Jung, explica e demonstra a teoria cientfica da anlise dos sonhos. Baseada em sua pesquisa de mais de sessenta e cinco mil sonhos, a dra. Von Franz conclui que a coisa mais saudvel que o ser humano pode fazer prestar ateno aos seus sonhos. "Os sonhos nos mostram como encontrar um sentido em nossas vidas, como cumprir nosso prprio destino e realizar o potencial maior de vida que h em ns." Fraser Boa
  4. 4. 4 Introduo Pessoal Fraser Boa Certo dia, um alto executivo aposentado jogava golfe com um amigo. Enquanto atravessavam a pista, o amigo lhe perguntou se estava gostando de ser aposentado. "Bem", respondeu o primeiro, "vou lhe dizer. Comecei no p da escada e subi, degrau aps degrau, at chegar ao topo. S ento descobri uma coisa terrvel. Eu havia encostado a escada na parede errada." Quando eu tinha trinta e nove anos, descobri que havia encostado a escada na parede errada e entrei naquilo que eufemisticamente hoje se chama "crise da meia-idade". Para dizer numa palavra, minha existncia inteira de repente se resumia a um sonoro "e da?" Inclusive os dois aspectos mais vitais da minha vida tornaram-se questionveis. A carreira, que at ento eu havia seguido com vigor e entusiasmo, j no me interessava mais e o relacionamento pessoal com minha mulher e minha famlia deixara de ser predominante em minhas energias. Exteriormente, eu trilhava o caminho reto de um homem bem-sucedido de classe mdia, mas por dentro no passava um dia sem que me viesse o pensamento maligno: "Deus sabe que a vida no s isso." Os valores fundamentais sobre os quais eu tinha construdo minha vida estavam erodindo e no havia reposies. Alm disso, eu no sabia onde procur-las. No se tratava de tentar achar a agulha no palheiro; eu no sabia de palheiro algum, muito menos de agulha. Talvez chutar a pedra com fora suficiente faa com que a divindade desperte e nos sorria, ou ria de ns. Seja como for, o destino me levou ao consultrio do dr. E.A. Bennet, 99 Harley Street, Londres. O dr. Bennet era altamente recomendado. Tratava-se de um analista junguiano. O Who's Who in England apresentava-o com nove ttulos acadmicos e profissionais; brigadeiro e coronel psiquiatra na ndia em 1942-1945; consultor honorrio da Clnica Tavistock; e psiquiatra dos hospitais Royal Bethlehem e Maudsley. Ele por certo teria a resposta. As primeiras palavras do dr. Bennet no foram promissoras. "No posso lhe dizer o que voc procura. Voc deve descobrir por si s. Entretanto, posso dizer por onde comear." Se eu no conhecesse suas credenciais, a prxima frase dele teria posto fim consulta. Num tom de absoluta certeza ele disse: "A soluo para o seu dilema est dentro
  5. 5. 5 de voc. Voc a encontrar em seus sonhos. Eles lhe traro a resposta." "Mas eu no sonho", repliquei. "Nunca tive um sonho em minha vida." "Todos ns sonhamos", explicou ele. "Quatro ou cinco vezes por noite. Voc que nunca prestou ateno. Tente lembrar-se dos seus sonhos e traga-os para as nossas sesses. Trabalharemos juntos para descobrir o significado deles." Sa do consultrio com enorme ceticismo mas preparado para testar o possvel conhecimento do famoso mdico contra a minha ignorncia certa. Eu no tinha encontrado a minha agulha, mas ele dissera que conhecia um palheiro. Nessa noite fui dormir com um lpis e um bloco ao lado da cama. Ao acordar, lembrava-me de um sonho, o primeiro de uma srie que discuti com o dr. Bennet. Sonhei que estava caminhando sobre as antigas rochas da Georgian Bay. A irregularidade da superfcie dificultava meus passos. Quando olhei para o cho para me equilibrar, percebi que caminhava sobre a face de Cristo. A descoberta do sonho produziu um despertar para uma nova realidade, uma nova viso da vida, com dimenses que eu no podia ter imaginado antes. Meu trabalho com o dr. Bennet confirmou sua predio inicial. A informao que eu buscava estava mesmo dentro de mim e meus sonhos me davam acesso a essa realidade subjetiva. Eles eram como pontes que me ligavam a vastas reas de mim mesmo e eu no sabia de sua existncia: pensamentos, sentimentos, interesses, potenciais e energias ocultos na minha mente interior, fora do alcance da inteno consciente. No mais condenado futilidade de uma existncia baseada no "e da?", eu me sentia vivo, vitalizado e, acima de tudo, com a sensao de que valia a pena viver a minha vida. O interesse pelos sonhos levou-me ao Instituto CG. Jung de Zurique, onde tive a boa fortuna de fazer minha anlise didtica com a dra. Marie-Louise Von Franz. Trabalhar individualmente com ela era um grande privilgio. A dra. von Franz no apenas era a mais importante autoridade mundial em psicologia analtica, mas tambm uma excelente professora, dotada de uma rara capacidade de explicar as mais complexas teorias psicolgicas. Como todos os grandes mestres, o uso que fazia de exemplos da vida cotidiana tornava o material vivo e relevante.
  6. 6. 6 Aos poucos, percebi que minha experincia do "e da?" no era s minha. Havia outros com o mesmo dilema e comecei a imaginar se no seria possvel partilhar com eles minha experincia com essa grande analista trabalhando os sonhos em seu consultrio. Com certeza, eles apreciariam as informaes que o destino me fez encontrar. Falei pela primeira vez com a dra. von Franz da idia de realizar uma srie de filmes durante uma conferncia em Oxford. Era uma tarde chuvosa. Conversvamos ao p do fogo, tomando uma cerveja inglesa. Esbocei um roteiro que visava tornar a psicologia junguiana acessvel ao pblico em geral. O formato era simples. Conversaramos informalmente sobre os conceitos bsicos da psicologia analtica e ela interpretaria sonhos para iluminar a teoria. Entrevistas de rua com pessoas de vrias partes do mundo dariam ainda mais vida aos filmes. No era uma deciso fcil para ela. Ao participar dos filmes, ela estaria permitindo que o pblico entrasse em seu consultrio. (Analista algum, inclusive Jung, jamais tinha feito isso.) Ela no estaria interpretando um mito antigo, um trecho de literatura ou um caso dissimulado, mas os sonhos reais de pessoas vivas. Fiquei surpreso com a sua resposta. "Eu participarei", disse ela, "mas com a condio de que todos os sonhos sejam relatados no filme pelos prprios sonhadores. Atores no, a no ser que contem seus prprios sonhos." "No vai funcionar", repliquei. "Amadores sero embaraosamente autoconscientes." "Ento no participarei", disse ela. "Um filme com atores narrando sonhos alheios no teria integridade alguma. preciso que as pessoas contem seus prprios sonhos... pessoas reais e sonhos reais." Pedimos outra cerveja. Na primavera seguinte, mais de cinqenta pessoas haviam concordado em relatar seus sonhos diante da cmera. As escolhas foram difceis e demandaram considervel reflexo, pois as pessoas sabiam que seus sonhos poderiam ser analisados em pblico pela dra. von Franz. Os que participaram do projeto, porm, foram compensados pela ovao de um pblico em p durante a apresentao inicial dos filmes em Boston, quando do lanamento para a Amrica do Norte e Europa. Pensei que uma coisa estava nascendo, mas foram duas. Com a crescente popularidade da srie filmada, as cartas de pessoas que
  7. 7. 7 tinham assistido aos filmes me deram a certeza de que valeria a pena fazer uma transcrio. Muitos afirmavam ser a dra. von Franz uma mulher extraordinria que dizia coisas muito interessantes; mas que por isso mesmo sentiam falta de um livro para estudar e refletir sobre esse material. Um homem declarou sucintamente: "Voc no pode parar o filme e discutir." Uma das grandes satisfaes de transformar os filmes em livro foi a possibilidade de incluir boa parte do material que infelizmente havia sido cortado na edio. Num certo sentido, portanto, Marie-Louise von Franz est mais presente e mais bem representada no livro do que nos filmes. Por outro lado, no sentido visual, claro que ela est menos presente. Pesando ganhos e perdas (de forma alguma bvios), tivemos de enfrentar as reais diferenas entre as duas linguagens, filme e livro. Um livro que pretende ser um livro no pode apenas ser a transcrio da trilha sonora de um filme. Um roteiro cinematogrfico se organiza a partir da tcnica visual da montagem. Em seu poema A Terra devastada, T.S. Eliot explorou essa tcnica do cinema para colocar em imagens o carter fragmentrio e descontnuo da sociedade moderna. Sua inteno era oferecer, como dizia, "um amontoado de imagens quebradas". Ns, entretanto, tnhamos outro propsito: estabelecer uma comunicao muito mais direta com o leitor. Nossa preocupao primordial era a informao e aquela compreenso clara que esperamos possa advir de informaes apresentadas de modo simples. Nossa tarefa no era confundir a mente em perplexidades para criar a iluso de um mundo catico que perdeu o sentido, mas exatamente o contrrio. Este livro foi escrito para ajudar as pessoas a compreenderem o mundo dos sonhos como um meio para compreender um mundo em essncia muito coerente, seja ele visto por dentro ou por fora. Foi escrito para informar e instruir, na certeza de que os prprios sonhos tm essa mesma inteno. Espero que ele seja til como um guia acessvel e profundo psicologia analtica e anlise junguiana dos sonhos, de autoria dessa figura exponencial que a dra. Marie-Louise Von Franz. Parte 1 Introduo
  8. 8. 8 Captulo 1 Descida ao Mundo dos Sonhos "... Os sonhos fornecem informaes extremamente interessantes a quem se empenhar em compreender o seu simbolismo. O resultado, verdade, pouco tem a ver com preocupaes mundanas como comprar e vender. Mas o sentido da vida no explicado pelos negcios que se fez, assim como os desejos profundos do corao no so satisfeitos por uma conta bancria." C.G.Jung A dra. Marie-Louise Von Franz uma analista junguiana que vive e trabalha em Ksnacht, Sua. Ela fez anlise com C.G. Jung e trabalhou diretamente com ele durante mais de trinta anos. autora de vrios livros de psicologia analtica e colaborou com Jung em duas obras importantes, O homem e seus smbolos e Mysterium Coniunctionis. Nossas conversas tiveram lugar em seu consultrio, que d vista para o lago de Zurique. Dra. von Franz, h quanto tempo a senhora vem estudando os sonhos? Bem, creio que h uns trinta anos. Segundo meus clculos, devo ter interpretado, no mnimo, cerca de sessenta e cinco mil sonhos. H uma questo que sempre me intrigou e que talvez tambm j tenha lhe ocorrido. Quando estou para dormir, caio num vcuo. Deixo de existir. Ento, subitamente, algum poder interior me fora a entrar numa experincia que no planejei voar, guiar um carro, fazer amor experincias to reais quanto as da minha vida acordado. Que poder esse? Quem que engendra os sonhos? Esse o grande mistrio. Quem engendra os sonhos? Muita gente ainda tem o preconceito ingnuo de que os sonhos expressam nossos prprios desejos, ou nossos esquemas e tramas. No entanto, quanto mais se observa os sonhos, mais se percebe que isso no pode ser verdade. Uma parcela enorme dos nossos sonhos diz coisas que no queremos ouvir. "Pesadelos! Eu tenho pesadelos e no sonhos. Certa vez dei um pulo na cama e acabei sentado no cho."
  9. 9. 9 Motorista de txi da Califrnia A base da qual se originam os sonhos parece ser, usando uma expresso vaga, a prpria Natureza. um fenmeno natural que provm da mesma fonte que uma rvore ou um porco selvagem. Ora, voc no pode dizer o que engendra um porco selvagem. Se acredita em Deus voc dir: "Deus faz o porco selvagem", mas de qualquer forma, trata-se daquele poder desconhecido ou daquela fora misteriosa que d origem existncia como um todo. Talvez, ento, seja melhor usar uma expresso vaga, Deus ou a Natureza, sem prender os sonhos a algo especfico. "Outro dia tive um sonho horrvel quando voltei a dormir um pouquinho antes de sair para trabalhar. Matavam a me de um amigo... no era nada bonito." Garonete Inglesa Aps acompanhar os sonhos por um bom perodo de tempo, porm, notamos certas qualidades e funes. Eles possuem uma inteligncia superior, uma sabedoria e uma perspiccia que nos orientam. Eles nos mostram em que aspecto estamos enganados e nos alertam a respeito de perigos; predizem eventos futuros; aludem ao sentido mais profundo da nossa vida e nos propiciam insights reveladores. Se analisar sonhos de artistas ou cientistas criativos, por exemplo, voc ver que muitas vezes novas idias lhe so reveladas atravs dos sonhos. Elas no so concebidas no computador. Pelo contrrio, brotam do inconsciente sob a forma de idias sbitas, como se costuma dizer. Vrios documentos demonstram que muitos cientistas primeiro sonharam certas solues matemticas e depois as resolveram conscientemente. Devemos, ento, concluir que existe uma matriz psquica capaz de produzir novos insights criativos. "S me lembro daqueles que me fazem sentir bem. Sem dvida, h um monte que eu bloqueio. Se quer lembrar-se de um sonho, escreva-o imediatamente e ele lhe dir muito sobre como voc realmente se sente." Ator de Toronto, Canad Depois de analisar sonhos como processos psquicos vitais, a nica coisa que talvez se possa dizer que essa matriz parece orientar o ego consciente para uma atitude adaptada e madura frente vida. Por exemplo, se um jovem neurtico se recusa a entrar na vida ela lhe d um empurro saudvel, ou se uma pessoa idosa no consegue aceitar a
  10. 10. 10 velhice e a morte, ela representa o sentido da velhice e da morte atravs de imagens bonitas. Essa matriz que engendra os sonhos em ns tem sido denominada guia espiritual interior, ou centro da psique. A maioria dos povos primitivos simplesmente a chama de Deus, ou usa o nome de um deus especfico. O deus supremo dos astecas, por exemplo, era o artfice dos sonhos e guiava as pessoas atravs dos seus sonhos. Com toda probabilidade, um cristo diria que essa matriz o Cristo interior em nossa alma. Um budista reconheceria esse mesmo centro. Segundo um velho mestre zen, Buda certa vez disse que quem segue o caminho interior certo tem sonhos bons. Parece, portanto, haver em ns uma inteligncia superior que poderamos denominar guia interior ou centro divino que produz os sonhos, cujo objetivo parece ser tornar a vida do indivduo a melhor possvel. "Os sonhos so uma compensao que, se voc se lembrar deles, serve para descobrir os truques que voc faz consigo mesmo da ser possvel fazer alguma coisa a respeito. assim que encaro os sonhos." Escritor irlands Os sonhos no nos protegem das vicissitudes, doenas e eventos dolorosos da existncia. Mas eles nos fornecem uma linha mestra de como lidar com esses aspectos, como encontrar um sentido em nossa vida, como cumprir nosso prprio destino, como seguir nossa prpria estrela, por assim dizer, a fim de realizar o potencial de vida que h em ns. Dra. von Franz, como foi que a senhora comeou a se interessar pelo estudo dos sonhos? Quando encontrei Jung pela primeira vez, ele comentou o caso de uma mulher que teve uma viso e a interpretou para mim. Fiquei impressionada, pois subitamente percebi que para ele eventos interiores, como vises e sonhos, eram a realidade, to real quanto aquela que denominamos realidade exterior. Foi uma revelao e tanto. A partir de ento, li os livros dele e pude perceber a importncia que ele dava aos sonhos. Eu sentia que se no fizesse anlise, eu nunca poderia julgar se o que ele dizia era verdade ou no, se era certo ou errado. Reuni toda a coragem que tinha, perguntei se poderia fazer anlise com ele e ele concordou. Depois disso, cada interpretao de sonho era uma revelao. Segundo Jung, eu tinha sonhos especialmente difceis e complicados, dos quais eu no compreendia uma palavra sequer. Eles eram verdadeiros enigmas chineses sem
  11. 11. 11 sentido. Eu chegava casa dele com aqueles disparates, e com grande esforo ele extraa o sentido. s vezes, pegava um leno, enxugava a testa e dizia: "O que voc faria se no tivesse um Jung para entender esse sonho to complicado?" Era sempre uma revelao surpreendente, que perdurou enquanto trabalhei com ele. Mais tarde, quando ele envelheceu, eu lhe contava menos sonhos, pois percebi que se cansava. (Interpretar sonhos acarreta grande esforo fsico. No se trata apenas de um exerccio mental.) Mas nos primeiros anos da minha anlise a maior parte do trabalho consistia em decifrar aquelas mensagens chinesas noturnas. Lembro-me de que ia para a anlise num estado de esprito tenso, nervoso, muitas vezes depressivo, e saa da sesso com uma sensao de "Ah, agora eu sei, agora percebo para onde a coisa est indo". A maioria das pessoas que entrevistamos na rua afirma no se lembrar dos prprios sonhos. Um rapaz, bem-humorado, disse: "A nica coisa que me lembro dos sonhos que no consigo lembrar deles." Por que as pessoas no se lembram dos prprios sonhos? Acho que porque no prestam ateno. Algumas pessoas que me procuraram j disseram coisas do tipo: "A senhora analisa as pessoas atravs dos sonhos, no ? Bem, comigo no vai dar certo porque nunca sonho." Dou um sorriso amarelo e digo: "Tudo bem, vamos ver." Na noite seguinte, eles devem ficar remoendo: "Ser que vou sonhar?" Muitas vezes, o simples fato de colocar a questo provoca um sonho. Assim, na verdade, nunca encontrei algum que no sonhasse. Salvo, s vezes, pessoas num estado de depresso muito forte, que ficam com o que chamo de constipao onrica. Pessoas assim sonham pouco e costumam sentir-se melhor quando comeam a sonhar. Os sonhos tambm rareiam na velhice, aps os 80 anos, mas eles reaparecem um pouco antes da morte. "Muito bem, vou lhe dizer. Agora j no tenho mais memria. Tenho quase noventa anos e j no consigo mais... Eu sei que antes sonhava muito mas agora no sonho mais." Uma senhora numa loja, em Toronto A senhora mencionou que precisava de um Jung para interpretar os seus sonhos. Ser que possvel uma pessoa comum aprender a arte de interpretar sonhos, ou seria isso to complexo que s uma elite poderia faz-lo?
  12. 12. 12 Penso que como em todas as cincias: s uma elite se aprofundar na complexidade e nas questes cientficas levantadas pela interpretao de sonhos. Trata-se de uma profisso que requer habilidade profissional. O homem comum no pode simplesmente absorv-la e domin-la. Mas, como ocorre com todas as cincias, certas regras bsicas, certos aspectos gerais podem ser transmitidos ao pblico mais amplo. Isso pode ajudar aqueles que no pretendem fazer anlise ou mergulhar nos complicados problemas cientficos relativos interpretao dos sonhos. Dentre vinte sonhos ininteligveis, aparecem de quando em vez sonhos simples que qualquer um entende de imediato. O inconsciente, entre outras coisas, um grande brincalho, e s vezes ele fala direto bang! Ao anotar o sonho, voc d uma gargalhada e sabe o que significa. Pouco tempo atrs, por exemplo, eu estava doente e revoltada contra a minha doena, e sonhei estar numa festa, saudando velhos soldados que retornavam do servio militar. No momento em que devolviam suas ferramentas de carpinteiro, percebi que eram todos muito velhos. Tinham 100 anos e algum falou no meu ouvido: "Sim, essa gente foi mantida por tempo demais na ativa." No preciso pagar um analista para compreender este sonho. Reduzi de imediato meu volume de trabalho. "No ano passado, quando voltei a Illinois para visitar algumas pessoas, fiquei pensando sobre o que faria na vida se no tivesse certas coisas, especialmente minha namorada. Naquela noite, sonhei que estava na praia atirando pedras na gua. De repente, uma mo me agarrou por trs e disse: 'Nunca perca as coisas que voc ama.' Virei- me mas no havia nada. Percebi subitamente que meu punho estava cerrado. Abri a mo e nela estava um retrato da minha namorada. Esse sonho me fez pensar que eu no devia desistir dela assim to depressa, e no desisti. Esse foi o sonho que mais me influenciou." Um surfista da Califrnia. Entretanto, muitos dos nossos sonhos no so assim to bvios. J tive sonhos que me pareceram fceis de entender, mas depois de trabalhar sobre eles eu percebia estar enganando a mim mesmo. por essa razo que, em geral, no se deve interpretar os prprios sonhos. Os sonhos costumam tocar nosso ponto cego. Eles nunca nos dizem o que j sabemos, mas o que no sabemos. Quando interpretam seus prprios sonhos, as pessoas tendem a dizer: "Sim, eu sei o que
  13. 13. 13 isso quer dizer." Ento projetam no sonho aquilo que j sabem. "Oh, isso meu problema tal e tal", e assim por diante. Muitos pacientes fazem isso. Eles chegam e dizem: "Tive um sonho, mas sei o que significa", e da do uma explicao completamente banal a respeito de algo que conhecem h anos sobre si mesmos. Em casos assim, costumo chamar a ateno: "Espere um pouco. Vamos examinar o sonho do jeito que , devagar, do comeo ao fim." E acabamos chegando a algo muito diverso e surpreendente. Interpretar os prprios sonhos muito difcil. Por isso Jung recomendava aos analistas junguianos que procurassem colegas para discutir sonhos. Ele costumava reclamar: "No tenho um Jung para interpretar os meus sonhos." Assim, ele contava os sonhos que tinha aos seus discpulos. Mesmo que dissessem alguma bobagem, isso poderia abrir-lhe uma nova perspectiva sobre o sonho e ajud-lo a ser mais objetivo. A dificuldade de interpretar nossos prprios sonhos que no podemos ver nossas prprias costas. Se as mostrarmos para outra pessoa, esta poder v-las; ns no. Os sonhos tocam as costas, aquilo que no se pode ver, e preciso ficar de cabea para baixo, por assim dizer, para entender os prprios sonhos. Essa a grande dificuldade, o que causa muitos equvocos. Lembro-me de uma paciente esquizofrnica que sempre tinha interpretaes prontas, tiradas de um manual qualquer. "Isso significa que ganharei dinheiro", ou "vou conseguir aquele emprego" ou "no vou conseguir o emprego", e assim por diante. Naturalmente, era tudo um grande disparate. Mas se to benfico poder ver as prprias costas, porque a humanidade sempre teve medo do mundo dos sonhos? H boas razes para isso. O inconsciente pode devorar o ser humano. por isso que os sonhos no so levados em conta. Estamos apenas descobrindo que o mundo dos sonhos o que existe de mais benfico na face da Terra e que observar os prprios sonhos a coisa mais salutar que se pode fazer. Entretanto, o mundo onrico pode tambm devorar uma pessoa que fique sonhando acordada, tecendo fantasias neurticas ou perseguindo idias irreais. Basta visitar um manicmio para ver as vtimas do mundo dos sonhos. Um vive o sonho de que Napoleo. Outro confidencia que, na verdade, Jesus Cristo, mas que ningum o compreende. Eles foram engolidos pelo mundo dos sonhos.
  14. 14. 14 O mundo onrico s benfico e teraputico se com ele estabelecermos um dilogo, sem no entanto abandonar a vida real. No se pode esquecer de viver. Os deveres da vida real no devem ser postos de lado. No momento em que se comea a ignorar a vida exterior- o prprio corpo, a alimentao, o trabalho dirio -, o mundo dos sonhos torna-se perigoso. Esse aspecto o que denominamos inconsciente devorador, ou me devoradora. Ele capaz de nos arrancar da realidade e de nos enredar numa irrealidade neurtica ou mesmo psictica. O mundo onrico s positivo quando em dilogo vivo e equilibrado com uma vida realmente vivida. Dra. von Franz, poderia nos dar um exemplo pessoal desse dilogo? O rumo da sua vida alguma vez foi alterado por um sonho? Sim, tive muitos sonhos que mudaram minha vida e que foram experincias de revelao. H um em particular, que penso ser o maior sonho que j tive, no perodo entre meu encontro com Jung e o pedido para fazer anlise com ele. Tive esse sonho, que Jung chamaria de arquetpico, ou religioso, numa noite de Natal, quando estava com dezoito anos. O sonho era uma longa descida mitolgica at o inconsciente. Daria para resumir como uma descida ao Hades, procura da gua mstica da alquimia e o retorno, trazendo comigo essa gua. Uma espcie de incurso xamanstica na terra dos mortos. Ainda considero esse o sonho mais importante da minha vida. Acordei extremamente abalada. Tanto que no pude me mover por algumas horas. Fiquei na cama, tremendo, at ter coragem de levantar e de me vestir. Contei o sonho a Jung, mas ele nunca o interpretou em detalhe. Disse apenas: "Eu sabia que voc tinha algo a ver com alquimia. Sabia disso desde o momento em que a encontrei. E agora vemos que mesmo." Esse sonho criou a base para um dos trabalhos mais importantes da minha vida, minha colaborao com Jung sobre o simbolismo da alquimia. Com licena... Meu nome Fraser Boa e estamos fazendo um documentrio sobre sonhos. Poderia falar conosco?" "Sobre sonhos? Deve estar brincando..." "O que acha dos sonhos?" "O que acho dos sonhos? Acho que so legais." "Lembra-se de algum?" "Sim, lembro." "Por qu?"
  15. 15. 15 "Por que me lembro deles? No sei. Por que voc se lembra de que dorme e acorda?" "D para voc nos contar um sonho?" "T, um daqueles de voar. Por alguma razo, de vez em quando, sonho que estou voando num Edsel. No me pergunte por qu... Num Edsel! No posso evitar. Vocs a devem ser loucos! Por que algum iria fazer um documentrio sobre sonhos?" "Fale do Edsel. Ele voa bem?" "Ah, o mximo. O mximo! A nica coisa que quando voc est voando, tem que ficar pensando nisso, seno a coisa cai." "Alguma vez ele caiu?" "No, apenas vem planando. Voc sabe como so os Edsels!" "Obrigado por falar conosco." "Faam bom proveito... (Olhando para trs enquanto sai pedalando) Vocs so loucos mesmo!" Um ciclista, Golden Gate Park, So Francisco Parte 2 A Psicologia Bsica de CG. Jung Captulo 2 Mapeamento do Inconsciente Depois de descobrir a Amrica, Colombo levou muitas riquezas para a rainha Isabel. Mas os tesouros mais valiosos eram seus mapas, com a ajuda dos quais outros poderiam explorar ainda mais a terra recm- descoberta. Os sonhos tm sido considerados a via rgia para o inconsciente. C.G. Jung viajou por essa via e trouxe consigo um mapa da psique humana. A mente humana divide-se em duas partes, consciente e inconsciente, sendo esta a mais ampla. Nossa mente inconsciente poderia ser comparada a um computador repleto de informaes; a mente consciente, por sua vez, s seria capaz de captar o pequeno conjunto de dados visveis na tela num dado momento. Essa tela, nosso campo consciente, est sempre mudando. Aquilo que consciente num momento pode ser inconsciente no momento seguinte. Uma experincia comum desse fato aquela sbita incapacidade de lembrar
  16. 16. 16 nomes na hora de fazer apresentaes, nomes que um minuto atrs se sabia muito bem, ou se confundir com um nmero de telefone conhecido. A informao est na cabea, mas fica presa ao inconsciente e a fora de vontade no basta para tom-la acessvel conscincia. Quando nos perguntamos: "Por que estou me sentindo assim?" ou "O que est se passando na minha cabea?", estamos tentando trazer informaes do inconsciente para a conscincia. como se soubssemos que a soluo est em algum lugar dentro do computador, mas no conseguimos faz-la aparecer na tela. Como disse Jung, a conscincia "a relao entre os contedos psquicos e o ego... na medida em que essa relao percebida pelo ego". A grande descoberta da psicologia profunda que cinco ou seis vezes por noite a parte inconsciente da psique retratada nos sonhos; ao relembr-los, nossa mente consciente tem a oportunidade de observar contedos da mente inconsciente. No entanto, mesmo que o sonho seja lembrado, via de regra a informao no faz o menor sentido para a mente consciente e no fcil de decifrar. (O inconsciente no se expressa atravs de uma linguagem racional prontamente acessvel mente consciente.) Pelo contrrio, um sonho revela o inconsciente sob a forma de imagem, metfora e smbolo, numa linguagem intimamente associada da arte. Longe de ser exposies objetivas e prosaicas, os sonhos costumam ser confrontos altamente subjetivos e pessoais, nos quais o ego, o "eu", sente emoes que vo do medo e hilaridade sensao de sublime paz e beleza. Assim como as peas teatrais, os poemas e a pintura, a linguagem dos sonhos transmite o poder e a sutileza tanto dos sentimentos como do pensamento racional. Depois de pesquisar por muitos anos a linguagem dos sonhos, C. G. Jung descobriu e batizou alguns temas e figuras recorrentes que constituem a base dessa linguagem. Uma vez compreendidas, essas estruturas so facilmente reconhecveis e os sonhos passam a fazer algum sentido para a mente consciente. Dra. von Franz, antes de passar anlise em profundidade dos sonhos, poderia nos explicar os principais elementos estruturais da linguagem do inconsciente e esclarecer os termos descritivos usados pela psicologia analtica? Algumas dessas palavras tm um sentido bastante distinto na linguagem coloquial. Comecemos com o termo "o
  17. 17. 17 inconsciente ". Dissemos que os sonhos revelam o inconsciente de uma pessoa. Na psicologia junguiana, o que quer dizer "o inconsciente"? O inconsciente tudo aquilo que sabemos ser psiquicamente real, mas que no consciente. Trata-se de um conceito limtrofe, e negativo. Usamos esse conceito negativo para evitar um preconceito. Alguns o chamam de supraconsciente, outros de subconsciente, outros ainda falam em esfera divina ou base existencial. Nomes h aos milhares. Preferimos o termo inconsciente justamente porque no diz nada. Diz apenas que no consciente, o que permanece um mistrio. No sabemos o que . Sabemos apenas que h fenmenos psquicos que se manifestam atravs de sonhos, gestos involuntrios, lapsos da fala, alucinaes ou fantasias que no so conscientes. Por exemplo, voc pode durante o dia ter uma fantasia e dizer: "Que fantasia estranha! Que coisa mais louca! No sei o que isso quer dizer." Se voc no sabe o que ela quer dizer e acha que louca, obviamente ela no consciente, porque se o fosse, voc saberia o que quer dizer. Voc saberia a que a fantasia se refere. Ora, isso um evento psquico, que no ocorreu materialmente. Ocorreu enquanto evento psquico e o conjunto de eventos psquicos no conscientes que chamamos de o inconsciente. Jung disse que a mente, ou a psique, compe-se de vrios complexos. No linguajar dirio, porm, usamos a palavra "complexo" para descrever apenas um aspecto negativo da personalidade de algum. Dizemos que uma pessoa tem um complexo de inferioridade, ou de poder, ou um complexo materno. Poderia nos explicar o que Jung queria dizer com a palavra "complexo"? Qual seu significado psicolgico? Bem, os complexos so simplesmente os motores da psique. So como diferentes ncleos, que impulsionam e vitalizam a psique. Se no tivssemos complexos estaramos mortos. Voc experimenta um complexo, por exemplo, quando se sente entediado e de repente algo lhe interessa e voc se envolve. A um complexo foi tocado. Assim, os complexos so simplesmente os centros de energia da psique. Mas em linguagem coloquial usamos complexo s de forma negativa. Dizemos ento que algum tem um complexo sexual, ou de dinheiro, ou paterno, o que significa que o complexo em questo ativa a energia da pessoa, s que negativamente. Por exemplo, no sonho de uma
  18. 18. 18 mulher com um complexo paterno pode-se perceber que todas as energias do sonho focalizam a figura central do pai. "Sonhei que no meio da noite o telefone tocava e minha me atendia. Era minha av, que dizia algo sobre meu pai. Sa at o terrao e vi o carro dele ainda no corredor. Ele estava parado na direo, inclinado para a frente como se fosse dirigir, mas no se mexia. Percebi ento que ele poderia estar morto e que eu devia chamar uma ambulncia. Da olhei para o corredor. Era circular. Estava cheio de bexigas, como essas de aniversrio centenas e centenas de bexigas brancas. A pensei que para a ambulncia poder chegar at ele era preciso estourar todas aquelas bexigas." Uma jovem me Dra. Von Franz, a senhora disse que os nossos sonhos revelam a mente inconsciente. Ou seja, as figuras dos sonhos personificam algum aspecto da nossa personalidade global. Jung delineou quatro dessas figuras e deu-lhes os nomes de sombra, anima, animus e Self. Vejamos primeiro a sombra. Sombra o nome que em geral usamos para pessoas do mesmo sexo do sonhador que aparecem em seus sonhos. Essa figura comumente apresenta qualidades ligeiramente inferiores ou opostas ao ego do sonhador. Ela pode personificar nosso lado inferior nosso melhor inimigo, por assim dizer mas tambm pode ser apenas nosso outro lado. Uma bela dupla de ego e sombra, por exemplo, Dom Quixote e Sancho Pana. Um irrealista e cheio de fantasias, o outro vive no corpo e tem os ps no cho. Um no pode viver sem o outro. Eles so um exemplo tpico do ego e sua sombra numa de suas mil formas. "Havia uma janelinha, na qual estava a mulher selvagem. Ela estava l desde 1928. Era to selvagem que no podia parar quieta. Mexia os braos e as pernas, os cabelos eram desgrenhados. No dava para ver o rosto. Algum foi falar com ela e ela lhe enfiou uma faca na garganta." Uma dona-de-casa inglesa "Tive um sonho ruim com um homem que era cruel comigo, ou me atacava, era "algum que eu conhecia. Encontrei-o na rua e tive vontade de lhe dar um murro na cara." Um contador canadense
  19. 19. 19 "Sonhei que estava indo a um show do David Bowie e que estava decidido a encontr-lo. O show comea e ele canta uma msica chamada "Move on, Move on". Chega o intervalo, o palco est vazio e aparece um guindaste. O enorme gancho balana, me pega, me ergue e me joga no palco. Sinto que estou caindo, caindo, caindo e percebo que atrapalhei tudo. Acordo num incrvel estado de pnico, percebendo que perdi uma oportunidade. Perdi algum tipo de chance." Um psicoterapeuta Passemos agora s outras figuras do inconsciente: os homens nos sonhos de mulheres e as mulheres nos sonhos de homens, essas figuras que Jung denominou anima e animus. A psicologia analtica sustenta que psicologicamente o homem tem uma mulher interior, e vice-versa. Muita gente tem dificuldade para aceitar esse conceito. "Cheguei mesmo a sonhar que eu danava com Humphrey Bogart quando ele estava nu em plo... Que tal esse?" Uma dona-de-casa inglesa "Tinha um homem minha frente e percebi que ao lado dele havia uma enorme salsicha preta." Uma escritora "Ah, eu sonho com a Greta Garbo. Durante muito tempo fui louco por ela." Um professor "O Woody Allen estava sentado mesa bem na minha frente! Ele dava uma risadinha cmplice e me convidava para danar!" Uma estudante "Da eu comecei a acarici-la e enfiei a mo na parte de baixo do biquni dela. Eu passava a mo e acariciava e, de repente, ela disse: 'Quero que voc faa amor comigo.' " Um executivo canadense Bem, sabemos que nascemos de genes e que a predominncia de genes masculinos ou femininos que determina o sexo de um beb. H inclusive criaturas andrginas, quando a natureza no se decidiu por um dos sexos. O homem possui, por assim dizer, um esboo de feminilidade (seios e mamilos) e a mulher um esboo de masculinidade (clitris). O mesmo vale para a psique. No apenas nosso corpo predominantemente masculino ou feminino, embora contendo em si o elemento oposto, mas tambm nossa psique predominantemente
  20. 20. 20 masculina ou feminina, contendo em si o oposto. Nossa natureza contrassexual personificada nos sonhos como uma figura do sexo oposto ao nosso. Como se manifesta o lado feminino de um homem? De modo tipicamente feminino. Negativamente, como passividade e mau humor. Em alguns homens como vaidade, uma absoluta vaidade feminina, ou como uma espcie de casmurrice melindrosa. Positivamente, a feminilidade de um homem permite-lhe ser receptivo, capaz de ouvir e esperar em vez de ter sempre que falar e passar para a ao imediata. E a masculinidade numa mulher? Isso muito visvel hoje em dia. Negativamente, essa masculinidade aparece em certas aes e comentrios brutais, numa certa afoiteza e mordacidade. Mas essa ainda no a pior forma de masculinidade da mulher. At mesmo uma mulher muito feminina pode ter uma masculinidade secreta sob a forma de uma surda teimosia que nada consegue convencer. Ela aperta os lbios e por dentro diz: "Voc pode dizer o que quiser, mas eu sei o que quero e isso eu vou conseguir". Positivamente, a masculinidade de uma mulher a capacidade de ter coragem, de desenvolver o intelecto e a espiritualidade. J falamos brevemente sobre as figuras onricas do mesmo sexo que o sonhador, a sombra, e sobre as de sexo oposto, a anima e o animus. Para completar o mapa do mundo dos sonhos, poderamos examinar a figura que Jung disse estar localizada no centro da psique, o Self? Em quase todos os sistemas religiosos h uma aluso a um centro divino do qual provm a ordem e a organizao. Esse centro aparece nos sonhos s vezes como um centro mesmo, como mandala, cidade interior, crculo, quadrado ou outra formao abstrata. Ou ento, como criana divina salvadora ou outra figura redentora, como velho ou velha sbios, ou como psicopompo algum que guia nossa vida psquica. Todas essas figuras parecem apontar para aquele centro da nossa psique, em ltima anlise desconhecido e incognoscvel. Para Jung, o Self, escrito com maiscula, significa aquele centro supra-ordenado, interior e divino da psique que devemos explorar pela vida afora. No sabemos o que o Self em ns, nem o que ele quer. Para isso precisamos dos sonhos. Podemos dizer que os sonhos so cartas que o Self nos escreve a cada noite, dizendo-nos para fazer um pouco mais
  21. 21. 21 disso, um pouco mais daquilo, ir para um lado, ou para outro. Encarando a vida como um todo, vemos que h um padro, como se o Self tivesse um plano para ns, uma espcie de destino. H um perigo, porm: confundir o "Self, no sentido que Jung dava a esse termo, e aquilo que se entende por auto-realizao em boa parte da literatura psicolgica, quando o que se tem em mente construir uma slida conscincia do ego. Esse aspecto sem dvida importante, especialmente na primeira metade da vida, mas nada tem a ver com o conceito de Self para Jung, que no auto-realizao no sentido corrente. Ao contrrio, trata-se da aventura de encontrar, dentro de si, um centro interior mais forte que o ego. O que acontece quando uma pessoa no vive em harmonia com o Self? Como ficam a sua energia, os sentimentos no expressos, ou o potencial no realizado? So essas as fontes daquilo que denominamos neurose, ou sintomas neurticos. Atualmente, o sintoma neurtico mais generalizado a inquietao. Ainda no se encara isso como sendo neurose porque todos so inquietos; mas na verdade . A inquietao causada por um excedente de energia presa que nos deixa num estado de permanente agitao porque no estamos conectados com o mundo dos sonhos ou com o inconsciente. Ou ento essa energia assume a forma de uma ansiedade generalizada, um medo de que algo negativo sempre pode ocorrer. A qualquer minuto. A pessoa fica ansiosa o tempo todo, acerca de nada. Esses sintomas resultam de uma falta de percepo de que h energia represada no inconsciente, energia essa que no exploramos e no integramos na conscincia. Irritabilidade, agressividade, supersexualidade ou sensao de total vazio e falta de sentido -todos os sintomas de diferentes doenas neurticas provm daquela inquietao. Podemos portanto dizer que quem no estiver adequadamente ligado sua prpria vida onrica correr o risco de desenvolver algum tipo de comportamento neurtico. Poderia nos falar um pouco mais sobre o padro geral dos sonhos? Como esse padro se desenvolve no decorrer de uma vida? Na primeira metade da vida, os sonhos se referem mais a uma adaptao dinmica vida exterior, terrena, material; na segunda, em geral, comeam a dirigir a pessoa a recolher-se e a desenvolver uma certa sabedoria e insight sobre o que est por trs da vida aparente. Os ltimos sonhos de pessoas beira da morte so claramente uma
  22. 22. 22 preparao. Mas em ltima instncia no podemos compreender esse padro. Psicologicamente falando, no sabemos de onde viemos e para onde vamos. Somos parte desse mistrio csmico que a existncia da natureza e de todas as coisas. No sabemos por que h galxias e estrelas; no sabemos por que h um universo, mas estamos comeando a perceber que existem certos padres dominantes na matria. H uma fora diretriz; no se trata de um fenmeno catico ou casual. Analogamente, parece que essa vida psquica interior tambm organizada por um padro dominante, ela tem um centro. Ao atingir a idade avanada, as pessoas tendem a refletir sobre a vida, repassando os eventos marcantes e os sonhos que tiveram, em geral percebendo um certo padro. Problemas que se colocam e se resolvem, transformando-se depois em novos problemas. Parece haver uma organizao secreta, cujo centro o que os msticos chamam de centelha divina ou imagem de Deus em ns. Os budistas diriam que a mente-Buda, ou diriam mesmo que o Self. O hindu diria que esse centro o Atman, o Atman universal e pessoal na psique humana. Poderamos concluir com aquele impressionante sonho de Jung, no qual ele encontra o Self sob a forma de um iogue. Jung sonhou que andava por um caminho e encontrou uma capela. Logo que entrou, surpreendeu-se ao perceber que no altar no havia uma esttua da Virgem, nem um crucifixo, mas apenas um belo arranjo floral. Ento ele viu, sentado em posio de ltus diante do altar, um iogue em meditao profunda. Jung ficou chocado e percebeu que este era o iogue que o imaginava; que num estado de transe, uma espcie de imaginao ativa, ele imaginava ou sonhava a vida de Jung. Jung sabia que quando o iogue acordasse, ele, Jung, no existiria mais. O professor Jung da vida diria era o sonho daquela figura interna superior. E, no entanto, afigura do iogue era ao mesmo tempo um sonho de Jung. Esse paradoxo me lembra o sonho de Ch'uang T'se. Ch'uang T'se dizia que certa vez ele sonhou que era uma borboleta. A partir desse sonho, ele nunca mais parou de refletir se ele era um homem que sonhou que era uma borboleta, ou o contrrio. A verdade que no podemos resolver o enigma. A borboleta um smbolo do Self. Somos o sonho do Self, ou ser o Self nosso sonho? Simplesmente no sabemos.
  23. 23. 23 Captulo 3 A Estrutura dos Sonhos Uma menina de seis anos sonhou que estava com a av. No sonho ela disse: "Vov, eu consigo desaparecer!" "Bobagem, menina", respondeu a av. "Ningum capaz disso." Nesse ponto a menina acordou, sentou-se na cama, correu os olhos pelo quarto escuro, deitou-se e novamente adormeceu. Como s vezes acontece, ela retomou o mesmo sonho. A av, no sonho, olhou para ela e disse: "Meu Deus do cu, como que voc conseguiu?" Cada sonho que temos, dentre milhares no decorrer da nossa vida, nico. Uns so diretos, outros mais complexos, mas todos os sonhos so espontneos e imprevisveis. portanto surpreendente observar que muitos deles tm uma estrutura identificvel, um arcabouo a partir do qual se organizam. Ao traarmos o contorno dessa estrutura, o fluxo aleatrio de imagens e eventos comea a ir para o lugar. "Eu me interesso pela minha vida e creio que os sonhos a revelam para mim." Uma senhora, num mercado de Londres "Provavelmente os sonhos refletem algo da realidade da vida cotidiana, entende? Mas no sei bem o qu." Um arquiteto canadense "Nos sonhos voc pode imaginar e fazer coisas que no d para fazer na vida real." Uma adolescente francesa "Nos meus sonhos eu me lembro que h elementos de pensamentos que tive durante o dia arranjados de maneira diferente da que de fato ocorreu." Uma advogada "Lembro-me dos meus sonhos. As vezes eles me dizem o que vai acontecer... ou aquilo que aconteceu durante o dia aparece alterado noite, e os sonhos contam do jeito que eu gostaria que tivesse sido." Uma vendedora inglesa "Costumo voar. uma coisa da mente. s pensar em ir embora e vou. Muitas vezes escrevo meus sonhos. Eles predizem o futuro ou me dizem como me sinto... sem a menor dvida. Se algo pesa sobre
  24. 24. 24 mim... No posso me mexer quando as coisas pesam sobre mim, seno serei esmagado por rochas ou certos objetos estranhos que pesam sobre minha cabea ou meus ombros." Artista de rua, "O homem papagaio", Califrnia Dra. Von Franz, at que ponto a interpretao dos sonhos um trabalho cientfico, e at que ponto uma arte? Creio que um pouco de cada. H certas regras elementares e muito teis, puramente tcnicas ou cientficas, que podem ser aplicadas. Sempre recorro a elas quando no compreendo um sonho e ento pergunto: "Qual a exposio do sonho, qual o cenrio, qual a associao?" A tcnica pode nos levar longe. Mas h, claro, um tipo de aptido desenvolvida com a prtica, que no se pode transmitir para o principiante. Um carpinteiro velho pode mostrar a um novo como usar as ferramentas, tomar medidas ou cortar madeira, mas h um certo toque com a madeira que ele no pode comunicar. O aprendiz precisa trabalhar vinte anos com madeira para adquirir aquele toque. "Bem, eles me do uma sensao diferente, entende? Eles so emocionais, so mesmo, mas eu no consigo, entende? No sei como que eles funcionam." Um executivo americano Depois de muito trabalho de interpretao e de quebrar a cabea acaba-se pegando o jeito e desenvolve-se uma habilidade profissional que tem a ver com sentimento, um sentimento medinico, uma empatia com a outra pessoa. "Acho que so engraados. Gosto de analisar sonhos. No que eu saiba, ou que entenda o que eles querem dizer... mas divertido tentar descobrir o significado." Uma jovem secretria Existe uma tcnica para descobrir o significado de um sonho? Temos uma tcnica na psicologia junguiana. Comparamos o sonho a um drama e o examinamos sob trs aspectos estruturais: primeiro, a introduo ou exposio o cenrio do sonho e a colocao do problema; segundo, a peripcia o desenrolar da histria; e finalmente, a lysis a soluo final, ou talvez a catstrofe. Quando no compreendo um sonho, uso esse esquema e me coloco a questo: "Muito bem, qual a introduo?" "Eu podia voar e atravessar o telhado! Subia at as nuvens e..." Uma aeromoa
  25. 25. 25 A primeira sentena de um sonho em geral descreve a cena da ao e apresenta os protagonistas. Por exemplo, um sonho pode comear da seguinte forma: "Estou na casa da minha infncia com meu amigo Bob." Toma-se essa primeira sentena e pergunta-se ao sonhador quais so as suas associaes: "Como era essa casa? Como voc se sentia l? Voc era feliz? Quanto tempo viveu l?" Em seguida, pergunta-se sobre o amigo: "Como esse seu amigo Bob? O que faziam?... Ah, sei, ele era um chato, mas vocs faziam molecagens juntos." Ento, essas associaes so inseridas no texto, que fica assim: "Psicologicamente ainda estou em minha situao infantil e com uma parte de mim que chata mas tambm travessa." "Caminho sozinha sobre a neve, que est bem alta. minha direita h uma cerca elevada. Vou acompanhando a cerca e pensando: "Se acontecer alguma violncia, o que vou fazer?" Uma atriz canadense A partir dessa traduo deve-se obviamente examinar de que forma se aplicar ao momento em que o sonho ocorreu e vida do sonhador. Em quem sentido ele ainda est com um p na casa da infancia? Em que aspecto de sua situao de vida ainda reage como quando era menino? Presume-se ento que o conho fala a respeito daquele pedao da personalidade dele. O passo seguinte nomear o problema. Digamos que aparece um carro, e dele saem dois ladres. Temos agora um desenvolvimento dramtico, o que significa que uma histria especfica est sendo contada. Esses dois homens seriam uma invaso, algo que fora a entrada. Os ladres em geral representam algo que entra no sistema consciente. O sonho teria ento a seguinte traduo: "Naquele canto de sua psique, onde o sonhador ainda tem reaes infantis, algo do inconsciente coletivo est entrando." Dessa forma, vamos aos poucos cobrindo o sonho inteiro. O fim do sonho, ou fysis, o objetivo: uma soluo, ou uma catstrofe. Eu conheo to bem essas regras de interpretao que as aplico meio inconscientemente. Mas sempre presto muita ateno ltima sentena do sonho, que oferece a soluo inconsciente no caso de haver soluo no momento. Alguns sonhos acabam sem levar a nada esses no so favorveis e isso quer dizer que o prprio inconsciente no tem soluo. Fora esse caso, porm, o que quer que acontea no fim do sonho a soluo. Se algum acorda com um
  26. 26. 26 grito, por exemplo, essa a soluo aquilo que choca e desperta. O final do sonho contm o aspecto que deve ser conscientizado; por isso, sempre pergunto como termina o sonho. "Eu estava no salo de uma aldeia organizando um concerto ou algo do gnero com meu marido..." Uma dona-de-casa inglesa Se algum quiser interpretar o prprio sonho, o melhor escrev-lo numa folha de papel e anotar as associaes a cada palavra do sonho, ou seja, aquilo que vem mente de forma espontnea. Em seguida, deve-se observar se h uma conexo entre o sonho e as associaes. Por exemplo, se a primeira sentena diz: "Estou na casa da minha infncia", aquele aspecto em que ainda sou infantil, e "aparece um ladro", ou seja, algo est invadindo, deve-se perguntar: "O que isso? Por que algo invade meu sistema psicolgico?". preciso, ento, pensar no dia anterior e no que aconteceu externa ou internamente. Pode ser que os ladres se refiram a alguma experincia desagradvel, ou a um pensamento negativo: algo destrutivo que, de repente, invade o sistema. Torna-se possvel, assim, estabelecer uma conexo significativa e dizer: "Ah, o sonho se refere quele pensamento que tive ontem, ou quela experincia, e ele indica que agi de modo adequado, ou no." O sonho corrige nossas atitudes. "Bem, antes de mais nada quero dizer que sou um cara muito bem casado. Minha mulher, no momento, encontra-se no Arizona com nosso filho visitando os parentes e no sei por que esta noite tive esse sonho. Sonhei que estava num baile de estudantes com uma das garotas que trabalha aqui. Bem, no havia nada de lascvel no sonho, mas tenho uma pequena sensao de culpa por ficar com outra mulher enquanto a minha est viajando. Deve ser uma conseqncia natural. Na verdade, hoje de manh at contei para essa garota, queria aliviar qualquer culpa que eu pudesse sentir." O superintendente do Parque Estadual, Hava E alguns sonhos so muito mais explcitos que outros. Esse seria o mtodo de lidar com sonhos atravs de associaes pessoais. Mas h tambm sonhos que no suscitam associaes. So os assim chamados sonhos arquetpicos, que tm um significado mitolgico e aos quais em geral as pessoas no associam nada. Se perguntarmos: "O que voc pensa sobre Jpiter?", a resposta ser: "Ora, Jpiter um planeta." No se sabe o que associar e nada de
  27. 27. 27 pessoal vem mente. Nesse caso, recorre-se s associaes da humanidade. "Quais as fantasias da humanidade a respeito de Jpiter?" Coloca-se ento a resposta a essa pergunta no texto do sonho. A senhora disse que cada elemento de um sonho representa um aspecto da psique do sonhador. H, porm, sonhos que refletem a realidade exterior. Por exemplo, algum pode sonhar que certa pessoa morreu e depois ficar sabendo que de fato isso ocorreu. Como saber se um sonho se refere realidade exterior ou interior? Se, por exemplo, um homem sonha que sua mulher est lhe roubando o carro, como determinar se o sonho se refere a um problema externo na sua relao conjugai ou algo interior? Esse o problema mais escorregadio de todos. O sonhador em geral pensa: "Est vendo! isso o que ela faz. Ela tem mania de cortar meus movimentos. Ela sempre interfere." E fica-se na dvida. Por outro lado, o sonho poderia indicar uma projeo, ou seja, seu lado feminino rouba carro e ele projeta isso sobre a mulher. Ele v o problema na mulher e acredita que ela a responsvel, quando na verdade ele o autor inconsciente daquele resultado. Para poder interpretar corretamente esse sonho seria preciso conhecer bem a situao conjugal e ter alguma idia do comportamento objetivo da esposa. S assim poder-se- avaliar se o sonho indica uma projeo, ou se realmente se refere esposa. s vezes, o sonho abrange as duas coisas. O problema decidir se ele deve ser interpretado objetiva ou subjetivamente: no primeiro caso, com referncia ao objeto externo, a mulher de fato rouba o carro; subjetivamente, com referncia ao sujeito, o lado feminino do sujeito rouba o carro, com a mo esquerda, por assim dizer. Em geral, eu diria que cerca de 85% dos temas onricos so subjetivos; recomendo, portanto, a interpretao subjetiva da maioria dos sonhos. Deve-se sempre partir da pergunta: "O que em mim faz isso?", em vez de tomar o sonho como um aviso contra terceiros. Falamos com vrias pessoas na ma que davam importncia a seus sonhos e tentavam encontrar um sentido neles. "Sonhei que estava numa casa que tinha um lago na frente. Meu pai, minha madrasta e eu estvamos na cama, quando o andar de cima lanou-se para o jardim da frente. Eu ca no jardim mas eles foram parar direto no lago.
  28. 28. 28 Contei o sonho para minha madrasta e ela disse: 'Sim, muito significativo, gente caindo na cama e na gua algo muito sexual.' Mas o que no lhe contei que quando ela e meu pai caram na gua eles estavam fazendo amor, e que eu no tinha cado na gua. No consegui entrar no mar da vida, ou algo do gnero." Uma estudante canadense Por que to difcil interpretar os prprios sonhos? Conheo analistas que h anos vm interpretando sonhos alheios e que no conseguem interpretar seus prprios sonhos. porque o sonho nunca diz o que voc j sabe. Ele indica algo desconhecido, um ponto cego. como tentar olhar para as costas. Voc pode mostr-las para o mdico, que examinar como esto, mas no pode v-las. O ponto cego como as costas ou o traseiro, digamos assim, voc se senta sobre ele mas no consegue v-lo. Por essa razo, mesmo que o sonho diga coisas bvias voc s vezes no as enxerga. preciso que outra pessoa lhe diga e a voc pensa: "Oh Deus, claro, isso mesmo!" "Eu estava voando. Apenas voando, sem ir para lugar algum, entende? Era como ficar indo, indo, sem chegar a nada. Dava medo. Cheguei no trabalho e contei para as colegas. Arrumei um livro de sonhos para descobrir o que significa mas no encontrei nada." Uma assistente de vendas muito difcil interpretar os prprios sonhos. Quem for obrigado a faz-lo ter de se arranjar; mas poder contar com a viso de outra pessoa de grande valia, mesmo que esta no entenda de sonhos. Pois ao contar o sonho pode ocorrer que o significado se revele. Como Jung no tinha quem interpretasse seus sonhos, costumava cont-los a um homem que nada entendia do assunto. Ele comentava sorrindo que as observaes descabidas desse seu interlocutor acabavam por faz-lo compreender o sonho: "No nada disso, mas agora sei o que ." Muita gente usa dicionrios de sonhos para interpret-los. Esses livros tm algum valor? "Sim, sonhei que estava pescando, mas o peixe sempre escapava. O dicionrio diz que isso quer dizer gravidez, ser?" Uma vendedora Acho esses livros muito ruins. Eles fornecem uma interpretao esttica, o que desvia do rumo certo. Uma cobra quer dizer doena, ou a morte de um parente; perder um dente perder os pais, ou seja l o
  29. 29. 29 que for. H dicionrios modernos um pouco mais diferenciados, mas eles tambm lidam com significados fixos. O simbolismo onrico, na nossa experincia, muito mais individual. preciso conhecer as associaes individuais. O que conta o que o smbolo significa para o sonhador e as experincias que este teve com o smbolo. Voc pode se inspirar consultando um desses dicionrios e ver todas as possibilidades os significados possveis da cobra, ou do pavo mas a tem que voltar ao sonho e perguntar: "O que isso significa para o sonhador?", e isso sempre muito mais especfico. A senhora usa algum outro recurso em seu trabalho analtico? Eu trabalho basicamente com sonhos. Segundo nosso modo de pensar, trabalhamos com sonhos porque eles provm de um indivduo e so algo exclusivo daquela pessoa. O grande perigo de todas as profisses teraputicas o potencial de interferir na vida do outro. Vejamos, por exemplo, a idia do que normal. Um terapeuta pode ter uma certa concepo de normalidade e achar que o outro deveria tornar-se normal. Isso uma interferncia, uma atitude de poder. Talvez o destino, ou Deus, ou o nome que se d aos grandes poderes que regem a vida no queiram que essa pessoa seja normal. Como pode ento o terapeuta saber que esse paciente tem que ser normal? As idias burguesas do terapeuta a respeito de normalidade no podem ser impingidas a um pobre ser humano destinado a ser uma pessoa diferente. Quando algum o procura com um problema, voc, para ser honesto, deve dizer: "No tenho a menor idia sobre a origem desse problema." Qualquer idia que tenha sobre o paciente no passa de um preconceito. Na verdade, voc deve dizer: "No sei por que voc tem um problema psicolgico e nem mesmo sei o que esse problema." No podemos conhecer o destino de um ser humano. Algum tempo atrs, fui consultada sobre os sonhos de uma menina de sete anos que, na verdade, eram sonhos de algum prestes a morrer. Ela, de fato, foi submetida a uma cirurgia de cncer e provavelmente morrer em dois ou trs anos. Eu no tinha essas informaes quando examinei os sonhos. Eram sonhos incomuns, sonhos de uma personalidade velha e sbia. Fica claro ento que no se pode ter teorias a respeito de como deve ser uma vida. Os sonhos so a nica coisa que emana do prprio paciente; se tentarmos compreend-los com o mnimo de preconceitos poderemos descobrir o que o nvel psquico mais profundo daquela
  30. 30. 30 pessoa tem a lhe dizer sobre si mesma. Ns, psicoterapeutas, somos apenas os tradutores dos sonhos. A anlise resume-se a dizer a um homem demasiadamente juvenil: "Sua prpria profundidade psquica acha que voc juvenil demais, e que isso prejudicial sua sade." No se trata de uma opinio minha, o que extramos do sonho desse homem. Isso surte efeito, porque o paciente sente que no se trata de uma opinio do analista. Quando interpretado corretamente, o sonho bate com algo e o analisando pode dizer: "Sim, isso a." Ele fica impressionado, e isso pode motiv-lo a mudar sua vida. Mas se voc simplesmente o aconselha: "Oua, voc est se comportando como um adolescente e isso no bom para a sua sade psquica", ele no ouvir, porque j lhe disseram isso antes. Esse o ponto: se o prprio sonho que ironiza seu comportamento h mais probabilidades de ele de fato alter-lo. Posso dizer que no caso real de um homem demasiadamente juvenil ele enrubesceu, o que mostra que a mensagem do sonho atingiu o alvo. Assim, em nossa linha de trabalho, seguimos os sonhos. Trabalhamos com o paciente para descobrir o significado e deixamos a coisa a. Dessa forma, o paciente no se sente preso na camisa de fora do conceito do analista sobre normalidade ou adaptao. Ele segue suas intimaes interiores, aquilo que sua prpria psique lhe diz. Portanto, a anlise consiste em educar as pessoas a conseguir ouvir sua voz interior e a segui-la com o auxlio dos sonhos. Captulo 4 O Smbolo Vivo Os smbolos so a linguagem dos sonhos. Nos sonhos, o inconsciente revelado atravs de smbolos. A chave para a compreenso de um sonho 3 conhecimento do smbolo. Durante o sono (quando estamos inconscientes), as experincias que temos nos sonhos voar, cair, matar jazem sentido. Mais tarde, quando recordamos o sonho, tudo aquilo parece louco, estranho, sem sentido. Nossa mente consciente no consegue compreender o smbolo.
  31. 31. 31 Na linguagem coloquial, usamos com freqncia expresses simblicas para descrever aspectos da personalidade. Por exemplo, dizemos que algum muito inflado a respeito da prpria capacidade vai "cair das alturas", ou que "est com a cabea nas nuvens", ou que "precisa pr os ps no cho" expresses simblicas que racionalmente no fazem sentido algum. Nos sonhos o smbolo vive. A pessoa de fato voa e sente as sensaes do vo. "Costumo sonhar que estou voando, o que muito divertido. Mas, de repente, me ocorre que um tanto ridculo estar de fato voando." Estudante ingls "J voei nos meus sonhos. uma boa, certo? uma tima. Saca, quando voc est l em cima, voc est na sua e no h ningum por perto... s as nuvens." Um mecnico de automveis "Comeo a correr cada vez mais depressa. No uso muito os braos. O nico ponto de apoio o meu prprio corpo. Bato os braos um pouco, vou dando pulos cada vez mais altos e no fim estou voando." Tcnico de som ingls Pouco antes de morrer, em 1961, CG. Jung explicou a relao entre a linguagem simblica e o inconsciente no livro O homem e seus smbolos: O homem usa a palavra escrita ou falada para exprimir o sentido daquilo que quer dizer. Sua linguagem cheia de smbolos, mas ele costuma empregar signos ou imagens no necessariamente descritivos. Alguns no passam de abreviaturas ou siglas, como ONU, UNICEF ou UNESCO; outros so marcas conhecidas, nomes de remdios, emblemas ou insgnias. Essas palavras, que em si no dizem nada, adquirem sentido atravs do uso comum e intencional. Essas coisas no so smbolos mas signos, que apenas denotam os objetos aos quais correspondem. O que denominamos smbolo um termo, um nome ou at mesmo uma imagem talvez familiar na vida cotidiana, mas com uma conotao especfica alm do sentido bvio e convencional. O smbolo sugere algo vago, desconhecido e oculto. ...Por exemplo, tome-se o caso do hindu que, retornando de uma visita Inglaterra, contou a seus amigos que os ingleses cultuam animais, pois ele viu guias, lees e touros em velhas igrejas. Ele no sabia que esses animais so smbolos dos Evangelistas, provenientes da viso de
  32. 32. 32 Ezequiel, nem que so anlogos ao deus egpcio Hrus e seus quatro filhos. H objetos como a roda e a cruz, conhecidos no mundo todo, que em certas circunstncias adquirem um significado simblico. ...Assim, uma palavra ou imagem simblica quando implica algo alm do seu sentido bvio e imediato, adquirindo um aspecto "inconsciente" mais amplo nunca definido com preciso nem totalmente explicado que tampouco se poderia definir ou explicar. ...Como h muitas coisas alm dos limites da compreenso humana, usamos termos simblicos para representar conceitos que no podemos definir ou compreender por completo. Essa uma das razes pelas quais todas as religies empregam linguagem ou imagens simblicas. Mas esse uso consciente de smbolos apenas um aspecto de um fato psicolgico de grande importncia: o homem tambm produz smbolos inconsciente e espontaneamente, sob a forma de sonhos. Dra. von Franz, "cair" um tema onrico bastante comum. Todos ns j camos em sonho. Qual o sentido simblico dessa imagem? verdade que morremos se num sonho atingimos o cho? J sonhei que caa e no morri; algo aparou a queda ou ento acordei antes de tocar o solo. "Eu estava numa campina verdejante e me sentia muito feliz. Esse sentimento mudou aos poucos e fiquei irritada e nervosa. Isso foi aumentando. Ento entrei num estado de pnico e de medo estava apavorada! Ao lado do meu p esquerdo havia uma cobra. Uma coisa horrorosa, com dentes humanos. Eu sabia que ela iria me fazer algum mal." Uma senhora inglesa "Tive um sonho muito ruim com uma cobra, fiquei com medo de que fosse morrer, entende, porque tenho pavor de cobras. Quando acordei estava todo suado. Eu suava frio e senti um alvio porque no era verdade." Homem de negcios argentino, em Paris "Sonhei que estava numa espcie de prdio, com outras pessoas, e nos debruvamos sobre o beirai. Apoivamos os ps na calha, mas esta quebrou e eu ca. No sei o que aconteceu com os outros, mas eu caa." Guarda de segurana, Londres
  33. 33. 33 "Eis aqui meu sonho. Eu me mudei para uma casa em Montreal que tinha uma escadaria branca. Por trs noites seguidas eu despencava dessa escada gritando, e a coisa no acabava nunca. Era horrvel." Dona-de-casa de Montreal "Sonhei que estava guiando uma moto numa rua pavimentada com pedras. A rua acabava e eu caa. Era horrvel! Mas eu nunca batia no cho, o que bom. Voc morre quando bate no cho." Uma senhora num mercado de Londres "Sim, eu sonho com cobras... se voc for ver, parece que quer dizer inimigos." Uma assistente de loja, Toronto Mas h uma superstio de que se a pessoa bater no cho ela morrer. No, no, no. Isso quer dizer apenas uma coliso com a realidade. Se voc sonha que est caindo porque em algum sentido voc est elevado demais. Talvez tenha uma opinio alta demais a seu prprio respeito, ou idias romnticas e irreais, ou ento voc vive num mundo de faz-de-conta, ou numa teoria. De algum modo, voc no est em contato com a realidade. Os sonhos de queda brusca em geral coincidem com fortes desapontamentos exteriores, quando subitamente nos vemos frente realidade tal qual ela o que pode ser um choque mortal para o ego. Pode-se, por assim dizer, ficar anulado por um certo tempo. O ego se apaga e no tem nada a dizer. Isso que morrer por atingir o cho. Lembro-me de um sonho em que levei um tiro no corao e morri. Mesmo assim, meu assassino deu mais quatro tiros. Cada bala me matava de novo. Lembro-me de que no sonho mesmo eu pensava que era desnecessrio ele continuar, pois eu j estava morto. Ele havia me matado no primeiro tiro. O que quer dizer isso, quando o sonhador morre ou assassinado num sonho? Isso quer dizer que a atitude do ego, como se configura naquele momento, deve desaparecer. Tive muitos sonhos nos quais eu era oficialmente executada, em geral, por decapitao. Nitidamente, eles diziam que a cabea tinha que ceder, que alguma atitude intelectual devia ser sacrificada. Mas se voc leva um tiro, sendo atingido por algo, porque precisa de um choque para acordar. A morte do sonhador significa uma mudana radical, no restando nada da velha pessoa ou da velha atitude. Assim, se voc sonha que assassinado,
  34. 34. 34 que leva um tiro ou enforcado, ou seja l qual for o tipo de morte, isso sempre indica que uma mudana radical est prxima. Em vez de discutirmos o significado de temas separados, poderamos abordar essa questo dos smbolos examinando um s em profundidade e ento demonstrar como esse smbolo expressa o inconsciente num sonho real. Poderamos tomar um dos smbolos centrais da nossa cultura, a estrela. Que aspecto da psique a humanidade projetou nas estrelas, tornando-as simblicas? O mundo das estrelas sempre foi encarado como um mundo de seres divinos e eternos. Por isso, em vrias partes do mundo ocorre uma tradio folclrica segundo a qual o aparecimento de uma estrela cadente corresponde ao momento em que a alma desce Terra e uma criana nasce. Na China e no antigo Imprio Romano, quando morria uma pessoa notvel os astrlogos procuravam uma nova estrela no cu, acreditando que a alma do moribundo voltaria para o cu e novamente tornar-se-ia uma estrela. Alm disso, no ritual fnebre dos egpcios h uma prece que diz: "Que eu me torne uma das estrelas perenes que circulam o Plo Norte." A meta do falecido era tornar-se uma estrela que nunca se pe. No Egito, ainda, a parte espiritual e imortal da psique era representada pela "B", que nascia como pssaro ou estrela. A "B" simbolizava aquela parte da personalidade que sobrevive morte e acompanha o deus Sol pelo cu como estrela permanente. Assim a estrela tem a ver com a eternidade do aspecto nico da personalidade. isso que foi projetado na estrela. "Esse um daqueles raros sonhos nos quais uma voz masculina, dotada de muita autoridade, me dizia com muita clareza o que eu devia fazer. A voz dizia: 'Esta a sua estrela-guia.' " Uma mulher A estrela de Belm teria o mesmo significado simblico? Ela se encaixa perfeitamente em nosso contexto; quer dizer, quando uma personalidade extraordinria nasce, uma estrela nova e brilhante aparece no cu. Foi dessa forma que os trs Reis Magos a interpretaram de imediato. Quando viram a estrela de Belm ficaram sabendo que uma personalidade importante havia nascido e por isso foram ver a criana. Isso combinava com a concepo geral da poca. Uma nova estrela significava que algum em algum lugar um
  35. 35. 35 imperador, um grande governante, ou uma nova personalidade que mudaria o destino da humanidade tinha chegado Terra. Poderamos agora examinar um sonho no qual a estrela a imagem central. O sonho faz parte da pica de Gilgamesh e um dos mais antigos sonhos documentados de que se tem notcia. Gilgamesh, rei de uma cidade murada da Sumria chamada Uruk, era um poderoso soberano do mundo antigo e seu sonho foi considerado importante o bastante para ser gravado na pedra. Eis o sonho do Rei Gilgamesh: "No meio da noite, eu caminhava com orgulho por entre meu povo. O cu estava cheio de estrelas. De repente, uma das estrelas do deus celestial Anu caiu sobre mim. Tentei reergu-la, mas era pesada demais para mim. Toda Uruk reuniu-se ao redor da estrela, e o povo beijava seus ps." Esse sonho tem cerca de 4.600 anos. Ainda hoje encontramos paralelos modernos, pois a linguagem do inconsciente mudou muito menos do que a da conscincia. Interpretando esse sonho de um ponto de vista moderno, poderamos dizer que at o momento em que a estrela caiu sobre Gilgamesh ele desempenhava o papel coletivo de rei era o rei-heri. Ele o homem tpico que com ambio e sucesso segue um padro coletivo. Na realidade, poderia ser um grande poltico ou um astro do cinema um homem que trilhou certos caminhos coletivos e atingiu um alvo. De um prisma interior, uma pessoa desse tipo reage de modo bastante coletivo, desempenhando um papel coletivo de poder. Pessoas assim, em geral, no so muito individuais. A estrela, por outro lado, representa o que h de nico nele cada alma tem uma estrela no cu. Podemos dizer que, at o aparecimento da estrela, Gilgamesh, com todas as suas realizaes coletivas de poder, no havia feito nada de nico. Pelo contrrio, apenas cumprira o padro tpico de um rei-heri. Nesse ponto, provavelmente por volta da metade da vida (porque ento que isso costuma acontecer), algo muda. Enquanto ele caminha por entre os sditos, orgulhoso de sua prpria condio de poder, uma estrela cai do cu sobre suas costas. A estrela acaba sendo um pesado fardo. esse o momento em que seu destino se abate sobre ele, literalmente caindo-lhe nas costas. Isso quer dizer que, assim como Cristo precisou carregar sua cruz, Gilgamesh agora precisa carregar o fardo de ter que se tornar o indivduo escolhido e
  36. 36. 36 nico que devia ser, tarefa esta que evitava sendo um homem coletivo e ambicioso. Mas a estrela tambm significa a alma imortal. No Egito, por exemplo, aquela parte do ser humano que sobrevive morte a alma B, desenhada como uma estrela. o ncleo eterno da psique e sempre representou o homem eterno e nico dentro de ns. Assim, Gilgamesh deve agora seguir seu destino nico em vez de desempenhar um papel coletivo o que revela ser no um chamado glorioso, mas um pesado fardo. At a estrela cair sobre ele, Gilgamesh considerava a si mesmo um grande homem. Ele era um rei, um heri, a fortaleza do seu povo. Mas agora ele deve perceber que no grande coisa. O que o povo cultua a estrela de pedra, aquele algo maior que h nele, e no seu poder coletivo. No sonho, o povo beija os ps da estrela, no os de Gilgamesh. O povo prostra-se diante da estrela, que sua verdadeira grandeza. O sonho contm portanto uma pequena lio para Gilgamesh: "No tome pessoalmente as honrarias e os elogios que o povo lhe faz. a estrela sobre voc que ele cultua. Voc tem o dever de tornar-se um indivduo nico. isso que cultuado em voc, e no sua pessoa. E esse ser seu fardo mais pesado." Assim, desse ponto da pica em diante, Gilgamesh torna-se o servo da sua misso herica e nica, a busca da prpria imortalidade. Por que que to pouca gente segue sua prpria estrela? Por que ela um fardo to pesado? Porque seguir a prpria estrela quer dizer isolamento, no saber para onde ir, ter que descobrir um caminho completamente novo para si mesmo em vez de simplesmente seguir o mesmo caminho pisado que todos usam. por isso que o ser humano sempre teve uma tendncia a projetar o aspecto nico e a grandeza do seu ser interior sobre personalidades exteriores e a tornar-se seu servo, seu devotado servo, admirador e imitador. muito mais fcil admirar uma grande personalidade ou tornar-se discpulo ou seguidor de um guru ou profeta religioso, ou admirador de uma grande personalidade oficial o presidente dos Estados Unidos ou ento viver a vida a servio de um general que voc admira. Isso tudo muito mais fcil do que seguir a prpria estrela. Que tipo de pessoa atrai a projeo da estrela?
  37. 37. 37 Aquela que nasce com qualidades extraordinrias, como inteligncia ou algum outro talento. Essas pessoas superdotadas esto sujeitas a projees, e a devoo alheia cria nelas uma tentao a desenvolver uma inflao. Ora, inflao uma superavaliao de si mesmo. Em vez de dizer: "Eu no sou meu talento, eu no sou minha inteligncia. Nasci com um bom computador e isso tudo. No h mrito algum nisso", essas pessoas tendem a se identificar com seus dons e ficam cheias de si, infladas como um balo. Sempre que algum tem algum sucesso pode-se observar uma inflao em pequena escala, pois logo em seguida a pessoa adota maneirismos arrogantes e condescendentes. Como natural, muitos dos que fizeram histria eram inflados. Alguns imperadores romanos, por exemplo, sofriam do que se convencionou chamar loucura dos csares. Inflao ento ter uma opinio irreal a respeito de si mesmo. Mas seria possvel no ficar inflado? Ser que as pessoas conseguem estimar com alguma preciso seu prprio valor? Bem, a dificuldade que por natureza ningum pode fazer uma avaliao correta do seu prprio valor. Ningum sabe direito o muito ou o pouco que vale. Quer dizer, pergunte a algum: "Vamos l, honestamente, voc uma grande pessoa em comparao com os outros?" Todos acabariam admitindo que no tm a menor idia. Trata-se de um sentimento subjetivo. Ou a pessoa tem um sentimento de inferioridade e sente que o ltimo dos vermes, ou ento ela tem um complexo de superioridade e se sente eleita, acima da mdia. A maioria oscila entre os dois plos. Nos neurticos isso mais extremado do que nas pessoas normais, mas todos passam por dias em que se sentem ningum e dias em que esto no topo do mundo. Essa a oscilao normal e poder-se-ia dizer que uma personalidade normal quando a auto-estima se aproxima daquilo que a pessoa , do que conseguiu realizar, das caractersticas do ambiente, etc. Mas trata- se realmente de algo muito indefinido. Qualquer falta de equilbrio nesse aspecto, abaixo ou acima do nvel certo, provoca uma irritao no ambiente. Para saber se uma pessoa tem uma inflao, basta observar se ele ou ela deixa os outros nervosos. Caso isso se d, a pessoa em questo est s% valorizando um pouco demais, ou ento se diminuindo pois a inflao liga-se a sentimentos de superioridade ou inferioridade. Este ltimo uma inflao velada. Quem se sente inferior, na verdade, tem ambio e
  38. 38. 38 quer ser mais do que , quer ser grande e sabe que no . A inferioridade tambm uma inflao e portanto irrita. s vezes as pessoas dizem: "Bem, a senhora sabe, no consigo. Por que a senhora acha que sim? No sou capaz, sou burro, no consigo pensar", e assim por diante. Ento eu respondo: "Pare com essas bobagens. Faa o que voc tem que fazer." Na verdade, essas pessoas esto se exibindo ao se considerarem inferiores e incapazes, o que muito irritante. Portanto a nica coisa que se pode fazer adotar uma perspectiva extrema perante Deus, por assim dizer e concluir que ningum sabe quem importante e quem no . Falamos sobre o perigo de inflao para a pessoa que atrai a projeo da estrela. Mas o que acontece com a pessoa que projeta sua prpria estrela o Self- sobre outrem? Vejamos primeiro o lado positivo. Se o Self estiver projetado, cai-se num tremendo estado de admirao pela pessoa sobre quem recaiu a projeo, um incrvel fascnio e devoo por aquela pessoa. A vantagem que se pode aprender algo quando se projeta o Self sobre algum realmente sbio ou superior. Esse o segredo de muitas curas milagrosas; as pessoas projetam o Self sobre uma personalidade com poderes teraputicos e devido a seu fascnio e sua f so curadas de doenas psicolgicas ou psicossomticas. De modo que essa projeo funciona como um veculo para a cura. O mais comum, porm, que essa fascinao seja negativa e acabe levando a pessoa a infantilmente abdicar de si mesma e curvar-se perante outrem, cultuando o grande lder, o grande guru espiritual ou seja l quem for. Com essa projeo a pessoa perde-se e permanece infantil. Quem est nessa situao costuma ser fantico em sua admirao, defendendo o outro dos seus inimigos e usufruindo da glria do seu mestre atravs de uma identificao. A projeo os poupa de fazerem um esforo prprio. O grande homem ou a grande mulher faro tudo por eles, e sua tarefa resume-se a aplaudir e admirar. Eles no fazem esforo algum para se tornar mais inteligentes, mais esclarecidos ou independentes. Uma projeo desse tipo acaba aniquilando a personalidade. Naturalmente, isso tambm depende da pessoa sobre quem recai a projeo do Self. Se esta tiver uma inflao e manipular o poder para incentivar admiradores e seguidores, as conseqncias sero devastadoras. No Oriente h mestres que conhecem muito bem os perigos da
  39. 39. 39 dependncia infantil e no aceitam a projeo -eles remetem os novatos e discpulos de vota a seu prprio trabalho interior. A psicologia individual costuma refletir-se na sociedade. O que pode ento ocorrer quando todo um grupo coletivamente projeta o Self num nico indivduo? Bem, nesse caso voc tem monarquias ou ditaduras. Os reis de todas as pocas, chegando at o chefe de uma tribo primitiva. So os portadores do smbolo do Self. A vantagem que essa tribo ou povo tem um smbolo unificador, que agrega as pessoas. Esse tipo de projeo de um smbolo vivo do Self corresponde a uma necessidade profunda do ser humano. por essa razo que o rei deve ser virtuoso e generoso. Ele deve ostentar todas as qualidades de um homem superior. Se ele de fato as possui ou no outra questo espera-se que ao menos ele as exiba. O estudo da histria do poder mostra que esse fenmeno atinge nveis profundos. Os membros de tribos primitivas acreditam que o rei, ou aquele a quem chamam chefe, encarna a prpria vida da tribo; portanto, caso se torne impotente, ele morto. Caso contrrio, a tribo inteira ficaria impotente e a Terra perderia a fertilidade. O rei a garantia da vida. Se adoecer, um chefe primitivo executado, pois no se pode ter um rei invlido. Ele o princpio vital, a encarnao do princpio divino e totmico da tribo ou seja, um smbolo projetado do Self. E como essa necessidade existe, quando as monarquias foram abolidas ditadores como Napoleo ou Hitler receberam a projeo. Isso indica que as pessoas tm necessidade de projetar o Self sobre alguma figura de liderana. Mas esse gesto infantil e s ocorre porque queremos permanecer infantis. No queremos assumir a responsabilidade. A democracia uma tarefa difcil, porque atribui responsabilidade poltica ao indivduo e a maioria no quer assumi-la. Aqui na Sua, por exemplo, apenas 25% da populao vota. O resto no quer ser incomodado. Esses no querem dor de cabea preferem achar que o Estado-pai resolver as coisas para eles. "Afinal, dizem eles, temos um grupo de lderes, que so figuras paternas, que so o Self, e eles faro tudo certo." Tudo se resume a preguia mental e psicolgica. Preguia... ? Quando as pessoas tentam fugir dos seus problemas, voc deve em primeiro lugar perguntar se no por preguia. Jung certa vez
  40. 40. 40 observou: "A preguia a grande paixo da humanidade, maior at que o poder, o sexo ou qualquer outra coisa." Parte 3 Sonhos da nossa Cultura Captulo 5 A Escada para o Cu "Os cristos costumam perguntar por que Deus no lhes fala, como se cr que fazia no passado. ...Estamos to emaranhados e cativados por nossa conscincia subjetiva que nos esquecemos do antiqssimo fato de que Deus fala especialmente atravs de sonhos e vises. Os budistas descartam o mundo de fantasias inconscientes, alegando que no passam de iluses inteis; os cristos colocam sua Igreja e sua Bblia entre eles e o prprio inconsciente; e os intelectuais racionais ainda no sabem que sua conscincia no sua psique inteira.... Mas se um telogo realmente cr em Deus, com que autoridade pode afirmar que Deus incapaz de falar atravs dos sonhos?" CG. Jung, O homem e seus smbolos. Na virada do sculo, os pioneiros da psicologia profunda no descobriram a importncia dos sonhos. Eles a redescobriram. Muitas civilizaes antigas levavam extremamente a srio seus sonhos. Por ironia, muita gente que hoje rejeita os sonhos como algo sem sentido, sem saber aceita e segue valores espirituais, crenas e tradies que se originam diretamente dos sonhos de indivduos que viveram h milhares de anos. Durante toda a histria religiosa da nossa cultura judeu-crist os sonhos tiveram um papel central na determinao do destino da humanidade. Eles eram tidos como a voz de Deus. Dra. Von Franz, gostaria de dar prosseguimento abordagem simblica da interpretao dos sonhos examinando alguns sonhos bblicos. Talvez a senhora pudesse nos explicar de que forma esses smbolos podem ser entendidos hoje em dia, assim como eram pelos povos antigos.
  41. 41. 41 Em primeiro lugar, um sonho que determinou o curso da histria judaica, o da escada de Jac: "E Jac teve um sonho: Eis que uma escada se erguia sobre a Terra e seu topo atingia o cu, e anjos de Deus subiam e desciam por ela! Eis que o Senhor estava de p diante dele e lhe disse: 'A Terra sobre a qual dormiste, eu a dou a ti e tua descendncia e todos os cls da Terra sero abenoados por ti e por tua descendncia. Eu estou contigo e te guardarei em todo lugar aonde fores.' " O sonho de Jac um dos exemplos que telogos usam para justificar que os sonhos devem ser levados a srio. H outros na Bblia que foram tidos como prova de que Deus envia sonhos. Esses telogos chegam mesmo a falar de sonhos enviados por Deus. Quando o sol comea a se pr, Jac chega perto de um lugar chamado Har. Anoitece, ele se deita e coloca sob a cabea uma pedra, como travesseiro. Esse lugar especfico de novo mencionado no fim do texto; Jac diz que l a verdadeira casa do Senhor. Esta uma das mais antigas crenas da humanidade, de que na paisagem h certos lugares onde se pode estabelecer comunicao com as divindades superiores ou inferiores. Por exemplo, uma fenda escura ou uma abertura no cho podiam ser encaradas pelos povos primitivos como entrada para o mundo subterrneo, onde possvel comunicar-se com os deuses inferiores. o lugar onde os mortos desaparecem ou de onde emanam as almas das crianas e assim por diante. Outros locais, especialmente o topo das montanhas, permitem o contato com os deuses superiores Moiss no Sinai, por exemplo. No cume dos montes fica-se mais prximo dos deuses. por isso que Zeus vive no Monte Olimpo. Na Grcia, todos os deuses e deusas viviam em altas montanhas; em pases planos, em outros lugares de algum modo especiais. Ocorre que Jac no sabia que esse era um lugar sagrado. Ele concluiu a partir do sonho: "Este lugar em que me encontro deve ser sagrado porque esse sonho veio a mim." Isso toca um mistrio que ainda no solucionamos, ou seja, projetamos nossa alma na paisagem. H no mundo uma completa geografia da alma. Cada nao e cada civilizao tem uma geografia desse tipo. Como dissemos, h lugares onde se faz contato com os deuses de cima e de baixo, lugares onde h bons ou maus espritos.
  42. 42. 42 como se a psique inconsciente do homem original se espalhasse por toda a paisagem. H lugares capazes at de nos arrepiar. Os romanos ainda acreditavam que cada lugar tinha um esprito, a que chamavam genius loci. Quando, por exemplo, construam uma casa ou faziam um jardim, colocavam no local uma estatueta ou um smbolo flico para representar o esprito do lugar: "Que o esprito do lugar seja benevolente para mim." Mesmo hoje em dia, se atravessar uma paisagem com o corao aberto, ver que em alguns lugares voc se sente bem e gostaria de ficar, mas em outros voc no se sente bem e gostaria de deix-los. E voc no sabe por qu. O mesmo acontece numa casa. At os animais domsticos tm seu cantinho favorito onde gostam de se deitar, e outros que evitam mesmo que a voc paream convenientes. Pode-se raciocinar e dizer que porque h uma corrente de ar ou algo do gnero, mas nem sempre assim. s vezes no h uma explicao racional. Os animais simplesmente se sentem psiquicamente confortveis em alguns lugares e no em outros. E ns tambm somos assim. Temos nossos cantinhos favoritos e no gostamos que algum se sente l. Somos exatamente como os ces. Jac foi dar num lugar assim, um local sagrado onde sua alma, psicologicamente falando, podia abrir-se num sonho influncia divina. Ele ps uma pedra sob a cabea e dormiu. A pedra um dos mais antigos smbolos do sagrado. O estudo dos povos aborgines e as escavaes arqueolgicas revelam que em suas origens o homem provavelmente cultuava pedras. Acreditava-se que algumas tinham poderes sagrados. Por exemplo, ainda hoje o aborgine australiano acredita que os espritos dos deuses ancestrais vivem em certas pedras; se uma mulher passar perto de uma delas, ela conceber. O beb emana dessas pedras e penetra em seu tero. O mesmo pode ser dito dos germnicos. Eles acreditavam que as almas dos recm-nascidos provinham das pedras tumulares das sepulturas dos ancestrais. Os ancestrais passariam das pedras para o tero das mulheres e as impregnariam. Portanto, a pedra o ponto de origem da vida. muito semelhante estrela; a substncia eterna do ser humano foi projetada na pedra. Com a pedra sagrada sob a cabea como uma espcie de fetiche que o ligava ao Alm, Jac adormeceu ao pr-do-sol. A hora do poente pode ser interpretada como dormir, o apagar-se da conscincia. Ele penetrou profundamente no inconsciente e nesse instante viu uma
  43. 43. 43 escada que conduzia ao cu. A famosa escada de Jac, pela qual anjos sobem e descem, simboliza uma conexo contnua com o reino dos deuses. Por exemplo, em sua iniciao os xams sobem at o que dizem ser o cu, embora na realidade seja uma altura de apenas alguns metros. A rvore, escada ou corda na qual sobem sua conexo com o reino espiritual, o mundo dos deuses. Alm disso, os curandeiros do Tibete e da antiga China eram chamados Mestres da Corda porque apenas eles podiam fazer a conexo, subindo ao cu. Em outros lugares subia-se numa rvore. Cada elemento era apenas um meio para subir, passo a passo, e fazer uma conexo com o mundo divino. Na Renascena, j no sculo XVII, a escada de Jac foi interpretada simbolicamente como sendo os sons e vogais da fala humana, ou as diferentes qualidades do mundo, ou ainda os diferentes nmeros do mundo. A idia bsica de diferentes sistemas de pensamento foi projetada na escada. Mas em todos esses casos, ela simbolizava uma conexo contnua e constante com os poderes divinos do inconsciente. Poderamos dizer que o prprio sonho uma escada. Ele nos liga s profundezas desconhecidas da psique. Cada sonho , por assim dizer, um degrau de uma escada. Naquele lugar sagrado o Senhor prediz a Jac seu futuro. Naquela poca, os sonhos eram usados especialmente para prever o futuro e o Senhor aqui prediz a Jac que ele e seus descendentes se espalharo pela Terra e que o Senhor estar com eles. Essa confirmao de que Deus est com ele d ao