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^ * P fef ^ 3? PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SAO PATTT.n TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO ACÓRDÃO/DECISÃO MONOCRATICA REGISTRADO(A) SOB N° ACÓRDÃO i iiiiii um IIIII uni um mil mil lllll llll III' Vistos, relatados e discutidos estes autos de Mandado de Segurança n° 990.09.100287-9, da Comarca de Santos, em que são impetrantes FÁBIO DA SILVA RODRIGUES e BEATRIZ DA MOTA SIMÕES sendo impetrado MM. JUIZ(A) DE DIREITO DA VARA DO JÚRI DA COMARCA DE SANTOS. ACORDAM, em 6 a Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: "CONCEDERAM A SEGURANÇA, NOS TEMOS DO V. ACÓRDÃO, DETERMINANDO-SE A IMEDIATA EXPEDIÇÃO DO ALVARÁ E DEMAIS OFÍCIOS QUE SE FIGUREM NECESSÁRIOS. V.U.", de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão. O julgamento teve a participação dos Desembargadores MARCO ANTÔNIO (Presidente), RUY ALBERTO LEME CAVALHEIRO E RICARDO TUCUNDUVA. aulo, 21 de maio MARCO ANTONI PRESIDENTE E RE

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PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SAO PATTT.n

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO ACÓRDÃO/DECISÃO MONOCRATICA

REGISTRADO(A) SOB N°

A C Ó R D Ã O i iiiiii um IIIII uni um mil mil lllll llll III'

Vistos, relatados e discutidos estes autos de

Mandado de Segurança n° 990.09.100287-9, da Comarca de

Santos, em que são impetrantes FÁBIO DA SILVA RODRIGUES e

BEATRIZ DA MOTA SIMÕES sendo impetrado MM. JUIZ(A) DE

DIREITO DA VARA DO JÚRI DA COMARCA DE SANTOS.

ACORDAM, em 6a Câmara de Direito Criminal do

Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte

decisão: "CONCEDERAM A SEGURANÇA, NOS TEMOS DO V. ACÓRDÃO,

DETERMINANDO-SE A IMEDIATA EXPEDIÇÃO DO ALVARÁ E DEMAIS

OFÍCIOS QUE SE FIGUREM NECESSÁRIOS. V.U.", de conformidade

com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos

Desembargadores MARCO ANTÔNIO (Presidente), RUY ALBERTO

LEME CAVALHEIRO E RICARDO TUCUNDUVA.

aulo, 21 de maio

MARCO ANTONI PRESIDENTE E RE

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MANDADO DE SEGURANÇA n° 990.09.100287-9

6 a Câmara Criminal

Imptes: FÁBIO DA SILVA RODRIGUES e BEATRIZ DA MOTA

SIMÕES

Autoridade Coatora: JUIZ DE DIREITO DA VARA DO JÚRI DA

COMARCA DE SANTOS - SP

Voto n° 8693

FÁBIO DA SILVA RODRIGUES e

BEATRIZ DA MOTA SIMÕES, por sua advogada Rosy

Natario Neves, impetram Mandado de Segurança com

pedido liminar, contra ato do MM. Juiz de Direito da

Vara do Júri da Comarca de Santos - SP, que indeferiu

pedido de interrupção da gestação.

Argumentam os impetrantes, em

síntese, que em se tratando de gestação de gêmeos

xifópagos e comprovada a inviabilidade de vida

extrauterina dos fetos ligados pelo abdômen, o

prosseguimento da gestação pode colocar em risco a

vida da gestante, além do grave abalo emocional e

psíquico a que estão sujeitos.

= Mandado de Segurança n° 990.09.100287-9 - Santos /

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A liminar foi indeferida (fls.

106/107) e a autoridade apontada como coatora

prestou as informações (fls. 109/110), juntando cópia

dos documentos pertinentes (fls. 121/160).

A Procuradoria Geral de Justiça

opinou pela concessão do mandamus (fls. 113/119).

É o relatório.

A segurança deve ser concedida.

Trata-se de gestação de gêmeos

xifópagos, ligados pelo abdômen, compartilhando

mesmo coração e fígado, cordão umbilical único, sem

possibilidade de futura correção cirúrgica e

comprovada a inviabilidade de vida extrauterina dos

fetos.

Os impetrantes Fábio da Silva

Rodrigues e Beatriz da Mota Simões, ao que consta dos

autos, são casados há aproximadamente nove anos (fls.

29) e têm uma filha, Sarah, que conta com quatro anos

de idade (fls. 30).

= Mandado de Segurança n° 990.09.100287-9 - Santos

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Beatriz, em dezembro de 2008,

descobriu que estava grávida e, através de exame de

ultrassom, realizado em janeiro do corrente, constatou-

se a gestação de gêmeos ligados pelo abdômen (fls.

31/37). No mês seguinte, fevereiro de 2009, por exame

de ultrassom morfológico gemelar com

dopplerfluxometria, apurou-se a gemelaridade

imperfeita, estando os fetos unidos pelo tórax e

abdômen, compartilhando a área cardíaca e do fígado,

tendo cordão umbilical único (fls. 39/50). Resultado

confirmado por novo exame feito em março deste ano

(fls. 51/61).

Na seqüência, a impetrante

submeteu-se a uma ressonância magnética fetal onde,

apontando a existência de único coração, consignou-se

que a possibilidade de separação dependia de avaliação

cardíaca (fls. 63/65), o que foi feito, através de

ecocardiografia fetal. Nesse novo exame, apontando

malformação complexa, concluiu-se pela

impossibilidade de correção cirúrgica para separação

das massas cardíacas (fls. 66).

= Mandado de Segurança n° 990.09.100287-9 - Santos

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Buscando confirmar o diagnóstico,

submeteram os exames à análise de equipe médica,

composta por três médicos do Hospital das Clínicas da

Faculdade de Medicina da USP, que confirmaram a

impossibilidade de separação dos gêmeos, bem como

que as diversas anomalias presentes eram

incompatíveis com a vida extrauterína. Informaram,

ainda, que todos os dados da literatura médica,

apontam para a morte dos recém-nascidos após o

parto. Consignaram que Beatriz encontrava-se

extremamente angustiada face a essa situação sem

solução (fls. 67).

Por fim, no mês de abril de 2009, o

Médico Chefe do Serviço de Patologia Clínica do

Hospital Beneficência Portuguesa de Santos e Membro

da Comissão de Ética Médica desse hospital, atestou

que as malformações diagnosticadas não permitiam

tratamento intra ou extrauterino, sendo incompatíveis

com a vida pós-parto. Registrou que as alterações

fetais, anatômicas, fisiológicas e funcionais se

traduziam em gestação de alto risco. Além disso, que a

evolução do quadro representava grave risco à saúde

= Mandado de Segurança n° 990.09.100287-9 - Santos

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física e mental da gestante, indicando a interrupção da

gestação como peremptória e urgente (fls. 72).

Por solicitação do representante do

Ministério Público, todos os exames realizados foram

submetidos aos peritos do IML, concluindo os experts

que o quadro de anomalia dos fetos não possibilitaria a

vida de um só deles, quanto mais de dois. Observaram

que, independentemente do período da resolução da

gestação, o resultado morte para eles já é definido.

Anotaram, ainda, que a retirada dos fetos antes do

termo final da gravidez implicaria menor risco à

gestante, que estará menos debilitada, no todo de seu

organismo (fls. 92/96).

O aborto tem como foco questões

jurídicas, éticas, morais, religiosas, com repercussão

na sociedade e no seu sistema de valores.

Ao Direito cumpre o papel de gerir

todos os acontecimentos que se refletem na vida do

homem, para manutenção de seu equilíbrio.

= Mandado de Segurança n° 990.09.100287-9 - Santos

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Para Jean Jacques Rosseau1,

todo homem nasce livre e muda essa condição,

transferindo a totalidade de seus direitos naturais ao

Estado, com a finalidade de desenvolvê-los,

transformá-los em direitos civis, garanti-los e protegê-

los pelas leis, de acordo com os pactos sociais que

aderiram.

Por outro lado, cabe ao Juiz, no

desempenho de seu mister, a conformação do Direito à

realidade humana, constantemente modificada pelo

avanço social, o que faz emergir novas necessidades,

novos embates.

José Renato Nalini2, acerca da

função do julgador frente aos problemas e evolução da

sociedade e da cidadania, assim ponderou:

"De acordo com essa premissa,

temos que a Junção do julgador é compatibilizar os

direitos e princípios consolidados com as novas

perspectivas que se apresentam à realidade humana,

Rosseau, Jean Jacques O Contrato Social São Paulo Cultnx, 1999, pág 21. " Nalini, José Renato, A Humanidade do Juiz, ín Temas Atuais de Direito , São Paulo: LTR, 1998, p 279.

= Mandado de Segurança n° 990 09.100287-9 - Santos

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visando à preservação e o respeito da vida e da

dignidade.

O ser humano chamado a julgar

não é diferente dos demais. Apenas assina sob seus

julgamentos, o que não ocorre com a totalidade do

gênero. Todas as pessoas estão continuamente a

proferir julgamentos. Escolhendo entre o certo e o errado,

definindo o que é bom e o que é mau, dizendo o que é

feio e o que é bonito."

E prossegue:

"Numa sociedade que convive com

extremos paradoxos, mas que tem a pretensão de

construir uma sociedade fraterna, pluralista e sem

preconceitos, o Juiz não tem o direito a permanecer

isolado. Em cidadania não há neutralidade. E quem não

estiver construindo essa sociedade nova, está

preservando a sociedade velha e iníqua. Em termos de

reforma da sociedade, quem não é parte da solução é

parte do problema.3"

1 Nalini, José Renato. A Humanidade do Juiz, ín Temas Atuais de Direito , São Paulo LTR, 1998,p 279

= Mandado de Segurança n° 990 09.100287-9 - Santos

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Mário Guimarães ponderava que

a função do julgador é tão antiga quanto à própria vida

em sociedade, haja vista os inevitáveis conflitos de

interesses que surgem quando se convive, seja no

restrito âmbito familiar, seja na coletividade. De início,

a função de apaziguar as desavenças e resolver as

contendas era cometida ao Rei, que concentrava todos

os poderes. Entretanto, com o aumento do número de

súditos e, consequentemente, quantidade maior de

demandas, o governante se viu obrigado a nomear

preposto para desempenhar esse papel em seu nome -

o juiz:

"Quando se torna a grei mais

numerosa, crescem e se complicam as relações

humanas. O rei, absorvido por outras atividades, não

terá tempo de prover todos os dissídios de seu povo,

cometendo tais funções a um preposto, o juiz. Este, mero

auxiliar do monarca, em cujo nome e por delegação se

distribui a justiça. Nas mais antigas civilizações, seja no

Egito, na Assíria, na Pérsia, na índia, seja mesmo em

Jerusalém afigura do juiz, distribuía a justiça, muita vez

= Mandado de Segurança n° 990.09 100287-9 - Santos

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orientada por um juízo divino e isonômico.4"

Por sua vez, Rogério Lauria

Tucci5 anota que a jurisdição é a função estatal

inerente ao poder-dever de realização da justiça,

mediante atividade substitutiva de agentes do poder

judiciário - juizes e tribunais - concretizada na

aplicação do direito objetivo a uma relação jurídica,

com a respectiva declaração, e o conseqüente

reconhecimento, satisfação ou assecuração do direito

subjetivo material de um dos titulares das situações

(ativa e passiva) que a compõem.

Mauro Capelletti6, da mesma

forma, aponta o crescimento extraordinário do Poder

Judiciário como uma das características da sociedade

moderna. Esse fenômeno é paralelo a outro

crescimento, pelo qual o primeiro foi em muitos modos

estimulado ou verdadeiramente causado: o crescimento

- em dimensões sem precedentes - dos "poderes

políticos" no moderno estado "social" ou promocional,

4 Guimarães, Mário O Juiz e a Função Junsdicional Rio de Janeiro Forense, Ia Ed , 1958, pag 19 5 Tucci, Rogério Launa Teoria do Dueilo Processual Penal São Paulo Revista dos Tribunais, 2002, p. 21. 6 Capelletti, Mauro. Juizes irresponsáveis? Porto Alegre Sérgio Antônio Fabris Editor, 1989, pág 19/21.

= Mandado de Segurança n° 990 09 100287-9 - Santos

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tanto nas suas formas mais modernas ocidentais,

quanto, obviamente, nas versões prevalentes na família

jurídica socialista.

Feitas as considerações que se

faziam necessárias, retomamos o objeto do

mandamus.

A criminalização de práticas

abortivas tem por escopo proteger a vida desde a

concepção.

Em nosso ordenamento jurídico, a

interrupção da gravidez (aborto) é admitida como

medida de exceção, nos termos do artigo 128, do

Código Penal, se não houver outro meio de salvar a

vida da gestante ou se a gravidez resulta de estupro,

dependendo, neste caso, de consentimento da gestante

ou, quando incapaz, de seu representante legal.

O chamado aborto humanitário ou

sentimental, resultante de estupro, fundamenta-se na

preservação dos sentimentos da gestante que, além da

agressão sofrida, teria que suportar a gravidez, com

= Mandado de Segurança n° 990 09.100287-9 - Santos

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todas suas conseqüências morais, familiares e sociais.

O aborto necessário ou

terapêutico, admitido quando não há outra forma de

salvar a vida da mãe, encontra justificativa na solução

dada ao eventual conflito entre direitos fundamentais -

direito à vida do nascituro e da gestante -,

prevalecendo o desta, como mais viável, inclusive

socialmente.

Na presente hipótese, a despeito

da gestante, em tese, não correr risco maior do que

outra mulher com gravidez múltipla, devemos

considerar a peculiaridade do caso e as conseqüências

que o prosseguimento dessa gestação, levada a termo

por parto, pode causar.

Os impetrantes, antes de chegar a

esta via, submeteram o caso a análise de vários

médicos, buscando, certamente, solução diversa, que

pudesse afastar o prognóstico.

Todavia, inexiste probabilidade de

sobrevida aos fetos, o que foi unanimemente apontado

= Mandado de Segurança n° 990.09.100287-9 - Santos /

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pelos médicos consultados, como também pela

doutrina médica, em estudos de casos semelhantes.

Dessa forma, a princípio, não

haveria que se falar em sacrifício da vida dos gêmeos,

que só se mantêm vivos por conta do organismo

materno que os sustentam. Além disso, considerando a

sobrevivência ao parto, não ficariam vivos mais do que

poucos instantes, afastando a incidência da norma

penal, que busca proteger da vida humana e não sua

falsa existência7.

Nesse sentido se manifestou o

Ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal

Federal, decidindo, em Io de julho de 2004, Medida

Cautelar na Ação de Descumprimento de Preceito

Fundamental n° 54, arguida pela Confederação

Nacional dos Trabalhadores da Saúde - CNTS:

"a gestante convive diuturnamente com

a triste realidade e a lembrança

ininterrupta do feto, dentro de si, que

nunca poderá se tornar um ser vivo. Se

7 Posição idêntica- Mandado de Segurança n° 418.592-3/4 - 5a Câmara Criminal - TJ/SP - Rei Barbosa Pereira, 12/03/2003 - V I I

= Mandado de Segurança n° 990.09.100287-9 - Santos

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PODER JUDICIÁRIO 3

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assim é - e ninguém ousa contestar -,

trata-se de situação concreta que foge à

glosa própria ao aborto - que conflita

com a dignidade humana, a legalidade,

a liberdade e a autonomia da vontade.^

Por outro lado, se o aborto

humanitário tem como fundamento a preocupação com

os sentimentos da mãe, porque não admitir esse

cuidado no caso de feto com anomalia sem

possibilidade de vida extrauterina, mantendo a

gestante subjugada a tamanho dissabor?

A resposta não é fácil. A questão

envolve o aparente confronto de vários direitos

fundamentais, como à saúde, à liberdade em seu

sentido maior, à autonomia da vontade, à legalidade,

mas, acima de tudo, à dignidade humana.

Como solução, devemos buscar o

equilíbrio entre o direito e a realidade, de forma que

não se absolutize um e aniquile outro.

Como aponta Andreia Sofia

= Mandado de Segurança n° 990.09 100287-9 - Santos

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Esteves Gomes8: "Enquanto e onde não existe direito

constituído, o princípio da dignidade da pessoa humana

pode ser mobilizado para resolver os problemas, de

forma autônoma; estará, depois, necessariamente, na

base da constituição do direito e, assim, passará a

resolver os problemas indirectamente ou por seu

intermédio."

O direito à vida, consagrado pela

Constituição Federal Brasileira é muito mais amplo do

que assegurar apenas "o estar vivo"; compreende o

direito à "vida digna".

A dignidade da pessoa humana,

por sua vez, erigida a fundamento de nossa República9,

está diretamente ligada ao sistema de direitos

fundamentais, na medida em que não é possível

conceber dignidade sem o mínimo imprescindível ao

pleno desenvolvimento da personalidade humana1 0 .

8 Gomes, Andreia Sofia Esteves. A Dignidade da Pessoa Humana e o seu valor jurídico partido da experiência constitucional portuguesa. ín Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana, Ia Ed São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 35. 0 Constituição Federal de 1988, Artigo 1°. inciso III 10 Silva, Marco Antônio Marques, Cidadania e Democracia Instrumentos paia a efetivação da Dignidade Humana, ín Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana. Ia Ed São Paulo Quartier Latin, 2008, p. 224

= Mandado de Segurança n° 990.09 100287-9 - Santos / /

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Antônio Luis Chaves Camargo

afirmava que "inexiste uma específica definição para a

dignidade humana, porém, ela se manifesta em todas as

pessoas, já que cada um, ao respeitar o outro, tem a

visão do outro. A dignidade humana existe em todos os

indivíduos e impõe o respeito mútuo entre as pessoas,

no ato da comunicação, e que se opõe a uma

interferência indevida na vida privada pelo Estado. Tais

direitos são inerentes, porque conhecidos pelas pessoas,

não podendo, portanto, o Estado desconhecê-los. A este

cabe, ainda, criar condições favoráveis para uma

integral realização dos mesmos".

Assim, para a efetivação desse

ideal constitucional, se faz necessário garantir, entre

outros, o respeito às convicções, à igualdade, à

liberdade e à saúde de cada indivíduo.

Obrigar a mãe carregar em seu

ventre, pelo longo período da gestação, os filhos que

não irá ter, imaginando, a cada instante, que nascerão

mal formados e morrerão logo em seguida, é

constrangê-la a sofrimento inútil, cruel, incompatível

'' Camargo, Antônio Luís Chaves. Culpabilidade e reprovação penal. São Paulo Sugestões Literárias, 1994, p. 12 e 31

= Mandado de Segurança n° 990 09 100287-9 - Santos

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ao conceito de vida digna.

Ademais, a circunstância

angustiante que passa não só a gestante, mas seu

marido e toda a família, sabedores de que os fetos

apresentam formação imperfeita e que, não se podendo

afastar a anomalia, não haverá sobrevida ao parto,

inflige-lhes grande pesar, que pode trazer reflexos

sérios, quiçá irreparáveis, à saúde psíquico-emocional

de todos os envolvidos.

Maria Helena Pereira Franco

Bromberg12 observa que para os pais de crianças com

doenças fatais, o processo de luto começa no momento

em que lhes é comunicado o diagnóstico.

Entendemos, pois, que o direito às

vidas dos fetos, exíguas e inviáveis, não podem se opor

ou prevalecer sobre a saúde psíquica da gestante e de

seus familiares.

J á tivemos a oportunidade de

'" Bromberg, Mana Helena Pereira Franco. Luto A Morte do Ouro em Si, ín Vida e Morte: Laços da Existência São Paulo Casa do Psicólogo, 1996.

= Mandado de Segurança n° 990.09.100287-9 - Santos

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escrever13 que "a dignidade decorre da própria natureza

humana, o ser humano deve ser sempre tratado de

modo diferenciado em face da sua natureza racional. É

no relacionamento entre as pessoas e o mundo exterior e

entre o Estado e a pessoa que se exterioriza os limites

da interferência no âmbito desta dignidade. O seu

respeito, é importante que se ressalte, não é uma

concessão do Estado, mas nasce da própria soberania

popular, ligando-se à própria noção de Estado

Democrático de Direito."

Não se trata de valorar de maneira

diferente o mesmo bem jurídico tutelado - vida da mãe,

vida dos fetos. Analisa-se o alcance social de cada uma

delas e, considerando que os gêmeos não sobreviverão

ao parto ou logo após ele, prevalente deve ser a vida da

mãe, sua dignidade.

Na manifestação de Jorge

Miranda14: "Cada pessoa tem de ser compreendida em

relação com as demais. Por isso, a Constituição

n Silva, Marco Antônio Marques, Acesso à Justiça Penal e Estado Demouático de Direito São Paulo. Juarez de Oliveira, 2001, p 01 14 Miranda, Jorge. A Dignidade da pessoa humana e a unidade valorativa do sistema de Direitos Fundamentais, ín Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana, Ia Ed São Paulo Quartier Latin, 2008, p 173.

= Mandado de Segurança n° 990.09.100287-9 - Santos

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(Portuguesa) completa a referência à dignidade da

pessoa humana com a referência à "mesma dignidade

social" que possuem todos os cidadãos e todos os

trabalhadores (arts. 13°, n° 1, e 59°, n° 1, alínea h),

decorrente da inserção numa comunidade determinada,

fora da qual, como diz o art. 29°, n° 1, da Declaração

Universal, "Não é possível o livre e pleno

desenvolvimetno da sua personalidade."

Oportuno citar mais um trecho

das considerações do Ministro Marco Aurélio Mello,

naADPFn 0 5415:

"Quando se chega ao final da gestação,

a sobrevida é diminuta, não

ultrapassando período que possa ser

tido como razoável, sendo nenhuma a

chance de afastar-se, na sobrevida, os

efeitos da deficiência. Então, manter-se

a gestação resulta em impor à mulher,

à respectiva família, danos à

integridade moral e psicológica, além

15 Medida Cautelar na Ação de Descumpnmento de Preceito Fundamental n° 54, julgada em Io

de julho de 2004, Supremo Tribunal Federal

= Mandado de Segurança n° 990.09.100287-9 - Santos

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dos riscos físicos reconhecidos no

âmbito da medicina. Como registrado

na inicial, a saúde, no sentido admitido

pela Organização Mundial da Saúde,

fica solapada, envolvidos os aspectos

físicos, mental e sociahn

Decidindo acerca da mesma

matéria, o Desembargador Sebastião Carlos Garcia,

deste Egrégio Tribunal de Justiça, assim se

manifestou:

eiConsigne-se, a propósito, o evidente

confronto entre dois direitos

fundamentais - direito à vida do

nascituro e direito à dignidade pessoal

e à saúde psíquica-emocional e eugênica

da parturiente. Situada nesse ponto a

questão süb judice, não haveria como

deixar de garantir primazia à vida,

como direito inalienável da pessoa

humana, estendida ao nascituro. Essa

equação, não obstante, cede e inverte-se

ao se defrontar com a certeza - certeza

= Mandado de Segurança n° 990 09 100287-9 - Santos

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científica , aliás - da inviabilidade da

vida do feto pós-parto." (Apelação Cível

com Revisão n° 516 .299-4 /5 - 6a Câmara

de Direito Privado - 13.09.2007 - M.V.).

Diante dessa situação, deve-se

abreviar-lhes o sofrimento; afastar-lhes do forte abalo

psicológico pelo qual estão passando e o pesaroso

sentir; assegurar-lhes a saúde16, e a dignidade.

Nesse sentido:

"Entendemos que estas vivências

diferentes e, ao mesmo tempo tão semelhantes, trazem

como maior entrave para sua adequada elaboração a

ausência do necessário suporte social. Isto nos remete à

necessidade de mudança dos paradigmas e sobretudo

de mentalidade em relação à experiências humanas de

tamanho impacto pessoal e social17."

A justiça entra aqui. Auxilia na

diminuição e elaboração de um luto que de certo modo

16 A Organização Mundial de Saúde define saúde como "um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença " http.//www.opas org br/ 14 Casellato, Gabnela. Morta, Mana Antometa P. Lutos Matemos - Um Estudo Comparativo. ín Estudos Avançados sobre o Luto Campinas: Livro Pleno, 2002, pág 121 e 127

= Mandado de Segurança n° 990 09 100287-9 - Santos

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não é franqueado pela sociedade.

Convivemos com o "mito do amor

materno" e rechaçar um filho, ainda que sabidamente

natimorto, é algo criticado pela sociedade. É como se

sua dor não pudesse ser reconhecida e autorizada.

É o caso!

Assim: "O luto experimentado por

essa mãe não é franqueado, não é autorizado

socialmente, a perda não pode ser abertamente

reconhecida, socialmente validada ou publicamente

lamentada. A sociedade revela que não só não

reconhece a necessidade de enlutar-se como também

não reconhece que tenha havido qualquer

relacionamento significativo anterior à perda.18"

Esta Corte de Justiça tem se

posicionado no sentido de, na impossibilidade de

sobrevida do feto, permitir o aborto, com o propósito de

abreviar o sofrimento materno, em respeito ao seu luto,

sua saúde e dignidade:

IS Casellato, Gabnela Motta, Mana Antonieta P Luíos Maternos - Um Estudo Competi ativo. ín Estudos Avançados sobre o Luto. Campinas Livro Pleno, 2002. pág 122/123.

= Mandado de Segurança n° 990.09 100287-9 - Santos

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PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

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Aborto - Eugênico - Feto com má

formação congênita - Impossibilidade de

vida extrauterina comprovada - Medida

destinada a evitar sofrimento físico e

psicológico à mãe e familiares

Expedição de autorização e eventuais

ofícios determinada - Segurança

concedida (Mandado de Segurança n°

309.340-3 - Cotia - Ia Câmara Criminal -

Rei. David Haddad - 22.05.00 - V.U.).

Aborto - Eugênico - Autorização -

Admissibilidade - Impossibilidade de

vida extrauterina - Detecção de

cardiopatia grave e má formação de

diversos órgãos - Deformidade absoluta e

irreversível - interrupção da gravidez

que vem a evitar tanto o risco de vida da

mãe tanto o seu sofrimento em saber

que daria à luz a um natimorto -

Segurança concedida (Mandado de

Segurança n° 418 .592-3 /4 - São Paulo -

5a Câmara Criminal - Rei. Barbosa

Pereira - 12.06.2003 - V.U.).

Mandado de Segurança n° 990.09 100287-9 - Santos

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PODER JUDICIÁRIO 23

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Mandado de Segurança - Indeferimento

de medida cautelar - Concessão de

autorização para que a impetrante

realize aborto - Feto com má formação

congênita, portador da chamada acrania

- Anomalia incompatível com a vida para

o feto - Recomendação medida pela

interrupção da gestação - Preservar o

bem estar psicológico e clínico da

gestação - Segurança concedida. Em se

tratando de solicitação de aborto

eugênico ou necessário, em decorrência

de má formação congênita do feto

comprovada cabalmente por laudos

médicos, admite-se a autorização

judicial para a interrupção da gravidez,

como forma de se evitar a amargura e o

sofrimento psicológico da mãe, que, de

antemão, sabe que o filho não terá

qualquer possibilidade de sobrevida

(Mandado de Segurança n° 375.201-3 -

São Vicente - 3 a Câmara Criminal - Rei.

Tristão Ribeiro - 21.03.2002 - M.V.).

= Mandado de Segurança n° 990.09.100287-9 - Santos

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PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

24 ^

Mandado de Segurança n° 884.716-3/6 -

São Paulo - 5a Câmara Criminal - Rei.

Marcus Zanuzzi - 15.12.2005 - V.U.;

Mandado de Segurança n° 886 .650-3/9 -

São Paulo - 12a Câmara Criminal - Rei.

João Morenghi - 02.08.2006 - V.U.

Em conclusão, não havendo a

possibilidade de vida extrauterina dos fetos, para evitar

maiores danos e em respeito à dignidade humana, o

reclamo apresentado é legítimo, autorizando-se a

intervenção cirúrgica para a interrupção da gravidez.

Pelo exposto, CONCEDE-SE a

segurança nos termos declarados, determinando-se a

imediata expedição do alvará e demais ofícios que

fizerem necessários.

MARCO ANTÔNIO

Relator

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= Mandado de Segurança n° 990.09.100287-9 - Santos