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A CULTURA NA MODERNIDADE TARDIA: UMA APROXIMAÇÃO FRONTEIRIÇA1
Antônia Sabrina Bezerra2
José Evaristo de Oliveira Filho3
RESUMO: Este artigo tem por objetivo propor uma reflexão sobre o conceito de cultura na modernidade tardia. A premissa básica deste trabalho é que a cultura deve ser pensada além dos limites impostos por uma visão disciplinar e, assim como as noções inter-relacionadas de identidade e diferença, que suas definições estejam embebidas de mobilidade intersticial e fronteiriça.
PALAVRAS-CHAVE: Cultura. Identidade. Diferença. Modernidade tardia. Fronteiriça.
INTRODUÇÃO
Um dos livros mais conhecidos e utilizados nos cursos de Ciências Sociais nas
Universidades brasileiras é o clássico Cultura: Um Conceito Antropológico (Jorge Zahar Ed.)
de Roque de Barros Laraia, cuja primeira edição data de 1986. Há mais de 20 anos este livro
tem sido uma referência fundamental e introdutória aos estudos Antropológicos, mas apesar
da grande contribuição dessa obra, principalmente pela solidez de seu conteúdo, linguagem
clara e exemplos precisos, ela apresenta um pequeno – mas importante – fragmento de uma
posição epistemológico-teórica que não pode mais ser defendida consistentemente. Trata-se
da apropriação do conceito de cultura com uma exclusividade que não cabe mais na
1 Artigo produzido para fins de avaliação da disciplina “Identidade, cultura e subjetividade” ministrada pelos professores Dra. Geovania da Silva Toscano e Dr. Rosalvo Nobre Carneiro. 2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. 3 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Bolsista da CAPES.
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modernidade tardia. O livro aparenta mostrar, desde o seu título, ainda que ao longo do
mesmo isso se dê de modo mais sutil, que o conceito de cultura pertence à Antropologia.
Laraia apresenta não “o” conceito Antropológico de cultura em contraposição ou justaposição
àqueles que são dados por outras disciplinas; antes, ele fala da cultura como sendo um
conceito que pertence à Antropologia e, por inferência, compete somente a ela dizer o que é
ou não é ‘cultura’.
A tentativa de limitar o conceito de cultura a uma disciplina não subsiste diante dos
estudos pós-modernos e pós-coloniais desenvolvidos de modo interdisciplinar, que trabalham
questões importantes para este tempo como, por exemplo, desterritorialização e
multiterritorialidade, ciberespaço e hiperespaço, marginalidade, multiculturalismo,
cosmopolitismo etc. Essas e outras noções advindas da Geografia, da História, da Filosofia e
das Ciências Sociais, conduzem inevitavelmente à reavaliação do conceito de cultura e, por
extensão, das ideias sobre identidade e diferença, rejeitando à tentação de limitar seu conceito
a uma disciplina ou teoria específica. Um bom começo para isso seria, possivelmente, que se
falasse mais em ‘definições’ (plural e aberto) de cultura ao invés de ‘conceito’ (singular e
fechado), e que tais definições esclarecessem que também é preciso falar de culturas, no
plural, uma vez que sua realidade extrapola o seu vocábulo singular.
É preciso considerar a cultura sem uma amarra disciplinar, ou seja, pensá-la de modo
diacrônico e fronteiriço. Considerar a cultura de modo diacrônico significaria interpretar as
noções de espaço, lugar e sociedade não como sinônimos obrigatórios de ‘cultura’, mas como
possibilidades associadas que se complementam sem perder suas especificidades. É levar em
conta as possibilidades dinâmicas e constantes de transformação dos múltiplos e diversos
contextos culturais. Pensar a cultura por uma aproximação fronteiriça é considerar que essas e
outras noções se apresentam de forma intersticial e se interconectam a fim de formar um
quadro maior, para além das ambiguidades e arbitrariedades associadas com as noções de
cultura, espaço, lugar, identidade, sociedade etc. Este seria, então, o ponto de partida para que
se rompa com as classificações convencionais de tais noções.
A fim de analisar a cultura em termos fronteiriços é preciso considerar as relações
entre espaço e identidade, ambos produtos das relações e interações socioculturais, pois a
cultura também está assentada em uma base geográfica. Desse modo, este artigo procurará
mostrar como se relacionam essas noções e quais são algumas das implicações de olhar a
cultura em conexão com o espaço, a identidade e a diferença.
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CULTURA, ESPAÇO E IDENTIDADE: UMA TRÍADE INSEPARÁVEL
Uma das importantes contribuições de Laraia (2001) foi mostrar que a geografia não
determina a cultura do homem. As características geográficas de um território ou de uma
região qualquer influenciariam a produção e expressão cultural do homem, mas não seriam
determinísticos. Porém, por mais que ele procure mostrar que há, de fato, certa influência do
meio físico, o livro se encaminha para o outro extremo, o determinismo cultural, quase como
se o homem existisse apenas em uma dimensão espiritual, intocável pela materialidade do
meio ambiente. Mas seja qual for a definição de cultura que se apresente é importante que ela
considere a relação entre cultura, espaço e identidade; do contrário, não será possível
apreender uma ideia de cultura que vá além do convencional, pois é o “meio físico-
circundante, os espaços culturais, o local em que o sujeito vive e constrói a sua subjetividade”
(GONÇALVES, 2007, p. 28) e, portanto, a sua identidade.
A ideia de ‘espaço cultural’ sintetiza bem a interconexão entre cultura, espaço e
identidade, uma vez que o espaço não deve ser considerado apenas como o meio físico dado
pela natureza, pois este sofre transformação pela presença do homem e, assim, “assume uma
dimensão sociocultural que o sujeito internaliza e representa” (Idem). Visto que o espaço não
se limita à dimensão física, e por ser constantemente modificado pela intervenção humana, a
sua definição vem abraçar tudo aquilo que se possa pensar como espaço, seja cultural,
psíquico ou outra categoria qualquer. É com esse espaço todo-inclusivo que o sujeito se
identifica quando dele se apropria. Enquanto se apropria de um lugar, o sujeito vai sendo
modificado enquanto transforma o próprio lugar do qual se apropriou não apenas física, mas
também psicológica e culturalmente (GONÇALVES, 2007).
A apropriação do espaço por um sujeito se dá na relação deste com o meio ambiente
e com a sociedade em uma extensão simbólica e vivenciada. Assim, a identidade pessoal do
sujeito se atrela à sua identidade social a partir do espaço do qual se apropriou. Porém, isso
suscita algumas questões: será que a identidade está fixamente anexada a um lugar específico
ou é mais um sentimento, uma orientação subjetiva e móvel? Quando um sujeito se apropria
de outro espaço ele muda a sua identidade pessoal ou apenas a sua identidade social? E até
que ponto se pode diferenciar a identidade pessoal da social? Haveria alguma parte ‘essencial’
de sua identidade que permaneceria inalteradamente vinculada aos espaços apropriados
anteriormente ou a mudança na identidade significaria apenas o acúmulo de novas
experiências interiorizadas sem o abandono das anteriores? Essas são questões importantes
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que este artigo não tenta responder, pela limitação do mesmo e pelo seu propósito reflexivo,
mas que devem ser consideradas à luz da definição de cultura que for adotada, uma vez que
não é possível separar cultura de espaço e de identidade.
Se a cultura está estritamente relacionada à ideia de identidade, também está à ideia
de diferença. A identidade, sendo relacional, depende do outro para existir, e como tal, é
marcada pela diferença, pois é ao se diferenciar do outro que o sujeito cria, percebe e projeta a
sua própria identidade. A diferença, então, é estabelecida por uma marcação simbólica em
relação às outras identidades, e muito embora essa marcação seja mais bem compreendida
quando se trata de identidades nacionais ou étnicas em que a cultura assume uma posição
grandemente influente de diferenciação, ela não se resume a esses tipos de identidade. Assim,
“as formas pelas quais a cultura estabelece fronteiras e distingue a diferença são cruciais para
compreender as identidades. A diferença é aquilo que separa uma identidade da outra,
estabelecendo distinções, frequentemente na forma de oposições” (WOODWARD, 2007, p.
41). O problema é que, sendo a marcação da diferença um elemento-chave em qualquer
sistema classificatório e, portanto, inerente aos sistemas compartilhados de significações que
se entende antropologicamente por ‘cultura’, a diferença tende a ser construída muito mais
por um viés negativo do que positivo, ou seja, ao invés de ressaltar a diversidade, a diferença
marca o território simbólico pela exclusão e marginalização daqueles que não têm a mesma
cultura ou a mesma identidade cultural.
Uma vez que a marcação da diferença restringe os sujeitos a fronteiras pré-
estabelecidas, seguindo de modo contrário ao movimento que se dá na modernidade tardia,
que é o de caminhar fronteiriçamente, é preciso deixar de pensar a cultura como um perímetro
demarcador da diferença e percebê-la mais como uma “espécie de crítica imanente ou
desconstrução”, um “tipo de autodivisão bem como de autocura através da qual os nossos eus
fragmentados e sublunares não são abolidos, mas aperfeiçoados a partir de dentro por uma
mais ideal espécie de humanidade” (EAGLETON, 2003, p. 19). Portanto, considerada como
autocura, a cultura precisa lidar constantemente com o aspecto negativo da diferença, e isso
deve ocorrer não de forma unilateral, mas recíproca e toda-inclusiva. Isso significaria pensar a
cultura, por exemplo, não somente como crítica utópica ao ideal de “civilização”, mas
também como modo de vida, criação artística, cultivo do espírito etc. Significaria também
fazer as pazes entre a “alta” e a “baixa” cultura, entre as culturas “erudita”, “de massa” e
“popular” como sendo mutuamente necessárias à completitude cultural das sociedades.
Significaria também olhar a cultura para além das convenções de nacionalidade, etnia e
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afinidades, e obter uma percepção móvel e fronteiriça que não anexa os indivíduos a culturas
de modo automático e sincrônico; pelo contrário, considera a criatividade dos indivíduos e
suas possibilidades históricas de produção de mudanças culturais em seus respectivos
contextos.
Repensar a cultura a partir de suas relações com o espaço, a identidade e a diferença
é apenas um dos caminhos a percorrer para compreendê-la como uma multicolorida tapeçaria
humana. Outro caminho seria aquele em que a cultura é considerada à luz da modernidade
tardia e da globalização, como veremos a seguir.
A CULTURA SOB A DEPENDÊNCIA VEXATÓRIA DA MODERNIDADE TARDIA E
DA GLOBALIZAÇÃO
O tempo presente tem sido considerado por muitos, entre outros termos, como sendo
a ‘pós-modernidade’. Aqui prefere-se usar o termo ‘modernidade tardia’ para identificar esse
tempo que se caracteriza pela liquidez das relações em todas os espaços e níveis de interação
social. A modernidade tardia exibe uma constante sensação de insegurança e flexibilidade que
se reflete na incerteza e transitoriedade das identidades sociais, culturais, sexuais e todas as
suas demais classificações e tipologias possíveis. A modernidade tardia é o “admirável mundo
novo das oportunidades fugazes e das seguranças frágeis” no qual não há espaço para
identidades sólidas e inegociáveis (BAUMAN, 2005, p. 33).
As identidades flexíveis e voláteis deste tempo resultam em grande medida da
dependência vexatória da cultura em relação à modernidade tardia e à globalização, incluso
suas “forças descontroladas” e “seus efeitos cegos e dolorosos” (BAUMAN, 2005, p. 95), que
Santos (2001) irá chamar de “perversidade sistêmica”, pois em sua concepção, “para a grande
maior parte da humanidade a globalização está se impondo como uma fábrica de
perversidades” (p. 19), uma vez que o contínuo estímulo ao consumo favorece o
enriquecimento das corporações multinacionais em detrimento do aprofundamento das
diferenças locais em termos socioeconômicos.
Na modernidade tardia, a cultura, sendo um elemento constituinte e constituidor da
identidade, se encontra indissociável das condições de produção material e, sendo também
reificada como tudo mais, é constantemente levada a fazer parte do mercado de bens e
serviços como uma plena opção de consumo e não como uma expressão do pensamento
crítico. O resultado disso tem sido, então, a produção em massa de identidades prontas,
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construídas de acordo com as tendências de mercado e leiloadas através dos mais variados
meios de comunicação e propaganda, transmitindo aos indivíduos mais desatentos a falsa
ideia de serem diferentes quando na verdade eles estão apenas dividindo, na formação de suas
identidades, os mesmos “elementos que a sociedade fornece” (MANZINE-COVRE, 1996)
desigualmente a todos.
Assim, talvez, o maior desafio que se apresenta à cultura na modernidade tardia seja
realmente o de curar a si mesma, uma vez que ela está impregnada dos vícios advindos da
globalização, ou seja, da “estetização dos bens de consumo, da política como espetáculo, do
estilo de vida consumista, da centralidade da imagem e da integração definitiva da cultura na
produção geral de bens” (EAGLETON, 2003, p. 45).
No entanto, há vozes esperançosas, que contemplam a globalização não apenas pelo
seu lado perverso, mas também em sua possibilidade de prover meios para mudanças que
beneficiem aqueles que até então foram excluídos de seus benefícios ou aqueles que têm sido
explorados sem piedade pelas forças econômicas globais. Bauman (2005) fala da globalização
como um caminho sem volta, mas que é possível ela transmutar-se de maldição em bênção,
uma vez que
Todos nós dependemos uns dos outros, e a única escolha que temos é entre garantir mutuamente a vulnerabilidade de todos e garantir mutuamente a nossa segurança comum. Curto e grosso: ou nadamos juntos ou afundamos juntos. Creio que pela primeira vez na história da humanidade o auto-interesse e os princípios éticos de respeito e atenção mútuos de todos os seres humanos apontam na mesma direção e exigem a mesma estratégia (p. 95).
Para que haja essa transmutação da globalização e, assim, seja anulado ou, pelo
menos, atenuado o seu caráter perverso, faz-se necessário colocar as forças globais e seus
efeitos destruidores “sob o controle popular democrático” a fim de que sejam “forçadas a
respeitar e observar os princípios éticos da coabitação humana e da justiça social”
(BAUMAN, 2005, p. 95). Se isso irá acontecer de fato, ou não, somente o futuro poderá dizer;
no momento, somente se pode contar com a certeza do otimismo e da esperança.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo propôs uma forma de pensar a cultura para além das fronteiras
disciplinares, considerando-a não como patrimônio de uma dada Ciência, mas sim como uma
característica universal da humanidade e, portanto, digna de ser considerada a partir da
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diversidade móvel que caracteriza as culturas na modernidade tardia. Assim, uma vez que a
cultura de um povo é dinâmica e mutável, pelo menos em alguns aspectos, a aproximação das
Ciências Humanas à cultura também deveria manter-se nessa mesma orientação, ou seja, ao
invés de ficar confinada a uma dada fronteira teórica ou disciplinar, que a cultura seja
estudada ali entre os limites, de maneira fronteiriça, permitindo assim que se transite
facilmente entre os saberes, a fim de se obter uma visão maior do comportamento, das
apropriações, das identidades, das diferenças e da diversidade do ser humano.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
GONÇALVES, Teresinha Maria. Cidade e poética: um estudo de psicologia ambiental sobre o ambiente urbano. Coleção educação em ciências. Ijuí: Ed. Unijuí, 2007.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 14ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001).
MANZINI-COVRE, Maria de Lourdes. No caminho de Hermes e Sherazade: cultura, cidadania e subjetividade. Taubaté: Vogal Editora, 1996.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único consciência universal. 6ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.
TERRY EAGLETON, Terry. A ideia de cultura. Lisboa: Temas e Debates, 2003.
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 7ª ed. Petrópolis: Vozes, 2007.
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