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O livro negro do cristianismo

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2. O LIVRO NEGRO DO CRISTIANISMO Jacopo Fo Sergio Tomat Laura Malucelli Ediouro 2007 3. Sumrio INTRODUO CAPTULO 1 CAPTULO 2 CAPITULO 3 CAPTULO 4 CAPTULO 5 CAPTULO 6 CAPTULO 7 CAPTULO 8 CAPITULO 9 CAPTULO 10 CAPTULO 11 CAPTULO 12 CAPTULO 13 EPLOGO 4. INTRODUO Os cristos comem criancinhas? de Jacopo Fo Acho que, em parte, devemos tambm ao cristianismo o fato de hoje o mundo parecer menos desumano, sdico e violento do que no passado. Por dois mil anos, milhes de crentes tentaram de todas as maneiras testemunhar a palavra de paz e amor que Jesus pregava. Viam- se crentes nas cabeceiras dos doentes, recolhendo rfos pelas ruas, curando os feridos depois das batalhas e saques. Havia cristos, como So Francisco, que davam casa e conforto aos que eram devorados pela lepra e comida a quem morria de fome. E muitos como ele atravessaram as linhas de frente das batalhas para promover a paz entre os exrcitos. Existiam muitos fiis que socorriam os sobreviventes das inundaes, dos terremotos, das fomes. Havia ainda cristos que tentavam impor um limite brutalidade contra os escravos e servos da gleba oprimidos pelos possessores. Existiram cristos que se expuseram abertamente a fim de obter a graa para um inocente condenado sem provas, apenas por fanatismo religioso. Viram-se sacerdotes que construram comunidades de ndios e morreram com eles quando os conquistadores catlicos decidiram que se agrupar em comunidades igualitrias e no pagar impostos constitua um crime contra Deus e a Coroa. Existiram sacerdotes que fundaram cooperativas e escolas para trabalhadores, que organizaram caixas de assistncia mtua e ajudaram judeus e ciganos perseguidos a fugir... Mas essas pessoas, que por dois milnios contriburam enormemente para melhorar a condio humana e civil dos mais fracos, raramente faziam parte dos vrtices da Igreja. Como aconteceu com todas as religies do mundo que se tornaram "cultos do Estado", os centros de poder das principais igrejas crists foram conquistados por indivduos inescrupulosos e maliciosos, dispostos a usar a f e o misticismo com o nico objetivo de obter riqueza e autoridade. 5. claro que no se pode generalizar: existiram homens religiosos com grandes incumbncias na esfera eclesistica, que agiram com justia e notvel honestidade, e que sobretudo eram partidrios colocando em risco at mesmo a prpria vida do direito dignidade e sobrevivncia dos pobres, golpeando, com palavras e atos concretos, "os ricos bem nutridos e poderosos, inimigos de Cristo e dos homens" (de uma homilia de Santo Ambrsio). Mas tambm verdade que, por sculos, os papas continuaram vendendo os cargos religiosos a quem oferecia mais, e para ser ordenado bispo bastava pagar, no era necessrio nem ser padre. Por dinheiro, Jlio II consagrou cardeal um rapazinho de 16 anos. Assim, no final das contas, muitos enganadores conseguiram at chegar a ser eleitos papas e macularam suas vidas com crimes horrendos. O papa Woityla pediu perdo a Deus pelos pecados cometidos no passado por aqueles que representavam a ou pertenciam Igreja. Mas, por maior que seja a lista dos atos nefastos cometidos, no podemos pretender que ela seja exaustiva. Ento, demo-nos o trabalho de reunir o maior nmero de documentos que produzam uma idia menos vaga do "pecado" que maculou a Igreja. Ao realizar esta pesquisa, deparamo-nos com um quadro de traos chocantes, povoado com um nmero inacreditvel de episdios por vezes grotescos, mas sempre trgicos. As histrias que contaremos no se encontram em todos os livros. Ao contrrio, os textos que narram esses fatos (salvo raras excees) foram colocados no limbo por especialistas. Mas por que embarcamos em tal aventura? Decerto, no por um anticlericalismo doentio. Hoje, at mesmo no clero inaugurou-se um debate muito frtil sobre a pesquisa histrica do percurso das religies. Em toda parte, nascem grupos de fiis que tentam pr em prtica a palavra de Jesus e constroem solidariedade, liberdade, paz, superando obstculos que ainda se interpem criao de um mundo onde a vida anterior morte tambm seja digna de ser vivida. Mas, para que essa renovao seja profcua, indispensvel mergulhar profundamente no clima histrico, poltico e religioso que determinou o sacrifcio de tantos mrtires, vtimas da parte corrupta e autoritria do clero, muitas vezes com o auxlio dos grupos 6. no poder. Aquela conscincia e aquela cultura, capazes de impedir que tais horrores se repitam, s podem ser construdas por meio da anlise e do discernimento da natureza e gravidade dos abusos. Este livro dedicado a todos os cristos e aos homens de boa vontade das outras crenas. Tambm dedicado aos ateus, que, exatamente por no acreditarem, tm a obrigao moral de possuir um profundo senso religioso da vida. Jesus amava as mulheres Jesus pregava o amor, a fraternidade e a piedade em uma poca em que esses sentimentos muitas vezes eram considerados infames sinais de fraqueza. Os Evangelhos nos contam que, dentre seus mais estimados seguidores, na primeira fila estavam as mulheres. Os evangelistas tambm narram como Jesus desprezava a riqueza e condenava veementemente aqueles que tentavam fazer da f uma mercadoria. Esta filosofia rapidamente colocou os cristos contra a cultura e os poderosos da poca, e as perseguies logo comearam. Mas apenas trs sculos aps a crucificao do Messias, o cristianismo se tornou a religio oficial do Imprio Romano, o que significa que nenhum sdito podia professar outra crena, sob pena de cruel perseguio e, muitas vezes, o patbulo. Como possvel que o mesmo Imprio que crucificara Jesus tenha decidido que o cristianismo seria a religio do Estado apenas trezentos anos depois? um salto abissal. Para entender isso, preciso analisar algumas caractersticas do Imprio Romano. A escola encheu nossas cabeas de histrias sobre generais geniais e legisladores brilhantes. Mas Roma tambm era outra coisa. As mulheres eram consideradas animais de propriedade dos pais e maridos, que tinham o direito de bater nelas e mat-las. Uma mulher romana digna era aquela que, assediada por um malfeitor, tirava a prpria vida. No tanto para salvar a prpria honra, mas para glorificar a do marido. As crianas, na escola, conheciam bem o chicote e os professores tinham exemplares de vrias formas e tamanhos pendurados na sala de 7. aula. Como acontece ainda hoje em alguns lugares do planeta, em Roma, tambm, os bebs recm-nascidos do sexo feminino muitas vezes eram sufocados ou abandonados. As recm-nascidas abandonadas com mais sorte, muitas vezes, eram pegas por vendedores de escravos, que as criavam e, aos 5 ou 6 anos, comeavam a prostitu-las. Jlio Csar no pode, no entanto, ser considerado o inventor do extermnio em massa antes dele, conhecemos outros matadores extraordinrios (hititas, assrios, babilnios) , mas o divino Jlio com certeza pode ser eleito o aperfeioador emrito do genocdio organizado. Em De Bello Gallico, explica como organizou e lanou a horda de bandidos gauleses e germnicos contra o povo eburone, culpado de no querer se sujeitar ao Imprio, oferecendo aos criminosos asilo e proteo em seus acampamentos fortificados. O futuro imperador depois narra, com certo prazer, como conseguiu aplicar toda espcie de infmias, traies e armadilhas, at eliminar definitivamente da face da Terra a raa dos eburones.1 Foi o primeiro comandante a matar todos os habitantes de uma cidade, incluindo crianas, para puni-los por ter resistido2 (Moiss, pelo menos, depois de conquistar a cidade de Madian, poupou as mulheres virgens).3 Por sculos, os romanos se divertiram vendo prisioneiros de guerra lutando entre si nos circos. Em um nico ms, o imperador Diocleciano fez quarenta mil homens se matarem no Coliseu, mais de mil por dia, enquanto uma multido exaltada bebia vinho misturado com mel e chumbo, fumava pio, fazia negcios e copulava com prostitutas e prostitutos, na maioria pr-adolescentes. A quantidade de sangue e de rgos esquartejados no os incomodava e em parte era coberta pelo fedor de vmito, j que os romanos, para continuar se enchendo de comida e bebida, tinham o hbito de enfiar dois dedos na garganta para vomitar o que acabavam de ingerir. O cristianismo fora maltratado cruelmente e sofria havia mais de um sculo as perseguies do poder imperial. Os cristos eram arrastados at as arenas, onde eram massacrados entre os gritos e as risadas de uma multido de apaixonados pelo genocdio ldico. Ento, de repente, os 8. perseguidores se tornam paladinos da Igreja. Teologia, rituais, interpretaes do Evangelho so cuidadosamente transformados e adaptados linguagem e ao pensamento do poder romano. O cristianismo no redime quem havia martirizado os primeiros cristos, e sim se limita a servir a eles. As histrias sobre as converses dos imperadores quase sempre so feitos colossais. Constantino aquele que adota o cristianismo como religio oficial do Imprio. O mesmo imperador que mandou matar o prprio filho, a mulher, o sogro e o cunhado. Reza a lenda que Jesus apareceu para ele e lhe prometeu vitria na batalha em troca da adoo do cristianismo como nica religio do "mundo civilizado" e do uso do smbolo da cruz, alado de forma triunfante na batalha. Naturalmente, nem todos os seguidores de Jesus concordaram com esse pacto, que implicava uma verdadeira renncia aos valores cristos fundamentais. E, ento, um dos primeiros gestos cristos de Constantino foi perseguir todos os cristos que seguiam o Evangelho literalmente e, assim, forosamente, estavam em conflito com os devotos do poder. Um sem-nmero deles foi morto, outros tantos acabaram no exlio, desprovidos de qualquer bem, outros foram reduzidos escravido. Lutas fratricidas Os primeiros sculos do cristianismo so marcados por contnuas investidas contra os cristos que no aceitaram os ajustes e as interpretaes dos ditames do Filho de Deus. A elas se alternam lutas pela diviso do poder entre papas e imperadores, papas e antipapas, papas e bispos, bispos e bispos, em uma sucesso de conspiraes, cismas e lutas que no excluam a fora fsica. quase impossvel reunir todos os acontecimentos sanguinrios que primeiro assolaram a Europa e, depois, o mundo, e que nasceram de conflitos pelo poder nos quais a Igreja se interps entre as foras combatentes. Milhes de pequenas conspiraes, guerrinhas e ameaas que ningum nunca contou. Neste livro, limitamo-nos a citar os eventos mais importantes, mas confiamos na imaginao do leitor para completar o quadro da situao da f naquela poca. Os nveis mximos de fria eram atingidos exatamente quando se devia sufocar o renascimento das idias originais de Jesus. Elas nunca deixaram de acordar as pessoas para a dignidade e 9. a celebrao do valor coletivo do amor cristo. O que testemunha esse poder extraordinrio da palavra de Jesus o surgimento, durante sculos aps seus ensinamentos, das incrveis utopias sociais e comunitrias, que funcionavam muito bem at a chegada dos soldados do papa e do imperador, excepcionalmente reunidos para massacrar os cristos que viviam em comunidade, sem autoridade ou impostos. No ano de 476, o Imprio Romano do Ocidente, h tempos j corrompido e devastado pelas lutas de poder, deixa de existir at oficialmente. Os "brbaros" zinhos, confiantes em seu valor em sua homogeneidade social, chegam em ondas, mas logo so arrebatados pela febre da traio e da desconfiana. Nenhum imprio resiste muito tempo. Mas entre as lutas religiosas e polticas, amplificadas pelas invases "brbaras", pode acontecer que um rei trado por seus sditos e abandonado pelos mercenrios decorra aos camponeses, oferecendo a eles liberdade e a propriedade da terra, e obtendo em troca exrcitos invencveis.4 O envolvimento dos camponeses na poltica, a exploso do artesanato, das manufaturas, da cultura dos ofcios e da inveno de novas tcnicas levam o povo a amadurecer uma idia mais digna de si prprio e um senso de justia mais profundo. Assim, por volta do ano mil, este novo modo de conceber e viver o mundo se funde ao que resta das idias do cristianismo primitivo. Desenvolvem-se movimentos que unem a idia do retorno ao cristianismo puro e a vontade de organizar uma sociedade sem rei, generais ou escravido. Basicamente, a populao dos fracos comea a se rebelar contra o poder sagrado e abenoado dos nobres patres, inspirados pelo indispensvel clero. Eles tambm descobrem que os poderosos, como guerreiros profissionais, no so muito valorosos: os artesos e camponeses reunidos na comuna, armados de lanas e bem treinados, muitas vezes conseguem abat-los como a fantoches. Hereges E j que os nobres no servem para nada, por que no se livrar deles? E para que servem os padres, que muitas vezes so bispos e condes 10. ao mesmo tempo? Ningum mais acredita na santidade deles, j que, sob as vistas de todos, cometem todo tipo de pecado. E assim nasce a idia de que os sacramentos, se administrados por pessoas indignas, no tm nenhum valor. "Ignorem o indigno exemplo deles", grita logo um telogo "sigam o que dizem os ministros de Deus, no o que eles fazem". No sculo X, comeam a nascer em toda a Europa grupos de fiis que pregam e aplicam a comunidade do bem, a fraternidade, e recusam a autoridade eclesistica. Combatendo esses movimentos, as hierarquias eclesisticas e nobres (que muitas vezes so a mesma coisa) se organizam para exterminar os habitantes de regies inteiras, condenando os sobreviventes ao suplcio pblico. No pice dessa perseguio, muitas pessoas so torturadas e assassinadas de formas horrendas apenas por terem apoiado a tese de que Jesus e os apstolos no possuam riquezas ou bens materiais. O mero fato de ter uma Bblia em casa j bastava para levantar as suspeitas de se ser um inimigo da Igreja. Se essa Bblia ainda fosse traduzida para o latim vulgar, ou seja, uma lngua entendida pelo povo, e no tivesse autorizao, a condenao por heresia era certa. Os cristos comunitrios queriam se inspirar no Evangelho, sem intermedirios. E muitas, muitas vezes, pagaram por isso com a prpria vida. Um martrio que enfraquece aquele dos primeiros cristos sob o Imprio Romano. Contra os hereges, em dado momento, chegou a ser inventado um instrumento repreensivo de perfeio diablica: a Inquisio. Os inquisidores eram, ao mesmo tempo, policiais, carcereiros, acusadores e juzes. Qualquer besteira j era suficiente para acabar em suas garras: um boato, uma carta annima, um comportamento ligeiramente diferente do normal. At ser devoto demais era considerado comportamento duvidoso. O suspeito era considerado culpado se no conseguisse provar a prpria inocncia. E quem testemunhava em favor de um suposto herege podia, por sua vez, tornar-se suspeito e sofrer um processo. Na verdade, as perseguies aos hereges comeam logo depois da criao da Igreja de Estado e terminam no sculo XVIII, com as ltimas ondas de caa s bruxas. As histrias dos processos e das perseguies realizadas pela 11. organizao eclesistica e pelo "Santo Tribunal" so to absurdas e contraditrias que no nos permitem nenhuma anlise verossmil. impossvel fazer um balano confivel dessas guerras e perseguies, e decerto milhes de pessoas foram assassinadas em mais de mil anos de crueldade desumana. Os exrcitos cristos E, como se no bastasse, foram os papas que ordenaram as Cruzadas e, posteriormente, a colonizao das "terras novas" e os massacres que se sucederam. Mas vejamos em ordem. Primeiro, foram as tentativas de invadir a Palestina, o Lbano e a Sria, com o pretexto de libertar o Santo Sepulcro. E m Storici arabi alle crociate,5 Gabrieli rene os testemunhos de vrios cronistas medievais no Oriente Mdio. Por meio dessas declaraes, pudemos saber que, at depois da metade do sculo XII, ou seja, antes do comeo das invases dos franco-cruzados, milhares de cristos visitavam livremente a Palestina e todos os lugares onde Jesus Cristo vivera e pregara. As Cruzadas foram um projeto criminoso em todos os aspectos, e, mal nos questionamos sobre a sucesso de fatos que levaram Terra Santa turbas desenfreadas aos gritos de "Assim quer Deus!", finalmente vemos aflorar a real motivao da campanha que levou So Francisco a tal indignao a ponto de exclamar: "Vim converter os infiis e descobri que os que precisam de f e noo de piedade no so os guerreiros muulmanos, mas os soldados de Cristo e, antes de mais nada, os bispos que os conduzem!".6 Alm do mais, os "exrcitos de Deus" talvez tenham matado mais cristos do que infiis. Os exrcitos cristos que se dirigiam Palestina tinham um longo caminho a percorrer, sem provises ou acampamentos organizados. Portanto, tinham como costume obter o que precisavam saqueando as cidades crists pelas quais passavam durante a viagem. Por exemplo, a famosa "Cruzada dos Mendigos", em 1096, que causou o massacre de quatro mil pessoas apenas na cidade hngara de Zemun. No mesmo ano, o contingente guiado pelo nobre alemo Gottschalck trucidou mais de dez mil pessoas culpadas de terem-se deixado dominar pelos saques. Alguns homens partiram para as Cruzadas 12. seguindo os passos de um pato! Estes devotos acabaram se unindo a uma Cruzada guiada por um ilustre salteador chamado Emich, que nunca chegou Terra Santa, limitando-se a um tour durante o qual massacrou milhares de judeus, espoliando-os de seus bens. Mas outros cruzados, que participaram de expedies seguintes, tambm decidiram se preparar para a guerra contra os infiis muulmanos comeando a massacrar infiis judeus desarmados. Em 1212, trinta mil meninos da Europa Central partiram para as Cruzadas sozinhos e sem armas. A maior parte desse "exrcito" embarcou em Marselha acreditando partir para libertar o Santo Sepulcro. Em vez disso, os garotos (pelo menos os que sobreviveram aos contratempos da viagem) foram vendidos aos turcos como escravos. A Quarta Cruzada, realizada em 1202, operou uma pequena devastao e, em vez de ir at a Terra Santa, tomou de assalto a perfeitamente crist Constantinopla, conquistada por meio de saques e do massacre da populao. No final das contas, quem ganhou com as Cruzadas, com certeza, no foram os soldados e seus capites, e sim os mercadores das Repblicas Martimas italianas e a Igreja de Roma. A volta das Cruzadas tambm foi uma aventura trgica. Os cruzados muitas vezes tinham que entregar aos transportadores todo o fruto de seus saques e roubos. Sabe-se, tambm, que os cruzados, at pela forma como eram recrutados, no eram brilhantes em termos de disciplina e organizao. Seus acampamentos eram erguidos sem nenhum cuidado estrutural. Em poucas palavras, eles no tinham reas de higiene, no existiam enfermarias nem mdicos organizados, e a cada chuva as barracas eram inevitavelmente carregadas pelas guas misturadas urina e ao estreo. Resumindo: Deus no estava com eles e os castigou matando vrios de clera, infeco gastrointestinal e doenas venreas locais e exticas. A propsito, no podemos esquecer a grande quantidade de prostitutas que seguiam o exrcito. A isso acrescentemos o fato de que os cruzados no costumavam tomar mais do que dois banhos por ano e muitos fizeram a promessa de no tomar banho at a libertao do Santo Sepulcro. Ignorando as leis alimentares dos povos que j viviam h anos 13. naquele clima, enchiam-se de carnes de porco assada ou salgada e se embebedavam da manh at a noite. O resultado foi que, s epidemias normais em voga, acrescentaram-se outras ainda mais devastadoras. Alm disso, como j lembramos, os pobres coitados eram tratados por mdicos e cirurgies cuja ignorncia s se igualava a seu fanatismo. O resultado era que ser ferido em batalha ou contrair uma doena grave garantia, depois do tratamento mdico, a certeza da morte inevitvel. Sobre esse assunto, transcrevemos o comentrio de um mdico oriental cristo durante a consulta de um cavaleiro ferido e de uma mulher doente: ...Apresentaram-me um cavaleiro que tinha um abscesso em uma perna e uma dona aflita pelo definhamento. Fiz um emplastro no cavaleiro, e o abscesso abriu e melhorou; prescrevi uma dieta para a mulher, com pouco tempero. Quando eis que chegou um mdico franco, que disse: "Esse a no sabe curar ningum". E, dirigindo-se ao cavaleiro, perguntou: "O que prefere, viver com uma s perna ou morrer com duas pernas?" Tendo este respondido que preferia viver com uma s perna, ordenou: "Tragam- me um cavaleiro corajoso e um machado afiado". Chegaram o cavaleiro e o machado, e eu estava ali presente. O mdico colocou a perna sobre um pedao de madeira e disse ao cavaleiro: "Desa-lhe uma machadada, para cortar de pronto!" E, diante de meus olhos, deu a primeira machadada e, no conseguindo arrancar a perna, deu a segunda; a medula da perna jorrou e o paciente morreu na hora. Aps examinar a mulher, ele disse: "Essa a tem o demnio na cabea, apaixonado por ela. Cortem-lhe os cabelos",. Foram cortados, e ela voltou a comer o alimento deles, com alho e mostarda, e o definhamento aumentou. "O diabo entrou na cabea dela", sentenciou ele, e pegou a navalha e abriu a cabea dela em forma de cruz, extirpando o crebro at aparecer o osso da cabea, no qual esfregou sal... e a mulher morreu na mesma hora. Naquele momento, perguntei: "Ainda precisam de mim?" Responderam que no e fui embora, depois de aprender o que ignorava da medicina deles.7 Acrescente-se a isso o fato de que muitos cruzados eram aventureiros dispostos a entregar armas e provises ao inimigo em troca de 14. dinheiro, a vender a mulher para pagar dvidas de jogo, a trucidar companheiros para derrub-los. Muitos foram obrigados a partir para a Palestina, mais do que por um rompante de f, pela lmina que pendia sobre suas cabeas junto com uma sentena de enforcamento. E as suas no eram cabeas quaisquer. Muitas vezes, tratava-se de nobres falidos e ambiciosos que tinham como nico objetivo a riqueza pessoal e que no se detinham diante a nenhuma torpeza desde que concretizassem seus intentos. Viram-se batalhas entre exrcitos de cruzados rivais pela posse de uma cidade, alianas entre prncipes cristos e emires turcos. Muitos nobres cruzados permitiram que seus companheiros de armas fossem trucidados sem levantar um dedo, por questes de rivalidade. O modelo das cruzadas tinha feito escola. E, assim, quando o papa Inocncio III decidiu deter a heresia catara e valdense, decretou em 1209 uma verdadeira cruzada no sul da Frana, que durou vinte anos e massacrou dezenas de milhares de pessoas. Os ctaros eram culpados de propagar uma vida comunitria pacfica e solidria, respeitando os ensinamentos de Jesus e recusando-se a reconhecer "o poder por vontade de Deus" da Igreja. O pontificado de Inocncio III marca tambm o auge do poder temporal do papado. O papa passava a ser um soberano para todos os efeitos, e o Estado da Igreja torna-se uma verdadeira potncia europia. Como todos os soberanos, o bispo de Roma possua territrios e exrcitos, declarava guerra e realizava alianas. Vrios reinos se reconheciam como vassalos da Santa S e pagavam conspcuos tributos a Roma. Alm disso, o papa utilizava o prprio poder espiritual para orientar a poltica dos Estados a ele alinhados. Se um rei era excomungado, perdia automaticamente o direito de cobrar obedincia dos sditos e vassalos. Pode-se concluir, assim, que os soberanos cristos pensavam duas vezes antes de pisar no p da Santa S. Em suma, o papado acolheu por completo a herana criminosa do Imprio Romano. Houve at um papa, Jlio II, que encomendou uma armadura para conduzir seus prprios exrcitos nas batalhas. A Igreja escravista Chegando a este ponto, a Igreja, faminta por expanso, passou a 15. dedicar-se s conquistas coloniais. So os sacerdotes os primeiros colonizadores da frica negra. Encontramos padres, ao lado dos conquistadores espanhis, que massacraram os ndios da Amrica. Foram os padres que organizaram o comrcio de escravos. Na verdade, foi o prprio Estado da Igreja que ordenou, em 1344, a conquista das Ilhas Canrias. E, provavelmente, foi o bispo De Las Casas, aps a conquista da Amrica, que sugeriu que os indgenas, que no suportavam o trabalho massacrante e as doenas levadas pelos colonos, fossem substitudos por africanos.8 Assim, desde o incio de 1500, os missionrios da frica comearam a organizar a exportao de escravos para a Amrica, equipando os navios "missionrios" para tal fim. Fala-se de dezenas de milhes de amerndios mortos em batalha ou aprisionados, exterminados por doenas e pelo cansao. O desastre foi tamanho que se calcula que, s no Mxico, a populao tenha passado de 25 milhes de ndios, em 1520, a menos de um milho e meio em 1595. Calcular o massacre ocorrido com o comrcio de escravos impensvel. Fala-se de pelo menos vinte milhes de pessoas levadas para a Amrica. A expectativa de vida delas, a partir do momento do desembarque, era de sete anos. Mas, para cada negro que chegava Amrica como escravo, nove prisioneiros morriam durante a captura, a viagem at o porto de embarque ou a travessia.' Portanto, pode-se falar em 190 milhes de mortos. Mas a conta bem mais dramtica: as contnuas incurses dos escravistas por quase trezentos anos destruram a economia de vastas reas da frica, privando populaes inteiras de sua melhor mo-de-obra, o que fez milhes de pessoas morrerem de fome, epidemias e exausto. Era possvel percorrer centenas de quilmetros em meio s runas do que um dia foram civilizaes brilhantes e culturalmente evoludas e no encontrar um nico sobrevivente, apenas ossos que brilhavam sob o sol. O horror do colonialismo teve nos missionrios seus mais ferozes defensores. Estes se dedicaram a extirpar as religies tradicionais dos povos subjugados com a violncia e a tortura. Chegaram at a impedir que as crianas falassem sua lngua-me, punindo-as com castigos corporais. E para entender como os padres brancos podiam ser desumanos, 16. basta lembrar que muitas vezes eram enviados s misses sacerdotes manchados por crimes graves e que eram considerados indignos para realizar seu ofcio na Europa. Eles abenoaram todas as formas mais infames de apartheid. Em muitos pases da frica, por exemplo, os negros eram proibidos de comercializar com os brancos ou de cultivar hortalias ou cereais nas reas em que a monocultura dos latifundirios brancos era obrigatria. Plantar abboras custava uma das mos na primeira vez, um p na segunda e, na terceira, a cabea. A razo de tanta brutalidade era simples: assim, os nativos eram obrigados a se dedicar monocultura e a vender seu produto aos patres brancos em troca de comida. Ento, se quisessem sobreviver, teriam de vender aos brancos sem poder discutir o preo. Ou aceitavam ou morriam. E se analisarmos as condies em que muitos pases do Terceiro Mundo se encontram hoje, no poderemos deixar de ver, na misria e na violncia atuais, a marca de sculos de explorao. Na escola, no aprendemos nada sobre o colonialismo e o papel da Igreja nele. Os ingleses, por exemplo, especializaram-se no trfico de drogas, vendendo enormes quantidades de pio China. Por trs vezes, o imperador chins proibiu este comrcio e, por trs vezes, canhoneiros ingleses bombardearam os portos chineses para impor sua liberdade de vender droga. Foram as famosas Guerras do pio: em 1848, em 1856 e em 1858. E tenham certeza de que o chumbo dos canhes era abenoado. Finalmente, no podemos nos calar a respeito do papel que a Igreja teve ao apoiar o nazismo, o fascismo, o extermnio dos judeus, os massacres da Guerra Espanhola, e do suporte dado por boa parte do clero cristo a todas as mais infames ditaduras do planeta. Sacerdotes catlicos abenoaram os torturadores e os esquadres da morte no Chile, na Grcia, no Brasil, no Peru, na Bolvia, na Argentina, na Indonsia. E mesmo o papa Woityla mandou cartas demonstrando apreo e bnos a ditadores sanguinrios como Pinochet (que conheceu pessoalmente durante uma de suas vrias viagens). Dedico este livro ao meu pai, que desde que eu era pequeno me contava as loucuras dos cruzados e que ajudou enormemente na realizao deste livro. 17. PRIMEIRA PARTE O CRISTIANISMO: DE SEITA SUBVERSIVA RELIGO DO IMPRIO 18. CAPTULO 1 Os primeiros cristos e o advento de Paulo Jesus, profeta judeu Se Jesus, o "Cristo", era realmente o Messias esperado pelos judeus, o Deus feito Homem, como crem os cristos, uma questo de f para a qual no possvel dar uma resposta objetiva e definitiva. O homem Jesus provavelmente era um profeta judeu, um dos tantos pregadores que, na Palestina do sculo I d.C, anunciava e esperava o advento do Reino de Deus.1 O termo "Reino de Deus" no era uma metfora: Jesus e outros pregadores realmente achavam que Deus, ou um enviado seu, desceria Terra e criaria um novo ordenamento poltico-social, virando do avesso o que ns hoje chamamos de "relaes de classe" ("Os primeiros sero os ltimos, e os ltimos sero os primeiros.").2 Trs elementos importantes, pelo menos de acordo com os evangelhos cannicos, diferenciavam Jesus de outros profetas e pregadores de seu tempo, e talvez at de alguns de seus prprios seguidores: o fato de que Jesus no pregava a luta armada; a impacincia com relao exageradamente rgida observncia exterior dos preceitos judaicos, qual se contraps um estado de pureza interior "O que entra pela boca no torna o homem impuro, mas sim o que sai da boca, isto que torna o homem impuro!"3 ; a aceitao das mulheres entre seus seguidores, coisa impensvel nas escolas rabnicas da poca.4 Os primeiros cristos Os discursos de Jesus tinham evidentes implicaes sociais. Ele exaltava os desfavorecidos, os pobres, falava para Pessoas que os judeus conservadores consideravam "intocveis": coletores de impostos, adlteras, pagos, samaritanos (os samaritanos haviam realizado uma espcie de cisma dentro do judasmo e, portanto, eram odiados pelos judeus). Os apstolos e os primeiros seguidores de Cristo viviam em comunidade: "Todos aqueles que se tornaram crentes ficavam juntos e tinham tudo em comum; quem possua propriedades e bens os vendia e dividia com todos, de acordo com as necessidades de cada um".5 De acordo com as Sagradas Escrituras, o rico convertido Ananias entregou aos apstolos apenas uma parte de seus bens, escondendo o 19. restante. Por este grave pecado, ele teria morrido no mesmo instante.6 A doutrina de Paulo O cristianismo provavelmente teria uma histria bem diferente da que ns conhecemos se no tivesse cruzado seu destino um personagem complexo e misterioso. Saulo de Tarso, chamado de Paulo na Cilcia, era ao mesmo tempo judeu e seguidor da corrente dos fariseus, discpulo do grande mestre Gamaliel e cidado romano desde o nascimento.7 De incio, era um perseguidor convicto dos cristos, aprovando o apedrejamento do primeiro mrtir, Estvo. Ento, foi "iluminado na estrada para Damasco" e se converteu, trilhando uma rpida carreira dentro da incipiente Igreja crist, at obter o ttulo de "apstolo". Segundo alguns estudiosos, Paulo foi o inventor do cristianismo, aquele que deturpou os ensinamentos do profeta judeu Jesus e os transformou em uma religio universal.8 Com certeza, Paulo contribuiu mais do que qualquer outro para a difuso da nova religio, at mesmo entre os no-judeus e no interior das primeiras comunidades crists, opondo-se vigorosamente aos judeus- cristos, ou seja, queles que consideravam a observncia da lei mosaica requisito fundamental para que algum se tornasse cristo. Na Epstola aos Glatas, ele escreveu: "No existe mais judeu ou grego, no existe mais escravo ou liberto; no existe mais homem ou mulher, pois vocs todos so um s em Jesus Cristo".9 O escravo Onsimo levou a srio tais palavras, fugiu de seu mestre Filmon, rico proprietrio convertido exatamente por Paulo, e buscou refgio com o apstolo. Mas Paulo o mandou de volta ao "remetente", acompanhado de uma comovente carta em que chamava Onsimo de "filho" e convidava Filmon a trat-lo como "irmo".10 No sabemos se o rico Filmon aceitou o convite ou se matou o pobre Onsimo. Alis, esta era a pena prevista para os escravos fujes. Com certeza, Paulo considerava perfeitamente admissvel que um rico senhor de escravos aderisse ao cristianismo sem pagar o imposto da renncia aos bens terrenos. A igualdade que pregava valia no nvel espiritual, ou pelo menos 20. se operaria no final dos tempos, que muito provavelmente considerava iminente. Na Terra e no presente, as diferenas continuavam a existir, e era justo que assim fosse. Na Primeira Epstola aos Corntios (7, 20-24), Paulo sentencia: "Que cada um fique no estado em que foi chamado. Foste chamado sendo escravo? No te d cuidado; mas se ainda podes tornar-te livre, aproveita a oportunidade! Pois aquele que foi chamado no Senhor, mesmo sendo escravo, um liberto do Senhor; e assim tambm, o que foi chamado sendo livre, escravo de Cristo. Por preo fostes comprados; mas vos faais escravos de homens!" O conceito repetido em Efsios 6, 5: "Escravos, obedecei aos vossos senhores com devoo e temor, servi com solicitude, como se se tratasse do prprio Senhor, e no de homens". O que valia para os escravos tambm valia para as mulheres: "As mulheres sejam submissas a seus maridos como ao Senhor, pois o marido o chefe da mulher, como Cristo o chefe da Igreja, aquele que o salvador de seu corpo. E como a Igreja submissa a Cristo, assim tambm o sejam em tudo as mulheres a seus maridos".11 "Como em todas as comunidades de fiis, que as mulheres se calem nas assemblias, pois no lhes permitido falar; que estejam submissas, como diz a lei. Se quiserem aprender algo, que perguntem em casa, a seus maridos, pois no convm a uma mulher falar na assemblia."12 Se os primeiros apstolos tivessem se comportado assim, as mulheres dificilmente os teriam avisado da ressurreio de Cristo. E o conceito se repete na Primeira Epstola a Timteo (2, 11-15): "A mulher aprenda em silncio com toda a submisso. Pois no permito que a mulher ensine nem tenha domnio sobre o homem, mas que esteja em silncio. Porque primeiro foi formado Ado, depois Eva. E Ado no foi enganado, mas a mulher, sendo enganada, caiu em transgresso; salvar- se-, todavia, dando luz filhos, se permanecer com sobriedade na f, na caridade e na santificao, com modstia." Paulo, que para outros aspectos considerava a lei judaica superada (por exemplo, as proibies alimentares), no caso das mulheres, abriu uma exceo e retomou hbitos judaicos, como o costume de cobrir 21. a cabea nas cerimnias. "O homem no deve cobrir a cabea, pois a imagem e glria de Deus; a mulher, em compensao, a glria do homem. E, de fato, o homem no deriva da mulher, mas a mulher deriva do homem; nem foi o homem criado pela mulher, mas a mulher criada pelo homem. Por isso, a mulher deve usar na cabea um sinal de sua dependncia, por causa dos anjos [...] Julgai entre vs mesmos: conveniente que uma mulher ore a Deus com a cabea descoberta? No vos ensina a prpria natureza que indecoroso para um homem deixar o cabelo crescer, enquanto, para a mulher, o cabelo comprido uma glria? Pois a cabeleira foi-lhe dada no lugar do vu. Mas se algum quiser contestar, no temos esse costume, nem as Igrejas de Deus."13 No que diz respeito a outros aspectos da doutrina de Paulo, possvel examinar o hino caridade, talvez sua passagem mais conhecida, que diz: Ainda que eu falasse as lnguas dos homens e dos anjos, se no tivesse caridade, eu seria como o bronze que soa ou um sino que toca. E ainda que eu tivesse o dom da profecia e conhecesse todos os mistrios e toda a cincia, que possusse a plenitude da f capaz de mover montanhas, se no tivesse caridade, eu nada seria. E ainda que distribusse toda minha fortuna e entregasse meu corpo para ser queimado, se no tivesse a caridade, nada disso me adiantaria. A caridade paciente, benigna a caridade; a caridade no invejosa, no se vangloria, no tem soberba, no falta com o respeito, no busca seus interesses, no se irrita, no guarda rancor, no se alegra com a injustia, e sim se rejubila com a verdade. Tudo sofre, tudo cr, tudo espera, tudo suporta."14 E at um hino desinteressado pode, na verdade, conter segundas intenes. Paulo o insere dentro de uma dissertao sobre os "dons do esprito" (ou "carismas"), aos quais d uma espcie de classificao, deixando em ltimo lugar um misterioso "dom das lnguas". O que significaria? Para entend-lo, devemos voltar um passo atrs. Segundo os Atos, vejamos o que acontece aos apstolos no dia de Pentecostes, cinqenta dias depois da Pscoa da ressurreio: "De repente veio do cu um rudo, como se soprasse um vento impetuoso, e encheu 22. toda a casa onde estavam sentados. Apareceram-lhes ento umas espcies de lnguas de fogo, que se repartiram e repousaram sobre cada um deles. Ficaram todos cheios do Esprito Santo e comearam a falar em outras lnguas, conforme o Esprito Santo lhes concedia que falassem."15 No fica claro o que seria exatamente o dom das lnguas: nos Atos, descrito como a capacidade de entender e se expressar em todas as lnguas do mundo, mas tambm como uma fala incompreensvel, de "embriagados".16 Outras passagens do Novo Testamento levam a pensar em um estado de transe, que contemplava a emisso de sons e palavras de significado obscuro. Qualquer que seja a interpretao correta, na poca, tal acontecimento era considerado algo extraordinrio. Paulo, que no fazia parte do grupo dos primeiros apstolos, no recebeu o dom. Como escreveu o estudioso Gilberto Pressacco: "Na verdade, Paulo, que buscava e queria um reconhecimento oficial e geral de sua natureza de 'apstolo', no podia afirmar nem se vangloriar por estar entre aqueles que receberam o Esprito no Pentecostes, os quais se tornaram as pedras vivas que sustentaram o pilar da Igreja primitiva. Ele podia, no mximo, se gabar da experincia vivida na estrada de Damasco, uma revelao solitria, particular e, talvez, dbia para aquela Igreja que ele por tanto tempo perseguira (as Pseudoclementinas chegam a insinuar que se tratava de uma revelao do diabo, e no de Cristo). Definitivamente, a hostilidade de So Paulo s pode confirmar uma dolorosa sensao de inferioridade em razo da no-participao no acontecimento fundamental da Igreja, no qual fora dado um dom que ele no possua e que, no entanto, era freqente entre os primeiros cristos."17 Por isso, Paulo exaltava o amor como a maior de todas as virtudes. Mas, apesar disso, ele parecia ter pssimo gnio: durante uma viagem missionria, brigou com o companheiro Barnab de tal forma que os dois prosseguiram em direes diferentes; Barnab, por mar at Chipre, e Paulo, por terra, pela Sria e a Cilcia.18 E nas cartas no faltam alfinetadas nos outros apstolos. Ele chegou a acusar publicamente de hipocrisia Pedro, o chefe da Igreja. 23. Quem narra o episdio o prprio Paulo: "Mas quando Cefa (Pedro) chegou a Antiquia, eu me opus abertamente a ele, pois evidente que estava errado. De fato, antes que chegassem alguns amigos de Tiago, ele fazia as refeies junto com os pagos; mas depois que estes chegaram, comeou a evit-los e a se manter afastado, por medo dos circuncidados. E outros judeus tambm o imitaram na simulao, a tal ponto que at Barnab deixou-se atrair pela sua hipocrisia. Quando vi que no se comportavam corretamente, segundo a verdade do evangelho, disse a Cefa, na presena de todos: 'Se voc, que judeu, vive como os pagos, e no maneira dos judeus, como pode obrigar os pagos a viver maneira dos judeus?'"19 Aqui se acena o conflito entre os judeus-cristos, que consideravam um dever seguir a lei mosaica (que, entre outras coisas, tinha regras muito rgidas acerca dos alimentos e sua preparao), e aqueles que, ao contrrio, consideravam tal lei superada. Na prtica, Paulo criticava Pedro por ficar em cima do muro, tentando no desagradar nenhuma das duas faces. Mas o prprio Paulo, em outras ocasies, se comporta de maneira anloga: manda circuncidar um seguidor seu;20 quando os judeus-cristos o acusam de ter abandonado a lei mosaica, reage acentuando gestos exteriores de observncia aos preceitos judaicos;21 probe que se coma carne proveniente de sacrifcios pagos (muito impura para os judeus praticantes) se o ato "escandalizar" os outros comensais.22 Finalmente confessa: "Eu agi como judeu entre os judeus para ganhar os judeus; com aqueles que obedecem lei [judaica], tornei-me algum obediente lei, mesmo no o sendo, com o propsito de ganhar aqueles que o so. Com aqueles que no tm lei, tornei-me algum sem lei, mesmo no sendo alheio lei de Deus, ou melhor, seguindo a lei de Cristo, para ganhar aqueles que no tm lei. Tornei-me fraco com os fracos, para ganhar os fracos; fui tudo para todos, para salvar algum a todo custo."23 Apesar de seu zelo e de seu ativismo, as mulheres ainda falariam por muito tempo nas assemblias e, em alguns casos, teriam at "ditado leis". Muitos cristos no tiveram de esperar o juzo universal para tentar criar uma sociedade mais justa. 24. Em pouco mais de cem anos, o cristianismo se difundiu por toda parte, no Imprio Romano e alm. Havia comunidades crists na Europa, na sia e na frica. Os primeiros cristos eram escravos, libertos (ou seja, alforriados), mulheres, trabalhadores e artesos, na maioria das vezes de origem oriental e de lngua grega. Mas em suas comunidades no faltavam intelectuais, pessoas de posses e at expoentes das famlias patrcias.24 Por coerncia com a prpria f, no adoravam ou ofereciam sacrifcios s divindades romanas. Os primeiros cristos se consideravam cidados do Reino dos Cus e "estrangeiros" nesta Terra.25 To estrangeiros, que muitos consideravam pecado exercer funes pblicas. "Pergunte-se sobre o trabalho dos catecmenos", escrevia, por exemplo, So Hiplito de Roma, "se algum desfrutador de mulheres, ou sacerdote de dolos, ou gladiador, ou magistrado com gldio e manto, que deixe a profisso ou seja afastado [da Igreja] ".26 Vale notar que a profisso de magistrado colocada no mesmo patamar que a dos que desfrutam da prostituio ou dos combates ldicos. impossvel estabelecer com exatido o percentual de cristos entre os sditos do Imprio, mas certamente devia se tratar de um fenmeno de grandes propores. Tertuliano, um dos primeiros escritores latinos do sculo II, assim reprovava os magistrados romanos: "Poderamos ter lutado sem armas contra vocs, sem nos rebelarmos, mas apenas com nosso dissenso, com a hostilidade de uma secesso. Se, de fato, nos separssemos em grande nmero de vocs para nos refugiarmos em algum canto remoto da Terra, a perda de tantos cidados minaria sua dominao, punindo-a com a runa total. Ento teriam terror de sua solido, do silncio da natureza e do estupor de um mundo j morto, procurariam quem manda, mas teriam mais inimigos do que cidados."27 Um exagero, claro, mas com um fundo de verdade. As autoridades romanas reputavam subversivo qualquer movimento que agregasse longe de seu controle grupos populares e expoentes da aristocracia.28 Alm disso, consideravam a manuteno dos cultos tradicionais um elemento de estabilidade indispensvel prpria 25. vida do Estado, tanto que o sacrilgio e a no-observncia dos ritos constituam um crime comparvel traio. Enfim, temiam de forma extrema os perigos da secesso: "Roma nunca conseguiu se recuperar do susto da secesso dos plebeus no perodo republicano. O terror da secesso em Roma uma constante psicolgica que desempenha um papel histrico de notvel relevncia."29 Os cristos reuniam as caractersticas que o poder imperial temia, o que explica as perseguies peridicas das quais foram vtimas no curso de duzentos anos, de 112 at 311. Outro elemento caracterizava os cristos, pelo menos nos dois primeiros sculos: a espera de um apocalipse iminente. Deus desceria sobre a Terra e faria justia. Eles, os perseguidos, iriam se sentar em tronos direita do Pai, e de l assistiriam ao suplcio de seus dominadores. Mais uma vez, preciso dizer que esta e outras vises descritas por autores de origem crist no eram uma metfora, mas deveriam ser lidas literalmente. O no-cumprimento das profecias apocalpticas e a sucessiva "constantinizao" do cristianismo (ver os prximos captulos) transportariam essas esperanas para muito longe no tempo e no espao, a um local totalmente desligado deste mundo. Mas, apesar disso, nunca se conseguir "normalizar" completamente o cristianismo. Em cada perodo, haver pessoas ou movimentos, os "hereges", que se oporo transformao da Igreja em um aparato opressivo de poder e que tentaro implantar aqui na Terra o "Reino dos Cus", criando verdadeiras Igrejas alternativas. 26. CAPTULO 2 Constantino e a Igreja imperial Notas biogrficas Constantino nasce em Mesia (a atual Srvia), por volta de 274. Seu pai, Constando Cloro, era um oficial de carreira; sua me, Flvia Helena, concubina de Constncio, era uma albergueira, ou seja, uma subserviente funcionria da estalagem da estao postal. Constncio Cloro depois repudiou Helena para se casar com Teodora, filha do imperador Maximiliano, e, no ano de 293, entrou na tetrarquia (governo de quatro) criada por Diocleciano, primeiro com o ttulo de "csar" (vice-imperador), e, em seguida, em 305, com o de "augusto" (imperador pleno).1 Constantino participou de vrias campanhas militares durante os anos de juventude, primeiro a servio de Diocleciano, depois de Galrio e, finalmente, de seu pai. Quando Constncio morreu, em 306, os soldados aclamaram Constantino "augusto", desobedecendo as disposies emanadas de Diocleciano,2 dando um verdadeiro golpe de Estado. Seguiram-se seis anos de guerra civil entre os vrios pretendentes ao ttulo de imperador, entremeada por lutas travadas para levar os brbaros at as fronteiras. Para consolidar seu poder, Constantino desposou Fausta, filha de Maximiliano, estabelecendo com ele uma aliana para reinarem juntos no Ocidente. Mas o casamento e o pacto no o impediram de atacar e matar Maximiliano em 310. No mesmo ano, de acordo com um escrito comemorativo da poca, Constantino visitou um templo de Apoio, na Glia, onde o prprio deus apareceu e colocou nele uma coroa de louros.3 O mesmo escrito cria uma genealogia que estabelecia que Constncio, pai de Constantino, no era homem de origem humilde, mas filho do imperador Cludio II. Em 311, os pretendentes ao ttulo de "augusto" eram quatro: Constantino e Magncio, filho de Maximiliano, no Ocidente, e Valrio Licnio e Maximino Daia no Oriente. Constantino se aliou a Licnio, concedendo-lhe a mo de sua irm, Constncia, e marchou rumo Itlia contra Magncio. Em 312, naquela que lembrada como a Batalha da Ponte Mlvio, mas 27. que na verdade se iniciou em Saxa Rubia, Constantino derrotou Magncio, que morreu durante a retirada, tornando-se, assim, nico senhor do Ocidente. Em 313, ele e Licnio promulgaram o Edito de Milo, que assegurava liberdade de culto aos cristos e transformava o cristianismo em uma das religies oficiais do Imprio Romano. Iniciava-se o processo de integrao dos cristos sociedade romana e organizao do Estado. A liberdade de culto dada aos cristos seria o pretexto para a luta pelo controle do Oriente entre Maximino (perseguidor dos cristos) e Licnio (que, mesmo no sendo batizado, agia como defensor dos cristos). A guerra no Oriente se encerra com a vitria definitiva de Licnio e o suicdio de Maximino. Em 314, Constantino convocou o Concilio de Aries, que condenou definitivamente a heresia donatista (um movimento cristo de rigor excessivo que, em 311, em Cartago, elegeu um bispo alternativo quele oficial e apoiado por Constantino) e permitiu que os cristos ocupassem cargos pblicos, o que at ento era considerado pecado.4 Em seguida, abafou violentamente o protesto dos agonistas, ou circuncelies, que, por trs de motivaes religiosas, escondia uma verdadeira guerra de classes. No mesmo ano, Licnio se revoltou contra Constantino. Surgiu, assim, uma guerra que teve Constantino como vencedor. Compelido rendio, Licnio foi obrigado a lhe ceder quase todas as provncias orientais, mantendo apenas a Trcia. Em 323-324, Licnio se rebelou novamente e de novo foi derrotado. Dessa vez, foi preso e morto, apesar das splicas feitas por Constncia ao irmo Constantino. A partir de ento, desaparece qualquer resduo da tetrarquia criada por Diocleciano, e Constantino domina como um monarca todo o Imprio Romano. Em 325, acontece o famoso Concilio de Nicia, o primeiro concilio ecumnico da Igreja Catlica. Dele participaram cerca de trezentos bispos e prelados, na maioria orientais, sendo presidido por Osio, um homem de confiana do imperador. As principais questes abordadas foram o dogma da Trindade, a reafirmao da origem divina de Cristo e a condenao heresia ariana. 28. Em 326, Constantino manda matar seu filho preferido, o primognito Crispo (concebido com uma concubina), e, em seguida, a mulher Fausta. Segundo diz a lenda, Fausta teria acusado falsamente o enteado de assedi-la, e Constantino s teria descoberto a verdade depois. No mesmo ano, condenou morte tambm Liciniano, filho de sua irm Constncia e de Licnio. Em 330, Constantino transferiu a capital para a cidade grega de Bizncio, rebatizada de Constantinopla, aps ser ampliada e reconstruda. Dcadas antes, os imperadores romanos j tinham transferido o centro de comando para fora de Roma, por motivos logsticos e militares. Constantino fez algo a mais: criou uma segunda Roma, com o mesmo nmero de palcios, um Senado e benefcios iguais aos dos cidados romanos para seus habitantes (como a distribuio gratuita de trigo). Talvez Constantino se sentisse mais seguro e protegido no Oriente, prevalentemente cristo, do que em Roma, onde o grupo de senadores hostis a ele ainda tinha muito poder e influncia, e quisesse que seus sucessores governassem o Imprio a partir de uma nova capital, "livre" dos antigos ranos. Constantino morreu em 337. S foi batizado beira da morte, por um bispo ariano. A Igreja Ortodoxa Grega at hoje o venera como santo. Pouco depois de sua morte, foram eliminados seus meios-irmos Dalmcio e Anibaliano, e o Imprio foi dividido entre seus trs filhos legtimos: Constantino II, Constncio II e Constante. Constantino II foi assassinado em 340, em uma emboscada, pouco depois de tentar usurpar os domnios do irmo Constante, que, por sua vez, foi morto alguns anos depois, por um matador do usurpador Magncio. Constncio II morre de febre em 346, na vspera de um combate contra o sobrinho e rival Juliano. O cristianismo de Constantino Segundo a tradio, na vspera da Batalha de Ponte Mlvio, Constantino teve uma viso (ou talvez um sonho proftico), durante a qual recebeu um braso milagroso e a ordem celeste de reproduzi-lo nos 29. escudos, para obter a vitria. Esse braso, dependendo da fonte, poderia ser um "X ao contrrio, com as pontas dobradas" ou as iniciais gregas do nome de Cristo, x (chi) e p (ro), entrecruzadas. Muitos historiadores colocaram em dvida ou redimensionaram a veracidade do episdio. Talvez os soldados de Constantino, provenientes da Glia, usassem um smbolo solar no escudo, que poderia ser confundido com a cruz crist;5 ou Constantino pode ter mandado gravar o monograma apenas para distinguir suas tropas das de Magncio.6 Com certeza, Constantino, na poca, j travara contato com ambientes cristos. Por exemplo, o bispo Osio, de Crdoba, j fazia parte de seu squito. possvel imaginar que Constantino tenha aproveitado a ocasio para testar a eficcia da nova religio e, tendo visto que funcionava,, decidido adot-la, transformando o Deus dos cristos em seu protetor pessoal. Em seguida, Constantino concedeu crescentes favores, financiamentos e reconhecimentos ao culto cristo. Os bispos, por exemplo, foram isentos do pagamento dos impostos, tornaram-se funcionrios imperiais e at juzes de apelao.7 Em troca, obteve uma ingerncia cada vez maior nos assuntos internos da Igreja, da qual se considerava "bispo externo". Ao mesmo tempo, ele assegurou por muitos anos, pelo menos aparentemente, a prtica dos tradicionais cultos romanos: assumiu o encargo de "Pontfice Mximo", ou seja, grande sacerdote do culto politesta romano; aceitou a realizao de jogos e sacrifcios aos deuses em sua homenagem; mandou cunhar moedas com a imagem do Sol Invictus, o Sol Invicto; e tornou feriado o Dies Solis, o Dia do Sol, nosso "domingo". O Sol Invicto era uma divindade adorada por muitos povos do Imprio e pelo prprio Constantino, antes da converso.8 Ao mesmo tempo, entretanto, a esfera solar podia ser considerada um smbolo do Deus dos cristos e de outras religies monotestas do Imprio. Outro sinal do empenho de Constantino foi a promulgao de leis morais muito rgidas. Um exemplo a seguinte, emanada em 320. O homem que tomar uma moa, com ou sem seu consentimento, 30. sem antes ter estabelecido um acordo com seus progenitores [...] no ter na resposta da moa nenhuma vantagem dada pelo direito antigo, e a prpria moa ser considerada culpada de cumplicidade no delito. E como muitas vezes a vigilncia dos pais burlada pelos discursos e comportamentos cativantes das nutrizes, que sobre elas [...] recaia a ameaa do seguinte castigo: a abertura de sua boca e de sua garganta, que emitiram sugestes arrasadoras, ser fechada com a ingesto de chumbo derretido. Se for verificado o consentimento voluntrio da virgem, que esta seja punida com a mesma rigidez que seu raptor, e no ser concedida imunidade nem s moas que forem raptadas contra sua vontade, pois poderiam ter permanecido em casa at o dia do casamento, e se a porta houver sido arrombada pela audcia do raptor, estas poderiam ter pedido ajuda aos vizinhos com seus gritos e se defendido a todo custo. Mas, para estas moas, cominamos uma pena mais leve e ordenamos que sejam deserdadas por seus progenitores [...] Se os progenitores, para quem a vingana pelo crime deveria ser uma preocupao particular, mostrarem tolerncia e reprimirem sua dor, sero castigados com a deportao.9 Os historiadores contemporneos garantem que a adeso ao cristianismo de Constantino foi convicta e sincera, e provvel que seja verdade, se levarmos em considerao que as concesses religiosas de um oficial romano da poca eram bem diferentes das nossas: "...a funo do imperador a de se colocar como sujeito coletivo que represente toda a cidade e todo o mundo (orbis), na qualidade de Imperator orbis. De fato, o primeiro encargo que Augusto reserva a si mesmo o de Pontifex Maximus, representante junto divindade que constitui o pacto da aliana [...] E isso continua em vigor at Constantino. Roma, portanto, atravs de seus sacerdotes, de seus institutos, de seus colgios coletivamente representados pelo imperador, pede divindade trs coisas: 1. a fertilidade das mulheres (tanto mes quanto Mulheres, pois, para os romanos, havia pouca distino); 2. a vitria dos exrcitos; 3. a paz social. Em troca, ofereciam o culto s divindades. 31. O direito penal romano tem penas atrozes para os transgressores do culto, pois desrespeitar o culto significava desrespeitar o pacto [...] e a conseqncia da chama apagada pela no-observncia de uma vestal era a infertilidade das mulheres, a derrota do exrcito e a desordem social. Esse o esquema com base em que Roma age da Repblica at Constantino. Constantino, quando proclama o Edito de Milo, realiza uma operao muito simples: como os velhos deuses no funcionavam mais, pensa em substituir o velho Panteo pelo deus dos cristos, e, ao perceber que o motor volta a funcionar a pleno vapor e se converte [...] Constantino continua pago, ou seja, ligado mentalidade religiosa clssica, at sua morte."10 O primeiro Conselho de Nicia e as heresias Por volta de 314, ao menos dois grandes movimentos herticos surgidos no norte da frica, onde se encontravam as comunidades crists mais numerosas e ricas do Imprio, preocupavam Constantino. O primeiro foi o cisma dos donatistas, um movimento rigorista, contrrio aos compromissos com o poder imperial, que contava com muitos proslitos e que, em 311, chegou a eleger em Cartago um antibispo, em contraposio ao legtimo. Constantino, aps tentar uma mediao, acabou apoiando o bispo legtimo Ceciliano, subvencionando a Igreja "oficial", proibindo que os donatistas usassem os locais de culto e negando o asilo para alguns de seus lderes. Em seguida, seu filho Constante promoveu uma perseguio ainda mais cruel e sanguinria contra eles.11 O outro movimento era muito mais perigoso: tratava-se dos agostinianos, um verdadeiro exrcito de guerreiros em nome de Cristo. Os agostinianos eram expoentes de classes populares com reivindicaes polticas e sociais, como a libertao dos escravos, o perdo das dvidas e o fim dos usurrios. Eles se organizavam em batalhes armados que realizavam incurses avassaladoras nas grandes propriedades, incendiando casas e matando as famlias dos latifundirios mais odiados. Foram massacrados pelas tropas imperiais. Na poca de Constantino, outra grande disputa dividia o 32. cristianismo. Principalmente no Oriente, os cristos haviam se dividido entre partidrios e adversrios de rio, um presbtero da diocese de Alexandria. rio e seus seguidores afirmavam que o Filho de Deus, ao contrrio do Pai e tendo sido por Ele criado, teve um incio; portanto, Cristo representava uma divindade de segundo plano. Foi para resolver essa questo que Constantino convocou, em 325, em Nicia (na antiga Turquia), aquele que ficou na histria como o primeiro concilio geral da Igreja Catlica. Dele participaram mais de 300 bispos e prelados, com exceo do bispo de Roma, que mandou dois representantes. As concluses desse primeiro concilio foram muito importantes para a histria da Igreja. A grande maioria dos padres aprovou um Credo, no qual se afirmava que o Filho fora gerado, e no criado, com a mesma substncia do Pai (em grego, homoosion, quando, para os arianos, era apenas homoiosion, ou seja, "de substncia similar"). Pela primeira vez, foi proclamado dogma, ou seja, verdade revelada, um termo que no estava contido nas Escrituras (em nenhuma passagem, o Novo ou o Antigo Testamento afirmam que o Filho consubstanciai ao Pai). Alm disso, os Padres Conciliares declararam sua crena no Esprito Santo, traduo do hebraico ruah, que era, no entanto, de gnero feminino.12 A Trindade proclamada pelo Concilio era constrangedoramente similar trade das religies politestas. E, para surpresa, at os bispos arianos aprovaram o novo Credo, salvo por dois deles, que logo foram exilados. No Concilio de Nicia, foram tomadas outras decises muito importantes para a vida da Igreja: por exemplo, ficou estabelecido que apenas outros bispos, e no mais as comunidades que reuniam todos os fiis, poderiam consagrar um novo bispo. O territrio da cristandade tambm foi dividido em zonas de influncia, sujeitas ao poder, respectivamente, dos bispos de Roma, Antiquia e Alexandria, que passaram a se chamar metropolitas. A legitimao da autoridade na Igreja no vinha mais de baixo para cima, mas de cima para baixo. O Concilio no marcou o fim do arianismo. Entre 327 e 328, Constantino reabilitou rio e alguns de seus seguidores, e nomeou como conselheiro o bispo ariano Eusbio de Nicomdia, que o batizaria em seu 33. leito de morte. Pelo contrrio, a partir de 326 foram exiladas dezenas de bispos antiarianos.13 Sucederam-se vrios combates entre faces, com muitos mortos e feridos; conclios e contraconclios, que condenavam ora uma tese, ora outra; de exlios e de retornos; de perseguies por parte de imperadores "arianos" e "niceianos". Todos os historiadores concordam que Constantino no entendia nada de questes doutrinrias. A nica coisa que lhe interessava era tornar o cristianismo uma crena homognea, sem nuances, sem ambigidade, livre de conflitos internos perigosos. Tirando isso, a unidade era uma obsesso sua: unidade do poder poltico em torno de sua pessoa e dinastia; unidade das populaes sujeitas a Roma, amalgamadas por uma religio nica, na qual confluam elementos culturais de origens diferentes; e unidade da Igreja, obtida impondo-se a todos os crentes a opinio da maioria, ou pelo menos da maioria dos amigos do imperador, e se estes mudavam, mudava tambm a poltica religiosa do imperador. As motivaes de ordem poltica e social eram evidentes na represso aos donatistas e aos agostinianos. A histria da heresia ariana, no entanto, foi mais complicada. Nem as teses trinitrias nem as arianas colocavam em risco o projeto imperial de hegemonia, mas a controvrsia em si representava um perigo. No se podem obter estabilidade e paz social com uma religio partida em faces que se condenam e renegam reciprocamente a autoridade e legitimidade da outra. Escolher significava, contudo, um "mal menor". Provavelmente, o que fez a balana pender primeiro para uma posio, depois para outra, foram consideraes muito pragmticas: a cada vez, a efetiva fora de uma ou outra corrente ou a utilidade de seus defensores. A militarizao do cristianismo Jesus ensinava a "dar a outra face", a "amar os prprios inimigos", mandou Pedro devolver a espada bainha e o reprovou: "Quem com a espada fere com a espada perece" (Mateus, 26, 52). Talvez nem todos os primeiros cristos estivessem dispostos a "dar 34. a outra face" e a sacrificar a vida, mas, com certeza, entre eles era muito difundido um sentimento de repdio s armas.14 Telogos e bispos, venerados ainda hoje como santos, escreveram pginas inequvocas sobre o assunto. Ns, cristos, no erguemos mais a espada contra uma nao, no aprendemos mais a arte militar. O fato que nos tornamos filhos da paz, graas a Jesus Cristo, que nosso Senhor, e desertamos de chefes a quem serviram nossos antepassados: se aceitssemos suas ordens, ns nos tornaramos estranhos promessa divina.15 Que se diga ao soldado para no matar. Se receber ordem para matar, que se recuse. Do contrrio, que seja afastado [da Igreja]. Se um catecmeno ou fiel quiser servir como soldado, que seja afastado, pois despreza Deus. O cristo no pode se tornar soldado voluntariamente. Quem carrega uma espada deve prestar ateno para que no faa escorrer sangue. Se o fizer, no poder participar dos mistrios." Quando algum comete homicdio, fala-se de crime; mas quando o Estado que o encomenda, chama-se "ato de coragem". Aos cristos no permitido matar outrem; ao contrrio, que deixem que assassinem a ele.17 Alguns cristos chegaram a enfrentar o martrio por se recusarem ao servio militar, como o jovem Maximiliano. Convocado em 295, declarou: "No me lcito prestar servio militar, pois sou cristo", e foi decapitado. As coisas mudaram com a chegada de Constantino. O Concilio de ries, de 314, excomungou os cristos que desertaram em tempos de paz.18 O Concilio de Nicia pareceu retomar os velhos costumes, tanto que o cnone 12, nele aprovado, dispe: "Aqueles que, sentindo-se chamados pela graa, e por zelo a abandonaram a divisa, mas logo depois, como ces, voltaram atrs, chegando a oferecer dinheiro e presentes para serem aceitos novamente ao exrcito, devem permanecer entre os penitentes por treze anos..." Durante o reinado de Teodsio I, ao contrrio, foram excomungados os relutantes e os desertores. 35. Os perseguidos se tornam perseguidores: a represso ao paganismo Os cristos, que ainda exibiam na carne os sinais das perseguies," tornaram -se perseguidores. Durante os ltimos anos de vida de Constantino, vrios templos pagos foram demolidos, sobretudo no Oriente. Outros templos continuaram em atividade, mas foram despojados de tudo que tinham de precioso: esttuas, objetos preciosos, revestimentos de ouro e prata, portas de bronze. Muitas obras de arte foram levadas para embelezar a nova capital: Constantinopla.20 As festas tradicionais pags, com seus jogos circenses e as lutas entre gladiadores, eram cada vez menos toleradas, com exceo daquelas em homenagem ao imperador e sua famlia. S em Roma os templos e antigos cultos continuaram ntegros. Em 341, Constante tentou proibir os sacrifcios com um edito.21 Mas a poltica antipag dos sucessores de Constantino bateu de frente com um grande descontentamento por parte do povo.22 Em 361, subiu ao poder o imperador Juliano, apelidado de "apstata" pelos historiadores. Ele tentou reorganizar a antiga religio politesta e criou estruturas de assistncia aos pobres, que concorriam com aquelas crists. Ao mesmo tempo, assegurou a liberdade de culto a todas as religies do Imprio, inclusive ao judasmo e s comunidades crists hereges. Juliano morreu aps apenas dois anos de reinado, e seus sucessores retomaram a poltica antipag. Em 392, o imperador romano Teodsio I proibiu mais uma vez todos os sacrifcios e cultos pagos, fossem pblicos ou privados, sob pena de confiscar os locais ou terrenos em que eram realizados. Os templos foram abandonados. Muitos foram demolidos, outros foram transformados em igrejas crists. Os pagos desfilavam em verdadeiros cortejos de protestos, exibindo suas imagens sagradas. Essas manifestaes, por sua vez, desencadearam a reao dos cristos e provocaram sangrentos tumultos.23 36. O imperador Teodsio II (408-450) mandou punir algumas crianas, culpadas de brincar com restos de esttuas pagas. E, de acordo com os elogios dos cristos, Teodsio "seguia conscienciosamente cada ensinamento cristo".24 Em 415, em Alexandria, uma turba de fanticos cristos linchou a matemtica, astrnoma e filsofa neoplatnica Hipcia, importante expoente da cultura pag.25 Nos sculos que se seguiram, as antigas religies pr-crists se tornaram cultos cada vez mais diminutos, ainda praticados em algum vilarejo campons perdido (a palavra "paganismo" deriva, na verdade, do l atim pagus, "vilarejo") ou em grande segredo por alguns intelectuais neoplatnicos. Mas o paganismo no morreria completamente. Ele "...revive nas manifestaes litrgicas ligadas vida do dia-a-dia, nas libaes sagradas e no uso cada vez mais difundido do incenso, no culto aos santos e s relquias, que tomam o lugar dos dolos, na venerao a algumas rvores, animais, fontes e fenmenos naturais, que vive ainda nos dias de hoje".26 37. CAPITULO 3 As heresias antigas O que uma heresia? "Um cnico poderia definir a heresia como a opinio expressa por um grupo minoritrio que uma maioria suficientemente poderosa para poder puni-lo considera inaceitvel [...] Deus [...] est do lado da maioria: a ortodoxia, pode-se acrescentar, aquilo que dizem Dele [de Deus]."1 O significado que hoje damos ao termo "heresia", ou seja, "opinio errada", uma inovao tipicamente crist. O primeiro a us-lo com esta acepo foi So Paulo, em Gaiatas, 5, 20. O termo "heresia" deriva do grego hiresis, "escolha",2 e designava aqueles que pertenciam a uma escola filosfica por escolha. Hereges eram, portanto, os esticos, os cticos, os epicuristas, mas tambm, no mundo hebraico, os fariseus, os saduceus e os essnios.3 A Igreja, desde o incio, prestava uma ateno doentia terminologia religiosa. Muitos eram os que se sentiam os nicos depositrios da verdade. E, assim, um termo que indicava a pluralidade das escolas de pensamento assumiu o significado negativo que conhecemos hoje. Mas no fcil manter uma verdade. Durante a histria, houve contnuas revises e correes. Uma afirmao declarada hertica por um concilio era derrubada por outro e vice-versa. O exemplo mais conhecido talvez seja o de Joana d'Arc, queimada na fogueira em 1431 e santificada em 1920. O bispo Teodoro de Mopsustia, que morreu em 428 em paz com a Igreja, foi declarado herege e condenado 125 anos depois de sua morte. Os bispos Estvo, de Roma 254-257), e Cipriano, de Cartago (248-258), ferrenhos adversrios sobre questes doutrinrias quando em vida, so ambos venerados como santos. Argumentos religiosos que custaram milhares de mortos Os primeiros sculos do cristianismo registram disputas interminveis para estabelecer se Cristo era "da mesma substncia do Pai" ou apenas "muito parecido", ou quantas naturezas coexistiam em Jesus Cristo. Disputas essa nas quais as opinies consideradas equivocadas no eram apenas um erro, mas um pecado. Quem se obstinava em defender as prprias opinies cometia um crime atroz, digno de uma pena severa. 38. Sobretudo quando o cristianismo se tornou religio de Estado, os "perdedores" nas disputas teolgicas podiam ser punidos com o exlio, a tortura e a morte, a menos que se transformassem em perseguidores, quando o vento soprava a seu favor. As tentativas de impor fora a "doutrina verdadeira" a populaes inteiras podiam ensejar rebelies, vinganas, massacres e guerras. Mas divergncias teolgicas acerca da Trindade justificam conflitos que duraram sculos e fizeram milhares de mortos? Quantos dos participantes do Concilio de Nicia, por exemplo, tinham real capacidade de compreender todas as nuances filosficas do embate entre arianos e trinitrios? Com certeza, os primeiros pensadores cristos se encontravam diante de problemas tericos nada pequenos: precisavam conciliar o rgido monotesmo herdado dos judeus com sua f em Deus feito homem, sem se confundir nem com as tradicionais mitologias pags (lembremos das transformaes de Jpiter), nem com os cultos msticos concorrentes e as doutrinas agnsticas, segundo as quais cada homem que ultrapasse um determinado percurso inicitico pode se tornar deus. Os bispos no pagam impostos Mas havia questes doutrinrias que diziam respeito a elementos de importncia concreta para a vida quotidiana das primeiras comunidades crists: por exemplo, era preciso definir se os fiis que haviam renunciado f nas perseguies deveriam ser readmitidos ou se os sacramentos celebrados por sacerdotes indignos deveriam ser validados. E, naturalmente, havia tambm os bastante concretos interesses materiais das nascentes elites crists. Pouco mais de cem anos aps a morte de Jesus, j existiam movimentos que lamentavam a corrupo e a decadncia da Igreja, como os montanistas. Estes pertenciam a um movimento que nascera na Frgia no sculo II. Eles se consideravam puros, privilegiavam a relao direta com o Esprito, e as mulheres figuravam em primeiro plano. O prprio Montano, em sua misso, era ladeado por duas mulheres: Priscila e Maximlia. Os montanistas foram perseguidos por sculos.4 Constantino, que transformou os bispos em funcionrios do Imprio 39. e lhes isentou do pagamento de impostos, apenas acelerou uma tendncia j em curso no prprio corpo de Igreja. Os bispos h muito tinham deixado de ser simples porta-vozes das comunidades crists eleitos pelas Igrejas, ou seja, pelas assemblias de fiis, tornando-se verdadeiros senhores que administravam a seu bel-prazer os bens da Igreja, ordenavam o clero menor de acordo com as prprias convenincias e, muitas vezes, "transmitiam" seu ttulo aos filhos e irmos. O cargo de bispo acabou se tornando muito desejado por membros das famlias abastadas.5 Apesar das disposies contrrias do Concilio de Nicia, alguns homens foram nomeados bispos antes mesmo de serem batizados, como o filsofo neoplatnico (adepto de uma corrente de pensamento incompatvel com o cristianismo) Sinsio de Cirene. O prprio Santo Ambrsio, j funcionrio imperial, foi nomeado bispo poucos dias depois de ser batizado.6 Quando o cristianismo se tornou religio de Estado, as acusaes de heresia e as disputas teolgicas se tornaram pretextos para jogos de poder nos quais a aposta era muito terrena: o controle de dioceses "ricas", o monoplio de recursos e matrias-primas importantes, a eliminao de rivais e adversrios, e a diviso dos postos nas cortes imperiais. Por vezes, de maneira ainda mais perversa, quem acreditava de maneira fantica na prpria verdade podia usar o poder e a influncia de que dispunha para imp-la aos outros. Alexandre, bispo de Alexandria, por exemplo, foi acusado de sabotar as provises de trigo em Constantinopla para levar o imperador a assumir uma posio decisiva contra o arianismo.7 No espao e no tempo, a mesma doutrina daria cobertura a projetos polticos bem diferentes entre si. Dentre os seguidores de rio, estavam imperadores romanos que perseguiam os rebeldes e o rei godo Totila, libertador dos escravos. Vrios imperadores bizantinos aderiram doutrina monofisista, mas muitos outros incentivaram rebelies populares contra a autoridade de Constantinopla. E as aparentes contradies poderiam continuar. Naturalmente, a muito complexa aventura do cristianismo no se 40. explica apenas com fatores polticos, sociais e econmicos; h tambm elementos imponderveis do ponto de vista racional. Em pocas de grande taxa de analfabetismo, quando no existiam telecomunicaes e as pessoas se locomoviam no lombo de um burro por estradas mal conservadas, um nico pregador dotado de coragem e energia podia conseguir, com seu carisma e eloqncia, a converso de populaes inteiras. Quando as teses de Lutero se difundiram no norte da Europa, muitos pases as acolheram, conservando, no entanto, costumes catlicos, como a confisso, que eram totalmente estranhos doutrina luterana. provvel que os bravos cristos suecos e islandeses no se importassem com as divergncias tericas, que s quisessem ter ao seu lado padres que falassem sua lngua, que fossem capazes de lhes explicar as Escrituras, que pregassem a moralidade sendo os primeiros a dar bom exemplo e no os dessangrassem com dzimos. Comea a caa aos hereges Talvez o primeiro caso de controvrsia religiosa dirimida por intermdio da lei tenha sido o de Paulo de Samsata, bispo de Antiquia (260-272). Ele era um monarquianista, ou seja, seguidor das doutrinas que no reconheciam a trindade de Deus. Um snodo de bispos convocado em 268 condenou suas doutrinas e o deps. Em seguida, os bispos pediram ao imperador Aureliano que executasse suas decises, estabelecendo, assim, o perigoso precedente da interveno do poder temporal nas questes eclesisticas. Tudo isso acontecia em uma poca em que os cristos ainda eram periodicamente perseguidos. O imperador decretou a deposio de Paulo, que continuou em seu posto graas aos favores de Zenbia, rainha de Palmira, sob cuja influncia se encontrava a diocese de Antiquia, que impusera uma poltica anti-romana. ' S em 272, quando o exrcito de Zenbia foi derrotado pelo do imperador Aureliano, Paulo precisou abandonar sua cadeira.8 O arianismo depois de Constantino O Concilio de Srdica (Sofia), em 343, que se encerrou com a 41. reiterao do que foi deliberado em Nicia, foi abandonado pelos bispos orientais, que organizaram um contraconclio em Filippolis. Em Constantinopla, durante o episcopado de Joo Crisstomo (345-407), irromperam-se violentos conflitos entre arianos e niceianos9 que deixaram um saldo de vrios mortos. Em 353, Constncio II, nico imperador, imps as doutrinas filo- arianas em todo o territrio do Imprio. Os arianos, ento, passaram a defender a tese de que a Igreja deveria se submeter ao Estado, enquanto os niceianos lutavam por autonomia. Em 357, o bispo ortodoxo sio, j centenrio, foi obrigado, por meio de tortura, a subscrever as teses arianas do Concilio de Srmio. Em 361, com a ascenso ao trono de Juliano, o Apstata, que tentou restaurar o paganismo, foi dada anistia geral a todos os cristos perseguidos acusados de heresia, provavelmente emitida com o objetivo de enfraquecer o cristianismo. O imperador Teodsio I, que subiu ao trono em 378, logo condenou as doutrinas arianas nos territrios do Oriente. No Ocidente, entretanto, onde de fato reinava a ariana Justina, a tolerncia foi garantida. Em 386, o bispo de Milo, Ambrsio, aps negar a Justina a cesso de uma igreja para realizar o culto ariano, organizou uma viglia em sua prpria baslica para defend-la dos ataques dos emissrios imperiais. Os prprios arianos, por sua vez, estavam divididos em vrias correntes. Em 362, em Antiquia, havia cinco comunidades crists separadas, cada qual com seu prprio bispo e hostil s demais. Quando Teodsio ampliou seus domnios aos territrios ocidentais, o arianismo foi banido por completo do territrio do Imprio, e o cristianismo niceiano se tornou a religio oficial do mundo romano. Naturalmente, o decreto no significou a extino automtica da heresia ariana, que sofreria, mais de um sculo depois, perseguies por parte de Justino e, depois, de Justiniano.10 O cristianismo, em sua verso ariana, foi difundido entre os povos "brbaros" do norte graas s prelees de udio, bispo de vida exemplar, e, sobretudo, de Wulfila (345-407), o bispo que, por volta de 375, traduziu 42. para o godo o Antigo e o Novo Testamentos. Foi graas a essa traduo que a crena ariana conseguiu se difundir entre os visigodos, os ostrogodos, os suevos, os vndalos, os burgndios e os lombardos. "Ao contrrio dos povos que viviam na Itlia e que praticamente no se expressavam em latim, os brbaros tinham a grande vantagem de aprender o Evangelho em sua lngua falada. Os godos, assim, estavam mil anos frente de Martinho Lutero."11 Em 525, o rei ostrogodo Teodorico interveio em defesa dos arianos de Constantinopla, oprimidos pelo imperador Justino. Para tanto, enviou cidade um embaixador extraordinrio, o papa Joo I, obrigado a apresentar ao imperador suas solicitaes. Como o papa voltou a Roma no ano seguinte sem nada ter conseguido, Teodorico mandou prend-lo, e Joo I morreu poucos dias depois.12 bvio que muitas vezes os soberanos arianos perseguiam os niceianos. Por exemplo, durante a dominao dos vndalos na frica, estes sofreram vrios tormentos. O auge foi no perodo entre 483 e 484, quando uma lei obrigou todos os catlicos do reino vandlico a se converterem ao arianismo. Milhares de clrigos foram exilados no deserto junto com seus bispos. Muitos catlicos foram condenados a torturas ou pena de morte.'3 No entanto, at as populaes brbaras acabaram se convertendo ao catolicismo. No final do sculo VIII, o arianismo j havia desaparecido, e a crena niceiana triunfou como nica Igreja verdadeira. Os bispos pedem a cabea dos hereges notrio que os imperadores no eram muito sutis quando se tratava da eliminao dos dissidentes, mas, em determinado momento da histria crist, foram os prprios bispos que solicitaram a condenao morte dos hereges. O primeiro a sofrer as conseqncias do novo costume foi o bispo espanhol Prisciliano, em 385. Condenado e banido por dois conclios regionais, Prisciliano, que tinha um grande squito popular, foi torturado e condenado pelo imperador Mximo, a pedido dos prprios bispos. Junto 43. com ele, morreram seis de seus discpulos, dentre os quais uma mulher. Na realidade, as acusaes infundadas de heresia e a condenao morte pareciam servir a propsitos essencialmente polticos.14 O episdio causou horror em vrios prelados catlicos que no concordavam com as heresias doutrinrias. O papa Sircio condenou as mortes. O bispo Martino de Tours (321-401) excomungou todos os bispos que sujaram as mos com aquele sangue. S mais tarde aceitou se reconciliar com eles, a pedido do imperador, e apenas para salvar a vida de outros "priscilianistas" condenados morte. At mesmo o bispo Ambrsio, de Milo, recusou-se a ter contato com os bispos envolvidos na morte de Prisciliano. Naquela poca, "a conscincia da Igreja ainda no estava acostumada a considerar o derramamento de sangue uma expresso do amor pregado por Jesus Cristo".15 O assassinato de Prisciliano no ps fim ao movimento, pelo contrrio. Seus seguidores passaram a vener-lo como mrtir, dando vida a um movimento "priscilianista" que duraria mais de um sculo.16 A heresia nestoriana e o concilio que terminou em rixa O nestorianismo deve seu nome a Nestrio, bispo de Constantinopla que, por volta de 428, contestou a qualidade de "Me de Deus" atribuda a Maria.17 Na poca, o culto mariano j era muito difundido, e as teses de Nestrio deram vida a verdadeiros tumultos. Contra ele se ops com violncia at mesmo Cirilo, bispo de Alexandria (diocese que lutava contra a de Constantinopla pelo controle do Oriente). Em 431, o imperador Teodsio II convocou um concilio ecumnico em feso para dirimir a questo. Naquela poca, viajar era muito difcil, e, por essa razo, os bispos chegaram em momentos diferentes. Primeiro, foram os adversrios de Nestrio, aproximadamente duzentos bispos liderados pelo de Alexandria, Cirilo. Decidiram dar logo incio ao concilio, sem esperar os que apoiavam a parte contrria ou os enviados do papa. Nestrio foi obrigado a se apresentar e, como se recusou a entrar antes que seus seguidores chegassem, teve de depor "in contumacia". O bispo de feso, Mmnon, 44. chegou a incitar a multido contra Nestrio. Poucos dias depois, chegaram cerca de quarenta bispos nestorianos, guiados por Joo de Antiquia, que formaram um contraconclio no qual declararam hereges e excomungaram Cirilo e Mmnon. Chegaram, ento, os enviados do papa, que reabriram o concilio "oficial" e excomungaram Joo de Antiquia. Os trabalhos do concilio se complicaram ainda mais com a interveno de alguns funcionrios imperiais, as tentativas de corrupo e os embates populares entre partidrios das duas faces. No final, o imperador Teodsio II encerrou a assemblia criticando duramente os participantes e exilou tanto Nestrio quanto Cirilo.18 Derrotado no territrio imperial, o cristianismo nestoriano difundiu-se na sia, chegando China, ndia e Monglia. Em 486, os cristos da Prsia adotaram as teses nestorianas e empreenderam uma feroz perseguio contra os catlicos. Para o rei da Prsia, era muito cmodo apoiar uma "Igreja nacional" que no dependesse de autoridades religiosas de um pas adversrio, como o bispo de Constantinopla.19 A heresia monofisista e o "latrocnio de feso" A doutrina monofisista deve seu nome ao grego monos, nico, ephisis, natureza, e nasce como uma reao ao nestorianismo. Os mononsistas afirmavam que Jesus Cristo possua uma nica natureza divina e nenhuma natureza humana. O lder da doutrina foi Eutiques, monge de Constantinopla que, por suas idias, sofreu violentos ataques, sendo proibido de realizar os ritos sacerdotais. Graas a seus conhecimentos na corte imperial do Oriente, no entanto, suas doutrinas ganharam o apoio do imperador Teodsio II, que, em 449, convocou um concilio ecumnico em feso para discutir a questo. A assemblia foi fortemente direcionada de modo a dar ganho de causa s teses mononsistas. As tropas imperiais se lanaram com fora contra os adversrios de Eutiques, que no tiveram permisso nem para tomar a palavra. Um documento enviado pelo papa nem foi lido, e at mesmo o remetente foi excomungado. O bispo de Alexandria, Flaviano, levou uma surra to grande que morreu pouco tempo depois. 45. O papa Leo Magno deu ao evento o nome de "latrocnio de feso".20 Naturalmente, foi apenas o incio de uma longa histria. Por vrias vezes, em uma intrincada trama de compls, homicdios, alianas entre faces, ascenses ao trono de imperadores anti ou pr-eutiquianos, os catlicos e os monofisistas se revezaram nos papis de perseguidores e perseguidos, de vtimas e carrascos.21 As perseguies no deteriam a propagao do monofisismo. Ao contrrio, graas s prelees de Tiago ou Jac Baradai, bispo de Edessa, em 542, e fundador da Igreja Jacobita, pases como Egito e Sria deram vida a Igrejas nacionais prprias, em contraposio autoridade imperial. Mas nem Tiago conseguiu impedir a ciso de sua prpria Igreja. Por exemplo, em 556, a sede episcopal de Alexandria tinha cinco pretendentes: quatro monofisistas de diversas correntes e um catlico. A Igreja etope at hoje monofisista. No sculo XVI, a Igreja romana contou com os portugueses para levar a ortodoxia Etipia, mas a operao falhou em razo de uma forte reao nacionalista que causou a expulso de todos os missionrios e a ruptura das relaes com Roma. Mais recentemente, a Itlia fascista tentou impor o catolicismo s suas colnias, mas a Igreja etope resistiu. Ainda hoje, no Egito, existem duas Igrejas monofisistas: a copta e a melquita. Na Sria e na Mesopotmia, ainda existem jacobitas, e na Armnia se professa uma confisso monofisista. Os paulicianos Seita de provvel origem maniquesta ou agnstica,22 que surgiu na sia Menor por volta do sculo VIL Tinha essa designao por causa da peculiar venerao aos escritos de So Paulo.2 ' Sua doutrina diferenciava claramente um Deus criador do esprito e um Deus senhor e criador da matria. Os paulicianos negavam a Encarnao e consideravam Cristo um anjo de Deus. Aceitavam como textos sagrados apenas os Evangelhos e as Cartas de Paulo e recusavam os sacramentos, as imagens sagradas, a hierarquia eclesistica e a vida monstica. Em vez da missa, celebravam o gape (festa do amor).24 Os paulicianos tambm formavam um movimento de protesto 46. poltico, social e de revolta contra o despotismo bizantino e blgaro. Sofreram vrias perseguies por parte do Imprio Bizantino, que os condenou oficialmente em 687. Eles, ento, se organizaram como Estado independente e empunharam armas em sua defesa, at a derrota militar definitiva, em 752. Mas a derrocada no significou o fim do movimento. H provas de que foram perseguidos pelo Imprio de Constantinopla ainda em 840. Alguns deles acabaram se mudando para as terras do emir de Melitene e lutando entre os rabes. Outro ramo do movimento, sediado na Trcia, teria sobrevivido at o sculo XIII e inspirado o movimento hertico blgaro dos bogomilos. Os bogomilos Movimento dualstico que surgiu nas primeiras dcadas do sculo X e que ganhou este nome graas s profecias do padre blgaro Bogomil. Para os bogomilos, havia uma clara anttese entre Deus, criador do esprito, e o demnio, criador da matria. Eles acreditavam nas mesmas teorias que os paulicianos e pregavam a igualdade social e o afastamento dos pobres do domnio do clero e da nobreza. O bogomilismo se difundiu nos sculos seguintes nos Blcs e at as fronteiras de Bizncio. Fortemente perseguidos pelos soberanos blgaros e pelos imperadores bizantinos, os bogomilos se espalharam por toda a Europa Central e Ocidental, onde foram alvo de represso das autoridades catlicas.25 Em 1203, o rei da Frana, Roberto, o Pio, a pedido da Igreja, mandou queimar na fogueira, em Orleans, uma dezena de hereges "maniquestas", provavelmente bogomilos mais avanados ou, talvez, os primeiros ctaros.26 Um episdio anlogo ocorreu em Milo por volta de 1208.27 Na Bsnia, o bogomilismo chegou a se tornar religio de Estado. Em 1203, no entanto, o soberano Kulin s conseguiu se manter no poder ao concordar em trocar a doutrina bogomilista pela catlica romana e acatar a tutela hngara.28 47. SEGUNDA PARTE A IDADE MDIA 48. CAPTULO 4 Justiniano, os massacres em nome da f O imperador do Oriente, Justiniano (527-565),1 conseguira consolidar o prprio poder graas ao auxlio de um "esquadro da morte" treinado por ele prprio. Na prtica, tratava-se de um bando de sanguinrios que assassinava todos os seus rivais na corrida pelo trono: o general Vitaliano, o eunuco Amzio e um nmero impreciso de aristocratas.2 Uma testemunha da poca comentou: "At mesmo a mo de Deus, guiada pelo Patriarca, protege suas iniciativas de erradicar os inimigos da f".3 De seu longo reinado, ficaram o imenso Corpus iuris civilis, cdigo que ordena em um nico conjunto de leis orgnicas toda a jurisprudncia romana, e a decidida poltica de reconquista militar dos territrios ocupados pelos brbaros. Mas no se pode esquecer o massacre de Nika, em janeiro de 532. Durante a partida de uma corrida de bigas no imenso hipdromo de Constantinopla, o imperador Justiniano e sua mulher, Teodora, foram vaiados pela multido que reclamava das excessivas obrigaes fiscais. O protesto transformou-se em um verdadeiro tumulto, que teve como inslitos aliados lderes de faces de grupos populares e de aristocratas. Justiniano precisou se refugiar em seu palcio, tal foi o assdio dos revoltosos. O imperador, ento, ofereceu doaes em dinheiro aos lderes e convocou o povo todo para uma assemblia pblica no hipdromo, onde anunciaria importantes novidades. Os revoltosos, dessa forma, se reuniram no estdio, onde, em vez do imperador, entraram soldados do general Narsete, que assassinaram os presentes. Calcula-se que trinta mil pessoas tenham sido mortas. Outro episdio famoso foi a violenta represso aos rebeldes samaritanos, quando foram mortas mais de cem mil pessoas. Talvez menos conhecida seja a pragmtica disposio de 554, que estendeu a legislao imperial Itlia "liberta" dos brbaros e que imps a restituio de todos os bens desapropriados pelos godos aos aristocratas e Igreja. 49. Dentre as propriedades a serem restitudas, havia tambm escravos e servos da gleba que os "brbaros" haviam alforriado e que, assim, perderiam seu status de homens livres.4 O programa de Justiniano pode ser resumido pelo seguinte lema: "Um s Estado, uma s lei, uma s Igreja".5 A legislao imperial regulamentava cada aspecto da vida do Imprio, inclusive o religioso. Os bispos eram, em todo e qualquer aspecto, funcionrios do Estado, com deveres de funcionrios pblicos, "assistentes sociais" e magistrados.6 Uma srie de leis regulava, de maneira minuciosa, praticamente cada detalhe da vida do clero e dos monges, includas a as prticas litrgicas, como a entoao dos trs cnticos principais do dia nos mosteiros (matutino, laude e vespertino). Alm disso, as penas previstas para os transgressores eram severas: por exemplo, uma diaconisa que se casasse poderia ser punida com a morte ao lado do marido, e um monge que abandonasse o hbito era convocado pelo exrcito.7 As represses de Justiniano Justiniano foi um tenaz defensor da ortodoxia ( claro que era ele quem decidia o que era "ortodoxo" e o que no era) e um implacvel perseguidor dos hereges e pagos. Um edito de 529 obrigava os sditos ainda no convertidos a se batizarem e se "instrurem na verdadeira f dos cristos". Os desobedientes seriam punidos com o confisco de todos os bens e a perda de todos os direitos; os batizados que voltassem a ser pagos seriam punidos com a morte.8 Contra os hereges maniquestas,' eram previstas medidas ainda mais graves: a morte e o confisco dos bens. A pena de morte tambm era aplicada aos ex-maniquestas que voltassem a professar sua velha religio, que se relacionassem com os antigos companheiros de f sem denunci-los ou que guardassem escritos daquela seita, em vez de entreg-los s autoridades.10 Quando as tropas bizantinas reconquistaram a frica e a Itlia, Justiniano confiscou os templos de