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AristotleAncient Philosophy
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
Juliana Ortegosa Aggio
Prazer e desejo em Aristteles
(verso corrigida)
So Paulo
2011
2
Juliana Ortegosa Aggio
Prazer e desejo em Aristteles
Tese apresentada ao programa de Ps-
Graduao em Filosofia do Departamento
de Filosofia da Faculdade de Filosofia,
Letras e Cincias Humanas da Universidade
de So Paulo, para obteno do ttulo de
Doutor em Filosofia sob a orientao do
Prof. Dr. Marco Antnio de vila Zingano
(verso corrigida).
So Paulo
2011
3
DEDICATRIA
Para Camila Midori Moreira.
4
AGRADECIMENTOS
Agradeo especialmente ao professor Marco Zingano, meu orientador, exemplo
de seriedade e rigor com a sua minuciosidade analtica, que sempre foi to atencioso e
prestativo, mostrando sua enorme generosidade e disposio em me acolher e auxiliar
em toda a minha formao, desde a iniciao cientfica at o doutorado.
Ao professor Luiz Henrique Lopes dos Santos que, sempre to incisivo e
sinttico, para mim um modelo de vivacidade, entusiasmo e paixo pela filosofia, com
seu estilo fascinante e sedutor de tratar os problemas filosficos e a sua igualmente
fascinante e sedutora capacidade de inferncia lgica. As nossas discusses filosficas
foram e ainda so decisivas para minha formao.
Ao professor Francis Wolff pela sua maestria em tornar meus argumentos mais
claros e precisos e por sua extraordinria generosidade em me acolher e orientar durante
o estgio de doutorado na cole Normale Suprieure - Paris, o que, sem dvida,
enriqueceu imensamente o meu trabalho.
Ao professor Fernando Muniz por suas observaes e discordncias no exame de
qualificao, que muito me auxiliaram na verso final da tese. Aos professores Ricardo
Salles e Roberto Bolzani que gentilmente participaram da banca de defesa.
Aos meus pais por todo desvelo e dedicao. Ao meu pai por todo apoio e
incentivo. minha me por todo carinho, compreenso e auxlio na reviso da tese.
minha irm, Anna, pela inestimvel e sincera amizade.
Ao meu companheiro de eternas e sinceras disputas filosficas e, o que
certamente mais importante, ao meu amigo zeloso e amoroso, Dioclzio Faustino. s
minhas eternas amigas, Karina e Nahema, pelo incentivo, pelo zelo e pela
desinteressada e calorosa generosidade da qual jamais me esquecerei. Aos meus
queridos amigos que me ajudaram na reviso da tese, Dioclzio, Sheila, Cris e Camila.
E a todos os outros amigos (a lista no pequena) que sempre me apoiaram e me
ajudaram nesta busca, s vezes to solitria e laboriosa, pelo conhecimento.
Aos membros do grupo de estudo da tica Nicomaqueia, Dioclzio, Hugo,
Fernando e Andr, com os quais pude travar intensos e proveitosos debates.
s secretrias do departamento de filosofia da USP, que sempre foram to
zelosas e solcitas, sobretudo Marie, Maria Helena e Vernica.
Aos meus novos colegas de departamentos da UFBA, Joo Carlos Salles, Silvia
Faustino de Assis Saes e Marco Aurlio Oliveira da Silva, por todo apoio, acolhimento
e pacincia neste momento de grande mudana em minha vida e finalizao da tese.
s agncias de fomento pesquisa, Fundao de Amparo Pesquisa do Estado
de So Paulo (FAPESP), que financiou a pesquisa, e Coordenao de Aperfeioamento
de Pessoal de Nvel Superior (CAPES), que financiou o estgio de um ano na ENS-
Paris.
Por fim, gostaria de finalizar os agradecimentos, dizendo que aquela paixo
adolescente pelas questes filosficas no se esvaiu, ao contrrio, fortaleceu-se ao longo
dos anos. Ensinar filosofia, j nos indica a primeira frase da Metafsica de Aristteles,
justamente fortalecer este desejo natural de conhecer que todos ns temos. Acho que me
ensinaram bem, eu apenas agradeo.
5
AGGIO, J.O. Prazer e desejo em Aristteles. 2011. 205 f. Tese - Faculdade de Filosofia,
Letras e Cincias Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de So Paulo, So
Paulo, 2011.
RESUMO
Esta tese pretende tratar do problema da constituio do fim da ao, objeto de nosso
desejo. Visto que a apreenso correta do fim depende da aquisio da virtude moral,
preciso no apenas verificar a possibilidade da virtude ser adquirida, mas tambm como
tal possibilidade se realiza atravs da educao moral dos desejos. Em primeiro lugar,
devemos compreender o que significa educar o desejo. Com efeito, se educar o desejo
significa se habituar a ter prazer com o que se deve, ento devemos antes examinar em
que sentido a concepo aristotlica de prazer permite que o desejo possa ser educado.
Em segundo lugar, investigaremos por que tal educao necessria para o projeto
aristotlico da aquisio da virtude moral, pois, se ela no for necessria, ou bem o
desejo teria de ser naturalmente bom, ou ele deveria estar submetido de modo
incondicional razo. Contudo, em oposio s posies intelectualista e naturalista, a
tica aristotlica no pressupe que a razo seja autnoma o suficiente para determinar
o fim da ao segundo o conhecimento do bem e do mal, nem que ele seja dado por uma
natureza inata boa ou m, porm pressupe que apenas a razo seja capaz de apreender
o que verdadeiramente bom. Sendo assim, para delimitarmos em que medida, segundo
Aristteles, o desejo e a razo determinam o fim, examinaremos de que modo ele pode
ser constitudo tanto por uma razo capaz de apreend-lo corretamente, como por um
desejo capaz de tom-lo como seu objeto, uma vez que o desejo j tenha sido habituado
a ter prazer com o que se deve. Ao que tudo indica, a educao moral parece ser
condio prvia necessria para que razo e desejo se harmonizem e a razo possa ser
efetivamente causa coadjuvante na constituio do fim da ao.
Palavras-chave: Prazer, desejo, razo, educao moral e virtude.
6
AGGIO, J.O. Prazer e desejo em Aristteles. 2011. 205 f. Tese - Faculdade de Filosofia,
Letras e Cincias Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de So Paulo, So
Paulo, 2011.
ABSTRACT
This thesis aims to investigate the problem of the constitution of the end of action,
object of our desire. As its correct apprehension depends on the acquisition of moral
virtue, we must, therefore, not only verify the possibility of virtue to be acquired,
but also how such a possibility is realized through the moral education of desire. In the
first place, we must understand what it means to educate desire. Indeed, if educating the
desire means getting used having pleasure with the things we ought to, then we must
first examine in what sense the Aristotelian conception of pleasure allows the desire to
be educated. Secondly, we will investigate why such education is necessary for the
Aristotelian project of moral virtue acquisition, because, if it is not necessary, the desire
would have to be naturally good or it should be submitted unconditionally to reason.
However, as opposed to the intellectualistic and naturalistic positions, the Aristotelian
ethics does not presuppose that reason has enough autonomy to determinate the end of
action according to the knowledge of the good and the bad, nor that the end is given by
an innate nature good or bad, but it presupposes that only reason is able to grasp what is
truly good. Thus, in order to determine in which sense, according to Aristotle, reason
and desire constitute the end, we will examine how it can be constituted by both a
reason capable of grasping it truly and by a desire that can take it as its object, since the
desire has already been used having pleasure with what it should have. As we can see,
moral education seems to be a necessary precondition by which reason and desire can
be in harmony and reason can actually be partly a cause of the constitution of the end of
action.
Key words: Pleasure, desire, reason, moral education and virtue.
7
SUMRIO
Abreviaes 9
Prefcio 10
Introduo 11
I. Objeto da tese 11
II. Consideraes gerais 12
III. Estrutura da tese 23
Primeira Parte: O prazer segundo Aristteles 25
Captulo I: Anlise conceitual do prazer 26
1.1. Introduo 26
1.2: Anlise do Primeiro Tratado do prazer 31
1.3: Anlise do Segundo Tratado do prazer 58
1.4: Anlise comparativa dos dois Tratados do prazer 87
Captulo II: Interpretao dos problemas 92
2.1: Problema I: o prazer enquanto causa da atividade perfeita 92
2.2: Problema II: sobre o prazer nas atividades virtuosas e viciosas 96
2.2.1 O paradoxo 97
2.2.2 A resoluo do paradoxo 97
2.2.3 A harmonia dos desejos 104
2.2.4 O critrio para a ao virtuosa 108
2.2.5 Prazer e ao virtuosa 111
2.2.6 Concluso 113
8
Segunda Parte: O desejo segundo Aristteles 115
Captulo I: A educao do desejo 116
1.1: Introduo 116
1.2: Problema: no possvel escolher deliberadamente o que desejar 121
1.3: Objeo: o conceito de vontade 130
1.4: Soluo: possvel desejar corretamente 138
1.4.1: Condio de possibilidade: a natureza humana 140
1.4.2: Realizao da possibilidade: a educao do desejo 141
1.4.3: O hbito 142
1.4.4: O conhecimento de si 149
1.5: Concluso 151
Captulo II: O desejo nas virtudes particulares 156
2.1. Os tipos de desejo 156
2.2. O querer 157
2.3. O impulso e o apetite 158
2.4 As virtudes particulares 168
2.4.1 A temperana e a coragem 173
2.4.2 A generosidade 178
2.4.3 A magnificncia 179
2.4.4 A grandeza de esprito 180
2.4.5 A ambio 181
2.4.6 A tolerncia 182
2.4.7 A amabilidade 184
2.4.8 A sinceridade 185
2.4.9 O bom-humor 187
2.4.10 O pudor 188
guisa de concluso 190
Bibliografia 200
9
ABREVIAES
Obras de Aristteles:
AnPost. Analticos Posteriores
DA De Anima
MA De Motu Animalia
EE tica Eudmia
EN tica Nicomaqueia
HA Historia Animalium
Insomn. De Insomniis
Mem. De Memoria
MM Magna Moralia
Met. Metafsica
PA De Partibus Animalium
PN Parva Naturalia
Pol. Poltica
Probl. Problemata
Ret. Retrica
Top. Tpicos
10
PREFCIO
J dizia Nelson Rodrigues, em seu livro, O bvio ululante, que devemos ler
pouco e reler muito. H uns poucos livros totais, trs ou quatro, que nos salvam ou que
nos perdem. preciso rel-los, sempre e sempre, com obtusa pertincia. E, no entanto, o
leitor se desgasta, se esvai, em milhares de livros mais ridos do que trs desertos1.
Tomo como minhas as palavras do dramaturgo para descrever a trajetria desta tese.
Com sistemtica persistncia, para no dizer obsesso, li e reli as obras de Aristteles
que me impeliam insistentemente a dialogar com os seus argumentos, a reconsiderar
seus pressupostos e concluses, a verificar sua lgica que, por vezes, no parece ser to
evidente como gostaramos. Propus-me a caminhar nos emaranhados dos conceitos
expostos to sedutoramente pelo filsofo estagirita em preferncia a lanar-me trs
vezes no deserto de interminveis discrepncias da exegese aristotlica. Assim, busquei
delinear o que significa prazer e desejo e, para tanto, tracei e retracei percursos, leituras,
escrituras. E, se no fui, pelo menos pretendi ir ao limite de tais conceitos no mbito
moral. Para alcanar as bordas, sem, talvez, ultrapassar os limites, me direcionei at
onde os desafios e as descobertas da inferncia argumentativa puderam me conduzir. De
certo, neste percurso que evitou a aridez do deserto, mas que no se esquivou dos
maremotos devo ter armado emboscadas para o meu prprio pensamento das quais sou
unicamente responsvel. Talvez no tenha chegado a taca, mas em guas filosficas
mais vale navegar do que atracar em seu destino final. E se cheguei ou no em algum
lugar dir melhor o leitor. No mais, se de algo pude ser convincente menos por mrito
prprio do que pelo auxlio impecvel das profundas e belas palavras de Marco
Zingano, Luiz Henrique Lopes e Francis Wolff.
1 RODRIGUES, N. e CASTRO, R. O bvio ululante: primeiras confisses: crnicas. So Paulo: Cia das
Letras, 1993, pg. 43.
11
INTRODUO
), 2. (Aristteles, tica Nicomaqueia, VI 13, 1144b29-30)
I. Objeto da tese
Com o intuito de realizar uma apresentao da tese, Prazer e desejo em
Aristteles, tecerei algumas consideraes gerais sobre a sua questo central, que gira
em torno da realizao da educao do desejo, a saber: como a razo pode atuar sobre o
desejo? Mais precisamente, que operao racional atua sobre o desejo no processo
formativo do carter e na constituio do fim da ao?
A tese a ser defendida a seguinte: como a virtude uma disposio adquirida
por bons hbitos, o desejo necessariamente educvel. Para que o desejo seja educado,
preciso haver uma racionalidade que possa educ-lo, visto que somente a razo
capaz de apreender verdadeiramente o que bom. Tal racionalidade, no incio da
formao do carter, externa ao agente, pois a criana a possui apenas em potncia.
Com o carter j constitudo, sabemos que a razo passa a estar sob o domnio do
agente. Esta racionalidade prtica prpria ao agente moral adulto possui, ao menos, duas
funes essenciais: uma responsvel pela apreenso dos meios, a deliberativa, e, outra,
pelo fim. Esta ltima, a ttulo de distino da funo deliberativa, ns chamamos de
judicativa e o virtuoso aquele que faz uso maximamente da racionalidade prtica em
ambas as funes, uma vez que ele apreende verdadeiramente tanto o bom fim, como os
bons meios. Para sustentar tal tese, devemos primeiramente compreender o que significa
educar os desejos e por que tal educao necessria para o projeto aristotlico da
aquisio da virtude moral. Ademais, visto que no por determinao racional ou por
aquisio de conhecimento do que correto a ser feito, mas atravs da educao que
possvel que o desejo venha a ser conforme a razo, inferimos que a educao do desejo
condio prvia necessria para que a razo possa atuar sobre o desejo e ser
2 Scrates pensou que as virtudes so operaes racionais, pois todas so formas de conhecimento, mas,
para ns, elas so com razo.
12
efetivamente causa coadjuvante na constituio do fim da ao. Sendo assim,
pretendemos delimitar em que medida o desejo e a razo determinam o fim da ao,
dialogando com as posies intelectualista e naturalista.
Em segundo lugar, visto que o prazer o objeto natural do desejo e que educar o
desejo significa se habituar ter prazer com o que se deve, como e quando se deve, ento
devemos compreender o que o prazer e em que sentido a concepo aristotlica de
prazer permite que o desejo possa ser educado. Por isso, ressaltamos o fato de o filsofo
ter defendido uma tese hedonista moderada, em que o prazer pode ser um bem, uma vez
que esteja acompanhando uma boa atividade. Caso contrrio, se o prazer fosse um mal
em absoluto, jamais poderamos ter desejo, portanto, prazer pelo que bom, tampouco o
prazer poderia ser considerado uma das causas da felicidade. O projeto da educao do
desejo, portanto da aquisio da virtude, diante de um anti-hedonismo extremo, estaria
fadado ao fracasso e j no poderamos conceber a tica aristotlica como uma tica das
virtudes.
II. Consideraes gerais
Talvez parea estranho, ou mesmo cmico, o fato de um pesquisador norte-
americano, no ano de 2011, afirmar uma tese similar a de um filsofo estagirita do
sculo quarto antes de Cristo. Paul Bloom, professor e pesquisador norte-americano em
psicologia e cincia cognitiva, pretende explicar por que o conhecimento e as nossas
crenas interferem na forma como sentimos prazer, seja ao beber um vinho, ver uma
obra de arte ou fazer sexo. Em seu livro, Como o prazer funciona: a nova cincia do
por que ns gostamos do que ns gostamos3, ele afirma que, ao sentirmos prazer,
respondemos a coisas mais profundas do que gosto, cheiro ou aparncia. Na verdade,
diz, nosso prazer guiado pelo que sabemos, ou julgamos saber, sobre o objeto ou a
pessoa com os quais interagimos. Acresce tambm que, atualmente, sabemos pouco
sobre o que acontece no crebro. Mas o conhecimento direciona nossas sensaes de
uma forma que sejam prazerosas ou no4.
Tampouco na poca de Aristteles se conheciam as operaes psicofsicas das
sensaes de prazer e dor. Porm, assim como o professor norte americano atualmente
postula, Aristteles certamente acreditava que o conhecimento determinante no modo
3 Bloom, P. How Pleasure Works: The new science of why we like what we like. New York: Norton, 2010.
4 As informaes foram extradas da entrevista concedida pelo professor ao jornal Folha de So Paulo,
tera-feira, 19 de julho de 2011.
13
como sentimos e desejamos. No qualquer conhecimento, nem qualquer operao
racional. Trata-se, justamente, de uma certa operao judicativa da razo que pode
apreender o que bom ou ruim dentro das circunstncias particulares de cada situao
ou contexto. No caso dos animais, como no h operao racional alguma, a orientao
do que prazeroso ou doloroso encontra-se somente no mbito da percepo. No
homem, todavia, percepes e pensamentos esto envolvidos na constituio do que
prazeroso ou doloroso.
A tica aristotlica pressupe a seguinte tese: o desejo pelo prazeroso
(epithumia) e o desejo de enfrentamento da dor (thumos) devem poder se orientar pelo
que julgamos ser verdadeiramente um bem; caso contrrio, a educao moral no seria
possvel e j no poderamos falar em termos de aquisio da virtude. Ora, adquirir
virtude moral significa conseguir ter bons desejos, i.e., ter uma disposio em bem
desejar. Afinal, a disposio moral que constitui o fim da ao, objeto de nosso desejo,
e a disposio virtuosa que constitui os bons fins.
O desejo, para Aristteles, apesar de no ser capaz de julgar o que bom, pois
que sua natureza simplesmente buscar o prazeroso e evitar o doloroso, ele capaz de
seguir o que ajuza a razo como sendo bom. preciso, portanto, esclarecer que,
segundo o filsofo, o desejo no de uma natureza tal absolutamente avessa
racionalidade; ao contrrio, ele prprio de uma natureza que se compe e participa da
razo. E se compe no sentido de poder ser regrada pelo que a razo determina como
sendo verdadeiramente um bem. Isso significa que o desejo educvel e, mais do que
isso, deve ser educado para que o homem possa realizar de modo perfeito a sua
natureza. Portanto, a educao do desejo, alm de ser possvel conforme a estrutura da
alma humana, ela eticamente necessria.
Em suma, so duas as condies anmicas fundamentais para a aquisio da
virtude: (i) o desejo ser naturalmente incapaz de ajuizar sobre o que bom, mas capaz
de seguir o que dita a reta razo; e (ii) a razo ser naturalmente inapta para, por si s,
motivar a ao, mas apta para apreender o que bom e persuadir o desejo disso.
Seria, portanto, incongruente sua filosofia, dizer que o desejo um obstculo
condenvel a ser transposto ou extirpado da natureza humana; ou que haver uma
batalha incessante entre desejo e razo, no havendo jamais a possibilidade de se
realizar a educao do desejo; ou que o desejo deva estar submetido de modo
incondicional razo, uma vez que ela seria capaz de determinar por si s a ao e esta
seria a perfeita realizao do dever moral.
14
Sabemos que, para os estoicos, de modo geral, a afeco (pathos) um impulso
excessivo e desobediente razo, i.e., um movimento da alma perturbador e contrrio
natureza humana5. A clera e o desejo so agitaes que pertencem parte da alma
desprovida de razo e so contrrias e hostis razo. Como vemos em Ccero, Zeno
dizia que o pathos um movimento da alma que obscurece a reta razo e que
contrrio natureza (Tusc. IV 6 11). Tambm Digenes de Larcio, em sua obra, Vida
e opinies dos filsofos, VII 110, afirmou que: Segundo Zeno, a afeco um
movimento da alma irracional e contrrio natureza, ou melhor, uma inclinao
exagerada.
Pois bem, ao contrrio da moral estoica, Aristteles pressupe uma possvel e
necessria harmonia das nossas afeces da parte no racional, tais como os desejos e as
emoes, com a nossa racionalidade prtica. Para ele, desejo e razo so inseparveis,
como o corpo e a alma, a cera e o selo impresso, o mrmore e a esttua. Inseparveis,
todavia distintos. Por isso, mesmo desprovido ele prprio de razo, o desejo pode
participar dela, e, por outro lado, mesmo a razo desprovida de desejo, ela pode
participar dele. No h, portanto, um problema propriamente psicolgico, uma vez que a
natureza humana potencialmente capaz de realizar sua perfeita existncia, a saber: a
harmonia entre desejo e razo.
O que, porm, salta aos olhos quando lemos atentamente a tica Nicomaqueia
que o filsofo enfatiza explicitamente que a funo deliberativa da razo diz respeito
exclusivamente aos meios e o desejo ao fim. Aqui a espinha dorsal da tica aristotlica
comea a cambalear. Se, do ponto de vista moral, o que mais interessa a determinao
dos fins, como poderamos restringir a razo funo de deliberar sobre os meios? Seria
a razo prtica apenas instrumental? Estaria ela fadada a encontrar a correlao eficaz
entre os meios e o fim?
Em contra partida, se o desejo for educvel, e educvel em termos de habituao
(ethesis) e no de condicionamento mecnico (asksis), i.e., considerando que tal
educao pressupe o julgamento correto sobre o que deve ser feito e um desejo que o
siga; ento devemos inferir que a razo de algum modo capaz de determin-lo. Isso se
confirma pelo fato de o desejo, por natureza, no visar seno ao que parece ser
prazeroso, mas, por educao, tornar-se capaz de ter como fim o que verdadeiramente
bom. Porm, o que no claro na tica Nicomaqueia, mas que nos incita a investigar
5 Para se aprofundar neste ponto, ver Zingano, Deliberao e Vontade em Aristteles (In: ZINGANO,
2007, pgs 167-211). Ver tambm Lebrun, G., O conceito de paixo (In: NOVAES, 2002).
15
saber como certa operao racional pode atuar sobre o desejo, ou seja, como a razo
pode participar da parte no racional, persuadindo ou educando o desejo. Com efeito,
saber como a razo pode participar do desejo implica antes saber qual razo essa ou,
mais propriamente, qual funo racional essa. O problema, portanto, consiste em
esclarecer este ponto obscuro: a razo deve educar o desejo a ponto de poder participar
na constituio do fim da ao, mesmo que no seja atravs de sua funo deliberativa.
A necessidade de a razo ser eminentemente ativa na formao do carter e na
constituio do fim desejado evidente, o que, porm, no assim to transparente
saber qual tipo de funo racional pode atuar em conformidade ao desejo.
Evidentemente, para solucionarmos esta dificuldade devemos supor a existncia
de uma outra funo racional, distinta da investigao deliberativa, que atue na
constituio do objeto de desejo. A ttulo de diferenciao da funo deliberativa,
chamemo-la de funo judicativa. Outra questo a de saber como tal operao racional
atua sobre o desejo.
Em princpio, todo objeto se constitui enquanto objeto de desejo na medida em
que se mostra sob a forma de um bem, e tomar algo como um bem ou um mal implica
considerar o prazer e a dor que acompanham ou que podero acompanhar tal objeto.
Sabemos que a considerao sobre o que prazeroso parece constituir o que desejvel,
pois o prazer acompanha todo objeto de desejo, i.e., tudo o que desejvel
necessariamente aquilo que tomado como prazeroso. Como todo objeto de busca
acompanhado de prazer, ento s desejamos aquilo que nos aparece como prazeroso,
i.e., o que parece ser um bem para mim. Diante do que foi dito, a pergunta que surge
imediatamente a seguinte: como podemos desejar o que julgamos como sendo bom
em preferncia do que o que julgamos como prazeroso, uma vez que o bem e no o
prazer deve ser o critrio para a ao virtuosa? Em outros termos, como o desejo pode
aprender a seguir o que a reta razo v como sendo um bem?
Para responder a esta pergunta, Aristteles primeiramente determina que o
prazer no pode ser o critrio determinante da ao, j que ele no existe seno
enquanto uma sensao que acompanha uma atividade (energeia); logo, se o prazer
existe apenas como uma espcie de epifenmeno realizao da atividade, ento a
atividade que deve ser o objeto do desejo e sobre ela que deve incidir o julgamento
moral. Sendo assim, no possvel julgar se bom ou no certo prazer seno a partir do
julgamento sobre a atividade acompanhada deste prazer. Ou seja, no h definio
possvel do valor moral do prazer seno a partir do valor atribudo atividade. E se
16
Aristteles faz do julgamento que incide sobre a atividade (e no sobre o prazer) o
critrio avaliativo do prazer porque tudo o que ele quer evitar que tomemos o prazer
e a dor como fundamentos do valor moral da ao. Por isso mesmo, a definio do
prazer como aquilo que pertence (oikeia) a uma atividade que ele aperfeioa (teleioi)
(EN X V: 1175a27-b1) nos permite inferir que o julgamento moral referente atividade
o critrio avaliativo do prazer (EN X V: 1175b25-30), e no o contrrio, o julgamento
do que prazeroso como critrio avaliativo da atividade. Em segundo lugar, se o prazer
no critrio para a ao virtuosa, ento o desejo deve aprender a se orientar no pelo
que indiscriminadamente prazeroso, mas antes pelo que determina a reta razo. Isso
significa se habituar a ter prazer e dor com o que se deve, como e quando se deve, ou
seja, com a atividade correta e como, quando e onde for correto realizar tal atividade.
A educao do desejo, portanto, deve ser compreendida como um processo de
formao do carter, de aquisio da virtude, o que se realiza pelo habito em desejar o
que correto, em tomar como objeto o que bom segundo o julgamento correto. Isso
porque o julgamento correto, aquele tal qual faria o virtuoso (spoudaios), que
determina o que bom (agathos) e belo (kalos) (EN I 8: 1099a21-24). O bom e belo,
por sua vez, so tambm aes prazerosas em si mesmas e para aquele que os deseja em
vista deles mesmos. Assim sendo, a operao desiderativa ideal justamente aquela do
homem bom, ou seja, aquela daquele que j habituou o seu desejo a ser conforme a reta
razo, que aprendeu a desejar conforme o bom julgamento, que sabe encontrar a sua
felicidade e prazer no que propriamente virtuoso. Por isso, segundo Aristteles,
O temperante mantm o meio termo quanto a essas coisas. Ele no sente prazer com o
que o intemperante mais sente, ao contrrio, ele desgosta; nem em geral com o que no
deve, nem em nada excessivo. Quando lhe faltam, ele no sente dor ou apetite por eles.
Ou quando sente dor pela falta de um prazer, assim o sente moderadamente, no mais
do que se deve, nem quando no se deve et cetera. Ele deseja prazeres que conduzam
sade e ao bem-estar de modo moderado e como se deve. E s deseja outros prazeres
uma vez que estes no impeam a sade e o bem-estar e que no sejam contrrios ao
belo (para to kalon), nem excedam seus recursos para obt-los. O homem, pois, que
negligencia essas condies, estima mais tais prazeres do que eles merecem; mas no o
temperante, pois ele estima os prazeres segundo a reta razo (hos ho orthos lgos) (EN
III 11: 1119a12-21).
Com efeito, o filsofo continua mais adiante,
os apetites devem ser moderados e poucos, e nunca oporem-se razo isto o que
chamamos de ser disciplinado (eupeithes) e comedido (kekolasmenon) -; a parte
17
apetitiva deve ser conforme a razo (to epithumetikon kata ton logon), assim como uma
criana deve viver em obedincia ao seu tutor (EN III 12: 1119b11-18).
Isso significa que, ao ter adquirido a virtude, o homem virtuoso passa a desejar e
a achar prazeroso o que bom segundo o julgamento correto. Por isso, o que ele julga
ser bom lhe aparece como prazeroso. J para o vicioso, ao contrrio, o que lhe aparece
como prazeroso o que ele julga ser bom.
Com efeito, se o critrio para fundamentar o que bom fosse o que aparece
como prazeroso, a tica aristotlica seria absolutamente hedonista e a figura elogivel
por excelncia no seria a do prudente, e sim a do intemperante. Este ltimo, o
intemperante, age tendo como fim apenas o que lhe d prazer, independentemente de ser
moralmente bom ou ruim. Para saber o que d prazer, basta discriminar sensivelmente o
objeto prazeroso e deliberar sobre os meios mais eficazes para obt-lo. No faz sentido,
para o intemperante, avaliar moralmente o prazer que ele busca, por isso, ele faz um uso
meramente instrumental da razo. Alm do intemperante, poderamos citar o caso do
acrtico (ou descontrolado) que busca o que lhe aparece como prazeroso, mas que de
fato prejudicial, no lugar do que ele mesmo julga ser bom (EN IX 4: 1166b8-9).
Ao contrrio do que ocorre com essas figuras do fracasso moral, para o virtuoso,
o que realmente prazeroso lhe aparece como tal. Nas palavras do filsofo: as coisas
que aparecerem a ele prazerosas so prazerosas e agradvel aquilo com o qual ele se
deleita (EN X 5: 1176a18-19), ou seja, o homem bom o padro (kanon) e a medida
(metron) para o que prazeroso e penoso; logo, o que considerado penoso para o
homem bom, mas prazeroso para alguns, assim o por corrupes (phthorai) e por
doenas (lumai); o que significa dizer que o vicioso sente prazer com o que no
realmente prazeroso, i.e., com o que sente o homem bom; todavia, no deixa de ter
alguma sensao prazerosa.
Vimos, at aqui, que a educao do desejo necessria para a aquisio da
virtude e que a boa atividade e no o prazer deve ser objeto de nosso desejo. Porm, o
ponto espinhoso que o filsofo no nos diz explicitamente como esta bela e harmnica
conjuno de desejo e razo concretamente se efetiva. Esta dificuldade em saber como
se realiza a educao do desejo tambm se apresenta ao buscarmos compreender como a
prtica de aes virtuosas engendra a virtude, uma vez que, antes de adquirirmos uma
disposio virtuosa (hexis arete), devemos praticar atividades similares (EN X 5:
1176a18-19). Ou seja, devemos, no incio da formao do carter, praticar aes justas
sem sermos propriamente justos, mas a partir de uma autoridade externa, i.e., da fora
18
compulsria das leis e da conduta dos familiares e concidados6. Ou seja, ao mesmo
tempo em que a criana est sendo orientada pela autoridade exterior, ela vai
gradualmente aprendendo a discriminar o certo do errado e assim vai se tornando capaz
de tomar decises por conta prpria. Por um lado, a criana est sendo disciplinada e se
autodisciplinando ao praticar e manter por hbito o que aprendeu. Por outro, as leis,
assim como todo elogio e censura, estiveram e sempre estaro presentes para regular a
disciplina dos adultos por toda a vida7. No processo de aquisio das disposies
virtuosas, o desejo vai sendo constitudo enquanto um desejo reto. Deste modo, como
veremos, as aes em conformidade autoridade exterior precedem s aes por
deciso autnoma.
Resumidamente, ser educado passar a se habituar a desejar o que se deve. O
hbito (ethos), por sua vez, incutido por repetidas aes; no caso, boas aes. Sendo
assim, em princpio, realizamos boas aes sem desej-las por elas mesmas, mas por
uma autoridade externa, i.e., em vista de ser elogiado ou de evitar ser repreendido.
Quanto a este ponto Aristteles claro: a advertncia e toda censura e exortao
indicam que o aspecto irracional persuadido de certo modo pela razo (EN I 13:
1102b34-1103a1). No incio da formao do carter, portanto, o desejo no pode ser
imediata e diretamente determinado pela razo. Ele deve ser preparado, cultivado,
habituado a obedec-la. justamente em posio oposta ao naturalismo e ao
intelectualismo que podemos compreender o desejo segundo Aristteles, a saber: ele
no nem dado por uma natureza inata boa ou m, nem por uma razo autnoma o
suficiente para determin-lo segundo o conhecimento do bem e do mal. Desse modo,
no podemos dizer que desde o incio sabemos desejar retamente, mas que esta retitude
fruto de uma prtica regular de boas aes que engendra esta disposio de bem
desejar.
Explico-me. Se para que o desejo seja conforme a razo, ele deve ser educado a
ouvi-la e a obedec-la8, disto decorre que o desejo no nasce reto e que o fim no
naturalmente um bom fim, mas que, ao contrrio, deve ser constitudo dessa forma. Se
fosse naturalmente bom, no haveria por que educ-lo, ou seja, no haveria motivo tico
nem uma estrutura anmica para tanto. Se o fim, por sua vez, fosse determinado pela
razo de modo que isto fosse causa suficiente para desejarmos tal fim e agirmos
conformemente, no haveria necessidade do hbito como prtica formativa do carter;
6 Cf. EN X 9: 1179b30 e ss. Sobre a autoridade paterna, ver 1180b4-7.
7 Cf. EN X 9: 1180a1 e ss.
8 Termos utilizados em EN I 13: 1102b29-1103a3.
19
tampouco poderamos admitir o fenmeno da acrasia, em que o agente sabe o que
bom, mas deseja e faz exatamente o contrrio.
A disciplina tica, como bem sabido, no tem como finalidade apenas saber o
que a virtude, mas, sobretudo, como possvel adquiri-la, visto que ela no nos
naturalmente dada. Segundo Aristteles, o carter moral ou tico uma certa disposio
ou um conjunto de disposies virtuosas ou viciosas que se constituram a partir de bons
ou maus hbitos. Saber apenas o que a virtude, como o fez Scrates, retira toda
praticidade prpria ao conhecimento no domnio tico. Aristteles critica Scrates ao
dizer que ele costumava investigar o que a virtude, mas no como e de quais fontes
ela surgia (EE 1216b10-11; cf. 1216b19-22). Em Menon de Plato, quando Scrates
interrogado sobre se e como a virtude adquirida (70a), ele responde que impossvel
saber se e como a virtude adquirida sem antes saber o que a virtude (71a-b). Ora, se,
para Scrates, a virtude conhecimento, conhecer o bem se tornar virtuoso.
Evidentemente, Aristteles critica essa doutrina socrtica intelectualista com a sua
concepo de hbito. Ao poltico cabe compreender que as disposies so constitudas
pelo hbito e que so elas que pem os fins, e no a razo (logos) ou o intelecto (nous).
Por isso, no por determinao racional ou por aquisio de conhecimento do que
correto a ser feito, mas atravs da educao que possvel que o desejo venha a ser
conforme a razo. Vejamos resumidamente como e por que a educao do desejo
condio prvia necessria para que a razo possa atuar sobre o desejo sendo
efetivamente causa coadjuvante na constituio do fim da ao.
Mesmo a razo sendo naturalmente capaz de apreender o que bom, a educao
prvia dos desejos necessria para que essa operao se d. Ou seja, preciso se
habituar a desejar o que moralmente bom para que a razo possa estar apta a apreender
o que bom e o agente possa passar de um estado de formao do carter para um
estado em que se propriamente virtuoso. Por isso, somente algum que j seja virtuoso
poder apreender verdadeiramente o que o melhor a ser feito e dar as boas razes para
tanto. Algum que esteja em processo de aquisio da virtude depender inteiramente
dos conselhos e das leis para orientar suas aes, pois que sua racionalidade no
adquiriu a autonomia prtica prpria do homem com o carter j constitudo.
Em suma, necessrio haver previamente um hbito moral concernente aos
desejos para que a reta razo seja efetivamente causa conjunta da ao, ou seja, para que
o agente possa exercitar da melhor maneira possvel tanto a funo judicativa de
apreenso do bom fim, como a funo deliberativa de determinao dos bons meios.
20
neste sentido que podemos afirmar que h precedncia da educao moral da disposio
(hexis) ao desenvolvimento da razo. Tal precedncia fundamental para distinguirmos
a tica aristotlica da platnica, uma vez que nesta ltima a razo a causa do
verdadeiro desejo e, portanto, causa necessria e suficiente da ao; enquanto que, para
o estagirita, a razo s pode ser causa da ao se estiver em acordo com o desejo, ou
seja, se o desejo j estiver preparado a ouvi-la. Somente assim desejo e razo podem ser,
conjuntamente, causa necessria e suficiente da ao9.
Como foi dito, primeiramente ns aprendemos a desejar coisas boas, sem ainda
sabermos dar as boas razes e escolhermos bem as nossas aes. A partir da anlise de
EN X 9, captulo dedicado sobretudo educao moral, podemos inferir que a educao
prvia do desejo condio para que o sujeito compreenda o sentido moral do que deve
ser feito e, somente assim, possa tomar a boa deciso (1179b21-31). Por isso, do ponto
de vista da formao do carter, a educao do desejo, responsvel pela constituio da
virtude moral precede e condio necessria para a aquisio plena da virtude, i.e., da
virtude completa, que inclui a intelectual, a phronesis. Podemos afirmar que o hbito
que incute a virtude moral condio prvia necessria para o aprendizado e
desenvolvimento da racionalidade prtica; uma vez que a virtude moral no
naturalmente dada, nem a razo autnoma o suficiente para tornar o homem virtuoso.
Salvo aqueles bem-nascidos que naturalmente amam o que belo e bom, a razo no
tem qualquer eficincia prtica para a grande maioria comumente arrastada pelos
apetites. Vale ento, para a maioria, a seguinte frmula: como a terra que deve ser
cultivada para receber a semente, o desejo deve ser cultivado para ouvir a razo (EN X
9: 1179b24-31). Em suma, necessrio que haja a educao do desejo para que a razo
seja reta e tenha eficincia prtica.
Em outros termos, a educao do desejo condio para que a razo seja capaz
de apreender verdadeiramente o bom fim. E verdadeiramente quer dizer no apenas ver
o que deve ser feito (isto o vicioso e o descontrolado tambm so capazes), mas
persuadir o desejo a ter prazer com o que correto, i.e., ver verdadeiramente significa
apreender como prazeroso isto que deve ser feito.
Visto que possvel passar a desejar retamente, podemos concluir que esta
educao nada mais do que uma preparao necessria para a atuao da razo sobre o
desejo. Isso porque, segundo o estagirita, o intelecto, por si mesmo, no princpio
motor, portanto no capaz de determinar o desejo. Apenas um intelecto que esteja em
9 Cf. EN III 3 : 1113a23-24.
21
harmonia com o desejo capaz de atuar sobre ele. Em outros termos, a razo s capaz
de participar do desejo se e somente se houver a educao do desejo. O modo pelo qual
a razo participa do desejo se realiza, primeira e previamente, atravs da constituio do
carter.
de suma importncia enfatizar que o fim visto pelo virtuoso e no escolhido
deliberadamente por ele. Esta declarao um princpio adotado por Aristteles, que
parte do pressuposto de que o virtuoso v (horan) o que bom a ser feito (EN III 4
1113a34) e v corretamente (horosin orthos) (EN VI 14: 1143b14). Dizer isto nada mais
do que dizer que o desejo pe o fim que dita a reta razo em sua funo judicativa e
no deliberativa, uma vez que o fim no constitudo por escolha deliberada. Colocar
(tithenai) um fim, em termos gerais, significa perceber o que preciso ser feito diante
das circunstncias que se apresentam; seja em vista de sobreviver apenas, como no caso
dos animais, seja em vista de bem viver, ser feliz, como no caso dos homens.
Enquanto o desejo no educado se guia pelo prazeroso, o j educado capaz de
ter prazer pelo que racionalmente apreendido como um bem. O virtuoso se encontra
numa harmonia tal que o que a razo v como sendo o melhor o desejo deseja. Em
suma, a educao moral parece ser condio simultnea da apreenso racional
verdadeira do bem e do desejo que o toma como objeto, ou seja, o virtuoso v e
imediatamente deseja o que deve ser feito. E assim o faz porque est previamente
disposto a faz-lo. O virtuoso no poderia ver o que deve ser feito e no desej-lo. Este
seria o caso do vicioso que, mesmo sabendo o que deve ser feito, deseja e faz o
contrrio. Tampouco poderia o virtuoso ver o que deve ser feito, desejar e no agir
conforme o que deve ser feito. Este o caso do descontrolado (acrtico), que
conduzido antes pelo desejo contrrio do que por aquele conforme a razo. Tampouco
poderia o virtuoso ver e agir corretamente, mas no o desejar propriamente, i.e., desejar
o que bom por si e em vista de si mesmo. Este, como sabemos, o caso do controlado
(encrates), que age conforme a razo, porm sem desejar o fim virtuoso por si mesmo.
A educao moral justamente a realizao da passagem entre o agir
virtuosamente sem ser virtuoso ao agir virtuosamente sendo virtuoso; da passagem do
agir por autoridade exterior ao agir em vista do fim virtuoso desejado por ele mesmo; do
desejo pelo prazeroso ao desejo pelo que bom e prazeroso. O desejo educado aquele
cujo objeto particular realizvel aqui e agora tambm uma expresso do desejo pelo
fim ltimo, i.e., pela virtude e felicidade. Enfim, a aquisio de virtude condio
prvia necessria para a realizao da racionalidade prtica em seu grau mximo de
22
autonomia, de modo que ela seja capaz de ver o fim correto e persuadir o desejo a
busc-lo, assim como deliberar sobre os melhores meios para realiz-lo10
. Por isso,
podemos dizer, sem hesitao, que a finalidade da educao moral tornar prtica a
funo judicativa da razo, de modo que ela possa atuar sobre o desejo e ser
efetivamente causa coadjuvante na constituio do fim. A educao, como vimos, torna
a razo prtica correta, participativa, orientadora do desejo e este, por sua vez, torna-se
mais capaz de ser conforme a razo.
A funo judicativa da razo prtica, uma vez vindo a ser reta, capaz de
discriminar corretamente as circunstncias particulares de modo a encontrar o meio
termo a ser almejado na ao. Esta retitude discriminativa, esta justeza e agudeza na
apreenso do fim apenas podem ocorrer naquele que est previamente preparado em
termos afetivos, i.e., que seja afetivamente capaz de ver o melhor. Ou seja, o bom uso
da razo est condicionado a um bem-estar afetivo. Trata-se antes de ser afetivamente
capaz de ajuizar corretamente do que de ser racional o suficiente para dominar os afetos.
Ou seja, para ver o que bom a ser feito preciso querer ver desse modo. preciso ter
um carter virtuoso para ver por si prprio o melhor. Por isso, o carter se expressa no
apenas no que o sujeito faz, mas tambm no que ele deseja fazer e v que deve fazer.
Por exemplo, trata-se de ser colrico o suficiente para saber bem se vingar ou se
defender de uma ofensa; de ser temperante o suficiente, i.e., na justa medida, para
desfrutar moderadamente e no momento oportuno de prazeres sadios; trata-se de ser
bem disposto a enfrentar a dor de modo a ver o que corajoso a ser feito; trata-se de ter
uma sensibilidade moral prpria da disposio generosa para perceber que uma dada
situao exige uma ao generosa; e assim por diante com relao s outras virtudes
particulares e suas respectivas emoes. Podemos inferir que preciso haver
engajamento afetivo para que a ao seja propriamente virtuosa. Enfim, a razo s v o
que certo porque estamos afetivamente propensos a ver.
Podemos resumir e concluir esta introduo do seguinte modo: a tica de
Aristteles uma tica da ao, pois, como diz o filsofo, no basta querer (boulsis)
mudar para se mudar de fato; assim como no basta ao doente simplesmente querer se
curar e no fazer nada para tanto11
; deve-se agir para tanto, ou seja, deve-se educar o
desejo para o meio termo. A ao, portanto, a principal via de acesso da razo ao
desejo. Desse modo, vimos que dois momentos distintos so estabelecidos: um em que
10
Como diz o filsofo: este olho no adquire sua qualidade sem a virtude, como falamos (EN VI 12: 1144a29-33). Ver tambm 1144b10-13 e b30-33. 11
Cf. EN III 5: 1114a13-15.
23
o desejo ainda no foi educado e outro em que ele passou a ouvir e obedecer razo. E
isto na medida em que nascemos desprovidos de virtude e passamos, por hbito, a
adquiri-la. Educar o desejo no seno tornar-se moralmente virtuoso. Ademais, como
o desejo naturalmente a busca indiscriminada por prazer e a recusa de qualquer dor,
educar o desejo significa ter prazer e dor com o que se deve, como e quando se deve. O
desejo, uma vez educado, tem como fim o bem agir (he gar eupraxia telos), a boa
atividade apreendida pela funo judicativa da razo (EN VI 2: 1139b4-5). O desejo no
educado, por sua vez, prprio das crianas e dos animais e daqueles que vivem
cegamente segundo os afetos, sem ter ideia do que belo e verdadeiramente prazeroso
(EN X 8: 1179b11-16), enfim, so aqueles que visam o prazer de modo insacivel e
indiscriminado: os adultos viciosos, como o perverso e o intemperante, e aqueles que
ainda no so propriamente virtuosos nem viciosos: os controlados e os descontrolados.
III. Estrutura da tese
A tese, Prazer e desejo em Aristteles, divide-se em duas partes. A primeira se
chama O prazer segundo Aristteles e a segunda, O desejo segundo Aristteles.
Resumidamente, examinaremos, na segunda parte, o que significa a educao do desejo,
este habituar-se a desejar o que correto. Para tanto, faz-se necessrio examinar, na
primeira parte da tese, o modo pelo qual o objeto de desejo pode e deve depender do
bom julgamento para ser constitudo e no ser simplesmente determinado a partir do
que nos aparece como prazeroso.
Veremos, com a anlise dos dois Tratados sobre o prazer, que tudo o que
Aristteles quer com sua concepo de prazer garantir que o objeto de desejo seja
realmente prazeroso porque bom e no o contrrio: que seja bom porque prazeroso.
O que prazeroso realmente assim por ser bom de fato. H, portanto, identidade entre
prazer natural ou conforme a reta razo e bem verdadeiro. O que vil pode dar prazer,
mas apenas um prazer antinatural ou contrrio reta razo.
Uma vez tendo examinado essas questes referentes ao prazer na primeira parte
da tese, temos garantida a possibilidade do desejo ser educado, visto que a tese anti-
hedonista do prazer como um mal em absoluto foi refutada pelo filsofo em seus dois
Tratados sobre o prazer, o desejo pode passar a considerar prazeroso o que
verdadeiramente um bem.
24
Como, porm, essa educao ocorre o que veremos na segunda parte da tese.
Trataremos da relao entre desejo e razo na formao do carter virtuoso, o que
implica compreender de que modo a estrutura da alma humana e sua dinmica natural
possibilitam razo atuar sobre o desejo. Uma vez sabendo qual a condio de
possibilidade do desejo ser educado, veremos como essa possibilidade se realiza em
termos gerais e se expressa em cada virtude particular.
25
PRIMEIRA PARTE
O PRAZER SEGUNDO ARISTTELES
26
CAPTULO I
Anlise conceitual do prazer
1.1. Introduo
Segundo Aristteles, o prazer o objeto natural do desejo e, visto que educar o
desejo significa criar o hbito de ter prazer com o que se deve, como e quando se deve,
ento devemos compreender qual a concepo aristotlica de prazer e em que sentido
podemos afirmar que ela permite que o desejo possa ser educado. Isso porque como
preciso ter bons desejos, ento preciso ter prazer com o que bom; logo, o prazer deve
poder ser bom em algum sentido. No parece ser, portanto, sem sentido o fato de o
filsofo ter defendido uma tese hedonista moderada, em que o prazer, embora no seja o
bem, possa ser um bem, uma vez que esteja acompanhando uma boa atividade.
Certamente, o prazer no poderia ser o bem supremo, pois ele causa necessria, mas
no suficiente da felicidade, como declaradamente dito no primeiro livro da tica
Nicomaqueia. Por outro lado, se o prazer fosse um mal em absoluto, ele no poderia ser
considerado uma das causas da felicidade e jamais poderamos ter prazer, portanto,
desejo pelo que bom. O projeto da educao do desejo, por conseguinte da aquisio
da virtude, frente ao anti-hedonismo e ao hedonismo extremos, estaria fadado ao
fracasso e j no poderamos conceber a tica aristotlica como uma tica das virtudes.
Tendo em vista este horizonte descrito acima, no primeiro captulo da primeira
parte da tese, a nossa investigao consistir em mostrar como Aristteles critica as
opinies anteriores sobre o prazer de modo que ele possa defender a tese de que o prazer
no o bem ou o mal em absoluto, mas que, cumpridas certas exigncias, ele possa ser
considerado um bem. Pretendemos sobretudo verificar em que sentido a definio da
natureza do prazer fundamental para refutar a tese anti-hedonista. Ademais, no
27
deixaremos de elencar alguns dos principais problemas filosficos suscitados a partir da
anlise de ambos os Tratados sobre o prazer.
Em seguida, no segundo captulo da primeira parte da tese, nos dedicaremos a
elaborar interpretaes a respeito do que consideramos os principais problemas ticos
que envolvem tanto a definio como o papel do prazer para a aquisio e exerccio da
virtude. Tendo em vista tanto a determinao da natureza, como o papel moral do
prazer, far-se- necessrio esclarecer a relao entre desejo e prazer e, neste ponto, nos
direcionaremos para uma tese de maior flego filosfico, a saber: a possibilidade da
educao do desejo. No se trata de dar conta dessa tese por inteiro neste primeiro
momento, mas de esclarecer, a partir da concepo aristotlica de prazer, alguns
elementos constitutivos do desejo que fundamentam a possibilidade de ele ser educado.
Em linhas gerais, sabemos que o prazer o objeto natural do desejo, pois todo
objeto se constitui enquanto objeto de desejo na medida em que ele se mostra sob a
forma de um bem, e tomar algo como um bem ou um mal implica considerar o prazer e
a dor que acompanham ou que podero acompanhar tal objeto. Sendo assim, a
considerao sobre o que prazeroso parece constituir o objeto de desejo. Ou seja, se
algo me aparece como prazeroso, ele tambm ser considerado como um bem para
mim; ento necessariamente ser objeto de meu desejo. A razo essencial disto, a meu
ver, que o prazer acompanha todo objeto de desejo, i.e., tudo o que desejvel
necessariamente prazeroso. Nas palavras do filsofo:
Como so trs os objetos de busca e trs os de fuga o belo, o proveitoso e o agradvel
e trs contrrios o feio, o danoso e o penoso -, o homem bom correto a respeito de
todos eles, mas sobretudo a respeito do prazer, pois este comum aos animais e
acompanha a tudo o que cai na rubrica busca (hairesin)12
, pois o belo e o proveitoso so
manifestamente prazerosos (EN II 3: 1104b30-1105a1).
Parece ser evidente a tese de que o objeto natural do desejo o prazer, porm,
no parece ser to claro que o prazer possa ser um bem de fato, embora seja necessrio
12
Entendo hairesin como objeto de busca, embora seja comumente traduzido por objeto de escolha, pois
os animais no escolhem, mas buscam algo na medida em que o desejam. Portanto, hairesin, neste
sentido, o mesmo que perseguir ou buscar o objeto desejado e no uma operao racional de eleio de
um objeto antes que outros. Como razo suplementar para justificar esta traduo, cito Zingano: A expresso para objetos de busca ta eis tas haireseis e a tentao grande de traduzir por objetos de
escolha, mas a noo de hairesis est frequentemente associada e mesmo assimilada diokton,
tipicamente objeto de busca (cf. I 5 1097a30-34; VII 10 1151b1), o que sugere fortemente a trat-la como
um sinnimo desta. A vantagem tambm conceitual, pois, como Aristteles insiste, toda escolha diz
respeito a um meio, enquanto o objeto de busca um fim a partir do qual deliberamos sobre os meios (ZINGANO, M. Ethica nicomachea I 13 - III 8: Tratado da Virtude Moral, ed. Odysseus, So Paulo,
2008, nota 1104b30-31). Deixo registrado aqui que utilizarei de sua traduo, com possveis
modificaes, para todas as outras passagens referentes ao Tratado da Virtude Moral: EN I 13 III 8: 1102a5 1115a3.
28
que ele assim possa ser. Do contrrio, se ele no puder um bem, se o anti-hedonismo
prevalecer, ento o projeto aristotlico da educao moral, como dissemos, estaria
fadado ao fracasso. Aristteles certamente pressentiu esse dilema crucial e se ps a
defender, como veremos, um hedonismo moderado desde o primeiro livro da tica
Nicomaqueia.
Depois de ter definido o objeto de sua tica, a felicidade (eudaimonia),
Aristteles, no livro I, captulo 8 (1098b9-1099b8), passa a verificar a validade de tal
definio luz das opinies correntes. Ele nos diz que so trs as opinies que esto em
harmonia com a sua definio de felicidade. A primeira delas aquela que diz que o fim
se identifica com as aes ou atividades, pois estas so bens da alma. A segunda diz que
o homem feliz vive e age bem, pois a felicidade um tipo de viver e agir bem. Por fim,
a terceira opinio a de que a felicidade inclui de alguma maneira todas as
caractersticas que lhe foram atribudas, a saber: a virtude, a prudncia, a sabedoria, o
prazer e os bens exteriores. Alm de a felicidade envolver os bens supracitados e de ser
o exerccio da virtude e no apenas a sua posse, o filsofo acrescenta, em seguida, que a
vida daqueles que so felizes em si mesma prazerosa, pois a vida virtuosa em si
mesma prazerosa. Ao justificar tal afirmao, o filsofo demonstra que a felicidade
necessariamente envolve prazer e este ponto nos interessa sobremaneira. Vejamos o
trecho referido:
Ademais, a vida deles em si mesma prazerosa (kathhauton hdus), pois o ter prazer
da alma e para cada um lhe prazeroso aquilo que ele ama. Por exemplo, o cavalo
prazeroso para aquele que ama cavalos; o espetculo para aquele que ama assistir
espetculos; e, similarmente, as aes justas so prazerosas para os que amam a justia
e, em geral, as aes virtuosas para os que amam a virtude (philareti). Assim, para a
maioria os prazeres esto em conflito um com o outro, porque eles no so por natureza
prazerosos; enquanto para os que amam o belo (philokalois) so prazerosas as coisas
que assim so por natureza. A ao conforme a virtude deste tipo, na medida em que
ela prazerosa tanto para tais homens como em si mesma. A vida deles, portanto, no
necessita do prazer como uma espcie de ornamento, mas tem prazer em si mesma.
Alm do que j dissemos, o homem, portanto, que no frui das belas aes no nada
bom. Tampouco se chamaria justo aquele que no frui de aes justas; nem generoso
aquele que no frui de aes generosas e similarmente com as outras virtudes. Em sendo
assim, aes em conformidade com a virtude devem ser em si mesmas prazerosas. Mas
tambm so maximamente boas e belas, se o homem bom (spoudaios) as julga
corretamente, i.e., julga como j dissemos. A felicidade , portanto, o que h de melhor,
mais belo e prazeroso e essas qualidades no esto separadas como esto no epigrama
de Delfos o mais belo a justia/ e o melhor a sade;/ mas o mais prazeroso
conquistar o que amamos -, pois todas essas qualidades pertencem s melhores
atividades. E essas ou uma dessas a melhor de todas aquela que dizemos ser a
felicidade (1099a7-30).
29
Neste trecho, o estagirita mostra como a sua concepo de felicidade se
harmoniza com a opinio de que ela em si mesma prazerosa (1099a7-10); e, portanto,
no seria possvel admitir que o prazer seja mero ornamento que possa vir a ser
acrescido ou retirado facilmente da vida virtuosa. Ao negar que o prazer seja apenas um
ornamento eventual vida virtuosa, o filsofo mostra que (i) a ao virtuosa por
natureza prazerosa e o virtuoso necessariamente sente prazer ao realiz-la (1099a17-21);
(ii) alm de ser prazerosa, tal ao boa e bela em mais alto grau (1099a22-25) e (iii)
que a inscrio de Delfos falsa (1099a25-31).
Segundo a inscrio de Delfos, o belo, o melhor e prazeroso aparecem
separados. Porm, como afirma Aristteles, essas propriedades qualificam uma mesma
atividade, que a melhor dentre todas: a atividade segundo perfeita virtude. Como a
felicidade a melhor e mais bela atividade e, por isso, amamo-la acima de tudo o mais,
conquist-la proporciona o mximo de prazer. Isso significa que o prazer advm da
realizao de um certo tipo de atividade e no de qualquer atividade que seja: trata-se da
boa e bela atividade conforme o julgamento do homem bom e no conforme o prazer
que ela necessariamente implica (1099a22-25). Com isso, o prazer obtido depende da
realizao de aes boas e belas que, por sua vez, dependem do bom julgamento do
virtuoso. exatamente esta concepo de felicidade como a atividade mais prazerosa
que nos interessa.
No incio do trecho citado acima (1099a7-30), o filsofo postula que a vida
deles, dos virtuosos, em si mesma prazerosa13
. E isso por dois motivos: primeiro
porque ter prazer prprio da alma (1099a8)14
, e, em segundo lugar, porque aes
conforme a virtude so prazerosas em si mesmas e para os que amam a virtude.
Quanto ao segundo motivo, sabemos que a virtude e todas as outras coisas
prazerosas por natureza so aquelas que realizam a funo prpria do homem (ergon)15
e preservam a sua racionalidade. Por isso, o que realmente prazeroso assim o em si
mesmo e para quem o sente, e o que bom assim o em si mesmo e para os que amam
o que bom, i.e., para os que possuem uma boa disposio. Isso se explica pelo fato de
13
Que a vida e o prazer so inseparveis, uma vez que o prazer aperfeioa a vida ser explicado no segundo Tratado do prazer: X 4, em 1175a16-21. 14
Que o prazer no do corpo, mas antes da alma tambm dito no segundo Tratado do prazer: X 3, em 1173b9-11. 15
A funo prpria do homem determinada em EN I 7 como aquilo que apenas o homem pode exercer, a saber: a racionalidade, a atividade da alma segundo a razo (1098a7).
30
haver tanto o bem em si (hapls), como o bem para mim (hauti) ou fenomnico. Do
mesmo modo, h tanto o prazer hapls, como o prazer hauti16
. Com efeito,
o homem virtuoso julga corretamente cada coisa e em cada uma a verdade se manifesta
a ele, pois h coisas belas e prazerosas prprias a cada disposio e presumivelmente o
homem virtuoso se distingue sobretudo pelo fato de ver o verdadeiro em cada coisa,
como se fosse um padro e uma medida17
delas (EN III 4: 1113a31-4).
Por isso, o que bom por natureza o que para o homem bom (spoudaii) e
tambm em si mesmo bom e prazeroso (EN IX 9: 1170a15). Quanto a esta concluso
preciso ressaltar que no o que bom para o virtuoso que bom em si mesmo, mas
exatamente o contrrio: o que bom em si mesmo assim parece ser bom para o virtuoso
justamente porque ele capaz de julgar corretamente o que a situao determina como
sendo o melhor a ser feito. Ora, sabemos que o realismo aristotlico no complacente
com a mxima de Protgoras de que o homem a medida de todas as coisas, pois,
para ele, a medida do que bom dada pelas circunstncias da realidade e o virtuoso
justamente aquele que capaz de apreender verdadeiramente o que realmente bom.
Por isso, assim como o bem tanto em si mesmo como para quem o toma como tal, a
ao virtuosa em si mesma prazerosa e para quem a toma como prazerosa, ou seja,
para quem ama agir virtuosamente. Ela no prazerosa em si mesma por assim parecer
ser ao virtuoso. Ao contrrio, ela prazerosa para o virtuoso por assim ser em si mesma
ou por natureza. Ademais, quem no tem prazer com o que prazeroso por natureza ou
est com sua natureza debilitada18
ou no pode ser considerado virtuoso por excelncia.
Afinal, o homem que no frui das belas aes no nada bom19. Para o virtuoso,
portanto, a ao correta no feita devido ao prazer, mas certamente com prazer.
Sendo assim, se a ao virtuosa pode ser por natureza prazerosa e boa, isso
significa que o prazer pode ter como objeto algo que seja bom, logo ele mesmo no
poderia ser considerado um mal em absoluto. Pois bem, veremos que o esforo que
Aristteles empreender nos dois Tratados do prazer ser o de demonstrar que o prazer
e, portanto, a sensao prazerosa so, em certo sentido, um bem.
Com efeito, ao ter dito que (i) o prazer prprio da alma, que (ii) os bens da
alma so bens por excelncia e acima de todos os outros (kuritata kai malista agatha)
e que (iii) tais bens so as aes e as atividades relativas alma, podemos concluir que o
16
Cf. EN VIII 2: 1155b21-3. 17
Sobre o spoudaios ser como uma medida (metron), ver tambm EN IX 4: 1166a13. 18
Como veremos adiante na anlise de EN VII 12. Ver tambm X 5: 1176a20-24. 19
Temos aqui uma antecipao da tese de que o prazer um sinal (semeion) do tipo de disposio, tal qual est presente em EN II 3: 1104b4 e ser por ns analisada no segundo captulo, Problema II.
31
prazer, sendo prprio da alma, dever ser considerado uma atividade da alma, portanto,
um bem. Esta, como veremos, ser justamente a definio de prazer do primeiro
Tratado, a saber: uma atividade desimpedida de nosso estado natural.
Enfim, como podemos constatar desde o incio da tica Nicomaqueia, o prazer
tem que ser considerado um bem, visto que tanto a felicidade, como a virtude so bens e
so coisas naturalmente prazerosas. Ora, como poderamos desejar ser virtuosos e
felizes, se o nosso desejo, cujo objeto natural o prazer, estivesse fadado a desejar
coisas ruins? Se tudo o que desse prazer tambm fosse condenvel, ento tudo o que
pudssemos desejar tambm o seria. O desejo jamais teria como objeto um bem; o que
implica dizer que jamais teramos bons fins desejados por eles mesmos e que a
aquisio da virtude deveria ser considerada impossvel ou, o que d no mesmo, intil.
Se nenhum prazer pudesse, por princpio, ser bom, seria impossvel educar o desejo a
ter prazer com o que bom. Seria tambm intil educar o desejo se ele no fosse
educvel, se ele no pudesse ter como objeto o que correto, bom, saudvel. Para
Aristteles, tal possibilidade pressuposta conforme a sua concepo de natureza
humana. Por isso, o fundamento da educao moral se encontra no fato de que a nossa
natureza educvel, ou seja, que o prazer pode ser um bem sob certas condies e o
desejo pode ser capaz de ter prazer com o que verdadeiramente bom. Tendo isto em
vista, a nossa tese a de que a educao do desejo no apenas possvel, como de
extrema importncia para que a ao tica possa se fundar e se fundamentar na virtude.
Caso contrrio, se a virtude no existisse ou no pudesse ser adquirida, no seramos
naturalmente capazes de nos tornarmos virtuosos, nem a tica aristotlica teria como
paradigma o homem virtuoso, cuja racionalidade suficientemente capaz de decidir o
que melhor a ser feito na particularidade da ao. Em suma, a tica aristotlica no
seria uma tica das virtudes.
1.2. Anlise do Primeiro Tratado do prazer
Entendemos como o primeiro Tratado do prazer aquele presente no livro VII da
tica Nicomaqueia (EN VII 11-14: 1152b1-1154b34), que comum tica Eudmia
(EE), assim como os livros V e VI. Apenas o denominamos primeiro por ser primeiro
na ordem da anlise, e no por ser cronologicamente anterior ao segundo Tratado, pois
parece no haver nenhuma informao contundente que possa datar os dois Tratados.
Reconheceremos apenas que, pelo fato de ser um livro comum, parece plausvel que, ao
32
ser estilisticamente mais prximo da EE, ele pertena originalmente EE, como sups
Kenny20
. Todavia, no pretendemos comprovar tal plausibilidade, mas apenas admiti-la
como provvel. Passemos substncia mesma: a anlise conceitual do primeiro
Tratado, de modo a evidenciar a concepo hedonista moderada de Aristteles, sem
deixar de trazer ao lume do texto os problemas implicados nesta concepo.
Aps ter examinado o fenmeno da acrasia, do captulo primeiro ao dcimo do
livro VII, que consiste justamente no fracasso moral diante da fora dos apetites
excessivos e contrrios reta razo, no de se surpreender que o prazer e a dor,
enquanto elementos constituidores e determinantes da ao moral, sobretudo do erro
moral, sejam agora abordados por Aristteles. No final do livro, encontramos o seguinte
resumo: Ns j discutimos o controle (encrateia) e o descontrole (acrasia), tambm o
prazer e a dor, o que so ambos e em que sentido alguns so bons e outros ruins; resta
falar da amizade (EN VII 14: 1154b32-4).
O primeiro Tratado, portanto, tem como objetivo saber o que o prazer e em que
sentido ele um bem. O seu objeto o prazer por duas razes: a primeira que toda
ao acompanhada de prazer ou dor, portanto somos sempre orientados a agir
conforme o prazer e a dor que sentimos; uns mais, outros menos. Ou seja, o prazer
funciona como uma espcie de fator motivador determinante da ao; ou, como diz o
filsofo, uma medida determinante, pois medimos as aes, uns mais, outros menos,
pelo prazer e pela dor (EN II 3: 1105a4). A segunda razo a de que os prazeres e as
dores nas aes so sinais das disposies (EN II 3: 1104b4-5). Isso significa que ter
prazer ou dor, ao agir desse modo ou de outro, sinaliza (semeion) o tipo de carter de
quem age. Em outras palavras, o prazer parece ser um sinalizador do tipo de carter do
agente. Por isso, o estudo do prazer se faz necessrio na medida em que revela a
disposio virtuosa ou viciosa do agente.
Comumente ns agimos mal por causa do prazer e nos apartamos do bem por
causa da dor. Sendo assim, evidente que ter prazer e dor com o que se deve ter
constitui propriamente o carter virtuoso21
. Ora, o virtuoso justamente aquele que
sente prazer com o que se deve sentir e como se deve, que no busca os prazeres
indevidos ou indevidamente desejados, e que tambm sabe enfrentar ou evitar as dores
corretamente. Em outros termos, o virtuoso aquele que toma como prazeroso o que
verdadeiramente um bem. Sabemos que com relao ao prazer que algo tido como
20
Kenny, A., The Aristotelian Ethics, Oxford, 1978. 21
Cf. EN II 3: 1104b8-11.
33
sendo bom ou mau, ou seja, algo considerado bom ou mau para quem o percebe como
prazeroso ou desprazeroso. Para o homem bom as boas coisas lhe aparecem como
prazerosas e para o homem mau, as ms22
. Ademais, a maioria diz que a felicidade
com prazer (methhdons), opinio com a qual concorda o filsofo, mas a sofistica: a
felicidade no devido ao prazer, mas com prazer, portanto cabe investigarmos como
esta conjuno se realiza. Em poucas palavras, eis a justificativa de Aristteles para a
sua investigao sobre o prazer: visto que o carter se constitui pelas aes e estas so
motivadas pelo que tomamos como prazeroso, ento devemos investigar o prazer.
Aristteles primeiramente expe as trs opinies conflitantes sobre o valor moral
do prazer. Alguns defendem que o prazer deve ser evitado absolutamente, visto que
um mal per se ou per accidens. Esta posio radicalmente anti-hedonista, como
veremos, ser a de Espeusipo (1153b5-7). Outros dizem que o homem deve dominar,
controlar, refrear os seus apetites (epithumiai)23
, visto que seno todos, com certeza a
maioria dos prazeres m. Esta opinio se justifica pelo fato de haver certos prazeres
que so vergonhosos e censurveis, bem como outros tantos que so nocivos (1152b21-
22). A justificativa parece referir-se concepo que Plato expressa em seu dilogo
Filebo (13b)24
, se entendermos que a maioria dos prazeres nocivos corporal. Por fim, a
posio menos radical, que tambm aparece no final do dilogo referido25
e com a qual
parece concordar Aristteles em seu segundo Tratado, a de que o prazer no poderia
ser o bem supremo, mesmo que todos os prazeres fossem bons. Esta ltima opinio se
contrape concepo hedonista extremada sustentada por Eudoxo (1172b9), que
acredita que o prazer seja o bem por excelncia.
Resumidamente, h trs opinies que mediaro o exame crtico sobre a natureza
do prazer, servindo de fundo epistemolgico para a prpria concepo aristotlica de
prazer, a saber: uma opinio radicalmente anti-hedonista, outra estritamente hedonista e,
22
O mesmo diz Toms de Aquino em seu Commentary on Aristotles Nicomachean Ethics, ed. Dumb Ox Books, Notre Dame, 1993, lio XI, 1470: Com relao ao prazer, uma coisa denominada m, e outra, da mesma forma, boa. Um homem bom tido ser aquele que tem prazer por coisas boas. Um
homem mau, aquele que se deleita por coisas ms. 23
Gostaria de esclarecer, por questo de conveno, que optei traduzir o termo orexis por desejo; boulsis
por querer; epithumia por apetite, e thumos por impulso. 24
Para Gauthier (Lthique Nicomaque, tome II. Paris: Ed. Peeters, 2002), esta segunda opinio seria platnica, pois Plato, em Filebo (50e 53c; 66c), diz que os bons prazeres so apenas os da alma aqueles que nascem da apreenso das formas geomtricas, de certas cores, odores e sons e, sobretudo, da
cincia. J os prazeres ruins so os do corpo, e esses constituem a maioria dos prazeres. 25
Cf. Filebo 60d e ss. Aristteles atribui textualmente a Plato esta terceira opinio em EN X 2: 1172b29.
34
uma terceira, por assim dizer, moderada, da qual certamente se aproxima26
a viso do
estagirita.
O objetivo deste primeiro Tratado refutar a viso radicalmente anti-hedonista
com vistas a demonstrar que a felicidade pressupe o prazer e que, portanto, o bem
supremo no poderia incluir um mal em sua constituio; por isso, o prazer deve ser
considerado um bem. Isso significa que a concepo anti-hedonista est, por assim
dizer, mais distante da verdade do que a concepo hedonista. Mesmo porque
Aristteles faz uso do mesmo argumento do qual parte Eudoxo27
e que fundamenta o
seu hedonismo, a saber: o prazer naturalmente perseguido por todos os animais. Ora,
conceber que a natureza do animal busca algo que seja um mal para si parece ser um
contrassenso factual e terico, pois sabemos que, para o filsofo, a essncia (eidos) de
cada coisa busca naturalmente o seu bem prprio. Neste sentido, neste primeiro Tratado,
o principal alvo de Aristteles a concepo anti-hedonista. Assim, ele expe os
argumentos que sustentam tal concepo e, no captulo seguinte, passa a refut-los.
A opinio de que o prazer no um bem nem em si mesmo, nem por acidente,
pretende se sustentar pelas seguintes razes: em primeiro lugar, (i) como o prazer um
processo sensvel (genesis aistht) com vistas natureza, e (ii) o processo distinto do
fim do processo, pois o processo existe em vista do fim que, por sua vez, existe em vista
de si mesmo; (iii) o fim deve ser concebido como o bem ao qual visa o processo. Por
esta razo, o processo no um bem e o prazer, sendo um processo, tampouco poderia
ser um bem28
. Em segundo lugar, (i) como o temperante (sphrn) evita os prazeres29
e
(ii) ele quem serve de modelo para a busca do bem; por isso, o prazer no deve ser
considerado um bem. A terceira razo a de que o prudente (phronimos) busca o que
no penoso, e no o que prazeroso, logo, (i) se o prudente busca o bem e (ii) este
antes o que no penoso do que o que prazeroso, conclui-se que buscar o bem evitar
26
Toms de Aquino (1993, 1481), Festugire (Le Plaisir, Paris, 1946) e Joachim (The Nicomachean Ethics, Oxford, 1955) atriburam esta terceira opinio a Aristteles. Riel (Pleasure and the Good Life.
Boston: Brill, 2000), por sua vez, critica tal atribuio, pois a justificativa do prazer no ser o bem
supremo a de que ele um processo (genesis), o que certamente no pode ser um argumento
aristotlico. Acresce ainda, que esta concepo antes de Plato do que de Aristteles. Em concordncia
com Riel, dizemos que ela se aproxima apenas no que diz respeito sua postulao, i.e., o prazer no o
bem, embora possa ser um bem; porm, a sua justificativa no pode ser aristotlica. 27
Cf. EN X 2: 1172b9-10 e I 12: 1101b27-31. 28
Este argumento certamente de Plato, pois est presente em Filebo 53c-55c. Riel (2000, pg. 47) e Frede (Nicomachean Ethics VII 11-12: Pleasure. In Aristotle: Nicomachean Ethics, Book VII Symposium Aristotelicum. Ed. By Carlos Natali. Oxford: Oxford University Press, 2005, pg.189) tambm
localizam o argumento no dilogo referido. Ver tambm MM II 7: 1204b4-1205a7. 29
provvel que este argumento se refira ao dilogo Fedon (68c) de Plato, no qual ele afirma que o temperante evita os prazeres corporais, enquanto o intemperante busca tais prazeres a ponto de se tornar
escravo deles. Ver tambm Frede (2005, pg. 190).
35
o que penoso e no perseguir o prazeroso. A quarta razo a de que o prazer um
impedimento do exerccio do pensamento30
, e se o impede, ento ele deve ser
considerado no acidentalmente, mas essencialmente um obstculo para a realizao da
prudncia. Assim, (i) se prazer um impedidor da prudncia e (ii) nada que seja bom a
impediria, ento o prazer no poderia ser um bem. A quinta razo a de que, (i) como
todo bem produzido por uma arte (techn), e (ii) no h arte que produza o prazer,
segue-se que o prazer no poderia ser um bem31
. A sexta e ltima razo a de que, (i)
como as crianas e os animais perseguem os prazeres e (ii) eles no so capazes de
perseguir o bem que deve ser perseguido para o ser humano, isto seria um sinal de que o
prazer no poderia ser um bem ou o bem supremo.
Em seguida, no captulo 12, Aristteles passa a refutar as opinies de que o
prazer no um bem e que tampouco seria o bem supremo. A refutao da opinio de
que o prazer no um bem se baseia no argumento de que mesmo que o prazer seja um
processo (genesis), ainda assim um erro dizer que ele no um bem. Com efeito,
cometem tal erro aqueles que ignoram as seguintes distines. Em primeiro lugar, assim
como o bem tem um sentido duplo, i.e., absolutamente (hapls) ou relativamente (tini),
o seu contrrio, o mal, tambm o ter. Em segundo lugar, as naturezas (phuseis) e as
disposies (hexeis), quando aplicadas s categorias de bem ou de mal, esto abertas a
esse duplo sentido, bem como os movimentos (kineseis) e os processos (geneseis). Isso
porque os movimentos e os processos, por provirem de naturezas ou disposies
particulares, tambm podem ser aplicados a tais categorias.
Por isso, para o estagirita, preciso estabelecer certos matizes concepo do
prazer como um processo. Em primeiro lugar, alguns processos tidos como maus
absolutamente, podem ser bons relativamente e de fato escolhidos por algum32
. Em
segundo lugar, certos processos no so bons em absoluto, pois no so desejados em si
mesmo e nem relativamente, ou seja, eles no so geralmente desejados por algum,
embora possam ser desejados por algum em certa circunstncia e por certo tempo. Por
30
EN VII 11: 1152b16: empodion toi phronein hai hdonai. Esta tambm parece ser uma concepo do dilogo Fedon (66c) de Plato, pois, o fato de os prazeres impedirem o pensamento, como aqueles
prprios do estado apaixonado, justifica a tese de que seria um bem para alma se libertar do corpo. 31
Este argumento parece se referir ao dilogo Grgias (462a-465d) de Plato, em que a retrica e outras habilidades como a de cozinhar no so consideradas verdadeiras artes (technai), pois no produzem um
bem, mas servem apenas para deleitar. Ver tambm Frede (2005, pg. 191). 32
Aristteles no nos fornece nenhum exemplo, mas poderamos pensar em um remdio amargo que,
embora no seja em absoluto ou sem qualificaes algo bom, ele certamente bom para um paciente que
o necessite em seu tratamento. Outro exemplo ainda mais esclarecedor o ato de amputar uma parte do
corpo, pois a amputao pode ser boa para um corpo doente, mas seria ela boa para o corpo em sua
perfeita condio de natureza? Certamente, para o corpo enquanto tal, o corpo sadio, a amputao no
boa, mas apenas para um corpo que possui uma parte enferma que precisa ser retirada.
36
isso, o estagirita nos diz que eles so maus em absoluto e, em geral, relativamente, mas
no em determinada circunstncia e por certo tempo33
. Em terceiro e ltimo lugar,
alguns processos no so de modo algum bons e, portanto, no so realmente, mas
apenas aparentemente prazerosos, pois so acompanhados de dor e so buscados como
remdios para aliviarem a dor.
Com tais distines, o filsofo refuta a tese de que o prazer no poderia ser
considerado um bem, mesmo que ele seja compreendido como um processo ou
movimento. O cerne da refutao encontra-se no argumento de que o processo tambm
pode ser considerado um bem, seno em absoluto, ao menos relativamente. Donde se
conclui que dizer que o prazer um processo no implica necessariamente dizer que ele
no seja um bem, pois, mesmo que ele seja em absoluto um mal, ainda assim ele
poderia ser relativamente um bem. Em suma, como acabamos de ver, a partir do duplo
sentido de bem e mal, o filsofo refuta a tese de que o prazer deve ser tomado como um
mal em absoluto se identificado a um processo. Em seguida (1152b33-1153b8), uma
vez que o prazer no pode ser considerado um mal em absoluto, o filsofo pretende
estabelecer em qual sentido o prazer pode ser um bem.
Com o intuito de compreendermos em que sentido o prazer pode ser um bem
preciso antes conceber o que o bem. Certamente, para que o prazer possa ser um bem,
no poder prevalecer a concepo de Plato de que ele possa ser um processo de
restaurao (kathistasai), ou seja, um mero preenchimento de uma falta dolorosa,
portanto intrinsecamente misturado com dor34
. A resposta a esta inquirio de carter
platnico surge inesperadamente, sem justificativas ou pormenores aparentes.
Aristteles parte do pressuposto de que o bem tanto uma atividade (energeia), como
uma disposio (hexis)35
. Com tal pressuposto, podemos concluir que, de fato, assim
33
Aristteles tampouco nos oferece um exemplo que ilustraria uma situao deste tipo, mas poderamos
supor que, por exemplo, no bom em absoluto comer algo que ningum, por princpio, comeria, nem
mesmo uma pessoa em particular, mas apenas em uma situao de extrema necessidade, como seria o
caso em que preciso comer carne humana para sobreviver quando no h outra fonte de alimento
(Toms de Aquino tambm exemplifica com o ato de comer algo por extrema necessidade (1993,
1485)). 34
A definio do prazer como um mero preenchimento de uma falta dolorosa encontra-se no dilogo Grgias, 491e-500e. Tambm em Filebo, 31d-32a, o prazer consiste na reparao de um equilbrio ou no preenchimento de uma falta. Os exemplos que Plato costuma usar so os processos de saciao da fome
e da sede. Em MM II 7, Aristteles faz referncia explcita ao fato de que a concepo platnica do prazer
como um processo sensvel, portanto, corporal, implica pressupor que o prazer surge da dor por um
excesso ou falta, pois, como a falta e o excesso so penosos; ento, onde o prazer surge h dor (1204b12). Ver tambm o texto em que Dorothea Frede descreve as vrias concepes de prazer nos
dilogos de Plato (FREDE, D. Prazer e dor na tica aristotlica. In: KRAUT, R. Aristteles: A tica a
Nicmaco. Rio Grande do Sul: Artmed, 2009, pg. 236-253). 35
Veremos que, no segundo Tratado do prazer, a atividade no ser tida como um bem sem mais, pois ela
pode ser boa ou m, dependendo de qual seja a atividade em dadas circunstncias. Ademais, ser o
37
como pensavam seus oponentes, o processo, em si mesmo, no um bem, mas pode ser
acidentalmente um bem. Ou seja, ele ser apenas acidental e no realmente um bem. Se
for assim, ento o prazer concebido como um processo no poder ser essencialmente
um bem, mas apenas acidentalmente. Porm, Aristteles no concebe o prazer como um
processo, mas como podendo acompanhar um processo e, neste caso, enquanto
acompanhante, devemos dizer que ele um prazer acidental. Assim, o prazer deve ser
dito real enquanto uma atividade ou uma disposio e acidental enquanto acompanhante
de um processo. Veremos adiante que a natureza do prazer no pode ser concebida
como um processo de restaurao e sim como uma atividade. Nem mesmo os prazeres
que acompanham tal processo poderiam determinar a natureza do prazer, pois que tais
prazeres so acidentais. E o que significa ter acidentalmente um prazer?
Segundo Aristteles, o prazer acidental aquele que sentimos quando estamos
em processo de restituio ou reabilitao do nosso estado natural. Por isso, devemos
entender tal prazer como sendo concomitante (kata sumbebkos) ao processo
restaurador de nossa natureza (1152b34-35). Com efeito, um prazer sentido por algum
em estado de reabilitao no pode ser algo em absoluto, sem qualificaes (hapls), ou
por natureza (phusei) prazeroso (1153a6). Por exemplo, ningum sentiria prazer com
algo extremamente acido ou amargo a no ser que esteja doente. Tampouco algum
sentiria prazer em se aquecer com uma manta em um ambiente quente, se no estivesse
febril. Por isso, este tipo de prazer s pode ser assim considerado apenas relativamente a
algum que esteja doente ou em estado de debilidade e no em termos absolutos, i.e.,
ele no pode ser dito naturalmente prazeroso, mas sim acidentalmente, ou melhor,
concomitantemente ao estado de debilidade. Por isso, os prazeres que acompanham a
restaurao ou convalescena no so em si mesmo prazerosos, mas apenas para
aqueles que se encontram em tal estado, ou seja, podemos dizer que eles so
qualificadamente prazerosos.
H, portanto, dois momentos distintos: um em que o estado de natureza est
debilitado e o que bom ou prazeroso assim o em vista de se retomar a sade; e outro
momento em que o estado aquele em que a natureza se encontra em sua perfeita
condio, i.e., o indivduo est com o seu corpo e alma saudveis e o que lhe bom e
prazeroso expressa o bem e o prazer sem qualificaes ou por natureza. Uma pessoa boa
julgamento sobre o valor moral da atividade que servir de critrio avaliativo do prazer e no o fato de ele
ser uma atividade que determinar sua boa qualidade moral.
38
e saudvel certamente encontra seus prazeres no que por natureza prazeroso. Como
nos diz o filsofo:
Uma indicao de que o prazer acidental que ns no frumos das mesmas coisas
quando nosso estado natural est em processo de reabilitao como quando j est
reabilitado. Neste ltimo caso, frumos de coisas que so prazerosas em absoluto; mas
durante a reabilitao, frumos at mesmo de seus contrrios. Por exemplo, o cido e o
amargo no so nem por natureza nem absolutamente prazerosos, tampouco so os
prazeres por tais coisas (EN VII 12: 1153a3-6).
Por sua vez, aqueles que acompanham um estado de no debilidade so prazeres
por natureza ou em absoluto. Como define Aristteles, o prazer natural prprio da
atividade dos apetites que pertence disposio e natureza que permaneceram
preservadas (ts hupoloipou hexes kai phuses) (1152b35-36)36. Ele aquele que
sentimos quando exercemos atividades prprias nossa natureza em es
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