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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS I
CURSO DE PEDAGOGIA
JAQUELINE GOIS MOREIRA
A RELEVÂNCIA DO CONHECIMENTO SOCIOLINGUÍSTICO PARA A PRÁTICA DOCENTE NA
ALFABETIZAÇÃO: DO ESTATUTO DO ERRO AO RECONHECIMENTO DA DIVERSIDADE LINGÜÍSTICA
Salvador
2011
2
JAQUELINE GOIS MOREIRA
A RELEVÂNCIA DO CONHECIMENTO SOCIOLINGUÍSTICO PARA A PRÁTICA DOCENTE NA
ALFABETIZAÇÃO: DO ESTATUTO DO ERRO AO RECONHECIMENTO DA DIVERSIDADE LINGÜÍSTICA
Monografia apresentada como requisito para obtenção da Graduação em Pedagogia do Departamento de Educação da Universidade do Estado da Bahia, sob a orientação da Profª. Vivian Antonino.
Salvador 2011
3
FICHA CATALOGRÁFICA : Sistema de Bibliotecas da UNEB
JAQUELINE GOIS MOREIRA
A RELEVÂNCIA DO CONHECIMENTO SOCIOLINGUÍSTICO PARA A PRÁTICA DOCENTE NA
ALFABETIZAÇÃO: DO ESTATUTO DO ERRO AO
Moreira, Jaqueline Gois A relevância do conhecimento sociolingüístico para a prática docente na alfabetização: do estatuto do erro ao reconhecimento da diversidade lingüística / Jaqueline Gois Moreira . – Salvador, 2011. 68f. Orientadora: Profª. Vivian Antonino da Silva. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Educação. Colegiado de Pedagogia. Campus I. 2011. Contém referências, apêndice e anexos. 1. Lingüística. 2. Letramento. 3. Professores. 4. Alfabetização. 5. Sociolingüística. I. Silva, Vivian Antonino da. II. Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Educação. CDD: 410
4
JAQUELINE GOIS MOREIRA
A RELEVÂNCIA DO CONHECIMENTO SOCIOLINGUÍSTICO PARA A PRÁTICA DOCENTE NA
ALFABETIZAÇÃO: DO ESTATUTO DO ERRO AO RECONHECIMENTO DA DIVERSIDADE LINGÜÍSTICA
Monografia apresentada como requisito para obtenção da Graduação em Pedagogia do
Departamento de Educação da Universidade do Estado da Bahia, à seguinte banca
examinadora:
Profª. Msª. Vivian Antonino da Silva ___________________________________
(Universidade do Estado da Bahia-UNEB)
Profª. Msª. Elisângela dos Passos Mendes ________________________________
(Universidade Federal da Bahia-UFBA) Profª. Msª. Marilúcia Magalhães Santos ______________________________________ (Universidade do Estado da Bahia-UNEB)
Salvador, _____ de ___________ de 2011
5
Creio que o mais necessário é duvidar. Creio ser sempre
necessário não ter certeza, isto é, não estar excessivamente
certo de “certezas’’.
Paulo Freire
6
Dedico este trabalho a todas as pessoas: crianças, jovens,
adultos e idosos; vítimas do preconceito lingüístico e de uma
educação precária, que juntos patrocinam a exclusão
socioeconômica a que tais sujeitos são submetidos.
7
AGRADECIMENTOS
Agradecer é, sobretudo, reconhecer que ninguém conquista nada sozinho, é a
compreensão de que para se chegar a um determinado lugar ou num determinado
objetivo foi preciso uma luz divina sempre a nos guiar e, também a contribuição de
outras pessoas. Então, é retribuir a confiança, o carinho e força que essas mesmas
pessoas, às vezes até sem saber, nos transmitiram.
Assim, agradeço primeiramente, a Deus, força suprema (em minha concepção),
que sempre olha por mim, me guia, me ilumina me protege e me ajuda a seguir pelos
melhores caminhos da vida. Depois, a todas as pessoas que de uma maneira ou de outra
me prestaram alguma ajuda ao longo dessa caminhada.
À minha mãe, Raquel Gois, e meus irmãos, Cíntia e Eduardo Gois, que mesmo
indiretamente contribuíram para a concretização desse trabalho.
À professora, Vívian Antonino, pela boa vontade ao aceitar o convite para me
auxiliar na construção desse trabalho. Também, por seu admirável profissionalismo
expresso em pontualidade, assiduidade, compromisso e muita competência.
Ao meu namorado, Adão Mendes, pela inabalável confiança, companheirismo e
amor, dedicados a mim e que suavizaram meus caminhos nos momentos mais difíceis.
Por fim, a todos os meus colegas de turma, dentre os quais destaco Carlos
Eduardo e Cláudia Miranda, companheiros de turma sempre dispostos a me ajudar.
Também, às professoras e crianças, sujeitos dessa pesquisa, por terem me recebido com
tanto carinho e confiança.
8
RESUMO
Este trabalho aborda o tratamento da variação lingüística no âmbito da alfabetização de
crianças de classes populares da cidade de Salvador. Fruto de pesquisas bibliográficas e
de pesquisas de campo, procura mostrar que a Sociolingüística pode auxiliar o docente
alfabetizador em sua principal tarefa, o ensino da língua materna. Para tanto, discute
algumas concepções de alfabetização e letramento que influenciam a prática pedagógica
dos professores, aponta algumas especificidade características do processo de aquisição
da linguagem escrita e discorre sobre alguns conceitos fundamentais desenvolvidos pela
Sociolingüística. Também, apresenta de forma breve alguns conhecimentos necessários
àqueles professores que se ocupam do ensino de língua portuguesa. Por fim, conclui ser
de suma importância a inclusão de estudos sociolingüísticos nos currículos dos cursos
de formação de professores.
Palavras-chave: Variação Lingüística – Alfabetização – Letramento - Sociolingüística -
Professores.
9
ABSTRACT
Questo lavoro esamina il trattamento della variazione linguistica nell'ambito
dell'alfabetizzazione di bambini inseriti in classi popolari della città di Salvador.
Risultato di ricerche bibliografiche e indagini sul campo, il lavoro vuole dimostrare che
la Sociolinguistica può essere di ausilio all'insegnante della scuola primaria nel suo
principale compito di insegnamento della lingua madre. Pertanto, sono trattati alcuni
concetti di alfabetizzazione e letramento che influenzano la pratica pedagogica degli
insegnanti, mettendo in evidenza alcune specificità del processo dell'acquisizione del
linguaggio scritto e alcuni dei concetti fondamentali sviluppati dalla Sociolinguistica.
Inoltre, sono indicate brevemente alcune conoscenze necessarie ai maestri che si
occupano dell'insegnamento della lingua portoghese. In conclusione, è molto importante
includere gli studi sociolinguistici nei programmi di formazione degli insegnanti.
Parole chiavi: Variazione Linguistica - Alfabetizzazione - Letramento - Sociolinguistica
- Insegnanti
10
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO____________________________________________________ 12 2. A APRENDIZAGEM DA LEITURA E DA ESCRITA____________________ 16
2.1. CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO_______________________________ 16
2.1.1. Concepção de alfabetização na perspectiva Behaviorista _______________ 18
2.1.2. Concepção de alfabetização na perspectiva do Construtivismo__________ 19
2.1.3. Concepção de alfabetização na perspectiva do Sociointeracionismo______ 22
2.2. CONCEPÇÃO DE LETRAMENTO___________________________________ 22
2.3. ASPECTOS TÉCNICOS DA ALFABETIZAÇÃO________________________ 25
2.3.1 Particularidades da aprendizagem da leitura_________________________ 25
2.3.2. Particularidades da aprendizagem da escrita________________________ 26
2.4. O TRABALHO COM A ORALIDADE NA ALFABETIZAÇÃO___________ 29
3. CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA À ALFABETIZAÇÃO______34
3.1. LÍNGUA E VARIAÇÃO LINGÜÍSTICA_______________________________34
3.1.1. O erro na perspectiva sociolingüística_______________________________38
3.1.2. Pedagogia Culturalmente Sensível__________________________________41
3.2. A FORMAÇÃO DO PROFESSOR ALFABETIZADOR___________________43
4. CONTEXTUALIZANDO A PESQUISA________________________________47
4.1. VARIAÇÃO LINGÜÍSTICA NA SALA DE AULA_______________________48
4.1.1. Contínuo de urbanização__________________________________________50
4.1.2. Contínuo de oralidade – letramento_________________________________51
4.1.3. Contínuo de monitoração estilística_________________________________51
4.2. AS PROFESSORAS E SUAS CONCEPÇÕES DE “ERRO”________________53
4.3. AS PROFESSORAS E A PEDAGOGIA CULTURALMENTE SENSÍVEL____56
4.4. ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO NA ÓTICA DAS PROFESSORAS____60
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS _________________________________________64
11
REFERÊNCIAS _____________________________________________________67
APÊNDICE _________________________________________________________ 70
ANEXOS __________________________________________________________ 71
ANEXO A___________________________________________________________ 71
ANEXO B___________________________________________________________ 72
ANEXO C___________________________________________________________ 73
12
1. INTRODUÇÃO
A história do Brasil aponta-o como um país cheio de desigualdades sociais onde
só os mais favorecidos economicamente têm os seus direitos garantidos. Aliás, é muito
mais que isso porque só a estas pessoas é garantido o direito de conhecer os seus
direitos. É na Constituição Federal de 1988 que estão registradas as leis supremas da
nação e, também os direitos e garantias fundamentais de cada cidadão, mas, quantos
brasileiros conhecem este texto? Sabemos que mais da metade da população nunca teve
a oportunidade de ler uma parte sequer da Constituição e, os motivos disso são
inúmeros, mas podemos apontar como um dos principais, a não-familiarização dos
indivíduos com a linguagem usada na redação do texto, fato diretamente relacionado à
baixa qualidade da educação que receberam.
Na escola, a língua que estudamos nada tem a ver com aquela usada no dia-a-
dia, os professores e, através deles as gramáticas, apresentam um tipo de linguagem que
desmotiva até os mais entusiasmados dos estudantes. A língua que a escola ensina e
aponta como maneira correta de falar e escrever tem aparência de um código altamente
difícil de ser decifrado e isso provoca uma desmotivação geral nos educandos. Quantos
estudantes apresentam uma verdadeira ojeriza à língua portuguesa e a proclamam como
uma “língua muito difícil?” Mas, isso tudo é na verdade fruto de muitos mitos que
permeiam o imaginário do povo brasileiro e que é alimentado por gramáticos
tradicionais que não aceitam a língua tal qual como ela é, ou seja, como forma de
expressão autêntica dos falantes nativos e portadora de inúmeras variedades lingüísticas.
Com isso, muitos indivíduos são prejudicados, porque vão à escola na expectativa de
aprender e chegando lá se deparam com um tipo de língua totalmente desconhecido e
descobrem que a variedade lingüística usada por eles recebe grande carga de
discriminação social. Tudo isso contribui para que o aprendente se desmotive, abandone
os bancos escolares e perca a oportunidade de ampliar seus saberes lingüísticos.
A escola pública tem oferecido um ensino de língua materna precário e, isso se
inicia já desde a alfabetização, fase escolar reservada ao aprendizado inicial da leitura e
da escrita. Boa parte dos professores que se ocupam da alfabetização não tem
conhecimentos específicos sobre a língua portuguesa e por isso acabam desenvolvendo
uma prática pedagógica muito aquém daquela idealizada em documentos oficiais do
governo como os Parâmetros Nacionais Curriculares (PCN’s). Ao invés de os
13
professores abordarem a língua como um processo em construção e como um elemento
que identifica um determinado grupo social, acabam apontando-a como um
conhecimento pronto e inerte, do qual as pessoas dificilmente conseguirão se apropriar.
Sendo assim, mais da metade das crianças saem da alfabetização e, mesmo do ensino
fundamental I, sem se apropriarem de habilidades mínimas sobre a linguagem escrita,
como grafar e decodificar palavras.
Foi pensando nas ideias acima que este trabalho ganhou relevância e motivação
para ser desenvolvido. O foco do seu estudo é atuação de professores alfabetizadores e,
como estes sujeitos podem desenvolver uma alfabetização mais democrática garantindo
que as crianças oriundas de classes populares se apropriem da linguagem escrita e
ampliem seus conhecimentos acerca da língua oral e saibam utilizá-la nos mais variados
contextos sociais. Fruto de pesquisas bibliográficas e também de pesquisas de campo,
essas últimas realizadas em duas escolas municipais de Salvador no período de outubro
a novembro de 2010, este trabalho teve como principal objetivo identificar se as
contribuições sociolingüísticas acerca da variação lingüística podem auxiliar as
alfabetizadoras em sua principal função (que é garantir às crianças a efetiva aquisição
da linguagem escrita) e para tanto, observou-se o trabalho de duas professoras do ensino
fundamental I: a primeira, identificada neste trabalho como Professora A, lecionava
numa turma de 1º ano; a segunda, identificada por Professora B, era regente de uma
turma de 2º ano. A opção por observar uma turma de 2º ano, quando o foco do trabalho
é a alfabetização, justifica-se no fato de a maior parte das crianças de escolas públicas
levarem, pelo menos, três anos para completar o processo de alfabetização propriamente
dito. Assim, na turma de 2º ano observada, a professora em muitos momentos atuava
como alfabetizadora.
Em relação à pesquisa bibliográfica, é importante dizer que esta aconteceu
concomitante à pesquisa de campo. Dessa forma, cada momento observado, em que se
registravam dados relevantes ao presente estudo, era imediatamente seguido de
reflexões subsidiadas por contribuições teóricas de autores como, Luiz Carlos Cagliari
(1998, 2003), Magda Soares (1985, 2003, 2009, 2010), Miriam Lemle (2003), Marcos
Bagno (2002, 2005, 2007), Stella Maris Bortoni-Ricardo (2004, 2005, 2006, 2010) e
tantos outros que se dedicam ao estudo da alfabetização e também da variação
lingüística na sociedade brasileira.
Das reflexões acerca do que se observou em sala da aula originou-se este texto
que está dividido em cinco capítulos. O primeiro que é este, no qual apresenta-se um
14
panorama geral de todo o trabalho. No segundo, discute-se inicialmente o conceito de
alfabetização e letramento. Depois, busca-se analisar algumas especificidades do
processo de alfabetização, como os aspectos técnicos envolvidos no ensino e na
aprendizagem da leitura e da escrita.
No terceiro capítulo, a discussão recai nos subsídios que a Sociolingüística pode
oferecer à prática da alfabetização. Assim, discute-se: a nova concepção de língua e o
conceito de variação lingüística; a necessidade de substituir o conceito tradicional de
“erro” pelo conceito de diferença entre os modos de falar e, finalmente, a perspectiva de
trabalho em relação a tais diferenças trazida pela Pedagogia Culturalmente Sensível.
Finalizando o capítulo, ainda se tem um breve panorama da qualidade da alfabetização
oferecida pela escola pública, perpassando a formação de docentes alfabetizadores.
O quarto capítulo traz os resultados da pesquisa de campo acompanhados de
reflexões sobre o que se discutiu nos capítulos anteriores. Dessa forma, tem-se a
seguinte organização, primeiro a contextualização da pesquisa e depois os resultados
analisados sob a ótica da Sociolingüística e organizados em tópicos, a saber: “Variação
Lingüística na sala de aula”; “As professoras: como agem e pensam frente ao erro”; “As
professoras e Pedagogia Culturalmente Sensível” e finalmente, “Alfabetização
Letramento na ótica da professoras”.
E, por último o quinto capítulo, no qual são feitas algumas considerações sobre o
tema discutido. Nenhuma conclusão é apresentada porque neste texto considera-se o
processo de conhecimento como algo sempre em construção. Essa pesquisa é então só
um esforço inicial de levar ao curso de pedagogia discussões sobre a relevância do
conhecimento sociolingüístico a prática docente na alfabetização.
Além disso, é importante dizer que a escolha do tema, variação lingüística na
alfabetização, deve-se a observações nos estágios curriculares realizados ao longo da
graduação, como também de experiências em estágios extracurriculares vivenciadas
pela autora deste trabalho. Visitas em escolas públicas de Salvador, assim como
estatísticas do SAEB (Sistema de Avaliação da Educação Básica), indicam um grande
fracasso na alfabetização de crianças de classes populares. Qual(s) a(s) causa(s) disso?
Estudos apontam inúmeras causas, afinal a alfabetização é um processo
“multifacetado”. Entretanto, optou-se por analisar apenas uma dessas possíveis causas:
o descompasso entre os modos de falar dos alfabetizandos e a variedade lingüística
imposta pela escola, já que este foi o aspecto que mais chamou a atenção da autora em
experiências de estágio. Inúmeras foram às vezes em que se pode encontrar com
15
crianças, já maiores de 9 anos, que, em termos de escrita, apenas grafavam o próprio
nome . Muita outras vezes, também, foi possível conhecer crianças com baixa auto-
estima em relação a sua própria fala, que se recusavam a participar das aulas, temendo
escárnio por parte dos colegas e repressão da professora. Acredita-se que todas essas
situações e tantas outras não descritas nesse texto por falta de espaço são, em grande
parte, resultados do preconceito lingüístico fortemente arraigado na escola e na
sociedade em geral.
Por tudo isso, escolheu-se analisar e discutir a contribuição da Sociolingüística à
área da alfabetização. Considerando que este campo de conhecimento estuda as relações
existentes entre a linguagem e os aspectos sociais, acredita-se ser ele um forte
instrumento de luta contra o preconceito lingüístico e, conseqüentemente, um
instrumento a favor de uma alfabetização verdadeiramente eficaz e democrática. A
partir disso, espera-se que o presente estudo desperte a curiosidade de graduandos (as)
em Pedagogia em relação ao tema apresentado, que durante os cursos de graduação
ainda é pouquíssimo discutido.
16
2. A APRENDIZAGEM DA LEITURA E DA ESCRITA
Atualmente falar sobre a aprendizagem da leitura e da escrita significa falar
necessariamente de dois fenômenos: a alfabetização e o letramento. Isso porque
vivemos na sociedade do conhecimento, o que leva a escola a (re) pensar sua atuação e
(re) elaborar suas concepções sobre pontos importantes que permeiam o processo de
aprendizagem da linguagem escrita (momento entendido como crucial para o
prosseguimento dos estudos), a saber: o que é ler e escrever, para que ler e escrever,
como se aprende a ler e escrever e por fim, como se ensina a ler e escrever. Se até, pelo
menos, duas décadas passadas a discussão sobre o período citado centrava-se
exclusivamente no processo de alfabetização, hoje, o mesmo não acontece, visto que é
praticamente impossível a ideia de alfabetização não vir imediatamente associada à
ideia de letramento. Então, será que alfabetizar não basta mais?1 E enfim, o que vem a
ser alfabetização e letramento? A discussão sobre esses pontos será feita levando em
conta as concepções de alfabetização vigentes no Brasil nos últimos anos e também
considerando o surgimento do letramento.
2.1. CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO
O termo alfabetização não possui um único conceito, visto que é um processo
cultural e, assim, suas definições e concepções são elaboradas conforme a sociedade e o
período histórico considerado. Por isso, Cook-Gumperz (2008) fala de alfabetização
como uma “construção social”, ou seja, um fenômeno que ao longo do tempo e do
desenvolvimento tecnológico vai ganhando novos sentidos, quer dizer, não dá para falar
de alfabetização como se esse processo fosse universal e atemporal, uma vez que
sabemos da existência de sociedades sem tradição escrita, como a indígena, e que
sabemos das mudanças ocorridas acerca das concepções de alfabetização no decorrer da
história da educação brasileira. Por exemplo, no Brasil, na década de 70, quando a teoria
de aprendizagem dominante era o Behaviorismo2, a alfabetização era vista tão somente
como a habilidade de ler, escrever e contar, quer dizer, codificar/decodificar
mecanicamente. Já na atualidade, quase três décadas depois do período citado 1 Essa pergunta foi adaptada do título de um artigo (“Letrar é preciso, alfabetizar não basta... mais?”) da professora Maria do Rosário Longo Mortatti. 2 Teoria de aprendizagem que considera o educando com uma espécie de máquina, na medida em que este só aprenderá se for estimulado externamente.
17
anteriormente a alfabetização é reconhecida pela maioria dos estudiosos como Cagliari
(1998) Franchi (2001), Cook-Gumperz (2008), Maciel (2010) e Soares (2003), como
um fenômeno complexo e interdisciplinar, que abrange diversos aspectos, sendo a
habilidade de ler/escrever/contar apenas um deles.
Fala-se da alfabetização como um fenômeno complexo na medida em que ela
envolve, além de aspectos pedagógicos, aspectos lingüísticos, sociais, psicológicos
culturais e muitos outros. Dizendo de outra maneira, para compreender a alfabetização,
já não basta dominar os conhecimentos pedagógicos, mas também reconhecer a
influência de outros condicionantes nesse processo, quer dizer, reconhecer as
particularidades do sujeito, do objeto de conhecimento (nesse caso a língua materna) e o
contexto no qual isso se dá. E fala-se que alfabetização é um processo interdisciplinar
por conta da multiplicidade de aspectos, já apontados, que permite que ele seja
analisado sob a ótica de diversas áreas do conhecimento, como a Pedagogia, a
Lingüística, a Psicologia, a Sociolingüística e tantas outras.
Entretanto o caráter interdisciplinar da alfabetização é apontado como um
obstáculo à constituição de uma teoria sólida e à definição de um conceito, na medida
em que o fenômeno é estudado sob várias perspectivas e a cada hora um aspecto é
sobreposto ao outro, ao invés de ocorrer uma articulação, como destaca Soares
(1985:12)
(...) a alfabetização não é uma habilidade, é um conjunto de habilidades, o que a caracteriza como um fenômeno de natureza complexa, multifacetado. Essa complexidade e multiplicidade de facetas explicam por que o processo de alfabetização tem sido estudado por diferentes profissionais, que privilegiam ora estas ora aquelas habilidades, segundo a área de conhecimento a que pertencem. Resulta daí uma visão fragmentária do processo e, muitas vezes, uma aparente incoerência entre as análises e interpretações propostas.
Com isso, percebe-se que é necessária uma convergência entre os estudos em
alfabetização, pois assim teremos uma definição do fenômeno capaz de contemplar os
múltiplos aspectos que lhes são inerentes. Por isso Soares (1985) chamou a atenção para
a emergência de uma teoria sólida capaz de articular os variados aspectos e as
contribuições teóricas de cada campo de conhecimento. Então, o processo de
alfabetização pode ser estudado sob diversas perspectivas e sua concepção está
condicionada a este fator. A fim de esclarecer melhor tal idéia é que se faz a seguir um
pequeno recorte das três principais teorias (behaviorismo, construtivismo e o
18
sociointeracionismo) que influenciaram a visão de alfabetização em nosso meio nas
quatro últimas décadas.
2.1.1. Concepção de alfabetização na perspectiva Behaviorista
Na teoria behaviorista, a “aprendizagem é um comportamento observável,
adquirido de forma mecânica e automática através de estímulos e respostas”
(MENEZES, 2010:5). Isso quer dizer que, para haver aprendizagem, é necessário um
estímulo externo e a repetição desse estímulo inúmeras vezes. Assim, o alfabetizando
aprenderia por repetição, que nas salas de alfabetização era materializada em exercícios
mecânicos sobre as letras e as sílabas, contidos nas cartilhas porque esta continha uma
gama de exercícios que primavam pela modelagem e pela repetição.
Por muitos anos a cartilha exerceu uma forte influência no ensino da leitura e da
escrita. Era um material que, segundo Cagliari (1998), apresentava inúmeros equívocos
em relação à linguagem e dificultava a aprendizagem, mas, como nesse período a
alfabetização era entendida tão somente como a mecânica da escrita e da leitura, tais
equívocos não eram percebidos. Um desses inúmeros equívocos que vale a pena ser
citado é o tratamento da variação lingüística, aliás, o não tratamento, uma vez que esse
tipo de material abordava apenas a norma-padrão (que é uma forma ideal de usar a
língua), o que poderia levar o aprendiz a acreditar que todas as pessoas deveriam falar
da mesma maneira. Também, tinha o problema de colocar a escrita como uma
transcrição da fala, ideia falsa, já que temos diversas variedades lingüísticas, e a escrita
é uma forma normatizada de fazer registros, isto é, não escrevemos exatamente da
maneira como falamos. Aqui outro ponto importante é a questão dos métodos. A
alfabetização centrava-se totalmente no método que o professor deveria seguir. Ora,
sendo a aprendizagem da leitura e da escrita uma questão de pura técnica e repetição,
cabia ao professor escolher um método de trabalho, ler o manual de instruções e segui-
lo, que os alunos aprenderiam tudo.
A concepção de alfabetização como um período linear, homogêneo e de pura
técnica perdurou até o momento em que as classes mais desprestigiadas socialmente
conquistaram o direito de freqüentar a escola pública, porque antes disso os problemas
subjacentes a esta visão de alfabetização não eram postos em cheque, afinal, os alunos
estavam adaptados à variedade lingüística usada na escola. Logo, não havia
descompasso entre a forma de falar do professor e dos alunos. Sendo assim, acreditava-
19
se que a sala de aula era um espaço homogêneo, no qual todos aprendiam da mesma
maneira: copiando e memorizando.
Para aqueles que seguem o behaviorismo, a aprendizagem acontece apenas por
meio de memorização e exercícios de repetição, a visão de alfabetização se encerra no
ato mecânico de ler, grafar e calcular e está profundamente enraizada na questão dos
métodos3, porque para os adeptos dessa linha, o importante era o método utilizado pelo
alfabetizador, ele é que garantiria o sucesso dos alunos no processo de apropriação da
linguagem escrita. Porém, no começo da década de 80, quando o acesso a escola pública
começa a ser ampliado, chegam ao Brasil duas novas teorias de aprendizagem: o
construtivismo e o sociointeracionismo, fato que influenciaria, profundamente, a
concepção de alfabetização vigente até ali.
2.1.2. Concepção de alfabetização na perspectiva do Construtivismo
As pesquisas de Ferreiro e Teberosky nos anos oitenta inauguraram uma nova
visão de alfabetização no Brasil ao mostrarem que o foco do processo estava no sujeito
que aprende. Pautadas no construtivismo de Piaget, as pesquisadoras elaboraram a
Psicogênese da Língua Escrita, abordagem psicológica que, ao discutir como a criança
se apropria da linguagem escrita, mostra que esta (a criança) elabora hipóteses sobre a
linguagem, contrariando o behaviorismo na medida em que este apontava a criança
como uma folha a ser modelada.
No construtivismo, entende-se que a aprendizagem é uma construção do
aprendente em interação com o objeto de conhecimento, simplificando, “aprender é
construir” (D’ÀVILA, 2005:18). Dessa maneira, a alfabetização passa a ser vista como
um processo individual da criança, que é construído ativamente e de dentro para fora.
Com a alfabetização entendida dessa maneira, o uso excessivo das cartilhas
passa a ser questionado e o construtivismo considerado um novo método de alfabetizar,
que por sua vez, resolveria todos os problemas de fracasso no período inicial de
aprendizagem da leitura e da escrita. Contudo, os problemas não desapareceram porque
“o construtivismo não pode e não pretende ser nem um novo método de ensino da
leitura e da escrita e nem, portanto, comporta uma nova didática da leitura e escrita”
(MORTATTI, 2007:158). Muitos equívocos foram cometidos em razão dessa má
3 Por muito tempo no Brasil vigorou a idéia de que o sucesso da alfabetização dependia apenas do método escolhido pela alfabetizadora.
20
interpretação da teoria construtivista, dentre eles, o espontaneísmo. Numa visão errônea,
diversos professores achavam que, nessa nova concepção de aprendizagem, eles não
deveriam mais ensinar, porque fazendo isto estariam impedindo a criança de construir o
seu aprendizado, quer dizer era preciso deixar o aprendiz descobrir as “regras” da
escrita e da leitura sozinho. Grande equívoco, porque como lembra o professor Becker
(apud SANTOMAURO, 2010: 81) “Professor que não ensina não é construtivista. O
educador deve dominar sua área e conhecer os processos pelos quais o aluno aprende os
mais diferentes conteúdos”.
Na teoria construtivista, o processo de aprendizagem é visto como algo mais
complexo, que exige a participação ativa do sujeito. Logo, a alfabetização ganha uma
concepção mais ampla, pois, aqui, o foco do processo é desviado do professor/ensino
para o educando e sua interação com o objeto de estudo. Assim, na Psicogênese da
Língua Escrita, a criança é considerada um ser pensante, que tem ideias sobre a língua
escrita logo que começa a percebê-la, independente de estar na escola ou não. Assim a
alfabetização, na perspectiva adotada por Ferreiro (2001), é um processo que se inicia
antes da entrada da criança na escola (e não se esgota na sala de aula) e está ligada ao
momento em que ela começa a elaborar ideias sobre o sistema de escrita e a se apropriar
dele. Em poucas palavras, “a alfabetização é um processo de construção conceitual”
(FERREIRO, 2001:16).
2.1.3. Concepção de alfabetização na perspectiva do Sociointeracionismo
Também nos anos oitenta, no Brasil, é difundida a teoria sociointeracionista,
cujo principal representante foi Vygotsky. De acordo com essa teoria do conhecimento,
a aprendizagem é concebida na interação com o outro, afinal o homem é ser social e o
conhecimento, um produto cultural. Quer dizer, a aprendizagem é um processo que
acontece de fora para dentro e a partir da troca de experiências entre os sujeitos. Com
isso, percebe-se que, enquanto no construtivismo o foco da aprendizagem concentrava-
se no aprendiz, afinal o papel do professor4 seria o de “oferecer ajuda” ao aluno que
exerce seu papel ativamente (MAURI, 2006), no sociointeracionismo a aprendizagem
4 Neste texto utiliza-se na maior parte das vezes o termo professora e alfabetizadora, no feminino, para se referir a docentes que atuam na alfabetização porque o número de mulheres que ocupam este cargo é muito maior que o de homens.
21
ancora-se numa tríade: aluno - objeto de conhecimento - professor. Este último seria o
responsável por criar a chamada zona de desenvolvimento proximal (ZDP) no aprendiz,
um conceito criado por Vygotsky para indicar “o lugar onde, graças aos suportes e à
ajuda dos outros, pode desencadear-se o processo de construção, modificação,
enriquecimento e diversificação dos esquemas de conhecimentos definidos pela
aprendizagem escolar” (ONRUBIA, 2006:128).
A divulgação das ideias sociointeracionistas contribuiu para redimensionar o
processo de alfabetização, conferindo-lhe um caráter social, e não apenas individual.
Com isso a alfabetização é pensada em articulação com o letramento, fenômeno
entendido (em síntese) como a apropriação da escrita por um indivíduo, (SOARES,
2009). Já a alfabetização é entendida como um “conjunto de habilidades” que permite
ao sujeito adentrar a cultura letrada e utilizar a linguagem escrita e a leitura de forma
competente (SOARES apud MACIEL, 2010). Como se vê, a alfabetização passa a ser
pensada em sintonia com o processo de letramento. Todavia, há uma clara distinção
entre esses dois processos. Parte-se da idéia de que é inadequado alfabetizar sem letrar.
Entretanto, diferentemente das perspectivas da Psicogênese da Língua Escrita, aqui, o
processo de alfabetização tem suas especificidades (apropriação da leitura e da escrita,
considerando seus aspectos “técnicos”) reconhecidas e não se confunde com o
letramento, mas, coexistem e se articulam. A ideia é alfabetizar letrando, pois é preciso
garantir aos educandos tanto a aquisição da língua escrita como a possibilidade de usá-
la, com autonomia, em qualquer contexto.
Pode-se dizer que o processo de alfabetização envolve dois momentos distintos.
O primeiro, quando o alfabetizando está se apropriando tecnicamente da linguagem
escrita, e o segundo, quando ele consegue fazer uso competente dessa linguagem. A
reflexão assim conduzida mostra que, no momento atual, a alfabetização só pode ser
concebida com sucesso se associada à prática do letramento, afinal a sociedade está
cada vez mais imersa no mundo da escrita.
Por tudo isso, cabe dizer que o termo alfabetização guarda múltiplas acepções
que são definidas de acordo com o campo de conhecimento adotado, com a teoria de
aprendizagem eleita e, sobretudo, com a concepção do que é ler e escrever que se tem.
Contudo, no momento atual, ela tem sido apontada por grande dos estudiosos como a
ação que permite ao sujeito adquirir a tecnologia da escrita. Ação que é permeada de
complexidade porque a linguagem escrita é um produto cultural e como tal também é
complexa.
22
Pelo que foi dito percebe-se que é necessário esclarecer o que vem a ser esse
novo fenômeno que surgiu no universo da alfabetização, que é o letramento.
2.2. CONCEPÇÃO DE LETRAMENTO
Os estudos recentes sobre a aquisição da leitura e da escrita mostram a urgência
de se discutir outro fenômeno, que é o letramento, termo que, segundo Soares (2009),
surgiu, aqui no Brasil, nos anos 80, num trabalho de Mary Kato intitulado “No mundo
da escrita: uma perspectiva psicolingüística”. Contudo, o que seria o letramento? Seria o
mesmo que alfabetização? Soares esclarece que nessa obra de Kato ainda não aparecia
uma definição do termo letramento, que esta só aparecera no ano de 1988, portanto dois
anos mais tarde, num trabalho da autora Tfouni, chamado “Adultos não alfabetizados: o
avesso do avesso”. A partir daí a palavra invadiu o cenário educacional e permanece até
hoje. De 1988 até o presente momento o termo em questão já ganhou várias definições,
sendo usado ora como sinônimo de alfabetização, ora como um processo
completamente distinto e independente que deveria prescindir da alfabetização e ora
como um processo diferente, porém concomitante a alfabetização.
Para pesquisadores como Soares (2003), a alfabetização e letramento
configuram processos distintos, porém simultâneos e complementares. Dessa maneira,
Soares (2010:15) diz: “a alfabetização - a aprendizagem do sistema alfabético-
ortográfico - não poderia ocorrer dissociada dos usos socioculturais da língua escrita, ou
seja, dissociada do letramento”. Com isso, fica posto que o letramento pode ser
entendido como a habilidade de utilizar – de forma competente e autônoma – a
linguagem escrita em diversos contextos sociais. Quer dizer, é preciso saber para quê,
como e quando usar um determinado tipo de texto, já não basta saber grafar e
decodificar, é necessário compreender. Ainda dessa fala, depreende-se uma clara
distinção entre os dois fenômenos, bem como um imbricamento entre eles, uma vez que
não é recomendável que um ocorra sem o outro.
Na sociedade de hoje, tudo gira em torno do conhecimento e da informação. A
cada dia surgem funções mais e mais específicas que exigem dos indivíduos a
competência não só de ler, escrever e calcular mentalmente, mas principalmente de
interpretar e (re) significar informações. Também é preciso que o indivíduo aprenda a
lidar com as mudanças e com as inovações tecnológicas constantes. Portanto, já não
23
basta uma alfabetização, no sentido restrito da palavra, é preciso mais, ela tem que
acontecer articulada com o letramento.
Outra pesquisadora que partilha do mesmo entendimento que Soares é Rojo
(2009:98) quando diz:
(...) o termo letramento busca recobrir os usos e práticas sociais de linguagem que envolvem a escrita de uma ou de outra maneira, sejam eles valorizados ou não valorizados, locais ou globais, recobrindo contextos sociais diversos (família, igreja , trabalho, mídias, escola etc.) , numa perspectiva sociológica, antropológica e sociocultural.
Então, podemos entender o letramento como um fenômeno estritamente
associado à linguagem escrita e de caráter social, não restrito à escola. Ao contrário do
que se pode pensar, o letramento não se limita ao uso competente de gêneros textuais
privilegiados pela escola, mas inclui todos os tipos de textos e veiculados nos mais
variados suportes e contextos, pois, como ficou posto na fala anterior, o letramento é um
fenômeno social e cultural que se refere ao uso da linguagem escrita numa dada
realidade.
Já para Emília Ferreiro (apud SOARES, 2003), letramento e alfabetização são
basicamente a mesma coisa, na medida em que, para ela, a alfabetização já traz em seu
bojo a noção de letramento e, dessa forma, não haveria necessidade de diferenciá-los.
Realmente, poderíamos partilhar dessa visão de Ferreiro se, em nosso meio, o conceito
de alfabetização fosse tão abrangente que englobasse também as especificidades do
letramento, ou seja, se no meio educacional fosse consenso a ideia de que o processo de
alfabetização consiste tanto no domínio da técnica da leitura e da escrita como na
capacidade refletir e utilizar a linguagem escrita em diferentes contextos. Todavia, não é
que acontece em boa parte das escolas, pois, muitas vezes, nos deparamos com
professoras que não só distinguem letramento e alfabetização, como também elegem um
em detrimento do outro, ou seja, acham que a alfabetização já não envolve aspectos
técnicos e habilidades específicas, basta colocar o alfabetizando em contato com uma
gama de materiais escritos. Outros acreditam, ainda, que para o processo de
alfabetização se concretizar, basta o conhecimento da relação entre os sons e as letras.
Por isso, essa necessidade de estabelecer claramente uma distinção entre os dois
processos.
Então, percebe-se que o termo letramento surge para ampliar a noção de
alfabetização e, assim como este, não possui um único conceito e também é um
24
fenômeno complexo. Por isso, alguns estudiosos, como Rojo (2009), chegam a falar em
letramentos, no plural, indicando a grande variedade de manifestações desse fenômeno.
Ora, se o letramento tem a ver com saber usar a leitura e a escrita de acordo com sua
funcionalidade, é aceitável que o termo saia do singular, afinal, a linguagem escrita tem
penetrado cada vez mais em diferentes contextos. Por exemplo, em um só dia, quantas
vezes um indivíduo se envolve em práticas de letramento? Rojo (2009:42) ilustra essa
idéia muito bem quando descreve o cotidiano de uma professora que atua nas séries
iniciais do ensino fundamental I, D. Naná. Em síntese, a autora mostra que D. Naná,
num só dia, participa de múltiplos eventos de letramento, por exemplo: ela começou seu
dia escrevendo um bilhete para sua secretária, depois consultou a agenda de telefones
para procurar o contato de uma assistência técnica, pois precisava consertar um
eletrodoméstico. Depois, acessou a página de seu banco na internet e fez uma transação
on-line. Aproveitou ainda para checar sua caixa de e-mails. Ao terminar, ligou a
televisão para assistir o jornal e, por fim, saiu de casa e pegou o transporte para chegar
ao seu local de trabalho. Tudo isso se deu num curto espaço de tempo, certamente não
durou mais que duas horas, tempo suficiente para D. Naná participar de, pelo menos,
quatro eventos de letramento completamente distintos: escrever bilhete, consultar uma
agenda telefônica, navegar na internet, assistir jornal e pegar um ônibus.
Com isso, fica claro que já podemos utilizar o termo letramento no plural porque
vivemos numa cultura altamente letrada, na qual as pessoas são obrigadas a se
envolverem, direta ou indiretamente, com a leitura e a escrita, afinal, estas aparecem em
todas as esferas da sociedade e não só na escola. Assim, os eventos de letramento são
cada vez mais constantes e não se resumem em escrever bilhetes e cartas, mas abrangem
uma multiplicidade de ações que não podem ser esgotadas nesse texto, mas, a fim de
tornar a ideia mais clara, cabe citar alguns exemplos de práticas de letramento: ir ao
teatro, museu, cinema, assistir palestras, elaborar avisos e utilizar caixa eletrônico.
Outra justificativa para o uso do termo letramentos pode ser encontrada na ideia
de Soares (2009), quando indica que além de vários tipos de letramentos, há também
diversos níveis, porque assim como a alfabetização, é preciso considerar a sociedade e a
cultura na qual o fenômeno é analisado. Em outras palavras, o letramento não é a
mesma coisa e nem na mesma medida para todo mundo, afinal algumas pessoas,
obviamente, se envolvem mais que outras em práticas de leitura e de escrita. Tomemos
como exemplo uma professora universitária e uma secretária do lar (alfabetizada).
Considerando a profissão da primeira pessoa citada, é evidente que esta terá mais
25
envolvimentos com atos de leitura e escrita, no entanto não se pode dizer que a segunda,
quando comparada à primeira, não é letrada, mas pode-se afirmar que elas possuem
níveis distintos de letramento, uma vez que a professora possui mais conhecimentos
sobre a linguagem que a secretária do lar.
A partir de tudo que foi exposto, pode-se resumir o letramento como a
habilidade de usar a leitura e a escrita, bem como um fenômeno que precisa acontecer
associado à alfabetização. Sendo assim, é tarefa da professora alfabetizadora levar para
a sala de aula textos que circulam no cotidiano ao invés de utilizar textos sem
funcionalidade para alfabetizar5. Também é preciso que o trabalho com o letramento
não fique restrito as aulas de linguagem (embora esse seja o foco da alfabetização), mas
perpasse todo o processo de alfabetização, incluindo as aulas de outras disciplinas,
como matemática, uma vez que o letramento é um processo plural.
Esclarecido o que vem ser o letramento, cabe retomar a discussão sobre o
processo de alfabetização, agora, enfocando algumas de suas especificidades.
2.3. ASPECTOS TÉCNICOS DA ALFABETIZAÇÃO
A alfabetização, como já se disse antes, é “um conjunto de habilidades” que,
para sua efetivação, requer também o conhecimento e o uso de técnicas relativas a seu
objeto de conhecimento, a linguagem oral e escrita. Em outras palavras, o sucesso na
alfabetização está estreitamente veiculado ao conhecimento que a alfabetizadora possui
sobre a língua e como ele faz para compartilhá-lo com seus alunos.
Sabemos que a fase da alfabetização é o momento adequado para o educando se
apropriar da linguagem escrita, aliás, seria essa a função primordial da alfabetização: a
aprendizagem da leitura e da escrita. Para tanto, os professores precisam (re) conhecer
as particularidades da língua e desfazer alguns equívocos – que serão apontados mais
adiante. Cagliari (1998) diz que o professor alfabetizador precisa de competência
técnica, ou seja, dentre outros conhecimentos, é necessário “saber como a linguagem
oral e escrita são e os usos que tem” (CAGLIARI, 1998:34). Assim é que poderá
desenvolver uma prática pedagógica eficiente e consciente. Mas que conhecimentos
seriam esses? Nesse texto, buscou-se resposta a esta pergunta nas contribuições de
5 Cagliari (1998) fala que não se deve usar textos inventados e sem sentido (como aqueles da cartilha) para alfabetizar as crianças porque eles não contribuem para a aquisição e apropriação da linguagem escrita, ou seja , para alfabetização e para o letramento.
26
Lemle (2003) e Cagliari (1998), porque ambos apontam uma série de conhecimentos
lingüísticos (e por hora, sociolingüísticos) fundamentais à prática alfabetizadora.
Primeiro trata-se de aspectos importantes relacionados à apropriação da leitura e,
depois, aqueles relacionados à escrita.
2.3.1. Particularidades da aprendizagem da leitura
Em seu livro “Alfabetizando sem bá –bé-bi-bó-bu”, Cagliari é incansável em
afirmar que a principal tarefa do professor alfabetizador é ensinar o aprendiz a ler. Num
primeiro momento, todo o esforço deve voltar-se para o desenvolvimento dessa
competência. Todavia, com isso não se diz para o professor eliminar todas as atividades
de escrita, mas alerta-se para a necessidade de se trabalhar incansavelmente com a
leitura porque “a alfabetização realiza-se quando o aprendiz descobre como o sistema de
escrita funciona, isto é, quando aprende a ler, a decifrar a escrita” (CAGLIARI,
1998:113). Dessa maneira, o autor pontua uma série de conhecimentos necessários a
quem está se apropriando da leitura. Porém, antes de listá-los é preciso esclarecer a
concepção de leitura considerada neste trabalho, que é consoante com aquela
apresentada no livro desse autor.
Neste trabalho, se considera o ato de ler com uma atividade lingüística, mesmo
sabendo que esse ato envolve outros aspectos como biológicos, culturais e psicológicos.
Então, a leitura consiste em decifrar e compreender pensamentos e ideias expressos na
forma escrita. Mas para que uma pessoa desenvolva essa competência, será preciso:
conhecer a língua na qual as palavras foram escritas, quer dizer, o alfabetizando
precisa saber que as palavras as quais irá ler estão escritas no seu idioma; conhecer o
sistema de escrita, isso significa que o aprendiz terá que saber diferenciar letras,
símbolos e desenhos para entender que as palavras representam a linguagem oral;
conhecer o alfabeto, saber que o alfabeto é um conjunto de vinte e seis letras, cada uma
com um nome, que muitas vezes indica o som que elas representam; conhecer as letras,
perceber que podemos usar vários tipos de letras (cursiva, forma, maiúscula...) para
escrever. Também é preciso diferenciar as letras de outros recursos, como sinais
gráficos e de pontuação; conhecer a categorização gráfica das letras, entender que
mesmo mudando a forma gráfica de uma letra, sua função de ocupar uma certa posição
na grafia ainda é a mesma; conhecer a categorização funcional das letras, aqui, o
alfabetizando precisa compreender que não se escreve uma palavra de forma aleatória,
27
que dizer, não podemos escrever as letras em qualquer posição porque elas possuem um
valor sonoro e existem questões ortográficas que precisam ser consideradas.
O autor considera os dois últimos conhecimentos (conhecer a categorização
gráfica das letras, conhecer a categorização funcional das letras) como o mais
importante para o alfabetizando porque reconhecer as letras numa palavra e identificar o
valor sonoro de cada uma é o que possibilita a decifração. É importante pontuar que
Cagliari considera não só os conhecimentos citados anteriormente, mas também outros,
que somam aproximadamente dezessete conhecimentos. Contudo, citou-se apenas os
seis primeiros por achar que os outros já estão contidos nas ideias de Lemle, que serão
apontadas mais adiante.
A partir da análise dos pontos levantados por Cagliari, percebe-se que o
aprendiz, para aprender a ler, precisa dominar técnicas e compreender regras. Assim, a
atuação do professor é fundamental, pois ele é que deverá fornecer as informações
necessárias aos alunos.
2.3.2. Particularidades da aprendizagem da escrita
A aprendizagem da escrita e assemelha-se à aprendizagem da leitura porque as
duas estão relacionadas, afinal, quando lemos é porque algo está escrito, e quando
escrevemos, o fazemos para ser decifrado. Por isso, há uma grande semelhança entre os
conhecimentos lingüísticos requeridos para aprendizagem de uma e de outra. Aliás,
existe mais que uma semelhança, existe igualdade mesmo, pois os conhecimentos
citados em relação à leitura também são de grande relevância para aquisição da escrita,
assim como os que serão citados mais adiante também servem à aprendizagem da
leitura.
É importante não perder de vista a diferença entre um e outro (leitura e escrita).
Assim Cagliari (1998: 178) lembra “para escrever é preciso relacionar cada som da fala
a uma letra, seguir uma ordem de escrita e verificar a ortografia. Para ler, é necessário
associar cada letra um som, somar os sons na ordem e descobrir que palavra está
escrita”. Percebe-se que na escrita é necessário fazer o percurso inverso daquele
realizado na leitura. Se na primeira é preciso associar a letra ao som, na última é preciso
descobrir que som a letra representa.
Parece que escrever é de certa forma mais complexo que ler porque na atividade
de escrita o indivíduo vai representar o pensamento, a fala. Todavia, a escrita não é um
28
registro literal da fala, o que complica o processo de aprendizagem. Por isso, Lemle
(2003) sinaliza que o sujeito necessita, antes de entrar na alfabetização, compreender
cinco pontos fundamentais, são eles:
• Compreender a idéia de símbolo; quer dizer, a criança
precisa estabelecer uma relação entre as letras (símbolos) e os sons da
nossa fala. Por exemplo, ela precisa entender para o som [v] existe uma
representação escrita.
• Distinguir as formas gráficas de cada letra; ou seja,
perceber que uma letra se diferencia da outra, muitas vezes, por causa da
posição de um traço. Um bom exemplo são as letras p e b.
• Ouvir e distinguir diferentes sons; por exemplo, perceber,
na hora da escuta, que existe uma diferença entre o som da palavra mala
e da palavra vala.
• Entender o que é uma palavra; conseguir diferenciar a
unidade palavra de letras, por exemplo.
• Perceber como uma página escrita se organiza; ver que nós
escrevemos de cima para baixo e da esquerda para a direita.
A autora destaca esses cinco pontos como essenciais para não só despertar o
interesse, mas também introduzir a criança no processo de alfabetização, porque, para
ela, os alunos estarão prontos para se apropriarem do sistema de escrita no momento em
que já dominarem as capacidades citadas. Depois disso, é chegada a hora de iniciar o
processo de alfabetização propriamente dito, fase em que a criança deverá se apropriar
de novos conhecimentos, quer dizer, deverá entender as relações existentes entre as
letras e os sons da nossa língua.
A primeira relação a ser compreendida pelo alfabetizando tem a ver com o
entendimento de que cada som é representado por uma letra e vice-versa. Por isso,
Lemle a denominou de monogamia, uma referência à suposta fidelidade entre sons e
letras. A segunda, ao contrário, é a percepção de que algumas letras, quando em
posições diferentes, podem apresentar mais de um som e, o oposto também ocorre, uma
vez que um som também pode ser representado por mais de uma letra, dependendo do
contexto. Essa relação Lemle chamou de poligamia e poliandria (uma alusão ao fato de
um indivíduo ter mais de um matrimônio) com restrições de posição. A terceira e última
relação tem a ver com as letras que numa mesma posição representam o mesmo som.
29
Em outras palavras, “é aquela em que um som, na mesma posição, pode ser
ortograficamente representado por mais de uma letra (LEMLE, 2003:39).
Para autora em questão, o processo de alfabetização acontece em etapas que são
caracterizadas de acordo com as relações entre os sons e as letras e, também com as
hipóteses que o alfabetizando vai elaborando ao conhecer o sistema de escrita. As etapas
seriam:
• Primeira etapa: teoria do casamento monogâmico entre sons e
letras; essa primeira etapa corresponde ao momento em que a criança descobre
que os sons da fala são representados por letras. Porém, nessa fase inicial o
alfabetizando acredita que para cada som existe uma só letra e vice-versa. Como
em nossa língua isso não é totalmente verdadeiro, visto que apenas as letras b, d,
f, p e v apresentam um som só em qualquer posição que se encontre, é necessário
que o aprendiz se dê conta que existe uma grande “infidelidade” entre sons e
letras.
• Segunda etapa: teoria da poligamia com restrições de posição;
nesta etapa a criança percebe que algumas letras possuem mais de um som e que
o contrário também acontece, porém, a posição da letra dará pistas de como a
palavra deve ser lida e com qual letra deverá ser grafada. Para ilustrar, a letra s
quando no início da palavra apresenta o som de [s], mas se ela estiver entre
vogais, seu som será de [z], como em sapato e rosa, respectivamente.
• Terceira etapa: as partes arbitrárias do sistema; nessa fase, o
alfabetizando se dá conta das irregularidades da letra/som, pois percebe que para
um som, numa mesma posição, pode ser usada mais de uma letra. Como
exemplo, o som [u] no final da sílaba ora pode ser representado pela letra l
(sinal) e ora, pela letra u (mingau).
Lemle (2003) sinaliza que as etapas citadas normalmente seguem uma
seqüência, pois o aprendiz, na interação com o objeto de conhecimento, vai avançando
em suas aprendizagens. Para ela, pode ser considerado alfabetizado o sujeito que vencer
as três etapas, porém destaca que a terceira etapa se prolonga por toda a vida, afinal ela
está ligada ao conhecimento da ortografia. Para confirmar tal ideia, basta lembrar que
não é raro nos depararmos com dúvidas ortográficas. Um bom exemplo disso seria a
escrita da palavra exceção, quantas pessoas com longos anos de escolarização não ficam
em dúvida para escrevê-la?
30
São esse os conhecimentos lingüísticos de grande relevância para a
concretização da alfabetização. O aluno que não conseguir construir essas capacidades
terá seu momento de apropriação da escrita abreviado. Todavia, Cagliari (1998) mostra
que o professor pode e deve possibilitar um processo de alfabetização tranqüilo e
eficiente. Para tanto, precisa, além de uma boa formação acadêmica, “conhecer
profundamente o funcionamento da escrita e da decifração e como a escrita e a fala se
relacionam” (p.130), para fornecer as informações corretas e no momento ideal.
A partir de tudo o que exposto até aqui, pode-se dizer que as especificidades da
alfabetização, sugeridas por Soares (2003), repousam no trabalho pedagógico com os
aspectos lingüísticos do código escrito. Logo, a fase de alfabetização não pode ser
reduzida a meras atividades de coordenação motora e tampouco se esgotar em propiciar
a criança o contato com material escrito. É preciso, sim, ensinar o aprendiz a ler e
escrever com autonomia e, para isso, as aulas devem ser planejadas em função desse
objetivo: possibilitar ao máximo o contato das crianças com o código escrito por meio
de materiais que circulam no cotidiano delas, como jornal, convites, embalagens de
biscoitos e muito mais; abolir a prática da silabação, que leva o aprendiz a erros
grosseiros, causando mais confusão do que fornecendo ajuda.
2.4. O TRABALHO COM A ORALIDADE NA ALFABETIZAÇÃO
Além de se trabalhar com a leitura e a escrita na alfabetização, é preciso reservar
espaço para a oralidade porque, também, é tarefa da escola possibilitar o contato dos
alunos com outras formas de falar. Ao contrário do que se pode pensar, a professora não
vai ensinar o alfabetizando a falar, pois, como lembra Bagno (2005:35), “todo falante
nativo de uma língua sabe essa língua.” Portanto, o trabalho com a oralidade tem a ver
com fornecer ferramentas para o aluno saber se comunicar nas mais variadas situações
do cotidiano e não com o mito de ensinar a criança a falar português. Assim, durante o
período de alfabetização, é fundamental a abordagem de conteúdos voltados para a
diferença entre a linguagem oral e a linguagem escrita, bem como conteúdos voltados
para a valorização da diversidade lingüística.
As alfabetizadoras costumam cometer dois grandes equívocos que provocam
sérios prejuízos à aprendizagem das crianças: colocar a escrita como cópia da fala e
supervalorizar uma variedade culta em detrimento das demais variedades lingüísticas.
Quando a alfabetizadora insiste em dizer ao aluno que é preciso observar a fala para
31
escrever, está, na verdade, atrapalhando e não fornecendo a ajuda necessária, pois, fala e
escrita são atividades lingüísticas distintas, exigindo, cada uma, habilidades diferentes.
Considerando as diferenças entre fala e escrita, bem como a multiplicidades de dialetos
existentes no Brasil, recomendar ao aluno que observe a sua fala para escrever ao
mesmo tempo em que a escola considera apenas a variedade de maior prestigio social é,
no mínimo, uma incoerência. Por isso, Cagliari (2003:53) recomenda:
Se se quiser relacionar fatos da escrita com fatos da fala, é necessário antes de mais nada esclarecer alguns pontos importantes. Do lado da fala é preciso estabelecer que dialeto será tomado como base para a comparação, caso contrário haverá uma babel. Do lado de escrita, é preciso distinguir o sistema de escrita e a ortografia.
Contudo, nas salas de aula não é o que se vê, porque só a norma-padrão é
considerada e porque, geralmente, as professoras não sabem fazer a distinção sugerida
por Cagliari: entre sistema de escrita e ortografia. Pode-se citar como exemplo a
construção do conceito de “sílaba”. Sabe-se que a sílaba tem a ver com o som e não com
a grafia, quer dizer, ela é uma “realidade da fala” e não da escrita (CAGLIARI,
2003:119). Porém, contrariamente a isso, é tradição a alfabetizadora trabalhar a noção
de sílaba como um elemento da escrita, confundindo-a com as chamadas “famílias de
letras”, essas sim é que são noções da escrita. Assim, não são raras as atividades nas
quais a professora dá uma lista onde aparecem palavras como NOITE – TEMPO-
TELEFONE, e solicita que o aluno marque a sílaba (na ótica da professora, o TÉ) que
aparece nas três palavras. Mas a dupla TE, apresenta o mesmo som nas três palavras?
Parece que não, afinal não falamos “noité” e nem “ tépo” . Daí o aprendiz fica se
questionando: onde está o TÉ na palavra noite? E a palavra tempo, como pode começar
com TÉ? Não haveria problema algum nesses questionamentos se as alfabetizadoras
tivessem a consciência de que “a relação entre as letras e os sons da fala é sempre muito
complicada pelo fato de a escrita não ser o espelho da fala e porque é possível ler o que
está escrito de diversas maneiras” (CAGLIARI, 2003:117).Assim, a alfabetizadora
poderia auxiliar melhor suas crianças a fim de que estas se apropriem da escrita ainda
durante o primeiro ciclo de ensino. Entretanto, como isso não acontece, os
questionamentos das crianças transformam-se em barreiras a sua aprendizagem.
Dessa maneira, a criança fica retida na etapa inicial da alfabetização (aquela, já
apontada antes, na qual Lemle (2003) diz que o aprendiz escreve exatamente como se
fala), mas completamente cheia de dúvidas e muitas vezes com a sensação de fracasso,
32
pois a professora explicou que a maneira certa é como se escreve e não como se
pronuncia a palavra. Daí o aprendiz tem um grande “enigma” para desvendar: como
aprenderá a escrever se para tal é preciso observar a fala, contudo, a escola diz que sua
fala é “errada”? Como se viu anteriormente, no construtivismo, o educando exerce um
papel ativo em sua aprendizagem, sendo assim, o conflito cognitivo é essencial para o
seu avanço nesse processo. Entretanto, no caso citado, o conflito não é positivo, visto
que este é, na verdade, fruto de um mito (muito presente na escola), que Bagno
(2005:52) caracteriza como “o certo é falar assim porque se escreve assim”.
Esse mito tem a ver com a supervalorização da linguagem escrita. Nessa ótica, a
escrita é vista como uma modalidade superior à fala, pois seria uma forma mais
organizada e formal de se comunicar. Logo, a maneira “correta” de expressão oral seria
aquela empregada na escrita. Todavia, a grafia das palavras é regulada pela ortografia
oficial, quer dizer, por decretos. Isso mostra que não é possível uma homogeneidade
lingüística, como quer a escola, afinal, a ortografia precisa ser ensinada de forma
sistemática, porém, sabe-se que uma enorme parcela da população ainda não tem acesso
a uma educação de qualidade. Além disso, a língua, como afirma Bagno (2005), é viva e
dinâmica, é a expressão de um determinado grupo social; logo, num país tão
culturalmente diverso, não há como existir apenas uma variedade lingüística. Aceitar
este mito é contribuir para a disseminação do preconceito lingüístico e “subtrair” de
centenas de crianças seus “direitos lingüísticos”, como afirma Bagno (1998).
O segundo equívoco mencionado tem a ver com a supervalorização de uma
variedade lingüística em detrimento das demais. Este equívoco está intimamente ligado
ao primeiro, afinal, o mito de que existe uma única maneira de falar, identificado por
Bagno (2005) como a ideia de uma “suposta unidade lingüística”, é o que embasa o
mito discutido anteriormente, aquele no qual o certo seria falar como se escreve.
Embora documentos oficiais da área de educação, como os PCN 6 de Língua
Portuguesa (1997:103), pontuem como um dos objetivos para o trabalho no primeiro
ciclo o desenvolvimento da competência de “participar de diferentes situações de
comunicação oral, acolhendo e considerando as opiniões alheias e respeitando os
diferentes modos de falar”, isso ainda não é comum nas salas de aula, inclusive nas
turmas de alfabetização, nas quais (como se verá no capitulo 4) a linguagem oral
praticamente não tem espaço, pois o trabalho é centrado quase que exclusivamente na
6 Significa Parâmetros Nacionais Curriculares, e é um conjunto de diretrizes para o ensino, divulgado pelo Ministério da Educação, em 1997.
33
linguagem escrita. Acredita-se que uma das razões para isso seja a crença de que existe
um só modo de falar “correto”, e assim seria preciso garantir ao aprendiz a aquisição
desse modo de falar. Tal aquisição aconteceria estudando exclusivamente a linguagem
escrita.
Sim, é necessário garantir às crianças de classes populares o acesso às
variedades lingüísticas prestigiadas, seria essa uma das principais tarefas da escola.
Contudo, é preciso levar em conta a pluralidade lingüística existente no Brasil e
reconhecer que as crianças pobres já sabem falar quando entram na escola; é preciso
retirar os rótulos de “burras”, “ignorantes” e “deficientes” que elas carregam e respeitar
a diversidade lingüística, possibilitando que elas se apropriem de outros falares,
sobretudo daquele mais prestigiado na sociedade, a variedade culta. Para tanto, “a
escola precisa livrar-se de alguns mitos: o de que existe uma única forma “certa” de
falar – a que se parece com a escrita – e o de que a escrita é o espelho da fala – sendo
assim, seria preciso “consertar” a fala do aluno para evitar que ele escreva errado”
(PCN, 1997:31). Em outras palavras, na sala de aula é preciso dar espaço à oralidade,
com ênfase na variação lingüística para que a criança saiba da existência de variadas
manifestações da língua, reconheça a sua como autêntica, mas sem desprezar as demais
e, sobretudo, para que ela compreenda que ocasiões diferentes exigem monitoramento
estilístico, quer dizer, o falante precisa adequar sua linguagem ao ambiente e ao tipo de
situação requerida, por exemplo: um advogado não conversa com seus filhos da mesma
forma em que fala numa audiência. É nesse viés que o trabalho com a oralidade durante
a alfabetização e, também nos anos seguintes de escolarização, deve se desdobrar.
Do pouco que foi exposto até aqui, pode-se concluir que o trabalho com a
linguagem na alfabetização ancora-se em três grandes eixos: oralidade, leitura e escrita;
que neste texto foram apresentados separadamente, mas na sala de aula é preciso que
estejam interligados, como de fato são. A efetiva aquisição da linguagem escrita por
parte da criança depende diretamente da competência técnica da alfabetizadora, porque,
como se viu, crenças infundadas, aliás, fundadas em preconceitos lingüísticos levam as
alfabetizadoras a cometerem equívocos, que por sua vez, prejudicam (quando não
bloqueiam) a aprendizagem das crianças, sobretudo daquelas de classes populares, que
não convivem com práticas de letramentos mais prestigiadas socialmente e, também,
por serem falantes de variedades lingüísticas estigmatizadas. Para encerrar esta
discussão, cabe dizer que uma alternativa a estas alfabetizadoras são as contribuições
teóricas da Sociolingüística. É o que se abordará no próximo capítulo.
34
3. CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUISTICA À
ALFABETIZAÇÃO
A Sociolingüística é um campo de conhecimento que, de acordo com estudiosos
da área, surgiu nos anos de 1960, nos Estados Unidos, a partir dos estudos de William
Labov sobre a língua e suas relações com a sociedade. Desde então, no Brasil, vários
pesquisadores têm se dedicado ao campo da Sociolingüística, dentre eles é possível
destacar Marcos Bagno e Bortoni-Ricardo, pois ambos vêm realizando inúmeros
trabalhos em favor dos “direitos lingüísticos” das camadas socialmente desprestigiadas.
Partindo do pressuposto de que a Sociolingüística estuda a língua, mas levando
em conta os indivíduos que a utilizam e o lugar ocupado por cada um deles na
sociedade, os dois autores citados denunciam o preconceito lingüístico existente em
todas as esferas sociais, inclusive na escola. São contribuições como essas que apontam
para a necessidade de mudanças nas aulas de Língua Portuguesa7. Assim, pode-se
afirmar que desde o seu surgimento até os dias de hoje a Sociolingüística tem prestado
grandes contribuições à área educacional. E isso se dá, principalmente, por conta de
uma gama de conceitos que esta (a Sociolingüística) vem trazendo e que, por sua vez,
favorecem uma nova concepção de língua. Alguns desses conceitos como variação
lingüística, monitoramento estilístico, erro, Pedagogia Culturalmente Sensível e,
também, a nova concepção de língua inaugurada pela Sociolingüística serão discutidos a
seguir.
3.1. LÍNGUA E VARIAÇÃO LINGÜÍSTICA
Na perspectiva sociolingüística, a língua é entendida como uma “atividade
social, um trabalho coletivo, empreendido por todos os seus falantes, cada vez que eles
se põem a interagir por meio da fala ou da escrita” (BAGNO, 2007: 36). Em outras
palavras, tem-se uma nova concepção de língua que, ao contrário de outrora, é pensada
como uma construção social da qual todos os falantes participam, seja pelo discurso
oral, seja pelo discurso escrito. A língua passa a ser entendida como um processo
7 Aqui entenda-se também o período de alfabetização, afinal esta centra-se no ensino da língua portuguesa.
35
heterogêneo, vivo e dinâmico (BAGNO, 2007). Essa nova perspectiva trazida pela
Sociolingüística visa a transformação no ensino de língua materna.
As aulas de língua materna (inclusive nas turmas de alfabetização) ancoram-se
em conteúdos que em nada se relacionam com a realidade lingüística dos educandos.
Em sua maioria, são conteúdos que favorecem muito mais uma “apatia” à língua do que
uma reflexão sobre esta, afinal referem-se exclusivamente a uma norma -padrão , ou
seja, nas salas de aula impõe-se aos aprendentes o estudo de uma norma que não
corresponde ao real, mas ao ideal. A esse respeito, Bagno (2007:96) esclarece:
Como o próprio nome padrão indica, trata-se de um modelo de língua, de uma construção artificial, baseada em algumas variedades regionais, é verdade, mas inspirada também, e em grande proporção, em outras fontes, muito distintas da realidade cotidiana dos falantes, como a escrita literária mais consagrada e a gramática latina.
Percebe-se que o ensino de língua parte de uma noção equivocada do seu
objeto de estudo ao reduzir as aulas a meras análises e descrições das regras de
funcionamento de uma gramática (a normativa) que não é usada por nenhum falante e
nem será, porque se trata, como fica evidente na fala de Bagno, de construções
absolutamente artificiais e distantes da realidade lingüística dos falantes. Por isso, é
preciso que as professoras compreendam a língua sob a ótica da Sociolingüística, ou
seja, como um “processo dinâmico e heterogêneo” capaz de abranger uma grande
diversidade de falares. Assim, é que se poderá vislumbrar uma prática pedagógica
compromissada com o efetivo aprendizado das crianças. Agora, do contrário, o Brasil
permanecerá com elevado índice de crianças incompetentes na leitura e na escrita.
A língua para a Sociolingüística é como uma “espécie de “substantivo coletivo”
: debaixo do guarda – chuva chamado LÍNGUA , no singular, se abrigam diversos
conjuntos de realizações possíveis dos recursos expressivos que estão à disposição dos
falantes” ( BAGNO,2007:39). Isso quer dizer que uma língua não é falada de uma única
forma por todos os falantes e que, assim, é possível falar em variação lingüística.
Hoje, após inúmeros debates, finalmente se reconhece a pluralidade cultural que
caracteriza o povo brasileiro, entretanto, esse reconhecimento parece não se estender à
língua, uma vez que, como se disse antes, a sociedade brasileira ainda é marcada por um
forte preconceito lingüístico.
36
Estudos em Antropologia permitem afirmar que a linguagem é um domínio
cultural (LARAIA, 2000), assim, é incoerente aceitar a idéia de uma nação pluricultural
ao mesmo tempo em que se ignora a coexistência de diversos modos de falar. É um
paradoxo, mas é isso que acontece. A escola, ainda timidamente, tem trabalhado a idéia
da pluralidade cultural, contudo, tal iniciativa ainda está muito centrada no estudo de
grupos que contribuíram para a formação do povo brasileiro, o que significa que
elementos, também importantes, como a linguagem não tem o espaço necessário na sala
de aula. A prova disso é que a esmagadora maioria dos estudantes não conhece nada
sobre a história da língua portuguesa no Brasil.
Acredita-se que a lacuna apontada seja conseqüência do desconhecimento, por
parte dos professores e demais educadores, sobre o fenômeno da variação lingüística,
conceito central no campo da sociolingüística, por favorecer uma nova concepção de
língua. Profissionais dessa área afirmam que a Língua Portuguesa é marcada por uma
grande heterogeneidade (BORTONI-RICARDO, 2005), por conta de seu processo
histórico, o que significa dizer que a mesma coisa pode ser dita de várias formas, sem
que uma seja superior à outra, mas apenas diferentes e características de um
determinado grupo; isso seria a chamada variação lingüística. Contudo, a escola ainda
não reconhece a variação lingüística, já que insiste em estudar apenas norma-padrão,
deixando de lado as variedades e os usos reais da língua.
O fenômeno da variação lingüística ocorre porque, ao contrário do que se
pensava, a língua “não é um sistema autônomo, nem se esgota no código lingüístico [...]
é um fenômeno cultural e histórico fundado numa atividade social e cognitiva que varia
com o tempo de acordo com os falantes” (MARCUSCHI, 1998, 137 apud MARGOTTI;
VIEIRA: 2006:110). Isso quer dizer que a língua não existe por si só, mas se materializa
através dos falantes; estes, por sua vez são condicionados pela cultura e pela sociedade.
Assim, fatores como nível de escolaridade, espaço geográfico, idade e tantos outros
influenciam diretamente no modo como cada indivíduo utiliza a língua. Sendo assim,
conclui-se que o fenômeno da variação lingüística é influenciado por fatores
“extralingüísticos” (BAGNO, 2007) que não podem ser desprezados por aqueles que se
dedicam ao estudo da língua sob a ótica da Sociolingüística. Vale a pena discutir um
pouco sobre alguns desses fatores. Parafraseando Bortoni-Ricardo (2004) e Bagno
(2007) alguns desses fatores são:
Origem geográfica: há diferenças bastante visíveis entre a fala de pessoas
oriundas de regiões, estados e até cidades distintas. Por exemplo, a diferença entre o
37
modo de falar das pessoas que moram em cidades grandes, como Salvador, e aqueles
que residem em áreas rurais.
Gênero: homens e mulheres também usam a língua de maneira distinta. Por
exemplo: “As mulheres costumam usar mais diminutivos: Trouxe esta lembrancinha
para você, [...] A linguagem dos homens, por outro lado, é mais marcada pelos
chamados palavrões e gírias mais chulas, [...]” Bortoni-Ricardo (2004:47).
Status socioeconômico: falantes desfavorecidos economicamente usam a língua
de forma diferente daqueles que possuem mais condições socioeconômicas, pois
geralmente aos primeiros falta oportunidade para apropriar-se dos usos diferentes da
língua, enquanto os últimos, normalmente, nascem e crescem em contextos fortemente
letrados. Dizendo de maneira mais simples, “as diferenças de status socioeconômico
representam desigualdades na distribuição de bens materiais e de bens culturais, o que
se reflete em diferenças sociolingüísticas, (BORTONI-RICARDO, 2004:48)”.
Idade: este fator também contribui para as diferenças sociolingüísticas, visto que
gerações diferentes utilizam a língua também de forma diferente.
Grau de escolarização: “o acesso maior ou menor a educação formal, e, com ele,
a cultura letrada, a prática da leitura e aos usos da escrita, é um fator muito importante
na configuração dos usos lingüísticos dos diferentes indivíduos” Bagno (2007:43).
Mercado de trabalho: algumas profissões também influenciam o repertório
lingüístico do indivíduo. Por exemplo, “uma advogada não usa os mesmos recursos
lingüísticos de um encanador, nem este os mesmos de um cortador de cana” (BAGNO,
2007:44),
Redes sociais: as pessoas agem conforme, em grande medida, o seu contexto
social, ou seja, conforme o meio que vive e as interações que estabelece com outras
pessoas e, isso, obviamente influencia nos usos da língua.
É possível fechar este tópico reafirmando que a variação lingüística existe,
precisa ser reconhecida e legitimada a fim de que os professores, inclusive aqueles que
se ocupam da alfabetização, possam desenvolver uma prática pedagógica
transformadora consoante com o discurso apresentado pelo governo de que a educação
brasileira está dando “saltos” em questão de qualidade. Também por que:
Já é tempo de conferir prioridade ao estudo da “linguagem das maiorias”. [...] Todos que estão familiarizados com a realidade escolar brasileira sabem que a alfabetização de crianças de classe baixa apresenta rendimento alarmantemente pequeno. Entre as diversas causas deste fenômeno, destaca-se certamente o fato de essas
38
crianças se defrontarem na escola com uma norma desconhecida (Bortoni-Ricardo: 2005:37).
Aqui, não se propõe que se deixe de ensinar variedades prestigiadas às crianças
de classes populares, o que se recomenda é que as variedades lingüísticas utilizadas
pelos alunos também sejam consideradas porque, assim, as formas lingüísticas que lhes
são estranhas serão mais facilmente compreendidas, afinal, Paulo Freire já nos ensina há
muito tempo que para ensinar é precisar levar em conta aquilo que o educando já
conhece. Também, a teoria da aprendizagem significativa elaborada por Ausubel (2000)
nos informa que para haver aprendizagem de fato, é preciso que o aluno crie “pontos de
ancoragem” entre aquilo que ele já sabe e os novos conhecimentos que lhes são
apresentados.
3.1.1. O erro na perspectiva sociolingüística
Outro conceito reelaborado pela Sociolingüística é o de “erro”. Se antes as
manifestações lingüísticas que se afastavam das variedades prestigiadas eram
consideradas incorretas e seus falantes tachados de “deficientes culturais”, hoje, as
pesquisas sociolingüísticas inauguram uma nova visão sobre isso ao apontarem:
O que a sociedade tacha de erro na fala das pessoas a Sociolingüística considera tão-somente uma questão de inadequação da forma utilizada à expectativas do ouvinte. [...]. Em outras palavras, diante de um enunciado que a cultura dominante rejeita por conter um erro, a Sociolingüística analisa a variante ali empregada, avalia o prestígio a ela associado e mostra em que circunstâncias aquela variante é adequada considerando-se as normas vigentes.[...] Bortoni-Ricardo (2006:272)
Nessa perspectiva, entende-se que até agora, aquilo que sempre foi apontado
como “erro” é apenas diferente. E por ser externo à cultura dominante é considerado
“erro”. Revisitando a história, é possível perceber que a sociedade, tradicionalmente, só
valoriza aquilo que é característico das classes socialmente prestigiadas. Como
exemplo, pode-se citar um episódio da literatura brasileira, o Movimento Modernista,
iniciado em 1922, no qual diversos artistas tentaram romper com a tradição literária
vigente até aquele momento, que dentre outros aspectos zelava pela linguagem culta e
formal em suas obras. O rompimento do modernismo seria, dentre outros, com o tipo de
linguagem citado, os novos artistas desejavam a incorporação de uma fala mais próxima
39
do cotidiano brasileiro, fala essa considerada errada (FARRACO e MOURA; 1998)
opondo-se às ideias das classes dominantes. Os artistas responsáveis por este
movimento, como Oswald de Andrade, sofreram duras críticas, sobretudo, por escrever
suas obras numa linguagem mais próxima das variedades populares, consideradas
erradas e feias. O exemplo, assim como a fala de Bortoni-Ricardo, mostra que a noção
tradicional de “erro” sempre esteve ligada ao lugar social do falante, quer dizer, uma
dada variedade lingüística utilizada por falante oriundo de classes populares é
imediatamente associada à idéia de “erro”, enquanto isso, variedades lingüísticas usadas
por pessoas com alto poder aquisitivo são logo apontadas como a língua “correta”.
Contudo, é bom esclarecer que do ponto de vista sociolingüístico não há “erro” na
língua portuguesa falada, visto que:
[...] Todo falante nativo de uma língua é um falante plenamente competente dessa língua, capaz de discernir intuitivamente a gramaticalidade ou agramaticalidade de um enunciado, isto é, se um enunciado obedece ou não às de funcionamento da língua. Ninguém comete erros ao falar sua própria língua materna, assim como ninguém comete erros ao andar ou respirar (BAGNO, 2005: 124).
A noção de erro apresentada na fala acima, como também nas outras, deixa claro
que o ponto de vista da realidade lingüística nenhum falante nativo comete erros ao se
expressar oralmente em sua língua. Aqui os chamados “erros” são apenas diferenças
que precisam ser respeitadas. Cabe à escola abraçar tal idéia e entender que os erros
existem, mas do ponto de vista da linguagem escrita, estes sim, precisam ser combatidos
a fim de ajudar os educandos a superarem o chamado “fracasso escolar”.
De acordo com sociolingüístas, a escola e, consequentemente, a sociedade faz
uma grande confusão lingüística, ao colocar erro e português como sinônimos, assim
como outras nomenclaturas, ou como aponta Bagno (2005 125):
[...] existe no nível da língua escrita, a confusão entre português e ortografia oficial da língua portuguesa. No nível da linguagem falada, os termos que se confundem, ou que são tomados como equivalentes, são português, gramática normativa e variedade padrão.
Em relação à escrita comumente ouve-se falar de língua no mesmo sentido
conferido à ortografia. Para ficar mais claro, é só lembrar da clássica expressão
proferida, inclusive por professores de língua materna, diante de escritas
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ortograficamente incorretas, por exemplos, placas de anúncios, as quais aparecem
mensagens como: “loginha de artesanato” ao invés de “lojinha de artesanato",
(BAGNO, 2005, 123) de que é um “erro” de português. Assim, o correto é dizer que se
trata de erro de ortografia e não de língua, pois, como mostra Bagno, a questão é
ortográfica porque a lei diz que as grafias corretas são LOJINHA e ARTESANATO. Já
do ponto de vista da língua, não há interferência no entendimento da mensagem, por
isso esse erro é de cunho ortográfico e não lingüístico.
Língua e ortografia são sistemas distintos, a língua como se viu é uma “atividade
social”, é viva e heterogênea, é espontânea e não precisa ser ensinada. Enquanto isso, a
ortografia é conjunto de regras que determinam a grafia das palavras e assim precisa ser
ensinada de forma sistemática, pois, para que o falante se comunique por escrito, de
maneira eficaz e sem estigma em contextos mais formais (como numa seleção para um
emprego), é necessário que tenha conhecimento da ortografia.
Em termos de oralidade, conforme foi apontado por Bagno, a confusão acontece
em relação aos conceitos de português, gramática normativa e variedade padrão.
O termo português tem sentido equivalente ao de língua, já apontado. Já
gramática normativa não é a mesma coisa que a língua, mas conseqüência dessa, visto
que surgiu para registrar e descrever o modo como os escritores consagrados utilizavam
a língua (BAGNO, 2005). Entretanto, no decorrer da história houve uma inversão e a
situação mudou, a língua é que se tornou subordinada à gramática, uma vez que esta se
tornou um instrumento de poder e de controle (Bagno, 2005). Sobre a variedade
padrão, dá para dizer que esta é a manifestação lingüística característica das classes
mais prestigiadas, afinal, comumente estas possuem níveis elevados de letramento.
Pelo que se viu, é urgente que se acabe com as confusões em torno dos termos
citados, porque assim será possível empreender mudanças no ensino, e, assim, levar os
alunos a conhecerem mais a língua portuguesa e toda sua diversidade, ao invés de
continuar propagando um ensino reduzido, desinteressante, desatualizado e fracassado.
O entendimento de que falantes nativos da língua portuguesa não cometem
“erros de português”, mas que no plano da fala há variedades lingüísticas diferentes e no
que tange à escrita, os erros são relativos à ortografia, certamente contribuirá para uma
sociedade mais justa. É urgente romper com o preconceito lingüístico e aceitar as
diversas formas de falar. Com isso não se quer dizer para abolir o estudo da variedade
lingüística da cultura dominante, ao contrário, entende-se tal estudo como essencial por
conta de sua importância na organização social. Bortoni-Ricardo (2005:15) se referindo
41
à necessidade de a escola reconhecer e atuar sobre as diferenças sociolingüísticas,
esclarece:
[...] os alunos que chegam à escola falando “nós cheguemu”, “abrido” e “ele abome”, por exemplo, têm que ser respeitadas e ver valorizadas as suas peculiaridades lingüísticos-culturais, mas têm o direito inalienável de aprender as variantes do prestigio dessas expressões. Não se lhes pode negar esse conhecimento, sob pena de se fecharem para eles as portas, já estreitas, da ascensão social. O caminho para uma democracia é a distribuição justa de bens culturais, entre os quais a língua é o mais importante.
Partilhando do mesmo entendimento que Bortoni-Ricardo, acrescenta-se que o
sucesso escolar das crianças, aliás, dos sujeitos, que estão em fase de aquisição da
linguagem escrita depende, em grande medida, dos conhecimentos sociolingüísticos que
a alfabetizadora possui.
Como se viu, a mudança de concepção frente à língua e ao “erro” juntamente
com o reconhecimento e a aceitação da variação lingüística é um grande passo em favor
de uma educação pública de qualidade. Também, é preciso dizer que nova postura face
à língua culmina na efetivação de uma pedagogia culturalmente sensível, assunto do
próximo tópico.
3.1.2. Pedagogia Culturalmente Sensível
A escuta sensível, a sensibilidade do professor diante das diferenças
sociolingüísticas, é que pode ser denominado, genericamente de Pedagogia
Culturalmente Sensível. Mas, a fim de esclarecer melhor, cabe pontuar a conceituação
indicada pelo precursor dessa pedagogia:
uma pedagogia culturalmente sensível é um tipo de esforço especial empreendido pela escola, a fim de reduzir os problemas de comunicação entre professores e alunos, de desenvolver a confiança e impedir a gênese de conflito que se move rapidamente para além das dificuldades de comunicação, transformando-se em lutas amargas de trocas de identidade negativas entre alguns alunos e professores. (ERICKSON, 1987:355, apud BORTONI-RICARDO, 2005:118)
Nas salas de aulas, são comuns os problemas de comunicação entre alunos e
professores, que quase sempre têm origem no descompasso entre a fala da criança e a
42
fala da professora. Essa situação tanto pode ser ilustrada com exemplos reais de sala de
aula extraídos de pesquisas sociolingüísticas, como também com anedotas, tirinhas,
cenas de filmes e novelas, trechos de músicas, textos literários e muitos outros. Por
conta do espaço, aqui, será tomado como exemplo apenas um caso real citado por
Bortoni-Ricardo (2004:25), no qual a autora relata o depoimento de uma colega:
[...] Me ocorre, neste momento, o depoimento de uma colega, professora de séries iniciais. Ela se lembra de um grande constrangimento em sua infância, quando recém-chegada da zona rural da Paraíba, apontou para uma palavra no quadro-de-giz e perguntou à professora: “Que palavra é aquela lá em riba? Ao ouvir isso, a professora a ridicularizou em frente dos colegas.
E, uma anedota de Ziraldo (1998) citada por Buranello; Reis (2005:74):
A professora pergunta pro Joãozinho: - se tivesse quatro moscas em cima da mesa e você matasse uma, quantas ficariam? - uma, tia. - uma, Joãozinho??? - claro, professora. A mosca morta. As outras três voariam.
Nos dois exemplos aparecem problemas de comunicação, sendo cada um de
ordem sociolingüística diferente, porém, ambos retratam em descompasso tão presente
entre a fala da professora e dos educandos. No primeiro exemplo, nota-se que a
professora ou não dispunha de referencial teórico necessário para compreender a
variação lingüística ou a ignorava, encarando-a como um “defeito” na fala. Já no
segundo exemplo, embora seja uma anedota, quer dizer, um texto cuja função principal
é divertir o leitor, não se pode negar que na mensagem transmitida está implícita uma
crítica ao modo como as professoras elaboram os enunciados, que muitas vezes
permitem diversas interpretações, mas as professoras, ao se depararem com respostas
coerentes como as de Joãozinho, mas distintas daquela prevista por ela, se surpreendem
e repreendem os alunos. Quem trabalha muito bem essa questão da má formulação nas
perguntas é Cagliari (1998). Ele mostra que muitas vezes, aliás, quase sempre, o
educando erra nas atividades por conta da maneira como os enunciados foram
elaborados.
De uma maneira ou de outra, posturas como as citadas afastam-se da perspectiva
da Pedagogia Culturalmente Sensível porque esta requer da professora uma atitude
respeitosa frente à cultura dos educandos. Hoje, após as contribuições das idéias de
43
Paulo Freire e de tantos outros educadores, entende-se que o mais adequado é
alfabetizar levando em conta o universo cultural dos educandos, incluindo aí a
linguagem. Assim, não se pode mais aceitar posturas como a da professora citada na
fala de Bortoni-Ricardo, de ridicularizar a fala da criança por esta ser distante das
variedades prestigiadas. Dizendo de outra maneira, o que a Pedagogia Culturalmente
Sensível deseja é que o ensino seja voltado para a cultura do educando, mas também
que este tenha a oportunidade de ser apropriar da cultura letrada.
É oportuno lembrar que a Pedagogia Culturalmente Sensível terá lugar nas
práticas pedagógicas no momento em que a escola mudar sua concepção de língua e
aceitar que as crianças de classes populares, antes de entrarem na escola, já sabem falar
perfeitamente a Língua Portuguesa, o que precisam é saber da existência dos diversos
modos de falar, bem como em que momento utilizar cada um. Também, é papel da
escola ensinar a linguagem escrita, esta sim, boa parte das crianças de classes populares
ainda não conhecem. Assim; é importante dizer que:
[...] É objetivo da Pedagogia Culturalmente Sensível criar em sala de aula ambiente de aprendizagem onde se desenvolvam padrão de participação social, modos de falar e rotinas comunicativas presentes na cultura dos alunos. Tal ajustamento nos processos interacionais é facilitador da transmissão do conhecimento, na medida em que se ativam nos educandos processos cognitivos associados aos processos sociais que lhes são familiares BORTONI-RICARDO (2005:128).
Com isso fica posto que a Pedagogia Culturalmente Sensível objetiva incluir nas
práticas pedagógicas conteúdos que tenham relação com a cultura dos educandos.
Acredita-se que isso facilite a aquisição e apropriação de variedades lingüísticas
socialmente prestigiadas que tais crianças ainda não conhecem, mas necessitam
conhecer.
3.2. A FORMAÇÃO DO PROFESSOR ALFABETIZADOR
A prática da alfabetização nas escolas públicas está intimamente associada ao
chamado “fracasso escolar”, afinal, não é raro encontrar crianças no segundo (antiga 3°
e 4° séries) do ensino fundamental que ainda não dominam as habilidades de ler,
compreender e produzir textos compatíveis com o nível de escolarização em que se
44
encontram8. Visitas em escolas da rede municipal de ensino de Salvador mostram o
quão deficiente tem sido a alfabetização oferecida às crianças de classes populares, uma
vez que muitas dessas saem do primeiro ciclo sem ter construído ao menos um
conhecimento seguro das letras do alfabeto. Pode-se dizer que aprender a ler na escola
pública (no tempo reservado para isso) tem sido um privilégio de poucos. Mas, porque
isso acontece? Não seria a escola o espaço privilegiado para isso?
Em razão das variadas pesquisas na área da alfabetização, encontram-se diversas
respostas para tais perguntas, que vão desde a má formação dos professores até, pelo
menos, as críticas ao contexto social dos educandos. Por exemplo, Soares (2003:06)
aponta a “perda da especificidade do processo de alfabetização” como um dos principais
fatores que contribuem para uma alfabetização precária no Brasil. Para ela, muitos
alfabetizadores, como se viu no capítulo anterior, interpretaram a teoria construtivista de
forma equivocada concebendo o processo de aprendizagem como algo puramente
psicológico e que deveria ocorrer de forma espontânea, sem a intervenção do professor.
Essa ênfase exclusiva no educando obviamente culminaria num ensino precário.
Já Bagno, não se referindo especificadamente ao processo de alfabetização, mas
remetendo ao ensino de língua materna, como um todo, denuncia o “preconceito
lingüístico” como o cerne de um ensino deficiente e de uma sociedade cada vez mais
excludente. Também os PCN de Língua Portuguesa (1997:31) indicando necessidades
de mudanças no ensino de língua portuguesa e partilhando quase da mesma concepção
da Bagno, trazem que “O problema do preconceito disseminado na sociedade em
relação às falas dialetais deve ser enfrentado, na escola, como parte do objetivo
educacional mais amplo de educação para o respeito à diferente”.
Aqui, acredita-se que tanto a perda da especificidade do processo de
alfabetização apontado por Soares, como o preconceito lingüístico apontado por Bagno
e pelos PCN, causem prejuízos à alfabetização, inclusive das crianças de classes
populares, por estas pertencerem a um universo cultural distinto daquele que a escola
considera ao elaborar seu currículo. E tudo isso tem relações de causas e conseqüências
como a da formação deficiente que os professores têm recebido. Contudo, é importante
ressaltar que a história da educação brasileira (FREITAG, 2005) indica motivos
políticos e históricos por trás do atual cenário educacional. Assim, não se pode atribuir
toda responsabilidade do péssimo ensino público à atuação dos professores. Agora,
8 Consultar anexo A, no qual se tem o exemplo de um texto produzido por uma criança do 3º ano (2º série do ensino fundamental I).
45
como este texto se limita a destacar a influência da Sociolingüística na alfabetização, é
aceitável que seu foco seja a formação do professor alfabetizador.
Falar sobre a formação de professores requer muito cuidado porque é um tema
que suscita debates e abrange diversos aspectos. Por isso esse texto se limita a abordar
aspectos técnicos fundamentais à prática da alfabetização. A principal tarefa de uma
alfabetizadora, como se sabe, é ensinar a linguagem escrita aos aprendentes, afinal, “(...)
a criança, ao chegar à escola, já adquiriu a competência de entender e de falar, compete
a esta (a escola) fornecer-lhe a habilidade de ler e escrever (...)” Poersch (1986:10).
Dessa maneira, quais os conhecimentos uma alfabetizadora precisa para
desenvolver uma prática pedagógica consoante com a Pedagogia Culturalmente
Sensível? É o que se tentará responder.
Os cursos de formação de professores estão abarrotados de pessoas que não
desejam exercer tal profissão e, que conseqüentemente, ao longo da graduação não se
preocupam em construir e organizar os conhecimentos que irão alicerçar a sua prática
em sala de aula. Existem também aquelas pessoas que atuam como professores valendo-
se apenas da experiência de terem sido alunos, ou seja, eles não possuem uma formação
específica e ainda assim lecionam. E como se não bastasse, existem os cursos de baixa
qualidade (muito numerosos por sinal) que não se preocupam com a formação
intelectual e nem com a competência técnica dos futuros professores, pois o que
desejam é manter a ideologia da cultura dominante. Sobre isso os autores Santos &
Silva ( 2007, p.18) nos dizem:
De forma geral, os professores são formados pela escola clássica (escola básica, ensino médio e universidade) e esporadicamente são “reciclados” ou capacitados para executarem – ou pelo menos tentarem executar – modismos teóricos em suas salas de aula, agindo pouco reflexivamente na sua pratica pedagógica.
Tudo isso contribui para o “caos” que se encontra a educação pública, inclusive
na alfabetização que, como se mostrará no capítulo 4, não tem sido um processo
eficiente. Dito isso, é necessário retomar a pergunta inicial: que conhecimentos são
necessários a uma alfabetizadora? Considerando que:
O alfabetizador é um profissional do ensino de línguas. Ora o ensino de línguas pressupõe, além do conhecimento das técnicas pedagógicas, o
46
conhecimento da estrutura e do funcionamento da língua em questão, bem como dos mecanismos que permitem sua aquisição. Poersch( 1986: 09)
Daí nota-se que para atuar como alfabetizador é necessário que o docente possua
conhecimentos pedagógicos, lingüísticos e principalmente, sociolingüísticos. Através
desses conhecimentos, o professor estará capacitado para realizar intervenções que
potencializem o aprendizado das crianças. Acredita-se que sem tais conhecimentos, o
professor dificilmente saberá intervir diante da ocorrência de falhas na escrita que são,
na verdade, oriundas da influência da fala; também diante do uso de formas não
prestigiadas e de tantas outras situações complexas que surgem na sala de aula. Talvez,
seja possível associar o fracasso de muitas crianças à falta de conhecimentos
lingüísticos e sociolingüísticos de boa parte dos professores.
Então, profissionais que se ocupam da alfabetização devem ter consciência
daqueles aspectos apontados no capítulo anterior que, em síntese, tratam de questões
referentes às particularidades do sistema de escrita da Língua Portuguesa e, também da
relação entre oralidade e escrita. Afinal, seu trabalho é ensinar a linguagem escrita, bem
como novas formas de expressão oral. Por isso, não é aceitável que pessoas sem a
devida formação atuem como alfabetizadoras. Ademais, é indispensável ao
alfabetizador à apropriação de conceitos da Sociolingüística porque :
Sua formação também não pode dispensar o conhecimento acerca dos princípios da heterogeneidade inerente das línguas naturais humanas, que lhe permite admitir a variação e a mudança, as variedades dos alunos, respeitando-as como legítimas e a identificar os vestígios da fala na escrita. Nesse caso, é preciso aprofundar a noção de “erro”, seja decorrente do desconhecimento do uso adequado de letras correspondendo a grafemas (em muitos casos dependendo do contexto), seja proveniente de processos de variação na fala (cf. Mollica, 2006). Para analisar as dificuldades dos alunos, portanto, o alfabetizador deve passar a relativizar a dicotomia certo/errado, proveniente da tradição normativa, e lançar mão de outras explicações. Mollica; Loureiro (2010: 02)
Assim, conclui-se que a Sociolingüística apresenta-se como fundamental à
formação dos alfabetizadores porque através de suas contribuições, como as
apresentadas no início desse capítulo (mudança na concepção de língua, aceitação e
reconhecimento da variação lingüística, relativização do erro e a pedagogia
47
culturalmente sensível) é possível introduzir mudanças positivas no atual cenário da
alfabetização. Então por se acreditar que “a utilização bem-sucedida do universo dos
alunos exige respeito e legitimação do discurso deles, ou seja, de seus próprios códigos
lingüísticos, que são diferentes, mas nunca inferiores”, Freire (1990:75) é que aponta-se
os conhecimentos sociolingüísticos como balizadores de um ensino mais democrático.
48
4.CONTEXTUALIZANDO A PESQUISA
A seguinte pesquisa foi realizada em duas turmas, uma de 1º ano
(correspondente à alfabetização) e a outra de 2º ano (correspondente à 1º série). Cada
uma dessas turmas pertencia a uma escola municipal diferente, porém com
características muito semelhantes. As duas escolas situam-se em bairros populares, Pau
da Lima e Retiro, ambos com elevado índice de violência e exclusão social. Sendo
assim, as crianças que compunham as turmas observadas eram, em sua maioria, filhas
de pais: analfabetos ou com pouquíssimos anos de escolarização; desempregados ou
ocupados em atividades de baixa remuneração, logo, com pouco ou nenhum prestígio
social, como vendedores ambulantes; algumas outras também eram filhas de pais que
tinham envolvimento com tráfico de drogas. Com isso, elas (as crianças) praticamente
não participavam de eventos de letramento senão na escola. Entretanto, nas duas
realidades, as escolas não levam em conta a situação de letramento da comunidade e das
famílias das crianças e, agem como se os alunos estivessem adaptados a contextos
letrados e, conseqüentemente, tivessem uma grande familiaridade com a escrita
(TERZI: 1995). Também, pode-se acrescentar a pressuposição que a escola faz de que
todas as crianças já possuem conhecimento sobre as variedades lingüísticas prestigiadas
por essa instituição. Tudo isso ajuda a configurar o quadro de uma alfabetização
fracassada, como se viu no capítulo três.
Em relação à metodologia adotada, utilizou-se uma abordagem qualitativa,
subsidiada por pesquisas bibliográficas e pesquisas de campo. Para a realização desta
última, além das observações da prática docente, foi preciso usar entrevistas,
questionários e conversas informais com as professoras. Inicialmente, estavam
planejadas apenas observações no campo e entrevistas, previamente elaboradas, mas,
como uma das professoras se recusou a fazer a responder a entrevista foi necessário
utilizar outros instrumentos de pesquisa e outros meios de aplicá-los, como o
questionário por e-mail sugerido pela professora, que alegou se sentir mais a vontade
respondendo um questionário em casa do que respondendo perguntas oralmente.
A análise de dados foi realizada levando em conta algumas respostas das
professoras e as anotações da pesquisadora sobre as aulas. Estas se revelaram muito
mais úteis que o questionário e a entrevista porque nesses as professoras deixaram
algumas perguntas sem respostas. Por isso, nesse capítulo não se encontra uma análise
49
detalhada do instrumento de pesquisa, mas sim uma análise das observações, de
algumas respostas do instrumento de pesquisa e das conversas com as professoras.
Ademais, é importante destacar o perfil sociolingüístico das professoras para
melhor se compreender a atuação delas. Ambas são licenciadas em Pedagogia, uma (a
Professora A, regente da turma de 1º ano) possui longa experiência na área, pois atua
como docente há mais de 15 anos, enquanto a segunda (a Professora B, regente da
turma de 2 º ano) está iniciando na profissão, foi seu primeiro ano como docente.
Também é importante que se diga que a Professora A é oriunda de classe média ao
passo que a Professora B é de origem mais humilde. Visto os aspectos que podem
influenciar no modo como as professoras tratam seus alunos e no modo como lidam
com a diversidade da língua, é hora de discutir aquilo que foi observado ao longo das
visitas.
4.1. VARIAÇÃO LINGÜÍSTICA NA SALA DE AULA
Nas duas turmas observadas, constataram-se muitos modos de falar, tanto por
parte dos alunos como das professoras, afinal, como Bortoni- Ricardo (2004: 25)
lembra:
Na sala de aula, como em qualquer outro domínio social, encontramos grande variação no uso da língua, mesmo na linguagem da professora que, por exercer um papel social de ascendência sobre seus alunos, está submetida a regras mais rigorosas no seu comportamento verbal e não-verbal.
Assim, notou-se, em diversos momentos, que as professoras variavam no modo
como falavam, ou seja, percebeu-se uma variação estilística. Observou-se que a
Professora A variava menos em relação à Professora B, pois ela se expressava na maior
parte do tempo de acordo com a variedade culta, enquanto a segunda usava a variedade
culta, mas usava muito mais marcas lingüísticas características de variedades
estigmatizadas, como se pode ver nos exemplos abaixo (registrados durante as
observações).
Exemplo 1: Aula da Professora A em 04-10-2010
50
Professora: Peguem o livro de Português, hoje vamos leR9 uma fábula e, depois,
estudaremos um tipo de letra chamada maiúscula.
[...]
Após a leitura do texto:
Professora: Pessoal, presta atenção naquilo que tá escrito pra falá palavra correta. Aqui
(apontado para o livro) diz “andaR” e não “anda”. Neim lendo vocês falam certo que
coisa! Agora, eu vou fazer a leitura e vocês prestem atenção que é pra não errar na
próxima veiz. Vejam, eu tenho que ler a palavra como ela está escrita, aqui, por
exemplo, (aponta para a mensagem que está na porta da sala: “Se esqueceu o livro,
volte!”) tem LI-VRO, então eu não posso dizer LI-VU.
[...]
Exemplo 2: Aula da Professora B em 17-11-2010
Após leitura coletiva de um texto
Professora: Vamu gente! E aí, o que cês acharam do texto?
(...)
Professora: Bom, né? Mais só isso? Que assunto o texto fala? Gostaru? Bora gente, é
pra falá, certo?
Podem-se analisar os exemplos acima usando o modelo de variação lingüística
proposto por Bortoni-Ricardo (2004: 52-62), cujas representações imaginárias podem
ser :
Contínuo da urbanização
.............................................................................................
Variedades rurais Área rurbana Variedades urbanas
isoladas padronizadas
Contínuo de oralidade-letramento
..............................................................................................
9 A última letra foi posta em destaque com o objetivo de mostrar a ênfase que a professora dava ao som final.
51
Eventos de oralidade Eventos de letramento
Contínuo de monitoração estilística
..............................................................................................
- Monitoração + Monitoração
Esses modelos que a autora chama de contínuos foram elaborados a fim de que a
variação lingüística seja compreendida de tal maneira que o preconceito lingüístico seja
banido da sociedade. Assim, Bortoni-Ricardo agrupou esses contínuos em linhas
imaginárias que foram representadas acima. Vejamos um pouco do que a autora e
também outros estudiosos, falam sobre cada uma dessas linhas.
4.1.1. Contínuo de urbanização
Nesta linha, estão situados de um lado os falares rurais que ainda não receberam
influência direta da cultura do letramento e do outro, os falares característicos de
comunidades urbanas, que por sua vez são fortemente influenciados pela cultura letrada.
No meio da linha, está o que Bortoni-Ricardo chama de “área rururbana”, que para ela
são comunidades formadas por pessoas que recebem influência dos dois modos de falar:
rural e urbano, por inúmeros fatores como o processo de migração. Nas palavras da
autora:
Em cada uma das pontas dessa linha, nós imaginamos que estão situados os falares rurais mais isolados; na outra ponta, estão os falares urbanos que, ao longo do processo sócio-histórico, foram sofrendo a influência de codificação lingüística, tais como a definição do padrão correto de escrita, também chamado ortografia do padrão correto de pronúncia, também chamado ortoépia, da composição de dicionários e gramáticas. (BORTONI-RICARDO, 2004:51)
Analisando as falas das professoras dentro desse contínuo, é possível dizer que
ambas estão situadas na área das variedades urbanas padronizadas, visto que possuem
nível de escolaridade elevado, estão frequentemente envolvidas em práticas de
letramento e nas falas transcritas não aparecem traços descontínuos, quer dizer falares
característicos da zona rural e que são estigmatizados por falantes urbanos (BORTONI-
52
RICARDO: 2004). Agora, foram percebidos traços graduais nas duas falas, ou seja,
traços que aparecem na fala de todas as pessoas, a saber: cês, falá, tá, veiz.
4.1.2. Contínuo de oralidade – letramento
Nesse contínuo, podem-se localizar os eventos da oralidade e do letramento,
assim Bagno (2007: 55) explica: “o contínuo oralidade-letramento nos indica se a
atividade verbal naquele momento de interação está mais próxima das práticas orais ou
mais próximas das práticas letradas, ou seja, práticas que de algum modo se apóiam na
leitura e na escrita”.
Para esse contínuo, os autores costumam citar como exemplo uma aula, porque
nessa há práticas da oralidade e também do letramento como nos exemplos anteriores:
no exemplo 1, primeiro ocorre um evento da oralidade (quando a professora diz aos
alunos a seqüência didática do momento) e depois um evento de letramento, visto que
as colocações dela são relativas a uma leitura feita pela classe. Assim, Bagno (2007:55)
continua:
Durante uma mesma aula, por exemplo, a professora pode alternar entre esses dois tipos de prática: quando se dirige aos alunos para chamar sua atenção, para pedir alguma mudança de atitude deles, para contar a eles alguma história ou comentar algum relato de experiência pessoal feito por eles, a professora está no universo da oralidade, e seu modo de falar certamente vai trazer as marcas disso. Se, logo em seguida, ela começa a explicar algum conceito que está sendo estudado, usando a terminologia própria da disciplina, ou se escreve algo na lousa e comenta, ou se lê em voz alta um texto escrito, sua fala decerto apresentará características diferentes da que apresentava agora há pouco.
Nos exemplos vistos, de acordo com a fala de Bagno, as professoras estão no
universo do letramento, visto que a Professora A faz colocações sobre a maneira como
os alunos lêem e usa uma mensagem escrita para exemplificar a idéia que está tentando
transmitir. Já a Professora B solicita aos alunos comentários sobre um texto que acabou
de ser lido pela turma. Com isso, fica evidenciado que, num mesmo evento, podem
ocorrer tanto práticas de letramento como de oralidade, não havendo então uma barreira
entre as pontas dessa linha (BORTONI-RICARDO: 2004).
4.1.3 Contínuo de monitoração estilística
53
Nesse contínuo, Bortoni-Ricardo insere tanto falas espontâneas quanto falas
mais monitoradas. A autora esclarece que todos nós, em algum momento, monitoramos
a nossa fala, por conta de fatores como o ambiente, o nosso interlocutor e o tópico da
conversa. Para ficar mais claro:
Nós nos engajamos em estilos monitorados quando a situação assim exige, seja porque nosso interlocutor é poderoso ou tem ascendência sobre nós, seja porque precisamos causar uma boa impressão ou ainda porque o assunto requer um tratamento muito cerimonioso. (BORTONI-RICARDO, 2004:63)
Com isso, pode-se afirmar que tanto a Professora A como a Professora B
monitoram a própria fala. No que tange a Professora A, dá para perceber que ela (no
exemplo apresentado) varia muito pouco no modo como fala, porém, em situações mais
informais, como numa conversa em particular com o aluno, ela monitorou menos a fala
e assim, se aproximou mais do contínuo da oralidade. Vejamos:
Exemplo 3: aula da Professora A em 07/10/10
Professora: Tá chorando por quê? Te bateram?
Aluno: Não!
Professora: Então, diz pra pró o que você teim...
Aluno: Meu dente tá dueno.
Professora: Vem cá... Fique no cantinho, não se junte com os outro, que vou
ligar para sua mãe pra ela vim te pegá.
A professora vai em direção à porta, mas antes diz à pesquisadora:
Professora: Você olha aí, enquanto vô aqui telefonar pra casa dele? Essas
criança de hoje em dia é tudo cheia de dengo...
Nesse exemplo, fica explícito que a professora não prestou atenção em sua fala,
pois foi influenciada pelos “tópicos da conversa”, que, naquele momento foram,
primeiramente, um diálogo mais carinhoso com um aluno e, depois uma solicitação de
favor a pesquisadora. Assim é possível afirmar que nesses momentos ela não monitorou
54
a sua fala, que no contínuo de monitoração estilística pode ser situada na ponta esquerda
da linha, onde se encontram falas menos monitoradas.
Já a fala Professora B (no exemplo 2), mesmo sendo decorrente de um evento de
letramento (leitura de um texto), parece não ter sido monitorada, ou então, a professora
se monitorou muito pouco, afinal, ao usar marcas lingüísticas como “bora”, “cês” e “
gostaru”, ela se afasta das construções lingüísticas aceitas por estilos de fala mais
monitorados. Ainda em relação a essa professora, é importante pontuar que nos
momentos em que ela explica a matéria aos alunos, ou que transmite algum aviso, usa
uma linguagem mais monitorada, mais próxima do contínuo de letramento, agora, em
outros momentos, quando, por exemplo, indaga os alunos sobre o que fizeram no final
de semana ou mesmo quando os questiona sobre alguma atividade, ela presta menos
atenção a seu modo de falar, exatamente como se viu na última fala de Bagno. Outra
coisa importante de se dizer é que tal professora demonstrou não ter consciência do
monitoramento estilístico que faz porque, quando questionada sobre a existência da
variação lingüística na sala de aula respondeu:
Sim, a variação existe, eu sei disso, mas eu acho que na sala de aula ela não aparece não. Mesmo as crianças pequenas, elas sabem que tem um jeito de falar na escola, com a professora e tal. Elas não falam de qualquer jeito, como falam na rua. E eu, eu sei que temos que dar o exemplo na hora de falar, por isso sempre falo de forma bem clara, bem explicada e até mesmo bem formal.
Dessa fala, depreende-se que a professora monitora o seu modo de falar, porque
contrariamente ao que fez quando conversava com seus alunos, no momento da
entrevista ela utilizou traços lingüísticos mais característicos das variedades de prestígio
social. Com isso, conclui-se que ela monitora sua fala, mas não se dá conta disso. Aliás,
ela até explica que na escola é preciso falar de outra forma e que todos sabem e fazem
isso, inclusive as crianças. Contudo, ao fazer tal afirmação ela quer dizer na sala de aula
todo mundo fala da mesma maneira o tempo todo, ou seja, a sala torna-se um ambiente
linguisticamente homogêneo. Mas, a própria dinâmica da sala de aula (como já se viu)
mostra o quanto ela está equivocada.
55
4.2. AS PROFESSORAS E SUAS CONCEPÇÕES DE “ERRO”
As professoras observadas demonstraram ter concepções distintas acerca das
diferenças nos modos de falar das crianças, também denominadas de “erros” por muitos
estudiosos que ainda não aceitam a existência da variação lingüística. A Professora A
explicitou uma concepção mais tradicional e consoante com tais estudiosos como se
pode ver no exemplo abaixo.
Exemplo 4: aula da Professora A em 20/10/10
Aluna: Pró, na “pralha” eu só gosto de “ficá” na água...
Professora: É?
Aluna: É mais mainha tem medo “de eu se afogá” na “pralha”.
Professora: Dilma, eu já falei a você que se diz PRAIA e não “PRALHA”, que
mania de falar errado, parece que gosta. A gente cansa de ensinar, esses meninos não
aprendem! É praia!!
Aqui, nota-se que, na concepção dessa professora, existe um modo correto de se
falar, logo as manifestações lingüísticas diferentes desse modelo são consideradas
erradas, e a criança que tenta compartilhar suas experiências do final de semana tem seu
relato interrompido porque usou uma palavra que carrega grande carga de estigma
social (“pralha”). Com isso, não se quer dizer que a professora não deveria intervir na
fala da criança; pelo contrário, deve sim, porque como se viu nos capítulos anteriores, é
papel da escola garantir às crianças a apropriação de variedades lingüísticas de grande
prestigio social. Contudo, é importante levar em conta aquilo que Bortoni-Ricardo
(2004:42) recomenda:
É preciso conscientizar o aluno quanto às diferenças para que ele possa começar a monitorar seu próprio estilo, mas esta conscientização tem de dar-se sem prejuízo do processo ensino/aprendizagem, isto é, sem causar interrupções inoportunas. (...) Mais importante ainda é observar o devido respeito às características culturais e psicológicas do aluno. (...)
Então, a conscientização não pode ser de qualquer jeito nem em qualquer
momento. É preciso que a alfabetizadora tenha sensibilidade ao apontar outras formas
56
de falar para que a criança não se sinta humilhada, porque, quando isso acontece, o mais
comum é a criança desenvolver apatia às aulas.
Enquanto isso, a Professora B demonstra entender que as diferenças na fala das
crianças não têm a ver com erro, visto que, em todos os momentos observados, ela
mostrou respeito pelo modo como cada criança se expressava verbalmente e algumas
vezes tentando intervir. Um exemplo do que se diz:
Exemplo 5: aula da Professora B em 17/11/10
Após problematização das imagens e da leitura do texto
Aluna (falando sobre uma gravura do texto): Pró, aqui ela é uma “pranta” e aqui
um bicho.
Professora: Isso, Larissa! Na primeira ele é uma planta (enfatizando a última
palavra), muito bom!
Aluna: É, aqui ó (apontando), agora a “pranta” é um bicho!
Professora: Gente é isso mesmo que Larissa falou. Na primeira foto a gente
pode ver uma planta e na segunda a gente já vê um bicho. Então, essa planta se
transformou num bicho...
Nisso, entende-se que essa professora não aponta erros na fala, mas compreende
que a criança faz uso de variedades socialmente desprestigiadas e logo pronuncia a
palavra (planta) conforme a norma-padrão, talvez na intenção de que a criança perceba a
diferença e internalize-a. Comparando as ações dessa professora às suas repostas sobre
questões relativas à noção de “erro” na língua, percebe-se que sua fala é coerente com
suas ações, pois, em entrevista, ela disse:
Não vejo erro na fala de meus alunos. Eu vejo que eles falam como eles “vê” os pais falar, então não é erro, é o jeito que eles conhecem. Meu papel ai é mostrar o jeito que todo mundo tem que falar, porque esse jeito existe e a escola quer ensinar isso.
Contudo, há que se chamar a atenção para o trecho em que ela declara “Meu
papel aí é mostrar o jeito que todo mundo tem que falar”, pois, fica explícito que a
Professora B realmente não tem consciência da existência do monitoramento estilístico,
embora reconheça a existência da variação lingüística e não acredite que ocorra erro no
57
domínio da oralidade. Em outras palavras, ela reconhece que existe mais de um modo
de falar e que seus alunos são falantes de um desses modos, porém salienta que todos
devem aprender a variedade lingüística ensinada na escola (o que realmente é
fundamental) porque esse modo seria o estabelecido como o correto. Ora, a professora
não acredita que a variedade lingüística utilizada por seus alunos seja errada, mas
admite que exista um modo correto de se falar, não seria isso uma contradição? Porque
se há um modo correto de se falar é porque todos os demais são incorretos. Tais
conclusões parecem contraditórias, mas talvez isso se deva a lacunas no processo de
formação (graduação), pois, como ela própria revelou, na universidade não teve a
chance de estudar o fenômeno da variação lingüística. Por isso, Margotti e Vieira
(2006:122) enfatizam que:
Um dos aspectos fundamentais a ser incluído na formação de professores, tanto nos cursos de letras quanto nos demais cursos de licenciatura, é a conscientização de que o ensino da variedade padrão escrita deve incluir, necessariamente, o conhecimento próprio da fala (do aprendiz), com suas variantes, e da(s) fala(s) das comunidades, com suas variantes, onde o professor irá atuar exorcizando o preconceito de que o aluno fala “errado” e que a “pretensa fala uniforme” preconizada pela escola (isto é, dos professores) é a correta.
Percebe-se que as duas professoras observadas têm concepções distintas acerca
da língua. Enquanto a Professora B, embora com lacunas na formação acadêmica, aceita
a fala de seus alunos e tenta intervir no sentido de ajudá-los no processo de apropriação
da norma-padrão, a outra (Professora A) é mais tradicionalista e exige que seus alunos
se expressem verbalmente de acordo com as variedades de prestígio. Esta última
professora, com efeito, apesar de ter participado de cursos de capacitação para docentes,
cujo tema foi variação lingüística, não acredita que as pessoas não cometam os ditos
“erro de português” no plano da fala. Para ela:
Todos devem se esforçar para falar corretamente, eu mesma me esforço ao máximo para só falar a norma-padrão. É feio um estudante dizer coisas como “a gente fomos” e “bassoura”. Eu sei que tem muito pesquisador que acha isso certo, que a gente não tem que corrigir os alunos, mas, eu corrijo sim, se não, como vão aprender?
Nos momentos observados foi isso mesmo que se percebeu, uma professora
intolerante no que tange à variação lingüística e reprodutora das ideologias da cultura
58
dominante, visto que, em alguns momentos, fazia avaliações negativas sobre a fala de
seus alunos e também sobre a fala da comunidade onde a escola está situada. Entretanto,
é possível atribuir tal postura a seu perfil sociolingüístico. Considerando que ela é
oriunda de classe média e, portanto, ao longo da vida esteve em contato com estilos de
fala mais monitorados, bem como com práticas de letramento, não é de se estranhar que
tenha dificuldades para lidar com as diferenças.
4.3. AS PROFESSORAS E A PEDAGOGIA CULTURALMENTE SENSÍVEL
A Pedagogia Culturalmente Sensível, como se viu antes, tem a ver com o olhar e
atuação sensível e respeitosa em relação à cultura dos alunos, inclusive à língua. Assim,
neste tópico, analisa-se a atuação das professoras frente ao universo cultural e
lingüístico dos alunos.
Em relação à Professora A, já ficou posto que esta não leva em consideração a
cultura dos educandos. Para ela, o importante mesmo é ensinar a norma-padrão,
independente dos conhecimentos prévios que seus alunos possuem, ou seja, ela invalida
a variedade lingüística que as crianças conhecem e supervaloriza as variedades
prestigiadas. Assim, ela se opõe totalmente à perspectiva trazida pela Pedagogia
Culturalmente Sensível, que, dentre outras, propõe: “aproveitar as experiências e
vivências que as crianças trazem consigo, repetindo padrões interacionais que lhes são
familiares” (BORTONI-RICARDO, 2005:209). Então, o mais apropriado seria que essa
professora permitisse que suas crianças se manifestassem de forma espontânea e, a
partir de tais manifestações, elaborasse planos de intervenções que favorecessem a
apropriação de variantes prestigiadas. Contudo, não é o que acontece.
Ainda em relação à Professora A, e sua atuação como alfabetizadora, é
importante dizer que, em sua turma, composta por aproximadamente 32 alunos, pelo
menos metade ainda não demonstrava um conhecimento seguro das letras do alfabeto,
isso já no final do ano. Alguns poucos já conseguiam ler e escrever com certa
autonomia, porém a maioria ainda estava longe de adquirir tais competências10. Quando
indagada sobre tal situação, a professora respondeu que isso se devia mais ao fato de a
família não dar atenção às crianças e deixar tudo por conta da escola. Ela também
destacou que as crianças não se esforçavam por conta da preguiça e da grande vontade
10 Ver em anexo B, no qual se tem uma carta produzida por uma dessas crianças que utilizou desenhos porque não sabia expressar em palavras a mensagem que queria passar.
59
de brincar o tempo todo. Decerto, o processo de alfabetização envolve múltiplos
aspectos, sendo que as intervenções das professoras aparecem como um dos pontos
mais importante ao sucesso da criança nesse processo (POERSCH, 1986). Entretanto,
tal professora não mencionou sua atuação ao apontar os motivos para o “fracasso” da
turma.
Ademais, há que se dizer que a Professora A costumava dividir a turma de
acordo com o nível cognitivo de cada aluno. Dessa forma, a turma ficava dividida em
três grupos: os que sabiam ler, aqueles “mais ou menos”, ou seja, aqueles que liam
palavras mais simples e, no último, ficavam aqueles considerados mais “fracos” porque
ainda estavam na fase inicial de aquisição do alfabeto. De acordo com a Pedagogia
Culturalmente Sensível, não haveria problemas nesta estratégia, desde que todos os
alunos fossem atendidos e tivessem a oportunidade de aprender garantida. Só que isso
não acontecia, pois a professora costumava dispensar maior atenção aos dois primeiros
grupos, enquanto o último era ocupado de atividades irrelevantes, usadas mais com a
intenção de passar o tempo do que de levá-los a aprender.
Quanto à Professora B, esta demonstrou mais sensibilidade à cultura dos alunos,
embora acredite no mito de que existe uma única forma de falar, a da cultura dominante
(BAGNO, 2005). Mas ainda assim, quando comparada à Professora A, ela se mostra
mais preparada para ensinar a língua materna. Vejamos:
Exemplo 6 : Aula da Professora B em 23/ 11/10
Aluno: Eu “sô o patinho mais grande”, “eu sô o patinho mais grande...”
Outros alunos : ( gritando) Ah,ah, ah,ah! Ó pai pró...
Professora: Gente vamos parar? A gente já viu que é melhor dizer maior ao
invés de “mais maior”, não foi?
Alunos: Foi!
Professora: Mas, também a gente não precisa rir do colega, assim ele fica triste,
com vergonha e não vem mais.
(...)
A aula continua. A professora está fazendo um gráfico das frutas preferidas da
turma. (...)
Aluno 1: Eu gosto de uva...
Aluno 2: Sô mais marçã ...
60
Aluno 3: Pá mim é manga....
Professora: Pronto, estamos terminando, só falta você Rodrigo.
Aluno 4: Pó vei, to na dúvida... Manga, manga é “mais melhor”.
Professora: Então tá! “Umbora” contar as mais votadas?
Temos aí dois exemplos flagrados quase que ao mesmo tempo. No primeiro, a
professora faz intervenções sobre o uso de traços lingüísticos estigmatizados e chama
atenção para que a turma não ridicularize o colega, contudo, nessa mesma fala, ela
explicita um preconceito, uma crença sua (que, aliás, já foi apontada em outro
exemplo): seria “melhor” falar assim do que de tal maneira. Mas, por que melhor?
Analisando todo o material sobre as aulas dessa professora, pode-se entender que ela
apenas se equivocou na escolha do termo, porque como ela mesma explicou: “na
verdade eu quis dizer que é mais apropriado a pessoa falar maior porque essa é a forma
aceita pela sociedade”.
Já no segundo momento, a professora não intervém diante do uso de formas não
padrão, como “pá” no lugar de para, “imbu” ao invés de umbu e, “mais melhor” no
lugar de melhor. Sobre isso, Bortoni-Ricardo (2005:192) explica:
(...) uma pedagogia culturalmente sensível (...) está atenta às diferenças entre a cultura dos alunos e a da escola e alerta para encontrar formas efetivas de conscientizar os educandos sobre essas diferenças. Na prática, contudo, esse comportamento ainda é problemático para os professores, que ficam inseguros sem saber se devem corrigir ou não, que erros devem corrigir ou até mesmo se podem falar em erros.
Acrescente-se a isso, o fato de essa professora não possuir conhecimentos
sociolingüísticos. Como ela mesma afirmou são os conhecimentos advindos das
contribuições de Paulo Freire que a ajudam a desenvolver uma prática pedagógica mais
sensível às diferenças culturais existentes entre a escola e os alunos. Porém, como ela
trabalha principalmente com ensino de língua materna,11 necessita também de subsídios
da Sociolingüística para realizar intervenções pedagógicas que possibilitem aos alunos a
apropriação de variedades lingüísticas de grande prestígio social, sem, contudo,
desrespeitar o universo cultural de cada uma das crianças.
11 O 2º ano (turma que essa professora leciona) é na verdade uma extensão da alfabetização já que metade das crianças que compunha a turma ainda não sabia ler.
61
Finalizando, cabe reafirmar que a Professora B, quando comparada à Professora
A, desenvolve uma prática pedagógica mais consoante com a Pedagogia Culturalmente
Sensível, embora não tenha participado de tantos cursos de capacitação docente como a
segunda professora. A Professora A, acreditando na existência de uma só cultura e de
um só modo de falar, promove uma alfabetização cheia de lacunas. Em contrapartida, a
Professora B tenta fazer com que cada aluno avance em suas aprendizagens, mesmo
aqueles mais desmotivados. Assim, o desenvolvimento de uma Pedagogia
Culturalmente Sensível se apresenta como ótima alternativa para ambas as professoras
porque traz uma nova perspectiva de ensino e possibilita que as variedades lingüísticas
socialmente desprestigiadas também tenham lugar na sala de aula. A prática
desenvolvida pela Professora B, mesmo sendo mais consoante com a Pedagogia
Culturalmente Sensível, em relação à prática da Professora A, ainda traz lacunas que
precisam ser preenchidas a fim de que as crianças tenham uma melhor aprendizagem.
Por exemplo, ela precisa estar mais atenta ao seu modo de falar, porque o professor,
querendo ou não, serve de modelo para o aprendiz. Assim, o uso intenso de marcas
lingüísticas próprias de variedades de estigmatizadas (como se viu nos exemplos) tende
a reforçar esse uso nas crianças, levando-as a acreditar que tais variedades podem ser
usadas em qualquer lugar e a qualquer hora, afinal, a professora também fala assim.
4.4. ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO NA ÓTICA DAS PROFESSORAS
Outro item importante para compreender a maneira como as alfabetizadoras
vêem a variação lingüística durante o processo de aquisição da linguagem escrita pela
criança foi a concepção que ambas traziam sobre a alfabetização e o letramento.
Para a Professora A, alfabetização e letramento são processos simultâneos, e
porque não dizer idênticos, uma vez que, para ela, não existem fronteiras entre um e
outro. Como foi mostrado no capítulo 1, não existe problema algum nessa concepção,
afinal, a própria Emilia Ferreiro não estabelece uma distinção entre os dois processos,
contudo, Magda Soares (como posto no capitulo 1) alerta para o perigo de tal
entendimento, ao apontar que o professor pode, em muitos casos, sobrepor um processo
ao outro, gerando perdas tanto à aquisição da linguagem escrita quanto à apropriação
dessa, entendidas respectivamente como alfabetização e letramento, exatamente com se
viu na sala de aula da professora em questão. Afirmando saber as especificidades tanto
da alfabetização como do letramento, a Professora A na prática supervalorizava
62
atividades de gramática e ortografia que pouco contribuíam para o aprendizado da
leitura e da escrita, assim como para o desenvolvimento de comportamentos leitores nas
crianças.
Assim, percebeu-se que, para ela, alfabetizar tem a ver apenas com ensinar de
forma mecânica a combinação de sílabas que, juntas, talvez, formem palavras. A
segurança para fazer tal afirmação foi adquirida não só a partir de momentos nos quais
só os alunos que já sabiam ler é que trabalhavam com materiais ricos em textos reais,
como jornais e revistas; como também da explicação da própria professora, que em
síntese, declarou: “Primeiramente esses daí tem que aprender a juntar as sílabas... Eu até
tento usar esses textinhos como parlendas, mas não dá certo não, tem que ser o bê-á-bá
mesmo”.
Então, percebe-se que, para ela, as crianças precisam, primeiramente, aprender a
decodificar e depois praticar a leitura propriamente dita. Concepção contrária a
perspectiva de alfabetização que indica a necessidade de os alfabetizandos “aprenderem
fazendo”, quer dizer, aprender a ler e a escrever praticando tais habilidades. Contudo, é
importante dizer, que tal postura não é exclusiva dessa professora, pois não é raro se
deparar com alfabetizadoras que ainda acreditam ser necessário ensinar a linguagem
escrita por meio de atividades descontextualizadas que em nada lembram o dinamismo
da língua, conforme indicado por Bagno no capítulo anterior.
Sobre a Professora B, esta explicitou uma concepção de alfabetização e
letramento mais próxima das idéias defendidas por Soares e também por Bagno, ao
dizer que a alfabetização tem que acontecer num ambiente rico em leitura e que o
alfabetizando precisa ter o máximo de oportunidade de escrever. E é mesmo isso que
Bagno (2002:52) propõe ao analisar o conceito de letramento indicado por Soares:
Diante disso, deveríamos propor então um ensino de língua que tenha o objetivo de levar o aluno a adquirir um grau de letramento cada vez mais elevado, isto é, desenvolver nele um conjunto de habilidades e comportamentos de leitura e escrita que lhe permitam fazer o maior e mais eficiente uso possível das capacidades técnicas de ler e escrever.
Na sala de aula da Professora B, havia muito material de leitura e todos
acessíveis aos alunos. Ela incentivava todas as crianças, mesmo aquelas que ainda não
sabiam ler de forma convencional, a usar o material disponível. Além disso, dava
espaço para a oralidade permitindo que suas crianças se manifestassem de forma
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espontânea e trabalhando com estilos mais monitorados de fala como: solicitação de
comentários orais sobre algum filme, apresentações de peças teatrais e simulação de
telejornais. Nessas atividades, a professora procurava intervir ao máximo na fala das
crianças, apontando marcas lingüísticas próprias da norma-padrão.
Assim, fica evidente que essa última professora traz uma concepção de
alfabetização mais consoante com aquela do Sociointeracionismo, na qual a criança é
vista como portadora de algum saber, independente da vida escolar e, por isso durante o
processo ensino/ aprendizagem, é de extrema importância que se leve em conta seus
conhecimentos prévios e que durante a aprendizagem ela (a criança) tenha a
oportunidade de refletir sobre os conhecimentos que está construindo. Além disso, o
ambiente, a atuação do professor e os materiais utilizados para alfabetizar também são
apontados como fatores fundamentais a aprendizagem da criança. Enquanto isso, a outra
professora está mais próxima de concepções mais tradicionais de alfabetização, nas
quais esse processo é entendido como a pura e simples codificação e decodificação de
palavras e sílabas.
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5.CONSIDERAÇÕES FINAIS
Levando-se em conta tudo que se viu neste texto, é possível concluir que o
estigma de grupos sociais por conta de fatores econômicos e culturais é uma prática
muito corriqueira em nossas escolas, mas que não mostra sua face por conta da
legitimidade de tal instituição na sociedade. E um dos aspectos que mais estigmatizam
esses grupos é o lingüístico (foco deste estudo), pois escola se encarrega de apontar
como “feia” e “errada” a fala dos seus alunos e de inculcar nos educandos, a qualquer
custo, a norma-padrão (aquela forma que os gramáticos tradicionais proclamam como a
língua bonita e correta, mas que na ótica da Sociolingüística é apenas uma forma
idealizada da língua).
O preconceito lingüístico arraigado na mentalidade do povo brasileiro foi
construído com base numa suposta supremacia de uma variedade lingüística sobre as
demais. Acredita-se que a variedade culta, erroneamente chamada de norma-padrão, é
maneira certa de falar, portanto as pessoas que não a dominam são consideradas falantes
de um dito “português errado”. Pensando desta maneira, fica evidenciado que mais da
metade da população brasileira não sabe falar a própria língua, uma vez que para
dominar a variedade culta é preciso longos anos de escolarização, e sabe-se que isto
ainda é uma realidade distante do panorama educacional brasileiro, já que pouquíssimas
pessoas conseguem obter um diploma de nível superior. Mas, é possível algum
indivíduo não ser capaz de usar sua língua de forma competente? Ao longo deste
trabalho, viu-se que não, pois toda pessoa é capaz de usar sua língua nativa para se
comunicar. Agora, o que acontece é que existem variedades lingüísticas de grande
prestígio social por serem faladas por pessoas, em sua maioria, de alto poder aquisitivo.
Isso gera a crença de que tais modos de falar sejam superiores aos demais,
característicos de falantes economicamente desfavorecidos.
Essa crença ainda está arraigada na escola, mesmo depois de documentos
oficiais do Ministério da Educação explicitarem necessidades de mudanças em relação
ao tratamento da variação lingüística na sala de aula. Enquanto a escola insistir em
rotular a fala da criança pobre de “erro”, em não trabalhar a oralidade, continuaremos a
ter elevados índices de evasão escolar e uma gama de indivíduos incompetentes no uso
65
da leitura e da escrita12. Quantas crianças de 10 anos ou mais, que estudam na escola
pública, ainda estão no primeiro ciclo? Qual (s) a (s) razão(s) disso? As razões são
inúmeras, mas certamente todas perpassam pela mesma questão: a falta de
conhecimentos do professor sobre o seu objeto de ensino, nesse caso a língua.
Além dos conhecimentos requeridos à atividade docente, aqueles professores
que atuam na alfabetização também precisam ter conhecimentos lingüísticos, em
especial aqueles relacionados à Sociolingüística, porque por meio deles terá subsídios
teóricos para compreender, dentre outras coisas, que:
• no plano da fala não existem os chamados “erros de português”, mas sim
diferenças entre os modos de falar por conta de fatores como, idade,
profissão, região geográfica, gênero, redes sociais e nível de
escolaridade;
• a prática da alfabetização tem a ver com ensinar o aluno a fazer uso
competente da linguagem escrita; a oralidade também precisa ser
trabalhada na sala de aula, porém com a intenção de conscientizar as
crianças a cerca dos vários usos da língua oral na sociedade;
• a escrita não é uma “transcrição da fala”, e sim mais uma forma de
comunicação que pode ter influência da oralidade;
• é preciso levar em conta o universo cultural do grupo de educando que
será alfabetizado na hora de elaborar as intervenções pedagógicas;
• o erro existe no plano da escrita, pois esta é regulada pela ortografia,
dessa maneira, a criança se apropriar de suas particularidades, mas no
tempo devido.
Agora, da pesquisa realizada, conclui-se que as professoras observadas não
possuem os conhecimentos necessários para alfabetizar, pois uma (a Professora B),
embora desenvolvesse uma prática pedagógica mais condizente com a Pedagogia
Culturalmente Sensível, ainda não realiza intervenções que, de fato levem, as crianças a
perceberem a necessidade do monitoramento estilístico e a se apropriarem de formas
lingüísticas mais prestigiadas. Com efeito, tal professora manifestou intenções de
auxiliar as crianças da melhor maneira possível no processo de aquisição da linguagem
escrita. Contudo, só a intenção não é suficiente, porque é preciso conhecer
profundamente o objeto de ensino. Enquanto isso a Professora A, mais tradicionalista,
12 Consultar anexo C, que apresenta um texto produzido por uma criança de 10 anos que ainda está cursando 2º ano.
66
ainda carrega uma concepção ultrapassada de alfabetização ao colocar o foco do ensino
na decodificação mecânica de sílabas, não possibilitando que seus alunos aprendam
através de usos reais da leitura e da escrita.
Tudo isso ajuda a configurar um quadro de alfabetização muito distante daquele
preconizado pelos programas do governo: de uma educação de qualidade para todos.
Por tudo que se viu, acredita-se que uma das medidas mais urgentes para reverter tal
quadro seja a inclusão de estudos sociolingüísticos nos currículos dos cursos de
formação e capacitação de docentes alfabetizadores. Das professoras observadas, uma
não teve a oportunidade de estudar nenhum conteúdo referente à variação lingüística, a
outra informou já ter assistido palestras que abordavam tal tema, mas, segundo ela, nada
muito aprofundado que possibilitasse transformações em sua prática pedagógica. E essa
situação não é exclusiva dessas professoras, ao contrario, ela é muito comum, pois
inúmeros cursos de formação de professores não trabalham com a questão da variação
lingüística e outros conhecimentos sociolingüísticos; outros cursos até o fazem, mas de
forma tão aligeirada que nem chegam a provocar mudanças na concepção dos futuros
professores sobre a língua. E isso só pode culminar na formação de alfabetizadores que
não conhecem a complexidade e especificidades de seu objeto de ensino.
Finalizando, é importante salientar que o panorama apresentado explicita
mudanças tanto nas práticas pedagógicas, assim como nos currículos dos cursos de
formação de professores, porque a construção de uma sociedade menos excludente
implica a inclusão e valorização de todos os grupos sócio-culturais, o que obviamente
começa na escola. Todavia, essa instituição tem fortalecido a marginalização de grupos
menos favorecidos economicamente quando rotula as variações lingüísticas de “erro”.
Dessa maneira, a escola termina por construir uma barreira entre ela e os alunos
oriundos de classes populares, que são justamente os falantes de variedades lingüísticas
sem prestigio social. A construção dessa barreira, por sua vez, contribui para a
intensificação da exclusão social, já que os alunos não se sentem motivados a prosseguir
nos estudos por conta do descompasso entre a linguagem deles e aquela exigida pela
escola e saem sem apropriarem dos conhecimentos necessários a uma prática social
consciente e ativa. Por tudo isso, é preciso que professores e educadores em geral
eliminem seus preconceitos lingüísticos, motivados por diversos mitos a cerca do
funcionamento e do ensino da língua materna, e proclamem uma educação libertadora e,
para isso, a Sociolingüística tem contribuído sobremaneira.
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APÊNDICE INSTRUMENTO DE PESQUISA 1 - Qual a sua concepção de língua? ______________________________________________________________________ ______________________________________________________________________ 2 - Você acredita ser necessário trabalhar a oralidade em sala de aula? Como você faz este tipo de trabalho? Quanto tempo você dedica ao trabalho com a oralidade? ______________________________________________________________________ ______________________________________________________________________ 3 - Para você, qual a diferença entre fala e escrita? Qual o espaço de cada uma na sala de aula? ______________________________________________________________________ ______________________________________________________________________ 4 - Como você age diante das diferenças na fala dos alunos? ______________________________________________________________________ ______________________________________________________________________ 5- Qual a sua concepção de alfabetização? ______________________________________________________________________ ______________________________________________________________________ 6-O que você costuma fazer quando um aluno mantém tais marcas em sua fala? ______________________________________________________________________ ______________________________________________________________________ 7-Dentre as disciplinas estudadas na sua formação inicial, quais delas você acha contribui para o reconhecimento/ compreensão da diversidade lingüística em sua sala de aula? ______________________________________________________________________ ______________________________________________________________________
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