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Cidadania na cultura digital
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A CIDADANIA ANONYMOUS NAS MANIFESTAES EM
FERGUSON.1
Andr Senna2
Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em Comunicao e Prticas de Consumo da
Escola Superior de Propaganda e Marketing de So Paulo (PPGCOM ESPM)
Resumo
Este artigo discutir a prtica da cidadania exercida pelo movimento net-ativista
Anonymous, baseada em um estudo de caso sobre o apoio de seus integrantes s
manifestaes em Ferguson, ocorridas entre agosto e novembro de 2014.
Contextualizaremos tanto as origens controversas do movimento quanto do incidente que
motivou as manifestaes na cidade. Conceber a prtica cidad exige uma
contextualizao sobre a mesma; o faremos a partir das perspectivas de tericos da
comunicao e da sociedade de consumo contempornea. Com tais informaes em
mente, levantamos o cenrio: a cidadania se trata de um processo em constante adaptao
e evoluo, e a prtica cidad do Anonymous no foge regra; o movimento navega entre
noes individualistas e coletivistas inerentes contemporaneidade.
Palavras chave: Anonymous, Ferguson, cidadania, consumo, comunicao.
Introduo
As pginas a seguir abordaro as iniciativas do Anonymous em meio s revoltas
populares realizadas na cidade de Ferguson, localizada no estado norte-americano do
Missouri. Ferguson, desde agosto de 2014, palco de uma revolta (ver Figura 1) causada
pelo assassinato do jovem negro Michael Brown por um policial local.
1 Trabalho apresentado no GT 03: Comunicao e culturas populares, Simpsio Internacional de Comunicao e
Cultura: Aproximaes com Memria e Histria Oral, realizado na Universidade So Caetano do Sul, So Caetano do
Sul So Paulo, de 27 a 30 de abril de 2015.
2 Mestrando bolsista do Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em Comunicao e Prticas de Consumo da Escola
Superior de Propaganda e Marketing de So Paulo (PPGCOM ESPM). E-mail: andre.senna@espm.br.
Figura 1: Mulher segura placa com os dizeres Ns somos
Michael Brown em Ferguson sob presena policial. Fotografia
por David Broome (UPI).
Fonte: http://news.stlpublicradio.org/post/legal-debate-how-
ferguson-case-might-proceed
O incidente abriu espao para uma srie de protestos, saques e confrontos entre
populao e polcia na cidade, e incendiou os debates sobre abuso de autoridade,
discriminao e violncia racial. A tenso se desdobra na mdia; enquanto o segmento
conservador (como a rede de notcias Fox News) condena as manifestaes por
perturbarem a paz e a ordem, outras frentes (como movimentos net-avistas e veculos
alternativos) apoiam as manifestaes e as veem como necessrias para o despertar de
uma conscincia igualitria.
Tais manifestaes levantam questionamentos inevitveis sobre como se d a
participao dos indivduos na sociedade. Dentre essas discusses, destacaremos neste
trabalho as inciativas do Anonymous, movimento surgido no contexto da cibercultura. Os
Anonymous direcionaram seu apoio integral aos manifestantes de diversas formas, como
boicote aos servios pblicos de Ferguson, prticas hacker e participao direta nos
protestos.
O Anonymous tornou-se conhecido por atacar (de maneiras similares s
anteriormente mencionadas) instituies religiosas, grandes veculos de mdia e
organizaes estatais consideradas pelo coletivo como abusivas de poder.
Como analisado por Coleman (2012), os Anonymous integram ao mesmo tempo
um forte movimento net-ativista e uma manifestao inconveniente contra determinados
valores estabelecidos. Seus integrantes seguem uma srie de pressupostos ticos
atribudos a um valor liberal3: o da proteo da propriedade privada e da liberdade civil,
tolerncia e autonomia ao indivduo, imprensa livre e comprometimento oportunidade
igualitria e meritocracia (COLEMAN, 2013, p. 2).
Os reflexos dos princpios idealizados pelo movimento se do tambm nas
principais reivindicaes do movimento aos direitos civis na cibercultura: acesso livre
(ou muito facilitado) a informao e ao entretenimento, proteo privacidade e a luta
contra o abuso de poder e a censura.
Sob tal anlise, no de surpreender que o Anonymous posiciona-se
integralmente a favor dos manifestantes em Ferguson. Torna-se necessrio questionar,
porm, os rumos de tais iniciativas do movimento no que diz respeito ao desenvolvimento
de uma conscincia igualitria, to defendida pelos integrantes.
O desenvolvimento de uma conscincia igualitria por parte do Anonymous
envolve uma anlise sobre o sentir-se presente do indivduo na sociedade, atuante,
pertencente e construtor de um espao em que as pessoas possam autovalorizar-se e
respeitarem uns aos outros a partir da prtica da cidadania (CORTINA, 2005). Entender
o que a cidadania e como o Anonymous a enxerga mostra-se um caminho a ser trilhado
para analisar o senso de coletivismo do movimento.
Com efeito, este artigo ser dividido nas seguintes sesses: a discusso da prtica
cidad na sociedade contempornea (sob o conceito do net-ativismo do Anonymous);
uma contextualizao sobre o surgimento do Anonymous e sua relao com Ferguson;
um breve estudo de caso sobre os discursos do movimento nas manifestaes pr-Michael
Brown; e, por fim, uma considerao em processo acerca da cidadania praticada pelos
Anonymous.
Com este trabalho, pretendemos contribuir para o estudo de articulaes em redes
e formas de sociabilidade na internet alm de debater sobre o desenvolvimento da
prtica cidad promovido pelo net-ativismo na sociedade contempornea.
Cidadania: uma contextualizao terica.
3 A prpria Coleman (2013) reconhece que os ideais liberais tambm envolvem vises econmicas; alm
de representarem uma viso poltica da corrente democrata norte-americana. Para este artigo,
simplificaremos: ser abordada a corrente ideolgica do pensamento liberal.
Cortina (2005) afirma que a realidade da cidadania, o fato de saber e de se sentir
cidado de uma comunidade, pode motivar os indivduos a trabalhar por ela (p. 27). Em
primeira instncia, podemos inferir que o sentimento de ser cidado envolve conhecer os
princpios bsicos que regem o conceito de cidadania, alm da consequente garantia
destes por parte das instituies.
Os princpios acima relacionam-se diretamente aos direitos dos indivduos, como
o acesso ao conhecimento e s posses; ou seja, aos recursos que garantem a eles uma
participao adequada na vida em sociedade (TONDATO, 2010, p. 3). O ser cidado,
neste caso, expande-se das relaes de poder e passa a fazer parte do imaginrio do
cidado contemporneo.
Tondato (2014) entende que falar sobre a cidadania envolve tambm uma
discusso acerca da existncia humana na contemporaneidade:
Falar em cidadania implica trazer pauta temas fundantes da existncia
do ser humano como sujeito, agente e paciente, da coletividade.
Participar do coletivo exige o estabelecimento de identidades capazes
de atender ao que comum, sem, contudo nele perder-se, especialmente
numa poca em que, mesmo em mbitos de vivncia mais limitados e
restritos, somos afetados pelos movimentos de uma sociedade
globalizada economicamente e conectada tecnolgica e virtualmente.
(TONDATO, 2014, p. 198).
neste contexto que Tondato (2014) aponta dois aspectos importantes na
cidadania: a j citada compreenso da autonomia e solidariedade do sujeito-indivduo na
sociedade e, por outro lado, a relao deste indivduo-sujeito com as presenas objetivas
da mdia e do consumo.
O papel do consumo na cidadania necessrio de se entender pelo fato de os
tempos contemporneos formularem indivduos adaptados a uma sociedade de consumo
(BAUDRILLARD, 2007). Ao contextualizarmos os autores mencionados, os discursos
favorveis ao consumo elevariam o homem moderno encarnao ideal do espcime
humano, capaz de exercer sua virtuosidade a partir da liberdade que se consumir
(BAUMAN, 2008; SLATER, 2002). Endossa-se o individualismo e h um estmulo do
estilo de vida existencial pautado pelo consumo.
Bauman (2008) complementa que impossvel enquadrar-se na sociedade de
consumo sem a coero do ato em si ou seja no h discriminaes aos indivduos,
desde que no parem de consumir (p.73). Complementa o autor:
Ser membro da sociedade de consumidores uma tarefa assustadora,
um esforo interminvel e difcil. O medo de no conseguir conformar-
se foi posto de lado pelo medo da inadequao, mas nem por isso se
tornou menos apavorante. Os mercados de consumo so vidos por tirar
vantagem desse medo, e as empresas que produzem bens de consumo
so vidos por tirar vantagem desse medo [...], competem pelo status de
guia e auxiliar mais confivel no esforo interminvel de seus clientes
para enfrentar esse desafio (BAUMAN, 2008, p. 80).
Quando analisamos que os indivduos dialogam com a sociedade a partir do
carter simblico do consumo e da mercadoria (DOUGLAS & ISHERWOOD, 2004), a
cidadania tambm o faz; uma vez que a prtica do consumo no necessariamente leva
passividade dos indivduos, mas tambm os ajuda reflexo de seu papel na sociedade
(BACCEGA, 2010). O consumo serve para essa reflexo da prtica cidad, e exige a
participao dos indivduos nas articulaes entre Estado e o mercado (GARCIA
CANCLINI, 1995).
De qualquer forma, muitos Estados consideram que o necessrio para a prtica
cidad oferecer aos desfavorecidos as mnimas condies econmicas (como o bem-
estar) e polticas (como o voto) para que o pleno direito cidadania seja exercido afirma
Cerquier-Manzini (2010). O problema deste sistema, segundo a autora, reside no esforo
em privar destas classes uma abordagem reflexiva sobre o consumo, transformando-os
em seres passivos e conformados (p. 98).
Miller (2011) avalia que a abordar a cidadania contempornea envolve uma
abordagem os direitos econmicos e polticos aliados a uma espcie de cidadania cultural
- ou seja - oferecer aos cidados o direito comunicao, participao na democracia
e representao da diferena cultural (p. 57).
Com efeito, a constituio da experincia cidad no se trata apenas de algo
entendido e aplicado a priori, mas de um processo que envolve o conhecimento sobre a
participao dos indivduos no processo democrtico. Segundo Tondato (2014), a prtica
cidad se d como um processo: o envolvimento com o exerccio das relaes sociais e
no entendimento dos sujeitos, a partir da experincia e do hbito, do sentido de ser
cidado.
Ao analisarmos o Anonymous, entendemos que o movimento constitui as nuances
dos consumidores-cidados contemporneos: apropriam-se de prticas de consumo
subversivas para pregar ideais liberais (COLEMAN, 2013). Porm, ao contextualizarmos
a natureza do movimento, vemos que essa apropriao subversiva surgiu de ideais
distantes da conscincia igualitria. De tal forma, questionamos: como se constitui o ser
cidado no Anonymous?
Anonymous e Ferguson: a constituio do ser cidado.
Coleman (2013) aborda o Anonymous como uma entidade digital, com propsito
de existncia voltado ao net-ativismo contra as desigualdades, de extrema flexibilidade
hierrquica; um dos maiores movimentos da categoria a terem surgido na internet (p.
210).
H um consenso sobre as duas ltimas afirmaes (KELLY, 2012, p. 1678),
porm, ao analisarmos o documentrio We Are Legion: The Story of Hacktivists (2012) e
uma obra de autoria da prpria Coleman (2012), o trabalho de definir o movimento algo
muito mais complexo. Entend-lo passa a ser uma tarefa mais simples quando a sua
origem contextualizada.
O Anonymous, assim como a maioria dos movimentos net-ativistas, surgiu sem
grandes pretenses de angariar um nmero extenso de adeptos (SHIRKY, 2010). As
primeiras manifestaes do movimento so datadas junto ao nascimento do frum 4chan
website em que os usurios discutem e compartilham assuntos voltados ao humor
(especialmente o humor negro), cultura popular, arte, entre outros.
O site no exige cadastro para participao, o que permite aos usurios interagirem
entre si de forma annima e sem grandes censuras. Como a prpria plataforma indica,
Anonymous no se trata de uma pessoa, mas de uma representao de um coletivo de
usurios (4CHAN, 2014). Apesar de o site delimitar termos de participao, os
integrantes do 4chan guiam o contedo do site ao moderarem a si mesmos e a seus
colegas.
O 4chan foi um dos servios pioneiros em angariar um grande nmero de pessoas
falando sobre assuntos parecidos. Antes da participao poltica, os Anonymous do 4chan
apropriavam-se do trolling, gria da cibercultura a qual significa o escrnio direcionado a
outras pessoas pelo simples prazer em faz-lo. Os primeiros alvos do coletivo foram
algumas figuras pblicas (como Sarah Palin em 2008 na poca candidata a vice-
presidncia dos Estados Unidos) e veculos miditicos (como o New York Times e os
resultados de suas enquetes digitais manipuladas pelo coletivo).
O humor Anonymous impiedoso: no caso de Sarah Palin, um dos integrantes do
movimento vazou ao frum seus dados pessoais, como conta de e-mail e informaes
financeiras da candidata, no objetivo de degradar sua campanha. Dezenas de outros casos
similares mostram o quo implacvel a comunidade pode ser.
Diante de tal cenrio, muitos especialistas (COLEMAN, 2012; OLSON, 2012)
surpreendem-se quando o movimento Anonymous comea a ganhar carter de
participao poltica pela igualdade entre os indivduos. Sua primeira manifestao se deu
em 2008, ano em que o coletivo saiu s ruas (em diversas cidades ao redor do mundo) em
protesto aos abusos da Igreja da Cientologia4.
A forma de promover o boicote Igreja tornou-se marca registrada do movimento
nas operaes que prosseguiram a iniciativa: ataques DDoS de negao de servio5 ao
website da Igreja, invaso de contas de e-mail dos funcionrios, envio ininterrupto de
faxes s matrizes administrativas para gastar papel e envio de press-releases. Quanto mais
a instituio reprimia as aes, maior tornava-se o protesto; em poucas semanas, o
Anonymous desconectou-se da internet e foi s ruas ao redor do mundo, da mesma forma
que os ativistas convencionais o fazem (OLSON, 2012, p. 65).
Em 2010, os Anonymous atingiram notoriedade global com uma campanha
engajada em lanar ataques de paralisao a instituies financeiras e demais servios
que recusaram-se a intermediar doaes feitas ao WikiLeaks, site especializado em vazar
informaes confidenciais de governos ao redor do mundo. A operao, intitulada
Payback, abriu debates sobre a necessidade de transparncia das instituies e, de certa
forma, consolidou a viso libertariana promovida pelo Anonymous.
4 Na poca, a Igreja da Cientologia acionou judicialmente alguns tabloides e sites como o YouTube a tirar
do ar um vdeo em que o ator Tom Cruise pregava os ideais da religio. O caso motivou a ira dos usurios
da internet, que se divertiam-se em satirizar o material (OLSON, 2012, p. 63-65). 5 Ataques de negao de servio so uma tcnica hacker voltada a inviabilizar os servidores de um
website. Ela simples de ser feita e no exige grandes conhecimentos em computao; de tal forma, a
tcnica hacker mais popular dentre os net-ativistas.
Michel de Certeau (1998) descreve as tticas desviacionistas (p. 92) dos
consumidores-cidados. Segundo o autor, instituies representam estratgias, e buscam
perpetuar-se a partir daquilo que produzem e oferecem s pessoas e, portanto, necessita
convenc-los para sobreviver por meio da imposio de uma ordem e uma sistematizao.
(idem).
Segundo Certeau (1998) os indivduos representam as tticas de participao, ou
seja, fragmentados, sem hierarquias delimitadas e capazes de agruparem-se agilmente
para a resoluo de uma necessidade (p. 98). As tticas no apenas consomem como
apropriam-se do imaginrio construdo pelas instituies e atribuem a eles novos
significados.
Ao analisarmos o Anonymous e o protesto como um todo, a negao da
sistematizao se d no engajamento participao mais ativa dos indivduos na poltica,
na cultura e na economia um dos ideais da prtica cidad (CERQUIER-MANZINI,
2010; MILLER, 2011; TONDATO, 2010).
O Anonymous, portanto, luta pela sua concepo de cidadania por meio da
apropriao subversiva do consumo. Trata-se de um reflexo das tticas desviacionistas de
Certeau (1998): seus integrantes buscam a mudana sem clamar por revolues profundas
na estrutura da sociedade ocidental. H uma reivindicao pela prtica cidad por parte
do movimento, mas que cidadania essa?
Desde a virada da dcada, o Anonymous comprometeu-se em apoiar as mais
diversas manifestaes que clamam pela igualdade entre os indivduos. Em Ferguson, o
assassinato de Michael Brown acalorou discusses acerca do abuso de autoridade policial
e das discriminaes raciais.
Os habitantes de Ferguson foram s ruas protestar contra o abuso, e sofreram em
duas frentes: represlia policial e desdenho das reivindicaes por parte da mdia
conservadora norte-americana. Correntes alternativas mostram apoio ao movimento das
mais diversas formas; no caso do Anonymous, inicia-se a Operao Ferguson: apoio aos
manifestantes e represlia a quem posiciona-se contra eles.
Operao Ferguson: um estudo de caso.
O Anonymous apoiou as revoltas a partir de trs frentes: participao direta nas
manifestaes, prticas hacker e criao de plataformas de relaes pblicas,
concentradas no portal www.operationferguson.cf e no perfil do Twitter
twitter.com/OpFerguson. Ao analisar os discursos apropriados em cada frente de atuao,
encontramos uma delineao de cidadania a qual ainda est em processos de
amadurecimento.
1. Participao direta nas manifestaes e prticas hacker
Figura 2: Million Mask March. Protesto em Ferguson, novembro
de 2014. Fotgrafo deconhecido.
Fonte: http://www.operationferguson.cf/mmm.html
Em novembro de 2014, o policial envolvido no incidente foi absolvido por jri
popular, o que motivou protestos ainda mais intensos. Nesta mesma poca, o Anonymous
organizou o Million Mask March, iniciativa tradicional do movimento em outras
operaes voltada a fazer protestos considerados pacficos. Em paralelo, o coletivo
manteve o envolvimento com a invaso de contas de e-mail de funcionrios pblicos.
Em seu discurso6, os integrantes manifestam agradecimentos pela ajuda dos
Anonymous ao redor do mundo e exaltam a primeira marcha de sucesso realizada no
Estados Unidos. Ao longo do texto, defendem-se das crticas sobre a ilegalidade de seus
atos (como as invases de contas pessoais) e declaram que defendem exclusivamente o
ideal da liberdade e da colaborao.
Nesta anlise, entende-se que apesar de o movimento transparecer evidente
comprometimento em fazer as vozes de Ferguson serem ouvidas, h um domnio ambguo
acerca das apropriaes sobre o que faz parte da lei e o que no faz.
Segundo Certeau (1998), inferimos que as estruturas tticas da populao no so
capazes de subverter completamente as estratgias institucionais no tentam vencer ou
dominar, mas buscam preencher seus defeitos a partir do protesto e da ao social. O
6 O discurso introdutrio pode ser visto na ntegra a partir do link: http://pastebin.com/LVabXmPm
protesto dos Anonymous conforma tal cenrio a partir dessa apropriao ambgua dos
conceitos que regem a liberdade e a legalidade.
Se, por um lado, o movimento clama por uma participao mais direta da
populao nas polticas pblicas dentro da legalidade (ou seja, sem violncia), por outro
infringe a legalidade e o direito privacidade ao deliberadamente invadir contas pessoais.
Tal postura indica que o Anonymous ainda tem dificuldades para delinear a
conscientizao de seus valores, uma vez que apropriam-se dos valores liberais de
maneira contraditria.
2. As plataformas de relaes pblicas.
Em menos de uma hora aps a confirmao do assassinato de Brown, os
Anonymous iniciaram a Operao Ferguson, com a comunicao de suas iniciativas
concentradas em um site e em um perfil no Twitter. Chama a ateno, neste estudo, o
vdeo introdutrio7 (ver Figura 3) da operao disponvel no site.
Figura 3: Print screen do vdeo introdutrio da Operao
Ferguson. Caractersitca do movimento no mostrar nenhum
rosto.
Fonte: https://vimeo.com/104428198
No vdeo, o Anonymous descreve as atrocidades cometidas pela polcia tanto no
caso do assassinato quanto na maneira com que as foras locais lidam com os
manifestantes. Em seguida, critica a abordagem da mdia feita ao movimento e convida
7 Disponvel em: http://vimeo.com/104428198
os internautas ao redor do mundo a apoiar a causa: desliguem as suas televises e vo s
ruas.
O restante do material agrega imagens de veculos cobrindo as manifestaes, com
um discurso ao fundo que critica a passividade da democracia para com a corrupo. A
anlise sobre o vdeo nos permite encontrar outras apropriaes ambguas que o
Anonymous faz dos valores liberais.
Em primeira instncia, o Anonymous critica as abordagens que a mdia atribui ao
movimento. Em seguida, apropria-se das imagens produzidas por ela prpria (alm de
demais imagens amadoras) em seus vdeos. O movimento condena a postura da mdia,
enquanto ainda encontra dificuldades em disseminar os ideais Anonymous sem a sua
ajuda. O movimento desenvolve a conscincia da liberdade a partir da articulao entre a
prtica cidad e os discursos miditicos sem se preocupar em desenvolver manifestaes
integralmente congruentes.
Em ambos os breves estudos, a luta pelo Anonymous na prtica cidad se d,
essencialmente, nos mbitos polticos e culturais, a partir das delineaes de Miller
(2011). As principais reivindicaes da Operao Ferguson se do politicamente no ideal
da integrao das classes desfavorecidas (no caso, os negros); e culturalmente em relao
s classes como um todo, no que diz respeito ao acesso informao, distino cultural
e liberdade em fazer valer a sua voz.
Para o Anonymous, ser cidado refletir sobre a participao dos sujeitos na
sociedade, a partir do conhecimento e da colaborao mtua, para que tais sujeitos possam
considerar-se livres e respeitados.
H nitidamente um conflito entre individualismo e coletivismo em tal
apontamento, fruto, provavelmente, de uma concepo que ainda se encontra em
processos de amadurecimento e mais importante de uma sociedade individualista e
solitria por natureza (BAUMAN, 2008), e que apenas recentemente encontrou novas
maneiras de socializao em conjunto a partir das novas tecnologias de comunicao
(MCLUHAN, 1995; SHIRKY, 2010).
CONSIDERAES
Como afirma Tondato (2014), as prticas de pertencimento da cidadania se do,
em parte, a partir da relao dos indivduos com as estruturas da mdia e do consumo na
sociedade contempornea. Segundo a autora, a constituio indivduo-sujeito dialoga
com a sociedade do seu tempo, a partir das preferncias por determinadas prticas
culturais e por seus hbitos tanto na vida pblica como na privada.
Sob estes hbitos Coleman (2012) contextualiza o Anonymous: indivduos-
sujeitos da modernidade, divididos entre individualismo e coletivismo, convivendo com
suas contradies e prticas instveis de sociabilidade. Como nos relembra Certeau
(1998), os indivduos tticos no levam a uma imediata revoluo, mas, a partir do
questionamento, resoluo de anseios pontuais.
Como se d a prtica cidad neste contexto? Nem o prprio Anonymous a domina.
Porm, como aponta Cortina (2005) e Tondato (2014), a cidadania no algo aproprivel
de imediato, e sim um resultado de conhecimentos adquiridos em conjunto; trata-se de
um processo, em constante amadurecimento e que objetiva a integrao dos indivduos-
sujeitos no ambiente em que vivem. Seria capaz o Anonymous de valorizar a coletividade
em uma sociedade individualizada? Para tal, o prprio Anonymous precisa amadurecer o
seu senso de coletividade.
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