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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
A MULHER E O CRIME: SIMBÓLICOS DO FEMININO
Jaqueline da Silva Galvão Clementino1
Rafaela Kozlowski2
Márcia C. Gonçalves de Oliveira Frassão3
Resumo: Considerando as dificuldades existentes no combate à violência contra a mulher, o presente
trabalho propõe, a partir de um relato de experiência, discutir o feminino no sistema prisional, uma
análise dos discursos de mulheres encarceradas, coletados durante uma prática de estágio em
psicologia. Da mesma forma, através de pesquisas documentais, e com base na teoria psicanalítica,
refletir quais as influências da construção da identidade feminina no processo de violência e na
submissão de mulheres nas relações violentas. O estudo aponta que, de forma geral, incluindo as
situações de mulheres encarceradas, o próprio discurso social denuncia o caráter hierárquico e
repressivo das relações, incluindo as de gênero. Diante disso, o estudo preconiza que, para a
desconstrução de estereótipos culturais, há necessidade da criação do simbólico do feminino,
construído por elas mesmas, com base em suas vivências, capaz de representar as mulheres, com
discussões sobre o essencialismo, a lei simbólica que a cultura requer, a diferença sexual e o uso
político da psicanálise no feminismo.
Palavras-chave: Feminino. Violência. Mulheres encarceradas.
Introdução
O reconhecimento da criminalidade e da violência contra as mulheres não impede a existência
de uma série de obstáculos na busca por garantia de direitos, principalmente pela força ainda existente
no discurso androcêntrico.
Atualmente, o número de mulheres encarceradas é significantemente inferior ao de homens.
Considerando a estrutura patriarcal do sistema sociopolítico e cultural em que vivemos, fica clara a
falta de recursos que atendam as especificidades femininas, que vão além da menstruação e da
gravidez, colocando o sistema prisional como mais um ambiente construído, prioritariamente, para o
protótipo do masculino.
O termo gênero ainda mantém estereótipos reducionistas e patriarcais, voltados à construção
de um feminino em prol do masculino, designando o feminino de forma neutra, sem tratar as
diferenças de gênero de forma crítica (SCOTT, 1989). As relações de gênero foram construídas a partir
de um substrato biológico, baseado no discurso médico, onde o feminino surge a partir do domínio sobre
o corpo, com a naturalização da maternidade, que convoca a existência do falo como primordial ao poder
1 Psicóloga especializanda pela Unifesp – São Paulo, 2017. 2 Psicóloga especializanda pela Ufscar- São Carlos, 2017. 3 Professora Orientadora do Estágio em Psicologia Jurídica do UNISAL- Lorena, até Dezembro de 2016.
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político e social, que as convoca a uma relação de poder e domínio, numa construção simbólica
hierarquizada, que designa ao masculino as atividades concentradas na esfera pública e ao feminino,
na figura da mulher, a esfera familiar e à naturalização maternidade (GIFFIN, 1994).
Pode-se dizer, assim, que o discurso acerca do papel das mulheres está baseado na lógica do
corpo, voltado às necessidades sociais do âmbito familiar, mantendo-as num estado de vigia tácita e
constante, que as convoca a um papel passivo, onde a naturalização da maternidade propõe, também,
a bondade e afetividade como naturais, negando aspectos agressivos, por exemplo, como pertencentes
somente ao masculino. Essa construção hierárquica limita a atuação política e social das mulheres,
restringindo os espaços públicos a elas possivelmente aderentes, como o da criminalidade. Assim, o
ambiente carcerário é visivelmente construído para o público masculino, dando continuidade, pela
própria estrutura institucional, ao processo de violência e exclusão das mulheres.
Conforme apontado por Foucault (1975), no ambiente prisional, o poder disciplinar torna-se
a forma mais cabível e eficaz de garantir a ordem, substituindo os suplícios e espetáculos de execução
pública pela vigilância e adestramento do corpo. No caso dos discursos das mulheres em situação de
encarceramento, coletados durante o período de estágio, foi possível observar diversos tipos de
violência, principalmente, a violência psicológica, como forma de legitimação do poder patriarcal
sobre a figura do feminino, onde a identidade feminina encontra base num feminino passivo.
O relato que segue é produto de uma experiência de estágio extracurricular em Psicologia
Jurídica, realizado no ano de 2016, numa penitenciária feminina localizada no município de
Tremembé, construída em 2011. Cabe ressaltar que sua construção foi um marco na história do
sistema penitenciário brasileiro, pois se trata da primeira penitenciária construída especialmente para
atender as particularidades e necessidades das mulheres, prevista no Plano de Expansão do Sistema
Prisional Paulista, diferentemente das demais unidades femininas do Estado, que são instituições
masculinas adaptadas. A Unidade Prisional caracteriza-se como Penitenciária Feminina em regime
fechado, com Ala de Progressão em regime semiaberto, tratando-se de equipamento público com
controle do acesso, fluxo e circulação de pessoas.
A faixa etária da população atendida nas atividades de estágio foi de 18 a 65 anos, sendo
atendimentos individuais e em grupo, tanto da população de regime fechado quanto de semiaberto.
Cabe ressaltar que a população carcerária referida caracteriza-se, em sua maioria, por vulnerável
socioeconomicamente, no entanto, o que chamou a atenção das estagiárias foi a presença, no discurso,
de um feminino vulnerável e passivo, apesar da criminalidade envolvida. Esse fator manifestava-se
nos conflitos das presas com suas mães, na questão da maternidade propriamente dita e nas relações
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conjugais, onde a criminalidade do companheiro é concebida como um aspecto hierárquico, em que
o poder e dominância do masculino sobre o feminino lhes confere alguma forma de prazer na
submissão a alguém, supostamente, superior. Durante as escutas, principalmente grupais, notou-se
que a violência esteve sempre presente na vida dessas mulheres em suas diversas formas: psíquica,
física e sexual, e que se manteve nas relações conjugais, incluindo o abandono.
Sobre o Gênero
O estudo das referências sobre o feminino na Idade Média e Idade Moderna nos mostra a
objetificação e submissão do feminino, numa hierarquia excludente, normativa e androcêntrica. Os
relatos e histórias referem-se ao masculino, pois esse apresentava-se como politicamente ativo e
detentor de poder, ao qual o feminino servia e prostrava-se, seja enquanto mulher ou escrava. Tais
relatos, no entanto, omitem a presença das mulheres em diversas ações e manifestações, de forma que
faz com que questionemos os registros históricos, não só atuais, mas, principalmente, de outras
épocas.
Com a ascensão do Iluminismo nos meados dos séculos XVIII e XIX, a medicina passa a
ocupar o lugar de detentora do saber, cujo discurso terá como base as diferenças sexuais construirá o
corpo da mulher através de características estritamente fisiológicas e sexuais. A partir de então, a
menstruação, a gravidez e o parto passam a fazer parte do âmbito médico, produzindo uma imagem
ambígua do feminino, uma vez que a figura da mulher passa a ser concebida como possuidora de uma
bondade natural, ao mesmo tempo que seu corpo é relacionado à luxúria e ao vício. Dessa forma, o
saber sobre o feminino surge a partir do domínio sob o corpo, com a naturalização da maternidade e
denominação da mulher como cuidadora dos “filhos dos homens”.
Como parte do discurso médico, nasce a valorização social da infância como etapa necessitada
de cuidados específicos; isso, adjunto à elevação da classe burguesa como dominante, atribui às
mulheres o papel de cuidadoras das crianças (seja como mães ou amas de leite) e o sentimento de
cuidado como algo intrínseco ao feminino, de forma que a família se afirma cada vez mais como
realidade moral e institucional, onde o homem assume o dever de controlar a esposa, os filhos e os
criados.
Na medida em que a família é identificada como a principal instituição social que organiza
as relações sexuais entre os gêneros, o controle social é visto como atuando diretamente sobre
o corpo das mulheres, cuja identidade principal é a de mãe, e cuja sexualidade é socialmente
aceita somente na reprodução de filhos legítimos (GIFFIN, 1994, p. 150).
A partir disso, e de diversos outros fatores, podemos sustentar a afirmação de que as relações
de gênero implicam numa hierarquização, envolvendo poder e dominação de uma classe em relação
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à outra, no caso, do masculino sob o feminino. A palavra gênero foi empregada, de início, pelas
feministas que buscavam referir-se à organização social na relação entre os sexos, principalmente as
americanas, que queriam insistir no caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo,
uma vez que o termo rejeita o determinismo biológico implícito na diferença sexual.
Conforme Scott (1989), o conceito de gênero diz respeito à construção dos papéis sociais do
homem e da mulher, e à organização de suas relações, determinante de comportamentos interpretados
como masculinos ou femininos, permitidos ou não a cada sexo, enfatizando um sistema de relações,
que pode incluir o sexo, mas que não é diretamente determinado pelo sexo ou pela sexualidade, que
referem domínios, tanto estruturais quanto ideológicos, de um sob o outro, do masculino sob o
feminino, porém o termo não diz nada sobre as razões pelas quais as relações são construídas como
são e sequer possui força acadêmica para questionar e mudar paradigmas históricos existentes. Muitas
vezes, o termo gênero é utilizado para designar o feminino de forma neutra, o que, no entanto, trata
as diferenças de gênero sem a constituição de uma ameaça crítica, uma vez que inclui as mulheres
sem as nomear, o que, portanto, as mantém num lugar sem nome, que requer a preexistência do
masculino para existir.
Conforme apontado por Chauí (1985), a mulher é percebida, fundamentalmente, como corpo
e passa a ser parte do discurso masculino, entendido como um discurso que não só fala de “fora” das
mulheres, mas que impõe o silêncio como sua única condição e possibilidade. Assim, o próprio
“instinto materno”, ao mesmo tempo que mantém as mulheres no suposto mundo natural, as
transforma em produtoras, ou seja, o instinto e o amor maternos são formas de controlar e reprimir a
sexualidade feminina, de forma que o investimento ideológico coisifica as mulheres ao modo de
produção capitalista. A ênfase colocada sobre o gênero não é explícita, mas constitui, no entanto, uma
dimensão decisiva da organização da igualdade e desigualdade, ou seja, das estruturas hierárquicas
baseadas na compreensão da relação entre o masculino e o feminino. Dessa forma, só é possível
escrever a história desse processo da constituição dos gêneros se reconhecermos que “homem” e
“mulher”, ao mesmo tempo que não têm nenhum significado definitivo e transcendente, contêm
definições alternativas negadas ou reprimidas (SCOTT, 1989).
O Feminino na Psicanálise
Considerando que Freud, precursor da psicanálise, foi um neurologista, o discurso
psicanalítico, assim como a medicina, foi construído com base na diferença sexual, tendo o corpo
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como o ponto principal que sustentará o simbólico na construção de um corpo psicológico. Freud
(1988) aponta que, no período fálico, as crianças percebem a existência de algo nos meninos e a falta
desse nas meninas, o que dá origem a fantasias relacionadas à castração, o que Freud (1988) chamou
de “complexo de castração”. Em seu texto “Feminilidade”, Freud (1994) argumenta que o amor
próprio da mulher é abalado devido ao fato de o menino possuir um aparelho “muito superior”; assim,
renuncia à satisfação masturbatória com o clitóris e repudia seu amor pela mãe.
Para Lacan (apud BRENNAN, 1997) a falta do falo e de um simbólico que sustente a
sexualidade feminina coloca a figura da mulher numa posição de incompletude em si mesma, ou seja,
a diferença física por si só delega ao feminino o caráter de desprovido de conteúdo, de algo que a
denote digna de valor. A presença visível de um “sexo” adere privilégios ao masculino, numa
perspectiva “essencialista”, baseada em fatores biológicos, que coloca a majoritariedade masculina
como natural, imutável e, portanto, dominante, como se os homens fossem “mais capazes de
diferenciarem-se” e a mulher fracassasse na própria postura de aspirante do falo.
Dessa forma, a menina jamais consegue realizar a tarefa de enlutar-se pela perda do objeto,
porque não tem uma representação simbólica daquilo que foi perdido, ou seja, não há elaboração e
luto da separação entre ela e sua mãe: trata-se da perda de algo sem valor (WHITFORD apud
BRENNAN, 1997). A própria feminilidade é ainda “o desejo masculino de possuir um pênis”,
escondido pelo desejo de ter um bebê. Mesmo para garantir status social, a mulher precisa atingir
padrões de estereótipos masculinos, numa tentativa de tornar-se fálica, masculina.
Do que falam as mulheres encarceradas
As análises dos discursos verificados no relato das mulheres, terão como base a Análise de
Discurso foucaultiana, que concebe discurso como o espaço onde saber e poder se articulam, num
processo de rupturas e transformações acumulativas, contribuindo para a formação de subjetividade.
Para Foucault (1972), é imprescindível que a análise seja crítica, a fim de problematizar e descrever
as condições históricas que contribuíram para a formação dos discursos, mantendo suas consistências
e complexidades, sem neutraliza-lo ou transforma-lo.
Diremos, pois, que uma formação discursiva se define (pelo menos quanto a seus objetos) se
se puder estabelecer um conjunto semelhante; se se puder mostrar como qualquer objeto do
discurso em questão aí encontra seu lugar e sua lei de aparecimento; se se puder mostrar que
ele pode dar origem, simultânea ou sucessivamente, a objetos que se excluem, sem que ele
próprio tenha de se modificar (FOUCAULT, 1972, p. 49-50).
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Foucault (1972) destaca que o poder é detentor do saber e este é construído por discursos, cuja
finalidade é serem mentores de verdades sobre determinados objetos, fenômenos e sujeitos. Ou seja,
o discurso é uma prática social, que, além de intermediar as relações sociais, também exerce controle
sobre elas, indicando a realidade social e também a transformando.
Os Discursos
A redução da mulher à categoria de objeto e perda da identidade enquanto sujeito faz-se muito
presente no discurso das mulheres encarceradas atendidas na experiência de estágio, principalmente
das gestantes e lactantes, que enfrentam grandes conflitos pessoais e sociais nos processos de
maternagem e maternidade.
Conforme na fala de B., 18 anos, durante um grupo de gestantes: “aqui nois é tratada como
lixo, ninguém se importa se tamo grávidas ou não, nem com a alimentação que é boa pro bebê. Nosso
feijão é cheio de bicho, e nois come assim memo, porque o bebê precisa disso. Mas quando vem
visita, aí a comida é boa, porque aí eles querem mostrar que aqui dentro nois é bem tratada, mas só
quem tá aqui sabe o que nois passa”, a dominação do mundo exterior, mais especificamente do
sistema carcerário, demonstra como esse sistema se constitui em uma forma de individualizar,
classificar e hierarquizar duplamente as mulheres. Conforme Foucault (1975) aponta, tal instituições
tornam-se um grande observatório, com intuito de normatizar, num processo de objetivação e de
sujeição.
Muitas das queixas são direcionadas à relação mãe-filho, onde o bebê, muitas vezes, é
observado como extensão do ex-companheiro; nos casos em que a mulher viveu uma relação violenta
com o pai da criança pode ser ainda pior, pois o bebê é fruto dessa violência, o que dificulta a
construção de um sentimento pelo filho que está sendo gerado, em muitos casos, não planejado e não
desejado pela mulher naquele momento, prejudicando o processo de amamentação e da criação de
um vínculo com o bebê, além da própria depressão pós-parto. No caso de C. S., 18 anos, houve grande
dificuldade durante o período de gestação, pois quando decidiu romper o casamento com o pai de sua
filha, o mesmo a manteve em cárcere privado, onde sofreu violência física, psicológica e sexual,
alegando que a gravidez havia sido fruto de um estupro durante esse período. Segundo seu relato, a
situação pela qual estava sendo acusada foi forjada e, logo que foi presa, descobriu a gravidez. Num
dos atendimentos durante a gravidez, C. relatou “Eu não quero essa criança, darei para o meu pai,
ou para algum abrigo. Eu não queria ser mãe agora, nunca pensei nisso, ela vai acabar com a minha
vida. Eu quero sair daqui, voltar a estudar, construir uma carreira e essa criança só atrapalhará a
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minha vida. E, se eu ficar com ela, o pai dela vai fazer um inferno a minha vida e eu não quero mais
saber dele. Quero eles longe de mim. Ele já fica me mandando cartas, me ameaçando, imagina com
um filho dele”. Tal exemplo configura a contrariedade nos discursos que sustentam a maternidade
associada ao instinto feminino, principalmente, o discurso médico, já referido anteriormente,
mostrando que a naturalização do “instinto materno” é uma obrigatoriedade social, que ainda mantém
o feminino no âmbito privado.
A partir disso, o sofrimento psíquico torna-se visível, seja pela culpa gerada por não conseguir
cumprir tal papel social, como no caso da insegurança de perder a guarda de seus filhos, seja pela
situação onde é obrigada a exercer a função materna, considerando a postura do ambiente carcerário.
L.R., 21 anos, “Eu sofro muito aqui pensando nos meus filhos. Se eu fiz o que fiz foi para dar o melhor
para eles, porque eles só têm eu, e agora eu tô aqui. Eu não tive mãe nem pai perto de mim e sei a
falta que isso faz; não quero que eles passem pelo mesmo que eu [...] Eu ficava com meu tio e ele me
batia, agora meus filhos também estão com ele e tenho medo que ele faça com eles o mesmo que fez
comigo. Eles sabem que eu fico aqui preocupada e ninguém me liga, não manda uma notícia, uma
carta, nada. Eu sei que fiz errado, já era pra eu ter aprendido da outra vez que fui presa, mas agora
eu quero vida nova e eles fazem isso comigo, sabem que fico preocupada pensado. Acho que vou
ficar louca aqui”.
Grande parte das presas atendidas na experiência de estágio entrou na vida do crime devido
ao companheiro. Algumas discursaram a crença na mudança, outras alegaram que não sabiam que
eles ainda praticavam crimes, e outras, ainda, falavam sobre a admiração direcionada ao companheiro,
pois o crime lhes garantia um lugar de poder, como, por exemplo, nos relatos: P. (19 anos): “minha
mãe sempre me deu do bom e do melhor, mas eu amava ele. Sabia que ele traficava, mas eu achava
que um dia ele mudaria, que mudaria por mim. Mas mesmo estando aqui por culpa dele, sinto muita
saudade, espero que ele me mande alguma carta [...]”; J. (23 anos): “[...] eu fui morar na rua com
um cara e ele me incriminou por um homicídio que eu não fiz, por isso tô aqui [...]”; E. (19 anos):
“Nos conhecemos na escola, eu matava aula pra ir ver ele e aí eu comecei a fumar. Antes, eu roubava
as coisas, celular, carteira, essas coisas, para poder fumar, mas depois que tive a minha filha eu
parei. Ele traficava ainda, eu sabia, mas eu não, eu ficava em casa de boa. Eu só quero cuidar da
minha filha, ficar perto dela”.
A maioria das presas, se não todas, relatou problemas na relação com a figura materna,
principalmente referentes à ausência ou à vínculos muito estreitos. Em alguns relatos, percebe-se que,
sempre ao falarem os abusos sofridos pelos pais ou responsáveis, a figura materna se mostrou apática
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ou omissa. Em um caso especifico, D., 42 anos: “fui abusada sexualmente durante 9 anos pelo meu
pai. Eu acho que minha mãe sempre soube, mas fingia que não, porque ela precisava do meu pai
para nos sustentar. Quando eu tinha 14 anos, vi que meu pai estava olhando as minhas irmãs mais
novas e resolvi falar para minha mãe, mas ela me chamou de mentirosa. Aí, fui na polícia mesmo e
resolvi sair de casa. Depois de muito tempo, foi comprovado que houve abuso em mim, sim, mas até
hoje minha família me culpa, minha mãe diz que eu destruí a vida dela e da minha família, porque
meu pai abandonou ela e ela ficou na miséria com meus irmãos”.
No caso de M.T., 31 anos, a mãe sempre foi uma figura trazida durante as sessões, sempre
retratada com muita emoção: “eu tenho medo de não conseguir mudar de verdade. Minha mãe sempre
me disse as coisas que eu deveria fazer, mas eu sempre fiz tudo ao contrário e agora vim parar aqui,
tô sem meus filhos, eu perdi tudo. Agora, tô uma pessoa muito diferente do que ela conheceu, mas
não sei se ela vai acreditar que eu mudei e também tenho medo de não conseguir mesmo. Acho que
eu fazia muita coisa pra chamar a atenção dela, porque minha irmã sempre foi a perfeita, só que eu
fazia tudo errado. Me envolvi com esse cara, mesmo ela falando que não seria bom pra mim.
Abandonei tudo e agora tô aqui. E ele me largou, nunca respondeu ou mandou uma carta, nunca deu
notícias”. Este exemplo nos faz pensar a algumas questões: há um conflito relacionado à fantasia, ou
não, de corresponder às expectativas da mãe, e devido ao medo de perder esse amor, essas filhas se
transformaram em extensões do desejo materno, continuando sob o domínio afetivo e amoroso da
mãe, mesmo na vida adulta, constituindo-se a partir da fantasia sobre qual tipo de mulher sua mãe
quer que elas se tornem. Essa permanência psíquica no lugar de posse da mãe faz com que essa relação
de “ser posse” de alguém seja repetida nas relações amorosas, submetendo-as, muitas vezes, a
relações violentas.
Através dessas reflexões, podemos pensar na existência de um feminino denegrido, faltante,
que se assusta frente ao abandono e não o suporta. São mulheres ausentes delas mesmas como sujeitos
que, incapazes de serem sujeitos da própria história, precisam do amparo do outro, da presença e
sustentação do outro para existirem. Assim, a relação com o companheiro torna-se uma repetição da
relação objetal primária.
Ainda nos relatos de M.T., durante os atendimentos, ela sempre se referia ao pai como uma
figura passiva, que viveu sempre com sua mãe, mas que nunca se posicionava e sempre aderia às
imposições de sua mãe. Assim, foi possível perceber a violação da lei como a falta da função paterna
(a maioria das mulheres atendidas foi criada somente pela mãe ou avós maternos, sendo a figura
paterna desconhecida ou ausente) que proíba a relação homoafetiva com a mãe e permita o
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desenvolvimento de um desejo que não por esse primeiro objeto. Assim, a criminalidade foi trazida,
nas entrelinhas do discurso, como uma forma de manter-se em destaque para a figura materna, no
desejo de possui-la, de mantê-la para si.
Discussão
A partir disso, buscamos discutir como a construção da identidade feminina reflete nas
relações entre os gêneros e nas diversas instituições onde o feminino existe, mas nem sempre possui
um espaço de fato, e, quando o encontra, em grande parte das vezes serve como ambiente para a
disseminação da violência, em suas diversas formas, e reafirmação do papel passivo que lhe é
atribuído. O sistema prisional pode ser considerado como um local onde acontece o ápice da
dominação das categorias excludentes pelas socialmente dominantes, tornando-se um ambiente de
exclusão dupla e acentuada às mulheres, uma vez que as características de criminalidade são vistas
como quase que exclusivas do masculino e as características femininas patriarcalmente definidas,
como maternidade, fragilidade, passividade, impedissem uma mulher de corromper a Lei, ao mesmo
tempo que, a partir do momento em que essas mulheres “atingem” esses padrões e categorias
masculinos, isso pode ser considerado como tentativa de tornar-se fálica, ativa, impenetrável, ou seja,
como a vitimização perante o masculino.
Em muitos casos, as mulheres envolvem-se com o crime através dos parceiros, onde podemos
pensar a respeito da criminalidade como uma característica de virilidade e masculinidade, que servirá
de continente à falta de um simbólico para esse feminino e faz com que muitas se submetam a relações
violentas, conforme os discursos dos casos analisados. Como foi possível observar, a exposição a
situações perigosas relacionadas à criminalidade pelo amor ao companheiro, ou mesmo às violências
dos mesmos, são comuns a muitas mulheres, uma vez que, através da falta de um simbólico na
construção da identidade, a violência torna-se marca da sujeição à relação de poder entre os gêneros.
Assim, há um feminino desprovido de poder e, conforme aponta Chauí (1985), na ausência de poder
há a relação de força, opressão, exploração e dominação de uma classe ou grupo social sobre o outro.
A construção do feminino, segundo a psicanálise, acontece com base na falta de simbolização
da perda do objeto, no caso, a mãe, e a permanência no Complexo de Édipo, que impede as mulheres
de terem uma identidade na ordem simbólica que seja distinta da função materna e as mantém como
“homens defeituosos”. Lacan (1985 apud MIRANDA; RAMOS, 2014) esclarece que, quando se trata
da mulher, o gozo feminino não possui um significante que a represente e delimite um modo feminino
de gozar. Assim, fala-se da possibilidade de transcendência do gozo para além da função fálica. Eis
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que esse gozo ilimitado é o que torna as mulheres frequentemente sujeitas ao sofrimento no tocante
ao amor, uma vez que o parceiro de uma mulher pode ser um parceiro-devastação, na medida em que
falta a ela um significante que localize sua forma de gozar com o outro.
É possível, também, perceber uma postura regredida dessas mulheres, que recriam elementos
tanto da experiência desejada quando da experiência real com os objetos parentais. Assim como a
criança que alucina as experiências de satisfação através de objetos, podemos levantar a hipótese de
que essas mulheres atuam em suas relações de forma regredida, criando em suas mentes “objetos
passionais”, carregados de simbolizações, muitas vezes em prol de necessidades primárias
correspondentes ao desejo do que seria de fato satisfatório.
Na visão dicotômica desse feminino no sistema carcerário, cujos polos correspondem à
mulher dócil e maternal, e à mulher devassa que contraria as responsabilidades familiares e
domésticas, supostamente inscritas em sua natureza feminina, torna as mulheres encarceradas
duplamente desviantes, seja pela transgressão da legalidade ou pela negação das normas que definem
a conduta feminina apropriada, bem como moralmente condenadas ou recriminadas por não terem
atendido às responsabilidades familiares e maternais. Concomitante à identidade negativa que
carregam as presas, o sistema prisional manifesta-se como um espaço com diversas barreiras sociais
e um processo de extrema degradação e despersonalização do indivíduo.
De forma geral, através de todas as regras impostas, esse tipo de sistema obriga os reclusos a
passar por um processo de mutilação do eu, modificações das concepções sobre si mesmos,
degradações e humilhações, resultando em um processo de dessocialização. Além disso, devido à
estrutura egóica já denegrida, acentuada pela rotina institucional opressora, somada, muitas vezes, ao
abandono do companheiro e da família, sintomas psicóticos e psiquiátricos podem ser intensificados,
tão frequentes na instituição carcerária, uma vez que a fantasia e a ilusão tornam-se as únicas
possibilidades de satisfação de desejos.
Em suma, a forma como as prisões são constituídas reflete como se sustentam as relações
sociais, e consequentemente, um estudo sobre o feminino nas prisões é, também, um estudo sobre a
sociedade, sobre o poder, dominação e sobre os mecanismos de disciplina que, de acordo com outros
sistemas opressivos que perpetuam lógicas e práticas de subordinação, restrições e múltiplas
privações. Considerando o contexto social observado na experiência de estágio, a prisão se constitui
apenas como mais um elo de uma cadeia de múltiplas violências que correspondem à trajetória de
uma parte dessa população.
Conclusão
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Os reflexos da formação da identidade feminina no processo de violência e o encarceramento
nos mostram que o dispositivo da diferença sexual, utilizado pela psicanálise para explicar a formação
da subjetividade, restringe essa noção a uma matriz binária compulsória, que faz parte da construção
social que mantém o caráter opressivo e hierárquico das relações de gênero. No caso das mulheres,
percebe-se que há a necessidade da construção de um simbólico que possibilite representações e
sustente a subjetividade feminina, contra os efeitos patriarcais do imaginário masculino.
A constituição do feminismo ocorre a partir da reivindicação consciente das representações
do feminino e da mulher pelas próprias e das próprias mulheres. No entanto, é delicada a questão
de criar um imaginário feminino em torno do simbólico, uma vez que este é completamente
masculino e abandoná-lo seria manter as mulheres sem representações, sem apoio identificatório.
Assim, mais que minimizar a diferença sexual, a saída é afirma-la enquanto um simbólico de si, por
si, independente dos protótipos masculinos e fora do discurso patriarcal.
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2016.
The Woman and The Crime: The feminine symbolics
Abstract: Considering the difficulties that exist in fighting the violence against women, the present
work proposes, from an experience report, to discuss the female in the prison system, an analysis of
imprisoned women discourses, collected during an internship practice of psychology. Likewise,
through desk research, and based on psychoanalytic theory, to reflect the influences of the female
identity construction in the violence process and the submission of women to violent relationships.
The study points out that, in general, including situations of imprisoned women, the social discourse
itself presents a hierarchical and repressive relationships character, including gender relations.
Therefore, the study recommends for the cultural stereotypes deconstruction, there is a need to create
the feminine symbolic, constructed by themselves, based on their experiences, capable of representing
women, with discussions about essentialism, the symbolic law that culture requires, sexual difference
and the political use of psychoanalysis in feminism.
Keywords: Female. Violence. Incarcerated women.
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