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Uma aventura de natal

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Uma Aventura de NatalCharles Dickens

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Uma Aventura de NatalCharles Dickens

PRIMEIRA ESTROFE

O espectro de Marley

Para começar, digamos que Marley tinha morrido.Neste particular, não pode haver absolutamente amenor dúvida; a ata dos seus funerais havia sidoassinada pelo vigário, pelo sacristão, pelo homemda empresa funerária e pelas pessoas que haviamconduzido o féretro.Scrooge também a tinha assinado. Ora, Scrooge eraum nome bastante conhecido na Bolsa, e suaassinatura era um documento valioso, onde querque ele a colocasse. O velho Marley estava tãomorto como um prego de porta.Perdão! Não quero dizer com isto que saiba porexperiência pessoal o que possa haver departicularmente morto num prego de porta. Pormim, eu estaria mais inclinado a considerar umprego de ataúde como a coisa mais morta quepossa haver no comércio. Mas, como devemos estacomparação à sabedoria dos nossos antepassados,

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tenhamos todo o cuidado em não profaná-la, ou, docontrário, o país estará perdido. Assim pois, vocêshão de permitir-me repetir, com insistência, queMarley estava tão morto como um prego de porta.Acaso Scrooge sabia que Marley estava morto?Evidentemente, sim. Como poderia ser de outromodo? Marley fora seu sócio durante não seiquantos anos; Scrooge era seu único executortestamentário, o único administrador dos seusbens, seu único herdeiro, seu único amigo.De resto, este triste acontecimento, mais quesuficiente para perturbar qualquer outro, não oabatera a ponto de fazê-lo perder suas notáveisqualidades de homem de negócios, pois haviaassinalado o dia dos seus funerais precisamente poruma especulação das mais felizes.A menção dos funerais de Marley leva-menovamente ao ponto de partida. É absolutamentecerto que Marley estava morto. Este ponto tem deficar rigorosamente assentado, sem o que, ahistória que vou contar não apresentaria nada deextraordinário. Se nós não estivéssemosperfeitamente convencidos de que o pai de Hamletse achava morto antes de levantar o pano do palco,o fato de vê-lo passear sobre suas própriasmuralhas, por uma noite de tempestade, nos teriasurpreendido tanto quanto se tal fato se tivessedado com um fidalgo qualquer, que altas horas danoite se levantasse e temerariamente fosse errarem pleno descampado.Scrooge não havia apagado jamais o nome de seuantigo sócio. Depois de tantos anos, ainda se liasobre a porta de sua casa comercial o nome de

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Scrooge & Marley, pois Scrooge & Marley continuavacomo a razão social da firma. As pessoas que nãoestavam bem a par das coisas chamavam Scroogeora por Scrooge, ora por Marley, mas Scroogeatendia pelos dois nomesindiferentemente.Ah! Scrooge! Com que firmeza ele empunhava asrédeas dos negócios! Como este negociante sabiapegar e espremer, agarrar e tosquiar o cliente e,sobretudo, não irritar ninguém. Duro e cortantecomo uma pedra-de-fogo, da qual jamais aço algumconseguiu arrancar uma única centelha generosa,Scrooge mostrava-se taciturno, arredio e isoladocomo uma ostra. Uma frieza interior enregelava-lheos traços decrépitos, ressumbrava em seu narizadunco, sulcava-lhe as faces, endurecia-lhe o andar,avermelhava-lhe os olhos, azulava-lhe os lábiosfinos e fazia sentir-se até mesmo em sua vozestridente. Uma espécie de neblina cobria-lhe acabeça, os supercílios e o queixo pontiagudo. Estafrieza inóspita Scrooge a levava consigo aonde querque fosse, de modo que seu escritório continuavagélido durante o mais intenso calor e nãomelhorava um grau nem mesmo pelo Natal.Quanto à temperatura exterior, pouca influênciaexercia sobre ele. Nenhum calor poderia aquecê-lo,assim como o mais rigoroso inverno não conseguiriatranspassá-lo. Não havia rajada mais áspera queele, tempestade de neve mais implacável, chuvafina mais torturante. O mau tempo não sabia poronde pegá-lo. Chuva e granizo, neve e frio levavamsobre ele apenas uma vantagem: todos semostravam, uma vez ou outra, pródigos de seus

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benefícios; Scrooge, nunca!Ninguém, jamais, conseguiu pará-lo na rua para lhedizer em tom amável: �Como vai, meu caroScrooge? Quando terei o prazer de sua visita?�Mendigo algum animava-se a implorar-lhe acaridade, nem nenhuma criança se atreveria aperguntar-lhe as horas. Nem uma única vez, emtoda a sua existência, homem ou mulher havia-lheperguntado sobre um caminho. Os próprios cães decegos pareciam conhecê-lo, pois desde que oavistavam procuravam desviar seu pobre amo parajunto de uma porta ou a um quintal qualquer, e ali,agitando a cauda, pareciam dizer: �É preferível nãoter olhos a ter tão má catadura, meu pobre amo!�Mas, que importava a Scrooge? Pois era justamenteo que ele queria. Sua maior felicidade era abrircaminho através das estradas atravancadas da vida,tendo sempre a distância toda e qualquer simpatiahumana.

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Um dia, um dos melhores do ano, e véspera deNatal, o velho Scrooge achava-se em seu escritório,a trabalhar. O frio era acre e penetrante,acompanhado de nevoeiro. Scrooge ouvia aspessoas que iam e vinham na pequena viela,esfregando as mãos e caminhando rapidamentepara se aquecerem. Os relógios da cidade acabavamde soar três horas, mas já começava a escurecer, eas luzes principiavam a brilhar no interior dosescritórios vizinhos, pontilhando de manchasavermelhadas a atmosfera cinzenta e quase

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palpável do crepúsculo.O nevoeiro infiltrava-se por todas as fendas,invadindo o interior das casas pelo buraco dasfechaduras; fora, era tão denso, que, não obstantea estreiteza da viela, as casas fronteiriças setinham tornado imprecisos fantasmas. Diante destaonda cinzenta que descia progressivamente,ameaçando envolver tudo em sua obscuridade,poder-se-ia crer que a natureza inteira se haviaposto ali a fabricar a chuva e a neve.A porta de Scrooge estava aberta de modo apermitir-lhe observar seu empregado, que se achavacopiando cartas no compartimento contíguo, lúgubrecubículo que mais parecia uma cisterna. O fogo deScrooge era bem insignificante, mas o de seuempregado era tão miserável que parecia nãopassar de uma única brasa. E tornava-se impossívelalimentá-lo, pois que Scrooge conservava junto desi a lata de carvão, e quando o pobre rapaz entrava,com a pá na mão, Scrooge declarava que eraobrigado a dispensar os serviços de um homem tãogastador. Diante disso, o pobre homem, enrolando-se em seu cachecol branco, procurava aquecer-se nachama da lamparina, o que não conseguia, por nãoser dotado de uma imaginação suficientementeviva.- Bom Natal, meu tio, e que Deus o ajude!exclamou uma voz jovial.Era a voz do sobrinho de Scrooge, cuja entrada noescritório fora tão imprevista, que este cordialcumprimento foi o único aviso com que o rapaz sefizera anunciar.- Tolice! Tudo isso são bobagens!

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O sobrinho de Scrooge, que havia caminhadoapressadamente no meio da bruma gélida, tinha orosto incendiado pela corrida. Seu rosto simpáticoestava vermelho, os olhos brilhavam, e, quandofalava, seu hálito quente transformava-se numanuvem de vapor.- Natal, uma bobagem, meu tio? Parece que osenhor não refletiu bem!- Ora! disse Scrooge. Feliz Natal! Que direito temvocê, diga lá, de estar alegre? Que razão tem vocêde estar alegre, pobre como é?- E o senhor, respondeu alegre e zombeteiramente osobrinho, que direito tem de estar triste? Que razãotem o senhor de estar acabrunhado, rico como é?Não encontrando no momento melhor resposta,Scrooge repetiu novamente:- Tolice! Tudo isso são bobagens!- Vamos, meu tio! Não se amofine! disse o jovem.- Como não me amofinar, replicou o tio, quandovivemos num mundo cheio de gente ordinária? FelizNatal! . . . Que vá para o diabo o seu feliz Natal!Que representa para você o Natal, a não ser umaépoca em que você é obrigado a abrir o cordão dabolsa já magra? Uma época em que você se fazmais velho um ano e nem uma hora mais rico? Emque você, fazendo um balanço, verifica que ativo epassivo equilibram, sem deixar nenhum resultado?Se fosse eu quem mandasse, continuou Scroogeindignado, cada idiota que percorre as ruas com um�feliz Natal� na ponta da língua seria condenado aferver em sua marmita, em companhia de seu �bolode Natal�, e a ser enterrado com um galho deazevinho espetado no coração. Pronto!

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- Meu tio! exclamou o jovem.- Meu sobrinho, tornou o tio num tom severo, podefestejar o Natal a seu modo, mas deixa-me festejá-lo como me aprouver.- Como lhe aprouver? Mas o senhor não o festejaabsolutamente!- Perfeitamente! disse Scrooge; então, dê-me aliberdade de não o festejar. Quanto a você, que lhefaça bom proveito! O proveito que você tem tido atéhoje...- Há muita coisa de que eu não soube tirar oproveito que poderia ter tirado, é certo, e o Natal éuma delas, replicou o sobrinho. Mas, pelo menos,estou certo de ter sempre considerado o Natal -fora a veneração que inspiram sua origem e seucaráter sagrados - como uma das mais felizesépocas do ano, como um tempo de bondade eperdão, de caridade e alegria; o único tempo, queeu saiba, no decorrer de todo um ano, em quetodos, homens e mulheres, parecem irmanados nomesmo comum acordo para abrir seus coraçõesfechados e reconhecer, naqueles que estão abaixodeles, verdadeiros companheiros no caminho davida e não criaturas diferentes, votadas a outrosdestinos. Assim, pois, meu tio, embora o Natal nãome tenha posto nos bolsos uma única moeda deouro ou de prata, estou convencido de que ele mefez e me fará muito bem, e é por isso que eurepito: Deus abençoe o Natal!O empregado não pôde deixar de aplaudir, de seucubículo, o sobrinho de Scrooge, mas, logo a seguir,caindo em si e notando sua inoportuna intromissão,pôs-se a remexer as brasas vigorosamente,

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acabando por apagá-las.- Eu que o ouça mais uma vez, disse Scrooge, evocê irá festejar o Natal no olho da rua. Quanto avocê, meu amigo, continuou ele voltando-se para osobrinho, você é de fato eloqüente; estou mesmoadmirado de que ainda não tenha conseguido umlugar no Parlamento.- Não se aborreça, tio, e venha almoçar conoscoamanhã.Scrooge respondeu mandando-o para o diabo, e ofez de cara a cara.- Mas, por quê? exclamou o sobrinho. Por quê?- Por que foi que você casou? perguntou Scrooge.- Porque eu amava.- Porque amava! resmungou Scrooge. Como se issonão fosse outra tolice maior ainda que festejar oNatal! Passe bem!- Mas, meu tio! O senhor nunca vinha à minha casaantes do meu casamento. Por que arranja essepretexto para não vir hoje?- Boa noite! disse Scrooge.- Eu não espero nada do senhor; eu nada lhe peço.Por que não seremos bons amigos?- Boa noite! disse Scrooge.- Lamento de todo o coração vê-lo assim tãoobstinado. Não temos, que eu saiba, nenhummotivo de ressentimento. Foi em homenagem aoNatal que vim até aqui, e no espírito de Natal queroficar até o fim.- Boa noite! disse Scrooge.- E feliz Ano Novo!- Boa noite! replicou Scrooge.O sobrinho, entretanto, saiu do escritório sem uma

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palavra de desagrado. Na porta, deteve-se paraapresentar as boas-festas ao empregado, que,mesmo tiritando como estava, se mostrou maisamistoso que seu patrão, pois que respondeu aojovem com felicitações cheias de cordialidade.- Outro predestinado! resmungou Scrooge ao ouvi-lo. Imaginem meu empregado a falar de �FelizNatal� com apenas quinze xelins por semana, tendomulher e filhos!O tal �predestinado�, tendo acompanhado osobrinho de Scrooge até à porta, fez entrar doiscavalheiros de fisionomia simpática e aparênciadistinta, os quais penetraram no escritório, tendo àmão, além do chapéu, vários papéis e documentos.Na presença de Scrooge, inclinaram-se.- �Scrooge & Marley�, parece-nos? disse um deles,consultando os apontamentos. É ao senhor Scroogeou ao senhor Marley que temos a honra de falar?- O senhor Marley faleceu há cerca de sete anos.Morreu nesta mesma noite, fará seguramente seteanos.- Não temos a menor dúvida de que a generosidadedo sócio sobrevivente seja igual à dele, disse umdos cavalheiros, apresentando os papéis que oautorizavam a pedir.E não se enganava, pois que os dois sócios erambem dignos um do outro.Diante da inquietante palavra �generosidade�,Scrooge franziu o sobrolho, sacudiu a cabeça edevolveu os papéis.- Nesta festiva época do ano, senhor Scrooge,prosseguiu o cavalheiro, tomando uma pena, pareceainda mais oportuno do que em nenhuma outra

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ocasião, arrecadar algum dinheiro para aliviar ospobres e os deserdados da sorte, que sofremcruelmente os rigores do inverno. A muitos milharesde infelizes falta mesmo o estritamente necessário,e muitas outras centenas de milhares nãoconhecem o mais insignificante conforto- Não há prisões? perguntou Scrooge.- Prisões não faltam, disse o cavalheiro largando apena.- E os asilos? Não fazem nada? Perguntou Scrooge.- Sim, de fato, embora eu preferisse dizer ocontrário.- Então, as casas de correção estão em plenaatividade?- Sim, estão em plena atividade, senhor.- Oh! Eu já estava receando, pelo que o senhor medisse há pouco, que alguma coisa tivesseinterrompido uma atividade tão salutar, disseScrooge. Estousatisfeitíssimo por saber que tal não aconteceu.- Persuadidos de que estas organizações nãopodem proporcionar ao povo o consolo cristão daalma e do corpo, de que ele tem tanta necessidade,tornou o cavalheiro, alguns dentre nós resolveramempreender uma coleta, cujo produto seriadistribuído aos pobres, em forma de alimento,combustível e roupa. Escolhemos esta época do anoporque, mais que nenhuma outra, é aquela em quemais cruelmente se faz sentir a penúria e em que oconforto se torna mais doce. Quanto posso pôr emseu nome?- Nada.- Desejaria guardar o anonimato?

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- Desejo que me deixem em paz; já que ossenhores querem saber, é isso que eu desejo. Eunão faço banquetes para mim próprio pelo Natal,vou agora dar banquete aos vagabundos! Já façomuito em dar minha contribuição às organizaçõesde que falamos ainda há pouco, e elas não ficambarato! Aqueles que tiverem necessidade querecorram a elas.- Muitos não o podem fazer, outros preferem amorte.- Se preferem a morte, disse Scrooge, está ótimo!Que morram! Isso virá diminuir o excesso depopulação. De resto, queiram desculpar-me, porémnão estou bem a par dessa questão.- Mas o senhor poderá tomar parte nela.- Isso não me interessa, replicou Scrooge. Umhomem já faz muito, quando se ocupa dos seuspróprios negócios, sem interferir nos negóciosalheios. Os meus já me tomam todo o tempo. Boanoite, senhores.Vendo claramente que era inútil insistir, oscavalheiros retiraram-se. Scrooge, satisfeito consigomesmo, pôs-se novamente a trabalhar, comradiante bom-humor.

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Durante este tempo, o nevoeiro e a escuridãofizeram-se tão espessos, que muitas pessoaspercorriam as ruas com tochas acesas na mão,oferecendo-se aos cocheiros para irem adiante doscavalos iluminando o caminho. A antiga torre deuma igreja, cujo velho sino bimbalhante parecia

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espiar Scrooge continuamente através de suajanelinha gótica, tornara-se invisível e pôs-se atocar as horas e os quartos de hora entre nuvens,com vibrações prolongadas e trêmulas, como seestivesse a bater os dentes lá no alto, no argelado.O frio tornava-se intenso. Na rua principal, sobre aqual desembocava a viela, alguns operários, quereparavam o encanamento do gás, haviam acendidouma fogueira, em torno da qual se haviamaglomerado homens e mulheres, todos andrajosos,que aqueciam as mãos e olhavam o fogo com armaravilhado. O bebedouro público, vendo-seabandonado, resolveu congelar-se. Os luminososdos magazines, onde as bagas e as folhas deazevinho estavam sob o calor das lâmpadas nasvitrinas, imprimiam rubros reflexos nos rostospálidos dos transeuntes.As vitrinas dos restaurantes e dos bares ofereciamaos olhos uma apresentação esplêndida, umespetáculo deslumbrante, com o qual pareciaimpossível que os vulgares princípios da compra eda venda pudessem ter a menor relação. O prefeito,repimpado no majestoso edifício da Câmara, davaordens a seus cinqüenta cozinheiros e despenseirospara que o Natal fosse comemorado como se devecomemorar na casa de um prefeito. E mesmo opobre alfaiate, que fora condenado na segunda-feiraanterior a cinco xelins de multa por embriaguez earruaça noturna, fazia seus preparativos dentro desua miserável mansarda, batendo a massa do bolodo dia seguinte, enquanto sua esposa saíaapressadamente, com o bebê ao colo, para comprar

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um pedaço de carne de vaca.O nevoeiro adensava-se cada vez mais, e o frio setornava cada vez mais áspero e penetrante. Umrapazinho de nariz arrebitado, roído pelo vento,glacial e voraz, como um osso por um cão,aproximou-se da porta para saudar Scrooge comuma cantiga de Natal. Mas, desde as primeiraspalavras de Deus vos salve, bom amigo, vos dêcoração alegre, Scrooge apanhou uma régua com umgesto tão enérgico, que o cantor fugiu espavorido,perdendo-se no nevoeiro e no frio.Finalmente, chegou a hora de fechar o escritório.Scrooge admitiu o fato, mas deixou seu tamboretebastante penalizado. O empregado, que em seucubículo só aguardava este sinal, apressou-se emapagar o candeeiro e pôr o chapéu.- Você há de certamente querer ficar livre todo o diade manhã? disse-lhe Scrooge.- Se isso não o aborrecer, senhor.- Naturalmente que isso me atrapalha, replicouScrooge; e o que é mais, isso não é justo. Se eudescontasse meia coroa de seu ordenado, apostoque se sentiria prejudicado.O empregado teve um sorriso pálido.- E entretanto, tornou Scrooge, você acha que nãome prejudica, a mim, quando estou lhe pagando umdia para não fazer nada.O empregado observou humildemente que issoacontecia apenas uma vez por ano.- Bela desculpa para meter as unhas no bolso doseu patrão a cada 25 de dezembro! disse Scrooge,abotoando o sobretudo até ao queixo. Espero queseja mais pontual no dia seguinte pela manhã.

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O empregado prometeu-o, e Scrooge saiuresmungando.O escritório foi fechado num abrir e fechar de olhos,e o empregado também saiu, todo enrolado em seucachecol branco, cujas extremidades pendiam paraalém da jaqueta, pois que ele desconhecia o luxode um sobretudo. Em honra do Natal, desceuCornhill fazendo escorregadelas, em companhia deum bando de rapazes; depois, rumou a todavelocidade para Camden, a fim de entrar em casa ecomeçar a brincar de cabra-cega.

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Scrooge fez uma magra refeição na sombriaespelunca em que costumava comer. Quandoacabou de percorrer os jornais e de tornar aobservar sua caderneta do banco, entrou em casapara deitar-se.O apartamento em que residia era o mesmo em quevivera seu falecido sócio. Composto de várioscompartimentos lúgubres e mal-iluminados, faziaparte de um prédio estranho, situado no fundo deum pátio, onde estava tão mal colocado, que sepoderia pensar que ele viera parar ali em suajuventude, brincando de esconde-esconde comoutras casas, e depois não encontrou mais seucaminho. Além de tudo isso, era velho e infundia omedo que inspiram as casas abandonadas, pois queninguém, a não ser Scrooge, ali residia, estandoocupados os outros compartimentos com escritórioscomerciais.O pátio era de tal modo escuro, que Scrooge, não

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obstante conhecer de cor todos os seuspormenores, foi obrigado a atravessá-lo àsapalpadelas. O nevoeiro e o granizo envolviam detal modo o arcaico e sombrio alpendre, que pareciaestivesse o gênio do inverno sentado no seu portal,engolfado em lúgubres meditações.Agora, se existe um fato comprovado, é que aaldrava de ferro da porta não apresentavaabsolutamente nada de particular, a não ser que erabastante grossa. Outro fato indiscutível é queScrooge estava acostumado a vê-la de manhã e detarde, desde que morava naquela casa. Cumprenotar igualmente que Scrooge era tão destituído deimaginação como qualquer habitante de Londres,inclusive os membros da municipalidade e osaldermen. É necessário notar, também, que Scroogenão havia pensado um só instante em Marley desdea alusão que havia feito, naquela mesma tarde, àmorte de seu antigo sócio, verificada sete anosantes. Isto posto, expliquem-me, se puderem, comopôde acontecer que Scrooge, ao meter a chave nafechadura, viu subitamente diante dele, e semprévia transformação, não uma argola de aldrava,mas o rosto de Marley!Sim, o rosto de Marley. Aquele rosto não estava,como o resto do pátio, mergulhado nas trevasimpenetráveis, mas aureolado de um estranhoclarão fosforescente. Sua expressão não era nemameaçadora nem bravia, e olhava para Scroogecomo Marley costumava olhá-lo, com os óculossobre a testa de espectro. Os cabelos se lheagitavam de modo estranho, levantados, parecia,por um sopro ou uma corrente de ar quente; e seus

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olhos, embora bem abertos, estavam perfeitamenteimóveis.A aparição, com aquela tez lívida e aquele olharfixo, era horrível de se ver; entretanto, o horror queela inspirava não procedia propriamente daexpressão dos seus traços, mas de uma influênciaexterior, que se exercia de fora e como que adespeito dela mesma.Mas quando, vencida a primeira perturbação,Scrooge examinou fixamente o estranho fenômeno,já não viu, de repente, nada mais que o simplesanel da aldrava.Dizer que ele não se amedrontou e não sentiuinteriormente uma impressão extraordinária jamaisexperimentada até então, seria falso. Nãoobstante, deitou a mão sobre a chave, que haviadeixado cair, fê-la voltar-se com decisão nafechadura, penetrou no vestíbulo e acendeu a vela.Para dizer verdade, Scrooge teve um momento dehesitação antes de fechar a porta, e começou porexaminá-la prudentemente pela parte de trás, comose receasse ver surgir no vestíbulo a ponta dacabeleira de Marley. Mas não havia nada naquelelado, exceto os parafusos e as porcas que fixavam aaldrava. Depois de tal vistoria, Scrooge murmurou:�Ora! Tolices!� e tornou a fechar a portabruscamente.Aquele ruído propagou-se por toda a casa como orolar de um trovão. Todos os cômodos do pavimentosuperior, todas as pipas do negociante de vinho, naadega, embaixo, repetiram aqueles ruídos comsonoridades várias. Mas Scrooge não era homemque se deixasse amedrontar com ecos. Trancou a

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porta, atravessou o vestíbulo e subiu a escadacalmamente, protegendo a vela.Costuma-se falar algumas vezes das escadasantigas, pelas quais poderia passar facilmente umcarro puxado por seis cavalos. Pois bem: eu possoafirmar que na escada de Scrooge se teria podidofazer passar um carro grande, e até mesmo pô-loatravessado, com os varais para a parede e atraseira para o lado da balaustrada: haveria todo oespaço necessário, e mais ainda.Foi talvez por esta razão que Scrooge pareceu verum carro fúnebre subir diante dele, na escuridão.Meia dúzia de lampiões teriam sido insuficientespara aclarar os enormes baixos da escada:imaginem agora o que poderia fazer aquela simplesvelinha de Scrooge.Completamente despreocupado, Scrooge continuavaa subir. A escuridão não custa dinheiro, e era porisso que Scrooge gostava da escuridão. Do mesmomodo, antes de fechar a pesada porta do seuapartamento, percorreu todas as dependências,para certificar-se de que nada havia de anormal. Elehavia guardado da aparição uma impressão forte osuficiente para justificar esta medida.A sala, o quarto de dormir, o quarto de despejo,tudo conservava seu aspecto habitual. Não havianinguém debaixo da mesa, ninguém debaixo dosofá. Um resquício de lume no fogão, uma xícara euma colher preparadas sobre a grade da lareira,uma canequinha de remédio (Scrooge sofria deenxaqueca). Ninguém debaixo da cama, ninguém noarmário embutido, ninguém no robe de chambre,que pendia encostado à parede, numa atitude

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suspeita. No quarto de despejo, não havia senão,como habitualmente, um velho guarda-fogo,sapatos usados, duas cestas, um penteadorcambaio e uma pá de carvão.Completamente tranqüilizado, Scrooge fechou aporta, dando a primeira volta à chave, depois asegunda volta, o que não costumava fazer. Postoassim ao abrigo de surpresas, tirou a gravata,enfiou o roupão, calçou as chinelas, pôs o boné denoite e sentou-se diante do fogo para beber suaxícara de remédio.O fogo era bastante fraco e de todo insuficientepara uma noite tão fria. Scrooge foi obrigado asentar-se bem encostado e a inclinar-se sobre elepara conseguir obter deste insignificante punhadode combustível uma leve sensação de calor.A lareira era antiga. Construída, outrora, por algumantigo comerciante holandês, era inteiramenterevestida de azulejos de faiança, representandocenas da Bíblia. Havia Cains e Abéis, filhas deFaraós e rainhas de Sabá, angélicos mensageirosque desciam do céu sobre nuvens de arminho;Abraãos e Baltasares, apóstolos que seaventuravam no tenebroso oceano em pequeninosbatéis . . . Assim, lá estavam centenas depersonagens para ocupar e distrair o pensamentode Scrooge.Entretanto, como a antiga vara do profeta, o rostode Marley, morto havia sete anos, vinha sobrepor-sea tudo isto. Se a superfície destes azulejos fossetotalmente branca e dotada da propriedade derepresentar um fragmento que fosse o pensamentode Scrooge, sobre todos eles estaria estampada

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uma cópia da cabeça de Marley.- Idiotices! . . . disse Scrooge, levantando-se epondo-se a passear de um lado para outro.Depois de ter percorrido o aposento muitas vezesseguidas, voltou a sentar-se. Como inclinasse acabeça para trás, seus olhos pousaram,casualmente, sobre uma campainha já fora de uso,que pendia da parede e que se comunicava, não sesabe por quê, com uma das mansardas da casa.Scrooge ficou tomado do mais vivo espanto, e aomesmo tempo de um indescritível e inexplicávelpavor, quando viu mover-se o cordão da campainha,que começou a balançar-se primeirovagarosamente, quase imperceptível, e, emseguida, violentamente, ao mesmo tempo em quetodas as campainhas da casa entraram a soarruidosamente.Este tumulto durou aproximadamente meio minuto,quando muito um minuto, mas que pareceuinterminável a Scrooge. E as campainhas, domesmo modo como começaram, tambémsilenciaram ao mesmo tempo.A este alarido infernal, sucedeu um barulhometálico, oriundo das profundezas da casa, como sealguém, no interior da adega, arrastasse pesadascorrentes. Então, Scrooge lembrou-se de ter ouvidodizer que, nas casas mal-assombradas, os duendesarrastam sempre grossas cadeias atrás de si.A porta da adega abriu-se violentamente, e oestrépito fez-se ouvir mais vivo no rés-do-chão,depois na escada, e, aproximando-se cada vezmais, dirigiu-se em linha reta para a porta doapartamento.

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- Idiotices! . . . disse Scrooge. Não acredito nisso,não!Mas imediatamente mudou de cor, quando, semdeter-se um só instante, o misterioso visitanteatravessou a porta maciça e apresentou-se diantedele.A sua entrada, o fogo bruxuleante lançou umaderradeira labareda, que pareceu gritar: �Eu oreconheço: é o espectro de Marley!� E apagou-se.Era a mesma fisionomia, absolutamente a mesma.Marley, tendo na cabeça a mesma peruca, vestindoo mesmo colete, as calças justas e as botinas queusava habitualmente. O couro das botas, o topete eo rabicho da peruca arrepiavam-se, e as abas desua casaca balançavam. Cingia-lhe o corpo a longacorrente que trazia, e que serpenteava atrás delecomo uma cauda. Scrooge, que a examinavaatentamente, viu que era formada de cofres-fortes,de chaves, de cadeados, de registros e de pesadasbolsas de aço.Como o corpo do espectro era transparente, Scroogepôde observar, através do seu colete, os doisbotões pregados no corpo do casaco pela parte detrás.Scrooge ouvira dizer, por mais de uma vez, queMarley não tinha entranhas, mas até então elejamais pudera acreditar.Não! Mesmo agora Scrooge não podia acreditar emsemelhante coisa. Não lhe importava ver diante desi aquele fantasma, que seu olhar atravessavacomo sefora de vidro; não lhe importava sentir o olharglacial dos seus olhos mortos, nem reparar no

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próprio tecido de que era feito o lenço que lheenvolvia a cabeça e o queixo - minúcia que não lhehavia chamado a atenção nos primeiros momentos.Não, Scrooge continuava incrédulo e lutava contraos próprios sentidos.- Pois bem! disse Scrooge, frio e mordaz como decostume. Que quer de mim?- Muita coisa.Já não podia haver a menor dúvida: era exatamentea voz de Marley.- Quem é você? perguntou Scrooge.- Pergunta, antes, quem eu era ...- Então, quem era você? tornou a perguntar Scroogeelevando a voz. Para ser um espectro acho-o muitoreal.- Em vida, fui Jacob Marley, teu sócio.- Pode... sim... pode sentar-se? perguntou Scrooge,olhando-o com ar de dúvida.- Posso.- Então, sente-se.Scrooge havia feito esta pergunta porque duvidavaque um ser assim tão transparente pudesse acasotomar um assento, o que obrigaria seu visitante, nocaso de impossibilidade, a uma explicação bastanteembaraçosa.O fantasma, porém, sentou-se do outro lado dalareira, com a maior naturalidade deste mundo.- Não acreditas em mim? perguntou ele.- É claro que não, respondeu Scrooge.- Que provas desejas da realidade da minhapresença, fora do testemunho dos teus sentidos?- Nem sei.- Por que duvidas dos teus sentidos?

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- Pela simples razão, respondeu Scrooge, de quenão precisa muita coisa para perturbá-los. Nãoprecisa mais que uma ligeira indisposição deestômago. Quem pode provar que, afinal de contas,tudo isto não passe de uma bisteca mal digerida,uma colher de mostarda, um naco de queijo ou umabatata mal cozida. Quem quer que seja, você cheiramais a cerveja que a defunto.Scrooge não costumava de modo algum fazergracejos, e especialmente neste momento não lheapeteciam pilhérias. Para dizer a verdade, se semostrava espirituoso, era mais para enganar a sipróprio e dissipar o seu pavor, pois a voz doespectro o apavorava até o mais íntimo recesso doseu ser.Contemplar em silêncio estes olhos fixos vítreos erapara Scrooge uma provação acima de suas forças. Oque lhe parecia igualmente horrível era a atmosferainfernal que envolvia o fantasma. Scrooge não podiasenti-la por si próprio, mas reconhecia claramente asua presença porque, muito embora o espectro seconservasse imóvel, sua cabeleira, as borlas desuas botas e as abas do seu casaco não paravamde agitar-se, como se fossem movidas pelo cálidosopro de uma fornalha.- Está vendo este palito? disse Scrooge, voltandovivamente à carga, pela mesma razão exposta epara desviar de sobre si, ainda que fosse porapenas um segundo, o olhar vítreo da aparição.- Vejo, respondeu o fantasma.- Mas você não está olhando para ele, observouScrooge.- Mas estou vendo, disse o fantasma.

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- Pois bem! continuou Scrooge, basta que eu oengula para ser perseguido, até o fim dos meusdias, por uma legião de espíritos imaginários, todosnascidos do meu estômago. Tolices! Posso afirmar-lhe. Tudo tolices!A estas palavras, o fantasma soltou um tremendourro e agitou com tal violência as suas cadeias,fazendo um barulho tão sinistro e pavoroso, queScrooge foi obrigado a agarrar-se à poltrona paranão desmaiar. Mas seu espanto recrudesceu aindamais quando o fantasma, retirando o lenço que lheenvolvia a cabeça, como se o sufocasse o calor,deixou cair sobre o peito o maxilar inferior.Scrooge lançou-se de joelhos, escondendo o rostoentre as mãos.- Misericórdia! exclamou ele. Ó pavorosa aparição,por que me vem atormentar?- Miserável criatura, tão apegada aos bens da terra!Acreditas em mim, agora?- Sim, balbuciou Scrooge, creio! Sou obrigado a crer!Mas por que vagam os espíritos sobre a terra, e porque me vêm eles perturbar?- Deus exige de cada homem, respondeu oespectro, que o espírito que o anima seconsubstancie com as almas de seus semelhantesno decurso de sua longa viagem pela vida. Assim,pois, aquele que viver só para si durante aexistência, é condenado a viver errante pelo espaçoapós a morte - ó miserável destino! - para assistir,já agora impotente, a todas as coisas em que,durante a vida, poderia ter tomado parte para suafelicidade e a de seu próximo.Novamente o espectro deu um grito, ao mesmo

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tempo que agitava as cadeias e retorcia as mãostransparentes.- Você está acorrentado! disse Scrooge com voztrêmula. Diga-me por quê.- Estou acorrentado com as cadeias que forjei paramim mesmo durante a vida. Forjei-a elo por elo,palmo a palmo. Trago-a agora por minha livrevontade, e é de livre vontade que a tenho usado.Estás estranhando o modelo?Scrooge tremia cada vez mais.- Desejas saber, prosseguiu o fantasma, o peso e ocomprimento da cadeia que trazes em torno da tuacintura? Há sete anos, precisamente numa noite deNatal, ela era tão comprida e tão pesada quantoesta. Desde então tens trabalhado muito nela.Neste momento, é uma corrente de consideráveldimensão.Scrooge deitou um olhar febril para o soalho, comose já se visse enlaçado por cinqüenta ou sessentametros de corrente de ferro. Mas nada viu.- Jacob, disse ele com voz suplicante, meu velhoJacob Marley! Diga-me ainda alguma coisa! Dê-meum pouco de conforto, um pouco de esperança!- Já não posso confortar ninguém, respondeu ofantasma. O consolo e a esperança vêm de outrafonte, Ebenezer Scrooge. São trazidos por outrosmensageiros e para outros homens, não para ti.Além do mais, não posso conversar D quanto eudesejara. O que me é permitido dizer-te ainda épouca coisa, pois não tenho permissão paradescansar, nem para deter-me, nem para demorar-me onde quer que seja. Noutros tempos, meuespírito não saía jamais do nosso escritório, estás-

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me compreendendo? Nunca, durante minha vida,meu espírito se resolveu a afastar-se dos estreitoslimites do nosso covil de negociatas. Eis por quetenho diante de mim tantas e tão penosas viagens.Scrooge tinha o hábito de meter as mãos nosbolsos, quando refletia; e foi assim que, enquantomeditava sobre as últimas palavras do fantasma,dirigiu-lhe a palavra, mas sem erguer os olhos esempre ajoelhado.- É preciso que você tenha sido bem lento, Jacob!observou ele com voz onde transparecia o homemde negócios ao mesmo tempo humilde eobsequioso.- Bem lento! repetiu o espectro.- Você morreu há sete anos, disse Scroogepensativo, e todo esse tempo perambulando?- Todo o tempo, disse o espectro; sem repouso esem trégua, com a eterna tortura do remorso.- Viaja com rapidez? perguntou Scrooge.- Nas asas do vento.- Você deve ter percorrido muitos países duranteestes sete anos, disse Scrooge.A estas palavras, o espectro deu ainda um grito esacudiu as suas correntes com um tal fragor, quecortou ruidosamente o profundo e gélido silêncio danoite.- Oh, um desgraçado prisioneiro, acorrentado ecarregado de ferros! exclamou o fantasma, por terolvidado que todo homem deve associar-se àgrande obra da humanidade, prescrita peloOnipotente, e perpetuar o progresso. Por não saberque uma alma verdadeiramente cristã, que trabalhagenerosamente dentro de sua esfera, por muito

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pequena que seja, sempre achará que sua vidamortal é demasiado breve para realizar todo o bemque ela vê por fazer-se em redor de si. Por nãosaber que uma eternidade de lágrimas não podereparar uma vida mal vivida! . . . Pois bem, eraassim que eu vivia, era assim que eu vivia!- Entretanto, Jacob, balbuciou Scrooge, quecomeçava a tomar para si mesmo as palavras doespectro, você foi sempre um excelente homem denegócios.- Os negócios! gemeu o fantasma retorcendo asmãos. A humanidade, o bem comum, a indulgência,a caridade, a misericórdia, a benevolência, essesdeviam ter sido os meus negócios!O espectro ergueu suas cadeias com a extremidadedo braço, como se visse nelas a causa do seu inútildesespero, deixando-a em seguida cairpesadamente ao chão.- Quando chega esta época do ano, prosseguiu ele,meus sofrimentos redobram. Por que fui eu tãoinsensato para ter passado no meio da multidãodos meus semelhantes, sempre com os olhosvoltados para o chão, sem jamais erguê-los paraaquela bendita estrela, que um dia conduziu osmagos para uma pobre choupana? Não haveriaoutras pobres choupanas, aonde a luz me pudesseter guiado a mim também?Scrooge tremia como varas verdes, ouvindo oespectro falar daquele modo.- Ouve-me, gritou o fantasma. Meus minutos sãocontados.- Estou ouvindo! disse Scrooge, mas tenha pena demim. Eu lhe peço Jacob, não faça muitos rodeios!

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� Seria difícil dizer por que é que estou aparecendodiante de ti sob forma visível. Aliás, por mais deuma vez já me sentei a teu lado, invisivelmente.Esta revelação foi assustadora. Scrooge,estremecendo, enxugou a testa banhada de suor.- Mas não é esse o meu maior suplício, continuou oespectro. Vim esta noite para avisar-te de queainda te resta uma esperança, uma oportunidade deescapar a um destino semelhante ao meu. É umaesperança, uma oportunidade que eu venho trazer-te, Ebenezer.- Oh, mil vezes obrigado! exclamou Scrooge. Vocêfoi sempre um bom amigo para mim.- Vais ser visitado por mais três espíritos, continuouo fantasma.O semblante de Scrooge tornou-se tão lívido como odo próprio espectro.- É essa, então, a esperança ou a oportunidade deque você me falou, Jacob? perguntou ele com a vozdébil.- Exatamente.- Eu... Eu preferia que isso não acontecesse.- Se não receberes a visita deles, podes perder aesperança de escapar a um destino igual ao meu.Aguarda a visita do primeiro espírito amanhã aobater da uma hora.- Não seria melhor que viessem todos juntos, paraacabar mais depressa com isso? sugeriu Scrooge.- O segundo aparecerá na noite seguinte, à mesmahora, e o terceiro na outra noite, ao bater a últimabadalada da meia-noite. Não esperes tornar a ver-me, e não te esqueças, no teu próprio interesse, deconservar a lembrança de tudo que se passou entre

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nós.Dito isto, o espectro apanhou seu lenço sobre amesa e o amarrou, como antes, em torno dacabeça. Scrooge só o notou, quando ouviu o secoestalido que produziram os dois maxilares ao seencontrarem. Arriscando um olho, viu seu visitantesobrenatural em pé diante dele, erecto, as cadeiasenroladas no braço. A aparição afastou-se, decostas, e, à medida que se distanciava, a janelaabria-se progressivamente até que, quando oespectro a alcançou, ela estava completamenteaberta.O espectro fez sinal a Scrooge que se aproximasse.Quando estiveram apenas a dois passos um dooutro, o espectro ergueu o braço. Scrooge deteve-se. Deteve-se, menos para obedecer ao fantasmado que por um sentimento de surpresa e de medo,pois que, simultaneamente ao gesto do fantasma,começava a ouvir estranhos e confusos ruídos portoda a casa, vozes plangentes que se misturavamumas às outras, onde se confundiam remorsos edesesperos.Após ter escutado um instante, o espectro passoupela janela, juntou-se ao fúnebre cortejo edesapareceu na gélida escuridão. Scrooge, tomadode incoercível curiosidade, chegou à janela e,então, presenciou um estranho espetáculo.

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O ar estava povoado de almas perdidas, queperambulavam e rodopiavam interminavelmente,soltando gemidos, e cada uma delas trazia uma

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corrente, como o espectro de Marley. Alguns destesfantasmas, talvez os membros de algum maugoverno, estavam amarrados juntos. Nenhumestava livre.Scrooge notou entre eles alguns de seus antigosconhecidos, entre os quais um velho fantasma decolete branco, com quem tivera freqüentes relações.Em seu tornozelo, estava amarrado um cofre-fortedescomunal, e Scrooge notou que a visão de umamendiga acocorada ao pé de uma sacada, com seubebê ao colo, lhe arrancava tristes lamentações depena por não poder socorrê-la.Percebia-se, claramente, que o maior tormentodestes infelizes era o ardente desejo de praticar obem sobre a terra, justamente agora que essapossibilidade lhes havia escapado para sempre.Scrooge não poderia dizer se todos aquelesfantasmas se dissiparam no intenso nevoeiro, ou sefoi o nevoeiro que os envolveu. O certo é que todosdesapareceram ao mesmo tempo dentro da noite, eo espaço ficou silencioso e ermo, como no momentoem que ele voltara para casa.Fechada novamente a janela, Scrooge examinoucuidadosamente a porta por onde o fantasma haviaentrado. Estava fechada com dupla volta, e osferrolhos estavam intactos.Scrooge ia dizer: �Tolices�, mas não foi além daprimeira sílaba. Apoderara-se dele uma incoercívelnecessidade de repouso, fosse, talvez, devido àsfadigas e às emoções do dia, fosse pela sua fugaao mundo dos espíritos e pela sinistra conversa quetivera com o espectro, ou talvez mesmo peloadiantado da hora.

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SEGUNDA ESTROFE

O primeiro dos três espíritos

Quando Scrooge despertou, a escuridão era tãoprofunda que, de seu leito, mal podia distinguir ajanela transparente e as escuras paredes do quarto.No momento em que se esforçava para romper aintensa treva que envolvia seus olhos, ouviu baternuma igreja das vizinhanças os quatro quartos.Scrooge aguçou os ouvidos para escutar as horasque iam bater.Com grande surpresa, o pesado carrilhão deu asseis... as sete . . . as oito. . . e assim,ritmadamente, até as doze.Meia-noite!Eram mais de duas horas quando Scrooge se atirarasobre o leito. Não era possível! O relógio deviaestar louco. Alguma coisa devia ter-lhe embaraçadoo maquinismo! Meia-noite!Scrooge premiu a mola do seu relógio de repetiçãopara verificar a exatidão daquele relógio idiota. Aminúscula engrenagem bateu rapidamente as dozevibrações e parou.- Vejamos, disse Scrooge. É impossível que eutenha dormido o dia inteiro e uma parte da noite.

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Acaso terá acontecido alguma coisa ao sol e sejaagora meio-dia em vez de meia-noite?Bastante alarmado com esta idéia, ergueu-se doleito e dirigiu-se para a janela, a tatear, como umcego. A primeira coisa que fez foi passar a mangado roupão pela vidraça, que a neblina embaçava, emesmo assim quase nada conseguiu distinguir fora.A coisa única que pôde verificar é que o nevoeirocontinuava espesso, como dantes, e que o frio erademasiado intenso; notou, ainda, que já não seouviam as idas e vindas das pessoas atarefadas, oque certamente se ouviria, se já estivesseclareando o dia.Este fato foi para ele um grande alívio, pois o queseria dele com as suas �letras a pagar a três diasda data ao sr. Ebenezer Scrooge ou à sua ordem�,se ele não dispusesse de dias para contar o tempo?Scrooge tornou a deitar-se, o pensamento vagandosobre o que poderia ter acontecido, mas por maisque quebrasse a cabeça para a decifração de tãocomplicado enigma, nada conseguiu desvendar.Quanto mais ruminava o caso, mais perplexo ficava,e quanto mais se esforçava por não pensar no caso,mais o caso assoberbava o seu pensamento.A lembrança do espectro de Marley causava-lhe umprofundo tormento. Cada vez que chegava aconvencer-se de que, afinal de contas, todo oocorrido não fora mais que um sonho mau, crac! láestava seu espírito novamente às voltas com oproblema, no próprio ponto de partida, formulandonovamente a mesma pergunta: �Era ou não era umsonho?�Scrooge permaneceu nesta agonia até o momento

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em que o carrilhão bateu os três quartos. Foi entãoque se lembrou, subitamente, de que o espectro lhehavia prenunciado a visita de um espírito quandobatesse uma hora da manhã. Nestas condições,resolveu ficar acordado até chegar a uma hora damanhã. Diga-se de passagem que esse foi o melhorcaminho a seguir, especialmente levando-se emconta que mais fácil lhe fora chegar até o mundo dalua do que tornar a adormecer.Este quarto de hora foi tão interminável, que lhepareceu, mais de uma vez, ter dormido e deixadopassar a hora.Finalmente, o carrilhão fez-se ouvir aos seusinquietos ouvidos:- Ding, dong!- Um quarto . . . contou Scrooge, escutandoatentamente.- Ding, dong!- Meia hora.- Ding, dong!- Três quartos.- Ding, dong!- A hora! exclamou Scrooge triunfante. A hora, enada!Mas é que Scrooge falava antes de ouvir o bater dauma hora da manhã no pesado badalar do carrilhão.E o badalar da uma hora da manhã fez-se ouvir,lúgubre, fúnebre, surdo e melancólico.Imediatamente, uma vivíssima claridade invadiu oaposento de Scrooge, ao mesmo tempo que ascortinas do seu leito foram puxadas por uma mãoinvisível.Porém, não eram as cortinas dos pés nem as da

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cabeceira do leito de Scrooge, mas as que estavamdiante de seus olhos, aquelas para as quais seusolhares estavam voltados. Então Scrooge,sentando-se bruscamente, achou-se frente a frentecom o sobrenatural visitante que havia afastado ascortinas do leito.Era uma estranha aparição.A primeira vista, ter-se-ia a impressão de ver-seuma criança, mas, a um exame mais minucioso,verificava-se que seria antes um velho, um anciãovisto através de uma atmosfera sobrenatural, quelhe dava uma aparência longínqua e o reduzia àsproporções de uma criança. Seus cabelos, brancoscomo os de um homem de idade, caíam-lhe pelosombros; seu rosto, entretanto, não apresentava amenor ruga, e sua tez era de uma deliciosafrescura. Os braços, longos e musculosos, bemcomo suas mãos robustas, denunciavam extremaforça. As pernas e os pés, finamente modelados,estavam nus como os membros superiores.O ancião vestia uma túnica de puríssima alvura,apertada à cintura por uma faixa luminosa, quebrilhava com refulgente esplendor; à mão, trazia umramo de azevinho e, em fundo contraste com estesímbolo do inverno, sua túnica era toda bordada deflores primaveris. Mas o que apresentava de maiscurioso era o facho de luz que se desprendia doápice de sua cabeça, e graças ao qual todos estespormenores podiam ser notados. Este fenômenoexplicava a presença do grande apagador em formade chapéu que trazia embaixo do braço, e com oqual devia cobrir-se em seus momentos de tristeza.Entretanto, observando-a com mais atenção,

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Scrooge notou que a aparição apresentava umaparticularidade ainda mais extraordinária. Domesmo modo que sua cintura resplandecia ora numponto, ora noutro, e que um ponto ainda há poucoluminoso agora estava escuro, todo o seu corpomudava constantemente de aspecto, mostrando-seora com um só braço, ora com uma só perna, ouentão com vinte pernas, mas sem cabeça, ou entãouma cabeça sem corpo. Das várias partes quedesapareciam, nem um único contorno ficava visívelnaquela extrema escuridão em que se envolviam. Eno meio de todas estas estranhas metamorfose, aaparição retomava, de súbito, sua primeira forma,nítida e perfeita como antes.- Sois vós o espírito, cuja visita me foi anunciada?perguntou Scrooge.- Sim.Aquela voz era doce e agradável, massingularmente fraca, como se, em vez de estar tãopróxima, viesse de muito longe.- Então, quem sois vós? perguntou Scrooge.- Sou o fantasma dos Natais passados.- Passados desde quando? interrogou Scrooge,observando o seu talhe delgado.- Somente os do teu passado.Scrooge sentia um ardente desejo de vê-lo cobertocom o chapéu que trazia à mão; se alguém lheperguntasse qual a razão disto, jamais teria sabidoresponder.- Como? exclamou o fantasma. Queres tão depressaextinguir, com as tuas mãos profanas, a fulguranteluz que resplandece em mim? Não te basta seresdaqueles cujas paixões me teceram este chapéu e

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que me forçam tantas e tantas vezes a enterrá-loaté aos olhos?Scrooge declarou respeitosamente não ter tido amenor intenção de ofender o espírito e afirmou nãolembrar-se jamais de o ter forçado, em toda a suavida, a �usar� aquele chapéu. Em seguida, atreveu-se a perguntar-lhe o que o trazia ali.- Tua felicidade, respondeu a aparição.Scrooge declarou-se profundamente agradecido,mas não deixou de pensar que uma noite derepouso teria concorrido mais eficazmente para esteresultado.O espírito pareceu ler seu pensamento, pois nomesmo instante falou:- Tua salvação, se preferes. Ouve-me!Assim falando, estendeu a mão para Scrooge etomou-o levemente pelo braço.- Levanta-te, e vem comigo.

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Teria sido inútil a Scrooge responder que nem otempo, nem aquele momento eram propícios paraum passeio a pé; que sua cama estava tãoquentinha e que o termômetro estava muitos grausabaixo de zero; que, além disso, estava vestidoapenas com o roupão, com o boné de noite e dechinelos, e que, para rematar, estava muito gripado.A pressão exercida pela mão do espírito, porém, tãodoce como se fora a de uma mulher, era de todoirresistível. Assim, pois, Scrooge levantou-se, masvendo que o espírito se dirigia para a janela, tocou-lhe a túnica e falou com voz súplice:

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- Oh, senhor! Sou apenas um mortal e posso cair!- Deixa-me apenas segurar-te por aqui, disse oespírito pondo a mão sobre o coração de Scrooge, eserás capaz de enfrentar muitos outros perigos.Ditas estas palavras, ambos passaram através daparede e acharam-se logo numa estrada orlada decampos. A cidade havia-se evanescido, nãorestando dela um único traço; do mesmo modo,haviam desaparecido a noite e o nevoeiro, fazendoagora um tempo hibernal claro e frio, com a terracoberta pela neve.- Bondade divina! exclamou Scrooge juntando asmãos. Foi aqui que fui criado! Aqui foi que passei aminha infância!O espírito envolveu-o num olhar benévolo. Emborativesse posto a mão apenas um instante sobre ocoração do velho, este julgou sentir ainda o calordaquele contato. Flutuavam no ambiente milperfumes amigos, cada um dos quais evocava umamultidão de pensamentos, de esperanças, dealegrias e pesares passados, de muitos anos atrás .. .- Tens os lábios trêmulos, observou o fantasma, e oque estou vendo em tuas faces?Scrooge, com voz rouquenha, o que estava fora dosseus hábitos, respondeu que era uma verruga, edeclarou que estava disposto a seguir o espíritoparaonde quer que fosse. !- Reconheces o caminho? perguntou o espírito.- Oh, se o reconheço! respondeu Scrooge comemoção; poderia andar por ele de olhos fechados!- É estranho que o tenhas esquecido durante tantos

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anos, observou o espírito. Vamos adiante.Ambos prosseguiram, e Scrooge ia reconhecendo àcada casa, cada árvore, cada poste. Logo a seguir,apareceu um pequeno povoado, com sua igrejinha,sua ponte e o rio sinuoso. Avistaram, então, naentrada, vários rapazes montados em hirsutospôneis, e que se comunicavam alegremente comoutros jovens montados em carriolas camponesas.Toda esta juventude transbordava de vida e deentusiasmo, e suas vozes enchiam o campo de umamúsica tão alegre que o ar cristalino parecia todoentrar em vibração.- São apenas sombras do passado, disse o espírito;elas não podem perceber a nossa presença.A medida que os alegres cavaleiros seaproximavam, Scrooge reconhecia-os e chamava-ospelo nome.Por que lhe causava tanta satisfação a presençadaqueles amigos? Por que lhe batia tãodescompassadamente o coração e se lheiluminavam os olhos ao vê-los passar? Por que sesentia tão cheio de alegria ao ouvir estes rapazestrocarem mútuas felicitações e votos de feliz Natal,quando se despediam nas encruzilhadas pararegressarem a suas casas? Que significava paraScrooge um �Feliz Natal�? Que vá para o diabo o�Feliz Natal�! Que proveito havia ele tirado doNatal?- A escola não está de todo deserta, disse oespírito; um menino solitário, abandonado pelosseus, ainda ali está.Scrooge declarou que bem o sabia, e reprimiu umsoluço.

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Deixando a estrada principal, entraram por umavereda, que Scrooge bem conhecia. Ao cabo depoucos instantes, chegaram a uma grandeconstrução de tijolos vermelhos, encimada por umpequeno campanário. A casa devia ter sidoimportante, mas teria passado por diversosreveses, pois suas vastas dependências pareciamabandonadas, com suas paredes úmidas eemboloradas, os pisos fendidos e as portasabaladas. As aves domésticas cacarejavam à soltano pasto, e o mato havia invadido as cocheiras.Dentro, nem o mais ligeiro vestígio do seu antigoesplendor. Penetrando no silencioso vestíbulo,Scrooge e o espírito entreviram, pelas portasabertas, frias e escuras dependências parcamentemobiliadas. Casavam-se o cheiro de mofo, queflutuava no ar, e a nudez geral do ambiente, à idéiade que ali deviam levantar-se ainda com o escuro etalvez não pudessem alimentar-se quantodesejariam.

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O espírito e Scrooge dirigiram-se para uma porta aofundo do vestíbulo. A porta abriu-se diante deles,mostrando uma vasta sala, triste e deserta, a queuma longa fila de bancos e carteiras dava ainda umaspecto mais austero.Sentado num destes bancos, um estudante solitáriolia junto de um lume quase apagado. Reconhecendo

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o pobre menino abandonado, que era ele próprio,Scrooge sentou-se e pôs-se a chorar. Os maisinsignificantes ecos desta mansão, a algazarra dosratos atrás do madeiramento, os gemidos do ventoatravés da galhada seca de um choupo melancólico,o ranger preguiçoso de uma porta emperrada, tudoisso eram outros tantos ecos que penetravam nocoração de Scrooge e lhe enchiam a alma de umadoce emoção.Tocando-lhe o braço, o espírito mostrou-lhe omenino engolfado em sua leitura. Subitamente, umhomem, vestido com um costume exótico, apareceuatrás da janela, com um machado preso à cintura epuxando pela brida um burro carregado demadeiras.- Meu Deus! Mas é Ali-Babá! exclamou Scrooge noauge da alegria. É o meu querido e honrado Ali-Babá! Sim, sim! Bem me lembro. Foi mesmo numdia de Natal que ele apareceu pela primeira vez,vestido exatamente desta forma, a este pequenoestudante que ficara ali sozinho. Pobre criança... EValentino, e Orson, seu irmão mais velho . . .Também estou a vê-los. E como se chama, mesmo,este rapagote, que foi raptado durante o sono edeixado semivestido às portas de Damasco? Não ovedes? E o palafreneiro do sultão, que os deusesderrubaram por ter desposado a princesa? Lá estáele de cabeça para baixo! Pois foi muito bem feito!Quem lhe mandou querer casar com a princesa?...Que espanto para seus colegas de negócios sepudessem ouvir Scrooge a discorrer com tantoentusiasmo sobre tais coisas, com voz estranha,onde se misturavam o riso e as lágrimas, e se

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pudessem ver seu rosto incendido e seu arexcitado!- Olha! exclamou ele, lá está o papagaio, com ocorpo verde, a cauda amarela e a espécie de alfaceque tem na cabeça, como uma poupa. �PobreRobinson Crusoé!�, repetia ele quando seu amovoltou, depois de inutilmente ter dado volta à ilha.�Pobre Robinson Crusoé! Onde estiveste, RobinsonCrusoé?� O homem não acreditava no que via, e,entretanto, era mesmo o pagagaio que falava.Agora é o Sexta-Feira, que corre desabaladamentepara abrigar-se na pequena enseada. �Coragem,Sexta-Feira! Vamos! Aí, valente!�- Eu bem quisera... murmurou ele pondo as mãosnos bolsos e olhando em redor de si, depois deenxugar os olhos com a manga do casaco. Eu bemquisera, mas já não é mais tempo . . .- Que há? perguntou o fantasma.- Nada, disse Scrooge, nada. Eu estava pensandonum garoto, que ontem à noite cantava uma ária deNatal diante de minha porta. Eu desejaria ter-lhedado alguma coisa.O espírito sorriu pensativamente e ergueu a mão,dizendo:- Passemos a outro Natal.A estas palavras, a sombra do Scrooge de outrostempos cresceu e a sala tomou um aspecto aindamais sombrio e descuidado. As finas tábuas queforravam as paredes da sala racharam-se, os vidrosquebraram-se, e os fragmentos, que caíram do teto,deixaram ver as vigas nuas. Como se operou estatransformação, nem Scrooge nem ninguém poderiaexplicar. O certo é que tudo o que via era a

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representação da realidade, que tudo se tinhapassado exatamente assim, e que só ele lá ficaraainda uma vez, quando todos os seus colegashaviam partido festivamente para as férias em seuslares.Desta feita, não estava engolfado na leitura, maspasseava pela sala de um lado para outro, com arsombrio. Scrooge olhou para o espírito, e depois,abanando tristemente a cabeça, lançou um ansiosoolhar para a porta. Esta abriu-se, e uma garotinha,muito mais nova que o estudante, apareceu nasala, enlaçou lhe o pescoço com os braços eestreitou-o repetidas vezes, chamando-lhe �meuquerido�, �querido irmãozinho�.- Venho chamar-te para levar-te para casa, meuadorado! disse ela, batendo palmas e rindo-sealegremente. Sim, levar-te para casa, para casa,para casa!- Para casa? Será possível, querida Fani?- Mas é claro! disse a criança, radiosa. Para casa,sim senhor! Papai ficou tão bom, que agora nossacasa é um verdadeiro paraíso. Uma destas noites,quando eu ia deitar-me, ele falou-me com tamanhaternura, que me atrevi a perguntar-lhe se iriasregressar breve.Ele respondeu que sim, e mandou-me que viessebuscar-te com o nosso carro. Agora estás quase umhomem, prosseguiu a criança, e nunca mais viráspara cá. Mas, para começar, vamos festejar juntos oNatal, o mais alegremente que pudermos.- E tu? Estás já uma verdadeira mulherzinha, Fani!exclamou o rapazinho.A garota bateu palmas novamente, rindo-se, e ia

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acariciar-lhe a cabeça, mas, pequenina como era,teve de pôr-se na ponta dos pés, o que a fez rir.Depois, com pueril impaciência, puxou-o para aporta, e ele não se fez de rogado para acompanhá-la.No vestíbulo, ouviu-se uma voz terrível:- Tragam a mala do menino Scrooge!E na mesma hora, no vestíbulo, apareceu o própriodono da pensão, que envolveu Scrooge com umolhar de feroz condescendência, e lhe causou umaconfusão extrema ao lhe dar um aperto de mão.Depois, levando-os para um horrível cubículogelado, que servia de salão, onde as cartasgeográficas suspensas às paredes, e os mapas-múndi das vitrinas estavam recobertos de umabarrela viscosa, apresentou-lhes um frasco de umvidro singularmente pesado, ao mesmo tempo quemandava perguntar ao cocheiro, por uma criadaextremamente magra, se era servido de tomar umcálice de �qualquer coisa�, ao que este respondeuque agradecia a gentileza, e que só aceitaria se nãofosse a zurrapa ordinária da última vez.Colocada a mala do aluno Scrooge, os dois irmãosdespediram-se do dono da pensão e tomaramassento alegremente no carro, que logo se pôs arodar pela pequena avenida do jardim, fazendovoar, à sua passagem, estilhaços de neve, quecobriam os arbustos de azevinho como brancaespuma.- Era uma delicada criatura, sensível à mais levecarícia, e dona de um grande coração, disse oespírito.- Sim, um grande coração, exclamou Scrooge.

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Tendes razão, Espírito. Não serei eu quem vos diráo contrário.- Morreu casadinha de novo, disse o espírito, edeixou filhos, parece-me.- Um filho, retificou Scrooge.- Ou isso, disse o espírito. Teu sobrinho.Scrooge aquiesceu, com ar desajeitado.

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Mal deixaram o pensionato, logo se encontraramnas ruas movimentadas de uma grande cidade, poronde os transeuntes iam e vinham sobre ospasseios, enquanto os carros disputavam apassagem e o tumulto e a agitação dos grandescentros faziam lembrar um campo de batalha.O aspecto das lojas indicava claramente que seestava de novo na época do Natal. Era noite, e asruas estavam iluminadas.O espírito deteve-se diante da porta de uma loja eperguntou a Scrooge se a reconhecia.- Oh, se a reconheço! Não foi aqui que comecei omeu aprendizado?Ambos entraram.Um ancião, com uma peruca na cabeça, estavasentado em uma carteira tão alta, que mais umaspolegadas e sua cabeça teria tocado o teto.A vista dele, Scrooge exclamou emocionado:- Meu Deus! Mas é o velho Fezziwig! Louvado sejaDeus! É o velho Fezziwig ressuscitado!O velho Fezziwig pousou a caneta e olhou para orelógio, que marcava sete horas. Depois,esfregando as mãos, reajustou o largo colete, deu

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uma gargalhada que o sacudiu da cabeça aos pés, eberrou com voz sonora, plena, rica, grossa e jovial:- Olá, Ebenezer! Dick!O velho Scrooge, tornado agora um jovem, correuapressadamente, como o seu colega deaprendizado:- Ora esta! É Dick Williams! disse Scrooge aoespírito. É fato! É realmente ele, que foi sempremuito agarrado comigo, o bom rapaz! Pobre Dick!Meu Deus! Meu Deus!- Olá, rapazes! exclamou Fezziwig, o dia terminou.Amanhã é Natal, Dick! É Natal, Ebenezer! Fechem aloja, gritou Fezziwig batendo palmas; e que osferrolhos sejam ajustados imediatamente, antesque eu tenha tempo de dizer: Jack Robinson!Ninguém poderia imaginar a rapidez com que estesbravos rapazes cumpriram a ordem. Ambos seprecipitaram para a rua com os ferrolhos . . . um . .. dois . . . três... ajustaram; quatro. . . cinco . . .seis . . . puseram as barras e as cunhas; sete . . .oito . . . nove... tornaram a entrar, resfolegandocomo cavalos de corrida, antes que tivessem tempode contar até doze.- Vamos, adiante! berrou o velho Fezziwig, pulandode sua escrivaninha com surprendente agilidade.Vamos, criançada! Desocupem tudo, arranjem omaior espaço possível!Arranjar espaço? Mas eles seriam capazes dedesmontar tudo sob as ordens animadoras do velhoFezziwig!Em menos de um minuto, tudo estava pronto. Tudoque podia ser transportado foi tirado e levado paraoutras partes como se para desaparecer de uma vez

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da face da terra. O soalho foi varrido e encerado, oscandelabros espanados, a lareira reabastecida.Dentro em breve, o armazém estava transformadoem um belo salão de baile, tão confortável e bemiluminado quanto se poderia desejar numa noite deinverno.Neste instante, chegou o rabequista com umcaderno de música. Empoleirando-se no alto de umestrado, e sob pretexto de afinar o instrumento,acabou por tirar dele apenas insuportáveis chiados.A seguir, entrou a senhora Fezziwig, cuja pessoaera inteirinha um vasto sorriso. Entraram, depois,as três meninas Fezziwig, radiantes e adoráveis,seguidas de seis rapagotes, cujos corações elaspisavam. Vieram, a seguir, todas as moças e moçosque trabalhavam na loja, e mais a criada com seuprimo e mais o padeiro. Vieram, depois, acozinheira com o amigo íntimo de seu irmão, oleiteiro, o pequeno aprendiz da loja fronteira, queparecia passar fome em casa de seu patrão, e queprocurava esconder-se por detrás da criadinha.Uns após outros, todos entraram, uns timidamente,outros afoitamente, estes com graça, aquelesdesajeitados; uns empurrando os companheiros,outros puxando-os. Finalmente, de um modo ou deoutro, todos entraram.Começada a festa, todos se puseram a dançar -vinte pares a um tempo - executando passos vários,avançando, recuando, rodopiando, voltando erecomeçando. O par da dianteira não sabia maisonde se meter, uma vez terminado o seu número, eo par seguinte saía sem esperar sua vez, de talmaneira que em breve só havia pares de dianteira e

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nenhum na traseira para substituí-los.Obtido este resultado, o velho Fezziwig exclamou:�Está ótimo!� e bateu palmas para fazer parar adança. O músico mergulhou a cara congestionadanum copázio de cerveja, enchido especialmentepara ele. Logo, porém, que voltou, tratou derecomeçar a música com mais vivo entusiasmo,antes mesmo que os presentes estivessem prontospara dançar. Queria, talvez, que todos imaginassemque o primeiro músico, indo tomar cerveja, tinhaficado por lá e em lugar dele surgiu outrorabequista, novo em folha, disposto a ultrapassar orival ou então morrer.Seguiram-se outras danças, depois alegresdiversões, e depois ainda outras danças. Houve, emseguida, uma mesa de bolos, vinho quente,enormes pedaços de carne assada e cerveja àvontade. Mas o mais belo momento da noitada foidepois da ceia, quando o músico - aliás um guaporapagão, podem acreditar -, como bom conhecedorde seu papel, atacou a ária de Sir Roger de Coverly.Foi então que o velho Fezziwig e esposa começarampessoalmente a conduzir o baile: e posso afirmarque não era fácil dirigir vinte e três ou vinte equatro pares de bailadores, e que bailadores! Eragente que sabia dançar de fato e não simplesmentearrastar os pés.Mas, mesmo que fossem duas, três ou mesmoquatro vezes mais, o velho Fezziwig seria capaz deagüentar a parada, do mesmo modo que a senhoraFezziwig, sua digna companheira em toda aextensão da palavra.Os pés de Fezziwig pareciam irradiar um brilho todo

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particular, fulgurando como meteoros em todos ospontos da dança ao mesmo tempo. Seria impossívelprever onde iriam eles aparecer no momentoseguinte.Quando o senhor e a senhora Fezziwig executaramtodos os passos da contradança, Fezziwig terminoucom um magnífico entrechat, depois do qual se pôsnovamente em pé, firme e erecto como um I.Esta noitada familiar terminou exatamente quandoo relógio bateu as onze horas. Então, o senhor e asenhora Fezziwig colocaram-se de cada lado daporta, apertando a mão a cada um dos convidados edesejando a cada um deles um feliz Natal. Quandotodos se retiraram, com exceção dos doisaprendizes, os Fezziwig trocaram com estes osmesmos votos; em seguida, as alegres vozescalaram-se e os dois rapazes voltaram para seusleitos, arrumados num cômodo atrás da loja.Enquanto o baile durou, Scrooge comportou-se comoum homem que tivesse sido transportado para asua mocidade. Tomava parte de alma e coração nacena, com o Scrooge de outros tempos. Ele tudoreconhecia, lembrava-se de tudo, divertia-se comtudo e manifestava a mais estranha emoção. Foisomente quando os rostos alegres de Dick e dooutro Scrooge se desviaram deles, que ele selembrou da presença do espírito. Notou, então, queeste o observava com atenção e que a claridade doápice de sua cabeça brilhava com viva intensidade.- Não vejo nada de extraordinário para inspirar aestes idiotas tanto reconhecimento, disse oespírito.- De fato, disse Scrooge.

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O espírito fez-lhe sinal com o dedo para escutar osdois aprendizes que cantavam os louvores deFeziwig. Depois, continuou- Como? Aí está uma coisa engraçada! Este homemnão despendeu senão algumas libras do seudinheiro terrestre. Isso é razão para tanto elogio?- Não se trata disso, protestou Scrooge jáesquentado por esta observação e falando, sem queo percebesse, como teria falado o Scrooge deoutrora. Não se trata disso, Espírito. Fezziwig tem opoder de nos fazer felizes ou infelizes; pode fazerque o nosso trabalho seja um prazer ou umainsuportável tarefa. Que este poder se manifestepor palavras, por gestos ou olhares, pouco importa;a felicidade que espalha em torno dele é tão grandecomo se custasse uma fortuna.Scrooge sentiu pesar sobre ele o olhar do espírito, ecalou-se.- Que é que há? perguntou este.- Nada de mais, respondeu Scrooge.- Alguma coisa te preocupa, insistiu o espírito.- Nada, mesmo, disse Scrooge. Eu gostaria de dizerduas ou três palavras a meu empregado, que aíestá.Expresso este desejo, o antigo Scrooge apagou asvelas, e Scrooge e o fantasma acharam-senovamente na rua, lado a lado.- Apressemo-nos, observou o espírito. Meu tempoesgota-se.

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Esta injunção não se dirigia a Scrooge, nem a

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ninguém que ele pudesse ver, mas seu efeito foiimediato. O antigo Scrooge reapareceu, com algunsanos a mais, sob a forma de um homem em plenajuventude. Seu rosto não tinha ainda os traçosduros e rígidos da idade madura, mas já se podiamdescobrir ali os sinais de uma natureza avarenta einquieta. Havia em seu olhar qualquer coisa deimpaciência, de inquietude, de avidez, desofreguidão, que deixava entrever qual a paixão quese havia enraizado nele e de que lado, ao crescer,esta árvore projetaria a sombra.Scrooge não estava só. A seu lado, sentava-se umajovem vestida de luto, cujos olhos cheios delágrimas brilhavam à luz que espalhava o fantasmados Natais passados.- A ti pouco importa, dizia-lhe ela com doçura; outroídolo tomou meu lugar. Mas, se ele puder dar-te, nofuturo, a alegria e os carinhos que eu mesma teriatentado dar-te, não tenho justa razão para afligir-me.- Que ídolo tomou teu lugar? perguntou ele.- O bezerro de ouro.- Aí está como é o mundo e sua justiça! exclamouele. Não trata nada com tanta severidade como apobreza, nem condena com mais dureza a loucurapelo dinheiro.- Dás muita importância à opinião do mundo,respondeu a jovem calmamente. Todos os teusoutros. desejos desapareceram diante do desejo denão incorrer no seu mesquinho vitupério. Vi caírem,uma por uma, as tuas mais nobres aspirações, atéque te absorvesses completamente na tua paixãodominante - o amor pelo dinheiro. Não é verdade?

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- E depois? Quando mesmo eu me tornasse maisprudente com o decorrer dos anos, que poderia issosignificar? Não teria eu ficado o mesmo aos teusolhos?Ela meneou a cabeça.- Tu me achas mudado?- Nosso noivado data de longos anos, de um tempoem que ambos éramos pobres mas vivíamossatisfeitos com o nosso destino, esperandomelhorá-lo com o nosso trabalho perseverante.Desde então, mudaste muito e já não és o mesmohomem.- Eu era uma criança, replicou ele com impaciência.- Tu mesmo te achas agora diferente do que eras.Quanto a mim, sou sempre a mesma; mas o queme prometia a felicidade, quando éramos doiscorações em um só, não seria mais que uma fontede perenes sofrimentos, agora que estãoseparados. Quantas vezes já fiz a mim mesmaestas amargas reflexões, nem eu própria saberiadizê-lo. O que interessa, porém, é que eu as tenhafeito e que te devolva a liberdade.- Acaso já procurei readquiri-la?- Com palavras, não, nunca.- Então, como?- Mudando de natureza, de humor e de caráter. Jánão vês do mesmo modo tudo aquilo que, noutrostempos, tornava o meu amor precioso aos teusolhos. Se não existisse nenhum compromisso entrenós, disse a jovem fazendo pesar sobre ele umolhar terno mas firme, terias vindo procurar-mehoje? Certamente, não.Ele pareceu concordar, a contragosto, com a justeza

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desta hipótese. Entretanto, respondeu com esforço:- Não pensas o que dizes.- Eu gostaria de pensar de outro modo, se fossepossível. Chamo o céu por testemunha. Paraajustar-me a semelhante verdade, é mister que elaseja realmente de uma força irresistível. É essa arazão pela qual, com o coração despedaçado,devolvo a liberdade ao homem que foste outrora.Pode ser - e a lembrança do passado justifica emmim essa leve esperança - que experimentesalguma saudade; mas sei que logo, muito logo,repelirás essa lembrança como um sonho mau, doqual se acorda com alívio. Possas tu ser feliz navida que escolheste!Aqui se separaram.- Espírito, disse Scrooge, não me mostreis maisnada! Levai-me de novo para minha casa. Por quehaveis de gozar com a minha tortura?- Uma sombra ainda! exclamou o fantasma.- Não, não, nada mais! gritou Scrooge. Não querover mais nada. Não me mostreis mais nada!O espírito, porém, inflexível, sujeitou-o e obrigou-oa olhar para o que ia acontecer.

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A cena e a paisagem eram outras. Achavam-senuma sala nem demasiado vasta, nem muitoluxuosa, mas confortável. Ao pé de um bom fogo,estava sentada uma jovem de excelsa beleza, tãosemelhante à precedente, que Scrooge se teriaenganado se não tivesse visto, do outro lado dofogo, esta última transformada em mãe de família,

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sentada em frente de sua filha.Fazia-se um grande barulho naquela sala, poishavia nela mais crianças do que Scrooge poderiaenumerar, na agitação em que se encontrava, e eratal a algazarra, que cada criança valia por dez.Daquilo tudo, resultava um descomunalpandemônio, mas ninguém reclamava; ao contrário,mãe e filha riam e divertiam-se de coração.Mas logo esta última, resolvendo tomar parte nobrinquedo, foi assaltada imediatamente pelascrianças.Que teria eu dado para ser um deles, muitoembora, diga-se de passagem, jamais me atrevessea portar-me com tamanha audácia. Não! Por nadadeste mundo me abalançaria a desmanchar o seupenteado ou tocar nas suas tranças. Como poderiaeu esconder seu delicado sapatinho, nem que fossepara salvar a minha vida? Mas, oh! quanto me foradoce - devo confessá-lo - poder aflorar-lhe oslábios; fazer-lhe perguntas só para vê-la entreabrira mimosa boca; admirar, sem que ela corasse, oscílios de seus olhos baixos; acariciar as ondas dosseus cabelos, dos quais uma única madeixa teriasido para mim de valor inestimável! Confesso queme sentiria feliz, se pudesse gozar junto dela domais pequeno privilégio de uma criança, mas semdeixar de ser um homem, para poder apreciar-lhe ovalor.Mas eis que começam a bater. Verifica-se uma talcorrida para a porta, que a jovem, rindo-se e com aroupa em desordem, é arrastada pela onda ruidosa,no momento preciso de receber o papai, que chegaem companhia de outro homem carregado de

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brinquedos e presentes de Natal.Imaginem, agora, os gritos, as lutas, os assaltostravados contra o pobre homem indefeso.Cada um procura alcançá-lo com auxílio de cadeiras,para remexer-lhe os bolsos e tomar-lhe os pacotesembrulhados em papel colorido. Este se lhe penduraao pescoço, aquele o pega pela gravata, enquantooutros lhe aplicam afetuosas palmadas nas costas enas pernas.Que exclamação de júbilo e de surpresa a cadapacote que se abria! Que emoção ao gritaremapavorados que o caçulinha foi encontrado a enfiarna boca uma frigideira de brinquedo, e que estãocom medo de que tenha engolido um peruzinho emminiatura, colado no pratinho de madeira. E quealivio quando verificaram que tudo isso não passavade um boato! E como descrever a alegria, o êxtasee o reconhecimento de toda esta garotada?Finalmente, tendo chegado a hora de serecolherem, todas as crianças se retiraram, com oscorações cheios de emoções barulhentas e subiramao andar superior onde encontrariam o repouso nosseus leitos.O interesse com que Scrooge contemplava estacena aumentou quando o dono da casa, tendo afilha ternamente apoiada contra si, veio sentar-seentre ela e a esposa, diante da lareira. Então,Scrooge sentiu os olhos marejados de lágrimas,quando começou a pensar que uma jovemsemelhante àquela, igualmente dotada de taisencantos e promessas, teria podido chamar-lhe paie ter-lhe enchido de toda uma primavera o invernobravio de sua existência.

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- Isabel, disse o marido, voltando-se para suamulher com um sorriso, encontrei hoje à tarde umvelho amigo teu.- Sim? E quem era?- Adivinha.- Como queres que eu adivinhe? . . . Ah, sim!acrescentou em seguida, rindo-se com ele. É osenhor Scrooge.- Exatamente. Passei diante do seu escritório, ecomo estava iluminado e as janelas estavamabertas, resolvi fazer-lhe uma visita. Disseram-meque seu sócio está quase à morte. Assim pois,estava só, mesmo porque me parece que ele nãotem mais ninguém no mundo.- Espírito! disse Scrooge com voz trêmula, levai-mepara longe daqui!- Eu te preveni de que eram as sombras das coisaspassadas. Se elas são como estás vendo, não mecabe a culpa.- Levai-me! exclamou Scrooge. Não posso maissuportar!Scrooge voltou-se para o espírito e, vendo que esteo olhava com uma expressão - coisa estranha! -onde se encontravam todas as fisionomias dassombras evocadas, atirou-se sobre ele.Nesta luta, se se pode chamar luta a um assaltoonde o espírito, sem resistência aparente,permanecia insensível aos esforços do seuadversário, Scrooge percebeu que a luz quefulgurava na cabeça do fantasma tornava-se cadavez mais clara e mais alta.Associando confusamente a idéia desta luz com ainfluência que o espírito exercia sobre ele, tomou o

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chapéu extintor com um imprevisto e rápido gesto elhe enterrou na cabeça. O espírito desvaneceu-seimediatamente, ficando inteiramente coberto peloextintor.Scrooge atirou-se com todo o seu peso sobre oextintor, mas todo o seu esforço foi inútil paraaprisionar a luz que dele se escapava e que sederramava pelo chão.Scrooge sentiu que as forças o abandonavam, aomesmo tempo que o tomava uma incoercívelvontade de dormir. Entretanto, tinha consciência deque se achava novamente em seu quarto. Sua mãofez um último esforço para enterrar mais o chapéu,mas o pulso afrouxou, e mal teve tempo paraganhar o leito, cambaleando, antes de mergulharnum sono profundo.

TERCEIRA ESTROFE

O segundo dos três espíritos

Despertado em meio de um barulhento ressonar,Scrooge sentou-se na cama para coordenar asidéias, sem precisar ser avisado de que o relógio iabater uma hora. Tinha consciência de que a lucidezde espírito lhe voltava justamente no instante emque devia travar conhecimento com o segundomensageiro anunciado por Jacob Marley. Masquando começava a perguntar a si mesmo qualseria a cortina do leito que ia ser movida desta vez

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pelo novo espírito, sentiu um arrepio tãodesagradável, que resolveu puxar todas as cortinascom as próprias mãos.Feito isto, deitou-se de novo, mas sem cessar arigorosa vigilância em redor do leito, pois queriafazer frente ao espírito desde o momento de suaaparição, e não ser tomado de surpresa, o que lheinutilizaria todos os seus recursos.Aqueles que pretendem estar sempre à altura dascircunstâncias e não se perturbar com coisa algumacostumam afirmar, para darem uma idéia de seusangue-frio, que podem permanecer tão calmosdiante de um sangrento duelo como diante de umapartida de cartas. Entre estes dois extremos, háevidentemente lugar para os mais diversosacontecimentos.Sem me atrever a pôr a mão no fogo por Scrooge,posso declarar-vos, entretanto, que ele estavadisposto a afrontar todas as aparições, as maisvariadas ou mais estranhas, e que nada,absolutamente nada lhe causaria surpresa, desdeuma simples criança até um descomunalrinoceronte.Mas, se Scrooge estava preparado para ver o quequer que fosse, não estava absolutamentepreparado para não ver coisa alguma. Assim pois,quando o relógio bateu uma hora e nenhumfantasma apareceu, um violento tremor apossou-sede todo o seu ser.Cinco . . . Dez . . . Quinze minutos transcorreram, enada aparecia. Durante todo esse tempo, Scroogepermaneceu estendido no leito, onde seconcentravam os raios de uma luz avermelhada, que

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começara a brilhar no momento em que o relógiosoava uma hora.Esta simples claridade parecia a Scrooge maisinquietante que uma dúzia de fantasmas, pois nãopodia compreender o que aquilo podia significar. Porvezes, era levado a imaginar que o fenômeno nãopassasse de um caso de combustão espontânea,embora não tivesse a consolação de o saber aocerto.Finalmente, Scrooge explicou-se a si mesmo - comoqualquer pessoa o faria - que o segredo destamisteriosa luz estava sem dúvida na sala vizinha,de onde, bem observado, ela parecia vir.Estribado nesta idéia, levantou-se da camavagarosamente, calçou as chinelas e dirigiu-se paraa porta. No momento em que punha a mão namaçaneta, uma voz desconhecida o chamou dedentro, convidando-o a entrar.Scrooge obedeceu.O quarto era exatamente o seu, isso lá era, sem amenor dúvida -, mas havia passado por uma incríveltransformação. As paredes e o teto estavam tãobem enfeitados de vegetação, que se haviamtornado um verdadeiro bosque, onde brilhavamesparsos lagos espelhantes. As folhas verticais deazevinho, do agárico e da hera refletiam as luzescomo outros tantos minúsculos espelhos. No fogão,crepitava um esplêndido fogo, como jamaiscrepitara neste desajeitado fogão em nenhum outroinverno, nem no tempo de Marley.Empilhados no chão, de modo a formar uma espéciede trono, encantavam a vista inumeráveis vitualhas,como perus, patos, caça, aves, presuntos, pernas

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de porco, leitoas, verdadeiras guirlandas desalsichas, ostras, castanhas ainda quentes, rubrasmaçãs, laranjas apetitosas, suculentas peras,imensos bolos reais, taças de vinho espumante,cujo delicioso aroma enchia todo o ambiente.Sobre este incrível estrado estava confortavelmenteinstalado um belo e jovial gigante, em cuja mãosustentava um facho aceso em forma de cornucópia.Quando Scrooge entreabriu a porta para passar, ogigante ergueu o facho bem alto para projetar a luzsobre o rosto do recém-chegado.- Entra! gritou o espírito. Entra, meu amigo, efaçamos as nossas apresentações.Scrooge entrou timidamente e baixou a cabeçadiante deste novo espírito. Já não era o Scroogerabugento da véspera, mas, embora os olhos clarosda aparição tivessem uma expressão de bondade,Scrooge não podia enfrentar a sua irradiação.- Eu sou o fantasma do Natal presente, disse oespírito. Olha-me.Scrooge obedeceu respeitosamente.O espírito vestia um simples manto verde-escuroguarnecido de branco. Este manto era tão simples etão folgado, que deixava descoberto o peito largo.Também estavam descalços seus pés, queapareciam sob as pregas da estranha indumentária.Como coroa, tinha um ramo de azevinho ornado comuns enfeites cintilantes imitando pedaços de gelo.Longas e escuras madeixas brincavam-lhelivremente sobre o rosto generoso e franco,franqueza esta que também se refletia em seuolhar cintilante, em sua voz sonora, em sua mãoaberta, em sua expressão alegre e em suas

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maneiras cativantes. Pendia-lhe da cintura umavelha bainha, já bastante enferrujada e sem arespectiva espada.- Já viste, em toda a tua vida, alguma pessoaparecida comigo? perguntou o espírito.- Não, nunca, respondeu Scrooge.- Nunca viajaste com os mais jovens membros deminha família, ou melhor, com os meus irmãos maisvelhos vindos ao mundo no decorrer destes últimosanos?- Não creio, disse Scrooge. Parece-me que não.Tendes muitos irmãos, Espírito?- Mais de mil e oitocentos.- Que família para manter! murmurou Scrooge.O fantasma do Natal presente levantou-se.- Espírito, disse Scrooge com voz humilde, levai-meaonde vos aprouver. Ontem à noite saí contra avontade e recebi uma lição que começa a produzirseus frutos. Esta noite, se tiverdes alguma coisa aensinar-me, estou pronto para tirar dela todo oproveito.- Toca em meu manto, disse o fantasma.Scrooge obedeceu e segurou a roupa do gigante. Nomesmo instante, desapareceram azevinhos,agáricos, heras, lagos brilhantes, perus, patos,caças, frangos, assados, presuntos, ostras esalsichas. Do mesmo modo, desapareceramrepentinamente o quarto, o fogo, a luzavermelhada, a própria hora noturna, e Scroogeachou-se em uma das ruas de Londres perto de seucompanheiro, por uma manhã de Natal.Fazia um tempo chuvoso, e as pessoas produziamuma espécie de música, que não era desagradável,

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ao raspar a neve que se acumulava nos seus portaise nos rebordos dos telhados. As criançasregalavam-se ao ver a neve, que rolava em grandesporções, despedaçando-se na calçada em pequenasavalanchas.As fachadas das casas pareciam ainda mais negrasem contraste com a alva e lisa camada de neve,que cobria os telhados e até mesmo com a neve darua; esta não tinha a mesma alvura, pois aspesadas rodas das viaturas haviam cavado aliprofundos sulcos, que se cruzavam e seentrecortavam nas encruzilhadas, formando umintricado de pequenos canais que se perdiam numaespessa mistura de lama amarelada e de águagelada.O céu era triste, as ruas tomadas por uma opacaneblina, que era meio chuvisco, meio gelo, cujaspartículas mais densas recaíam em gotículasfuliginosas, como se todas as chaminés da Grã-Bretanha tivessem sido acesas ao mesmo tempo eestivessem passando por uma limpeza em regra.Nada havia de muito agradável neste aspectohibernal de Londres. Entretanto sentia-se por todaparte uma atmosfera de alegria, que nem mesmo omais belo sol de verão, nem o mais límpido arseriam capazes de criar. Assim, os varredores deneve demonstravam o mais jovial bom-humor,interpelando-se de cima dos telhados, atirando-sede quando em quando mútuas bolas de neve -projéteis menos perigosos que certos gracejos -,rindo alegremente, quando atingiam o alvo e rindodo mesmo modo, quando falhavam.As churrascarias ainda não estavam de todo

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abertas, mas as casas de frutas ostentavam todo oseu esplendor. Ali, grandes cestas de castanhas,repletas até aos bordos, ostentavam-se nas portas,ameaçando rolar para a rua, vítimas de seu própriovolume. Havia maçãs e pêras amontoadas emvistosas pirâmides, cachos de uvas que onegociante tivera o cuidado de pendurar bem àvista, para que, aos transeuntes, lhes viesse águaà boca, sem que isso lhes custasse nada.Havia pêssegos dourados e veludosos, cujo aromalembrava passeios de inverno nos bosques, maçãsde Norfolk, cuja tonalidade morena fazia ressaltar oamarelo-claro dos limões e laranjas. Até os peixes,prateados e dourados, expostos em aquários nomeio destas frutas selecionadas, pareciam adivinharque se passava qualquer coisa de anormal, e, deboca aberta, faziam evoluções no seu pequeninomundo, tomados de grande agitação.E as mercearias! Oh! as mercearias! Estavam quasefechadas, mas, pelos pequenos espaçosentreabertos, que espetáculo esplêndido! O quetornava encantadora a atmosfera não era apenas oalegre ruído das balanças, o barulho das caixas, queora se abriam, ora se fechavam, o esquisito aromaque se evolva a um tempo do chá e do café, agrossura e a abundância das passas, a extremaalvura das amêndoas, a beleza dos paus de canela,tão compridos e retos, ou o perfume penetrante dasoutras especiarias; não era somente a presençaapetitosa dos figos moles e carnosos, das ameixasagridoces, dos confeitos açucarados, capazes defazer morrer de vontade os menos gulosos, ouainda os enfeites de Natal, constituídos por todas

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estas lindas coisas; era também a alegria dosfregueses, tão possuídos da grandeza daqueleesperançoso dia, que se apertavam a ponto deachatarem os seus cestos, se esqueciam de suascompras sobre o balcão e voltavam correndo parabuscá-las, tudo isto com a maior alegria possível;era a presteza dos caixeiros risonhos e agradáveis,que corriam solícitos atendendo a todos epatenteando, na paciência com que serviam a suajovial freguesia, a satisfação que lhes ia na alma.Com o badalar dos sinos chamando o povo para asigrejas e as capelas, as ruas encheram-se de umamultidão de pessoas, ostentando os seus maisbelos trajes, bem como as suas mais joviaisfisionomias. Ao mesmo tempo, de uma quantidadede estreitas ruas, de vielas e passagens ignoradas,surgiu uma multidão de homens e mulherestrazendo seus respectivos manjares ao padeiro,para mandá-los esquentar.A vista desta humilde gente e de suas ingênuasfestas pareceu interessar ao Espírito no mais altograu.Postando-se, em companhia de Scrooge, à porta deuma padaria, descobria e incensava com o seufacho todos os pratos, à medida que iam passando.Era de fato um facho extraordinário. Uma ou duasvezes, quando alguns portadores de viandastrocavam mútuos insultos por se terem chocado nafila, bastou que o espírito erguesse sobre eles oseu facho para que imediatamente lhes voltasse obom-humor. �Efetivamente, é bastante vergonhoso,diziam eles próprios, levantar questões num dia deNatal�. E era a pura realidade.

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Depois, os sinos silenciaram e as padariasfecharam-se. Nos subsolos, porém, as carnesassavam, e, sobre o fornos, na rua, as própriascalçadas fumegavam, como se as pedras do passeioestivessem igualmente a cozer.- Será que têm algum sabor particular estasgotículas que caem do vosso facho? perguntouScrooge.- Sim, naturalmente. Têm o sabor do Natal.- E este sabor pode transmitir-se no dia de hoje aqualquer prato?- A qualquer prato dado de bom coração,especialmente aos mais pobres.- Por que aos mais pobres?- Porque são os que têm mais necessidade deles.

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Ambos se calaram, e, sempre invisíveis,prosseguiram seu caminho pelas ruas da cidade. Oespírito era dotado de uma extraordináriafaculdade, que Scrooge já havia notado naconfeitaria: apesar de seu talhe gigantesco, estavasempre perfeitamente à vontade, onde quer quefosse; mesmo sob o mais baixo teto, andava com amesma graça e naturalidade como se estivesse nomais luxuoso palácio.Ou fosse para fazer alarde deste poder, ou fosselevado pelo seu coração generoso, compassivopelos humildes, o certo é que foi para a casa do seuempregado que o espírito arrastou Scrooge, sempreagarrado ao seu manto. Na soleira da porta oespírito sorriu e deteve-se para abençoar a casa de

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Bob Cratchit, levantando o seu facho.Então, apareceu a senhora Cratchit, esposa de Bob,vestida muito modestamente com um vestido jásurrado mas que ela havia enfeitado garridamentecom umas fitas baratas, que custam apenas algunscentavos e fazem tanta vista.A senhora Cratchit estendia a mesa ajudada porBelinda, sua segunda filha, também toda garrida,enquanto Pedro Cratchit, enterrado em seu vastocachecol, herdado de seu pai, espetava um garfo napanela de batatas, contente por se ver tão elegantee suspirando por se mostrar na rua.No mesmo instante, os dois últimos Cratchits, ummenino e uma menina, precipitaram-se na sala,gritando que acabavam de sentir o cheiro do pato,do �seu� pato, quando passaram diante da padaria.Depois, embriagados com o pensamento do gostosomolho de cebola que estavam preparando, puseram-se a dançar em homenagem à habilidade docozinheiro Pedro Cratchit.Modesto, apesar de seu vistoso colarinho que quaseo enforcava, este pôs-se a soprar o fogo com tantagraça que logo as batatas começaram a dançar naágua fervente e vieram tamborilar contra a tampada panela para anunciar que já estavam cozidas eprontas para serem descascadas.- Que será que está prendendo seu querido papai eseu irmão Tinzinho? disse a senhora Cratchit. EMarta? No Natal passado, ela chegou meia horamais cedo.- Cá está Marta, mamãe! disse uma garota quevinha entrando naquele instante.- Cá está Marta! exclamaram os dois pequeninos

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Cratchits. Urra! Veja, Marta! Temos pato hoje!- Louvado seja Deus, minha querida! Como estásatrasada hoje! observou a senhora Cratchit,abraçando-a repetidas vezes e tomando-lhesolicitamente o chapéu e o xale.- Tivemos que terminar uma porção de coisas ontemà noite, respondeu a moça, e hoje de manhãtivemos de pôr tudo em ordem.- Está bem; o essencial é que já estás aqui.Senta-te perto do fogo, querida, e aquece-te umpouco.- Não, não, aí está papai! gritaram os pequeninosCratchits, que estavam sempre em toda parte aomesmo tempo.- Vai esconder-te, Marta! Vai esconder-te!Marta escondeu-se, e Bob, com o cachenêarrastando no chão, com a roupa usada mas bemescovada e em ordem para dar idéia de dia defesta, irrompeu na sala, trazendo o Tinzinho àscostas.Pobre Tinzinho! Trazia umas muletinhas, e suaspernas eram sustentadas por um aparelho de metal.- Muito bem! Onde está nossa Marta? Exclamou BobCratchit, lançando os olhos em torno.- Ela não pode vir, disse a senhora Cratchit.- Não pode vir! repetiu Bob perdendo subitamenteseu primeiro entusiasmo, pois acabava de servir decavalo ao pequeno Tim, e estava fatigado por Tercorrido desde a igreja até à casa dele. - Ela nãopode vir! Num dia de Natal!Marta ficou penalizada por vê-lo decepcionado,mesmo em se tratando de uma brincadeira, e semmais perder tempo abriu a porta que a escondia e

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atirou-seaos braços do pai, enquanto os dois pequeninosCratchits levavam Tinzinho para a cozinha, ondeestavam cozinhando o pudim.- E como se tem portado o Tinzinho? Perguntou asenhora Cratchif, depois de ter gracejado com Bobpor motivo de sua credulidade e depois que esteabraçou a filha cheio de satisfação.- Como um anjo, disse Bob, e mais ainda. Quandoestá calmo, torna-se reflexivo, e todos nós ficamosadmirados com as idéias que lhe ocorrem. Ainda hápouco me dizia que esperava que todos o tivessemnotado na igreja por ser doente, e, acrescentou,especialmente no , dia de Natal os cristãos devemsentir-se felizes ao pensarem naquele que faziaandar os coxos e restituía a vista aos cegos.Repetindo estas palavras, a voz de Bob tremia, etremeu mais ainda quando observou que Tinzinhose tornava cada dia mais forte e mais vigoroso.As batidas da muletinha fizeram-se ouvir sobre osoalho, e antes que tivessem dito qualquer outrapalavra, Tinzinho apareceu em companhia dosirmãos e da irmã, que o ajudaram a subir ao seubanquinho, no canto do fogo.Então, arregaçando as mangas, como se receasseque elas se estragassem mais, as pobres mangas,Bob preparou numa vasilha uma mistura revigorantecom gim e limão, agitou-a fortemente e a pôs paraesquentar perto do fogo. Pedro e os dois pequenosCratchits, que se viam em toda parte ao mesmotempo, correram buscar o pato, que trouxeram logoa seguir, em triunfal procissão.A celeuma que se seguiu, poder-se-ia acreditar que

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o pato era, naquele instante, a mais rara das aves,um fenômeno emplumado, e que perto dele umcisne negro não passava de uma insignificantecuriosidade. Realmente, era este o caso naquelamodesta residência.A senhora Cratchit fervia o molho depositado numacaçarola, enquanto Pedro Cratchit esmagava asbatatas com incrível vigor, Belinda preparava acalda de maçãs, Marta enxugava os pratos, Bobcolocava Tinzinho à mesa, ao lado dele, e ospequeninos Cratchits punham as cadeiras paratodos, inclusive para si mesmos; uma vez beminstalados, puseram uma colher na boca, para quenão fossem tentados a pedir seu pedaço de patoantes de chegar-lhes a vez de serem servidos.Finalmente, colocados todos em seus respectivoslugares, recitou-se a oração de antes das refeições.Seguiu-se, então, um silêncio impressionante,enquanto a senhora Cratchit, tomando lentamente afaca de trinchar, se preparava para cortar a ave.Mal, porém, a senhora Cratchit enterrou a faca naslaterais do pato, após tão mal contida ansiedade,um �hurra� de contentamento estrugiu por toda asala. O próprio Tinzinho, excitado pelos doispequeninos Cratchits, bateu na mesa com o cabo dafaca e repetiu um �hurra�.Nunca, em tempo algum, se tinha visto um patosemelhante. Bob declarou que jamais se fizera umpato assado igual àquele; foram objeto decomentários o seu preço, a qualidade, o tamanho eo delicioso gosto. Ainda mais, com o molho demaçãs e o pirão de batatas, este pato representavaum lauto almoço para toda a família, �e até mesmo

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sobrou�, observou a senhora Cratchit comsatisfação, olhando alguns ossos relegados noprato.Entretanto, todos comeram à vontade, inclusive ospequenos Cratchits, que tinham a cara lambuzadade pato e de molho até aos olhos. E agora,enquanto Belinda muda os pratos, a senhoraCratchit sai sozinha da sala, para esconder suagrande emoção, e vai buscar o pudim.Oh, e se o pudim não estiver bem cozido! E se elese desmoronar quando for desenformado! Eimaginem se alguém se introduziu na despensa e oroubou, enquanto todo mundo se regalava com opato!A estes dolorosos pensamentos, os dois Cratchitsfizeram-se lívidos. Os mais horríveis receiosassaltavam-nos.Ah, uma nuvem de vapor! É o pudim que sai doforno . . . Agora, um cheiro de lixívia . . . É do panoque está envolvendo o pudim. Um aroma queparece vir de uma pastelaria, situada entre umrestaurante e uma lavanderia! Pois é o própriopudim! . . .Meio minuto mais tarde, a senhora Cratchit, com orosto afogueado mas com um sorriso de triunfo noslábios, reaparece com o pudim: um pudimsemelhante a uma bala de canhão, todo,mosqueado, duro e compacto, tendo em cima umgalho de azevinho, mergulhado na base em umquarto de pinta de brandy inflamado.Oh, que maravilhoso pudim!Bob Cratchit declarou, solenemente, que era a maisperfeita obra-prima que a senhora Cratchit executou

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desde que casaram. A senhora Cratchit, agora como espírito liberto do receio de errar, confessava tertido alguma dúvida sobre a quantidade de farinhaempregada.Cada um teve alguma coisa a dizer sobre o pudim;mas o que ninguém disse, e talvez nem mesmo seatrevesse a pensar, é que o referido pudim erademasiado pequeno para tão grande família.Em verdade, isso teria sido uma espécie deblasfêmia, e quaisquer dos Cratchits teria corado devergonha à simples idéia de fazer tal alusão.Finalmente, o almoço terminou. A mesa foilevantada, o chão varrido e a lareira reabastecida.Em seguida, após o elogio feito à bebida que foradistribuída entre todos os presentes, foramservidas, à mesa, maçãs e laranjas, ao mesmotempo que se atiravam à cinza punhados decastanhas.Depois, toda a família Cratchit se reuniu diante dofogo - ao que Bob Cratchit chamava �fazer roda� emtorno do fogo.Ao lado de Bob tinha-se juntado tudo o que haviana casa de finos cristais, isto é, dois copos de pé euma xícara sem asa. Mas, pouco importava: nãocontinham tais vasos o licor saboroso, do mesmomodo como se estivesse em finos vasos de ouro?Bob distribuiu licor a todos, com ar radioso,enquanto as castanhas pulavam na cinza erachavam com estalos intermitentes. Em seguida,Bob Cratchit levantou este brinde:- A todos vocês, meus amigos, um felicíssimoNatal! Que Deus nos abençoe a todos!Toda a família respondeu alegremente.

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- Que Deus abençoe a cada um de nós! disseTinzinho, o último de todos.Tinzinho estava sentado ao lado do pai, em seubanquinho, e Bob tinha entre as suas as magrasmãozinhas do filho querido, estreitando-o contra si,amorosamente, como se receasse que alguém lheviesse arrebatá-lo.- Espírito, falou Scrooge com um interesse quejamais sentira, dizei-me se Tinzinho viverá muitotempo.- Vejo uma cadeira vazia neste pobre lar, e umasmuletinhas sem dono, conservadas como umadolorosa lembrança. Se estas sombras não foremmodificadas no futuro, esta criança morrerá.- Não, não, meu bom espírito! exclamou Scrooge,dizei-me que o pequeno será poupado.- Se os destinos permanecerem estáveis nestasimagens, respondeu o espírito, nenhum membro deminha raça o tornará a encontrar aqui. E por quedeplorá-lo? Se é seu destino morrer, que morra já!Isso virá diminuir o excesso de população . . .Ouvindo o espírito repetir suas próprias palavras,Scrooge baixou a cabeça, tomado de sentimento ede remorso.- Homem, disse o espírito, se possuis um coraçãohumano e não um coração de pedra, deixa de dizertolices até que tenhas descoberto o que é excessode população e onde existe. A ti é que cabe decidirquais são, entre os homens, aqueles que devemviver e aqueles que devem morrer? Pode muito bemser que aos olhos de Deus sejas tu muito menosdigno de viver do que milhares de seressemelhantes ao filho deste pobre homem. Justos

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céus! Ouvir o inseto pousado sobre a folha dizerque acha muito numerosos os seus irmãos famintosque se debatem na poeira!Scrooge ouvia, de cabeça baixa, a invectiva dofantasma e olhava para o chão a tremer.Subitamente, ergueu os olhos ao ouvir pronunciarseu nome.- À saúde do senhor Scrooge! dizia Bob. A saúde demeu patrão, graças ao qual estamos hoje em festa.- Bonito patrão, realmente, exclamou a senhoraCratchit corando. Eu gostaria que estivesse aqui! Eulhe faria uma bela saudação a meu modo . . .- Minha querida amiga... disse Bob. As crianças... odia de Natal . . .- É preciso, de fato, que seja dia de Natal, replicoua mulher, para que se beba à saúde de um homemtão detestável, ladrão, cruel e sem coração como osenhor Scrooge. Você bem sabe quem ele é, Bob!Você o sabe melhor que ninguém, meu pobre amigo!- Querida... protestou Bob com doçura. É dia deNatal! . . .- Se eu beber à saúde dele; será só por você e porser dia de Natal, mas não por ele mesmo. Assimpois, longa vida ao senhor Scrooge! Bom Natal efeliz Ano Novo! É isso, segundo penso, que o faráfeliz e alegre! . . .As crianças brindaram, depois dela, à saúde deScrooge; era a primeira coisa, naquela noite, quefaziam de má vontade. O último que bebeu foiTinzinho, mas sem entusiasmo. Scrooge era o pavorda família Cratchit. A simples menção de seu nomelançou sobre a reunião familiar uma sombra quedurou vários minutos.

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Quando o terror se dissipou, todos, aliviados porterem liquidado o assunto antipático de Scrooge,ficaram dez vezes mais alegres que antes. BobCratchit falou de um emprego que- tinha em vistapara Pedro, onde poderia ganhar meia libra porsemana. Os pequenos Cratchits deram gostosasgargalhadas à idéia de verem Pedro �trabalhar�.Quanto a Pedro, olhava para o fogo com arpensativo, entre as duas pontas do seu colarinho,como se perguntasse a si mesmo onde iria colocarseu dinheiro, quando estivesse de posse de talfortuna. Marta, simples aprendiz na oficina de umamodista, contava o que fazia no atelier, quantashoras tinha de trabalho e falou da satisfação do diaseguinte, tirando uma manhã por sua conta e indopassear em casa da família. Falou, também, de umlorde e de um condessa que tinham vindo à lojaalguns dias antes. �Este lorde era mais ou menosda estatura de Pedro.� A estas palavras, Pedroergueu tão alto o colarinho, que este quase lheescondeu completamente o rosto.Durante este tempo, as castanhas e o bulepassavam e repassavam entre todos os queformavam a roda. Para terminar, Tinzinho cantou,com voz sumida, a canção de um menininho perdidona neve, e saiu-se perfeitamente bem.Em tudo isso, não havia nada de notável. OsCratchits não eram nem belos nem elegantes, seussapatos não eram à prova d�água, suas roupas nãoestavam na moda, e Pedro, posso afirmar, teria sevalido, por vezes, da loja de algum adelo. Todos,porém, eram felizes, reconhecidos para com Deus,cheios de afeição uns pelos outros e sabiam gozar

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da hora presente.Quando suas imagens empalideceram, ainda maisalegres sob as gotículas brilhantes do facho comque o espírito os espargia, à guisa de despedida,Scrooge continuava com os olhos pousados sobreelas, especialmente sobre Tinzinho, até que seevanescessem de todo.

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Agora, a noite descera e a neve caía em flocos. Eramaravilhoso o espetáculo que se gozava, da rua,vendo-se as labaredas que saíam das cozinhas edas salas de jantar. Aqui, as claras luzesiluminavam os aprestos para um confortável lanche,os pratos aquecidos diante do fogão, as grandescortinas grená, que bastaria fechá-las para impedira entrada ao frio e à escuridão. Além, todas ascrianças da casa precipitavam-se para fora, naneve, ao encontro de seus irmãos casados, de seustios e tias, para serem os primeiros a recebê-los.Através das cortinas fechadas, viam-se as silhuetasdos convidados reunidos. Mais adiante, um grupo debelas jovens, toucadas e calçadas com botinasforradas de pele, dirigiam-se festivamente,palrando todas a um tempo, à casa de algumvizinho. Ai do celibatário que as visse entrar (elasbem o sabiam, as finórias) com os olhos risonhos eas faces coradas pelo frio!A julgar pelo número de pessoas que se dirigiampara reuniões amistosas, poder-se-ia perguntarquem ficaria em casa para recebê-los. Ora, aocontrário, em toda parte se esperavam hóspedes,

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por toda parte se enchiam de carvão as lareiras atéem cima.Oh! como o Espírito exultava! Como abria a suagrande mão e espalhava generosamente sua alegriasã e transbordante sobre todos que passavam aoseu alcance! O acendedor de lampiões, que corriaadiante, pontilhando a escura rua com pequenosfocos luminosos, e que se tinha arrumado para irgozar em companhia dos demais, desatou a rirgostosamente, quando o fantasma passou pertodele, embora estivesse o pobre acendedor longe deimaginar que era o próprio espírito do Natal empessoa que acabava de tocá-lo.Subitamente, sem que tivesse recebido de seucompanheiro o menor aviso, ambos se acharamnuma região deserta, que mais parecia umcemitério de gigantes, pela enorme quantidade deblocos de pedra ali existentes.A água aparecia à flor do solo, por toda a parteonde lhe aprouvesse, ou, melhor, ela teriaaparecido, se o gelo não continuasse a tê-la retida.Cresciam ali apenas a grama e o junco, uma gramaespessa e agressiva.A oeste, o sol poente havia deixado um rastrovermelho, que brilhou por instantes, como um olhozangado, e que depois se foi apagando, atéextinguir-se de todo, nas trevas de uma noiteopaca.- Onde estamos? perguntou Scrooge.- Na região dos mineiros, daqueles que trabalhamnas entranhas da terra, respondeu o espírito. Elestambém me conhecem. Olha!Uma luz brilhava na janela de uma cabana. Ambos

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se dirigiram para aquela direção, e passandoatravés da taipa, deparou-se-lhes um numerosoagrupamento reunido em torno de um belo e vivofogo.Havia ali um velho curvado pelos anos e sua esposacom seus filhos e os filhos de seus filhos, e aindaoutra geração, todos vestidos com seus trajos defesta. O velho, com uma voz que mal dominava oassobio do vento que zunia no deserto, cantava umcântico de natal - um cântico já bem antigo, dequando o bom velhinho ainda era criança, e, dequando em quando, toda a família repetia o refrão.Cada vez que os filhos cantavam com ele, o velhoparecia sorrir, e sua voz fazia-se mais sonora; mas,desde que se calavam, seu entusiasmo arrefecia esua voz fazia-se novamente mais surda.O espírito não se demorou neste local. ConvidandoScrooge a segurar-se em seu manto, elevou-se nosares, deixou aquela charneca e atirou-se - mas paraonde? . . . não sobre o mar?. . . Sim, por certo, porsobre o mar.Voltando a cabeça, Scrooge viu com indizível terror,que deixavam atrás de si a costa e suas selvagenspenedias; ao mesmo tempo, era aturdido pelofragor das vagas que rolavam e rugiam, abismando-se raivosamente nas sombrias cavernas que tinhamcavado como se porfiassem em minar a praia.Sobre um isolado recife, batido pelas vagas durantetodo o ano, a uma légua aproximadamente da terrafirme, erguia-se um farol solitário. Uma espessacamada de algas alcatifava-lhe a base, e asgaivotas, que parecem nascer do vento como asalgas do mar, voavam em torno dele, elevando-se e

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mergulhando ao ritmo das vagas que elas apenasafloravam.Também lá, os dois guardas do farol haviam ateadouma fogueira, e através de uma abertura praticadana espessa muralha, a claridade da chamaprojetava no oceano raivoso um reflexo de alegria.Apertando-se as mãos calejadas por sobre a toscamesa diante da qual se achavam sentados, os doishomens trocaram mútuos votos de feliz Natal antesde beber o seu grog. Depois, um deles, o maisidoso, cujo rosto era sulcado pelas intempéries,como figuras esculpidas na proa dos antigos navios,entrou a cantar uma canção de marinheiro,impetuosa como um vendaval.Novamente, o espírito retomou seu vôo por cima domar sombrio e revolto, prosseguindo até aomomento em que, já longe de toda costa, foipousar com seu companheiro sobre um navio.Ali, visitaram um por um, o timoneiro em seu leme,o vigia de proa e os oficiais de guarda; poucosminutos depois, tinham sido visitados todos osmarinheiros que se achavam em serviço, cada umem seu respectivo posto.Ora, não havia um só destes homens que nãoestivesse a cantar alguma cantiga de Natal ou nãopensasse no Natal, ou mesmo não estivesse aconversar com alguns dos seus companheiros sobrealgum Natal passado, lembrando-se dos recantosque gostariam de tornar a ver. Nenhum desteshomens, a bordo, bom ou mau, tinha deixado de terpara com seus companheiros alguma palavra maiscordialmente afetuosa. Uns e outros haviam, atécerto ponto, participado da alegria desta festa, e,

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pensando em suas famílias distantes, sentiam umdoce prazer ao se lembrarem de que, naquelemesmo instante, parentes e amigos lhe enviavamalgum pensamento de saudade através do oceano.Scrooge, ao mesmo tempo que ouvia o gemer dovento, pensava quanto era fantástico deslizar assimdentro da noite deserta e acima dos abismosinsondáveis das águas. De súbito, sentiu-seextremamente surpreendido ao ouvir perto de siuma sonora gargalhada, mas ainda maissurpreendido ficou quando viu que tal gargalhadaera de seu sobrinho, e que ele próprio seencontrava na sala clara, tépida e alegre, sempreem companhia do espírito. Este contemplava osobrinho de Scrooge com uma expressão cheia desimpatia e benevolência.- Ah! ah! ah! ria o sobrinho de Scrooge. Ah! ah! ali!Se por um acaso absurdo, algum de vocês encontrarum dia uma pessoa que ria com mais entusiasmoque o sobrinho de Scrooge, diga-me logo, que euterei todo o prazer em procurar conhecê-la.Observemos, de passagem, que, se a doença e atristeza são facilmente contagiosas, também, poruma justa compensação das coisas deste mundo,nada há de mais irresistivelmente contagioso que arisada e o bom-humor.Enquanto o sobrinho de Scrooge ria a bom rir, acabeça dobrada para trás e o rosto convulsionado, asobrinha de Scrooge - sobrinha por afinidade - riatambém às gargalhadas, e todos que estavam nacompanhia deles riam do mesmo modo, para nãoficarem atrás.- Ah! ah! ah! Ah! ah! ah!

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- Tão verdade como eu estar aqui presente, dizia osobrinho de Scrooge, ter-me dito ele que o Natal éuma tolice, e parecia dizê-lo com convicção.- Isso não deixa de ser ainda mais vergonhoso paraele, Fred! declarou a sobrinha de Scrooge com arrevoltado.Não há como as mulheres para exprimir seuspensamentos com mais energia: elas não dizemnada pela metade!A sobrinha de Scrooge era encantadora,notavelmente encantadora: uma carinha adorável,faces rechonchudas, uma expressão de ingenuidade,uma boca rubra, feita para os beijos; no queixo,umas covinhas que se fundiam uma na outraquando ria; para completar, os olhos maisluminosos que jamais se tenham visto em rostos demenina. Seu encanto tinha qualquer coisa dealiciante, digamos mesmo de provocante, o que atornava ainda mais sedutora.- É um velho manhoso, certamente, tomou osobrinho, e bem pouco amável; mas seus defeitosterão seu respectivo castigo, e não serei eu quemlhe venha atirar a primeira pedra.- Ele é riquíssimo, não é verdade? insinuou asobrinha. Pelo menos, foi o que você sempre medisse.- Que importa a sua fortuna, querida, respondeu o marido, uma vez que ela não lhe serve paranada?Não se utiliza dela para praticar o bem, não tiradela nenhum proveito para si mesmo, nem mesmotem a satisfação de pensar - ah! ah! ah! - que umdia. nos fez o menor benefício com o seu dinheiro.

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- Pois bem: eu não quero aturá-lo! declarou asobrinha de Scrooge. E suas irmãs, e todas asdamas presentes foram da mesma opinião.- Eu já sou menos severo que vocês, disse osobrinho; eu lamento que ele possua um caráterassim, mas sou incapaz de querer-lhe mal por isso.Quem sofre as conseqüências do seu humoratrabiliário não é ele? Já que se lhe meteu nacabeça querer detestarmos e recusar nosso convite,qual é o resultado? Talvez não perca um famosojantar...- Ora esta! Eu acho que ele perdeu um ótimo jantar!interrompeu sua esposa, e todos fizeram coro.É necessário convir em que eles eram bons juízes,pois que estavam terminando o jantar. A sobremesafoi servida, e todos os convidados se haviamagrupado em torno do fogo, à claridade do lume.- Tanto melhor! disse o sobrinho, estou encantadode o saber, pois não tenho muita confiança nahabilidade destas jovens donas de casa. Que diz aisto, Topper?Topper - era visível - já tinha lançado as vistassobre uma das irmãs da sobrinha de Scrooge.Assim, respondeu que um celibatário não passavade um miserável pária, e que não tinha o direito dese manifestar neste assunto. A isto, a irmã dasobrinha de Scrooge ( a mocinha rechonchuda, comuma gola de renda) fez-se vermelha como umarosa.- Acabe, Fred! exclamou a sobrinha de Scrooge,batendo palmas. Ele nunca termina de contar ascoisas! Isso é ridículo!O sobrinho de Scrooge entrou a gargalhar

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novamente, e como não havia meio de fugir aocontágio, a irmãzinha rechonchuda procurou evitá-lorespirando vinagre aromático, sendo seu exemploseguido por todos.- Eu , ia dizer simplesmente, tornou o sobrinho deScrooge, que, ao nos mostrar antipatia e recusando-se a reunir-se a nós, ele próprio se priva de algunsmomentos agradáveis, que só lhe poderiam fazerbem. Teria encontrado aqui uma companhia maisagradável do que aquela que lhe oferecem seuspróprios pensamentos em seu velho e mofadoescritório ou em seu empoeirado apartamento. Émeu propósito renovar-lhe todos os anos o mesmoconvite, seja-lhe agradável ou não, pois tenho penadele. Ele que zombe do Natal até ao seu último dia,mas posso apostar que refletirá melhor quando mevir todos os anos voltar com o mesmo humor paralhe dizer: �Bom dia, tio Scrooge, como vai?� Se comisso conseguir inspirar-lhe a idéia de deixar ao seupobre empregado pelo menos cinqüenta libras, jáme dou por muito bem pago. Assim mesmo, parece-me que consegui comovê-lo um pouco, ontem ànoite.A idéia de que tivesse podido comover a Scroogedespertou uma geral hilaridade.Como Fred possuía temperamento jovial e seempenhava em fazer rir seus convidados, aindamais lhes estimulou a alegria, enchendo-lhesnovamente os copos.Depois do chá, organizaram uma sessão de música,pois todos na família eram músicos e formavamesplêndido conjunto para cantar canções e rondéis.Topper, especialmente, sabia fazer vibrar sua voz

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sem precisar inchar as veias da testa ou ficar com orosto congestionado.A sobrinha de Scrooge dedilhava a harpa comdoçura, executando, entre outras, uma melodiasimplicíssima, que qualquer pessoa, em doisminutos, aprenderia a assobiar.Ora, era esta exatamente a ária favorita da meninaque outrora tinha ido ao colégio buscar Scrooge,como lhe mostrara o fantasma dos Nataispassados.Enquanto a moça tocava a harpa, tudo que estefantasma havia mostrado a Scrooge lhe reapareciadiante dos olhos. Cada vez mais emocionado,acudiu-lhe ao pensamento que, se tivesse podidonoutros tempos ouvir com mais freqüência estamelodia, teria aprendido, sem dúvida, a cultivar asdoces alegrias familiares, para sua própriafelicidade e não iria, como Jacob Marley, para a pádo coveiro no meio da indiferença de todos.Mas a tarde não foi toda passada somente emnúmeros musicais.Ao cabo de certo tempo, puseram-se a brincar deoutras coisas, pois é bom, de quando em quando,voltar-se aos tempos de criança, especialmente noNatal, festa cujo próprio divino Fundador é umacriança.Bem, ei-los que começam pelo brinquedo da cabra-cega. Era inevitável! Mas não me venham dizer queTopper estava honestamente com os olhosfechados. Na minha opinião, ele estavamancomunado com o sobrinho de Scrooge. Oespírito do Natal presente sabia disso muito bem ... .

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O modo como Topper está perseguindo a mocinharechonchuda é um desafio à credulidade humana.Ele derruba o guarda-fogo, arrasta as cadeiras, batecontra o piano, enrola-se nas cortinas, mas a todaparte aonde ela vai, ele vai. Ele sabe sempre ondeestá a mocinha rechonchuda; não quer pegarnenhuma outra pessoa. Você pode ficar de propósitodiante dele, como se usa fazer: ele finge pormomento querer pegá-lo, mas com umdesajeitamento que envergonha a inteligênciahumana. Em seguida, prossegue na direção onde seencontra a irmãzinha rechonchuda.�Assim não vale!� reclama, ela muitas vezes, e elatem toda razão. Quando, finalmente, ele conseguepegá-la, quando, apesar de sua fuga rápida eacompanhada do frufru das sedas, consegueconduzi-la a um canto, de onde ela não pode maissair, então sua conduta se torna simplesmenteabominável: sob o pretexto de não saber quem é,permite-se tocar em seus cabelos, mexer num anelque ela tem no dedo, pegar numa correntinha queela trás ao pescoço - em suma, toma todas asliberdades escandalosas! Não há dúvida, airmãzinha rechonchuda não deixa de lhe dizer o quepensa disso tudo, agora que ambos têm umaconversa confidencial no peitoril da janela, depoisque o lenço passou para as mãos de outro jogador.A sobrinha de Scrooge não brincava de cabra-cega.Ficara confortavelmente sentada numa poltrona, aum canto da sala exatamente onde estavam oespírito e Scrooge. Ela tomou parte em outrosbrinquedos, e respondeu admiravelmente àpergunta �como gosta dele?�, conseguindo amá-lo

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com todas as letras do alfabeto; do mesmo modo,fez maravilhas nas adivinhações �Onde?�, �Como?� e�Quando?�. Com secreta alegria a sobrinha deScrooge venceu galhardamente as suas própriasirmãs, e entretanto, estas não eram tolas. Topperque o diga.Havia ali umas vinte pessoas, entre moços evelhos, e todas tomavam parte nos divertimentos,que o próprio Scrooge ficou entusiasmado.Esquecendo-se - tanto lhe interessavam aquelesjogos - que sua voz não podia ser ouvida, respondiaem voz alta às adivinhações lançadas. Sucediaacertar sempre, pois a melhor agulha deWhitechapel não era mais fina que ele, apesar daexpressão idiota que gostava de mostrar, paradespistar as pessoas.O espírito estava encantado de vê-lo de tão bom-humor, e observava-o com tanta benevolência, queScrooge, como se fosse uma criança, perguntou sepodia ficar até que os convidados se retirassem.Mas o fantasma respondeu que era impossível.- Estão começando um novo jogo, insistiu Scrooge.Só meia hora, espírito, apenas meia horinha.Era um jogo chamado �Sim e Não�.O sobrinho de Scrooge devia pensar em uma coisa efazê-la adivinhar aos presentes, mas, respondendoàs suas perguntas apenas com um �sim� ou um�não�. De pergunta em pergunta, chegaram àconclusão de que ele pensava num animal. Que eraum animal vivo, um animal desagradável, umanimal bravio, um animal que grunhia e urrava, quetambém falava, que vivia em Londres, que andavapelas ruas, que não era exposto com entrada paga,

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que não era levado pelo cabresto, que não vivia emalguma jaula, que não se levava para o matadouro,que este animal não era nem um cavalo, nem umburro, nem uma vaca, nem um touro, nem um tigre,nem um cão, nem um porco, nem um gato e nemum urso. A cada pergunta, o patife do sobrinho deScrooge estourava em nova gargalhada. Suahilaridade tornou-se mesmo tão violenta, que se viuobrigado a levantar-se do sofá onde estava sentadopara sapatear no soalho.Por fim, a irmãzinha rechonchuda, desatando numaformidável gargalhada, exclamou vitoriosa:- Eureca! Fred! Eureca! Achei!- Então, o que é?- É o teu tio Scroo-oo-oo-oo-ge!Era de fato isso, e todo mundo aplaudiuruidosamente.Entretanto, algumas pessoas notaram que àpergunta �é um urso?�, ele esteve a ponto deresponder �sim�, visto que neste caso, umaresposta negativa teriapodido desviar o pensamento deles para longe dotio Scrooge.- Ele contribuiu galhardamente para nos divertir,observou Fred, e seria a mais negra ingratidão nãobebermos à sua saúde. Eis que neste instantechega mesmo a propósito o gostoso vinho quente.Assim, pois, à saúde do tio Scrooge!- ótimo! A saúde do tio Scrooge! exclamaram todos.- Um feliz Natal e um feliz ano novo a este queridocavalheiro! exclamou o sobrinho de Scrooge. Queeste voto, que ele não aceitará de mim, possa serpara ele o portador de mil felicidades! Portanto, à

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saúde do tio Scrooge!Tio Scrooge tinha tomado, pouco a pouco, tantoapego àquela festa e sentido tanta satisfação porela, que teria justificado de bom grado o brinde, efeito a todos os presentes, que não podiam ouvi-lo,um discurso de agradecimento, se o fantasma lhetivesse deixado tempo para tanto. Mas, às últimaspalavras do sobrinho, toda a cena se desvaneceu, eScrooge partiu com o espírito para novasperegrinações.

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Foram muito longe, viram muitas coisas, visitarammuitos lares, semeando sempre o bem por ondepassavam. O espírito parava à cabeceira dosenfermos, e os enfermos sorriam; parava em terraestranha, e os exilados acreditavam estar em suaprópria pátria; parava perto daqueles que sofriam elutavam, e logo a esperança renascia em seuscorações; detinha-se perto dos pobres, e os pobresjulgavam-se ricos. Nos hospitais, como nos asilos enas prisões, nestes refúgios da miséria, onde ohomem orgulhoso não havia usado de sua efêmeraautoridade senão para lhe defender a entrada, oespírito espalhava suas bênçãos, ensinando aScrooge os preceitos da caridade.Foi uma longa noite, o que o fez suspeitar de quetodos os dias de festa do Natal se tinhamcondensado no espaço de tempo em que elesperegrinaram juntos.Coisa curiosa! Enquanto Scrooge permanecia omesmo, o espírito envelhecia a olhos vistos.

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Scrooge observou esta mudança sem dizer nada,até ao momento em que, deixando uma reunião decrianças, que estavam festejando o dia de Reis, viuque os cabelos do espírito estavam ficandogrisalhos.- A vida dos espíritos é assim tão breve? perguntouele.- De fato, minha vida aqui na terra é bastantecurta, respondeu o fantasma. Ela termina estanoite.- Esta noite mesmo? exclamou Scrooge.- A meia-noite. Ouve! A hora aproxima-se.No mesmo instante, o carrilhão bateu onze e trêsquartos.- Perdoai minha pergunta, se ela é indiscreta, disseScrooge com os olhos fixos nas roupas do espírito.Esta coisa esquisita que está saindo por baixo davossa roupa e que não vos pertence, é um pé ouuma garra?- Tão leve camada de carne o recobre, disse oespírito com tristeza, que mais poderia ser umagarra. Olha bem.Das dobras de seu manto, fez sair duas crianças,duas miseráveis criaturas, hediondas, abjetas erepugnantes, que se ajoelharam diante dele e seagarraram ao seu manto.- Homem insensível, olha! Olha a teus pés!exclamou o fantasma.Eram um menino e uma menina. Pálidos, magros eesfarrapados, tinham uma expressão bravia eodiosa, mas ao mesmo tempo rastejante e humilde.Seus rostos, onde deveria ter desabrochado ofrescor da juventude, eram macilentos,

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encarquilhados, desfeitos, como se a mão do tempoos tivesse tocado. Jamais a criação, em seusinsondáveis mistérios, produzira mais feiosmonstros.Scrooge recuou espantado. Mas, como era o espíritoque os estava apresentando, ia dizer que erambelas crianças; as palavras, porém, lhe morreram nagarganta, recusando-se a dizer tão monstruosamentira.- Espírito, estas crianças são vossas? . . .Scrooge não pôde prosseguir.- São filhos do Homem, disse o espírito, baixando oolhar sobre ele. Estão agarrados a mim para pedirjustiça contra seus pais. Este é a Ignorância, eaquela, a Miséria. Toma cuidado contra um e outro,mas especialmente contra a Ignorância; pois vejoescrito em sua fronte a palavra �condenação� e seesta palavra não for apagada, a predição secumprirá. Negai-o, todos vós! clamou o espírito comvoz forte, estendendo a mão sobre a cidade.Caluniai aqueles que vos avisam! Tolerai e encorajaium flagelo que serve para os vossos negrosdesígnios! . . . Mas temei o fim!- E eles não têm nenhum recurso? Não há para elesnenhum refúgio? exclamou Scrooge.- Sim? E não há as prisões? disse o espíritorepetindo-lhe ainda uma vez suas próprias palavras.Não há as casas de correção?O relógio bateu as doze badaladas.Scrooge procurou o espírito com os olhos e já não oviu mais.Quando acabou de bater a última badalada, Scroogelembrou-se da predição de Jacob Marley, e,

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erguendo os olhos, avistou uma sombra escurainteiramente velada, que avançava para ele,deslizando como a bruma pela superfície do solo.

OUARTA ESTROFE

O último dos três espíritos

Lentamente, no meio de um profundo silêncio, ofantasma aproximou-se.Quando chegou perto de Scrooge, este sentiu queas pernas se lhe dobravam, pois o espírito pareciaespalhar em torno de si uma atmosfera de mistérioe tristeza.Estava envolto num espesso manto negro, que lheocultava a cabeça, o rosto e todas as formas docorpo, não deixando visível senão uma das mãos.Sem esta mão, teria sido difícil distinguir, dentro danoite, esta forma sombria, quase identificada com afunda escuridão do ambiente.De perto, Scrooge notou que o fantasma tinha umaestatura imponente, e que sua misteriosa presençalhe inspirava um sagrado terror. Nada mais pôdesaber, porque o espírito conservava-se imóvel esilencioso.- Estarei em presença do espírito dos Nataisfuturos? perguntou Scrooge.O espírito não respondeu, mas apontou o caminhocom a mão.- Ireis mostrar-me coisas que ainda nãoaconteceram, mas que estão para acontecer, não é

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verdade, Espírito?A parte superior do manto moveu-se por uminstante, como se o espírito inclinasse a cabeça emsinal de assentimento. Foi essa a sua únicaresposta.Embora. já habituado à convivência com osespíritos, Scrooge sentiu-se desta vez tãoperturbado com esta muda aparição, que suaspernas tremiam e quase não podia conservar-se empé.Como se tivesse compreendido a situação equissesse dar-lhe tempo para refazer-se, o espíritoesperou um instante. Scrooge, porém, sentiu-seainda mais perturbado; causava-lhe um vago eimpreciso terror o pensamento de que, atrásdaquele escuro manto, havia dois olhos a fixá-lo;mas ele mesmo, por mais que se esforçasse pordistingui-los, não via mais que uma lívida mãocomo parte da massa informe.- Espírito do futuro, exclamou ele, eu vos temoainda mais que a todos os outros espíritos que viaté hoje, mas como sei que tendes por objetivo aminha reabilitação, e como desejo ser um homemmelhor do que tenho sido, estou pronto a seguir-vos com toda a gratidão. Nada tendes a dizer-me?O fantasma conservou-se calado. A mão continuavaestendida na mesma direção.- Guiai-me, guiai-me! disse Scrooge. A noiteavança, e as horas que passam têm grande valorpara mim. Guiai-me, espírito, guiai-me!O fantasma começou a afastar-se, do mesmo modocomo se tinha aproximado. Scrooge seguiu-o,acompanhando a sombra do seu manto, que,

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parecia-lhe, o arrebatava e o arrastava.Não se poderia dizer que se dirigiam para a cidade,pois foi a cidade que pareceu surgir diante deles.Ambos se acharam, subitamente, no coração dacidade, na Bolsa, no meio de uma multidão dehomens de negócios, que iam e vinham, com aragitado, que conversavam em grupos, queconsultavam os relógios, que faziam tilintar suasmoedas no bolso ou brincavam, preocupados, comseus sinetes dependurados na corrente do relógioem forma de berloques, tais, em uma palavra, comoScrooge costumava vê-los.O espírito deteve-se em frente a um pequeno grupode corretores da Bolsa. Scrooge, notando que a mãoapontava para eles, aproximou-se para ouvir o quediziam.- Não, dizia um senhor alto e gordo, possuidor deum enorme queixo, não sei mais nada. Só sei queele morreu.- Quando isso? perguntou outro.- A noite passada, creio.- E de que morreu? perguntou um terceiro, tomandouma ampla pitada numa larga tabaqueira. Eu penseique ele fosse eterno.- Não sei de que morreu, tornou o primeiro abrindoa boca.- A quem teria deixado todo o seu dinheiro?perguntou um cavalheiro de rosto congestionado,cujo nariz apresentava uma excrescência que sebalançava como o papo de um peru.- Nem sei, respondeu o homem do queixo enorme,abrindo a boca novamente. Talvez o tenha deixadoà sua sociedade. Em todo caso, o que posso afirmar

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é que não foi a mim que ele o deixou.Uma risada geral acolheu a pilhéria.- Será talvez um enterro bem pobre, continuou ele,pois não vejo, palavra de honra, quem se dê otrabalho de o acompanhar. Em todo caso, vamos lápara fazer número.- Eu só irei se depois me oferecerem um almoço,respondeu o cavalheiro do nariz de pelote.Novas risadas acolheram o gracejo.- Pois eu sou mais desinteressado que todos vocês,respondeu o primeiro interlocutor, porque não tenholuvas pretas e não me incomodo com o almoço.Mas se alguém quiser acompanhar-me estou prontoa ir. No fundo, parece-me que eu era um dos seusmais íntimos amigos, pois toda vez que nosencontrávamos, gostávamos de parar e conversarum instante. Passem bem, senhores.Todos se afastaram e foram juntar-se a outrosgrupos.Scrooge, que conhecia aquelas pessoas, voltou-separa o espírito para pedir uma explicação, mas ofantasma o levou para uma rua e lhe apontou com odedo dois senhores que acabavam de se encontrar.Julgando que sua palestra o esclareceria, pôs-se aescutar de novo.Scrooge conhecia-os também perfeitamente. Eramdois homens de negócios, riquíssimos e muitoconsiderados. Scrooge sempre fizera muita questãoda estima deles, mas, expliquemos, exclusivamentedo ponto de vista comercial.- Como vai? disse um.- Muito bem. E você? respondeu o outro.- Olhe, tornou o primeiro, o senhor Harpagão

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liquidou sua última conta.- Já soube? respondeu o segundo. Que frio Nãoacha?- É da época. Você quer patinar?- Não, obrigado. Tenho outra coisa a fazer. Até logo.Nada mais. Tais foram seu encontro e sua palestra.

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Para começar, Scrooge achou esquisito que oespírito desse tanta importância a umasconversações aparentemente banais. Naturalmente,deviam elas ter uma significação oculta, mas qualseria? Elas não podiam referir-se à morte de Jacob,seu antigo sócio, porque a morte dele pertencia aopassado, e o domínio deste fantasma era o futuro.Entre as pessoas que ele conhecia, Scrooge não vianenhuma a quem pudesse aplicar o assuntodaquelas palavras, mas, persuadido de que de ummodo ou de outro elas encerravam uma liçãodestinada ao seu aperfeiçoamento, resolveu guardarcom cuidado tudo que visse e ouvisse, e observarparticularmente sua própria imagem quando ela lheaparecesse, pois a atitude de seu próprio futuro lhedaria provavelmente o fio condutor que lhe faltava elhe tornaria fácil a solução de todos estes enigmas.Assim, pois, procurou-se a si mesmo entre oscorretores da Bolsa, e, ainda que o relógioestivesse marcando a hora que ele habitualmente lá

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se encontrava, não viu ninguém que se parecessecom ele no meio da multidão que se precipitava sobo peristilo.Isso, entretanto, não lhe causou maior surpresa.Não havia ele decidido mudar de vida? Sem dúvidaalguma, sua ausência da Bolsa devia ser umaconseqüência das suas novas resoluções.Mudo e sombrio, o fantasma conservava-se caladoao pé dele, sempre com a mão estendida. Deacordo com a atitude do espectro, Scrooge imaginouque os olhos invisíveis do fantasma estavamfixados nele, e esta idéia deu-lhe calafrios.Deixaram a Bolsa, com a sua agitação, e dirigiram-se para um bairro de Londres, onde Scrooge nuncatinha estado, mas cuja reputação ele bem conhecia.As ruas eram estreitas e sujas, as casasresidenciais e comerciais de aspecto sórdido; viam-se pessoas embriagadas, em andrajos, malcalçadas e repulsivas. As vielas e os becos, comooutros tantos canos de esgoto, desembocavam emruas tortuosas, com seus odores pestilentos e malcheirosos, sua sujeira e sua população formigante.Todo este bairro respirava a imundície, miséria ecrime.Ao fundo deste covil asqueroso, numa cabanacolocada sob ampla coberta, fazia-se o comércio deferragens, de garrafas, de retalhos, de ossos e degorduras.No chão, montões de chaves enferrujadas, depregos, de correntes, de gonzos, de ferramentas, develhas balanças e de ferragens de toda espécie.Escondiam-se nestes montes de trastes velhos,nestes sepulcros de ossos e gorduras rançosas,

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muitos segredos que poucas pessoas gostariam deaprofundar.

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Sentado no meio dos objetos, que constituíam oseu comércio, junto de um fogão feito de velhostijolos, um setuagenário abrigava-se do frio quevinha de fora, por meio de uma cortina feita dedisparatados retalhos presa a um fio, e fumava oseu cachimbo, gozando o conforto do seu tranqüilorecanto.No momento preciso em que Scrooge e o espírito seachavam na presença deste homem, uma mulhercarregada com um pesado volume entroufurtivamente na loja. Apenas ela entrou, outramulher apareceu, igualmente carregada, seguida deperto por um homem vestido de preto, o qual, aovê-las, ficou tão surpreendido quanto elas própriasao reconhecê-lo.Após alguns segundos de surpresa, partilhada pelohomem do cachimbo, todos três desataram a rir.- Que a dona da casa passe primeiro, para começar,declarou a mulher que fora a primeira a entrar; alavadeira passará depois, e em seguida o �gato-pingado�.� Olá! diga-me então, meu velho Joe, aquinão está um belo acaso? Até parece que todos trêscombinamos uma senha para nos encontrarmosaqui!- Não podia haver melhor lugar para um encontro,

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disse o velho Joe, tirando da boca o cachimbo. Hámuito que esta casa é sua, e os outros doistambém não são desconhecidos. Esperem apenasque eu vá fechar a porta. Olha como range! Nãocreio que haja aqui coisa mais enferrujada que osseus gonzos, como também não creio que hajaossos mais velhos que os meus. Ah! ah! Estamosmesmo bem talhados para este serviço . . . masbem talhados mesmo. Vamos ao salão, vamos.O salão era o espaço oculto pela cortina defarrapos.O velho espertou o fogo com uma acha de escada,depois, arranjou a lamparina fumarenta com o cabodo cachimbo - porque a noite já tinha caído - etornoua pô-lo na boca.Durante este tempo, a mulher que já havia faladodepositou seu volume no chão, e ato contínuosentou-se calmamente num tamborete; então, comos cotovelos nos joelhos, encarou os dois outroscom ar desconfiado.- E então, como é, madame Dilber? disse ela. Seráque não temos o direito de cuidar dos nossosinteresses? Está muito bem o que �ele� sempre temfeito.- Lá isso é verdade, disse a lavadeira, e melhor quequalquer outra pessoa.- Então, bela, porque fazer semelhante papel, comose estivesse com medo? Quem o saberá? Parece-meque não nos vamos vender mutuamente?- Naturalmente que não! disseram ao mesmo tempoo homem e a senhora Dilber. Isso está fora dedúvida.

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- Sendo assim, tudo vai bem! exclamou a mulher. Aquem poderá prejudicar a perda destas poucasbugigangas? Naturalmente, não será ao defunto,penso?- Evidentemente que não, respondeu a senhoraDilber, rindo.- Se aquele velho avarento queria guardá-las depoisde morto, o que devia ter feito é viver como todagente, prosseguiu a mulher. Só assim teria tidoalguém para assisti-lo em seus últimos instantes,em vez de dar o último ai completamente só.- É a pura verdade, declarou a senhora Dilber. Foi oseu castigo.- O castigo teria sido maior, se eu pudesse terdeitado a unha a outras coisas. Abra este pacote,velho Joe, e diga-me o que isso pode valer. Sejafranco. Pouco me estou incomodando de passaradiante dos outros. Suponho que já sabíamos,antes de nos encontrarmos aqui, que iríamos tratardos nossos negócios. Acho que não há nenhum malnisso. Vamos, abra o pacote, Joe!Seus amigos, porém, por delicadeza, opuseram-se aisso, e o homem de negro foi o primeiro a expor asua muamba.Esta não era grande coisa: um sinete ou dois, umporta-níqueis, um par de abotoaduras de punho eum alfinete de gravata, de pouco valor. Era tudo.O velho Joe examinou-os detidamente, avaliou-osescrevendo a giz na parede a quantia que estavadisposto a dar para cada um dos artigos e fez asoma, quando viu que não havia mais nada.- Aí está sua conta, disse Joe, e não darei a maisnem um centavo, nem que me joguem água

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fervente. Quem é o seguinte?Apresentou-se a senhora Dilber.Ela trazia lençóis e guardanapos, algumas roupas,duas colheres de prata, de modelo antigo, umpegador de açúcar e vários pares de calçados. Aconta foi feita na parede, como anteriormente.- Para as senhoras costumo pagar sempre mais. Éesse um dos meus vícios, que acabará por levar-mea falência, disse o velho Joe. Aqui está sua conta,mas não insista, pois não levará nem um centavo amais, do contrário, ainda posso arrepender-me ededuzir do total pelo menos meia coroa.- Agora é o meu embrulho, Joe! disse a primeira quehavia chegado.Joe pôs-se de joelhos para abrir o embrulho maiscomodamente. Depois de ter desamarradoinumeráveis nós, arrancou um grosso e pesado rolode tecido escuro.- Que coisa vem a ser isto aqui? Mosquiteiros?- Naturalmente, respondeu a mulher com umagargalhada e inclinando-se para a frente com osbraços cruzados. São mosquiteiros!- Não vai dizer-me que os tirou com argolas e tudoquando ainda estava estendido na cama?- Posso afirmar que sim, naturalmente. E por quenão? replicou a mulher.- Você nasceu para ser rica! exclamou Joe,há de fazer fortuna, não há dúvida!- Desde que, estendendo a mão, eu possa apanharalguma coisa, é natural que eu não ia guardá-la emmeu bolso por consideração a semelhante indivíduo,respondeu a mulher friamente. Atenção! Faça ofavor de não derramar óleo nos cobertores.

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Cobertores dele? perguntou Joe.De quem mais podiam ser? respondeu a mulher.Tenho a impressão de que a esta hora já não temmedo de passar frio.- Espero que não tenha morrido de moléstiacontagiosa? perguntou Joe interrompendo o seuinventário e erguendo os olhos para ela.- Sei lá! Eu não tenho medo, replicou a mulher. Asua companhia não era assim tão agradável paraque eu andasse vendo o que ele tinha. Oh, podemorrer de olhar para essa camisa, que não acharáum rasgão, um rustido. Era a que ele tinha de maisresistente e mais bonita. Sem mim, ela estariaperdida.- Perdida? Como assim?- Sim, teria sido enterrado com ela, disse a mulher.Não sei quem teve a estúpida idéia de a vestirnele, mas eu tornei a tirá-la. Se a chita não servepara mortalha, então não serve para nada. Olhe quenão podia ser mais feio do que era com estacamisa.Scrooge ouvia este diálogo horrorizado.Aqueles indivíduos agrupados em redor de suapresa, à miserável claridade da lamparina do velho,inspiravam-lhe um ódio e uma repugnânciaindescritíveis, apenas menos violentos, talvez, doque se tivessem sido imundos demônios em disputado seu próprio cadáver.- Ah! ah! ah! gargalhou ruidosamente a mulher,quando o velho Joe, apresentando um saco deflanela cheio de dinheiro, pôs no chão a quantia quetocava a cada um.- Ah! ah! ah! Ele, em vida, continuou a mulher,

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mandou toda a gente passear, com o único fim denos proporcionar alguns pequeninos lucros depoisde sua morte. Ah! ah! ah!- Espírito, disse Scrooge tremendo da cabeça aospés, agora compreendo, agora compreendo. A sortedeste infeliz poderia ter sido a minha, e éexatamente a isso que conduz uma vida como a quelevo. Deus do céu! Que é aquilo?Scrooge recuou, apavorado.A cena era completamente outra. Estava agora àcabeceira de uma cama, uma cama sem cortinas,sobre a qual jazia, envolto num pano rasgado, umaforma cuja muda imobilidade era um lúgubre libelocontra a natureza.O quarto estava escuro, bastante escuro para quese lhe pudessem distinguir os detalhes, emboraScrooge olhasse para todos os lados, ansioso pordescobriraquilo que tal escuridão envolvia.Uma pálida claridade vinda do exterior incidiu sobreo leito onde, pilhado, roubado, sem ninguém que ovelasse, sem um amigo para chorá-lo, no meio domais absoluto abandono, jazia o corpo destehomem.Scrooge olhou para o fantasma, e viu que a mãoapontava para a cabeça do morto. O lençol que aenvolvia estava colocado de tal maneira quebastava levantar-lhe uma das pontas para descobriro rosto do a defunto.Scrooge pensou em fazê-lo, mas, ao tentá-lo,verificou que para realizar este facílimo gesto seachava tão impotente quanto para despedir oespectro que continuava de pé a seu lado.

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Ó Morte, ó pavorosa Morte! Morte gélida e rígida!Ergue aqui teu altar e dispõe ao teu redor o teucortejo de horrores, pois é mesmo aqui o teudomínio! Mas, se vais ferir uma cabeça querida,honrada e respeitada, não podes fazer que nenhumdos seus cabelos se apreste para os teus negrosdesígnios, nem podes imprimir os teus horroressobre um só dos seus traços. A mão pode serpesada e recair inerte quando abandonada, e ocoração pode ser silencioso, mas esta mão foigenerosa, aberta e leal, e neste coração corajoso eterno corria um sangue nobre e viril. Fere, Morte!Fere! Tu verás surgir dos teus golpes somentenobres ações, que recairão sobre o mundo comosementes de imortalidade!Nenhuma voz pronunciou estas palavras aos seusouvidos, e entretanto Scrooge as ouviu claramentequando se havia inclinado sobre o leito. �Se estehomem ressuscitasse agora, pensava ele, quaisseriam as suas primeiras preocupações?Inquietações de avarento? Amor do dinheiro?Desejo de acumular? Realmente, elas o levaram aum belo fim. . . �E o morto jazia abandonado na enormidade daquelacasa vazia, sem um homem, uma mulher ou umacriança que recordasse com mágoa alguma açãogenerosa sua. A porta miava um gato e debaixo dofogão ouvia-se um rumor de ratos. O que �eles�procuravam naquela casa de morte, Scrooge nãoousou pensar.- Espírito, disse ele, este lugar é pavoroso. Osensinamentos que acabo de aprender aqui, jamaisos esquecerei, eu vos juro. Por piedade, afastemo-

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nos daqui!Mas o espírito continuava a apontar a cabeça domorto com o seu inexorável indicador.- Eu vos compreendo, disse Scrooge, e desejariaobedecer-vos, se pudesse, mas não tenho forçaspara tanto, Espírito! Espírito não tenho forças. . .O espírito pareceu encará-lo novamente.Movido pela angústia, Scrooge continuou:- Se houver em toda a cidade de Londres uma sópessoa a quem a morte deste homem tenhacausado qualquer emoção, mostrai-ma, Espírito, euvos suplico.O fantasma desdobrou diante dos olhos de Scroogeo seu sombrio manto como se fosse uma asa, e emseguida, afastando-o, fez aparecer diante dele umasala fartamente iluminada pela luz de um claro dia,e, nela, uma mãe de família com os seus filhos.A mulher parecia esperar alguém, tomada da maisviva ansiedade, estremecendo ao menor ruído, indode um lado para outro, olhando pela janela,consultando o relógio, tentando em vão recomeçarseu trabalho e enervando-se com o barulho quefaziam as crianças ao brincar.Finalmente soou o toque da campainha tãoansiosamente esperado. Ela precipitou-se para aporta, a fim de receber o marido, rapaz ainda moço,mas cuja fisionomia apresentava os sinais dainquietude e das preocupações.O jovem tinha, neste momento, uma singularexpressão, onde se lia uma espécie de alegriaentremeada de embaraço, uma alegria da qual seenvergonhava e que procurava reprimir.Quando se sentou à mesa, para o almoço

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requentado, que a esposa lhe guardara, e esta lheperguntou, timidamente, quais eram as notícias - oque só fez depois de longo silêncio -, o rapazpareceu embaraçado para responder.- São boas ou más? perguntou ela para ajudá-lo.- Más, respondeu ele.- Então, estamos arruinados?- Não, Carolina, ainda há esperança.- Será que �ele� vai apiedar-se? disse ela hesitante.Se esse milagre se realizar, já não haverá razãopara a gente desesperar na vida.- Ele não pode mais apiedar-se, porque já morreu.Era uma senhora meiga e paciente, a julgar pelaexpressão de seu rosto; entretanto, seu primeiroimpulso foi juntar as mãos e dar graças a Deus.Imediatamente, porém, arrependeu-se emanifestou-se penalizada por ter assim procedido,mas era a primeira manifestação que lhe haviabrotado da alma espontaneamente.- O que me havia dito aquela mulher meioembriagada, de quem te falei ontem à noite,quando pedi licença para vê-lo, a fim de obter delea espera de pelo menos mais uma semana, não erapretexto para não me deixar entrar, mas a purarealidade: não somente ele estava enfermo, masmesmo agonizante.- A quem teria passado a nossa dívida?- Não sei. Mas até que a situação estejaregularizada, terei conseguido o dinheironecessário. E mesmo que não nos fosse possívelpagar de uma só vez, seria muita falta de sorte seencontrássemos em seu herdeiro um credor tãoimpiedoso como ele. Esta noite, Carolina, podemos

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dormir tranqüilamente.Sim, isso era natural, pois os seus coraçõesestavam mais aliviados. As crianças, agrupadas emsilêncio em torno de seus pais, para ouvirem umaconversa de que nada entendiam, tinham asfisionomias mais risonhas, e a felicidade entravanovamente nesta casa com a morte deste homem.A única emoção causada pelo seu desaparecimento,e que o espectro pôde mostrar, foi uma emoção dealegria.- Espírito, disse Scrooge, fazei-me ver uma cena emque se misture um pouco de doçura ao drama damorte, do contrário, este quarto escuro queacabamos de ver ficará eternamente gravado naminha lembrança.

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O espectro conduziu-o através de ruas que lhe eramfamiliares, e enquanto caminhavam, Scrooge olhavaem torno de si, na esperança de se descobrir a simesmo, mas ninguém o via em parte alguma.Entrando, novamente, na pobre casa dos Cratchits,esta casa que Scrooge já tinha visitado,encontraram a mulher e as crianças em redor dofogo.Como estavam calmos! Os barulhentos caçulas dosCratchits permaneciam a um canto, quietos comoimagens, e olhavam para Pedro, que tinha um livroaberto diante de si. A mãe e as filhas ocupavam-senum trabalho de costura. Sim, todos eramestranhamente silenciosos.�Ele pegou a criancinha e sentou-a no meio deles.�

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Onde tinha Scrooge ouvido estas palavras? Não astinha sonhado! Talvez o jovem Cratchit as tivesselido em voz alta no momento em que transpunha aporta com o espírito. Mas, por que não continuavaele a sua leitura?A senhora Cratchit pousou o trabalho na mesa epassou a mão pelos olhos.- A cor deste pano me faz mal aos olhos, disse ela.A cor e a luz da lamparina me cansam a vista, e eunão queria ter os olhos vermelhos, quando seu paichegasse. Deve estar quase na hora de seuregresso.- Acho que já passou, respondeu Pedro, fechando olivro. Mas, tenho a impressão, mamãe, de que, hájá alguns dias, ele está andando maisvagarosamente que antes.Novamente se fez silêncio. Ao cabo de um instante,a mãe prosseguiu com voz mais firme, quefraquejou apenas uma vez:- Eu o vi andar bem ligeiro, bem ligeiro mesmo com. . . com Tinzinho às costas.- Eu também, e muitas vezes, exclamou Pedro.- Eu também! exclamaram os pequenos, ao mesmotempo.- Mas Tinzinho é muito leve, continuou ela, e o pailhe queria tanto bem que nem sentia cansaço. Ah,eis seu pai que volta!Ela precipitou-se para ir abrir-lhe a porta, e Bob,sufocado em seu cachenê - de que aliás tinha bemnecessidade, o pobre - entrou na sala. Seu cháesperava-o no canto do fogão, e cada um queria sero primeiro a servi-lo. Depois, os pequeninosCratchits subiram aos seus joelhos e chegaram seus

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rostinhos ao dele, como para dizer: �Não pensenisso, pai. Não se aborreça tanto.�Bob falou-lhes sorrindo, e teve uma palavra amávelpara cada um. Observando os trabalhos de costuraespalhados na mesa, elogiou a habilidade e adiligência da senhora Cratchit e suas filhas. Tudoestaria perfeitamente terminado para domingo.- Domingo? Então você foi lá, Bob? perguntou suamulher.- Sim, querida, e gostaria muito que estivessecomigo. Teria gostado de ver como o lugar é belo everdejante. Mas poderá ir lá muitas vezes. Prometi-lhe que iria passear lá no domingo. Oh, meumenino! Meu pobre pequenino! gemeu Bob.Subitamente, Bob desatou a chorar. Não chorarestava acima de suas forças, pois elos de grandeafeto prendiam-no a esta criança.Deixando a sala, subiu para o quarto do andarsuperior, que se achava fartamente iluminado eenfeitado com guirlandas de flores, como paraNatal. Junto à criança, estava colocada umacadeira, e notava-se que poucos minutos antesalguém estivera sentado ali.Bob sentou-se, concentrando-se por um momento, edepois de readquirir a calma, abaixou-se e beijou orostinho do menino. E como aceitavaresignadamente o seu sacrifício, foi com ânimosereno e forte que tornou a descer para junto dosdemais.Todos se aproximaram do fogo e começaram aconversar, enquanto a senhora Cratchit e suas filhascontinuavam a costurar. Bob falou-lhes, então, daex-

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traordinária benevolência que lhe haviatestemunhado o sobrinho de Scrooge. Estecavalheiro, que não o tinha visto mais que uma ouduas vezes, fizera-o parar na rua,, naquela tarde, e,tendo notado sua fisionomia um tanto abatida,interessou-se em saber o que lhe havia acontecido.- Nestas circunstâncias, prosseguiu Bob, expliquei-lhe tudo, pois o sobrinho de Scrooge é de fato umperfeito cavalheiro, o homem mais afável que sepossa imaginar. �Estou sinceramente preocupado,senhor Cratchit, não somente pelo senhor, masainda por, sua excelente esposa�. A propósito,.como podia ele saber disso?- Saber o quê, meu amigo?- Que você é uma excelente esposa.- Mas toda gente o sabe, disse Pedro.- Muito bem respondido, meu rapaz, exclamou Bob.Espero que todos o saibam. Em seguida, referindo-se ao encontro, continuou: �Sinto muito e se eu lhepuder ser útil em qualquer coisa, terei nisso muitogosto, disse-me ele, apresentando-me seu cartão.Se precisar, venha procurar-me sem acanhamento�.Ora, não será tanto pelos serviços que nos poderáprestar, mas pela maneira cordial como se ofereceu.Dir-se-ia que já conhecia nosso Tinzinho ecompartilhava das nossas mágoas.- Estou certa de que é um homem de bom coração,declarou a senhora Cratchit.- E ainda mais se certificaria disso, minha cara, se ovisse e pudesse falar com ele. E não ficariasurpreendido, pode crê-lo, se ele arranjasse umlugar melhor para Pedro.- Ouça lá, Pedro, disse a mãe.

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- E então, disse uma das moças, Pedro se casa enos deixa.- Calma, meninas! respondeu Pedro com umacareta.- É uma coisa que poderá acontecer qualquer dia,meu rapaz, disse Bob, embora ainda tenhamostempo para pensar nisso. Em todo caso, quandochegar o momento de nos separarmos uns dosoutros, nenhum de nós poderá esquecer o pequenoTim, não é verdade? Ninguém se esquecerá destaprimeira separação.- Não, papai, jamais, exclamaram todos.- Depois, meus filhos, só a lembrança de quanto eleera meigo e paciente, embora não passasse de umacriancinha, já seria o bastante para nosentendermos sempre bem, pois o contrário seriaesquecer o nosso pequeno Tim.- Sim, papai, sempre! exclamaram todosnovamente.- Sinto-me imensamente feliz, meus filhos, disseBob, muito contente.A senhora Cratchit abraçou-o e todas as meninas oabraçaram, e Pedro veio apertar-lhe a mão.Tinzinho! Tua pequenina alma de criança tem a puraessência divina!- Espírito, disse Scrooge, alguma coisa me diz, semque eu saiba como, que a nossa separação seaproxima. Podereis dizer-me o nome do homem quevimos deitado em seu leito mortuário?O espírito dos Natais futuros transportou-o de novopara o bairro comercial. Parecia que o tempo haviapassado. As novas visões já não tinham para elenenhum nexo entre si, a não ser o de que

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representavam sempre o futuro, mas a imagem deScrooge não se via em parte alguma. Aliás, oespírito não parava, continuando sempre em seucaminho, como se se dirigisse para um fimdeterminado. Scrooge, em dado momento, suplicou-lhe que parasse um pouco.- É neste beco, que agora estamos atravessandotão depressa, que se encontra meu escritório, eisso não é de hoje. Daqui estou a ver a casa.Deixai-me ver o que serei no futuro.O fantasma parou, com a mão estendida para outradireção.- A casa está lá, exclamou Scrooge, por que meapontais para outro local?O dedo do fantasma continuou inexoravelmenteestendido.Scrooge correu até à janela do seu escritóriocomercial, mas já não era o seu. A mobília tinhasido mudada, e sentado na poltrona achava-se umdesconhecido.O fantasma indicava sempre a mesma direção.Scrooge foi ter com ele, e, perguntando a si mesmoonde poderia estar o seu próprio futuro,acompanhou o fantasma até o momento em quechegaram a uma grade de ferro, diante da qual sedetiveram antes de entrar.Era um cemitério. Ali, sem nenhuma dúvida,embaixo da terra, estaria aquele infeliz cujo nomelhe restava saber.Que lugar pavoroso! Apertado entre capelas; cheiode sepulturas, invadido pelas ervas daninhas . . .Oh, sim... Triste lugar!Em pé no meio dos túmulos, o espírito designava-

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lhe um túmulo. Scrooge caminhou para ali a tremer.Embora o aspecto do fantasma não tivesse mudado,Scrooge receava ver, em sua forma espectral, umanova e terrível significação.- Antes de aproximar-me desta pedra que meapontais, disse ele, respondei, Espírito, à minhapergunta: Estas imagens representam o que deveou o que poderia acontecer?O fantasma continuava a indicar o túmulo perto doqual se achava.- A conduta de um homem pode fazer prever o seufim, disse Scrooge, mas se ele muda de vida,também o seu fim não será modificado? Dizei-mese assim é que devo entender tudo o que metendes mostrado.O espírito continuou imóvel.Então, continuando a tremer, Scrooge inclinou-separa diante. Guiado pelo dedo sempre estendido dofantasma, leu sobre a lápide desta sepulturaabandonada o seu próprio nome: Ebenezer Scrooge.- Então, era eu o homem estendido sobre o leito?O dedo que apontava a inscrição dirigiu-se paraScrooge, depois voltou ao túmulo.- Não, não, Espírito! Por piedade! Isso não! . . .O dedo continuou imóvel.- Espirito, exclamou Scrooge, agarrando-se ao seumanto, ouvi-me! Não sou mais o homem que fui. Jánão serei o homem que teria sido sem a vossaintervenção. Por que mostrar-me todas estascoisas, se toda esperança está perdida para mim?Pela primeira vez a mão pareceu estremecer.- Bom Espírito, prosseguiu, prostrando-se por terradiante dele, eu sei que no fundo de vós mesmo

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tendes compaixão de mim. Dizei-me que,reformando minha vida, poderei transformar estasimagens que me mostrastes.A mão pareceu ter um gesto de benevolência.- Honrarei o Natal com todas as veras de minhaalma e prometo guardar o vosso espírito durantetodo o ano. Viverei no presente, no passado e nofuturo. A lembrança dos três Espíritos do Natal meajudará a transformar-me, e eu jamais serei surdoàs lições que me ensinaram. Oh! dizei-me queposso apagar o nome escrito sobre esta lápide!Em sua angústia, Scrooge tomou a mão doespectro. Este tentou desvencilhar-se, mas Scroogea reteve com uma pressão de súplica. Mais forteque ele, porém, o fantasma o repeliu.Então, como Scrooge erguesse as mãos numasuprema prece, viu que uma alteração se estavaproduzindo na forma do fantasma, que se retraiu,diminuiu, e finalmente se transformou numa dascolunas da cama.

Epílogo

Era de fato uma das colunas da cama. E esta camaera a sua, e o quarto era o seu quarto! E melhorainda: Scrooge dispunha de tempo para repararseus erros e mudar de vida.- Quero viver no passado, no presente e no futuro,repetiu Scrooge, saltando do leito. A lembrança dostrês espíritos virá em meu auxílio para tanto. Oh!Jacob Marley! Benditos sejam o céu e a festa de

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Natal! E eu o digo de joelhos, velho Jacob, dejoelhos!Scrooge estava agitado e tão entusiasmado com assuas boas resoluções, que sua voz tremia. Durantea sua luta com o espírito, havia soluçadoviolentamente e seu rosto estava inundado delágrimas.- Não foram arrancadas, exclamou Scrooge,abraçando uma das cortinas de seu leito, não foramarrancadas nem as cortinas nem os laços. Está tudoaqui. E eu também estou aqui. O futuro, cujassombras me foram mostradas, ainda pode serconjurado. E o será, estou absolutamente certodisso!Durante este tempo, suas mãos não cessavam devirar e revirar suas roupas, que vestia pelo avesso,que esticava e fazia quase romper as costuras oudeixava cair no chão, praticando assim toda espéciede desajeitamentos.- Já não sei onde estou nem o que faço, exclamavaele chorando e rindo ao mesmo tempo. Sinto-meleve como uma pluma, feliz como um rei, alegrecomo um canário, estouvado como um homem quebebeu demais. Boas festas a todos! Um feliz ano atodos!Scrooge havia saltado para a sala, e aí parou jáquase sem alento.- Aqui está a caçarola, ainda com o chá, exclamouele, dirigindo-se no mesmo passo para a lareira.Aqui está a porta por onde entrou o espectro deJacob Marley. Aqui, o lugar onde esteve sentado oespírito do Natal presente. Aqui está ainda a janelapor onde avistei as almas errantes. Tudo está em

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seus lugares, tudo aconteceu, tudo é verdade. Ah!ah! ah!Efetivamente, para um homem que estavadesabituado a rir, havia tantos anos, Scrooge tinhaum gargalhar sonoro, um gargalhar soberbo, umarisada que prometia uma longa, uma extensalinhagem de sonoras risadas futuras.- Já não sei em que mês estamos, disse Scrooge,nem sei quanto tempo passei com os espíritos. Jánão sei mais nada. Estou como uma criancinha.Tanto pior, pouco importa! Eu gostaria mesmo deser uma criancinha. Quero ver gente! Venham todos,venham!Interromperam-no em seus transportes de alegriaos carrilhões das igrejas, que lançavam a todos osventos as suas vozes mais alegres:

�Ding, ding, dong, boum! ding, ding, dong, boum!

- Senhor, que belos, que maravilhosos carrilhões!Correndo para a janela, abriu-a e pôs o rosto parafora. Nem bruma, nem granizo. Era um belo diaclaro, com um frio vivo e revigorante, um frio quefazia correr o sangue nas veias. Era um sol douradoe flamante, um céu de pureza divina, um ar deesplêndida limpidez, onde revoavam vozes alegresde sinos festivos.- Senhor, que bela, que maravilhosa manhã!- Em que dia estamos hoje? perguntou Scrooge aum rapazinho bem vestido, que passava sob suasjanelas.- Como? disse o menino interrogado.- Em que dia estamos hoje? repetiu Scrooge.

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- Hoje? repetiu o menino. Mas é dia de Natal!- É dia de Natal? disse Scrooge consigo mesmo.Assim pois, ainda o alcanço! Os espíritos fizeramtudo em uma só noite. Naturalmente, podem fazertudo que querem. Não há nada de extraordinárionisso. Muito bem, meu homenzinho!- Como diz? fez o menino.- Sabe onde é a loja do vendedor de aves, naesquina da segunda rua depois desta? perguntouScrooge.- Parece-me que a conheço!- Você é um rapaz inteligente! disse Scrooge, umrapaz absolutamente notável! Será que vocêpoderia informar-me se a perua que estava paravender ontem ainda não foi vendida? Não apequena, mas a maior.- Uma que era tão grande como eu?- Que maravilhoso menino! exclamou Scroogeextasiado. A gente sente um verdadeiro prazer emconversar com ele. É isso mesmo, meu rapaz! É issomesmo!- Ainda não foi vendida, disse o menino.- Sim?! Muito bem: então vá correndo buscá-la paramim.- Brincalhão! exclamou o garoto.- Não, não é brincadeira! disse Scrooge. Váencomendá-la e diga que me tragam aqui, para eudeterminar o lugar onde deve ser entregue. Venhacom o empregado, e eu lhe darei um xelim, sevoltar dentro de cinco minutos, ganhará uma coroa.O garoto saiu como uma flecha. Efetivamente, umatirador que já não estivesse com o dedo no gatilhode seu fuzil, não teria dado o tiro com maior

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rapidez.- Vou mandá-la a Bob Cratchit, pensou Scroogeesfregando as mãos e desatando a rir. Ele nãosaberá de onde veio esta perua, duas vezes maisgorda que Tinzinho. Será uma esplêndidabrincadeira!Sua mão tremia imperceptivelmente enquantotraçava o endereço, mas conseguiu fazê-lo, após oque desceu para abrir a porta e receber oempregado da casa de aves. Enquanto o esperava,seu olhar incidiu sobre a aldrava da porta.- Esta aldrava será de minha estimação até o meuúltimo dia, exclamou Scrooge, acariciando-aternamente. Que boa aparência! Que belaexpressão! É de fato uma aldrava admirável! Maseis que chega a perua. Bravo! Hurra! Bom dia,amigo, Feliz Natal!Para uma perua, era de fato um fenômeno! Nuncaesta enorme perua poderia ter-se mantido sobresuas patas, do contrário, tê-las-ia fraturado empoucos segundos, como se fossem de pão.- Parece-me que não poderá levar isto a CamdenTown, disse Scrooge, será necessário tomar umcarro.As risadas com que acompanhou estas palavras, asrisadas com que pagou a perua, as risadas com quepagou o carro e as risadas com que recompensou ogaroto só podiam ter sido superadas pelas risadascom que se estatelou em sua poltrona e quecontinuaram a apoderar-se dele até às lágrimas.Para barbear-se, achou alguma dificuldade, uma vezque esta operação requer certos cuidados, pois quenão se pode dançar enquanto se barbeia; mas

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Scrooge teria com a maior naturalidade cortado umpedaço do nariz e curado a ferida com um pedaçode esparadrapo, e sua alegria não teria sofrido omenor abalo.Foi nestas condições que calçou os sapatos depelica e saiu finalmente de casa.

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A esta hora, as ruas regurgitavam de gente, taiscomo as tinha visto em companhia do fantasma doNatal presente.Com as mãos atrás das costas, Scrooge via cada umdos transeuntes com os lábios desabrochados emsorriso. Seu ar era tão alegre, tão irresistivelmenteamável, que dois ou três rapazes lhe atiraram, aopassar, um �Bom dia, senhor! Feliz Natal!�. E pelocorrer do tempo adiante, Scrooge declarou e repetiacom freqüência, que de todas as palavrasagradáveis que ouvira, nenhuma fora tão agradávelde ouvir como aquelas.Ainda não tinha andado muito, quando viu,caminhando em sentido contrário, o cavalheiroimponente, que no dia anterior tinha vindo ao seuescritório dizendo: �Scrooge & Marley, se não meengano?�.A idéia do olhar que aquele cavalheiro faria pairarsobre ele, quando o visse, comprimiu-lhe o coração.Ele, porém, conhecia qual a rua que o cavalheiro iatomar e adiantou-se para ela rapidamente.- Meu caro senhor, disse ele, abordandoalegremente o cavalheiro e apertando-lhecordialmente as duas mãos, como vai? Espero que a

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sua coleta de ontem tenha sido boa. Bela obra asua! Desejo-lhe um feliz Natal, cavalheiro!- É o senhor Scrooge?- Perfeitamente, senhor. Receio que meu nome nãolhe seja bastante simpático. Permita-me que lheapresente minhas escusas, e queira ter a bondade.. .Aqui, Scrooge segredou-lhe qualquer coisa aoouvido.- Jesus! exclamou o velho cavalheiro, quasesufocado. Meu caro senhor Scrooge, está falandosério?- Peço-lhe que aceite, disse Scrooge, nem umcentavo a menos. Não faço mais que pagar velhasdívidas atrasadas. Quer fazer-me este favor?- Meu caro senhor, disse-lhe o outro apertando-lhe amão, estou petrificado diante de tal generosi . . .- Não falemos mais nisso, por obséquio,interrompeu Scrooge, e venha procurar-me emminha casa. Virá?- Oh, não faltarei! exclamou o velho senhor, comuma expressão que denotava a firme resolução de ofazer.- Agradeço, senhor, fico-lhe muito obrigado, milvezes grato! Que Deus o abençoe!Saindo dali, Scrooge dirigiu-se para a igreja, saindo,após o ofício, para passear pelas ruas,contemplando os transeuntes que iam e vinhamatarefadamente, dando tapinhas amáveis nas facesdas crianças, interrogando os mendigos,interessando-se pelo que se passava nas cozinhas,no subsolo, olhando pelas janelas das casas enotando que tudo isso lhe agradava e divertia.

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Jamais teria imaginado que um simples passeiopudesse proporcionar-lhe tão grande satisfação.A tarde, Scrooge dirigiu-se para casa de seusobrinho. Antes de subir os degraus da escada,passou por diante da casa uma dezena de vezes.Finalmente, cheio de coragem, avançou para a portae bateu resolutamente.- O patrão está em casa, minha filha? perguntou àcriada. (Gentil esta menina, sim senhor!)- Está, cavalheiro.- E onde está ele, minha bela menina?- Na sala de jantar, com a senhora. Se o cavalheiroquiser subir ao salão . . .- Obrigado, eu sou da família, disse Scrooge, já coma mão na maçaneta da porta da sala de jantar. Vouentrar, minha menina.Scrooge virou brandamente a maçaneta e passou acabeça pela porta entreaberta.Em pé diante da mesa, o sobrinho e a sobrinhapassavam em revista os talheres arrumadoselegantemente para uma recepção, porque osjovens recémcasados davam grande importância aestes pormenores e queriam certificar-se de quenada faltava.- Fred! chamou Scrooge.Céus! Como sua sobrinha ficou sobressaltada!Scrooge já se esquecera das palavras que lhe ouviraquando ela estava sentada ao canto da sala comoutras senhoras. Se lembrava, perdoara-as.- Meu Deus! exclamou Fred, quem é que vejo?!- Sou eu, teu tio Scrooge, que vem almoçar. Possoentrar, Fred?Se podia entrar? Pois pouco faltou para que o

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sobrinho não lhe arrancasse o braço com um apertode mão!Não se poderia imaginar mais cordial acolhimento.Em cinco minutos, Scrooge estava como em suaprópria casa. A sobrinha imitou o sobrinho, e Topperfez o mesmo, e assim fizeram a irmãzinharechonchuda e todos os demais convidados, quandochegaram.Oh, noite deliciosa, deliciosos jogos edivertimentos, amabilíssima companhia! Oh,maravilhoso sentimento de felicidade!No dia seguinte, Scrooge dirigiu-se logo pela manhãpara o escritório, pois se lhe meteu na cabeça ser oprimeiro a chegar e pegar Bob Cratchit em flagrantedelito de atraso.E foi o que aconteceu. O relógio bateu as nove, enada de Bob. Bateu as nove e um quarto, e nada deBob, que, finalmente, chegou dezoito minutos emeio depois da hora.A porta fora deixada aberta por Scrooge, que queriavê-lo entrar no cubículo. Antes de entrar, Bob tirouo chapéu e o cachecol, e em menos de doissegundos estava sentado em seu mocho, fazendodeslizar a pena com extrema rapidez, como sequisesse recuperar o tempo perdido.- Diga-me lá, grunhiu Scrooge no seu tom de voz deantes, tão bem quanto lhe foi possível imitar, comose atreve a chegar com semelhante atraso?- Estou muito penalizado, senhor, disse Bob,cheguei um tanto atrasado.- Um tanto atrasado? repetiu Scrooge, acredito!Venha aqui, faça o favor!- Isso não acontece mais que uma vez por ano,

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senhor, alegou Bob pondo a cabeça fora do seucubículo. Garanto que isso não acontecerá mais.Ontem me diverti um pouco . . .- Muito bem, meu amigo! Vou dizer-lhe o seguinte:Semelhante estado de coisas não pode continuarpor mais tempo! Assim, prosseguiu Scrooge,saltando da cadeira abaixo e assentando nas costasde Bob uma tal palmada, que este recuoucambaleando até a entrada do cubículo, assim... apartir de hoje os seus vencimentos serãoaumentados.Bob, a tremer, lançou um olhar para a réguametálica, e por um instante teve a idéia de dar emScrooge uma tremenda pancada, de imobilizá-lo, eem seguida chamar em seu auxilio as pessoas doprédio para vestir-lhe a camisa-de-força.- Um feliz Natal, Bob, continuou Scrooge com talseriedade, que não era mais possível haver engano.Um melhor Natal e mais belo, meu rapaz, que todosaqueles que há tantos anos você tem passado sobmeu jugo. Vou aumentar seus vencimentos e fareitodo 0 esforço para ajudar a sua laboriosa família.Vamos conversar sobre os seus negócios esta tardemesmo, diante de um copo de ponche fumegante,que beberemos em honra do Natal, Bob! E agora,antes mesmo de começar a trabalhar, acenda o fogoe vá buscar-me outra lata de carvão, Bob Cratchit!Scrooge cumpriu a palavra, e foi ainda muito além.Fez tudo quanto havia resolvido fazer e ainda muitomais. Com referência ao pequeno Tini - que nãomorreu -, Scrooge foi para ele verdadeiramente umsegundo pai. Em breve, tinha-se tornado o melhoramigo, o melhor patrão, o melhor homem que

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jamais se encontrou em nossa velha cidade ou emqualquer outra velha cidade, aldeia ou povoação donosso velho mundo.Alguns riram da mudança operada nele, mas ele osdeixou rir e não se incomodou. Scrooge erabastante inteligente para compreender que nada debom se passa em nosso planeta que não comecepor provocar a hilaridade de certas pessoas. E comoestas pessoas são destinadas a continuarem cegas,a Scrooge tanto fazia que elas manifestassem seussentimentos por uma gargalhada ou por uma careta.Seu próprio coração estava alegre e feliz, e isso lhebastava.Ele não teve mais relações com os espíritos, masmanteve a melhor das relações com os seussemelhantes, e diziam mesmo que não havianenhuma pessoa que festejasse com maisentusiasmo as festas de Natal.Que todos possam dizer de nós a mesma coisa,com a mesma sinceridade. E para terminar, vamosrepetir com o pequeno Tim:- Que Deus abençoe a cada um de nós.

FIM