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Laudatio do Dr. Francisco Pinto Balsemão * 1- Quando a Filosofia era disciplina obrigatória em todo o en- sino secundário e do programa fazia parte a exposição do idea- lismo alemão, uma das coisas que todos os estudantes fixavam, mesmo os mais duros de entendimento, era que um dia o filó- sofo Hegel, ao ver passar o Imperador Napoleão na sua montada, afirmara que tinha visto a razão a cavalo. A fenomenologia do espírito, manifestada dialecticamente no processo histórico, era reduzida à expressão mais simples e mais caricata. Pois este episódio, que servia e serve ainda para ridicularizar a filosofia e os professores de filosofia, tem, desde que bem compreen- dido filosoficamente, um alto valor jornalístico. Servir-me-ei da própria filosofia hegeliana para demonstrar esta afirmação. Nas Lições sobre a Filosofia da História, logo no primeiro volume, intitulado A Razão na História, escreve Hegel que a razão, da qual se diz que comanda o mundo, é uma palavra tão vazia como a palavra destino, que se usa o termo razão sem se * por ocasião da atribuição do Doutoramento honoris causa pela Universidade da Beira Interior em 11 de Outubro de 2010

Merecido elogio, notável lição

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Laudatiodo Dr. Francisco Pinto Balsemão∗

1- Quando a Filosofia era disciplina obrigatória em todo o en-sino secundário e do programa fazia parte a exposição do idea-lismo alemão, uma das coisas que todos os estudantes fixavam,mesmo os mais duros de entendimento, era que um dia o filó-sofo Hegel, ao ver passar o Imperador Napoleão na sua montada,afirmara que tinha visto a razão a cavalo. A fenomenologia doespírito, manifestada dialecticamente no processo histórico, erareduzida à expressão mais simples e mais caricata. Pois esteepisódio, que servia e serve ainda para ridicularizar a filosofiae os professores de filosofia, tem, desde que bem compreen-dido filosoficamente, um alto valor jornalístico. Servir-me-ei daprópria filosofia hegeliana para demonstrar esta afirmação.

Nas Lições sobre a Filosofia da História, logo no primeirovolume, intitulado A Razão na História, escreve Hegel que arazão, da qual se diz que comanda o mundo, é uma palavra tãovazia como a palavra destino, que se usa o termo razão sem se

∗por ocasião da atribuição do Doutoramento honoris causa pela Universidade da BeiraInterior em 11 de Outubro de 2010

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indicar qual o verdadeiro significado e conteúdo . . . Por isso,Hegel adianta que a razão, entendida concretamente, é a própriacoisa. Se nos ficarmos pela concepção genérica, então ficamo-nos apenas pelas palavras. Ora é justamente este o princípiojornalístico. Só as coisas, os casos concretos, conseguem darcorpo a uma notícia. Um jornalista que faça uma notícia sobreo desemprego terá de retratar casos concretos, deste e daqueledesempregado, a fim de tornar patente ao seu público o dramae a angústia que a palavra desemprego é incapaz de mostrar.Napoleão a cavalo na cidade de Jena corporizava aos olhosde Hegel o triunfo da razão, da unidade do Estado burguêssobre a irracionalidade dos mini-estados feudais –de princípes,duques e condes– em que a Alemanha de então se encontravaespartilhada.

Feita a distinção entre as palavras e as coisas, entre os princí-pios e os casos concretos, há a dizer que a liberdade de expres-são e a liberdade de imprensa são princípios hoje estabelecidos,plasmados no texto das constituições nacionais, mesmo declara-dos universalmente direitos do homem. Eles marcam a distinçãoentre a civilização e a barbárie, e não há pois ninguém que osconteste, em princípio. Mas quanto à sua concretização real,como são esses princípios cumpridos e vividos no dia a dia?como são as coisas? A resposta obtém-se jornalisticamente,mediante casos concretos. É nos detalhes da vida real que se ob-tém uma compreensão plena dos princípios. Se o próprio Hegeldeclarou que a leitura do jornal é a oração da manhã do filósofo,

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é porque o pensamento tem de partir da realidade quotidianapara não se perder em exercícios fúteis e vazios sobre “supostasrealidades” de cenários imaginados.

Francisco Pinto Balsemão encarna, nas contingências e vicis-situdes da realidade social, política e económica, os princípiosda liberdade de expressão e da liberdade de imprensa. Contin-gências e vicissitudes que compreendem a ditadura e a censuraantes do 25 de Abril de 1974, e ainda as derivas revolucioná-rias do PREC que levaram à nacionalização de grande parteda imprensa portuguesa, à morte do jornal A República, à to-mada da Rádio Renascença e a rotular de “pasquim” o Expresso.

2- Pinto Balsemão é sobejamente conhecido como o fundadordo Expresso, como um dos 3 fundadores do PPD, hoje PSD,como ex-primeiro-ministro de Portugal nos inícios da décadade 80, como o patrão da SIC e grande magnata dos meios decomunicação social, ou, dito na versão inglesa, como mediatycoon. É, sem dúvida, um empresário de enorme sucesso nocampo dos média e um dos mais respeitados senadores dademocracia portuguesa. Seria redundante, e por isso fastidioso,enumerar aqui os feitos, os cargos, as posições, as distinções eas honras que compõem o seu currículo. Muito mais importanteé realçar o impulso de base, inicial e constante, que caracteriza oseu percurso tanto de homem da comunicação como de políticoe o singulariza como uma das figuras mais notáveis da históriarecente de Portugal. O próprio, no discurso em que agradeceu a

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atribuição do doutoramento honoris causa pela UniversidadeNova de Lisboa, o identifica claramente:

Do que fiz na vida, colocaria como fio condutor e como ob-jectivo cimeiro, exercido e conseguido de diversas maneiras,consoante as épocas e as responsabilidades, a luta pela li-berdade de expressão em geral e, em especial, pelo direito ainformar e a ser informado.1 (fim de citação)

Essa luta pela liberdade da expressão materializa-se primei-ramente, ainda na década de sessenta, nos esforços de umaliberalização da sociedade portuguesa e, em particular, na lutacontra a censura da imprensa. Francisco Pinto Balsemão é umdos muitos que acreditam na possibilidade e na vontade de Mar-celo Caetano reformar o regime político herdado de OliveiraSalazar. É o intuito de contribuir para essa reforma que o leva aintegrar como independente a lista da União Nacional pelo dis-trito da Guarda às eleições legislativas de Outubro de 1969. Tem32 anos, conhece bem os países ricos além Pirenéus, e ambici-ona para Portugal o mesmo desenvolvimento e o mesmo tipode regime político. Nos 4 discursos que fez na campanha, naGuarda, em Pinhel, em Seia e em Gouveia, e de que resultou umlivrinho, publicado logo a seguir às eleições e intitulado Menta-lização para a Eficiência, não esconde o propósito reformador,liberalizador e democrático da sua candidatura. No discurso deSeia, de 23 de Outubro, justifica porque é candidato:

1Em 21 de Abril de 2010

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Sou candidato porque renunciei à cómoda posição de absten-ção e renúncia em que até agora, por entender não estaremcriadas as condições para uma revitalização e institucionali-zação da vida política normal em Portugal, me mantive. Soucandidato porque, embora numa posição de não dependência,quero auxiliar Marcello Caetano a realizar as reformas deque a Sociedade Portuguesa carece, para que acabem de vezas injustiças, os preconceitos, as prepotências. Sou candidatoporque desejo participar no ressurgimento do meu país eentendo que a Assembleia Nacional pode nele desempenharum papel que até agora, por não querer, não saber ou nãopoder, não tem desempenhado. (fim de citação)

Seria impossível ser mais claro. Pinto Balsemão luta por um re-gime democrático em Portugal. No discurso da Guarda, enunciaentre as “tarefas de grande importância” que os novos deputadosterão pela frente o problema da efectiva aplicação dos direitos,liberdades e garantias individuais dos cidadãos portugueses; ea possível instauração de partidos políticos.

Mas não é só nos objectivos que Pinto Balsemão é um liberale democrata, é-o também no tipo de campanha eleitoral. Ofamoso “fair play”, que lhe ficaria para sempre como imagemde marca, é a negação total do estilo dogmático e caceteiro dosultras do regime. Logo no início do discurso com que inicia acampanha explica as regras do jogo democrático.

Nós partimos da dúvida. Queremos lutar pela vitória, tra-balhar para a merecer. Queremos demonstrar a nossa ra-

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zão, sem necessidade de a impor. Queremos obter votos sempressões, sem tráfico de influências, apenas pela força dosnossos argumentos. . . . Esta atitude de incerteza, este reco-nhecimento de que é indispensável trabalhar, devemo-los nãoapenas a nós próprios, mas também aos nossos adversários.Por mais que discordemos das suas opiniões, por mais quenos inquietem os seus nem sempre bem disfarçados propó-sitos . . . , não devemos desprezar ou achincalhar os nossosopositores. Só respeitando os seus direitos e as suas posiçõespoderemos, depois do dia 26, falar aberta e honestamente devitória. (fim de citação)

Boas intenções, excelentes propósitos. Mas, como sabemos, aprimavera marcelista foi sol de pouca duração. Os deputadosindependentes eleitos, Miller Guerra, Pinto Leite, Mota Amaral,Sá Carneiro, Pinto Balsemão, não foram levedura suficientepara, dentro da Assembleia Nacional, operar a ambicionadatransição reformadora do regime. Todas as propostas de lei queapresentaram, nomeadamente o Projecto da Lei de Imprensa,subscrito por Sá Carneiro e Pinto Balsemão, onde se aboliao exame prévio ou censura, foram chumbadas pela maioriasituacionista. Mais grave ainda, confrontado com as críticasdos independentes, designados entretanto por Ala Liberal, oregime endureceu. Só que a guerra colonial tornava a situaçãoinsustentável. Os cabeças duras do regime e a tibieza de MarceloCaetano não deixaram outra saída que não fosse a revolução e

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os subsequentes desvarios políticos, sociais e económicos doPREC.

No livro Informar ou Depender?, publicado no Verão de1971, Pinto Balsemão oferece uma ampla justificação do re-ferido Projecto da Lei de Imprensa. Apesar de constituir umaclara rotura com o regime, o livro assume ainda assim umaatitude pedagógica, mostrando a inevitabilidade das reformas.Era absurdo e mesmo ridículo manter a censura na era espacial,com os satélites de comunicação girando à volta da terra, capa-zes de emitir a breve trecho rádio e televisão directamente paracada lar. Cito agora directamente do livro:

As consequências políticas, económicas, jurídicas, urbanísti-cas, educacionais, etc., dos satélites artificiais, no campo dascomunicações são assim incalculáveis. . . . O globo encurtou-se pela rapidez vertiginosa dos transportes e pela instanta-neidade das comunicações. As nações não podem continuara viver no seu esplêndido isolamento.

O lema que atravessa todo o livro de 330 páginas é de que umainformação livre e independente é a outra face da moeda deuma sociedade desenvolvida. Passo a citar:

Depende em boa parte da independência da informação faceaos poderes político e económico a construção de uma socie-dade livre em que desapareça ou diminua a diferença entrericos e pobres; em que a força não esteja concentrada nasmãos de um número cada vez mais reduzido de pessoas, . . . emque todos tenham idênticas oportunidades de instrução. p. 20

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A segunda parte do livro, dedicada ao caso português, começapor registar o falhanço da informação portuguesa na moderni-zação do país. Por falta de independência e por falta de capaci-dade. A RTP e a Emissora Nacional, órgãos públicos, estavamsubordinadas às directivas do Governo e, as rádios e os jornaisprivados, eram atrofiados pela censura prévia:

A censura prévia impede os jornais de publicarem o quedesejam e obriga-os a uma dependência rotineira do poderpolítico (quando não, também, do poder económico). O fan-tasma da censura prévia causa inibições, trava iniciativas(não apenas jornalística, mas também no sector dos inves-timentos) e diminui a aptidão das pessoas para produziremuma informação tão satisfatória quanto o poderiam fazer.Mais uma vez, o círculo vicioso da falta de independência eda falta de capacidade. p.176

Mas a lucidez da análise e os bons argumentos aduzidos nãoconvenceram quem não queria ser convencido. Por dentro oregime era irreformável.

Todavia, o livro, que na primeira parte é uma exposiçãogeral sobre a comunicação em geral, tem o mérito de definir osprincípios que presidiriam à criação do Expresso. Com efeito,um ano e meio antes no primeiro número do semanário, PintoBalsemão no capítulo nono, “Conteúdo e forma do produto”,coloca a hipótese de:

um grupo de pessoas, dotadas de preparação profissionaljornalística, administrativa e técnica e não ligadas a gru-

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pos políticos ou económicos, pretenderem fundar um jornalde informação num país menos desenvolvido. A empresa aconstituir deseja que o investimento seja lucrativo, de modoa não de vir a enfeudar-se a subsídios ou a empréstimoscondicionados. Tem, contudo, plena consciência de que aempresa jornalística não deve servir apenas para ganhar di-nheiro e quer contribuir para o progresso da sua comunidade.Que tipo de jornal deve produzir? A que regras fundamentaisdevem obedecer a sua forma e sobretudo o seu conteúdo?

Depois de distinguir entre jornais de qualidade, dirigidos àsélites, e dedicados sobretudo à política nacional e internacio-nal, aos problemas técnicos culturais, financeiros e económico-sociais, e jornais populares ou de sensação, dirigidos ao grandepúblico, Pinto Balsemão define um jornal de meio termo, con-ciliando os aspectos positivos de um e outro tipo e, assim,

obter uma venda considerável e um prestígio sem máculas.. . . estabelecer um equilíbrio entre a leitura superficial dos ar-tigos sensacionais e a leitura profunda de artigos de opinião.. . . Para isso, emprega redactores e colaboradores qualifica-dos capazes de abordar, de um modo ao mesmo tempo levee sério, quer a informação política, económica, científica eartístico-literária, quer os temas que servem apenas paradistrair o público. O jornal de termo médio esforça-se porligar os dois extremos, informando e formando, ajudando edistraindo. p. 123

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O lançamento do Expresso em 6 de Janeiro de 1973 é um su-cesso. Segue um modelo anglo-saxónico, aposta num formatobroad-sheet, e, sem descurar temas que possam interessar aogrande público dos jornais populares, dá especial relevo à polí-tica e à opinião. Torna-se leitura obrigatória de todos os que emPortugal sentem o imperativo e a urgência da reforma política.Reconhecidamente, o Expresso desempenhou um papel funda-mental na consciencialização política da sociedade portuguesaem geral e, em particular, de alguns capitães da revolução deAbril de 1974.

Ironia do destino, ou talvez não, porque a independência dainformação é tão incómoda à direita como à esquerda de cariztotalitário, o Expresso que era um jornal tido como um jornalavançado e progressista antes da Revolução, e por isso criticadoe censurado, passa a ser visto e atacado como um jornal burguêse anti-revolucionário quando os sectores militares ligados aoPartido Comunista Português iniciam, sobretudo após o 28 deSetembro de 1974 e o 11 de Março de 1975, um processorevolucionário da sociedade portuguesa. O Verão quente de1975 é um período de tremenda luta política, de conspirações,de golpes e contra-golpes, reais e imaginados, de manifestaçõesa favor e contra. E se o poder não andava pela rua, andavapelos quartéis, com os reformadores à volta do Grupo dos Nove,e os revolucionários, apoiantes do Primeiro-Ministro VascoGonçalves, contando as espingardas. O Expresso torna-se umdos principais obstáculos à sovietização do país e, por isso

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mesmo, um alvo a abater. É directa e violentamente visadono famigerado discurso de Vasco Gonçalves em Almada, em18 de Agosto de1975, apelidado de “pasquim” e acusado delibertinagem informativa ao serviço das forças reaccionárias.

Se a loucura que percorreu Portugal durante o PREC nãoteve consequências ainda mais nefastas, isso também se deveem muito ao baluarte de independência informativa do Expresso.A independência e a coerência que manteve face aos totalita-rismos de direita e esquerda granjeou-lhe um estatuto único naimprensa portuguesa.

Os começos do Expresso foram caldeados na luta contraautoritarismos Dessa luta pela defesa da liberdade de informarpodemos retirar um corolário importante: a liberdade de ex-pressão e a liberdade de imprensa são a parte mais expostadas liberdades e direitos individuais e colectivos. Começa-sepor censurar e encerrar meios de comunicação e, de seguida,prendem-se as pessoas. A melhor garantia de direitos e liberda-des dos cidadãos são justamente as liberdades de expressão ede imprensa.

Nos anos de brasa de 1974 e 1975, Pinto Balsemão encarnoucomo ninguém a liberdade de expressão. Se Hegel tivesse vindocobrir a transição política de Portugal para o jornal de que foichefe de redacção, o Bamberger Zeitung , quem sabe se nãoteria reportado que vira em Portugal a liberdade de imprensaguiando um Porsche.

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3- A liberdade de imprensa tem como correlato necessário aaceitação do escrutínio, da crítica e da divergência por parte detodos os que assumem posições e cargos públicos. Sob pena dese tornar propaganda, a imprensa segue uma lógica diferenteda lógica da governação. Enquanto a governação ambiciona aunanimidade, no peito da imprensa bate sempre um coraçãode Cassandra, uma voz dissonante. A convivência, que não aconciliação, destas lógicas exige dos políticos poder de encaixeface à imprensa. Os políticos têm de conviver com notícias queeles próprios acham erradas ou distorcidas e com críticas queacham injustas. Mal vai a liberdade de imprensa quando ospolíticos são useiros e vezeiros em recorrer à via judicial para“meter a imprensa na ordem”.

Dito de uma forma mais crua. A liberdade de expressão ea liberdade de imprensa têm como pedra de toque o direito adizer mal. E é aqui que estão os espinhos e os ossos dessasliberdades, que em princípio todos aceitam, mas que na prática,tão difíceis se tornam na sua realização. É que, desde que sejapara apoiar e dizer bem, os regimes totalitários são paladinosdas mais amplas liberdades de informação.

Francisco Pinto Balsemão foi ministro e primeiro-ministroquando a Aliança Democrática esteve no poder e foi criticadono Expresso. É um dos episódios mais conhecidos da sua tra-jectória de político. Ele próprio se lhe referiu ainda este ano:

É sabido, também, que, quando fui Primeiro Ministro de Por-tugal, durante dois anos e meio . . . o Expresso me atacou.

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. . . Mas, para além de, nalguns casos, me sentir injustiçadoou mal tratado, e isso pouco interessa, o que me parece im-portante assinalar é que, não só nesses anos difíceis do inícioda década de 80, como antes e depois, procurei sempre sercoerente com um princípio que não basta proclamar, porqueé preciso praticá-lo no dia a dia: a defesa intransigente daliberdade de informação perante o poder político e o podereconómico, e outros tipos de poder. . .

Pinto Balsemão não confundiu planos, não demitiu o director,não fez do Expresso um porta voz dos seus Governos. Souberespeitar como político a autonomia editorial do jornal, de queera dono. Não conheço maior exemplo de fair play nas rela-ções entre poder político e imprensa, de absoluto respeito daautonomia editorial.

Não fazendo nunca carreira política, Pinto Balsemão temum dos percursos políticos mais marcantes da democracia por-tuguesa, sendo um dos seus founding fathers. Lutou pela de-mocracia quando não a havia, e, uma vez instalado o regimedemocrático, é um dos seus principais intervenientes: com SáCarneiro e Magalhães Mota fundou o PPD/PSD, um dos par-tidos políticos charneira na democracia portuguesa, integrou aAssembleia Constituinte de que foi Vice-Presidente, foi minis-tro e primeiro ministro, deputado várias vezes à Assembleia daRepública. No livro Estabilizar a Política para Criar a Con-fiança de 1985 presta contas sobre a sua governação. Foramtempos difíceis, externos e internos. Mas Pinto Balsemão soube

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concentrar-se no essencial: rever a Constituição da República.Foi tarefa ingente, mas indispensável para criar em Portugaluma democracia plena, abolindo o Conselho da Revolução esubmetendo as Forças Armadas ao poder político. A revisãoconstitucional foi um passo decisivo e necessário no processode adesão de Portugal à Comunidade Europeia.

Afastado hoje do combate político quotidiano, não deixade participar e intervir na vida política nacional, desde logocomo membro do Conselho de Estado e depois assumindo com“orgulho e empenho” o estatuto de militante no1 do Partido quefundou.

4- Por fim, é sabido que a principal actividade do Dr. PintoBalsemão é hoje a administração do Grupo Impresa, de que ésócio maioritário. Podemos perguntar: como é que a luta pelaliberdade de expressão se concretiza na gestão de uma em-presa cotada em bolsa, sujeita às exigências do mercado? Nãoconstitui porventura a valorização da empresa o seu principalobjectivo e, sendo assim, não serão quaisquer princípios, pormais nobres que sejam, sacrificados à racionalidade económica?Por um breve momento voltemos a Hegel para nos lembrarmosque a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa só nasua realização histórica e concreta encontram a sua verdade.A materialização desses princípios ocorre num determinadocontexto social, cultural e económico. Não é preciso ser mar-xista para reconhecer que a economia condiciona o agir humano

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em todas as suas vertentes. Não há liberdade de imprensa semjornais e televisões em que possa ser exercida. E os jornais eas televisões têm de ser economicamente viáveis, para seremeditorialmente independentes.

A liberdade de imprensa tem como primeira condição o rea-lismo económico. E isso é competência de um bom empresárioda comunicação. No livro de 1971, Informar ou Depender?,Pinto Balsemão é muito realista na formulação do problema:

O jornal – ou qualquer dos outros media – é, e tem de ser,para salvaguardar a sua autonomia, um empreendimento co-mercial e não uma instituição de caridade. . . . Eis a razãopela qual os dirigentes das empresas de Informação se vêemmuitas vezes na obrigação de resolver problemas delicados.Estes resumem-se à resposta a dar à pergunta seguinte: ga-nhar mais ou informar melhor? p. 159

E a questão não se restringe à opção entre artigos de sensa-ção e informação séria, ela abarca também os casos em queo aumento da qualidade jornalística não é acompanhado poruma“correlativa melhoria das receitas”. O realismo de PintoBalsemão vem ao de cima na equilíbrio salomónico com queresponde à questão:

Verificamos, em conclusão, que a luta árdua, por vezes de-sesperada, dos meios de Informação para manterem a suaindependência financeira pode levar à transigência peranteos gostos dos leitores, dos consumidores, não compatíveis

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com a independência da Informação no sentido em que atéaqui a temos defendido, ou seja: serem os media a influenciara massa, e não a massa a influenciar os media.

Pinto Balsemão escreveu estas palavras em 1971, dois anosantes de o Expresso vir a lume, e mais de vinte antes da primeiraemissão em 6 de Outubro de 1992 da Sociedade Independentede Comunicação, a SIC.

Na verdade, o dilema atrás enunciado agudiza-se sobrema-neira na Televisão, quando a lógica do entretenimento se tornauma ameaça à informação na forma de infotainment. As audên-cias são cruéis e mais cruel ainda é o share. Entre o que se dizque se gosta de ver e o que efectivamente se vê há um abismoem que soçobram os melhores projectos de programação. Essadicotomia entre o desejo e a acção é algo que nunca foi estranhoao cristianismo, pois que São Paulo escreve na Carta aos Ro-manos: "Não faço o bem que quero, mas o mal que não quero".Sabemos, todavia, que até a Igreja Católica em Portugal nãoteve em atenção este aviso quando lançou a TVI.

Pinto Balsemão foi criticado – e imagino que continue a sê-lo – por alguma da programação dos vários canais da SIC, e porconteúdos dos jornais e revistas que integram o Grupo Impresa.No entanto, sempre recusou, aberta e declaradamente, enquantoadministrador desses órgãos, o papel de padre, de educador oude professor. O facto de reconhecer realisticamente os gostosdas audiências não significa uma caução a esses gostos, mas anecessária aceitação da pluralidade e diversidade de consumos

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e preferências numa relação que é também comercial. Conheceressas preferências é crucial para sobreviver no mercado dacomunicação. E volto a citar do mesmo livro.

Se as funções da Imprensa são informar, orientar, interpre-tar e entreter, é justo que se procure conhecer os anseiosprofundos do público, as suas necessidades, os problemasprementes que a comunidade deseja ver tratados no seu jor-nal e no seu programa de Rádio ou de TV. É justo ainda quese averigúe o que mais entretém, o que mais atrai, o modomais persuasivo, mais directo, de interpretar e de orientar. Éjusto – por permitir à Informação um melhor cumprimentoda sua missão – e necessário, em virtude das dificuldadeseconómicas das empresas de Informação, sombra principalque ameaça a respectiva independência. p. 158

Lembro que são palavras de há quase 40 anos e que mantêmhoje a mesma pertinência. Mas o mais importante todavia é quemesmo assim, mesmo reconhecendo a legitimidade de conheceras preferências dos públicos e de, em princípio as satisfazer, háum limite, sendo este o interesse da própria comunidade:

Mas afigura-se que há que parar nesse momento: há quenão submeter a orientação do jornal à vontade dos leito-res. . . . Impõe-se que fundadores-proprientários-orientadores,não vendam qualquer informação, mas a que mais interessaà comunidade. p. 159

A informação, sendo, além de um serviço, um negócio, nãoé um negócio qualquer. A distinção clássica da retórica grega

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entre ethos e pathos, sendo o ethos, a autoridade e a credibili-dade de quem informa e o pathos a inclinação ou preferência dequem escuta, ilustra as forças distintas que interagem no actoinformativo e que devem ser tidas em máxima conta numa em-presa de comunicação. Na informação não se valoriza apenas asatisfação das preferências (o saciar da curiosidade), valoriza-sesobretudo a credibilidade da fonte da informação. Um jornal ouqualquer órgão de informação que tivesse como critério único asatisfação do pathos das suas audiências, agiria como um dema-gogo, indo e vindo de cá para lá, arrastado pela volubilidade deinteresses momentâneos. Ao invés, a informação séria, credível,tem um rumo próprio, independente dos gostos das audiências.Mas a credibilidade é um capital, algo que se vai juntando, ame-alhando com o tempo. Decorre do respeito pelos princípios quevalem nos bons e maus momentos, nomeadamente de isenção,objectividade e apuramento das notícias.

Podemos então dizer que a luta que hoje o Dr. Pinto Bal-semão trava pela liberdade de informar e ser informado passapelo realismo económico e credibilidade informativa do GrupoImpresa. É um tipo de luta menos visível que a de jornalista,chefe de redacção ou director de informação, mas, decerto, nãomenos importante e exigente e de muito maior responsabili-dade. No contexto de grande turbulência económico-financeira,iniciado há uma década com o rebentamento da bolha bolsistadot-com e reavivado com o crash do sub-prime em 2008 e acrise do endividamento das economias periféricas da União Eu-

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ropeia já este ano, é necessário muita cabeça fria e nervos de açopara enfrentar os problemas e os desafios postos às empresasde comunicação. A descida brutal das receitas de publicidadee a quebra de vendas obrigaram ou ao fecho de jornais ou aprofundas e vezes dolorosas re-estruturações de redacções. Nãoobstante isso, o Grupo Impresa cresceu e fortaleceu-se nestesúltimos dez anos. Adquiriu primeiro a maioria do capital da SICe depois, em 2005, a totalidade. Lançou os canais temáticos porcabo onde se destaca a SIC Notícias, comprou em 2003 os 50%da Edimpresa detidos pelos suiços Edipress, fundiu o sector dasrevistas com o dos jornais, e hoje a Impresa Publishing detém32 títulos de imprensa, onde se destacam o Expresso, a Visão, oJornal de Letras, a Exame, entre outros. Confirmando de algummodo a imagem de poupado do principal accionista, a Impresanunca distribuiu dividendos, usando os lucros para crescer e sefortalecer.

Por outro lado, é sabido como as TIC, em particular a In-ternet, vieram revolucionar e colocar desafios à comunicaçãosocial. A imprensa, em particular, vive com uma morte anunci-ada, seja pelas versões online, muitas delas gratuitas, seja pelasversões para dispositivos portáteis, como e-readers e telemóveis.Os canais generalistas de televisão vão perdendo paulatina-mente audiências para os canais temáticos, para a Internet epara os video-jogos. As angústias de um administrador no sec-tor serão do tamanho das incertezas. Que fazer? Investir nasnovas tecnologias que é o futuro, mas de onde não vêm receitas,

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ou continuar a investir nos sectores tradicionais, os de morteanunciada, mas que são ainda os que vão pagando as contas,nomeadamente os salários dos jornalistas? É verdade que aeuforia e o colapso das dot-com no último lustro do século pas-sado mostraram que quem vai depressa demais queima-se, mas,por outro lado, encontramo-nos numa era em que o primeirofica com tudo –the winner takes it all–, como o mostra bemo domínio da Amazon no comércio online de livros. Assim,de um administrador requer-se ao mesmo tempo, e quase queparadoxalmente, prudência e audácia. Acredito que aos 73 anosde idade o Dr. Pinto Balsemão atingiu o equilíbrio perfeito entreessas duas qualidades.

Por fim, a luta pela liberdade de informar e ser informadocontinua a ser uma luta pela independência face ao poder polí-tico e aos muitos outros poderes, económicos, sociais e culturais,alguns de cariz oculto. A credibilidade de um grupo prestigiadode comunicação é um capital precioso, muitíssimo valioso, e,portanto, algo extremamente cobiçado por quem pretende influ-enciar de uma ou outra forma a opinião pública. Saber que omaior grupo de comunicação em Portugal tem como accionistamaioritário e como administrador um jornalista de provas dadas,um democrata de longa data, um cidadão que tem servido o paíse o Estado ao longo de décadas, constitui um enorme factor deconfiança na informação que nos é dada.

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Laudatio do Dr. Francisco Pinto Balsemão 21

5- Caro Dr. Pinto Balsemão.O percurso que trilhou, e continua a trilhar, como jornalista,

empresário da comunicação e como político honra-o. Hoje vi-vemos num país de expressão livre e num país muito melhordo que aquele de 1969 quando se candidatou pelo círculo daGuarda à Assembleia Nacional. Há quem se esqueça, ou quemnão saiba, que na década de sessenta se vivia aqui no Portu-gal profundo como na Idade Média, com muitas das aldeiassem electricidade e água canalizada, com concelhos sem ensinomédio, com horários de trabalho no campo de sol a sol, semsegurança social mínima e sem cuidados de saúde. As dificul-dades económico-financeiras que presentemente atravessamosnão se comparam àqueles anos de anquilosamento político esufoco social, à indigência cultural, ao desespero de uma guerracolonial sem saída, à miséria que levou a que centenas de milha-res de homens saíssem das suas aldeias pela calada da noite paradarem o salto para a França e aí encontrarem o trabalho comque pudessem alimentar as mulheres e os filhos que deixavampara trás. É nosso timbre queixarmo-nos, mas a verdade é quePortugal foi dos países do mundo que nos últimos 40 anos maisse desenvolveram e é hoje um país livre e muito mais justo.Muito obrigado por essa luta pelas liberdades e pelo bem estarsocial e económico que elas nos proporcionaram.

O momento que vivemos aqui e agora, aqui neste anfiteatroem 11 de Outubro de 2010, na cidade da Covilhã, na Universi-dade da Beira Interior, celebrando a abertura solene das aulas,

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de cursos universitários que vão da Psicologia à EngenhariaAeronáutica, do Cinema à Medicina, e a própria cerimónia daoutorga deste doutoramento honoris causa, é prova provada deque muito mudou, e de que valeu a pena esse percurso de lutapelas liberdades de expressão e de informação.

Magnífico Reitor, em nome da Faculdade de Artes e Letras,peço as insígnias de Doutor Honoris Causa para o Dr. FranciscoPinto Balsemão.