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A CIDADANIA ANONYMOUS NAS MANIFESTAÇÕES EM FERGUSON. 1 André Senna 2 Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Comunicação e Práticas de Consumo da Escola Superior de Propaganda e Marketing de São Paulo (PPGCOM ESPM) Resumo Este artigo discutirá a prática da cidadania exercida pelo movimento net-ativista Anonymous, baseada em um estudo de caso sobre o apoio de seus integrantes às manifestações em Ferguson, ocorridas entre agosto e novembro de 2014. Contextualizaremos tanto as origens controversas do movimento quanto do incidente que motivou as manifestações na cidade. Conceber a prática cidadã exige uma contextualização sobre a mesma; o faremos a partir das perspectivas de teóricos da comunicação e da sociedade de consumo contemporânea. Com tais informações em mente, levantamos o cenário: a cidadania se trata de um processo em constante adaptação e evolução, e a prática cidadã do Anonymous não foge à regra; o movimento navega entre noções individualistas e coletivistas inerentes à contemporaneidade. Palavras chave: Anonymous, Ferguson, cidadania, consumo, comunicação. Introdução As páginas a seguir abordarão as iniciativas do Anonymous em meio às revoltas populares realizadas na cidade de Ferguson, localizada no estado norte-americano do Missouri. Ferguson, desde agosto de 2014, é palco de uma revolta (ver Figura 1) causada pelo assassinato do jovem negro Michael Brown por um policial local. 1 Trabalho apresentado no GT 03: Comunicação e culturas populares, Simpósio Internacional de Comunicação e Cultura: Aproximações com Memória e História Oral, realizado na Universidade São Caetano do Sul, São Caetano do Sul São Paulo, de 27 a 30 de abril de 2015. 2 Mestrando bolsista do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Comunicação e Práticas de Consumo da Escola Superior de Propaganda e Marketing de São Paulo (PPGCOM ESPM). E-mail: [email protected].

A cidadania Anonymous Nas Manifestaçõesem Ferguson

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Cidadania na cultura digital

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  • A CIDADANIA ANONYMOUS NAS MANIFESTAES EM

    FERGUSON.1

    Andr Senna2

    Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em Comunicao e Prticas de Consumo da

    Escola Superior de Propaganda e Marketing de So Paulo (PPGCOM ESPM)

    Resumo

    Este artigo discutir a prtica da cidadania exercida pelo movimento net-ativista

    Anonymous, baseada em um estudo de caso sobre o apoio de seus integrantes s

    manifestaes em Ferguson, ocorridas entre agosto e novembro de 2014.

    Contextualizaremos tanto as origens controversas do movimento quanto do incidente que

    motivou as manifestaes na cidade. Conceber a prtica cidad exige uma

    contextualizao sobre a mesma; o faremos a partir das perspectivas de tericos da

    comunicao e da sociedade de consumo contempornea. Com tais informaes em

    mente, levantamos o cenrio: a cidadania se trata de um processo em constante adaptao

    e evoluo, e a prtica cidad do Anonymous no foge regra; o movimento navega entre

    noes individualistas e coletivistas inerentes contemporaneidade.

    Palavras chave: Anonymous, Ferguson, cidadania, consumo, comunicao.

    Introduo

    As pginas a seguir abordaro as iniciativas do Anonymous em meio s revoltas

    populares realizadas na cidade de Ferguson, localizada no estado norte-americano do

    Missouri. Ferguson, desde agosto de 2014, palco de uma revolta (ver Figura 1) causada

    pelo assassinato do jovem negro Michael Brown por um policial local.

    1 Trabalho apresentado no GT 03: Comunicao e culturas populares, Simpsio Internacional de Comunicao e

    Cultura: Aproximaes com Memria e Histria Oral, realizado na Universidade So Caetano do Sul, So Caetano do

    Sul So Paulo, de 27 a 30 de abril de 2015.

    2 Mestrando bolsista do Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em Comunicao e Prticas de Consumo da Escola

    Superior de Propaganda e Marketing de So Paulo (PPGCOM ESPM). E-mail: [email protected].

  • Figura 1: Mulher segura placa com os dizeres Ns somos

    Michael Brown em Ferguson sob presena policial. Fotografia

    por David Broome (UPI).

    Fonte: http://news.stlpublicradio.org/post/legal-debate-how-

    ferguson-case-might-proceed

    O incidente abriu espao para uma srie de protestos, saques e confrontos entre

    populao e polcia na cidade, e incendiou os debates sobre abuso de autoridade,

    discriminao e violncia racial. A tenso se desdobra na mdia; enquanto o segmento

    conservador (como a rede de notcias Fox News) condena as manifestaes por

    perturbarem a paz e a ordem, outras frentes (como movimentos net-avistas e veculos

    alternativos) apoiam as manifestaes e as veem como necessrias para o despertar de

    uma conscincia igualitria.

    Tais manifestaes levantam questionamentos inevitveis sobre como se d a

    participao dos indivduos na sociedade. Dentre essas discusses, destacaremos neste

    trabalho as inciativas do Anonymous, movimento surgido no contexto da cibercultura. Os

    Anonymous direcionaram seu apoio integral aos manifestantes de diversas formas, como

    boicote aos servios pblicos de Ferguson, prticas hacker e participao direta nos

    protestos.

    O Anonymous tornou-se conhecido por atacar (de maneiras similares s

    anteriormente mencionadas) instituies religiosas, grandes veculos de mdia e

    organizaes estatais consideradas pelo coletivo como abusivas de poder.

    Como analisado por Coleman (2012), os Anonymous integram ao mesmo tempo

    um forte movimento net-ativista e uma manifestao inconveniente contra determinados

  • valores estabelecidos. Seus integrantes seguem uma srie de pressupostos ticos

    atribudos a um valor liberal3: o da proteo da propriedade privada e da liberdade civil,

    tolerncia e autonomia ao indivduo, imprensa livre e comprometimento oportunidade

    igualitria e meritocracia (COLEMAN, 2013, p. 2).

    Os reflexos dos princpios idealizados pelo movimento se do tambm nas

    principais reivindicaes do movimento aos direitos civis na cibercultura: acesso livre

    (ou muito facilitado) a informao e ao entretenimento, proteo privacidade e a luta

    contra o abuso de poder e a censura.

    Sob tal anlise, no de surpreender que o Anonymous posiciona-se

    integralmente a favor dos manifestantes em Ferguson. Torna-se necessrio questionar,

    porm, os rumos de tais iniciativas do movimento no que diz respeito ao desenvolvimento

    de uma conscincia igualitria, to defendida pelos integrantes.

    O desenvolvimento de uma conscincia igualitria por parte do Anonymous

    envolve uma anlise sobre o sentir-se presente do indivduo na sociedade, atuante,

    pertencente e construtor de um espao em que as pessoas possam autovalorizar-se e

    respeitarem uns aos outros a partir da prtica da cidadania (CORTINA, 2005). Entender

    o que a cidadania e como o Anonymous a enxerga mostra-se um caminho a ser trilhado

    para analisar o senso de coletivismo do movimento.

    Com efeito, este artigo ser dividido nas seguintes sesses: a discusso da prtica

    cidad na sociedade contempornea (sob o conceito do net-ativismo do Anonymous);

    uma contextualizao sobre o surgimento do Anonymous e sua relao com Ferguson;

    um breve estudo de caso sobre os discursos do movimento nas manifestaes pr-Michael

    Brown; e, por fim, uma considerao em processo acerca da cidadania praticada pelos

    Anonymous.

    Com este trabalho, pretendemos contribuir para o estudo de articulaes em redes

    e formas de sociabilidade na internet alm de debater sobre o desenvolvimento da

    prtica cidad promovido pelo net-ativismo na sociedade contempornea.

    Cidadania: uma contextualizao terica.

    3 A prpria Coleman (2013) reconhece que os ideais liberais tambm envolvem vises econmicas; alm

    de representarem uma viso poltica da corrente democrata norte-americana. Para este artigo,

    simplificaremos: ser abordada a corrente ideolgica do pensamento liberal.

  • Cortina (2005) afirma que a realidade da cidadania, o fato de saber e de se sentir

    cidado de uma comunidade, pode motivar os indivduos a trabalhar por ela (p. 27). Em

    primeira instncia, podemos inferir que o sentimento de ser cidado envolve conhecer os

    princpios bsicos que regem o conceito de cidadania, alm da consequente garantia

    destes por parte das instituies.

    Os princpios acima relacionam-se diretamente aos direitos dos indivduos, como

    o acesso ao conhecimento e s posses; ou seja, aos recursos que garantem a eles uma

    participao adequada na vida em sociedade (TONDATO, 2010, p. 3). O ser cidado,

    neste caso, expande-se das relaes de poder e passa a fazer parte do imaginrio do

    cidado contemporneo.

    Tondato (2014) entende que falar sobre a cidadania envolve tambm uma

    discusso acerca da existncia humana na contemporaneidade:

    Falar em cidadania implica trazer pauta temas fundantes da existncia

    do ser humano como sujeito, agente e paciente, da coletividade.

    Participar do coletivo exige o estabelecimento de identidades capazes

    de atender ao que comum, sem, contudo nele perder-se, especialmente

    numa poca em que, mesmo em mbitos de vivncia mais limitados e

    restritos, somos afetados pelos movimentos de uma sociedade

    globalizada economicamente e conectada tecnolgica e virtualmente.

    (TONDATO, 2014, p. 198).

    neste contexto que Tondato (2014) aponta dois aspectos importantes na

    cidadania: a j citada compreenso da autonomia e solidariedade do sujeito-indivduo na

    sociedade e, por outro lado, a relao deste indivduo-sujeito com as presenas objetivas

    da mdia e do consumo.

    O papel do consumo na cidadania necessrio de se entender pelo fato de os

    tempos contemporneos formularem indivduos adaptados a uma sociedade de consumo

    (BAUDRILLARD, 2007). Ao contextualizarmos os autores mencionados, os discursos

    favorveis ao consumo elevariam o homem moderno encarnao ideal do espcime

    humano, capaz de exercer sua virtuosidade a partir da liberdade que se consumir

    (BAUMAN, 2008; SLATER, 2002). Endossa-se o individualismo e h um estmulo do

    estilo de vida existencial pautado pelo consumo.

  • Bauman (2008) complementa que impossvel enquadrar-se na sociedade de

    consumo sem a coero do ato em si ou seja no h discriminaes aos indivduos,

    desde que no parem de consumir (p.73). Complementa o autor:

    Ser membro da sociedade de consumidores uma tarefa assustadora,

    um esforo interminvel e difcil. O medo de no conseguir conformar-

    se foi posto de lado pelo medo da inadequao, mas nem por isso se

    tornou menos apavorante. Os mercados de consumo so vidos por tirar

    vantagem desse medo, e as empresas que produzem bens de consumo

    so vidos por tirar vantagem desse medo [...], competem pelo status de

    guia e auxiliar mais confivel no esforo interminvel de seus clientes

    para enfrentar esse desafio (BAUMAN, 2008, p. 80).

    Quando analisamos que os indivduos dialogam com a sociedade a partir do

    carter simblico do consumo e da mercadoria (DOUGLAS & ISHERWOOD, 2004), a

    cidadania tambm o faz; uma vez que a prtica do consumo no necessariamente leva

    passividade dos indivduos, mas tambm os ajuda reflexo de seu papel na sociedade

    (BACCEGA, 2010). O consumo serve para essa reflexo da prtica cidad, e exige a

    participao dos indivduos nas articulaes entre Estado e o mercado (GARCIA

    CANCLINI, 1995).

    De qualquer forma, muitos Estados consideram que o necessrio para a prtica

    cidad oferecer aos desfavorecidos as mnimas condies econmicas (como o bem-

    estar) e polticas (como o voto) para que o pleno direito cidadania seja exercido afirma

    Cerquier-Manzini (2010). O problema deste sistema, segundo a autora, reside no esforo

    em privar destas classes uma abordagem reflexiva sobre o consumo, transformando-os

    em seres passivos e conformados (p. 98).

    Miller (2011) avalia que a abordar a cidadania contempornea envolve uma

    abordagem os direitos econmicos e polticos aliados a uma espcie de cidadania cultural

    - ou seja - oferecer aos cidados o direito comunicao, participao na democracia

    e representao da diferena cultural (p. 57).

    Com efeito, a constituio da experincia cidad no se trata apenas de algo

    entendido e aplicado a priori, mas de um processo que envolve o conhecimento sobre a

    participao dos indivduos no processo democrtico. Segundo Tondato (2014), a prtica

    cidad se d como um processo: o envolvimento com o exerccio das relaes sociais e

  • no entendimento dos sujeitos, a partir da experincia e do hbito, do sentido de ser

    cidado.

    Ao analisarmos o Anonymous, entendemos que o movimento constitui as nuances

    dos consumidores-cidados contemporneos: apropriam-se de prticas de consumo

    subversivas para pregar ideais liberais (COLEMAN, 2013). Porm, ao contextualizarmos

    a natureza do movimento, vemos que essa apropriao subversiva surgiu de ideais

    distantes da conscincia igualitria. De tal forma, questionamos: como se constitui o ser

    cidado no Anonymous?

    Anonymous e Ferguson: a constituio do ser cidado.

    Coleman (2013) aborda o Anonymous como uma entidade digital, com propsito

    de existncia voltado ao net-ativismo contra as desigualdades, de extrema flexibilidade

    hierrquica; um dos maiores movimentos da categoria a terem surgido na internet (p.

    210).

    H um consenso sobre as duas ltimas afirmaes (KELLY, 2012, p. 1678),

    porm, ao analisarmos o documentrio We Are Legion: The Story of Hacktivists (2012) e

    uma obra de autoria da prpria Coleman (2012), o trabalho de definir o movimento algo

    muito mais complexo. Entend-lo passa a ser uma tarefa mais simples quando a sua

    origem contextualizada.

    O Anonymous, assim como a maioria dos movimentos net-ativistas, surgiu sem

    grandes pretenses de angariar um nmero extenso de adeptos (SHIRKY, 2010). As

    primeiras manifestaes do movimento so datadas junto ao nascimento do frum 4chan

    website em que os usurios discutem e compartilham assuntos voltados ao humor

    (especialmente o humor negro), cultura popular, arte, entre outros.

    O site no exige cadastro para participao, o que permite aos usurios interagirem

    entre si de forma annima e sem grandes censuras. Como a prpria plataforma indica,

    Anonymous no se trata de uma pessoa, mas de uma representao de um coletivo de

    usurios (4CHAN, 2014). Apesar de o site delimitar termos de participao, os

    integrantes do 4chan guiam o contedo do site ao moderarem a si mesmos e a seus

    colegas.

    O 4chan foi um dos servios pioneiros em angariar um grande nmero de pessoas

    falando sobre assuntos parecidos. Antes da participao poltica, os Anonymous do 4chan

  • apropriavam-se do trolling, gria da cibercultura a qual significa o escrnio direcionado a

    outras pessoas pelo simples prazer em faz-lo. Os primeiros alvos do coletivo foram

    algumas figuras pblicas (como Sarah Palin em 2008 na poca candidata a vice-

    presidncia dos Estados Unidos) e veculos miditicos (como o New York Times e os

    resultados de suas enquetes digitais manipuladas pelo coletivo).

    O humor Anonymous impiedoso: no caso de Sarah Palin, um dos integrantes do

    movimento vazou ao frum seus dados pessoais, como conta de e-mail e informaes

    financeiras da candidata, no objetivo de degradar sua campanha. Dezenas de outros casos

    similares mostram o quo implacvel a comunidade pode ser.

    Diante de tal cenrio, muitos especialistas (COLEMAN, 2012; OLSON, 2012)

    surpreendem-se quando o movimento Anonymous comea a ganhar carter de

    participao poltica pela igualdade entre os indivduos. Sua primeira manifestao se deu

    em 2008, ano em que o coletivo saiu s ruas (em diversas cidades ao redor do mundo) em

    protesto aos abusos da Igreja da Cientologia4.

    A forma de promover o boicote Igreja tornou-se marca registrada do movimento

    nas operaes que prosseguiram a iniciativa: ataques DDoS de negao de servio5 ao

    website da Igreja, invaso de contas de e-mail dos funcionrios, envio ininterrupto de

    faxes s matrizes administrativas para gastar papel e envio de press-releases. Quanto mais

    a instituio reprimia as aes, maior tornava-se o protesto; em poucas semanas, o

    Anonymous desconectou-se da internet e foi s ruas ao redor do mundo, da mesma forma

    que os ativistas convencionais o fazem (OLSON, 2012, p. 65).

    Em 2010, os Anonymous atingiram notoriedade global com uma campanha

    engajada em lanar ataques de paralisao a instituies financeiras e demais servios

    que recusaram-se a intermediar doaes feitas ao WikiLeaks, site especializado em vazar

    informaes confidenciais de governos ao redor do mundo. A operao, intitulada

    Payback, abriu debates sobre a necessidade de transparncia das instituies e, de certa

    forma, consolidou a viso libertariana promovida pelo Anonymous.

    4 Na poca, a Igreja da Cientologia acionou judicialmente alguns tabloides e sites como o YouTube a tirar

    do ar um vdeo em que o ator Tom Cruise pregava os ideais da religio. O caso motivou a ira dos usurios

    da internet, que se divertiam-se em satirizar o material (OLSON, 2012, p. 63-65). 5 Ataques de negao de servio so uma tcnica hacker voltada a inviabilizar os servidores de um

    website. Ela simples de ser feita e no exige grandes conhecimentos em computao; de tal forma, a

    tcnica hacker mais popular dentre os net-ativistas.

  • Michel de Certeau (1998) descreve as tticas desviacionistas (p. 92) dos

    consumidores-cidados. Segundo o autor, instituies representam estratgias, e buscam

    perpetuar-se a partir daquilo que produzem e oferecem s pessoas e, portanto, necessita

    convenc-los para sobreviver por meio da imposio de uma ordem e uma sistematizao.

    (idem).

    Segundo Certeau (1998) os indivduos representam as tticas de participao, ou

    seja, fragmentados, sem hierarquias delimitadas e capazes de agruparem-se agilmente

    para a resoluo de uma necessidade (p. 98). As tticas no apenas consomem como

    apropriam-se do imaginrio construdo pelas instituies e atribuem a eles novos

    significados.

    Ao analisarmos o Anonymous e o protesto como um todo, a negao da

    sistematizao se d no engajamento participao mais ativa dos indivduos na poltica,

    na cultura e na economia um dos ideais da prtica cidad (CERQUIER-MANZINI,

    2010; MILLER, 2011; TONDATO, 2010).

    O Anonymous, portanto, luta pela sua concepo de cidadania por meio da

    apropriao subversiva do consumo. Trata-se de um reflexo das tticas desviacionistas de

    Certeau (1998): seus integrantes buscam a mudana sem clamar por revolues profundas

    na estrutura da sociedade ocidental. H uma reivindicao pela prtica cidad por parte

    do movimento, mas que cidadania essa?

    Desde a virada da dcada, o Anonymous comprometeu-se em apoiar as mais

    diversas manifestaes que clamam pela igualdade entre os indivduos. Em Ferguson, o

    assassinato de Michael Brown acalorou discusses acerca do abuso de autoridade policial

    e das discriminaes raciais.

    Os habitantes de Ferguson foram s ruas protestar contra o abuso, e sofreram em

    duas frentes: represlia policial e desdenho das reivindicaes por parte da mdia

    conservadora norte-americana. Correntes alternativas mostram apoio ao movimento das

    mais diversas formas; no caso do Anonymous, inicia-se a Operao Ferguson: apoio aos

    manifestantes e represlia a quem posiciona-se contra eles.

    Operao Ferguson: um estudo de caso.

    O Anonymous apoiou as revoltas a partir de trs frentes: participao direta nas

    manifestaes, prticas hacker e criao de plataformas de relaes pblicas,

  • concentradas no portal www.operationferguson.cf e no perfil do Twitter

    twitter.com/OpFerguson. Ao analisar os discursos apropriados em cada frente de atuao,

    encontramos uma delineao de cidadania a qual ainda est em processos de

    amadurecimento.

    1. Participao direta nas manifestaes e prticas hacker

    Figura 2: Million Mask March. Protesto em Ferguson, novembro

    de 2014. Fotgrafo deconhecido.

    Fonte: http://www.operationferguson.cf/mmm.html

    Em novembro de 2014, o policial envolvido no incidente foi absolvido por jri

    popular, o que motivou protestos ainda mais intensos. Nesta mesma poca, o Anonymous

    organizou o Million Mask March, iniciativa tradicional do movimento em outras

    operaes voltada a fazer protestos considerados pacficos. Em paralelo, o coletivo

    manteve o envolvimento com a invaso de contas de e-mail de funcionrios pblicos.

    Em seu discurso6, os integrantes manifestam agradecimentos pela ajuda dos

    Anonymous ao redor do mundo e exaltam a primeira marcha de sucesso realizada no

    Estados Unidos. Ao longo do texto, defendem-se das crticas sobre a ilegalidade de seus

    atos (como as invases de contas pessoais) e declaram que defendem exclusivamente o

    ideal da liberdade e da colaborao.

    Nesta anlise, entende-se que apesar de o movimento transparecer evidente

    comprometimento em fazer as vozes de Ferguson serem ouvidas, h um domnio ambguo

    acerca das apropriaes sobre o que faz parte da lei e o que no faz.

    Segundo Certeau (1998), inferimos que as estruturas tticas da populao no so

    capazes de subverter completamente as estratgias institucionais no tentam vencer ou

    dominar, mas buscam preencher seus defeitos a partir do protesto e da ao social. O

    6 O discurso introdutrio pode ser visto na ntegra a partir do link: http://pastebin.com/LVabXmPm

  • protesto dos Anonymous conforma tal cenrio a partir dessa apropriao ambgua dos

    conceitos que regem a liberdade e a legalidade.

    Se, por um lado, o movimento clama por uma participao mais direta da

    populao nas polticas pblicas dentro da legalidade (ou seja, sem violncia), por outro

    infringe a legalidade e o direito privacidade ao deliberadamente invadir contas pessoais.

    Tal postura indica que o Anonymous ainda tem dificuldades para delinear a

    conscientizao de seus valores, uma vez que apropriam-se dos valores liberais de

    maneira contraditria.

    2. As plataformas de relaes pblicas.

    Em menos de uma hora aps a confirmao do assassinato de Brown, os

    Anonymous iniciaram a Operao Ferguson, com a comunicao de suas iniciativas

    concentradas em um site e em um perfil no Twitter. Chama a ateno, neste estudo, o

    vdeo introdutrio7 (ver Figura 3) da operao disponvel no site.

    Figura 3: Print screen do vdeo introdutrio da Operao

    Ferguson. Caractersitca do movimento no mostrar nenhum

    rosto.

    Fonte: https://vimeo.com/104428198

    No vdeo, o Anonymous descreve as atrocidades cometidas pela polcia tanto no

    caso do assassinato quanto na maneira com que as foras locais lidam com os

    manifestantes. Em seguida, critica a abordagem da mdia feita ao movimento e convida

    7 Disponvel em: http://vimeo.com/104428198

  • os internautas ao redor do mundo a apoiar a causa: desliguem as suas televises e vo s

    ruas.

    O restante do material agrega imagens de veculos cobrindo as manifestaes, com

    um discurso ao fundo que critica a passividade da democracia para com a corrupo. A

    anlise sobre o vdeo nos permite encontrar outras apropriaes ambguas que o

    Anonymous faz dos valores liberais.

    Em primeira instncia, o Anonymous critica as abordagens que a mdia atribui ao

    movimento. Em seguida, apropria-se das imagens produzidas por ela prpria (alm de

    demais imagens amadoras) em seus vdeos. O movimento condena a postura da mdia,

    enquanto ainda encontra dificuldades em disseminar os ideais Anonymous sem a sua

    ajuda. O movimento desenvolve a conscincia da liberdade a partir da articulao entre a

    prtica cidad e os discursos miditicos sem se preocupar em desenvolver manifestaes

    integralmente congruentes.

    Em ambos os breves estudos, a luta pelo Anonymous na prtica cidad se d,

    essencialmente, nos mbitos polticos e culturais, a partir das delineaes de Miller

    (2011). As principais reivindicaes da Operao Ferguson se do politicamente no ideal

    da integrao das classes desfavorecidas (no caso, os negros); e culturalmente em relao

    s classes como um todo, no que diz respeito ao acesso informao, distino cultural

    e liberdade em fazer valer a sua voz.

    Para o Anonymous, ser cidado refletir sobre a participao dos sujeitos na

    sociedade, a partir do conhecimento e da colaborao mtua, para que tais sujeitos possam

    considerar-se livres e respeitados.

    H nitidamente um conflito entre individualismo e coletivismo em tal

    apontamento, fruto, provavelmente, de uma concepo que ainda se encontra em

    processos de amadurecimento e mais importante de uma sociedade individualista e

    solitria por natureza (BAUMAN, 2008), e que apenas recentemente encontrou novas

    maneiras de socializao em conjunto a partir das novas tecnologias de comunicao

    (MCLUHAN, 1995; SHIRKY, 2010).

    CONSIDERAES

    Como afirma Tondato (2014), as prticas de pertencimento da cidadania se do,

    em parte, a partir da relao dos indivduos com as estruturas da mdia e do consumo na

  • sociedade contempornea. Segundo a autora, a constituio indivduo-sujeito dialoga

    com a sociedade do seu tempo, a partir das preferncias por determinadas prticas

    culturais e por seus hbitos tanto na vida pblica como na privada.

    Sob estes hbitos Coleman (2012) contextualiza o Anonymous: indivduos-

    sujeitos da modernidade, divididos entre individualismo e coletivismo, convivendo com

    suas contradies e prticas instveis de sociabilidade. Como nos relembra Certeau

    (1998), os indivduos tticos no levam a uma imediata revoluo, mas, a partir do

    questionamento, resoluo de anseios pontuais.

    Como se d a prtica cidad neste contexto? Nem o prprio Anonymous a domina.

    Porm, como aponta Cortina (2005) e Tondato (2014), a cidadania no algo aproprivel

    de imediato, e sim um resultado de conhecimentos adquiridos em conjunto; trata-se de

    um processo, em constante amadurecimento e que objetiva a integrao dos indivduos-

    sujeitos no ambiente em que vivem. Seria capaz o Anonymous de valorizar a coletividade

    em uma sociedade individualizada? Para tal, o prprio Anonymous precisa amadurecer o

    seu senso de coletividade.

    REFERNCIAS

    4CHAN.ORG. Who is Anonymous? In: FAQ. Acesso em 11/12/2014. Disponvel em:

    http://www.4chan.org/faq

    BACCEGA, Maria Aparecida. Comunicao/educao: relaes com o consumo. Importncia

    para a construo da cidadania. In: Comunicao, mdia, consumo (online), v. 7, n 19,

    julho/2010, p. 49-65. Acesso em 06/08/2014. Disponvel em:

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    BAUDRILLARD, Jean. A sociedade do consumo. Lisboa: Edies 70, 2007.

    BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformao das pessoas em mercadorias.

    Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

    CERTEAU, Michel de. A inveno do cotidiano. Petrpolis, Vozes, 1998.

    CERQUIER-MANZINI, Maria Lourdes. O que cidadania. So Paulo: Brasiliense, 2010.

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