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Alfabetário da memória Uma leitura dos quadros n’Os Cus de Judas de António Lobo Antunes.

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Esta apresentação teve lugar nas Caldas da Rainha em homenagem da presença do autor António Lobo Antunes em 2004.

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Alfabetário da memória

Uma leitura dos quadros n’Os Cus de Judas de António Lobo Antunes.

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“Chorou na noite de fim de ano de 1970, porque dias depois tinha que partir para a guerra. Dessa experiência tirou os ensinamentos mais terríveis, mas também algumas das melhores coisas da sua vida: a descoberta da amizade e a aprendizagem da solidariedade.” (In, Conversas com António Lobo Antunes,María Luisa Blanco, Lisboa, Dom Quixote, 2002, p.47)

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“É esquisito falar-lhe disto enquanto lhe toco os seios, lhe percorro o ventre, procuro com os dedos a junção húmida das coxas onde realmente o mundo começa(...)” (C.J.187)

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L’origine du monde (Courbet)

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“O restaurante do Jardim,(...) encontrava-se ordinariamente repleto,(...), de grupos excursionistas e de mães impacientes, que afastavam com os garfos balões à deriva como sorrisos distraídos, a arrastarem pontas de guita atrás de si, tal as noivas volantes de Chagall a bainha dos vestidos”(C.J.10)

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La mariée (Chagall)

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“Por essa época, eu alimentava a esperança insensata de rodopiar um dia espirais graciosas em torno das hipérboles majestáticas do professor preto, vestido de botas brancas e calças cor-de-rosa, deslizando no ruído de roldanas com que sempre imaginei o voo difícil dos anjos de Giotto, a espanejarem nos seus céus bíblicos numa inocência de cordéis.” (C.J.13)

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Vida de Cristo a lamentação (Giotto)

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“Em Elvas, à ilharga de um aspirante gordo e inseguro como um pudim flan na borda de um prato, desejei evaporar-me nas muralhas da cidade à maneira dos violinistas de Chagall no azul espesso da tela, batendo as desajeitadas asas de cotão das minhas mangas militares...” (C.J.21)

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O violinista verde (Chagall)

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“...mais meia garrafa e cuidar-nos-íamosVermeer, tão hábeis como ele para traduzir, através da simplicidade doméstica de um gesto, a tocante e inexprimível amargura da nossa condição.” (C.J.32)

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composição vários quadros de Vermeer

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“...no meio de um círculo cubatas aparentemente desertas, no silêncio carregado de ruído que África tem quando se cala, e dezenas de larvas informes principiavam a surgir, manquejando, arrastando-se, trotando, dos arbustos, das árvores, das palhotas, dos contornos indecisos das sombras, larvas deBosch de todas as idades em cujos ombros se agitavam, como penas, franjas de farrapos, avançando para mim à maneira dos sapos monstruosos dos pesadelos das crianças, a estenderem os cotos ulcerados para os frascos do remédio.” (C.J.45)

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O juízo final (Bosch )

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“Você, por exemplo, que oferece o ar asséptico competente e sem caspa das secretárias de administração, era capaz de respirar dentro de um quadro de Bosch, sufocada de demónios, de lagartas, de gnomos nascidos de cascas de ovo, de gelatinosas órbitas assustadas?”(C.J.62, 63)

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O jardim das delícias (Bosch)

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“...sob o olhar indiferente de mulheres de dentes serrados em triângulo, acocoradas na cama no alheamento de perfil de certos retratos de Picasso, em cuja curva dos lábios flutuam Guernicas desdenhosas.”(C.J.49)

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A mulher chorando ( Picasso)

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A mulher chorando (Picasso)

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“Talvez o tipo da mesa ao lado, que o décimo Carvalho Ribeiro Ferreira inclina dezassete graus para bombordo na rigidez de andor de uma torre de Pisa de casaco de veludo à beira de queda catastrófica, seja Amadeo Modigliani a procurar no fundo do cálice um rosto assassinado de mulher,...” (C.J.53)

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Jeanne Hébuterne com uma camisola amarela (Modigliani)

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“...de quando em quando e by appointment of Her Majesty the Queen, o reflexo do génio, e sobre as nossas cabeças ungidas tombam as línguas de fogo de Johnny Espírito Santo Walker:Utrillo, que amarrotava postais ilustrados enquanto pintava...” (C.J.54)

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Igreja de Blévy (Utrillo

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“...Soutine, o dos meninos do coro e das casas

torturadas...” (C.J.54)

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O menino do coro (Soutine

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“A sombra inchava volumes geométricos nos prédios vizinhos,

desenhada por um Soulages triste.”(C.J.55)

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Composição (Soulages)

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“O furriel enfermeiro, a quem a vista do sangue enjoava, ficava à porta da sala de operações improvisada, dobrado como um canivete, a vomitar num banco o feijão do almoço, e eu, tenso de raiva, imaginava a satisfação da família se lhe fosse dado observar, em conjunto e de chapéu de aba larga como na Lição de Anatomia de Rembrandt, o médico competente e responsável que desejavam que eu fosse,...” (C.J.55)

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Lição de Anatomia (Rembrandt)

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“...ver os reformados do dominó na eterna postura dos jogadores de

cartas de Cézanne, e sentir que se deixou irremediavelmente de

pertencer a esse mundo nítido e directo onde as coisas possuem

consistência de coisas, sem subterfúgios nem subentendidos...”

(C.J.62)

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Jogadores de cartas (Cézanne)

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“Deve ter uma gravura de Vieira da Silva, na parede do quarto e o

retrato do cineasta sem talento, com quem mantém uma relação

desiludida, à cabeceira, deve acordar de manhã com torpor de

crisálida titubeante...” (C.J.68)

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Perspectiva Paris (Vieira da Silva)

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“...Olhos flutuando à deriva acima dos cognacs, olhos acusando os

próprios rostos defuntos, desertos e sem nuvens como os dos quadros

de Magritte(...) mulheres e homens em cuja desilusão defensiva e

maligna me recuso a reconhecer a imagem fragmentária da minha

própria derrota...” (C.J. 74)

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Le baiser (Magritte)

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“Deixe-me pagar a conta.(...) e tome-me pelo jovem tecnocrata ideal português 79, inteligência tipo Expresso, isto é, mundana, superficial e inofensiva,

cultura género Cadernos Dom Quixote, ou seja, prolixa, esquisita e fininha,

opção política Fox-Trot, Pedras d’El-Rei e Casa da Comida, uma gravura de Pomar, uma escultura de Cutileiro e um

gramofone de campânula no apartamento.” (C.J.89)

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Camões(Pomar)

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“...mas existe também, sabe como é, essa claridade difusa, volátil,

omnipresente, apaixonada, comum aos quadros de Matisse e às tardes de Lisboa, que como o pó de África

atravessa as frinchas, as janelas cerradas, os intervalos moles que separam uns dos outros os botões

da camisa,...” (C.J.90)

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Atelier vermelho (Matisse

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“...o excesso de luz do aeroporto impedia-me de me confrontar nos

vidros com a minha silhueta hesitante,(...), com a gravata que as

muitas horas de avião haviam decerto desviado a bissectriz dos

colarinhos, transformando-a num trapo mole como os relógios de

Dali, com as rugas que se acumulam em torno das

pálpebras...” (C.J.95)

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Persistência da memória (Dali)

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“A voz feminina, vinda de nenhum lado, que anuncia em três línguas a

partida dos aviões, flutuava, imaterial, por sobre a minha

cabeça, idêntica a uma nuvem deDelvaux, até se dissolver a pouco e pouco numa espuma de sílabas...”

(C.J.97)

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Pygmalion (Delvaux)

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“...esta cidade absurda, (...) onde os objectos vogam suspensos na luz

como nos quadros de Matisse, obrigava-me a tropeçar de quarto

em quarto à maneira de uma borboleta entontecida, passando

uma palma mole pela lixa repelente da barba.” (C.J.148)

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A janela azul (Matiss

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“...é como se essa melancólica proeza me justificasse a existência, como se sentar-me aqui, noite após noite, diante do espelho, a observar no vidro os vincos amarelos das olheiras e as rugas que em torno da boca se multiplicam numa teia misteriosa, idêntica à que cobre de leve os quadros de Leonardo, me assegurasse que ao fim de tantos anos de deixar-te permaneço vivo...”(C.J.170)

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Estudos (Leonardo da Vinci)

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“Conheci-te numa manhã de sábado, Sofia, e a tua gargalhada de prisioneira livre, harmoniosa e

estranha como o voo dos corvos queVan Gogh pintara antes de se matar no meio do trigo e do sol, tocou-me

como um gesto de irreprimível ternura me toca se me sinto mais

só...” (C.J.172,173)

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Campo de trigo com corvos (Van G

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“E os andares iluminados, (...), fazem-me sentir irremediavelmente

de fora de milhares de pequenos universos confortáveis, em que me seria grato incluir, num canto de

sofá, diante de uma reprodução de Miró, a minha solidão

envergonhada de cão tímido, a arquear constantemente o dorso de

falsas zangas submissas.” (C.J.225)

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Pássaros e grutas (Miró)