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i
CAMILA MONTEVECHI SOARES
A RESSIGNIFICAÇÃO DO PLANEJAMENTO PÚBLICO A PARTIR DA
PARTICIPAÇÃO SOCIAL
Estudo de caso do PPA Participativo da Bahia
Belo Horizonte
2016
iii
CAMILA MONTEVECHI SOARES
A RESSIGNIFICAÇÃO DO PLANEJAMENTO PÚBLICO A PARTIR DA
PARTICIPAÇÃO SOCIAL
Estudo de caso do PPA Participativo da Bahia
Dissertação apresentada ao Programa de
Mestrado em Administração Pública da
Turma 2014-2016 da Escola de Governo
Professor Paulo Neves de Carvalho, da
Fundação João Pinheiro, como requisito para
a obtenção do título de Mestre em
Administração Pública.
Área de Concentração: Administração
Pública (Planejamento Público) e
Democracia
Orientador: Ricardo Carneiro
Coorientadora: Flávia de Paula Duque Brasil
Belo Horizonte
2016
iv
Soares, Camila Montevechi
S676r A ressignificação do planejamento público a partir da participação
social: estudo de caso do PPA participativo da Bahia / Camila
Motntevechi Soares – Belo Horizonte, 2016.
240 p. : il.
Dissertação (Programa de Mestrado em Administração Pública) –
Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho, Fundação João
Pinheiro.
Orientador: Ricardo Carneiro
Referência: 211 - 217
1. Planejamento econômico - Bahia. 2. Planejamento participativo -
Bahia. 3. Administração pública - Bahia. Orçamento público. 5.
Participação social. 6. Plano Plurianual. I. Carneiro, Ricardo. II. Título.
CDU 338.984.3(814.2)
v
Autor: Camila Montevechi Soares
Título e subtítulo:
A RESSIGNIFICAÇÃO DO PLANEJAMENTO PÚBLICO A PARTIR DA
PARTICIPAÇÃO SOCIAL - Estudo de caso do PPA Participativo da Bahia
Natureza, objetivo, nome da instituição: Escola de Governo Professor Paulo Neves de
Carvalho/ Ensino e Pesquisa/ Fundação João Pinheiro
Área de concentração: Administração Pública (Planejamento Público) e Democracia
Aprovada na Banca Examinadora
_______________________________________
Ricardo Carneiro
Doutor em Ciências Humanas – Sociologia e Política (UFMG)
Orientador do Trabalho
Fundação João Pinheiro
_______________________________________
Flávia de Paula Duque Brasil
Doutora em Ciências Humanas – Sociologia (UFMG)
Coorientadora do Trabalho
Fundação João Pinheiro
________________________________________
Leticia Godinho de Souza
Doutora em Ciência Política (UFMG)
Avaliadora Interna do Trabalho
Diretora da Escola de Governo/ Fundação João Pinheiro
_______________________________________
Fernando de Souza Coelho
Economista (FEA-USP)
Mestre e Doutor em Administração Pública e Governo ( FGV-SP)
Avaliador Externo do Trabalho
Professor de Gestão de Políticas Públicas na EACH-USP
Belo Horizonte – Fundação João Pinheiro
23 de Março de 2016
vii
DEDICATÓRIA
Às mulheres fortes da minha família.
Mesmo sem nunca terem rotulado sua trajetória como “feminista”, me ensinaram que
lugar de mulher é onde ela quiser – se dentro de casa, com respeito e posicionamento; se
na rua, mandando beijos, ombros e bananas para a sociedade quando necessário. Dedico
especialmente à minha mãe, por quem minha admiração cresceu exponencialmente nos
últimos anos, e que foi uma assistente impecável da pesquisa.
ix
AGRADECIMENTOS
Agradeço à minha pequena grande família – papai, mamãe, titia e vovó – pelo amor
incondicional, por suportar as ausências, por aplaudir cada passo e por ser meu eterno
porto seguro. Obrigada, papai, pela ajuda.
Ao meu querido Guilherme, parceiro de trabalho, de academia e de casa, de todas as
horas, que construiu esse sonho comigo e muitos outros que ainda estão por vir.
Aos meus professores da FJP, pelos momentos de aprendizagem e por aguentarem meu
“jeito paulista de ser”, especialmente:
Ao Bruno, pelo jeito maravilhoso e único de ser e pelos aguardados parênteses
infinitos que abrilhantavam mais ainda a sua aula;
À Flávia, minha coorientadora e amiga querida, pelo suporte acadêmico e de alma,
por humildemente ceder parte de seu vasto conhecimento, do seu protagonismo em
sala de aula e da sua doçura. Obrigada pela participação fundamental nessa
conquista;
Ao Ricardo, meu super-orientador, que guiou, corrigiu e se envolveu com dedicação
e carinho cada ideia e cada linha escrita. Obrigada pela atenção, pelos retornos
certos, pela paciência e por dividir muito do seu saber comigo. Um dia quero saber
escrever como você!
Aos colegas que a USP me deu, especialmente à Rosane, quem influenciou duas coisas
que faço relativamente bem; dirigir e escrever. E aos colegas do mestrado, que
conduziram com solidariedade e determinação a “van da indolência” rumo ao título.
Aos colegas da Controladoria, pela paciência e por darem sentido prático a todas as
minhas inquietações acadêmicas.
Aos dirigentes e servidores da Secretaria de Planejamento da Bahia, por construírem
incessantemente um estado e uma administração pública melhor, pela pronta disposição
em me receber no órgão e pelas conversas tão transformadoras, convictas e
esclarecedoras.
Aos mestres que compuseram à brilhante banda de defesa de dissertação, Letícia
Godinho e Fernando de Souza Coelho – esse que acompanha minha trajetória
acadêmica desde a formação na Universidade de São Paulo, e que é um militante
ferrenho do Campo das Públicas.
Aos meus amigos e às minhas amigas de sempre, por estarem ali apesar de todos os
nãos dos últimos tempos, e também àqueles queridos que fiz em BH.
À Belo Horizonte e às infinitas possibilidades que a cidade me deu de crescer e ser feliz.
xi
xii
xiii
RESUMO
A origem, a motivação e os ciclos marcantes da trajetória do planejamento no país mostram
que ele foi tradicionalmente realizado em desacordo com preceitos democráticos de inclusão
política e participação cidadã. Houve um intento à transformação do planejamento em bases
mais democráticas e formais a partir da institucionalização do instrumento do Plano
Plurianual (PPA), como uma aposta de transformação afirmativa do planejamento frente ao
seu desmantelamento na década de 80, contribuindo para passar o planejamento de um rito
aleatório e discricionário para um processo sistemático de debate e entrega da programação
governamental. Entretanto, alguns legados tradicionais, disfunções constitutivas do PPA,
limitações e problemáticas de enfoque do planejamento permaneceram, as quais motivaram o
trabalho a assumir como necessário e desejável um processo de ressignificação da função da
administração pública, cujos ganhos somente seriam conquistados se apoiados em novas
gramáticas de relacionamento entre Estado e sociedade. Muitos dos ingredientes dessa
ressignificação do planejamento público foram identificados na construção teórica da
democracia deliberativa-participativa. No intuito de confirmar ou refutar os pressupostos
teóricos, o trabalho adotou como estudo de caso o PPA Participativo da Bahia, referência no
país pelo arranjo institucional adotado e pelos resultados alcançados, valendo-se de pesquisa
documental e entrevistas com os principais dirigentes da área de planejamento do governo. O
trabalho apresentou como objetivo central examinar, a partir da adoção de framework
tridimensional com variedades de possibilidades institucionais dos fóruns de participação,
fundamentado na teoria da democracia, em que medida o planejamento público é
ressignificado pela participação social, tendo como referência a grandeza e a intensidade da
democracia nas instituições participativas do PPA-P/BA. Os resultados informaram que
a Bahia expandiu significativamente a participação social na elaboração do plano a partir do
PPA Participativo em 2007, ampliando a democracia no planejamento em todos os
indicadores de grandeza e intensidade da democracia e, por consequência, conquistando
patamares sem precedentes de ressignificado. A demonstração no gráfico do chamado “Cubo
da Democracia” (FUNG, 2006) indicou um posicionamento moderado nas possibilidades
institucionais para a viabilização da deliberação-participação. O trabalho argumentou que as
estratégias adotadas pelo núcleo técnico de planejamento da SEPLAN da Bahia buscou um
equilíbrio entre a democratização do planejamento e a qualidade técnica do planejamento,
agregando as benesses tanto da pluralidade de interesses dos territórios quanto da expertise
governamental. Algumas ponderações sobre a adoção da deliberação-participativa pelo
governo contribuíram para revelar uma crítica ao modelo adotado.
Palavras-chave: planejamento público; PPA Participativo; democracia; participação social;
arranjos institucionais participativos; PPA Participativo da Bahia.
xv
ABSTRACT
The origin, motivation and remarkable cycles of the public planning in Brazil revealed that it
was traditionally accomplished in disagreement with democratic precepts of social inclusion
and citizen participation. There was an attempt to transform planning within more democratic
and formal basis, from the institutionalization of the instrument of the Multi-Annual Plan
(known in Portuguese as PPA), as a bet of an affirmative transformation of planning facing to
its dismantling in the 80s, contributing to improve it from a random and discretionary way to
a systematic process of debate and delivery of government programming. However, some
traditional legacy, constitutive dysfunctions of PPA, limitations and focus problems remained,
which motivated this work to assume as necessary and desirable a resignification of planning
process in the public administration, whose earnings would only be achieved if supported by
new grammars relationship between the State and the society. Many of the ingredients of this
resignification process of the public planning are identified in the theoretical construction of
deliberative-participatory democracy. In order to confirm or refute the theoretical
assumptions, this work adopts the Participatory PPA of the State of Bahia as a case of study,
which is a reference in the country due to the institutional design adopted and the results
achieved, relying on documentary research and interviews with the key leaders of the
planning area of the government. The work presents as a central objective to demonstrate,
from the adoption of three important dimensions with varieties of institutional possibilities,
based on the theory of democracy, the extension of the resignification of public planning by
the social participation, with reference to the intensity of democracy in the participatory
institutions of Bahia’s PPA. The results report that Bahia significantly expanded social
participation in the elaboration of the plan since the Participatory PPA in 2007, expanding
democracy in planning in all indicators of the intensity of democracy, and, therefore,
achieving unprecedented levels of resignification. The demonstration on the graph called "The
Democracy Cube" (FUNG, 2006) indicates a moderate position in the institutional
possibilities for the viability of deliberation-participation. The work argues that the strategies
adopted by the technical core of the Planning Secretariat of Bahia sought a balance between
the democratization and the technical quality of planning, adding the positive features of both
the plurality of interests of territories and the government expertise. Some considerations on
the adoption of deliberation-participation by the government contributed to reveal a critique
on the model adopted.
Keywords: public planning; Multi-Annual Participatory Plan; democracy; social
participation; institutional participatory design; Participatory PPA of the State of Bahia.
xvii
Sumário
Introdução ............................................................................................................................................ 1
Capítulo 1. Planejamento público no Brasil ................................................................................. 9
Seção 1.1 Orientações da função de planejamento e ciclos marcantes ............................................... 9
1.1.1 Macro-definições do planejamento público ......................................................................... 10
1.1.2 Origem e motivações do planejamento público no Brasil .................................................... 12
1.1.3 Ciclos marcantes da trajetória do planejamento: as principais peças da história ................. 17
Seção 1.2 PPA no Brasil e nos estados ............................................................................................. 29
1.2.1 Contexto da Constituinte e ascensão do PPA ....................................................................... 30
1.2.2 Aspectos normativos: legislação e prerrogativas constitucionais......................................... 32
1.2.3 Princípios e arranjo constitutivo do PPA ............................................................................. 34
1.2.4 Os sete ciclos quadrienais do planejamento público federal ................................................ 38
1.2.5 Planejamento público em contexto subnacional: o PPA nos estados ................................... 52
Seção 1.3 Aspectos críticos da função de planejamento público no Brasil ....................................... 55
1.3.1 Resistência à mudança: limitações tradicionais do planejamento e disfunções constitutivas
do PPA .......................................................................................................................................... 56
1.3.2 Planejamento versus gestão: o esvaziamento da função nas últimas décadas ...................... 60
1.3.3 Planejamento versus plano: processo e produto; integrados e não sobrepostos ................... 63
1.3.4 Ponderações à dimensão estratégica do planejamento: prisão técnica-orçamentária e
horizonte de médio prazo .............................................................................................................. 66
1.3.5 Planejamento versus implementação: descompasso entre intenções e capacidades ............ 69
1.3.6 Viés economicista do planejamento: reducionismo e pressão do caráter técnico-
orçamentário .................................................................................................................................. 73
Capítulo 2. Democracia e participação social no planejamento público ............................. 79
Seção 2.1 Participação social como pauta de ressignificação do planejamento público ................... 79
Seção 2.2 Caminhos da democracia recente e as instituições participativas (IPs) ............................ 85
2.2.1 Movimento de resistência à globalização hegemônica e reinvenção da democracia ........... 85
2.2.2 Da representação à radicalização democrática ..................................................................... 88
2.2.3 O papel da sociedade civil na democratização do Estado .................................................... 93
2.2.4 Democracias participativa e deliberativa ............................................................................. 96
2.2.5 Instituições Participativas (IPs) e a prerrogativa do arranjo institucional .......................... 102
Seção 2.3 A adoção da participação social no PPA ........................................................................ 110
xviii
2.3.1 O caminho do modelo de participação: do Orçamento Participativo (OP) ao PPA
Participativo (PPA-P) .................................................................................................................. 111
2.3.2 Desencontros do planejamento governamental e participação social: fases marcantes ..... 115
2.3.3 A virada conciliatória dos anos 2000: porosidade da ação governamental e o PPA
Participativo ................................................................................................................................. 119
2.3.4 Participação social em contexto subnacional: o PPA Participativo nos estados ................ 123
Capítulo 3. Estudo de caso do PPA Participativo da Bahia .................................................. 129
Seção 3.1 Delimitação e objetivos da pesquisa ............................................................................... 129
Seção 3.2 Metodologia .................................................................................................................... 133
Seção 3.3 Participação na Bahia: histórico e construção do arranjo participativo no estado .......... 137
3.3.1 Histórico de mobilização social .......................................................................................... 137
3.3.2 Evolução da elaboração participativa do PPA no estado .................................................... 139
3.3.3 A construção do arranjo institucional participativo ............................................................ 141
Seção 3.4 Análise e resultados da democracia no PPA da Bahia .................................................... 153
3.4.1 Modelo de análise ............................................................................................................... 153
3.4.2 Resultados dos indicadores de grandeza e intensidade da democracia .............................. 163
3.4.3 Resultados a partir de temáticas transversais ...................................................................... 188
Conclusão .......................................................................................................................................... 205
Referências ....................................................................................................................................... 211
APÊNDICE 1 – Quadro-resumo dos depoimentos coletados ............................................................. 218
APÊNDICE 2 – Quadro-resumo das entrevistas realizadas ................................................................ 221
1
Introdução
São muitas as nuances que permeiam a trajetória do planejamento no Brasil, desde o modelo
tradicional conservador, que marca sua concepção original, até o modelo ressignificado pela
democratização da administração pública, cujo marco referencial é a Constituição Federal de
1988. A trajetória teve seu início na década de 30, durante o governo de Getúlio Vargas, e
acompanhou um despertar do ativismo estatal na promoção da industrialização da economia,
apoiando-se muito significativamente no sentido de urgência da missão desenvolvimentista. À
época o planejamento não se consolidou com maturidade sistêmica e era realizado em caráter
discricionário, sob o comando do recém-criado Departamento Administrativo do Serviço
Público (DASP), órgão direcionado a prestar assessoria técnica direta ao presidente
(CARDOSO JR, 2014).
Na segunda metade da década de 50, com a ascensão de Juscelino Kubitscheck ao poder,
aumentou-se o peso do Estado na promoção do desenvolvimento e, com isso, a conotação
mais presente e permanente da sua função de planejamento (BERCOVICI, 2015). Nesse
contexto, por meio da implementação do Plano de Metas de JK, a administração pública
brasileira observou a primeira experiência efetiva de planejamento público, realizada de
forma dialogada com diretrizes e diagnósticos de agentes internacionais, que colaboraram
para difundir no país uma ideologia desenvolvimentista (CARDOSO JR, 2014). Esse período
inaugurou a chamada “Era de Ouro do Planejamento”, que perdurou até a década de 70.
Durante a Ditadura Militar (1964-1985), o país observou o auge do planejamento público, que
esteve fortemente associado à instauração dos Planos Nacionais de Desenvolvimento (PNDs)
e ao prestígio envolvido na publicação de grandes medidas de desenvolvimento. O
planejamento então foi direcionado à construção de planos macroeconômicos audaciosos,
buscando conciliar a estabilização macroeconômica com a manutenção do crescimento. Além
do viés economicista, o Estado valeu-se de um “autoritarismo-tecnoburocrático” (CARDOSO
JR, 2014) para dar vazão a esse modelo, responsável por ditar medidas impositivas e
autoritárias de ordenamento governamental, centrado na burocracia estatal e realizado em
absoluta discordância com preceitos democráticos de inclusão política e participação cidadã
(PALUDO e PROCOPIUCK, 2011; REZENDE, 2011; CARDOSO JR, 2014; GARCIA,
2015).
2
A “Era de Ouro do Planejamento” foi destituída juntamente com a Ditadura Militar, como
resultado de efeitos combinados da crise emergente de sustentação do ritmo de crescimento
econômico e da crise do próprio autoritarismo, levando à crescente pressão pela
redemocratização do Brasil. Assim, a queda brusca no funcionamento do sistema de
planejamento público no Brasil acompanhou o esgotamento do modelo autoritário, que
forçava o governo a responder aos anseios de uma sociedade cada vez mais complexa e ativa
pela reivindicação dos direitos de participar das decisões governamentais (PALUDO e
PROCOPIUCK, 2011; REZENDE, 2011; CARDOSO JR, 2014; GARCIA, 2015).
A redemocratização e a Constituição Federal de 1988 (CF-88) representaram um novo ponto
de inflexão à função de planejamento público no Brasil, inaugurando uma sistemática formal
de ordenamento das ações governamentais. Essa reorganização respondeu à necessidade de
racionalização do processo decisório, oriunda sobretudo da perda de legitimidade do núcleo
político dominante, e se deu como uma busca pela transformação afirmativa do planejamento
frente ao seu desmantelamento na década de 80. O Plano Plurianual (PPA) surge no novo
contexto como uma das inovações introduzidas pelo novo texto constitucional no quesito de
formalização do planejamento, juntamente com o redesenho de toda a sistemática
orçamentária (SANTOS et al, 2015b; CARNEIRO, 2015; BERCOVICI, 2015; AMARAL,
2015). Esse ordenamento formal estabeleceu a obrigatoriedade da adoção, a padronização dos
instrumentos e as bases essenciais das peças de planejamento e orçamentárias. Se somadas
essas determinações ao ambiente político que permeou a Constituinte, pode-se dizer que
foram instituídas as bases normativas do planejamento democrático no Brasil (BERCOVICI,
2015).
Além do caráter formal de ordenamento das ações governamentais, o processo de
redemocratização instaurou um paradigma democrático e social sem precedentes no país,
transformando continuamente a compreensão e a prática da garantia de direitos e a relação
entre Estado e sociedade (SANTOS et al, 2015b). O ambiente democrático propiciado pela
Constituinte estimulou a incorporação posterior de uma multiplicidade de atores da sociedade
civil nas esferas decisórias. Como exemplo, a CF-88 e a legislação das políticas sociais que
desdobrou dela anos depois impuseram formalmente a participação social em algumas áreas
das políticas públicas, com destaque para a criação de conselhos (PIRES, 2010). Por essas
razões, o novo ambiente democrático garantiu – ainda que não tenha tornado obrigatório – as
bases para um futuro preenchimento do planejamento de um sentido político, que fomentou a
instituição de projetos deliberativos-participativos.
3
Por outro lado, o PPA, tal como é desenhado, apresenta disfunções constitutivas que
limitaram ou inviabilizaram as intenções de transformação do planejamento público em bases
democráticas. Isso vem agravar um cenário já existente de reprodução de problemas
estruturais da administração pública no Brasil, na medida em que o PPA também carrega
legados do planejamento tradicional adotado no país – burocratismo, centralismo,
autoritarismo, caráter discricionário e viés economicista. São exemplos de disfunções
constitutivas do PPA o cerceamento técnico-orçamentário, que obriga o plano a desdobrar-se
em rubricas de orçamento e por isso adquirir uma dimensão tático-operacional, e o horizonte
restrito de médio prazo, que pouco dialoga ou até se sobrepõe aos grandes planos de
desenvolvimento. Ambas as disfunções impactam negativamente na dimensão estratégica
almejada pelos constituintes (PAULO, 2010; REZENDE, 2011).
Essas limitações do planejamento público também foram agravadas por fatores conjunturais
ocorridos na década de 90. O processo de institucionalização do planejamento em bases
formais e democráticas foi combinado com uma agenda de ajustes nas contas públicas,
determinando de forma decisiva o modo como foi implementado o novo arranjo. Motivados
pelas necessidades preeminentes de contenção da inflação, estabilização da economia e
recuperação do crescimento, os governos que se sucederam no período e, mais
especificamente, os Governos Fernando Henrique Cardoso, direcionaram o enfoque da
administração pública para aspectos da gestão em detrimento do planejamento. Nesse
contexto, foram descontinuadas muitas propostas ainda não regulamentadas do intento
constituinte, por meio de emendas constitucionais e reformas administrativas, na figura
relevante do Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE), que atribuíram
relativa centralidade às agendas gerencialistas e neoliberais, contribuindo para o esvaziamento
da função de planejamento governamental e de toda a sua carga política, de conteúdo temático
e de estratégia de desenvolvimento nacional (CARDOSO JUNIOR, 2011).
Portanto, o movimento de democratização do planejamento público no Brasil, tendo a
participação social como elemento essencial, em uma perspectiva de “radicalização
democrática” (FUNG e COHEN, 2004), iniciou-se com a Constituição Federal de 1988, mas
esteve sujeito aos legados históricos do padrão tradicional, disfunções constitutivas,
limitações e problemáticas de enfoque, como o viés economicista. Apenas no contexto pós-
2000 que o movimento ganhou densidade com experiências que se espalharam pelo país,
impulsionadas por novas orientações ideológicas e projetos políticos. Nessas experiências,
uma diversidade de atores foi pouco a pouco incorporada nos processos decisórios e de gestão
4
de políticas públicas por meio de instituições de participação social (POMPONET, 2008;
AMARAL, 2015; AVELINO e SANTOS, 2015).
O experimentalismo municipal e a arquitetura participativa voluntária dos governos federal e
estaduais resultaram em um número expressivo e diversificado de instituições participativas
(IPs) em todo o território nacional, como conselhos, conferências, orçamentos participativos,
entre outras práticas, com destaque para o PPA Participativo (PPA-P), que tem se consolidado
como uma das experiências mais relevantes de planejamento democrático no país (PIRES,
2010). Essas instituições configuram-se em um repertório amplo e multifacetado, com
variedades de arranjos, procedimentos e expectativas de radicalização democrática
(CARNEIRO e BRASIL, 2011). Os resultados desse processo corroboram para que o Brasil
seja reconhecido internacionalmente – e desperte a curiosidade até mesmo de países com
democracias mais maduras e consolidadas – pela sua capacidade de atrair a presença de
cidadãos pobres e desfavorecidos e de alcançar bons patamares de redistribuição de bens
públicos (AVRITZER, 2009).
Mesmo com esses avanços, não se sabe em que medida as novas experiências e o modelo
participativo de planejamento são capazes de superar o legado do padrão vigente até então. A
problemática em torno dessa questão constitui o tema de estudo desta dissertação, que busca
então identificar os novos significados do planejamento público do país a partir das
experiências da última década e à luz das teorias da democracia “contra-hegemônica”
(SANTOS e AVRITZER, 2002) ou “mais radical” (FUNG e COHEN, 2004). Essas teorias se
apoiam nas concepções deliberativa e participativa e reivindicam, principalmente, um
alargamento da democracia representativa.
Para o desenvolvimento do estudo, parte-se do conceito de ressignificação do planejamento
público, que pode ser entendido da seguinte forma: dar um novo significado e/ou um novo
sentido para o planejamento, apoiado na participação política, na inclusão social e em um
projeto político que cria instâncias de participação no âmbito do Estado, as quais viabilizam,
entre outros, rotinas de escuta social e espaços de construção coletiva da agenda
governamental. Dar um novo significado e/ou um novo sentido para o planejamento também
se refere a mitigar a problemática do padrão de planejamento tradicional e preencher a função
de conteúdo político, de soberania democrática e de requisitos de legitimidade.
O potencial agregador e transformador de sentido do planejamento público oportunizado pela
democratização da administração pública se apoia na concepção de que a democracia é um
5
princípio que organiza transversalmente a vida sociopolítica da nação e perpassa muitas
funções da administração pública, entre elas o próprio planejamento. A participação social
pode ser compreendida como uma das formas possíveis de operacionalização da democracia,
estabelecendo uma nova gramática de relacionamento entre Estado por meio da abertura
institucional das esferas decisórias aos atores políticos naturalizados na sociedade
(AVRITZER, 2002, 2008 e 2009).
Esse modelo se torna um aliado importante da função de planejamento público no quesito de
aderência às questões complexas da sociedade e de permeabilidade das demandas sociais,
uma vez que estimula a inserção gradual de uma pluralidade de procedimentos que estreitam a
relação entre governo e os cidadãos (POMPONET, 2008; AMARAL, 2015; AVELINO e
SANTOS, 2015). Destacam-se as IPs como experiências aprofundadas que podem agregar
uma importante dimensão comunicativa no planejamento governamental, projetando inclusive
a efetividade das políticas públicas em diálogo com perspectivas de inclusão social. Essas
experiências oferecem apoio na legitimidade das ações propostas, pois demandam que o
planejamento formal seja realizado – e percebido – como um contrato político entre as
instituições do Estado e a sociedade civil (PALUDO e PROCOPIUCK, 2011 apud
SILVEIRA). Dessa forma, as IPs adicionariam ingredientes de soberania democrática e de
requisitos de legitimidade ao planejamento público tradicional.
Entre as institucionalidades criadas para a participação social no planejamento, destacam-se
as experiências recentes de elaboração dos Planos Plurianuais Participativos (PPA-P). No
âmbito do PPA-P, o arranjo construído e promovido pelo Governo Federal a partir do ciclo
2004-2007 foi reproduzido em diversas esferas governamentais pelo Brasil e inspirou a
adoção do modelo e suas metodologias em muitas iniciativas de estados e municípios, como é
o caso do PPA Participativo da Bahia. Considerando essas experiências como oportunidades
para aprofundar este estudo e investigar com qual intensidade a participação social
ressignifica o planejamento público, é adotada a análise em profundidade das instituições
participativas fomentadas e organizadas pelo poder público baiano no âmbito da elaboração
do Plano Plurianual Participativo (PPA-P/BA), com ênfase nos ciclos 2008-2011, 2012-2015
e 2016-2019.
Sendo assim, além de promover uma organização teórica sobre o potencial de qualificação do
planejamento com o processo de democratização da administração pública e com a adoção da
participação social, tendo como produto o potencial de ressignificação, este trabalho tem
6
como objetivo central examinar, a partir da adoção de modelos de análise fundamentados na
teoria da democracia, em que medida o planejamento público é de fato ressignificado pela
participação social, tendo como referência a intensidade da democracia nas instituições
participativas do PPA-P/BA.
A configuração do planejamento estadual da Bahia mostra um protagonismo do Executivo na
abertura das funções da administração pública e um comportamento inovador para as práticas
de participação na elaboração dos planos quadrienais formais, no caminho da radicalização
democrática. Tendo em vista essas qualidades, a escolha pela investigação da democratização
do PPA segundo o caso da Bahia se dá em função de três pontos principais: primeiro, e mais
relevante, é a importância dos modelos de participação incorporados pela esfera estadual
baiana em sua função de planejamento público, despontando em alguns estudos transversais
sobre as iniciativas de participação dos planejamentos estaduais como uma referência
nacional, cumprindo satisfatoriamente um conjunto de indicadores avaliativos do arranjo
adotado pelo governo. Segundo, há uma compatibilidade conceitual e metodológica do PPA-P
baiano com o modelo implantado pelo Governo Federal, havendo uma releitura adaptativa e
um aprimoramento da adoção do componente participativo à luz do modelo federal. A
literatura desdobrada do processo de planejamento federal é mais extensa, o que contribuiu
tanto para construir o objeto de planejamento neste trabalho quanto para promover o diálogo
entre as iniciativas federal e estadual, já que são relacionadas. Por fim, o terceiro ponto que
justificou a escolha foi a preservação de uma mesma equipe mentora do PPA participativo no
Estado da Bahia no ciclo de elaboração 2016-2019, coincidente com o desenvolvimento deste
estudo. Houve uma continuidade na gestão estadual petista na Bahia do ciclo do PPA 2012-
2015 a partir das eleições de 2014, e isso tornou possível a abordagem a um corpo técnico e
dirigente ciente do histórico de planejamento estadual, apto a responder sobre o processo em
2011 e articulado e mobilizado para a elaboração do novo plano.
Entende-se que a análise da intensidade da democracia no PPA-P/BA traz algumas vantagens
para o estudo, tais como traduzir a ressignificação do planejamento público a partir da
institucionalização da participação social em um contexto específico, compreender e
problematizar o arranjo institucional participativo adotado e indicar variedades de intensidade
com que a democracia participativa pode preencher o planejamento de significado. Essas
vantagens são potencializadas pela adoção de um framework tridimensional (FUNG, 2006)
capaz de posicionar o PPA-P/BA em diferentes intensidades de inclusão política, extensão do
chamamento à participação nas estratégias de mobilização, desenvolvimento de preferências
7
pelos participantes da sociedade, diluição da autoridade governamental nos processos
decisórios, empoderamento de pauta à agenda governamental, entre outras variáveis da
democracia.
Para alcançar os objetivos desta dissertação, a metodologia parte de uma ampla revisão
teórica de ambos os objetos centrais da pesquisa, o planejamento público e a democracia e
participação social, e adota o estudo de caso como modelo de procedimento, entendendo que
a análise em profundidade permite compreender como ocorre a construção da participação
social no estado da Bahia e quais as consequências empíricas das variáveis de desenho das
instituições participativas, e, sobretudo, aferir a grandeza e a intensidade da democracia no
PPA-P/BA. A pesquisa tem natureza qualitativa e é de tipo exploratório-descritivo, e a coleta
de dados é realizada de três formas: pesquisa bibliográfica e documental, por meio de análise
da documentação direta do PPA-P baiano; observação direta às mesas temáticas da rodada do
PPA-P da Bahia para o novo ciclo 2016-2019; e entrevistas e coleta de depoimentos
realizados com dirigentes da Secretaria de Planejamento (SEPLAN/BA), bem como com
técnicos e gestores da administração pública estadual. É importante destacar que a descrição
dos procedimentos metodológicos adotados no trabalho é retomada e detalhada ao longo do
desenvolvimento do argumento analítico e também recebe seção específica no Capítulo 3.
O trabalho está organizado em três capítulos, além da presente introdução e da conclusão. O
primeiro percorre o histórico de planejamento público no Brasil, apresentando as orientações
da função de planejamento e os ciclos marcantes, as intencionalidades, marcos normativos e
desdobramentos da institucionalização do PPA e a organização teórica de alguns aspectos
críticos do planejamento – desde legados tradicionais até as disfunções constitutivas do PPA.
O segundo capítulo apresenta a revisão teórica da democracia e participação social sob
recortes específicos na literatura deliberativa e participativa, enfatizando o caminho da
radicalização democrática e os fundamentos das instituições participativas e dos arranjos
institucionais participativos; esse capítulo também descreve a adoção da participação no
planejamento nacional e em contexto subnacional. O terceiro e último capítulo apresenta o
estudo de caso do Plano Plurianual Participativo da Bahia, que, em essência, percorre o
histórico da mobilização social no estado e a construção do arranjo participativo e expõe o
modelo de análise e os resultados dos indicadores de intensidade da democracia no PPA-
P/BA.
9
Capítulo 1. Planejamento público no Brasil
Quando é lançada a possibilidade de um ganho de significado do planejamento público no
Brasil a partir da democratização da administração pública e da inserção gradual da
participação social, a mensagem implícita contida é de que existe um padrão de planejamento,
adotado convencionalmente que, ou é feito em desacordo com preceitos democráticos ou é
fruto de um processo decisório com viés equivocado, operando com restrições de conteúdo
político, de soberania democrática e de requisitos de legitimidade. Se existe a possibilidade de
agregar-se à essência da função de planejar elementos compreendidos como mais
democratizantes, com novas cargas de significado, é sinal de que o histórico de planejamento
público brasileiro pouco indicou um compromisso do governo em elaborar peças mais
perenes às múltiplas percepções sobre a realidade, sobretudo social, do país. Para organizar
essa compreensão e dar sentido à análise do objeto (PPA Participativo), entende-se como
primordial percorrer brevemente o histórico de planejamento público no Brasil, tomando
como referência as orientações da função empenhadas pelo governo federal, e que muito
influenciaram as práticas de planejamento nos estados e municípios.
O capítulo está organizado em três seções, que percorrem a temática do planejamento desde
sua origem no Brasil, com as primeiras experiências, passando pela institucionalização do
plano plurianual – intencionalidades, marcos normativos e desdobramentos nos ciclos
quadrienais – até a organização teórica de aspectos críticos do planejamento. Nesse último
caso, a organização das críticas abre caminhos para a discussão da ressignificação do
planejamento como um conceito que vai assumindo contornos da teoria da democracia.
Seção 1.1 Orientações da função de planejamento e
ciclos marcantes
Esta seção inicial busca apresentar a trajetória da função de planejamento público no nível
federal, a princípio com a descrição de macro definições, seguindo para as fases que
marcaram sua ascensão e decadência na administração pública brasileira, os vieses com os
quais foi tratada ao longo do tempo no Brasil e as principais peças de planejamento da
história, como é o caso do Plano de Metas (anos 50), do II Plano Nacional de
10
Desenvolvimento (anos 70) e do Plano Real (anos 90). Ao final da década de 80, assume o
ordenamento formal do governo a figura dos planos plurianuais (PPAs), cujas prerrogativas e
desdobramentos serão trabalhados com mais detalhamento na seção seguinte, dada sua
vinculação ao objeto do presente trabalho e relevância para a pesquisa.
1.1.1 Macro-definições do planejamento público
O planejamento público e governamental consiste em uma função do Estado, desempenhada
tal como as funções de formular e executar física e financeiramente as políticas públicas,
exercer o controle interno das ações ou gerir os recursos humanos. Enquanto função, o
planejamento é inserido no conjunto das chamadas áreas sistêmicas do governo, ou área-meio,
isto é, aquelas que dão suporte às áreas-fins, diretamente provedoras de políticas públicas para
a sociedade. A função de planejamento corresponde ao ato de ordenar as ações
governamentais, e pode abarcar mais ou menos o detalhamento prévio do conteúdo
programático a ser adotado – e isso envolve desde a escolha pelo tipo de desenvolvimento
nacional até as políticas que serão desempenhadas para alcançá-lo – e a definição de
prerrogativas de orçamento para cada item de conteúdo. Conforme o grau de profundidade e o
valor atribuído pelo governo ao planejamento, a função pode gerar como principal produto tão
somente um documento com uma carta genérica de intenções do governo.
A título de macro-definição do planejamento, é preciso ser feita a distinção entre a função e o
plano em si. O plano é produto, ao passo que a função de planejamento é processo, e, na visão
de Paulo (2010), uma atividade contínua que exige acompanhamento e vontade política.
Segundo ele, o planejamento é permeado por aspectos técnicos e metodológicos – e o caso da
Bahia vai mostrar a relevância disso –, mas se trata de um exercício essencialmente político.
Outros autores (SOUZA, 1996; MONCADA, 1985 apud BERCOVICI, 2015) complementam
essa distinção, no seguinte sentido: a função de planejamento trata de coordenar, racionalizar
e apontar os fins da atuação do Estado, permeado por elementos políticos e estruturais com
potencial de transformar sociedades como a brasileira, cujos desafios repousam sobre a
transformação dos padrões econômicos e sociais bem estabelecidos e demarcados. Não menos
relevante é o plano, enquanto produto do planejamento e expressão da vontade do Estado: “o
plano é a expressão da política geral do Estado”, vai além de um programa e é compreendido
11
como um “ato de direção política, pois determina a vontade estatal por meio de um conjunto
de medidas coordenadas, não podendo limitar-se à mera enumeração de reivindicações”
(Idem, p. 19).
O que é defendido pela literatura, que amplia o universo da função, é que existe uma série de
questionamentos e debates que permeiam – ou ao menos deveriam permear – a elaboração do
plano, que enriquecem o conteúdo das ações programadas e tornam a função de planejar mais
complexa que um produto impresso rígido. O planejamento busca a “transformação ou a
consolidação de determinada estrutura econômico-social, portanto, de determinada estrutura
política” (BERCOVICI, 2015, p. 20). Isso requer a construção de uma estratégia de
desenvolvimento nacional e a construção de uma visão de futuro, ambas que devem ser bem
alinhadas para a definição de “onde se quer chegar”. Consiste esse debate, antes de tudo e
para além da carta programática formal, em apontar um futuro desejado por meio de escolhas
presentes (OLIVEIRA, 2013). Tratando-se o planejamento de uma função que persegue a
alteração da situação social e econômica vivida em determinado momento, também se
configura como uma função do Estado orientada essencialmente para o futuro (MANNHEIM,
1972; GRAU, 1978; IANNI, 1989 apud BERCOVICI, 2015). Seja no coletivo, tal como as
estratégias mais recentes, seja a portas fechadas, como no planejamento convencional, a
problematização acerca do projeto de país desejado – tipo de desenvolvimento e visão de
futuro – é necessária, a menos que o plano seja uma peça de cumprimento exclusivamente
formal.
A estratégia de desenvolvimento nacional e a visão de futuro devem ser traduzidas no
planejamento em escolhas para o presente, a fim de que o plano reflita medidas objetivas –
ações, programas, projetos – para a concretização e alcance daquelas. Um ponto importante é
que não é razoável aceitar que, em países como o Brasil, o vislumbramento do
desenvolvimento nacional esteja calçado somente no desenvolvimento econômico e na
produção de riquezas, mas que precisa levar em consideração também a garantia do bem-estar
social, cidadania e aspectos democráticos, como preceitos essenciais do Estado (OLIVEIRA,
2013). Por isso, é normativamente considerado que as escolhas presentes conduzam o país
para o desenvolvimento multifacetado, amplo e carregado de conteúdo socialmente orientado,
segundo a linha teórica aqui recortada.
Ainda em termos de definição, o planejamento determina e tornam públicos “os
compromissos dos governos com a sociedade: o que será feito, como será feito e quais os
recursos que serão mobilizados” (OLIVEIRA, 2013, p. 40). Assim, o plano em si, como fruto
12
do processo de planejamento, apresenta uma lógica de encadeamento de ideias. Conforme
definido por Cardoso Junior e Melo (2011 apud MAIA e MELO, 2015, p. 135), o plano parte
de um “esquema coerente e fundamentado de objetivos”, que se desdobram em metas
quantitativas e qualitativas e em ações multitemáticas e multissetoriais, de cunho social,
político e econômico. Contém, então, “objetivos, metas e ações escolhidas, avaliadas e
implementadas de acordo com certos critérios, a serem cumpridas, atingidas e executadas
dentro de determinado número de anos”.
Em perspectiva de sustentabilidade e aderência da programação governamental, os autores
(CARDOSO JR e MELO, 2011 apud MAIA e MELO, 2015) argumentam que é necessário
criar instrumentos e condições adequadas para a implementação das ações desenhadas, assim
como o monitoramento, controle, avaliação e até mesmo a correção de rumos, se necessário.
Dessa forma, se há a compreensão de que a função de planejamento transcende a entrega do
plano, ou o documento com a carta de intenções do governo, é preciso que haja um
compromisso mínimo com a efetividade de sua implementação, por isso, as demais funções
da gestão pública entram em cena para retroalimentar as ações desenhadas.
1.1.2 Origem e motivações do planejamento público no Brasil
As experiências do planejamento público brasileiro, seus pressupostos, modelos e práticas,
estão em constante processo de consolidação. E ainda que essa aprendizagem se estenda por
quase cem anos na administração pública federal, a literatura do planejamento governamental
não é densa, de conteúdos profundos e sistemáticos, e também está em processo de
consolidação (PALUDO e PROCOPIUCK, 2011). São recordadas com veemência, até
mesmo na educação formal de crianças e jovens nas escolas, experiências que tiveram por
anos mais vazão nos grandes planos de desenvolvimento nacionais, quando então se lançava
publicamente novos projetos de país, como aqueles planos que marcaram a história de
presidentes como Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek (JK). A literatura foi se
enriquecendo ao longo da história a partir de dois movimentos: conforme a preponderância da
função de planejar em detrimento das demais, mesmo que de forma cíclica, que gerou
inquietações para a investigação do planejamento; e conforme o grau de formalização que as
peças de planejamento foram tomando – figurando como referência o instrumento plurianual
instituído pela Constituição Federal de 1988 (CF 88).
13
É muito comum na literatura pesquisada (REZENDE, 2011; SILVEIRA, 2013; BERCOVICI,
2015; MAIA e MELO, 2015; AMARAL, 2015) a demarcação do planejamento público no
Brasil em torno de grandes fases1. Partindo de um contexto anterior à década de 30, em que as
práticas eram quase inexistentes, foram iniciadas experiências históricas de planejamento, que
percorreu uma trajetória de ascensão – e que gerou muita aprendizagem ideológica e
instrumental – até a década de 70, passando pelo marcante Plano de Metas de JK na década de
50. A Ditadura Militar experimentou tanto o ápice (a “Era de Ouro”) do planejamento público
nacional, na década de 70, até sua decadência derradeira, que se estendeu até meados da
década de 80. Por fim, o contexto especial pós-redemocratização, muito refletido da
promulgação da Constituição Federal em 1988, emplacou uma mudança formal sem
precedentes na função de planejamento, a partir da instituição de instrumentos formais do
chamado Sistema de Planejamento Federal – nas figuras do Plano Plurianual (PPA), da Lei de
Diretrizes Orçamentárias (LDO) e da Lei Orçamentária Anual (LOA).
Outra possível demarcação das fases do planejamento público está relacionada àquilo que
ainda será tratado, que diz respeito à economia como força motriz da racionalização e
formalização do processo decisório. Sob essa lógica, com enquadramentos de Cardoso Junior
(2014, p. 30), o planejamento estaria organizado em quatro grandes fases. A primeira delas é a
dos planos setoriais e de metas, representada pelos emblemáticos Salte (saúde, alimentação,
transportes e energia), Metas e Trienal, com características de plano “burocrático,
discricionário, vertical e de médio a longo prazo”. Na segunda estão os planos nacionais de
desenvolvimento, da “Era de Ouro”, representada pelo PAEG e PNDs, também burocráticos,
verticais, de médio a longo prazos, porém autoritários e impositivos. Na terceira fase estão os
planos de estabilização, característicos das décadas de 80 e 90, representados pelos Cruzados,
Collor e Real, também burocráticos e verticais, mas de curto prazo e focalizados na
conjuntura. Por fim, a última fase seria, segundo essa perspectiva de recorte, representada
pelos planos plurianuais, não menos burocráticos, mas horizontais, de médio prazo e que
levariam em conta aspectos universais, para além da conjuntura econômica.
Nem sempre houve a experiência no Brasil de tornar o planejamento público uma sistemática
da gestão pública, com caráter formal. A formalização gradual do planejamento foi-se
constituindo a partir de um rigor de função governamental, e principalmente da necessidade
de racionalizar o processo decisório. O que antes era realizado em formato aleatório e
1
Bercovici (2015), por sua vez, divide a trajetória não em momentos, mas em função de três planos
emblemáticos, a saber: o Plano de Metas (1956-1961), o Plano Trienal (1962-1963) e o II Plano Nacional de
Desenvolvimento (1975-1979).
14
discricionário vai conformando uma arena de debate pela programação governamental que
exige metodologia e sistemática específica, desde a exposição de vínculos estratégicos até a
redação dos planos. Por isso, o planejamento ganha um caráter de instrumento de
racionalização do processo decisório, que busca definir e organizar um conjunto de ações
destinadas à implementação de intervenções estatais mais complexas (PALUDO e
PROCOPIUCK, 2011; REZENDE, 2011; CARNEIRO, 2015). Vale destacar que não é
consenso as benesses do formalismo: em linha oposta, por exemplo, Cardoso Junior (2011)
argumenta que o processo de formalização, que dá a obrigatoriedade de a ação governamental
estar vinculada aos planos orçamentários, incorre na subordinação da dimensão política do
planejamento às imposições do sistema formal de orçamento.
De acordo com Paludo e Procopiuck (2011), existem diversos fatores que corroboram para o
surgimento e consolidação, do ponto de vista formal, da função de planejamento
governamental. Esses fatores podem ser resumidos em pontos, a saber: a grande missão –
razão de existir – do Estado de servir à população, solucionando problemas sociais e buscando
o bem-estar comum; o cenário de complexidade em que está imersa a administração pública;
a complexidade da população e as demandas crescentes por direitos e serviços públicos
adequados; a máxima de recursos limitados, que impõe a racionalização e a busca pela
eficiência em sua aplicação; e a projeção internacional da economia, que pressiona os
governos a aderirem à globalização e promoverem formas de competitividade de produtos
nacionais. Pode-se observar que estão em xeque nesses pontos, se agrupados os itens, duas
dimensões de análise: a social e a econômica.
Parte significativa das motivações pela consolidação do planejamento, segundo essa visão, é
fruto do reconhecimento da razão de existir do Estado e da função que desempenha junto à
sociedade, assim como do cenário de complexidade que deve atuar a administração pública. O
planejamento, nesse caso, vincula-se ao alargamento do seu escopo de atuação, que cada vez
mais busca ampliar sua capacidade governativa para atender demandas mais complexas da
sociedade – capacidade governativa essa não só da função de planejamento, mas de
formulação, implementação, avaliação, entre outras (BRASIL et al, 2010; CARNEIRO,
2015). A prática de planejamento governamental veio reconhecendo a importância do Estado
enquanto gestor do desenvolvimento nacional, resgatando e recuperando temas e conteúdos
importantes na agenda pública. Foram manifestados esforços nos últimos anos para reafirmar
esse papel indutor do desenvolvimento e a capacidade de planejar e agir, colocando o Estado
15
brasileiro em um novo e promissor patamar de planejamento governamental (SANTOS,
2011).
O escopo de atuação do Estado inquestionavelmente ampliou-se junto às mudanças na
realidade social do país promovidas pela garantia de direitos; todavia, vale ressaltar que tal
ampliação se deu prioritariamente devido às estratégias intervencionistas na economia,
praticadas com intensidade pelo governo desde o início do século XX (BRASIL et al, 2010;
CARNEIRO, 2015). De outra via, portanto, a dimensão econômica citada por Paludo e
Procopiuck (2011) é predominante ao longo de toda a história do planejamento público
nacional. É nos pontos concernentes à economia, sobretudo no cenário de restrição
econômica, a nível federal, que são apoiadas e motivadas as principais transformações pela
robustez e formalidade do planejamento governamental.
O Estado ativo pela ampliação de suas capacidades governativas foi quase sempre adotado de
forma interveniente ao esforço desenvolvimentista. As primeiras iniciativas de planejamento
acompanharam um despertar pelo ativismo estatal na promoção da industrialização da
economia, uma vez que demandava uma organização mais sistemática das ações
empreendidas no país. Essa organização, que também gera resultados na citada racionalização
do processo decisório, foi-se consolidando a partir da construção – ou ao menos a tentativa –
das “bases estruturais do aparato burocrático estatal e de seus instrumentos de intervenção”,
cuja origem se deu na década de 30 (CARNEIRO, 2015, p. 273).
O Estado na década de 30 esteve fortemente orientado “pela missão de transformar as
estruturas econômicas e sociais da Nação no sentido do desenvolvimento, sendo a
industrialização a maneira historicamente preponderante de se fazer isso” (CARDOSO JR,
2014, p. 31). Em países como o Brasil, entretanto, o esforço pela industrialização tem origem
no subdesenvolvimento, o que corrobora para que a indústria somente acompanhe as bases
políticas e econômicas do capitalismo conformado nas nações centrais, as quais, por sua vez,
impõem aos países subdesenvolvidos, em contexto de desenvolvimento tardio, um modelo de
industrialização nada autônomo e cheio de restrições financeiras e tecnológicas. De acordo
com Cardoso Junior (2014, p. 31), a tarefa do desenvolvimento com industrialização “apenas
se faz possível em contextos tais que os Estados nacionais consigam dar materialidade e
sentido político à ideologia do industrialismo, como forma de organização social para a
superação do atraso”, sendo parte disso empoderado pela capacidade governativa, entre suas
possibilidades, o próprio planejamento.
16
Entendendo, então, que o esforço desenvolvimentista demandava a adoção de uma ideologia
específica em prol do industrialismo e uma estratégia estatal para sustentar esse modelo na
prática, fez-se necessário à época consolidar estruturas e sistemas “inovadores” de
planejamento público governamental, a fim de perseguir a missão e as metas de
desenvolvimento nacional em função de espaço e tempo determinados (CARDOSO JR,
2014). Essa construção tardia frente aos países capitalistas centrais e o sentido de urgência
associado à missão desenvolvimentista industrial nacional foram responsáveis por dar uma
centralidade ímpar à função de planejamento governamental. A esse respeito Cardoso Junior
(2014) afirma que o sistema de planejamento, mesmo que insuficiente e precário, estruturou-
se e avançou de forma mais rápida que os demais aparelhos (funções) administrativos, a
exemplo dos sistemas de arrecadação, de orçamento, de avaliação de políticas, de controle
interno, entre outros. Por isso, a função de planejamento não foi acompanhada de uma
investida do governo pela maturidade de toda a gestão pública, com capacidade governativa
de suporte efetivo à tarefa industrializante.
A chamada “primazia do planejamento frente à gestão” – parte densa da literatura de Cardoso
Junior (2011, 2014) –, que se estendeu por quase todo o século XX, apoiou-se muito
significativamente no sentido de urgência da missão desenvolvimentista, que “obriga o Estado
brasileiro a correr contra o tempo”, enfrentando resistências estruturais pela “montagem das
bases materiais e políticas necessárias à missão de transformação das estruturas locais” (2014,
p. 31). Após o final da segunda guerra mundial, a função de planejamento ganha mais
consistência e uma progressiva carga de institucionalização, que aos poucos vai constituindo
as bases para a Era de Ouro do Planejamento, na década de 70 (CARNEIRO, 2015).
Essas constatações não denotam, no entanto, que houve a primazia da função de planejar em
detrimento das demais ao longo de toda a trajetória da gestão pública nacional, somente uma
preponderância. A administração pública brasileira é marcada por movimentos cíclicos e
alternados entre planejamento e gestão governamental, segundo Cardoso Junior (2011), sendo
ora orientada para o planejamento – ritos de processos decisórios –, ora para a gestão pública.
Quando a ênfase recai sobre a gestão, como ocorreu no contexto pós-redemocratização, na
década de 90, o planejamento é forçado a dividir a cena com processos que valorizam
excessivamente os meios e instrumentos em detrimento dos fins das políticas. Essa
descontinuidade organizativa tensiona o esvaziamento da função de planejamento
governamental e de toda a sua carga subjetiva de política, de conteúdo temático e de
estratégia de desenvolvimento nacional.
17
1.1.3 Ciclos marcantes da trajetória do planejamento: as
principais peças da história
Parafraseando as intenções de Cardoso Junior (2014) no balanço que o autor faz da
experiência federal em planejamento e gestão, este item busca fazer uma “viagem panorâmica
pelo longo século XX brasileiro” no quesito planejamento público governamental,
apresentando sinteticamente os principais ciclos e peças da dita função ao longo da história da
gestão pública no Brasil.
No início do século XX, da noção da própria gestão pública era difícil extrair uma ideia de
função, conjuntura em que o nível de maturidade da administração pública era incipiente. Ela
sofria com as investidas pela manutenção das forças dominantes externas e interesses locais
com traços do patrimonialismo, bem como com a herança de subordinação característica do
período colonial. Na Primeira República havia uma “ausência quase que completa de
planejamento governamental, entendido como a atividade ou o processo consciente que
antecede e condiciona a ação estatal” (CARDOSO JR, 2014, p. 32). Somente não foi
inexistente por conta de poucas iniciativas de ordenar a estabilização econômica, em que o
Estado lançou mão de instrumentos para responder às crises nacionais da economia. O
ordenamento proposto como resposta ao Convênio de Taubaté2 em 1906 e à grande crise
econômica de 1929 são exemplos disso, e somente reforçam o caráter reativo do planejamento
à época. É importante lembrar que as crises são decorrentes de comprometimentos sérios no
mercado do setor cafeeiro, “carro chefe da acumulação de capital no País, bem como (...)
sustentáculo político da oligarquia liberal que comandava o Estado” (CARDOSO JR, 2014, p.
32). Quando esse sustentáculo está à beira de ruir, o Estado entra em ação com mecanismos
de reorientação da economia.
A primeira experiência do Brasil, considerada um marco inicial do planejamento, foi a
elaboração do Plano de Obras Públicas e Aparelhamento da Defesa, mais conhecido como
Plano Especial, que vigorou entre 1939 e 1943. O plano foi fruto de uma investida de governo
de Getúlio Vargas na “organização e aceleração do crescimento econômico, comandado por
estruturas estatal-burocráticas ainda incipientes e em lenta conformação no país” (CARDOSO
2 O Convênio de Taubaté foi fruto de uma reunião realizada em 1906 entre os governadores dos estados de São
Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro para discutir propostas para a garantia da rentabilidade daquele que era o
principal produto da econômica brasileira: o café. O convênio teve como foco a organização de uma Política de
Valorização do Café.
18
JR, 2014, p. 38). Ele focou no aparelhamento das forças armadas, na execução de obras
públicas e na regulação de atividades econômicas predominantes no país, como o setor
agrário exportador. Entre outras ações inerentes à gestão pública, destacam-se a criação do
Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), órgão idealizador do plano, e o
investimento em indústrias de base, como a criação da Companhia Siderúrgica Nacional
(CSN).
Esse plano foi substituído rapidamente pelo Plano de Obras e Equipamentos (POE), elaborado
junto com técnicos americanos com a intenção de executar obras públicas de construção civil
e fomentar indústrias básicas. O POE, que foi parcialmente executado e somente nos
primeiros anos (1944 a 1945), e o Plano Especial foram fracassados, muito devido ao caráter
limitado de rearranjo orçamentário – designação de verbas e ampliação de mecanismos de
controle (REZENDE, 2011; PALUDO e PROCOPIUCK, 2011).
No Governo de Eurico Gaspar Dutra, em 1947, foi elaborado o Plano Salte – iniciais das
quatro áreas de intervenção a que pretendia o plano: saúde, alimentação, transporte e energia.
O plano demorou a ser aprovado pelo Congresso Nacional e a entrar em vigor, e pretendia
incidir sobre o incremento da produção de mercadorias e serviços nas áreas citadas entre 1950
e 1954. Estima-se que tenha sido a primeira iniciativa a promover uma coordenação entre os
níveis federal, estadual e municipal, assim como o primeiro planejamento econômico do
Brasil. O plano era financiado com investimento híbrido, mas era fortemente apoiado em
financiamento externo (PALUDO e PROCOPIUCK, 2011). É interessante notar que, à época,
o imaginário liberal e a proximidade com os americanos fizeram ascender o debate sobre o
Estado mais ou menos intervencionista, o que indiretamente força um questionamento sobre a
própria razão de existir dos planos (REZENDE, 2011).
Isso não impediu, entretanto, que o retorno de Vargas ao poder provocasse um “novo surto de
intervenção do Estado na economia” (REZENDE, 2011, p. 178). Pelo contrário, o então
presidente era um entusiasta do desenvolvimento nacional autônomo. Como uma forma de
reagir à dependência externa e criar as bases de desenvolvimento nacionais, foi elaborado o
Plano Nacional de Reaparelhamento Econômico, conhecido como o Plano Lafer, que
buscava, sem grandes inovações, promover a melhoria de infraestrutura e o fortalecimento da
indústria de base (REZENDE, 2011), com alterações no modelo de financiamento. Nesse
contexto, são criadas notórias empresas estatais brasileiras, como a Companhia Vale do Rio
Doce, a Petróleo Brasileiro S/A – Petrobrás, a Centrais Elétricas Brasileiras (Eletrobrás) e o
atual BNDES (CARDOSO JR, 2014).
19
No que diz respeito à função de planejamento público, esta ainda não se encontrava com
maturidade sistêmica, tampouco era considerada uma atividade essencial da atuação do
Estado; porém, foi tomando contornos mais concretos conforme “os requisitos da
industrialização vão se tornando mais exigentes” (CARDOSO JR, 2014, p. 33). Pode-se
sugerir com tais assertivas que o esforço desenvolvimentista combinado com o esforço
intervencionista serve de alavanca para o fortalecimento do ordenamento governamental. Por
outro lado, Cardoso Junior (2014, p. 33) compreende que “permanece atávica (...) a dimensão
da gestão pública no país, presa a características duradouras que combinam patrimonialismo e
burocratismo”, isto é, que combinam “aspectos típicos tanto da administração tradicional
patrimonialista como da administração racional burocrática”. Esses efeitos coexistentes
colaboram para a primazia do planejamento, versus gestão, mas ao mesmo tempo prendem o
planejamento à informalidade – no sentido da não formalização e da ausência de uma
sistemática para cumprimento ou para a sustentabilidade das diretrizes dos planos.
A segunda metade da década de 50 representou um grande ponto de inflexão na trajetória do
planejamento público nacional. Foi inaugurada com a ascensão de Juscelino Kubitscheck ao
poder e com o respectivo Plano de Metas a Era de Ouro do Planejamento, que perdurou até a
década de 70. Nessa onda, foi aprofundado o reconhecimento do peso do papel do Estado na
promoção do desenvolvimento e, junto com ele, a conotação mais presente e permanente da
sua função de planejamento, “ainda que exageradamente discricionário(s)” (CARDOSO JR,
2014, p. 33). O Plano de Metas vigorou entre 1956 e 1961 e é compreendido como a primeira
experiência efetiva de planejamento no Brasil, vinculado a uma estratégia de desenvolvimento
que permitia ir além do “papel” e dava sentido de unidade para as ações de todas as áreas ali
previstas (BERCOVICI, 2015).
O Plano de Metas foi elaborado de forma dialogada com diretrizes e diagnósticos de agentes
internacionais de peso, responsáveis por difundir no país uma ideologia desenvolvimentista –
diga-se, muito bem vinda pela então gestão federal (CARDOSO JR, 2014). Faziam parte
dessa composição a Comissão Mista Brasil - Estados Unidos e o Grupo Misto BNDE -
Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), sendo que a primeira buscava
contribuir para a transformação de pontos de estrangulamento, sobretudo na indústria, e a
segunda foi relatora de um amplo diagnóstico sobre a economia do Brasil (BERCOVICI,
2015). A partir desse embasamento, o plano abarcou 30 metas para desenvolvimento em
quatro setores, sendo eles de energia, transporte, alimentação e indústria de base, como a
20
notória indústria automobilística. Também estabeleceu metas para educação e formação
técnica e orquestrou a construção de Brasília (PALUDO e PROCOPIUCK, 2011).
O plano manteve o viés intervencionista do Estado na economia, assim como na Era Vargas,
mas apostou em uma ideologia embasada no estreitamento e dependência do capital externo,
no extremo oposto daquele, e na emissão de papel moeda. Esse arranjo colaborou para a
promoção do desenvolvimento nacional nos gargalos da indústria, e garantiu, ainda que de
forma provisória, sucesso e visibilidade ao plano; porém, também provocou o aumento da
inflação e da dívida pública (PALUDO e PROCOPIUCK, 2011). O Plano de Metas então
completou o ciclo de desenvolvimento iniciado na década de 30, principalmente pela
diversificação da indústria brasileira; entretanto, alterou o padrão de dependência com o
capital externo combatido insistentemente pela postura nacionalista de Getúlio Vargas
(REZENDE, 2011).
Do ponto de vista da gestão, novamente a primazia do planejamento como orientação levou os
órgãos responsáveis pela implementação do Plano de Metas a serem superpostos ao sistema
administrativo tradicional, causando um sombreamento na realidade de implementação das
políticas públicas. Isso evitou uma série de desgastes políticos, uma vez discricionário, mas
acabou por reproduzir e alimentar a inadequação da máquina administrativa pública às
estratégias de desenvolvimento (BERCOVICI, 2015). Assim, a estrutura de gestão não
caminha aos passos largos do planejamento e mantém-se presa ao patrimonialismo e
burocratismo de antes. Ambas as características, “com o esgotamento das alternativas de
financiamento do desenvolvimento (...) e a explicitação das fragilidades do incipiente e
precaríssimo sistema nacional de inovações (...), ajudam a explicar a acomodação e a crise
dos modelos econômico e político até então vigentes” (CARDOSO JR, 2014, p. 33).
Tomou o lugar do Plano de Metas, em 1962, o chamado Plano Trienal – Plano Trienal de
Desenvolvimento Econômico e Social, reconhecido como uma experiência de grande
impacto, ainda que simbólico, na trajetória do planejamento público nacional. O plano foi
elaborado na gestão de João Goulart, pelo seu ministro Celso Furtado, em parceria com a
Comissão Nacional de Planejamento3, e tinha objetivos ambiciosos de cunho nacionalista para
o desenvolvimento nacional (PALUDO e PROCOPIUCK, 2011; BERCOVICI, 2015).
Bercovici (2015, p. 23) afirma que o plano pode ser considerado como “o primeiro
instrumento de orientação da política econômica global até então formulado, com sua
3 A Comissão Nacional Planejamento foi criada pelo então presidente Jânio Quadros com o objetivo de preparar
um plano de estabilização para o país.
21
proposta de reformas econômicas e de reformas de base”, majoritariamente apoiado no
modelo de substituição de importações. Apesar de toda a relevância simbólica do plano como
norte da política econômica, as turbulências econômicas, com a alta inflação, e as forças
políticas de resistência minguaram a eficácia do Plano Trienal e ele resistiu somente por cinco
meses (PALUDO e PROCOPIUCK, 2011; REZENDE, 2011; BERCOVICI, 2015).
A partir do golpe militar de 1964, desdobrou-se no Brasil o auge do planejamento de tipo
“autoritário-tecnocrático” (CARDOSO JR, 2014). A Ditadura Militar desenhou novos
contornos para a história do planejamento econômico nacional, buscando conciliar a
estabilização macroeconômica com a manutenção do crescimento. Para isso, o Estado lançou
mão de reformas ditas modernizadoras da máquina pública e que reforçavam a capacidade de
intervenção na economia, assim como mergulhou a administração e as funções públicas em
um arranjo autoritário. As primeiras iniciativas ordenadoras mantiveram a política de
industrialização defendida nas décadas anteriores e se aproveitaram da aprendizagem técnica
acumulada na função de planejar para garantir maior hegemonia do Poder Executivo
centralizador nos ditames do desenvolvimento (REZENDE, 2011; BERCOVICI, 2015).
A Era de Ouro do Planejamento foi em muito preenchida pelos planos oriundos dos governos
militares, cujas principais referências são o Plano de Ação e Bases do Governo (PAEG),
elaborado na gestão de Castelo Branco para vigorar entre 1964 e 1966, o Plano Decenal de
Desenvolvimento (1967-1976), da gestão de Costa e Silva, e os três Planos Nacionais de
Desenvolvimento (PNDs), cujas diretrizes perduraram de 1972 até 1985, já em período de
redemocratização do país, compreendendo os governos de Médici, Geisel e Figueiredo.
Também perpassam esses planos, de forma emblemática, o instrumento jurídico do Decreto-
lei 200, com prerrogativas de organização da máquina pública federal ainda notadas nos dias
atuais, e a criação do Sistema Federal de Planejamento em 1972 (PALUDO e
PROCOPIUCK, 2011; REZENDE, 2011; BERCOVICI, 2015).
O primeiro plano, o PAEG, buscou equalizar algumas distorções do período anterior para
conter e mitigar o processo inflacionário e recuperar a economia nacional, entre outras
medidas, pelo esforço de ampliar a administração federal com a criação de empresas públicas
e sociedades de economia mista (PALUDO e PROCOPIUCK, 2011). Fez parte desse
contexto a reestruturação no Ministério do Planejamento, a criação do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA) e a promoção da poupança compulsória, por meio do Fundo de
Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Também foi encampada uma importante reforma
tributária, apoiada na cobrança de impostos oriundos das áreas de transporte e comunicações,
22
que promoveu alterações nos mecanismos de financiamento das ações estatais e colaborou
para que o governo exercesse controle completo sobre o projeto de expansão do
desenvolvimento nacional. Tais estratégias implicaram no sucesso parcial do plano
(REZENDE, 2011).
O Plano Decenal, por sua vez, foi encomendado pela gestão anterior, de Castelo Branco, e
desenvolvido pelo IPEA como uma iniciativa inovadora de planejamento de longo prazo,
representando aquele que seria o mais abrangente dos planos econômicos até então elaborado.
O fato de envolver o órgão de pesquisa foi fundamental para a sistemática do conhecimento
disponível para o Estado e a organização da aprendizagem das funções de gerir e planejar
decorrentes do período anterior. Apesar de não ter sido executado, o plano visou a
consolidação das ações estatais para o desenvolvimento, e continha em sua estrutura um
arranjo de informações mais robusta para o planejamento, a saber: um diagnóstico das
diversas áreas setoriais, a definição de um modelo de desenvolvimento e uma programação
quinquenal. Os dez anos que deveria compreender o plano foram marcados por
descontinuidades de implementação, mas deram prosseguimento à onda imediatamente
anterior de criação de empresas estatais – estima-se que 60% da administração indireta tenha
sido fomentada nessa época (PALUDO e PROCOPIUCK, 2011; REZENDE, 2011).
Em 1967, foi instituído formalmente o Decreto-lei 200, que disciplina a organização da
Administração Pública Federal em função de quatro princípios fundamentais, entre eles o
controle, a coordenação, a delegação de autoridade e, principalmente, o próprio planejamento.
Essa é a razão pela qual o decreto também compõe a trajetória do planejamento público no
Brasil. Ele elevou a função a um princípio fundamental da administração federal, valendo-se
de instrumentos de coordenação de ordenamentos gerais, setoriais e regionais, de horizonte
plurianual e de conciliação entre orçamento e programa (PALUDO e PROCOPIUCK, 2011).
Entre 1967 e 1972, outros documentos titulares da função de planejar foram apresentados na
gestão de Costa e Silva, também pela Junta Militar e por Médici, como o Programa
Estratégico de Desenvolvimento (PED) e o Programa de Metas e Bases; todavia, foi o
Decreto-lei 200 que ganhou centralidade, por representar uma verdadeira reforma da estrutura
administrativa federal.
A década de 70 marca o auge do planejamento público no Brasil no que diz respeito à
centralidade e grau de importância atribuídos à função, assim como ao potencial de influência
e aderência na formulação e implementação de políticas públicas, muito devido à instauração
da “família de PNDs” e à criação do Sistema de Planejamento Federal (SPF), por meio do
23
Decreto 71.353/1972 (REZENDE, 2011; MAIA e MELO, 2015). Logo no início da década
foram implementadas medidas de modernização do Estado por meio de reformas
administrativas, com vistas à recuperação da capacidade e alcance da intervenção na
economia. O planejamento acompanha esse movimento e torna-se, nesse contexto, “elemento
estruturador do governo no sentido de estabelecer instrumentos de condução da economia”
(MAIA e MELO, 2015, p. 142).
As grandes referências em termos de peças de planejamento do período são os três Planos
Nacionais de Desenvolvimento (PNDs), que possuem uma fundamentação jurídica própria
para sua elaboração e apresentação. Em razão da promulgação do Ato Complementar número
43, de 29 de janeiro de 1969, foi instituído o regime jurídico do planejamento, que previa a
organização da programação do governo e a obrigatoriedade de enquadrar o PND na gestão
do presidente militar, com a mesma duração do mandato. Também fixou normas para a
vinculação dos planos ao Orçamento Plurianual de Investimentos (OPI). Com o objetivo
central de assegurar o crescimento econômico, os PNDs “foram totalmente impostos pelo
Governo Central, desprezando-se a participação e a colaboração dos entes federados”
(BERCOVICI, 2015, p. 23).
O primeiro PND foi elaborado no governo de Emílio Médici e correspondeu aos anos de 1972
a 1974. O plano cumpriu com obediência aos institutos do novo regime jurídico (Ato
complementar de 1969), sendo aprovado pelo Congresso Nacional e garantindo uma
perspectiva de execução vinculada ao OPI – essa nova metodologia foi a primeira a
demonstrar de fato preocupação com a execução do plano. O I PND não apresentou grandes
inovações em termos de conteúdo, já que buscou preservar as diretrizes dos programas que
haviam sido detalhados nas peças anteriores. No entanto, valeu-se do “bom momento” da
economia global para levar os créditos do chamado “Milagre Econômico”, representado pelo
desenvolvimento acelerado do Brasil em algumas áreas e em projetos de integração nacional,
que resultaram em obras famosas como a ponte Rio-Niterói, a usina de Angra 1 e a rodovia
Transamazônica. Não escapou o plano de um aumento no endividamento externo, uma vez
que boa parte do financiamento das obras adveio de recursos estrangeiros (PALUDO e
PROCOPIUCK, 2011; REZENDE, 2011).
A criação do Sistema Planejamento Federal (SPF) em novembro de 1972 foi um importante
passo para a formalização do planejamento público no Brasil. Ele promoveu um arranjo em
prol da função que agregava todos os órgãos da administração pública direta e indireta, e
apontou como órgão centralizador do SPF o então Ministério do Planejamento, Orçamento e
24
Gestão (MP). Segundo o texto do decreto que instituiu o SPF, o sistema tinha como objetivos:
a coordenação da elaboração dos planos e dos programas de governo; a promoção da
integração entre os planos regionais e setoriais; o acompanhamento e a execução desses
planos e programas; a aplicação de critérios técnicos específicos para a seleção de prioridades;
a modernização de estruturas e procedimentos da administração federal; e o estabelecimento
de fluxos permanentes de informações entre os componentes do sistema (REZENDE, 2011;
MAIA e MELO, 2015).
O Ministério do Planejamento foi convertido em Secretaria da Presidência da República, o
que demonstra o grau de centralidade que tomou a função durante a execução do segundo
PND, que foi elaborado em um contexto ímpar de influência do planejamento na formulação e
implementação das políticas públicas nacionais. Sendo assim, se a década de 70 representa o
auge do planejamento público, mais ainda representa o II PND. O decreto-lei 200, a
implantação do sistema e o ato complementar 43, juntos, impulsionaram a função de planejar
a alcançar todas as dimensões relevantes da ação governamental (REZENDE, 2011).
O II PND, elaborado no governo de Ernesto Geisel para vigorar entre 1974 a 1979, traduziu
um escopo amplo de intervenções estatais com vistas à transformação da matriz produtiva no
país e à superação da barreira do subdesenvolvimento. Projetando o Brasil como uma
potência emergente, foi priorizado o investimento em indústrias de base, em bens de capital e
na não dependência de insumos básicos. Também canalizou recursos para o desenvolvimento
de programas energéticos (nuclear, álcool, hidrelétrica etc) e pesquisa em petróleo. No
entanto, mesmo com tais esforços, houve limitações de alcance do plano, que se deram em
decorrência de duas dimensões: econômica, com enfrentamento de uma crise internacional do
petróleo sem precedentes em 1979, e o agravamento da dívida externa e da inflação; e social,
pela desconsideração de medidas para a distribuição de renda e equalização de problemas
sociais graves – máxima do “deixar o bolo crescer para então dividi-lo” (PALUDO e
PROCOPIUCK, 2011; BERCOVICI, 2015).
Existe o reconhecimento de que o sistema de planejamento alcançou patamares elevados de
abrangência, coordenação e formalização no cenário da administração pública federal à
época; todavia, isso não impede apresentar algumas críticas que se fazem ao período. A
primeira crítica, apresentada por Cardoso Junior (2014, p. 34), é oriunda do “autoritarismo-
tecnoburocrático”, característico dessa fase, responsável por ditar medidas impositivas e
autoritárias do planejamento governamental. De acordo com o autor, como não haviam, de
forma institucionalizada, “estruturas de representação da sociedade e de canalização dos
25
interesses no âmbito do Estado”, o grau de aderência dos planos mantém-se cerceado por
traços históricos patrimonialistas. Assim, sobrepõem aos “critérios racional-legais preceitos
fundamentalmente patrimonialistas na resolução de conflitos e na tomada de decisões”. Nesse
sentido, entende-se que a repressão explícita do regime e o fechamento do diálogo com a
sociedade comprometem a função de planejar mesmo que essa tenha sido amparada por um
arranjo jurídico e institucional robusto durante a década de 70.
A segunda crítica que se faz remete à participação irrisória do Poder Legislativo nos ditames
dos PNDs. Durante a Ditadura Militar, o Congresso Nacional sofreu duros golpes de poder, e
isso refletiu diretamente em sua capacidade de influir nas ações governamentais. No âmbito
do planejamento federal, o regime autocentrado limitou a participação política do desenho dos
conteúdos dos planos e eles representavam tão somente as estratégias do Poder Executivo. Os
PNDs “não eram apreciados pelos parlamentares e os orçamentos o eram apenas ritualmente,
pois não se podia emendá-los na substância” (GARCIA, 2015, p. 19).
A terceira crítica recai sobre o viés economicista dos planos. De acordo com Garcia (2015, p.
20), os PNDs não inovam frente aos planos anteriores como PAEG e Decenal, e mantêm o
“planejamento apenas como uma técnica para racionalizar a aplicação exclusiva de recursos
econômicos, entendidos como os únicos utilizados no processo de governar”. Assim, “são
ignorados os recursos políticos, organizacionais, de conhecimento e informação”. Toda a
normatização promulgada na década de 70 serviu para dar os contornos de uma modernização
conservadora da economia nacional, determinando o chamado planejamento normativo da
época como eficaz para “lidar com uma sociedade menos complexa, social e politicamente
contida pelo autoritarismo vigente”. Com a complexificação da sociedade, o modelo de
gestão, assim como o próprio modelo de planejamento, tornam-se insustentáveis, uma vez que
o governo é forçado a responder anseios de uma “sociedade multidimensional”.
Os elementos que derivam do tipo de regime adotado combinados com uma crise emergente
de sustentação do ritmo de crescimento econômico corroboraram para uma queda brusca no
funcionamento do sistema de planejamento público no Brasil e para o alcance irrisório do
último PND, o III PND, vigente entre 1980 e 1985. Elaborado no governo de João Figueiredo
com objetivos voltados à promoção da agricultura e da indústria, e até mesmo com metas para
a área social, o plano foi um verdadeiro fracasso. Esse plano de desenvolvimento nacional
marca não só o declínio do planejamento público nacional quanto o despertar da chamada
“Década Perdida” (década de 1980), fruto da crise do modelo de sustentação do
26
desenvolvimento econômico e do autoritarismo também insustentável da Ditadura Militar
(PALUDO e PROCOPIUCK, 2011; REZENDE, 2011).
A década de 80 foi então um ponto de interrupção do desenvolvimento nacional, em diversos
aspectos, mas o enfraquecimento do Poder Executivo não foi de todo ruim. Embora com a
redução preeminente da capacidade de articular decisões governamentais – incluindo nisso a
função de planejamento – as limitações do governo fizeram ruir o regime militar vigente e
fomentou rediscussão das bases da democracia (REZENDE, 2011). O advento da Nova
República, a partir de 1985, trouxe consigo novas iniciativas de planejamento governamental,
todas com intenções apontadas para o combate à estagnação econômica e ao endividamento
externo, buscando reposicionar o Brasil nos rumos do desenvolvimento. Fazem parte dessas
iniciativas os Planos Cruzados I e II, o Plano Bresser e o Plano Verão, agrupados no chamado
Plano da Nova República, com vigência entre 1986 e 1989. Elaborados na gestão de Sarney
com a intenção de alavancar novo surto de desenvolvimento semelhante ao milagre
econômico, ao contrário, de acordo com Paludo e Procopiuck (2011, p. 57), os planos – e, por
consequência, o planejamento público – perdeu “sua credibilidade em face dos sucessivos
insucessos, passando a ser visto apenas como figura retórica”.
Colaborou para esse descrédito a ascensão de Fernando Collor ao poder. Entre 1990 e 1991
foram lançados planos audaciosos de caráter liberalizante, com grande impacto na mídia e
resultados ditos desastrosos para a gestão e para o país. Os Planos Collor I e II promoveram
uma varredura na administração pública, com ações para reduzir a quantidade e fundir
ministérios de naturezas e obrigações diferentes, extinguir órgãos da administração indireta e
retirar medidas protecionistas com redução progressiva de barreiras tarifárias. Foi
emblemático no governo o lançamento do Programa Nacional de Desestatização (PND), que
buscava transferir à iniciativa privada atividades exercidas pelo Estado – essas que foram
centrais nas experiências de planejamento dos anos 1970. Em setembro de 1992, as medidas
radicais e questionáveis dos planos e escândalos de corrupção oriundos de ilegalidades da
campanha eleitoral conduziram ao impeachment do então presidente (REZENDE, 2011).
Mergulhado naquilo que Rezende (2011) chama de “desmonte do Estado e da administração
pública”, o planejamento foi, pouco a pouco, sendo desconstruído. Na gestão de Collor, foi
reduzido a uma secretaria do Ministério da Economia que somente acompanhava a execução
orçamentária já gerida em completude pela Secretaria da Fazenda, ao mesmo tempo em que
foram esvaziados os órgãos setoriais de planejamento. Interessante é notar que, em pouco
tempo – entre 1990 e 1992 –, “as mudanças administrativas destruíram uma estrutura de
27
planejamento que embora já estivesse fragilizada em face de uma espúria associação entre
autoritarismo e planejamento, ainda preservava elementos básicos que poderiam permitir uma
mais fácil recuperação” (REZENDE, 2011, p. 192).
O planejamento deu lugar a uma agenda de ajuste nas contas públicas, pressionada pela crise
fiscal, e a uma agenda gerencialista, representada por medidas de intervenção do mundo
privado na gestão pública, voltadas à eficiência econômica. Afirma-se, por Rezende (2011, p.
188), que houve sucessivos fracassos das iniciativas de estabilização, que “azedaram a
situação reinante e abriram espaço para aventuras que, ao invés de reconstruir, desconstruíram
o que ainda restava do sistema de planejamento gradativamente implantado nas décadas
anteriores”. No âmbito do gerencialismo da chamada “Nova Administração Pública” (em
inglês, New Public Management - NPM), tal descrédito foi somado às campanhas pela
desmoralização do Estado, com argumentos pela baixa eficiência do governo na prestação de
serviços públicos e com o levante corriqueiro de escândalos de corrupção que, ao invés de
chamar o Estado à ação, transformavam-no em vilão do desenvolvimento.
A Constituição Federal de 1988 marcou o processo de redemocratização do Brasil após
longos anos de Ditadura Militar e com ela a perda de parte da hegemonia do Executivo nas
determinações de políticas exclusivamente econômicas. Como o planejamento ascendeu
conforme as necessidades de promover o crescimento econômico, desde sua origem, ao
perder essa prerrogativa, o Estado também tendeu a negligenciar a função de planejar. Nesse
contexto, o esforço de elevar a função de planejamento a um critério essencial de
desenvolvimento nacional foi positivamente retomada na promulgação da carta e a decorrente
investida pela formalização do planejamento. A obrigatoriedade da elaboração e publicização
dos planos plurianuais (PPAs) de governo foram impostas pelo texto constitucional,
juntamente com o redesenho de toda a sistemática orçamentária, mas a prerrogativa foi
conduzida de forma acessória nos primeiros ciclos. Exemplo disso é o exercício de planos
paralelos aos planos plurianuais, como é o caso do Plano Collor (I e II), do Plano Real, do
Plano Brasil em Ação e, em alguma medida, do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC I
e II).
Após o conturbado processo de impeachment de Fernando Collor, havia um ambiente político
instável no momento em que Itamar Franco assumiu o poder. Embora tivesse tendências
nacionalistas, ao passo que considerava a papel do Estado na economia como relevante para
um projeto de desenvolvimento, o novo presidente foi levado a tomar medidas mais
conservadoras, inclusive no aspecto do planejamento. A partir de tentativas frustradas de
28
contenção da inflação e medidas de ajuste da economia sem efeitos – “tentativas heterodoxas
de estabilização monetária” –, Itamar Franco buscou uma bandeira para marcar sua gestão.
Foi então que, “em gesto de grande ousadia”, foi lançado o Plano Real em 1994, que trouxe
de volta a moeda ao cenário nacional e promoveu o feito histórico de controle da inflação e
estabilização da economia (REZENDE, 2011, p. 193 e 194).
O sucesso do Plano Real é compreendido como o grande responsável pela eleição de
Fernando Henrique Cardoso, figura que esteve à frente da pasta de Economia em fase de
lançamento do plano, e também abriu espaço para reformas administrativas com ênfase em
gestão (REZENDE, 2011). Se reconhecido o movimento pendular diagnosticado por Cardoso
Junior (2014), a década de 90 marca a centralidade da gestão em detrimento do planejamento
público, muito devido à citada agenda gerencialista da NPM e à agenda neoliberal. As
iniciativas paralelas à elaboração e implementação dos planos plurianuais foram
características à época, como as discussões e entendimentos que desembocaram no Plano
Diretor de Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE), elaborado pelo Ministério da
Administração Federal e da Reforma do Estado – ministro Luiz Carlos Bresser Pereira – e
aprovado pela Câmara da Reforma do Estado em 21 de setembro de 1995.
O Brasil intensificou na década de 90 processos de revisão do funcionamento da máquina
pública, institucionalizados por reformas administrativas e orçamentárias e por mecanismos
de planejamento governamental com ênfase em eficiência – ressaltando que esses
mecanismos descontinuam a função de planejamento tal como era pensada na Era de Ouro do
Planejamento. A agenda internacional da NPM foi traduzida no Brasil de maneira limitada e
cuja principal tentativa de colocá-la em prática foi por meio da implementação do PDRAE.
Vale notar que o plano emplacou a agenda da NPM, quando muito, parcialmente, mas mesmo
assim provocou a revisão das passagens da Constituição Federal. Essa revisão foi dada pela
Emenda Constitucional 19 de 1998; figura normativa importante na reforma administrativa
que, antes de tudo, servia de apelo para o funcionamento compreendido como mais “racional”
da sua máquina administrativa. A afirmação dos reformistas é de que essa máquina nunca foi
capaz de garantir o funcionamento esperado das políticas públicas no Brasil, e ainda se instala
em um Estado com poupança pública negativa, em crise fiscal e sem capacidade de realizar
investimentos (PDRAE, 1995).
Como base do entendimento do planejamento público a partir do final da década de 80, é
importante levar em conta, de forma central, que buscou-se uma transformação afirmativa da
função por meio da instituição dos instrumentos de planejamento formal pela Constituição
29
Federal de 1988, mas que isso não obrigou o Estado a utilizá-los como a principal referência
de orientação e ordenamento da ação governamental, sobretudo na medida em que o cenário
macroeconômico e a expansão de modelos de gestão ditavam as principais regras da
administração pública federal. O que a próxima seção procura mostrar é que os planos
plurianuais, os PPAs, vão ganhando centralidade conforme a possibilidade de
correspondência ao projeto de desenvolvimento nacional e vão afirmando a função como
relevante para a administração pública como um todo. Ainda, que para se afirmar como
principal instrumento de planejamento programático e orçamentário do governo, as gestões e
governos das últimas décadas abriram-se aos poucos para a aprendizagem institucional e
metodológica do alcance promissor do instrumento, principalmente a partir do terceiro ciclo
do PPA (2000-2003). Tal abordagem será aprofundada adiante.
Seção 1.2 PPA no Brasil e nos estados
Um caminho para introduzir a discussão sobre a ascensão do Plano Plurianual como mote do
reordenamento do planejamento público governamental e como uma proposta de
transformação afirmativa da função frente ao seu desmantelamento é a compreensão do
contexto em que foi concebido, as amarras político-institucionais que carregou dos períodos
anteriores e o ambiente político que conformou suas pretensões e potenciais funcionalidades.
A descrição dos desdobramentos do reordenamento governamental também é um caminho
para a comparação do embasamento do instrumento com o seu alcance nos ciclos quadrienais.
Até se tornar o principal instrumento de planejamento programático e orçamentário do
governo, tal como idealizado na Constituinte, o PPA vem proporcionando às diferentes
gestões uma constante aprendizagem institucional sobre seu alcance e metodologia.
A seção visa apresentar as dimensões gerais do instrumento de planejamento, observando a
legislação correspondente e os princípios de funcionamento, e também apresentar as
características principais, positivas e negativas, da utilização do PPA nos sete ciclos de
planejamento, correspondentes aos quadriênios de 1991-1995, 1996-1999, 2000-2003, 2004-
2007, 2008-2011, 2012-2015 e 2016-20194; todos no nível federal.
4 Nesse último caso (2016-2019), a elaboração da peça de planejamento esteve em curso no ano de 2015, o que
faz com que a abordagem neste trabalho somente tangencie algumas características conceituais e metodológicas
do plano.
30
As experiências do governo federal no tocante à utilização do instrumento são referenciadas
neste trabalho principalmente porque iluminam o processo de amadurecimento do novo
paradigma de planejamento público em todo o Brasil, e se estendem e influenciam a função
de planejar nas diferentes esferas de governo, nos estados e municípios da federação. Essa
influência nos estados também é movida pela referência metodológica que representa o
planejamento federal. Com vistas então a favorecer a compreensão do planejamento
plurianual em outros níveis, somado à oportunidade de disposição de literatura e registros
mais sistemáticos das experiências no nível federal, esta seção se propõe a resgatar a trajetória
dos PPAs federais. Entretanto, a seção não deixa de tangenciar o planejamento público formal
em contexto subnacional, apresentando características básicas de temas abordados nos relatos
de experiências estaduais.
1.2.1 Contexto da Constituinte e ascensão do PPA
O período anterior à promulgação da Constituição Federal de 1988, que instrumentalizou o
planejamento governamental por meio do PPA, foi conturbado e marcado por crises
estruturais. As crises inerentes ao regime autoritário não só eram marcadas pelo esgotamento
do modelo de financiamento e de acumulação de capital – portanto, de insuficiência
econômica grave – quanto por uma notável perda de legitimidade do núcleo político
dominante (militar). Ponto positivo nesse contexto foi o movimento de resistência ao regime,
fundado na complexificação da sociedade, na ascensão de pressões pela redemocratização e
até mesmo no reconhecimento de uma estrutura de planejamento fechada e com viés
economicista por parte dos governos (GARCIA, 2015b).
Os 21 anos de ditadura militar, entre 1964 e 1985, precedentes à Constituinte, deixaram uma
herança de autoritarismo e economicismo que orientou significativamente o pensamento e a
ação de acadêmicos, técnicos e políticos. No âmbito do planejamento público, embora as
peças de planejamento, muito representadas pelos planos nacionais de desenvolvimento,
tivessem centralidade nos governos militares, como já fora exposto em seção anterior, a
combinação com o autoritarismo faz delas, não raro, meras formalidades e repositórios de
intenções tecidas de forma centralizada.
A redemocratização foi um intento à refundação do planejamento, quase extinto na década de
80, mas não consegue romper completamente com a lógica autoritária e centralizadora do
31
ordenamento governamental. Essas constatações levam Garcia (2015b, p. 58) a afirmar que,
com ambiente político tumultuado e mesmo “sob pressão de reivindicações populares antes
reprimidas, [a Constituinte] não consegue superar a concepção normativa e reducionista do
planejamento governamental herdada dos militares e de seus tecnocratas”. Esses e outros
pontos que argumentam sobre a institucionalidade do planejamento público em constante
deterioração e as limitações remanescentes na função mesmo após a promulgação da carta
constitucional serão mais explorados na terceira seção deste capítulo.
Não obstante as constatações do legado autoritário e economicista, há também o
reconhecimento acerca das inovações no ordenamento do planejamento governamental
impulsionadas pela Constituição Federal de 1988 (SANTOS et al, 2015b; CARNEIRO, 2015;
BERCOVICI, 2015; AMARAL, 2015). No decorrer da década de 80 são pactuadas e
discutidas novas estruturas políticas e institucionais no país, muito influenciadas pelos
movimentos pela retomada da democracia, que resultam na promulgação da carta
constitucional (CARNEIRO, 2015). Como desdobramento da carta, houve uma ruptura
constitucional que institui “um novo paradigma jurídico, democrático e social” que modifica
“substancialmente a compreensão da ideia de Estado de Direito e, consequentemente, a
relação entre Estado e sociedade” (SANTOS et al, 2015b, p. 118).
O PPA surge no novo contexto como uma das inovações introduzidas pelo novo texto
constitucional, juntamente com o redesenho de toda a sistemática orçamentária. O sistema de
planejamento é composto, a partir dos institutos, pelo PPA em si, e por duas peças
orçamentárias, a saber: a LDO e a LOA – “os quais devem ser compatibilizados entre si,
integrando planejamento e orçamento” (OLIVEIRA, 2009 apud CARNEIRO, 2015, p. 275).
Houve uma inflexão sem precedentes no processo de formalização da função de planejamento
público. Os institutos permitem “uma interpretação constitucionalmente adequada da
legislação de planejamento e finanças públicas” (SANTOS et al, 2015b, p. 118), conformando
a obrigatoriedade da adoção, a padronização dos instrumentos e as bases essenciais das peças
de planejamento e orçamentárias. Em consonância com as prerrogativas democráticas, supõe-
se que na carta constitucional sejam estipuladas as bases do planejamento democrático, “com
aumento da transparência e controle sobre o gasto público, ao exigir coerência entre o gasto
anual do governo e o planejamento de médio e longo prazos” (BERCOVICI, 2015, p. 25).
32
1.2.2 Aspectos normativos: legislação e prerrogativas
constitucionais
A legislação correspondente ao sistema de planejamento e orçamento no âmbito da
Constituição Federal de 1988 se apoia nos dispositivos que tratam da organização do Estado
nacional e da organização dos Poderes da República e respectivas responsabilidades, no que
diz respeito à tutela da efetividade do planejamento, e ainda, prioritariamente, em princípios
gerais da ordem econômica (finanças públicas e orçamento). O resgate da legislação aqui
realizado foi feito à luz de referências bibliográficas e a partir da própria Constituição Federal
de 1988 (BRASIL, 1988 apud GARCIA, 2015a/2015b; GARCIA e CARDOSO JR, 2015;
MAIA e MELO, 2015).
Título III – da organização do Estado, Capítulo II – da União.
Art. 21. Compete à União: IX - elaborar e executar planos nacionais e
regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico
e social (BRASIL, 1988, grifo nosso).
Essas diretrizes mais genéricas de organização do Estado, no que compete ao planejamento e
orçamento públicos, também encontram respaldo nos artigos 48, 58 e 74, por meio dos
seguintes textos:
Título IV – da organização dos Poderes, Capítulo I – do Poder
Legislativo.
Seção II – das atribuições do Congresso Nacional. Art. 48. Cabe ao
Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, dispor
sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre:
IV - planos e programas nacionais, regionais e setoriais de
desenvolvimento.
Seção VII – das Comissões. Art. 58 (...). § 2º Às comissões, em razão da
matéria de sua competência, cabe: VI - apreciar programas de obras,
planos nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento e sobre eles
emitir parecer.
Seção IX – da fiscalização contábil, financeira e orçamentária. Art. 74.
Os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário manterão, de forma
integrada, sistema de controle interno com a finalidade de: I - avaliar o
cumprimento das metas previstas no plano plurianual, a execução dos
programas de governo e dos orçamentos da União; II - comprovar a
legalidade e avaliar os resultados, quanto à eficácia e eficiência, da gestão
orçamentária, financeira e patrimonial nos órgãos e entidades da
33
administração federal, bem como da aplicação de recursos públicos por
entidades de direito privado (BRASIL, 1988, grifo nosso).
Os tópicos que motivam e definem a funcionalidade do PPA e outros concernentes ao
desenho da sistemática orçamentária estão detalhados nos artigos 165 e 174 da Constituição
Federal, tal como a redação abaixo.
Título VI – da Tributação e do Orçamento, Capítulo II - Das Finanças
Públicas, Seção II – Dos Orçamentos.
Art. 165. Leis de iniciativa do Poder Executivo estabelecerão:
I - o plano plurianual; II - as diretrizes orçamentárias; III - os
orçamentos anuais.
§ 1o - A lei que instituir o plano plurianual estabelecerá, de forma
regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da administração
pública federal para as despesas de capital e outras delas decorrentes
e para as relativas aos programas de duração continuada.
§ 4o - Os planos e programas nacionais, regionais e setoriais previstos
nesta Constituição serão elaborados em consonância com o plano
plurianual e apreciados pelo Congresso Nacional.
§ 7o - Os orçamentos previstos no § 5o, I e II, deste artigo,
compatibilizados com o plano plurianual, terão entre suas funções a de
reduzir desigualdades inter-regionais, segundo critério populacional.
§ 9o - Cabe à lei complementar: I - dispor sobre o exercício financeiro, a
vigência, os prazos, a elaboração e a organização do plano plurianual, da
lei de diretrizes orçamentárias e da lei orçamentária anual.
*
Título VII – Da Ordem Econômica e Financeira, Capítulo I – Dos
Princípios Gerais da Atividade Econômica.
Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o
Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e
planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo
para o setor privado.
§ 1o A lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do
desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e
compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento.
(BRASIL, 1988, grifo nosso).
34
A partir dos dispositivos é possível confirmar a motivação dos constituintes pelo ordenamento
do planejamento público nacional em função de peças programáticas e orçamentárias,
destinadas a organizar diretrizes, objetivos e metas para a ação governamental. Todavia,
existem críticas acerca da limitação da Constituição Federal de 1988 em criar “um arranjo
normativo que o organize [a ação], de modo a fornecer ao poder público o roteiro para atuar
de maneira consistente” (GARCIA e CARDOSO JR, 2015, p. 86).
As determinações e orientações superficiais relativas ao planejamento governamental, postas
no texto constitucional, não são suficientes para garantir uma prática regular dessa função. A
espera pela regulamentação em lei complementar é remanescente e isso compromete o
sistema e sua orientação para as demais esferas de governo. Segundo a visão de Garcia e
Cardoso Junior (2015, p. 87), sem a diretriz para a “organização das disposições
constitucionais em uma estrutura lógico-hierárquica”, o governo não tem “orientação
conceitual e metodológica para a elaboração de planos de desenvolvimento, para a prática do
planejamento governamental”.
A lei complementar viria a dispor sobre a vigência (regularidade), prazos e, muito importante,
método para a elaboração e a organização do PPA, LDO e LOA, conforme prevê a própria
CF, no § 9o, do Artigo 165 e no § 1o, do Artigo 174. É plausível refletir sobre a importância
do método de programação e vinculação orçamentária, que demanda um constante
aprimoramento, além de projetar-se como aprendizagem institucional sobre a forma mais
adequada de desenvolver o planejamento, e aderente à realidade. Sem os preceitos
orientadores, o planejamento pode ter sua “efetividade diminuída, ou até mesmo anulada, em
face da falta das normas previstas” (MAIA e MELO, 2015, p. 143).
1.2.3 Princípios e arranjo constitutivo do PPA
No bojo do redesenho da sistemática programática e orçamentária impulsionado pela
Constituição Federal de 1988 surge o PPA como instrumento de balizamento da ação
governamental (CARNEIRO, 2015). Ainda que o texto não defina um modelo formal de
planejamento no Brasil, o PPA representa um conjunto de transformações afirmativas da
função e alguns (re)significados para essa função governamental, já que baseia as ações do
35
governo em estrutura programática e ainda alia esse planejamento “físico” à programação
orçamentária do Poder Executivo.
As principais funções do PPA são especificadas na própria legislação. Segundo a carta
constitucional, cabe ao instrumento estabelecer as prioridades do governo para um horizonte
temporal quadrienal, de médio prazo. E acompanha essas prioridades a definição de diretrizes,
objetivos e metas da administração pública no que se refere aos programas de duração
continuada e às despesas de capital. Em seguida são encadeadas desse processo de elaboração
do plano, primeiramente, a LDO, que é apresentada pelo Poder Executivo e aprovada pelo
Poder Legislativo, e, segundo, a LOA, compreendida como o orçamento anual em si
(AMARAL, 2015; CARNEIRO, 2015; SANTOS et al, 2015b).
A intencionalidade dos instrumentos, reunidos, demonstra a preocupação do legislador em
atribuir compatibilidade entre diretrizes, objetivos e metas da administração pública à
disponibilidade orçamentária. O PPA adota, segundo o arranjo desenhado pela Constituição
Federal, uma dimensão mais geral do planejamento de médio prazo, enquanto cabe à LDO
adequar a elaboração do orçamento em função das prioridades elencadas no plano, reservando
satisfatoriamente os recursos do exercício subsequente. Por sua vez, a intencionalidade
atribuída à LOA é de gerir a eficiência do gasto, agindo pontualmente e detalhadamente na
previsão de receitas e reserva de despesas, em perspectiva anual (SANTOS et al, 2015b).
É possível organizar toda a “família PPAs” (CARDOSO JR e GARCIA, 2014, p. 35) em
torno de alguns princípios norteadores. O primeiro deles consiste na disposição pela
regularidade e continuidade sistemática da elaboração do plano, contando com o engajamento
de atores de diferentes gestões de governo no alcance de objetivos estabelecidos a médio
prazo pelo PPA. O plano deve ser sempre elaborado no primeiro ano do mandato do
governante eleito, de forma que a programação física (políticas) e orçamentária se estenda
pelo período de quatro anos até o primeiro ano do mandato do sucessor. Por meio dessa
configuração, o instrumento garante que o sucessor do governo sempre tenha que executar a
programação e o orçamento em consonância com o que foi planejado pelo governo anterior,
garantindo um mínimo de continuidade das políticas motivadas pela gestão passada
(CARDOSO JR e GARCIA, 2014; AMARAL, 2015). Por isso o primeiro princípio denota
um “processo contínuo e pouco disruptivo” (CARDOSO JR e GARCIA, 2014, p. 35) do
planejamento público.
36
O segundo princípio se refere à máxima da vinculação entre planejamento e orçamento 5
públicos. Como já tratado, a Constituição Federal de 1988 estabelece uma diretriz de
compatibilização entre instrumentos de planejamento e orçamento como forma de garantir
uma sinergia entre os recursos financeiros aplicados e a execução e gestão das metas físicas,
indicativas da concretização das políticas, a partir do detalhamento do PPA em conteúdo
programático – as políticas são organizadas em programas e ações por áreas da administração
pública. A articulação de programas e orçamento garante robustez à função de planejamento
público, uma vez que, “além de espelhar o conteúdo de um programa de governo, o PPA
representa também instrumento de controle sobre os objetivos do gasto público, ao
condicionar a elaboração da LDO e da LOA” (CARNEIRO, 2015, p. 275).
A LDO e a LOA complementam o PPA e são responsáveis por operacionalizar e materializar
a citada compatibilização entre plano e orçamento (CARDOSO JR e GARCIA, 2014). As
determinações dessas leis devem ser compatíveis com o que está disposto no plano plurianual
ou em quaisquer outras peças de planejamento, seja a nível setorial, local ou mesmo nacional.
Ainda, como garantia da vinculação entre os instrumentos, tem-se a obrigatoriedade de
somente executar financeiramente aquilo que foi determinado em plano plurianual, isto é,
“nenhum investimento cuja execução ultrapassar um exercício financeiro poderá ser iniciado
sem prévia inclusão no PPA ou sem lei que autorize tal inclusão, sob pena de crime de
responsabilidade” (GARCIA, 2015a, p. 18).
O terceiro princípio, por sua vez, espelha o compromisso do planejamento plurianual em
alinhar-se aos planos setoriais (e vice-versa) – princípio de alinhamento –, que são
concernentes às diversas áreas da administração pública. O parágrafo 4o do Artigo 165 da
Constituição Federal expressa a necessidade de vinculação entre os planos e programas
nacionais, regionais e setoriais com as disposições do PPA, no sentido de concretizar políticas
que estejam, por vezes, programadas para um horizonte temporal maior que o do quadrienal
ou focalizada em alguma área específica. A correspondência é, ao mesmo tempo, uma
tentativa de ampliar a efetividade da política e um grande desafio de conciliação, nem sempre
possível. Os planos setoriais podem ser mais complexos e demandar uma vigência de longo
prazo. Nesse caso, “no momento em que ocorre a elaboração do Plano Plurianual, os planos
5 Embora esse arranjo vinculado represente uma inovação para a administração pública, especialmente para a
função de planejamento público, ele não apresenta somente aspectos positivos. Nos parágrafos que descrevem os
ciclos de planejamento plurianuais e na próxima seção deste capítulo será aprofundada a dimensão negativa
dessa vinculação.
37
setoriais e regionais estão em andamento, o que impossibilita o atendimento ao preceito
constitucional” (MAIA e MELO, 2015, p. 143).
O quarto e último princípio trata da perspectiva estratégica – princípio da estratégia –
encontrada na concepção do PPA. O compromisso programático com um horizonte de médio
prazo e com mecanismos de controle intervenientes aos três poderes da república, entre outros
fatores, faz alguns autores (PAULO, 2010; AMARAL, 2015; CARNEIRO, 2015)
compreenderem a concepção do PPA também como um instrumento de planejamento
estratégico. Como indício da estratégia, é esperado que o plano plurianual expresse o
direcionamento da atuação do governo “sob a forma de diretrizes e objetivos estratégicos, ou
termos congêneres, como macrodesafios e macro-objetivos, entre outros, dependendo da
concepção metodológica adotada” (CARNEIRO, 2013 apud AMARAL, 2015, p. 259).
Na visão de Paulo (2010, p. 174), existem razões para afirmar que se trata de um plano
estratégico. Entre elas, destacam-se: primeiro, existe um “compromisso político para além do
mandato presidencial, que vai orientar a formulação das leis orçamentárias e planos setoriais e
regionais”; e segundo, pressupõe o acompanhamento do cumprimento das metas estabelecidas
pelos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, o que também sugere que o PPA transcende
o âmbito do planejamento para o alcance da gestão estratégica (PAULO, 2010). Essas razões
e a organização dos outros princípios sugerem que eles são muito relacionados.
Todo o arcabouço normativo apresentado institui um amplo e coordenado sistema de
planejamento público, com institutos que têm potencial, supõe-se, de garantir mais efetividade
à função. No contexto da Constituinte, os instrumentos agregados (PPA, LDO e LOA)
representaram uma transformação afirmativa do planejamento público nacional, que vinha em
constante deterioração, dando um novo e amplo sentido para a programação física e
orçamentária do governo. Esperava-se, com as peças, para além do nível elevado de
correspondência com as prerrogativas orçamentárias – alinhamento entre plano e orçamento –
, uma subordinação aos objetivos fundamentais da república, representados no artigo 3º como
dever do Estado, entre outros, de promover o desenvolvimento nacional e reduzir as
desigualdades sociais (BERCOVICI, 2015). Esse último componente do sistema de
planejamento pode não ser compreendido como princípio, mas como fundamento dessa
função.
Postos então os princípios e o arranjo constitutivo do PPA, é relevante para fundamentar a
pesquisa sobre o PPA-P da Bahia apresentar os desdobramentos práticos dos ciclos
38
quadrienais de planejamento no contexto pós-democratização e examinar alguns
aprimoramentos conquistados ao longo da história recente. Lembrando que a função de
planejamento público, convertida pela Constituição Federal nas peças de PPA de quatro anos,
somente se estruturou, ou obteve avanços metodológicos consistentes que garantissem sua
elaboração, a partir da segunda metade da década de 90 (GARCIA, 2000). Também não
escapa o arcabouço normativo e institucional dos planos plurianuais de críticas que
relativizam os princípios apresentados.
1.2.4 Os sete ciclos quadrienais do planejamento público
federal
O PPA 1991-1995
O primeiro ciclo do PPA nem mesmo pode ser reconhecido dentro da lógica do novo
ordenamento do planejamento público nacional, somente a título de cumprimento formal.
Após a promulgação da Constituição Federal de 1988 – e da obrigatoriedade do PPA –, o
plano deveria ser elaborado pela gestão assumida entre 1989 e 1990, com vigência entre 1991
a 1995. Imediatamente após as discussões da Constituinte, todavia, as prioridades do novo
governo já recaíam sobre o desapego à burocracia e ao ajuste econômico. Assim, tão logo
assumiu, “o candidato vitorioso anunciou uma reforma da estrutura executiva e do sistema da
direção do governo que primava pelo simplismo político-administrativo e pelo viés
economicista” (GARCIA, 2015a, p. 21).
Muito relacionado ao legado do planejamento típico da ditadura militar e à necessidade de
ajustar as contas nacionais em face às crises estruturais, o primeiro ciclo do PPA foi
desenhado na lógica do chamado orçamento plurianual de investimentos (OPI), espelhando o
viés economicista adotado sem disfarce pelo governo. O planejamento especificou os
investimentos a serem realizados pelos quatro anos seguintes e em função dos tipos de
despesa, mas sem vincular essas informações estratégicas aos orçamentos anuais, resultando
em pouca aderência à realidade de implementação.
Em termos de conteúdo programático, a elaboração do PPA foi dada sob forte improvisação,
já que aqueles atores responsáveis por redigir o texto pouco tinham contato com os gestores
que de fato tomavam decisões políticas sobre onde e como – quais programas e políticas –
39
aplicar os recursos da União. Esses últimos “apenas declaravam intenções vagas, anunciavam
programas com nomes pomposos e sem substância” (GARCIA, 2015a, p. 24). Tanto foi pró-
forma que, ao ser apresentado ao Congresso Nacional para aprovação, passou sem qualquer
discussão ou revisão de dispositivos. Quando publicado pelo Poder Executivo, “recebeu
bonita encadernação e galgou prateleiras para se empoeirar” (GARCIA, 2015a, p. 24). Sendo
assim, o plano não “colou” como proposta de planejamento público – estratégico, articulado e
efetivo –, apenas respondeu as exigências constitucionais.
O primeiro ciclo de elaboração do PPA foi dissociado de uma carta de verdadeiras
intencionalidades do governo e, em decorrência disso, naturalmente, não se tornou um
instrumento orientador da ação governamental. Tal dissociação foi rapidamente percebida, só
que pouco poderia ser feito em termos de ajuste e adequação dos dispositivos e
determinações, uma vez que não existia, tampouco, uma visão geral da realidade que se
pretendia influir (GARCIA, 2015a). É compreensível, diante do exposto, a afirmativa de
Garcia (2015) que somente o PPA foi agregado à função de planejamento público, tal como
idealizado na Constituinte, a partir do segundo ciclo.
O PPA 1996-1999
O segundo ciclo do PPA deveria ser elaborado pela gestão empossada no início de 1995 e
vigorar entre os anos de 1996 e 1999. O novo corpo dirigente era composto por figuras
emblemáticas da administração pública brasileira, como o próprio presidente eleito, Fernando
Henrique Cardoso, e o ministro do planejamento, Bresser Pereira, ambos com vasta carreira
acadêmica e política. Nesse cenário, foi atribuída ao planejamento público uma nova
intencionalidade, carregada das motivações defendidas em campanha eleitoral de 1994, mas
que não escapou do viés economicista, e pouco representou, em termos de projetos e
atividades orçamentárias, a carta de intenções políticas do novo governo (GARCIA, 2015a).
Aspectos positivos do plano do referido quadriênio são colocados por Paulo (2010). O plano
teve maior evidência que o anterior quando da posse do governante eleito e foi apontado, ao
menos no discurso, como uma peça importante para orientar as ações do governo. Como
inovação em relação ao anterior e contraponto à baixa centralidade da função, foi dada nesse
discurso uma (re)valorização do planejamento governamental, buscando articular não só os
recortes de investimentos públicos da União, como o estabelecimento de parcerias público (de
outros entes federativos) e privadas.
40
A nova administração apoiou a elaboração do PPA em projeções macroeconômicas e diversos
estudos (REZENDE, 2011). E o texto apresentou “mapeamento das demandas e
oportunidades, a fim de orientar os diversos agentes econômicos e estabelecer uma sinergia de
esforços para o cumprimento de metas” (PAULO, 2010, p. 175). O Plano 1996-1999 foi
intitulado “Investir para Crescer” e foi submetido ao Congresso Nacional com uma carta clara
de princípios para o planejamento econômico. Desses princípios foram desdobradas as
estratégias, postas da seguinte forma: construção de um Estado moderno e eficiente; redução
dos desequilíbrios espaciais e sociais; e inserção competitiva e modernização produtiva
(BRASIL, 1995 apud REZENDE, 2011 e GARCIA, 2015a). Menos do que estratégias em si,
Garcia (2015a, p. 26) afirma que elas “mais se aproximam de desejos, por não qualificarem os
conteúdos das ações que deviam realizá-las”, ainda que explicitem investimentos requeridos
para alcançar os objetivos e as metas pretendidos.
O plano contou, em sua elaboração, com uma sistemática mais aprimorada e articulada de
planejamento, mas novamente recaiu em inconsistências intervenientes à lógica gerencialista
imposta à época. Defende-se (REZENDE, 2011; GARCIA, 2015a) que o PPA, embora tenha
sido incorporado a um discurso audacioso de gestão, não conseguiu, tal como no primeiro,
superar a natureza do orçamento plurianual de investimos (OPI). O sucesso da execução do
PPA estava muito atrelado às motivações e resultados do plano de estabilização monetária, o
Plano Real, que verdadeiramente espelhava as grandes intencionalidades do governo,
sobretudo em arrumar as contas públicas e tirar o Brasil da crise econômica (REZENDE,
2011).
A visão mais crítica de Garcia ilumina a questão de que os enfoques e métodos adotados no
segundo PPA em nada se distinguiram dos praticados na elaboração e execução do primeiro,
ainda que com protagonismo de uma equipe de governo mais qualificada do ponto de vista
intelectual, político e administrativo. Segundo ele, os mesmos atores eram desconhecedores
“dos avanços teóricos e instrumentais acontecidos na área do planejamento estratégico
público” (GARCIA, 2015a, p. 29). O plano, assim, não serve como “guia para a ação, mas tão
somente um OPI expandido” (GARCIA, 2015a, p. 27). Todo esse “reducionismo conceitual e
distanciamento dos altos dirigentes fez do segundo PPA mais um documento formal, um
simples cumprimento de determinações constitucionais” (GARCIA, 2015a, p. 29), tal como o
anterior.
41
As assertivas informam que os atores estavam pouco motivados em traduzir na peça do PPA
uma verdadeira carta de intencionalidades do governo com o caminho para sua efetividade
prática, traduzida em programas e ações. Isso é fruto de pouca ou nenhuma importância dada
pelo Poder Executivo federal em garantir sistematização e publicização das intenções do
governo (GARCIA, 2015a). Uma referência emblemática disso foi a publicação do plano
“Brasil em Ação”, apenas seis meses após a aprovação do PPA, que selecionou programas,
projetos e atividades orçamentárias consideradas prioritárias pelo governo. A duplicidade do
trabalho de sistematização de intenções do governo e a falta de alinhamento entre o “Brasil
em Ação” e o PPA refletem o baixo ou nulo comprometimento da equipe dirigente em dar um
sentido efetivo para a função de planejamento público.
Como resumo das críticas aos ciclos anteriores, vale ressaltar que “não se concebe a execução
do plano e dos orçamentos como instrumentos de gestão estratégica; não são feitas análises e
avaliações das políticas; (...) e não se buscam a integração e a convergência das ações”. Por
essas razões, também “não se enxergou a necessidade de organizar o planejamento
governamental, como determinava a Constituição” (GARCIA, 2015a, p. 31).
O PPA 2000-2003
A revisão teórica selecionada aponta que os dois primeiros planos plurianuais não foram
elaborados com base em uma reflexão teórica e metodológica sobre a função do plano em si e
do planejamento público como um todo, não raro cumprindo somente determinações legais. O
salto conceitual e metodológico apresentado no ciclo subsequente do PPA, de 2000-2003, em
relação aos anteriores leva Garcia (2015) a chamá-lo de “um terceiro diferente”.
As primeiras iniciativas de reformulação do plano ocorreram no final de 1997, quando foi
criado um grupo de trabalho interministerial (GTI) para discutir suas bases conceituais e
metodológicas. Foi compreendido pelo grupo como potencial alcance do PPA a garantia da
integração entre a programação orçamentária e de políticas, por meio da redefinição das
categorias programáticas das três peças (PPA, LDO e LOA). Em seguida, em 1998, foram
formalizadas as alterações nos parâmetros e marcos de elaboração e gestão do PPA e das
peças orçamentárias. Garcia (2015a, p. 17), em artigo específico sobre o ciclo, intitulado “A
reorganização do processo de planejamento do Governo Federal: o PPA 2000-2003”, afirma
com convicção que as mudanças emplacadas à época incidiram sobre “os processos de
trabalho, os modelos gerenciais, as estruturas organizacionais, os sistemas de informação e
42
processamento, e os mecanismos de contabilidade e controle da administração pública
brasileira”.
O ciclo de 2000-2003 já se apoiou na nova orientação, cuja principal inovação foi a
estruturação do plano em função da figura do programa. Sendo assim, o programa passou a
ser a unidade de análise e o elo entre plano, orçamento e gestão, enquanto estrutura de
organização do planejamento. A lógica de construção do PPA a esses moldes deveria partir da
identificação de problemas ou oportunidades inseridas na sociedade; em seguida, para cada
programa seriam associados objetivos estratégicos e respectivos indicadores de
acompanhamento; por fim, seriam publicizados os resultados alcançados (SANTOS, 2011;
GARCIA, 2015a; SANTOS et at, 2015b). Esse enquadramento gera, ao menos no plano
teórico, um processo mais denso, aplicado e coordenado de planejamento público no âmbito
do PPA.
Informações sobre o contexto político e econômico nacional merecem destaque no referido
ciclo de elaboração do PPA. A nova organização conceitual e metodológica, que perdurou até
2011, foi introduzida no ápice da adoção do paradigma gerencialista no Brasil (SANTOS et
al, 2015b). Com um nome fantasia chamado de “Avança Brasil”, o conteúdo do plano veio a
compor o esforço nacional de racionalizar os gastos públicos e revisar o papel do Estado na
promoção das políticas públicas. Foram colocados como objetivos do plano melhorar a
qualidade do gasto (e controlar sua aplicação), buscar eficiência na alocação de recursos e
garantir mais legitimidade das ações do governo face à sociedade civil, tudo isso referido no
cenário de implantação do novo modelo de gestão pública orientada para resultados
(REZENDE, 2011; SANTOS et at, 2015b).
A orientação para resultados serviu de premissa do exercício de planejamento público no ciclo
de 2000-2003, e isso corroborou para garantir uma centralidade na avaliação dos programas.
Com base em “transparência da ação governamental e a responsabilização dos gestores
públicos pelo alcance das metas” (SANTOS, 2011), características da gestão gerencialista, o
planejamento foi permeado por revisões e pela diretriz de geração de informações úteis para
redirecionamento da política (REZENDE, 2011). Ainda assim, mesmo com esses avanços
conceituais e metodológicos, alguns autores acreditam (REZENDE, 2011; SANTOS, 2011;
GARCIA, 2015b) que pouco foram efetivos para a melhoria da gestão pública.
As críticas que recaem sobre esse ciclo do PPA novamente se apoiam nos efeitos negativos da
vinculação entre planejamento e orçamento, que são ainda acentuados a partir da designação
43
da unidade de programa – unicidade de orçamento-programa. As transformações foram
forçosas nesse caminho. Segundo Santos (2011. P. 119), a “dimensão tático-operacional do
plano passa a ser praticamente igual ao orçamento” e faz com que aquele perca tanto o sentido
quanto a capacidade de orientar as ações do governo. Não raro, “o PPA não conseguia estar
além de um instrumento formal que não era capaz sequer de informar adequadamente as
metas do governo”.
O PPA 2004-2007
O quarto PPA foi concebido sob uma nova ordem política nacional, instaurada a partir das
eleições de 2002, com a ascensão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao poder. O plano
foi elaborado pela nova gestão em 2003, com vigência de 2004 a 2007, e foi chamado de
“Plano Brasil de Todos – participação e inclusão”, que refletia a bandeira político-ideológico
do partido empossado e o programa de governo apresentado na campanha eleitoral
(CARDOSO JR e GIMENEZ, 2011).
O PPA 2004-2007 repetiu a estrutura por programas do ciclo anterior, mas promoveu algumas
alterações acerca da gestão e acompanhamento do plano, cujas principais foram a concepção e
avaliação do mesmo em função de uma diretriz mais estratégica, o fim das revisões anuais –
ambas apontando para um compromisso com o planejamento de médio prazo (PAULO, 2010)
–, e a inserção da participação social. Nesse último caso, a mudança foi relevante para a
época, mas pouco significativa do ponto de vista da democratização do planejamento público.
Foram abertas audiências públicas e consultas aos diversos conselhos de políticas públicas na
tentativa de incorporar as agendas setoriais e pautas da sociedade na programação do governo.
Entretanto, os participantes sinalizaram “a ausência de uma resposta explícita e específica do
governo às propostas trazidas pela sociedade e a falta de continuidade na mobilização sobre o
tema” (AVELINO e SANTOS, 2015, p. 224).
As inovações apresentadas foram significativas em relação ao conteúdo. O PPA partiu de uma
caracterização da situação do país à época, que resultou em diagnóstico dos problemas a
serem enfrentados. Boa parte dos achados se referia à crítica ao conservadorismo do regime
militar e “aos impasses e à incapacidade dos governos civis posteriores de enfrentarem as
grandes questões da vida nacional” (CARDOSO JR e MELO, 2011, p. 25). Na mensagem que
foi declarada como apresentação do PPA, o governo apresentou como diretriz estratégica
44
central recuperar condições econômicas para fazer o Brasil voltar a crescer (CARDOSO JR e
GIMENEZ, 2011).
O plano apresentou um amplo alcance de temáticas e questões, com orientações mais
genéricas para o desenvolvimento nacional e ambições mais profundas de transformação da
realidade social do país. Foi estruturado em macro-objetivos, alguns desafios e, assim como
os anteriores, em programas e ações. O conjunto de dispositivos expostos possuía, de acordo
com a análise de Rezende (2011), uma sequência lógica de eventos, a saber: uma vez aberta a
oportunidade de fomentar um ciclo virtuoso de crescimento, o plano despertaria eventos de
desenvolvimento, reformas institucionais e programas sociais; convergidos, era esperado que
os eventos promovessem a conciliação entre crescimento econômico e distribuição de renda e
inclusão social.
Em detrimento do esforço mais contextualizado de planejamento e da lógica mais encadeada
de elaboração, por meio da especificação de diretrizes estratégicas, o plano “não fugiu ao
destino dado aos PPAs que o antecederam” (REZENDE, 2011, p. 198). A crítica é feita em
torno da desconsideração da realidade de implementação do plano. Ao contrário da
expectativa de recuperar a função de planejamento público, o caráter mais genérico e
diagnóstico do ciclo de 2004-2007 foi responsável por garantir um “grau de abstração
incompatível com as necessidades concretas do planejamento” (CARDOSO JR e MELO,
2011, p. 25). Ou seja, funcionou mais como instrumento de caracterização de problemas do
país no início da década de 2000 que como instrumento amplo de planejamento
governamental (CARDOSO JR e GIMENEZ, 2011).
O PPA 2008-2011
O PPA do ciclo de 2008-2011 foi elaborado em 2007 durante a mesma gestão petista. Foi
intitulado de “Plano Desenvolvimento com Inclusão Social e Educação de Qualidade”. Em
análise de evidências e possibilidades do período de 2003 a 2010 em relação ao crescimento
econômico e ao planejamento público, os autores Cardoso Junior e Gimenez (2011) assumem
que os dois planos plurianuais (2004-2007 e 2008-2011) foram grandes referências globais de
planejamento do país e importantes peças de ordenamento do planejamento público nacional,
a despeito das críticas apresentadas por eles mesmos e por outros autores (MELO, 2011;
RZENDE, 2011). Isso pode indicar um processo de amadurecimento da função de planejar as
45
ações governamentais para o alcance de discussões mais aderentes ao dia-a-dia da gestão
pública e menos direcionadas a compromissos exclusivamente formais.
Os autores seguem afirmando que esse avanço no planejamento público se deu em parte pela
nova dinâmica econômica, mais aquecida e positiva, que teria corroborado para fertilizar o
espaço de discussão acerca da elaboração das peças. Assim, mesmo o crescimento econômico
sendo retomado como efeito de medidas alheias ao planejamento governamental, o cenário
propiciou para que esse último avançasse de forma mais concreta (CARDOSO JR e
GARCIA, 2014), até mesmo pela demanda crescente de organização do governo. Atribui-se
às iniciativas de planejamento de diversos setores da sociedade a mobilização para o salto da
função de planejamento, uma vez que buscavam destravar constrangimentos econômico-
financeiros de grande porte e que acabaram gerando uma pressão ao governo pela melhoria da
coordenação setorial (CARDOSO JR e GIMENEZ, 2011). Além disso, houve um movimento
das iniciativas setoriais de planejamento por quebrar com a lógica incrementalista de
organização de programas e ações usual nos planos plurianuais anteriores, de forma a
influenciar uma construção mais robusta e até estrutural.
O novo ciclo vem reforçar aquilo que já era característica do PPA anterior e que ilustra o
avanço no planejamento público no Brasil nos marcos dos PPAs 2004-2007 e 2008-2011: o
aprofundamento do olhar para o conteúdo dos planos, que culmina indiretamente no intento
de substituição da primazia do orçamento. Na pesquisa de Cardoso Junior e Gimenez (2011) é
lançada luz à tentativa dos novos embasamentos da noção de planejamento e da própria
concepção funcional do PPA em romper com a tradicional centralidade das prerrogativas
orçamentárias na organização das ações governamentais. Esse rompimento, necessário para
rebater as críticas bem fundamentadas6
às peças de planejamento acerca da primazia
orçamentária, é emblemático não só para o histórico de elaboração dos PPAs nacionais, mas
também em relação aos marcos de planejamento precedentes à Constituição Federal de 1988.
No que diz respeito ao formato do plano, foi aplicada a mesma lógica de confecção do
anterior, cuja unidade de planejamento repete a estrutura por programas. No entanto, foi
reduzido o número de programas contemplados a partir do enxugamento de cerca de 20% em
relação ao anterior (REZENDE, 2011). Esses números do processo de elaboração do PPA
mostram uma tendência de transformação da metodologia de desenho, na tentativa de
6 Ver seção 1.3.6 Viés economicista do planejamento: reducionismo e pressão do caráter técnico-orçamentário
46
melhorar a qualidade do produto, mesmo que a seleção de prioridades ainda não tenha sido
uma dificuldade superada no ciclo 2008-2011.
Em relação ao conteúdo do PPA, os programas apresentam um grau de concretude maior que
o anterior, expressando uma vontade política de responder pragmaticamente as representações
dos diversos setores e grupos econômicos da sociedade. O plano detalhou e reforçou o
compromisso já assumido no antigo ciclo de planejamento em combinar crescimento
econômico com inclusão social e redução das desigualdades. Também iluminou as
preocupações governamentais no âmbito do plano com a agenda pela preservação ambiental e
pela integração territorial (REZENDE, 2011).
O aspecto da participação social não evoluiu para além das audiências públicas e reuniões
com conselhos setoriais, como no ciclo no anterior. O que se tratou sim de uma inovação
significativa foi a inserção, na lógica de planejamento governamental, da dimensão territorial.
O plano partiu de um diagnóstico das disparidades regionais e assumiu a articulação dos
diferentes níveis federados, a fim de fomentar ações conjuntas e aumentar a eficácia da
intervenção do Estado no processo de desenvolvimento. Talvez esse tenha sido o grande salto
no PPA do referido ciclo. Nas palavras de Rezende (2011, p. 199), apontava-se o esforço de
reconstrução do planejamento nacional em função da “criação de instituições e instrumentos
capazes de promover a cooperação federativa na formulação e na implementação das políticas
públicas prioritárias para os objetivos nacionais de desenvolvimento”.
Aproveitando a revisão das inovações jurídicas que acompanharam os PPAs ao longo do
tempo, realizada por Santos (et al, 2015a, p. 78), é possível apontar algumas críticas
pertinentes ao ciclo de 2008-2011. Primeiramente, o PPA apresentou um conteúdo bem
detalhado de artigos e dispositivos, desdobrados exaustivamente em funções, competências,
procedimentos e regulação. Esse detalhamento, embora não seja de todo ruim, é interveniente
à adoção do modelo gerencialista de gestão governamental, “na medida em que a estrutura do
plano remete à análise de eficiência das ações do orçamento”. Outro ponto de destaque são as
características muito positivistas, que sugerem uma predisposição pelo legalismo no
planejamento. Os autores também criticaram o caráter formal, centralizador e uni-setorial do
plano quando pensado em relação à coordenação com os órgãos executores das políticas.
47
O PPA 2012-2015
O PPA 2012-2015 foi elaborado em 2011 já na gestão de Dilma Rousseff e representou um
novo e importante salto conceitual e metodológico do instrumento, provocando mudanças
significativas em termos de visão estratégia e estrutura organizativa, que foram embasadas em
avaliações dos ciclos anteriores. As alterações nas bases para montagem do plano são
recorrentes ao longo da história do PPA e refletem as brechas mencionadas na legislação, por
falta da regulamentação do artigo 165 e outros da Constituição Federal de 1988.
O cenário de montagem do plano à época era ambíguo para o governo. A presidente Dilma
contou com uma base mais favorável do que o seu antecessor na elaboração dos planos
imediatamente anteriores (2004-2007 e 2008-2011), sustentada pelo crescimento econômico e
ampliação de forças nacionais de desenvolvimento. Por outro lado, a conjuntura era de
iminência de crise externa e preocupações acerca dos modelos de sustentação da vida
econômica e social do país. Assim, havia uma preocupação legada ao planejamento de
garantir o “financiamento de longo prazo no que tange à (...) amplitude [do desenvolvimento]
e capacidade de garantir todo o crédito necessário para ampliar e sustentar o crescimento”
(CARDOSO JR, 2014, P. 41). De acordo com a revisão de Cardoso Junior, em embate à crise
internacional, era esperado do planejamento um reforço na recuperação da “confiança do
empresariado privado (nacional e estrangeiro) no potencial de crescimento da economia”
(CARDOSO JR, 2014, P. 41). Entretanto, o autor compreende que os esforços oriundos
desses desafios dados ao planejamento pouco foram implementados de fato, assim como não
obtiveram sucesso as tentativas de incrementar os investimentos público e privado
(CARDOSO JR, 2014).
O start no desenho do PPA 2012-2015 se deu a partir da atuação do Ministério do
Planejamento, Orçamento e Gestão, por meio da Secretaria de Planejamento e Investimentos
Estratégicos (SPI/MPOG), ao encampar uma avaliação qualitativa e mais subjetiva acerca da
função de planejamento. A concepção metodológica mais audaciosa de elaboração do referido
PPA apoiou-se em um conjunto de respostas para a seguinte pergunta: “por que mudar?”.
Algumas das razões citadas para a mudança foram as seguintes: o Estado é indutor do
desenvolvimento, voltado para a redução das desigualdades, e que isso requer planejamento e
gestão estratégicos; é necessário viabilizar as políticas e entregar os bens e os serviços à
sociedade de forma tempestiva, no lugar certo, para o público certo, em quantidades e
abrangência suficientes, e que, para isso, o Estado precisa gerir capacidades técnico-políticas
48
adequadas, conjuntura em que o planejamento se enquadra e é fundamental; não é levado à
pratica o modelo de gestão por programas, o que exige um planejamento mais perene aos
requisitos da implementação; existe uma apropriação inadequada de modelos ideais de análise
das políticas, que focam no método (estruturação dos processos) e não no conteúdo das
políticas; entre outras razões (GARCIA, 2015b).
Com base nessa avaliação, novidades na estrutura foram praticadas na montagem do plano e
divulgadas no depósito formal do instrumento no Congresso. O primeiro suposto
aperfeiçoamento foi colocado a partir da discriminação da dimensão estratégica do PPA 2012-
2015, traduzida no plano por meio de uma introdução genérica, visões de futuro produzidas
coletivamente, projeções de cenários macroeconômicos e internacionais favoráveis, projeções
fiscais e alguns diagnósticos setoriais encadeados. Somou-se a isso uma sequência de
macrodesafios, cujas bases estavam fundadas no Programa de Governo das eleições de 2010.
Alguns desses macrodesafios relacionados no PPA foram os seguintes: projeto nacional de
desenvolvimento, erradicação da pobreza, ciência e tecnologia, cidadania, infraestrutura,
democracia e participação social, entre outros.
Outro aperfeiçoamento esperado pela reformulação conceitual e metodológica foi a
designação da unidade de planejamento como sendo os “Programas Temáticos”, com a
intencionalidade ambiciosa de costurar as ações governamentais em perspectiva transversal,
multissetorial e multi territorial. De acordo com a mensagem de apresentação do PPA 2012-
2015, a agenda do governo estava organizada em “Temas das Políticas Públicas”, cuja
abrangência representava os desafios de todas as áreas e atendia às fases do ciclo das políticas
públicas, isto é, gestão, monitoramento e avaliação (BRASIL, 2011 apud GARCIA, 2015).
Esse chamado programa temático se desdobrou no plano em objetivos e iniciativas.
Surgiu no âmbito do PPA 2012-2015 uma institucionalidade participativa inovadora, que veio
estimular a transformação da relação entre a função de planejamento e a democratização da
administração pública. Partindo do desafio de romper com a lógica estritamente setorial de
política pública e projetando uma arena de transversalidade, o governo abriu a escuta à
sociedade civil organizada e geriu reuniões entre técnicos e gestores das diversas pastas. A
principal figura que surgiu nesse contexto foi o “Fórum Interconselhos”, que, por meio da
iniciativa da Secretaria-Geral da Presidência da República e do MPOG, constituiu o mote do
mais moderno reordenamento do planejamento público. Conceitualmente, se trata de uma
“tecnologia intelectual de natureza socioestatal voltada à superação da fragmentação setorial
49
dos espaços participativos”, cuja estratégia se apoia em “características apontadas pela
literatura como típicas de projeto transversal e institui a prática da participação entre seus
inúmeros participantes” (AVELINO e SANTOS, 2015, p. 219).
O Fórum reúne em torno da elaboração do plano plurianual as agendas das políticas setoriais
debatidas nos conselhos e permite a inserção e coordenação das ações e programas contidos
no referido PPA pelo Ministério do Planejamento. Foram realizados no dito plano quadrienal
quatro eventos do Fórum, em que os participantes tiveram a oportunidade de aprender noções
básicas de planejamento e orçamento – as capacitações foram pensadas para mitigar
assimetria de informações e superar barreiras de linguagem técnica –, assim como resgatar as
pautas internas dos conselhos de origem e apresentar ideias para a composição dos programas
do plano (AVELINO e SANTOS, 2015). Nesse sentido, nota-se não só a capacidade de
influenciar a agenda governamental como a possibilidade de formação política e de
experimentação da cidadania ativa.
Em detrimento dos avanços metodológicos e do salto qualitativo da função de planejamento
sem precedentes, é necessário apresentar as devidas ponderações. Este trabalho apoia essas
críticas no texto de Garcia intitulado “PPA: o que não é e o que pode ser” (2015b), que dá um
enfoque especial no instrumento para o referido ciclo (2012-2015). O autor, que aplica uma
visão crítica sobre o instrumento, chama o momento de “uma nova tentativa”. Avalia-se, por
Garcia, que essa estrutura foi de pouco ou nenhum efeito prático. Primeiramente, sobre a
dimensão estratégica o autor relata que ela teve em sua concepção uma visão de futuro como
um acolchoado de interesses difusos, sem uma linha condutora da ação governamental, ao
passo que elegeu cenários macroeconômicos e internacionais sem consonância com a
realidade, que não podem ser simplesmente escolhidos ou antevistos.
Os macrodesafios, por sua vez, evidenciavam “altos propósitos, graves problemas, grandes
deficiências e ameaças significativas que ainda afetam consideráveis contingentes
populacionais de brasileiros ou o conjunto da nacionalidade”, o que é bastante importante
para projetar cenários de atuação do Estado. Entretanto, segundo o autor, não foram
“detalhadamente abertos em seus elementos constitutivos, de forma a tornar possível conceber
programação de ações de diversos tipos e naturezas” (GARCIA, 2015b, p. 71) para mitigar,
enfrentar e sanar os muitos aspectos negativos levantados. Merece destaque nessas críticas o
macrodesafio intitulado “Projeto Nacional de Desenvolvimento”, que, segundo ele, sequer era
de conhecimento do público e que foi apresentado com escopo modesto e sem debate dentro
50
do governo (GARCIA, 2015b). O teor do macrodesafio não corresponde à imponência do seu
rótulo.
Por fim, os programas temáticos tentaram articular as ações governamentais em perspectiva
transversal ignorando uma estrutura executora setorial rígida e pré-moldada, inclusive do
ponto de vista do orçamento. Segundo Garcia (2015b, p. 72-73), “as políticas governamentais
são setoriais ou multissetoriais, nunca temáticas”, e tal segmentação se dá “por força de
corporações e especialidades e por conta de ser executada descentralizadamente”. Sob essa
ótica, o arranjo temático do PPA 2012-2015 optou, ainda que de forma não consciente, por
elevar o grau de imprecisão do instrumento (GARCIA, 2015b). É necessário pontuar, todavia,
que passagens relevantes do texto deste trabalho, mais adiante, quando da aplicação da
pesquisa no estudo de caso, devem relativizar essas críticas e apresentar aspectos muito
positivos das iniciativas de transversalizar o planejamento público.
O PPA 2016-2019
A elaboração do PPA 2016-2019 esteve em curso no ano de 2015, e, consequentemente, os
desdobramentos e resultados práticos estão ainda indisponíveis. Ainda assim, os documentos
publicados com a metodologia e conceitos norteadores da montagem do plano indicam a
intencionalidade do atual governo no tocante ao planejamento público. De acordo com a
cartilha “Orientações para a participação social – Elaboração do Plano Plurianual 2016-
2019”7, o plano deveria refletir estrategicamente as bandeiras que foram levantadas em
acirrada disputa eleitoral para a presidência da república, consolidadas, entre outras, pela
ideia-força “Brasil Pátria Educadora”.
A orientação para esse novo ciclo de elaboração do plano enaltece as bases e orientações
estratégicas do governo para o desenvolvimento nacional, refletidas de um projeto de longo
prazo iniciado em gestões passadas. Segundo a cartilha, o PPA deve concentrar uma série
dessas orientações estratégicas, com o intuito de consolidar as “conquistas econômicas,
políticas e sociais do Brasil e impulsionar um novo ciclo de desenvolvimento”, bem como de
tornar o Brasil “uma Pátria Educadora para a democracia, para o bem-estar social e para
novas conquistas da cidadania de atuais e futuras gerações” (BRASIL, 2015).
7 Cartilha elaborada pela Secretaria-Geral da Presidência da República – SGPI, em parceria com o Ministério do
Planejamento, Orçamento e Gestão – MPOG.
51
No aspecto da estrutura organizativa e de metodologia de desenho das ações governamentais,
o plano repete o ciclo 2012-2015. A concepção do novo PPA aprofunda a dimensão
estratégica do anterior e dá mais centralidade às figuras dos eixos e das diretrizes estratégicas,
que, por sua vez, conduzem a elaboração dos Programas Temáticos. Esses últimos, portanto,
não só são mantidos no novo ciclo quanto fortalecidos no aspecto da transversalidade. A
metodologia preconizada que o arranjo proposto, sob uma linha condutora do macro para o
micro, facilitasse o acompanhamento e alcance de metas e resultados, e que a transversalidade
fosse aprimorada nesse ciclo por meio de espaços de diálogo para convergência de propostas
entre os ministérios, com a realização de oficinas temáticas entre técnicos das diversas pastas
do governo, mediante coordenação do Ministério do Planejamento (BRASIL, 2015).
O ciclo de 2016-2019 reforça a adoção do componente participativo no planejamento
governamental. De acordo com o documento (BRASIL, 2015), a construção do plano deveria
ser constituída em “bases sólidas de diálogo com a sociedade e os movimentos sociais”,
ampliando a nível nacional as iniciativas consultivas à população. O arranjo participativo na
construção do PPA foi modelado a partir da realização novamente – e dessa vez mais
fortalecido – do “Fórum Interconselhos” e da plataforma virtual ParticipaBR.
No primeiro caso, o Fórum8 é ainda o mecanismo de participação designado como principal
espaço de articulação entre o Estado e a sociedade – no caso, sociedade civil organizada.
Contando com a presença de conselhos e comissões de diversos setores, o Fórum deve
ampliar as possibilidades de as pautas das entidades influenciarem a agenda governamental,
na medida em que serão ouvidos em todo o encadeamento estratégico do desenho das ações,
isto é, do levantamento de desafios para a composição da dimensão estratégica até as
contribuições para a formulação dos programas temáticos (BRASIL, 2015). Foi aberta
também a possibilidade de participação virtual por meio de plataforma tecnológica específica.
O ParticipaBR se trata de um canal de escuta mais voltado à participação direta da sociedade,
ao passo que o fórum permite a escuta indireta, via representação de conselheiros. O canal
abre para a sociedade civil uma forma de contribuição virtual para a formulação de políticas
públicas.
8 O Fórum Interconselhos, iniciativa conjunta entre a Secretaria-Geral da Presidência da República e o Ministério
do Planejamento, Orçamento e Gestão, durante a vigência do PPA 2012-2015, foi reconhecido
internacionalmente com o prêmio da ONU para Melhores Práticas na Gestão Pública em junho de 2014.
52
1.2.5 Planejamento público em contexto subnacional: o PPA
nos estados
As mudanças recorrentes de formato e conceitos e os incrementos metodológicos na
elaboração dos planos plurianuais a nível federal não somente reconduzem e dão mais sentido
a toda a função de planejamento público nacional quanto servem de orientação e inspiração
para as demais esferas de governo, estaduais e municipais, por meio de uma aprendizagem
institucional compartilhada entre os entes federativos. Para fins do presente trabalho, entende-
se que a análise da dimensão estadual deva apropriadamente passar pela compreensão sobre o
amadurecimento do planejamento governamental no ente central, seja porque existe uma
sistematização mais densa de achados, seja porque usualmente influencia a elaboração dos
planos plurianuais estaduais. Esse alinhamento entre os modelos federal e estadual é muito
característico nos recentes PPAs estaduais da Bahia, cujo órgão executor de planejamento
buscou no modelo federal as inspirações para desenho das próprias ações governamentais,
principalmente em relação à adoção do componente participativo no planejamento. Tal
alinhamento será reforçado na apresentação e avaliação do caso empírico do planejamento
baiano.
A literatura disponível com descrições, análises e inferências acerca das experiências de
planejamento nos estados é restrita, então esta seção apoia-se essencialmente nas
contribuições de Carneiro (2015) a partir da leitura transversal de relatórios9 das experiências
de dez estados no planejamento plurianual recente (correspondente ao ciclo 2012-2015). Ele
apresenta características interessantes da atividade planejadora nos estados nacionais, e, entre
os estados analisados na pesquisa10
, verifica que a grande maioria passou a considerar o
instrumento do PPA como mote do ordenamento governamental já a partir do início da
década de 90, como os estados da Bahia, Rio Grande do Sul, Ceará, Minas Gerais, Espírito
Santo, Rio de Janeiro e Paraná. Os casos de São Paulo e Rio Grande do Sul têm experiências
tardias, com a incorporação do instrumento somente dez anos depois. A publicação da Lei de
9 O texto “PPAs Estaduais em Perspectiva Comparada: processos, conteúdos e monitoramento”, redigido por
Ricardo Carneiro (2015), é fruto do projeto “Planejamento e Gestão Governamental na Esfera Estadual: uma
análise comparativa dos processos, conteúdos e sistemas de acompanhamento dos PPAs”, em que organismos
independentes e parceiros do poder público estadual participaram voluntariamente da sistematização das
experiências de planejamento plurianual. 10
Região Centro-Oeste – Mato Grosso do Sul; Região Sul – Paraná e Rio Grande do Sul; Região Nordeste –
Bahia, Ceará e Rio Grande do Norte; e Região Sudeste – Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São
Paulo .
53
Responsabilidade Fiscal (LRF), ocorrida em 2000, teve papel crucial na institucionalização do
instrumento em todas as esferas de governo da administração pública brasileira.
Acompanhando a trajetória da função no nível federal, os sistemas estaduais de planejamento
ascenderam na década de 60 e seguiram a onda de desmantelamento da função naquele nível
durante a década de 80, sofrendo duros golpes de desestruturação e descontinuidades
administrativas. As arquiteturas institucionais em que foram moldados os sistemas estaduais
de planejamento são heterogêneas e representam estratégias distintas de sobrevivência dentro
da máquina pública ao longo do tempo, o que acaba por refletir diferentes arranjos
organizacionais na elaboração dos planos plurianuais nos estados nacionais (CARNEIRO,
2015). Hoje as experiências apresentam contornos mais sólidos e rumam cada vez mais à
institucionalização do PPA como principal peça de planejamento, mas ainda são pouco
consolidadas no suporte à gestão estratégica do governo.
O aspecto da dimensão estratégica é entendido como relevante para promover a aderência e a
sustentabilidade dos planos, e deveria ser um compromisso assumido pelos governos no
desenho das ações de médio prazo dos PPAs em todos os níveis de governo. Dessa forma,
obedecendo à concepção normativa de seguir a lógica de horizonte estratégico de médio
prazo, oriunda da visão estratégica, os planos não deveriam ser construídos de forma
desconexa, sem a prerrogativa de articulação com as demais atividades planejadoras; aquelas
de curto e longo prazos, ou planos setoriais, entre outras. Entende-se por longo prazo quando
o planejamento “expressa a orientação estratégica do governo no tocante à promoção do
desenvolvimento, para além do ciclo político”, e de curto prazo quando “desdobra as políticas
públicas em programações anuais, consoante o ciclo financeiro-orçamentário proposto na CF”
(CARNEIRO, 2015, p. 278).
Em detrimento da prerrogativa de articulação e da compreensão de que a “construção do PPA
não é um processo fechado em si mesmo”, Carneiro pouco identificou de conexões entre as
atividades planejadoras na leitura transversal das experiências. Pelo contrário, a prática ainda
está em processo de consolidação, e somente o Estado de Minas Gerais trabalha em uma
sistemática de elaboração de planos de longo prazo, na figura do chamado Plano Mineiro de
Desenvolvimento Integrado (PMDI), prescrito pela Constituição Estadual (1989). O mesmo
não ocorre à programação das promessas de campanha, pelo contrário, Carneiro (2015)
pontuou nos achados da leitura que há um alinhamento comum e recorrente entre os
planejamentos estaduais formais e os planos de governo publicizados em período eleitoral.
54
Assim, os estados praticam uma dupla tratativa à dimensão estratégica, contraditória: o
alinhamento às promessas de campanha, ao passo que a manutenção das metas programáticas
muito vinculadas à dada gestão, sem horizonte estratégico – portanto, vulnerável às
descontinuidades.
Como falado, os PPAs estaduais apresentam diferentes arranjos institucionais, mas também
possuem pontos semelhantes. Carneiro (2015) consegue elencar duas características comuns.
A primeira é o típico protagonismo de uma secretaria de governo específica, normalmente as
secretarias estaduais de planejamento, que mobilizam, articulam e concentram o processo de
elaboração dos planos. A segunda é o envolvimento marcante das secretarias setoriais de
governo, efetivamente responsáveis por imprimir, nos planos, ações programáticas
correspondentes às suas respectivas áreas de atuação. Os gestores do PPA, nesse caso,
reconhecem a expertise das setoriais nas áreas de atuação e contam com o ordenamento
interno de diretrizes programáticas. Cada modelo de elaboração do PPA utiliza um tipo de
sistemática de consolidação de informações advindas das áreas. Alguns estados inclusive
contam com ferramentais virtuais de registro.
Para fechar este tópico, que tangencia o planejamento em contexto subnacional, são
apresentadas as críticas organizadas por Carneiro (2015, p. 302), que repetem muitos dos
pontos de inconsistência atribuídos à prática planejadora do governo federal, que serão
detalhadas na seção adiante. Ao olhar para as experiências estaduais referentes ao PPA 2012-
2015, o autor conclui que a produção do plano “expressa, em larga medida, o cumprimento de
uma formalidade, tendo em vista o papel que lhe é atribuído de informar a elaboração da
programação orçamentária”. E complementa afirmando que o formalismo exacerbado tem
origem na pouca importância política que é atribuída à ação planejadora pelos governantes
estaduais. O desprestígio político guarda relação com dois pontos identificados nas
experiências, também notados no modelo federal, que são eles: a publicação de planos
paralelos e concomitantes, sendo esses os quais efetivamente refletem os anseios e iniciativas
priorizados pelo governante, e o envolvimento inexpressivo ou periférico dos governantes na
construção do PPA.
Esta seção tratou sobre a descrição do modelo de planejamento instituído a partir da
promulgação da Constituição Federal de 1988 e os aspectos básicos de sua implementação na
prática nos ciclos recentes, mais atinente à trajetória do PPA federal. Como observado, a
55
função de planejamento foi aprimorada com o tempo, ainda que a cada novo ciclo tenha
apresentado ambos avanços e retrocessos de concepção e resultados, e não tenha superado
completamente muitas disfunções e limitações “tradicionais” do planejamento governamental;
essas que serão abordadas na seção que segue.
Seção 1.3 Aspectos críticos da função de planejamento
público no Brasil
Esta seção tem o objetivo de sintetizar em pontos chaves algumas críticas à função de
planejamento público e à sua trajetória na administração pública brasileira a partir de ampla
revisão teórica, e está organizada em seis críticas abrangentes, agrupadas à medida que os
temas são lançados pelos autores selecionados. As críticas têm perspectivas específicas, sendo
elas basicamente as disfunções do planejamento público, que representam falhas na estrutura
constitutiva, e as limitações da função, em que figuram situações de desdobramento
inapropriado. Respectivamente, são exemplos marcantes dessas perspectivas as disfunções
constitutivas do instrumento do PPA desenhado a partir da Constituição Federal de 1988 e as
limitações perseverantes de alguns determinismos na trajetória da função ao longo do tempo.
As críticas têm, ainda, a perspectiva das problemáticas de enfoque, em que a atitude impressa
no processo se desvia da essência da função, como quando o planejamento é orientado quase
exclusivamente para a questão técnico-orçamentária. A seção então busca dar os contornos da
crítica feita ao planejamento aqui apelidado de “tradicional”, isto é, oriundo do contexto pré-
constitucional, e apresentar os indícios de reprodução das limitações nos planos plurianuais
(PPAs) federais.
Compreende-se que, para provocar a investigação sobre a ressignificação do planejamento
público a partir da democracia, é necessário delimitar um ponto de partida, representado,
nesse caso, pelo legado negativo da trajetória da função de planejamento. Entretanto, é
importante informar que a pesquisa foi realizada tomando como base modelos de análise
oriundos da teoria da democracia, e que, portanto, responde aos indicadores específicos da
teoria, não diretamente às disfunções, limitações e problemáticas de enfoque que serão aqui
apresentados. Todavia, toda a análise é interveniente e se influencia mutuamente; inclusive,
56
ao final da pesquisa são apresentados temas lançados pelos entrevistados que respondem
qualitativamente a alguns itens desta seção.
1.3.1 Resistência à mudança: limitações tradicionais do
planejamento e disfunções constitutivas do PPA
A seção referente ao resgate histórico do planejamento público apresentou as iniciativas
alternadas de rompimento e de transformação afirmativa da função entre os anos 30 e os anos
atuais. Sabe-se, portanto, que a trajetória da administração pública brasileira foi marcada por
pontos de inflexão que, em bases, conceitos e pressupostos distintos, foram responsáveis ora
por elevar ora por esvaziar o planejamento governamental. Sabe-se também que essa trajetória
foi deixando arraigados vícios e costumes que comprometem as tentativas de mudanças mais
estruturais, assim como legados negativos que impactam na efetividade, no caso, do
planejamento público. Por outro lado, elementos constitutivos do processo de mudança
também podem prejudicar a efetividade. O que este item da seção busca ponderar é que o
ponto de inflexão representado pela Constituição Federal de 1988 no tocante ao planejamento
público é tanto passivo quanto ativo na produção de inconsistências, ou seja, tanto sofre
interferências dos legados negativos dos períodos anteriores, sobretudo do planejamento na
ditadura militar, quanto incentiva a produção de disfunções que são características dos
elementos constitutivos do instrumento de PPA.
Nos últimos anos, muitos afirmam “que o planejamento governamental morreu junto com o
fim da ditadura militar e que agora é a hora da gestão”, segundo revisão de Garcia e Cardoso
Junior (2015, p. 81). A afirmativa sobre a “morte” do planejamento governamental em tempos
recentes é carregada de sentido. Primeiro, sugere que planejamento e gestão são mesmo
rotinas difíceis de coexistir. Segundo, sugere que, se o planejamento “esteve vivo” somente na
ditadura militar, é indicativo de que o regime autoritário poderia ter elementos fertilizantes
para o planejamento público. Nesse último sentido, portanto, o planejamento seria
compreendido como um “reducionista processo de comando e controle, necessariamente
autoritário e impossível de ser exercitado em ambientes democráticos”.
O regime militar de fato contribuiu para a ascensão da Era de Ouro do Planejamento; evento
que indica que não foram deixados somente legados negativos. Pelo contrário, entre 1950 e
57
1970 praticou-se uma maturidade de planejamento ímpar na trajetória da função. A Era de
Ouro, ao contrário das décadas recentes, posicionou a função com primazia frente à gestão e
valorizou os planos como orientadores do desenvolvimento nacional. Mesmo não sendo
consenso na literatura, duas características ditas como positivas do planejamento durante o
regime são apropriadas a partir da revisão de Rezende (2011, p. 202), quais sejam: “a
liderança do processo de elaboração e execução do plano, [que supostamente estaria] sob a
supervisão direta do Presidente da República”; e “a instituição de um sistema eficiente de
coordenação, execução, acompanhamento e avaliação dos programas e projetos contemplados
no plano”. Nesse último caso, a estruturação de sistemas de coordenação, execução, entre
outros, pode ter de fato ocorrido, mas não constituindo necessariamente um sistema eficiente,
tampouco um sistema que conseguisse abrigar a complexidade de respostas à sociedade atual.
Já a liderança centralizada do processo de elaboração e execução do plano como mote de
sucesso do planejamento é algo ainda mais questionável. As tentativas de democratizar o
planejamento público se caracterizam por pontos de discordância dessa lógica de
centralização. Isso é reforçado pelo fato de coexistirem, então, a crítica ao “autoritarismo-
tecnoburocrático” citado por Cardoso Junior (2014), em curso na Era de Ouro do
Planejamento, o esgotamento desse modelo e a necessidade preeminente de resgatar a
notoriedade da função de planejamento em moldes mais democráticos. De forma
aparentemente contraditória, a Era de Ouro teve vazão em governos autoritários, ao passo que
as iniciativas recentes de planejamento buscam agregar efetividade à função por meio da
adoção do componente participativo, mais democrático. Será possível então preencher e, mais
ainda, ressignificar o planejamento público em contornos mais democráticos? Mitigar o
caráter centralizador e tornar o processo de planejar mais perene às demandas da sociedade
são condutas sugeridas como necessárias à efetividade do planejamento, a partir das
referências dialogadas com a literatura de democracia e participação – as referências e
intencionalidades do planejamento democrático serão tratadas mais adiante neste trabalho.
No encalço dessa relativização, Garcia e Cardoso Junior (2015, p. 81) também defendem que
sejam lembrados os processos de aprendizagem recentes, apoiados em um “rico movimento
de produção de novos conceitos, métodos, técnicas, sistemas operacionais do planejamento
estratégico público”. Os críticos aos quais se referem os autores, aqueles que apontam a
“morte” do planejamento governamental, parecem desprezar as iniciativas e experiências
exitosas de planejamento empreendidas já no regime democrático por diferentes esferas de
governo e entidades públicas, e ainda recheadas de conteúdo. Isso demonstra que planejar em
58
contexto democrático é possível e que, como tratado na seção de histórico, o planejamento tal
como realizado na ditadura militar pode ter alcançado sucesso mais em razão de uma
sociedade menos complexa que pela alta discricionariedade do ente central. O capítulo deste
trabalho que dialoga com a literatura da democracia deve apresentar ao menos o potencial de
resposta desse modelo à pluralidade de anseios e interesses da sociedade mais complexa.
Garcia não se arrisca a tecer conclusões mais definitivas sobre o alcance da função, dado que
o reordenamento governamental federal, representado pelos instrumentos de planejamento
impostos pela CF-88, ainda está no início e se estruturando aos poucos. Somente atesta o salto
de qualidade, afirmando significativos avanços e o rompimento da inércia com que era levado
o planejamento no período anterior. Segundo o autor (2015b, p. 51), ainda não se constitui
como um sistema pleno e, longe disso, adequado aos requisitos complexos de governar
sociedades democráticas, ou ainda “de um sistema de planejamento que tenha superado o
economicismo, que incorpore o cálculo político, que disponha de um sistema de direção
estratégica”, entre outros. Todavia, se constitui como um sistema muito superior ao praticado
até então, que tem se espelhado e, com sucesso, se equiparado às iniciativas de países mais
organizados e mais orientados para a dimensão estratégica da administração pública.
É inegável que o PPA sofra de limitações que são herdadas da estrutura de planejamento
anterior, apelidadas aqui de “tradicionais”, como é ocasionado pelo viés economicista imposto
em toda a trajetória da função. Porém, é necessário ponderar que muitas limitações – ou, pelo
conceito, muitas disfunções – são decorrentes de falhas conceituais e estruturais do próprio
desenho do instrumento de planejamento plurianual. Por exemplo, em relação às temáticas de
controle, gestão e orçamento, Santos et al (2015) apontam falhas na organização da estrutura
de informações, como fruto de um apelo pela formalização do instrumento, que impactam
sobremaneira o alcance do planejamento. Essa estrutura limitaria o PPA a um instrumento
formal que sequer informa satisfatoriamente as metas do governo. Curioso notar, nesse
sentido, que as grandes missões e metas que o governo se impõe em peças de ordenamento
programático normalmente são apresentadas nas mensagens presidenciais que fazem a
abertura do Projeto de Lei, em ato de encaminhamento ao Congresso Nacional. Ou seja, os
compromissos supremos do governo com um projeto de país e a devida carta de intenções não
estão contidos na peça de planejamento, muito em função da obrigatoriedade de estruturação
formal do PPA que não compatibiliza ações e estratégia.
59
Outro fator que se destaca como disfunção típica do PPA, já evidenciada na primeira seção do
trabalho, corresponde à falta de regulamentação dos dispositivos constitucionais, que
compromete a organização e os procedimentos do planejamento governamental sob a lógica
do instrumento plurianual (GARCIA, 2015b). Essa obrigação “vem sendo postergada, com
grande prejuízo para os governantes, o povo brasileiro e a própria democracia”, posto que “é
direito do cidadão saber por quais caminhos e para qual futuro o país está sendo conduzido”.
Essa falha é vinculada à anterior na medida em que prejudica o potencial de informação dos
planos. Ignora-se a prerrogativa do PPA em dar publicidade ao “programa do governo e o
plano estratégico de desenvolvimento” (Idem, p. 76). Em contraposição a um projeto
democrático e desenvolvimentista, essas e outras disfunções constitutivas do PPA parecem
forçar avanços somente incrementais no planejamento público nacional.
Independentemente de limitações tradicionais (legados prejudiciais de períodos anteriores) ou
de disfunções constitutivas do PPA (oriundos de sua própria concepção ou estruturação), as
dificuldades em promover mudanças no planejamento público nacional, assim como em
outras áreas e funções, são bastante associadas a fatores culturais e políticos. Neste ponto do
item confluem-se ambas as perspectivas das limitações e disfunções do planejamento público
para a temática da resistência à mudança, com seguinte entendimento principal: as razões para
as limitações no planejamento ou mudanças tão somente incrementais decorrem de esforços
conservadores de manutenção dos status sociais, econômicos e da própria administração
pública, na figura do papel do Estado nas relações.
Com o anseio de responder aos porquês das limitações nas transformações do planejamento
público a partir da reformulação da função na CF-88, Garcia (2015a, p. 51) apresenta
assertivas genéricas sobre padrões culturais e políticos que resistem aos processos de
mudanças. Alterar um sistema, no caso, sistema de planejamento, é uma “tarefa hercúlea”. A
mudança, se comprometida de fato com a movimentação de raízes profundas no cenário
político-administrativo nacional, tal como pressuposto em múltiplas dimensões pela teoria
democrática, “tem que se dar primeiro nas mentalidades”, e “mudar cabeças não é fácil”. A
mudança “demanda estudo, discussão, reflexão, testes práticos, capacidade de aprender com o
erro”. Ainda, demanda a elaboração de processos e rotinas de trabalho que “corporifiquem e
deem vazão ao processo transformador”, e que garantam funcionamento à novidade e
dinâmica à mudança. Essa discussão leva a crer que sempre se faz necessário mudar ou
adequar a estrutura pública para abrigar a mudança, mas longe está de contar exclusivamente
60
com reformas administrativas para isso – essas que se “atém aos organogramas e esquecem o
resto”.
Maia e Melo (2015, p. 144), por sua vez, atribuem a culpa pelo engessamento do sistema à
falta de cultura de planejamento da administração pública federal e à dificuldade tradicional
imensa de organização de políticas e programas para a orientação de médio e longo prazos.
Essas razões são explicadas pelo “imediatismo social e político que permeia o processo de
planejamento, o que resulta na falta de sistematização desse processo e na elaboração de
planos que não obedecem a critério previamente definidos”. Ocorre com isso uma
obscuridade da direção pretendida pelas políticas e a baixa permeabilidade dos planos às
escolhas democráticas. Ainda que de forma relativa, essas escolhas seriam viabilizadas pelo
papel atuante do Congresso Nacional, o que não é a realidade. Assim, sem clareza de direção
e sem ingredientes da democracia, os planos perdem sua essência de legitimidade – nada mais
grave para seu sucesso. Supõe-se, com isso, que a democracia seja um componente relevante
para a mudança de cultura de planejamento na administração pública.
Os artifícios contidos em ambas as explicações para a resistência à mudança, primeiro de
Garcia (2015a) acerca de mudanças culturais de um sistema, e depois de Maia e Melo (2015)
sobre a baixa carga de democracia implantada no planejamento, remetem, sugere-se aqui, às
configurações tradicionais de toda a administração pública brasileira, explicada neste e em
outros itens do trabalho. Supondo uma atuação consciente da alta gestão sobre os impactos da
transformação ativa do planejamento, será que a resistência não é dada de forma oportunística
por políticos e agentes públicos? O questionamento é motivado pela sugestão de que suas
ambições são voltadas à manutenção do status e dos tipos de políticas empreendidas. Dessa
forma, a resistência à mudança no que tange aos políticos e agentes públicos poderiam refletir
ou ser fruto das investidas quase sempre conservadoras de manutenção de poder.
1.3.2 Planejamento versus gestão: o esvaziamento da função
nas últimas décadas
Como já fora introduzido nas seções anteriores, existe uma limitação que é representada pela
dicotomia e alternância entre planejamento e gestão governamental no Brasil, tratada em
profundidade por Cardoso Junior (2011) e que ajuda a compreensão do esvaziamento da
função nas últimas décadas no presente trabalho. A ideia central é a de que existem dois lados
61
que são priorizados de forma alternada ao longo da história do século XX no país. Segundo
essa proposição analítica desenvolvida pelo autor11
, de um lado se tem a lógica do
planejamento, cujo mote é a preponderância da esfera política, da dimensão estratégica do
Estado e de uma perspectiva temática – o quê, não o como – das ações governamentais. E de
outro lado se tem a lógica da gestão pública, representada pela esfera tática operacional, pelo
apego aos meios e aos resultados e pelos instrumentos de avaliação.
Ambas as perspectivas são alternadamente lançadas pelos governos em períodos específicos,
e têm manifestação não coincidente. Com um olhar sobre a agenda macro de gestão
governamental no Brasil é possível observar uma pendulação desses ciclos, ora para o lado do
planejamento, ora para o lado da gestão. De forma indireta e nas entrelinhas está posto um
confronto entre a “dimensão propriamente operacional do ciclo e sua ênfase em aspectos
centrados em efetividade, eficácia e eficiência das políticas públicas e, por outro, a dimensão
estratégica ou política do ciclo” (CARDOSO JUNIOR, 2011, p. 45). O esvaziamento da
função de planejamento é em parte reflexo dessa alternância, uma vez que a notoriedade da
função – e o glamour dos grandes planos nacionais de desenvolvimento com orientação
econômica – foi ruindo juntamente com o autoritarismo da Ditadura Militar, cedendo lugar à
gestão. Nas últimas décadas, principalmente a partir do final da década de 80, pouco
neutralizada dos anos 2000 em diante, a ênfase foi dada nos meios e nos instrumentos, e a
agenda pendulou para o lado da gestão pública, mediante a dominância da agenda do
gerencialismo e da reforma do Estado, contribuindo para o esvaziamento da função de
planejamento governamental e de toda a sua carga subjetiva de política, de conteúdo temático
e de estratégia de desenvolvimento nacional (CARDOSO JUNIOR, 2011).
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, buscou-se estruturar a formalização da
função de planejamento, como fruto da necessidade preeminente de racionalizar o processo
decisório e de apoiá-lo em bases mais democráticas, substituindo o antigo formato aleatório e
discricionário (CARNEIRO, 2015). Cardoso Junior (2011) defende que a formalização do
planejamento contribuiu para o seu esvaziamento enquanto função, por se tratar de um
sistema formal mais operacional e com vinculação orçamentária. Nesse sentido, mesmo que a
formalização seja fruto da Constituinte, em processo permeado sobremaneira de conteúdo
temático – com a manifestação de movimentos que deram origem às áreas sociais
contempladas nos dispositivos constitucionais, como Saúde e Educação –, a obrigatoriedade
11
Teoria organizada em texto “Planejamento Governamental e Gestão Pública no Brasil: elementos para
ressignificar o debate e capacitar o Estado”, publicado pelo IPEA em 2011.
62
de ação governamental em consonância com planos orçamentários subordinou a dimensão
política e suas instituições aos formalismos do orçamento público. De acordo com Cardoso
Junior (2011, p. 51), “ganharam primazia a gestão e a construção de suas instituições,
desprovidas, porém, de sentido ou conteúdo estratégico, isto é, ênfase em racionalização de
procedimentos e submissão do planejamento à lógica físico-financeira da gestão
orçamentária”.
Apesar dessa perspectiva, existem razões plausíveis para acreditar-se que não foi o processo
de formalização do planejamento o fator determinante para o esvaziamento da função, apesar
de contribuir, mas sim a agenda gerencialista que foi priorizada na década de 90 e a sua
orientação para a gestão pública. Ainda em contexto de pós-redemocratização e com a
discussão dos termos do planejamento público, reconhecendo sua relevância, a função é
forçada a disputar centralidade com aspectos da gestão que, à época, pareciam ter potencial de
dar respostas mais assertivas à crise fiscal e aos problemas de natureza econômica. Nessa
disputa também se inserem os planos plurianuais, cuja formalização exige sua realização
pelos governos, mas não a sua centralidade em orientar a programação governamental. Foram
sim, em muitos ciclos, meros cumprimentos formais, sem aderência à prática da ação
governamental.
A partir dos anos 2000, e especialmente no governo Lula, o Estado sofreu os reflexos do
desmantelamento do planejamento iniciado na década de 90. Com a ascensão de uma nova
proposta e modelo de desenvolvimento, apoiado na inclusão e desenvolvimento social, o
debate sobre a função voltou à tona e esforços pela elaboração “mais política” das peças
plurianuais foram empreendidos. Apesar disso, no entanto, os PPAs careceram de condições
adequadas para a implementação efetiva, parte devido às limitações financeiras e parte por
conta da ausência do aparato que sustentava a função no passado, quando o planejamento
estava imerso em um contínuo de anseios e vislumbramento do desenvolvimento nacional. Se
considerada, portanto, a discussão empreendida por Cardoso Junior (2011) sobre a alternância
entre planejamento e gestão ao longo da história recente do Brasil, é possível atribuir parte da
responsabilidade pelo desmantelamento do primeiro à preponderância da gestão na década de
90.
Apesar desse cenário de desagregação de sentido dos planejamentos governamentais, as
conclusões do autor são otimistas e caminham para a seguinte direção: uma vez superada a
onda neoliberal incorporada nas décadas de 80 e 90 no Brasil, bem como “suas crenças
63
ingênuas em torno de uma concepção minimalista de Estado, torna-se crucial voltar a discutir
o tema da natureza, dos alcances e dos limites do Estado” (CARDOSO JUNIOR, 2011, p. 49),
e ainda os temas referentes ao planejamento e à gestão das políticas públicas no capitalismo
brasileiro contemporâneo (CARDOSO JUNIOR, 2011). Em sentido normativo, o autor
argumenta que a prática de planejamento governamental deve resgatar esses temas e
recuperar, nas agendas nacionais, a “visão de que o Estado é parte constituinte (...) do sistema
social e econômico das nações, sendo – em contextos históricos tais quais o brasileiro –
particularmente decisivo na formulação e na condução de estratégias virtuosas de
desenvolvimento” (CARDOSO JUNIOR, 2011, p. 50).
Cardoso Júnior (2011) deixa com essa proposição analítica importantes reflexões. Há um
reconhecimento de que, primeiro, o Estado é importante para gerir o desenvolvimento
nacional, em detrimento das estratégias de mercado impostas ao setor público por meio do
gerencialismo, e, segundo, o planejamento governamental pressupõe discussões temáticas e
esferas políticas que justamente legitimam essa atuação do Estado. O autor também sugere,
por fim, que o esvaziamento da função tem potencial de influir em um amplo processo de
aprendizagem institucional para revisões de conceitos e de funcionamento. Espelhando o
otimismo do autor, se for considerado que tais reconhecimentos estão em curso desde o início
dos anos 2000, pode também estar em curso, ainda que a passos lentos, a recuperação e a
ressignificação do planejamento governamental no Brasil.
1.3.3 Planejamento versus plano: processo e produto;
integrados e não sobrepostos
Outra limitação que pode ser organizada e apresentada neste trabalho é a confusão de
entendimento sobre planejamento e plano, sendo representada pela pouca compreensão ou
respeito às distinções entre o planejamento como processo, dotado de uma função do governo,
e o produto inicial desse processo, representado pelo plano. A confusão, aparentemente
terminológica, na verdade carrega um conjunto de desentendimentos acerca do alcance do
planejamento enquanto orientador e fomentador da efetividade das ações governamentais. O
não reconhecimento do planejamento como um processo contínuo de escolhas, de checks and
balances, e como um exercício essencialmente político, alimenta um caráter de pontualidade e
um rigor de formalidade à função, resultando recorrentemente em um documento-plano de
64
prateleira. O caráter reducionista desse último, por sua vez, fora de uma compreensão e um
escopo de planejamento mais amplo, contribui para limitar a dimensão estratégica tanto da
função quanto das peças programáticas elaboradas a partir dela.
Não há um consenso na literatura sobre as definições e alcance dos termos. Souza (1994 apud
BERCOVICI, 2015, p. 27), por exemplo, considera que o planejamento é processo, enquanto
o plano é a concretização desse processo. Assim, o plano se desdobra na expressão da política
do Estado, ilustrando um direcionamento político específico e uma vontade geral da gestão.
Por isso, o plano “deve estar de acordo com a ideologia constitucional adotada”
(BERCOVICI, 2015, p. 19) e, sugere-se, com um projeto de país e uma visão de futuro
definidos. Souza (1994 apud BERCOVICI, 2015, p. 27) então atribui um destaque especial ao
plano no ordenamento governamental, mas faz ponderações sobre seu alcance: “a insistência
na elaboração de planos que não são cumpridos deve-se à concepção de que o planejamento
só se viabiliza com planos determinados, quantificados minuciosamente”.
Embora seja uma visão interessante, o plano somente pode ser a concretização se considerado
o planejamento como uma função realizada ex-ante à implementação dos programas e
políticas, não como aquela que fomenta a retroalimentação do ciclo12
das políticas públicas, a
qualquer tempo, como uma atividade contínua. Como já explicado na seção inicial, a função
de planejamento pode ir além do desenho de ações governamentais, tomando para si
responsabilidades ímpares na coordenação e racionalização contínua da atuação do Estado e,
mais ainda, provocando um questionamento útil e permanente sobre os fins dessa atuação, em
uma perspectiva de autoavaliação crítica. O planejamento guardaria sob esse aspecto a missão
de construir e desconstruir incessantemente a programação governamental de modo a
(re)conduzir e (re)colocar o Estado nos rumos da proposta de desenvolvimento almejada, o
que requer, ainda, que o processo de planejar seja acompanhado de vontade política. Nesse
caminho, parece plausível defender a centralidade do planejamento em detrimento do plano,
taxando-o de fato como produto da atividade contínua.
É importante lembrar que a formalização do instrumento do PPA impôs à função um caráter
obrigatório e pressupôs a sua articulação com a LDO e a LOA, que são instrumentos
complementares de curto prazo que devem promover interações sistemáticas com o
12
Na perspectiva do ciclo das políticas públicas (FREY, 2000), por meio de um processo que combina política e
administração, existem etapas parciais ou intermediárias encadeadas que são fundamentais para a execução e
acompanhamento das políticas. Uma visão geral na teoria das políticas públicas certamente apontaria de forma
simplificada as seguintes etapas do ciclo: identificação de problemas/ formação de agenda, formulação,
implementação, monitoramento e avaliação.
65
planejamento. Isso contribui para afirmar o planejamento como atividade contínua, mas
defronta-se com algumas disfunções constitutivas graves do PPA. Os contornos normativos
da Constituição Federal, a ausência de regulamentação dos planos e a metodologia adotada na
construção dos PPAs aprofundam o descolamento entre a função e as peças plurianuais.
Garcia (2015b, p. 66) afirma sobre isso que, nos últimos anos, uma excessiva normatização
imposta pela gestão central aprofundou o “fosso entre o plano – incluindo-se o orçamento e
supondo-se conter os elementos essenciais à sua gestão – e o planejamento, entendido como o
processo incessante de manter o plano vigente, no dia a dia”. Entende-se que o “fosso”
também se aprofundou pelo fato de todo o arcabouço normativo estar imerso em uma
concepção extremamente reducionista de planejamento público. Por esse caminho, essa linha
teórica reivindica que ambos, planejamento e plano, devem ser integrados em um processo de
construção da estratégia de desenvolvimento, e nunca sobrepostos, principalmente o plano
sobre a função.
Além da normatização, pontua Garcia (2015b, p. 66) que também foi marcante nos últimos
ciclos de elaboração do PPA federal a “negação da natureza necessariamente seletiva do
planejamento”, apresentando um grau de detalhamento incompatível com uma orientação
esperada de projeto de país, com programas e ações relacionadas de forma exaustiva e com
excessiva setorialização. Como resultado, revela-se o PPA um plano dos “feudos corporativo-
burocráticos”, de pouca aderência prática e incompatível com a função de planejar, além de
reafirma-se “o caráter plurianual de despesas”. Outras assertivas de Garcia acerca de impasses
ao planejamento se dão pela imposição de níveis acentuados de dispersão, improvisação e
progressivas dificuldades de coordenação dos programas, isso tudo com “grande prejuízo para
a eficácia global do governo e, consequentemente, para a sociedade”. Essas limitações
superam o debate acerca do planejamento versus plano e serão mais trabalhadas adiante.
66
1.3.4 Ponderações à dimensão estratégica do planejamento:
prisão técnica-orçamentária e horizonte de médio prazo
Muito interveniente à limitação anterior é a crítica sobre o baixo alcance empírico da
dimensão estratégica13
do planejamento governamental plurianual em relação ao que foi
vislumbrado pelos constituintes. O PPA foi concebido com uma proposta de formalização e
aprimoramento do planejamento público, com intenções de tornar-se o principal instrumento
de ordenamento da ação governamental. Para isso, estaria apoiado, em grande medida, em
uma dimensão estratégica, aliada a uma visão holística da gestão e uma visão de futuro de
país, estabelecendo metas com horizonte de médio prazo, mas com potencial de
transformação da realidade a longo prazo (PAULO, 2010; REZENDE, 2011). As limitações
remanescentes do planejamento de que trata esta seção, entretanto, reconhecem resistências e
inconsistências na dimensão estratégica do PPA nos dias atuais.
O princípio da estratégia pressupõe, segundo Paulo (2010), uma sequência lógica de
elaboração e uso do PPA. Num plano ideal, do ponto de vista do que o autor extraiu das
intenções originárias do instrumento na Constituinte, a construção do PPA deveria partir dos
programas que foram defendidos em plano de governo durante a campanha eleitoral, passando
pela definição de diretrizes estratégicas para cada setor, “de forma que seja criado um grupo
sinérgico e cooperativo entre as políticas governamentais”, e por fim seriam “definidas as
políticas propriamente ditas, que serão materializadas por meio de programas e ações
(orçamentárias ou não) que os compõem”; tudo isso sendo balizado em consonância com uma
“projeção do cenário fiscal para o período do plano, de forma a dimensionar a disponibilidade
de recursos orçamentários para a implementação dos programas” (PAULO, 2010, p. 175-
176).
Entretanto, o instrumento do PPA instituído pela Constituição Federal de 1988, admite o autor
(PAULO, 2010, p. 171-173), “ainda padece de uma crise de identidade”, e o “reconhecimento
do caráter estratégico do PPA ainda encontra resistência, seja no âmbito da administração,
seja entre estudiosos, parlamentares e especialistas”. Apoiado em Garcia (2000), ele afirma
13
Uma definição possível para essa dimensão estratégica é dada por Rezende (2011, p. 205) como “o
estabelecimento de uma sequência de procedimentos que se inicia com a identificação das prioridades nacionais,
a tradução dessas prioridades em objetivos a serem perseguidos em um dado horizonte de tempo, a definição do
que precisa ser feito para alcançar esses objetivos, o estabelecimento de etapas e das respectivas metas a serem
atingidas para esse fim e a seleção de indicadores a serem utilizados para monitorar os resultados obtidos e
propor os ajustes devidos, quando necessário”.
67
que em décadas de existência o plano ainda não configura um instrumento que concilia e
fortalece ambos, planejamento e gestão estratégica, muito devido à “concepção normativa e
reducionista de planejamento, herdada do período militar”, que inclusive vincula a elaboração
do plano à seção destinada aos orçamentos na CF-88. Vale lembrar, como dito na revisão
teórica do planejamento, que o período militar deu sentido e centralidade às peças de
desenvolvimento nacional, mas o regime deixou um legado nocivo à função de planejar para
as décadas futuras.
A intencionalidade da Constituinte percorria soluções às preocupações orçamentárias. O PPA
surgiu com um papel de orientação das peças orçamentárias, afinado com o propósito de
inseri-las e subordiná-las ao planejamento público de médio prazo, assim como de garantir a
integração positiva entre plano e orçamento. Porém, alguns fatores determinantes do período
pós-constitucional corroboraram para neutralizar a intencionalidade original, entre eles a
necessidade de ajustar as contas públicas e a prerrogativa de cumprimento de metas fiscais
pelo governo (PAULO, 2010; REZENDE, 2011), fruto de um “longo predomínio das
preocupações com a estabilidade macroeconômica e o consequente direcionamento do foco
das atenções governamentais para o curto prazo” (REZENDE, 2011, p. 203). Nesse cenário, a
dimensão estratégica do planejamento plurianual sofreu duros golpes, e soluções remediáveis
e imediatistas ganharam a cena na gestão governamental.
Além dessa inflexão na gestão pública federal, Rezende (2011, p. 197) aponta outra razão
para a perda da dimensão estratégica do planejamento: o horizonte de médio prazo,
caracterizado pelo prazo de vigência de quatro anos do planejamento plurianual. Segundo o
autor, esse tempo é muito curto para abrigar ações estratégicas e, sem dúvida, muito restrito
para acomodar uma visão adequada e ampla de planejamento público. O PPA, com o prazo de
quatro anos por ele abrangido, teria sido incapaz de recuperar a função de planejamento – essa
fundada em uma visão estratégica de longo prazo – que estivesse à altura dos desafios do
desenvolvimento brasileiro. Categoricamente, essa crítica revela uma suposta “missão fim” do
instrumento: o PPA na verdade acomoda tão somente prioridades orçamentárias.
Considerando isso, “ao estipular que nenhum projeto que ultrapasse o período de um ano seja
incluído no orçamento sem estar contemplado no PPA”, mesmo isso se tratando de uma
inovação bem intencionada, a regra acaba fazendo com que o plano “seja elaborado para
abrigar qualquer demanda surgida por ocasião da elaboração dos orçamentos anuais”,
inviabilizando a articulação do PPA com o planejamento de longo prazo.
68
O baixo alcance empírico da dimensão estratégica do planejamento governamental contribui
para frustrar “os bem-intencionados esforços de traçar uma estratégia de desenvolvimento
comprometida com a questão social” (REZENDE, 2011, p. 203). Se analisado o período pós-
2000, no qual já se manifestavam desejos pela ressignificação do planejamento público e
investidas metodológicas mais amadurecidas, é ainda mais preocupante identificar limitações
à estratégia nos PPAs de 2003-2007 e 2008. Respectivamente, trata-se de um plano voltado
para o crescimento baseado no consumo de massas e outro voltado para inclusão social e
redução de desigualdades; ambos, portanto, relacionados a desafios que não se alcançam, de
forma alguma, no horizonte engessado de médio prazo. Esses planos não passaram, na prática,
segundo Rezende (2011, p. 203), de “documentos preparados com seriedade, mas despidos de
quaisquer chances de execução, exibindo forte contraste entre as respectivas ambições,
espelhadas na multiplicidade de macro-objetivos, desafios, programas”, entre outros. Em
outra medida, é preciso considerar que existe o desafio de conciliar a multiplicidade de
intervenções esperadas do governo e a “necessidade” de acomodá-las no plano, o que
contribui para transformar o plano quase naturalmente em um acolchoado de grandes
intenções.
Valendo-se novamente dos planos de 2003-2007 e 2008-2011, outro exemplo do possível
descrédito da função pode ser citado no que tange à dimensão estratégica: vem acontecendo o
exercício concomitante de publicar estratégias nacionais em outras peças de planejamento. De
acordo com Paulo (2010, p. 180), o descrédito ficou mais evidente a partir de 2007, com o
lançamento de planos paralelos à função empenhada pelo Ministério do Planejamento, nas
figuras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do Programa de Desenvolvimento
da Educação (PDE) e da Agenda Social (AS). Com tais publicações – essas sim, talvez, com
uma dimensão estratégica (e política) impressa –, “o governo federal elegeu novas formas
para definir e comunicar quais eram as suas prioridades e metas”. Sobre isso é válido notar
que o exercício concomitante de elaboração de planos não só ilustra o baixo alcance da
dimensão estratégica do PPA quanto imprime mais limitações à função de planejamento
público enquanto ordenadora da ação governamental com horizonte de longo prazo – e
também na articulação dessas atividades planejadoras com distintos horizontes temporais.
69
1.3.5 Planejamento versus implementação: descompasso
entre intenções e capacidades
A limitação do planejamento público de que trata este item diz respeito basicamente à baixa
articulação entre o planejamento e a capacidade de implementação de políticas e programas,
usando para a exposição um recorte breve na argumentação dos autores selecionados para o
embasamento do planejamento público. De modo complementar o item também problematiza
a distância significativa entre o que é alimentado de objetivos e metas em instrumentos de
planejamento, especialmente os PPAs, e o que é efetivado na realidade. São apresentadas
questões sobre a estrutura administrativa do Estado incompatível com desejos de mudança –
se é que eles existem; como dito anteriormente, há resistências à mudança – e capacidades de
gestão pouco frutíferas para a implementação dos programas desenhados.
O governo tradicionalmente dispõe de instrumentos limitados para levar adiante o projeto de
país esboçado em planos, ainda que ao menos tente dar centralidade à função de
planejamento, e também existem problemas de seletividade na implementação das políticas e
muitas deficiências na gestão (REZENDE, 2011). Essa avaliação desperta um questionamento
caro ao presente trabalho, no sentido de que a melhoria do processo de elaboração do plano,
isto é, do ato de planejar, ou até mesmo da afirmação da função, parece não garantir que seja
colocado em prática o planejamento governamental. Assim, caberia o fomento à correção dos
descompassos entre as intenções e as capacidades de implementação. Essa temática é bem
sensível, e será somente tangenciada neste item, posto que a essência da investigação do
presente trabalho não foca nos resultados de implementação, mas na ressignificação do ato de
planejar. Sob essa perspectiva, reivindica-se aqui que a efetividade como instrumento de
ordenamento da ação governamental pode também estar atrelada à qualificação de seu
processo de elaboração, como por meio da adoção do componente participativo e do
aprofundamento da democracia.
A formalização do planejamento governamental a partir da promulgação da Constituição
Federal de 1988 foi permeada por grandes expectativas de mudança – social, econômica e
política. Todavia, eventos e resultados da história recente demonstram as limitações de
alcance desses desejos, entre outros fatores, devido às limitadas capacidades de
implementação das cartas de intenções. O relato de Garcia (2015a, p. 17) é oportuno para
iniciar a crítica: “Nossa história é repleta de boas intenções que não se afirmam, de leis que
70
não pegam e de reformas que não vingam, por serem esquecidos detalhes conceituais,
processuais, culturais e outros, necessários à sua implementação”. Dessa forma, a crítica
também se refere à desconsideração da realidade cultural, institucional e financeira do Brasil
durante a elaboração das peças de planejamento, o que colabora significativamente para
diminuir o alcance da implementação.
A natureza e a trajetória da estrutura administrativa brasileira definem uma organização
tradicional e conservadora de implementação de políticas, programas e políticas públicas. As
tentativas de mudanças pelas quais passou essa estrutura foram realizadas de forma
improvisada e sem uma definição clara de rumos, colaborando para que as transformações do
Estado e de sua capacidade de induzir o desenvolvimento fossem irrisórias. De acordo com a
revisão de Bercovici (2015, p. 26), a administração pública é orientada pelo “modelo liberal
de proteção dos direitos individuais em face do Estado, não para a implementação dos
princípios e políticas consagrados na Constituição de 1988”, e, por isso, estaria distante de
uma capacidade de resposta às novas pressões e anseios da sociedade, assim como “bem
longe das exigências do desenvolvimento”. A estrutura administrativa conservadora e
desajustada do Estado, pouco orientada para as necessidades de implementação, segundo o
autor, compromete a função de planejar, uma vez que ambas – implementação e planejamento
– são integrantes de um processo interligado e que se retroalimenta.
Outro ponto que chama atenção na análise das limitações do planejamento em relação à
implementação são as capacidades administrativas e de gestão. Com pontos comuns à
exposição de Bercovici, Rezende (2011, p. 206) problematiza os esforços recentes pela
melhoria da administração pública em alguns aspectos: déficit de coordenação entre
planejamento central e execução nas setoriais; apego à disponibilidade financeira; e
desconsideração de “elementos-surpresa”. O primeiro aspecto refere-se à falha na sistemática
de coordenação com as áreas setoriais. De acordo com Rezende (2011, p. 206), “esforços
recentes de melhoria da administração pública voltaram-se com prioridade para os órgãos
centrais, ampliando a diferença entre estes e os órgãos setoriais”, e a modernização dos órgãos
centrais não garantiu uma agenda de fomento e acompanhamento dos programas setoriais,
provocando um descompasso na implementação. Sendo assim, “a gestão pública padece de
ineficiências dos órgãos encarregados da gestão dos programas setoriais e de um déficit de
coordenação”.
71
O segundo aspecto, de apego à disponibilidade financeira, se manifesta quando
recorrentemente essa disponibilidade é tratada como a única variável relevante para a
implementação de programas. O autor defende, em contrapartida, que os recursos financeiros
não são os únicos recursos necessários à implementação, mas também os recursos políticos,
normativos, sociais, entre outros, na mesma lógica como o ato de planejar não deve se resumir
ao planejamento orçamentário. Ao contrário da prática, o olhar cuidadoso para a capacidade
de gestão e para os mecanismos adequados e eficazes de coordenação, além de outras
variáveis, é indispensável para o sucesso da implementação (REZENDE, 2011). É curioso
observar a aparente contradição entre esse ponto e o que será apontado adiante: embora os
agentes públicos se preocupem com a disponibilidade financeira na implementação – na hora
de pleitear recursos ou de apresentar “desculpas” para a não implementação de algum
programa –, parecem não considerar a realidade financeira disponível em planejamento.
O terceiro aspecto, dos “elementos-surpresa”, é exemplificado pelo autor por meio de um caso
em que normas ambientais foram desconsideradas em proposta de execução de investimentos,
que fez com que a violação da proteção de populações indígenas provocasse inúmeras
interrupções ao planejado. Nesse aspecto, entende-se que podem ser ignorados elementos que
causam influências na execução de investimentos e que interferem na implementação de
projetos específicos (REZENDE, 2011), dependendo do enfoque dado ao planejamento. A
própria definição de “elementos-surpresa” indica que se trata de elementos não previsíveis e
que naturalmente escapam ao radar do planejamento, o que contribui para relativizar a crítica.
Reforça a limitação um ponto importante da crítica planejamento versus implementação, que
é a desconsideração, em planejamento, de outros elementos da realidade disponível para a
implementação. Com a crítica agravada nesse caso, distintamente dos “elementos-surpresa”,
seriam ignorados elementos conhecidos e previsíveis, de forma intencional ou não
intencional. Segundo Rezende, (2011, p. 203), “a construção de uma visão estratégica não
pode ignorar as limitações que a realidade financeira e institucional impõem à sua
implementação sob pena de perda de credibilidade do esforço de planejamento”, e também
não pode se resumir “à necessidade de integrar planejamento e orçamento, tal como o previsto
nos dispositivos constitucionais”. Todos os aspectos estão interligados e devem ser
considerados para mitigar as limitações entre o esperado no plano e o executado na prática.
No escopo da função de planejamento, tratando especialmente do PPA, Santos, Ventura e
Neto (2015, p. 120-121) problematizam a relação de sobreposição, e não de compatibilidade,
72
entre o plano e o orçamento, que gera falhas significativas na implementação dos programas.
Além do descumprimento dos institutos constitucionais, que pressupõem a compatibilidade
entre ambos, a sobreposição cerceia o universo de possibilidades do plano e inviabiliza a
interação com outros institutos de execução das políticas públicas. Os autores afirmam que
existe uma “relação de quase exclusividade do PPA com a LOA”, submetendo o plano ao
orçamento, que acaba por dificultar a missão funcional de planejadores e implementadores na
identificação e reconhecimento da “real dimensão da gestão que deve estar relacionada ao
planejamento”. Nesse sentido, considera-se que, ao passo que a “contribuição do orçamento é
decisiva para a transformação dos sonhos em realidade, também é verdade que as restrições
associadas à dimensão da gestão impedem a implementação das políticas”.
A contribuição analítica de Santos (2011, p. 323-325) acerca da falta de correspondência das
peças de planejamento com a realidade de implementação se dá a partir da crítica do modelo
de formalização imposto pela Constituição Federal de 1988 e o ideal equivocado de
vinculação entre plano e orçamento. Segundo ele, o modelo é baseado em uma expectativa de
que as políticas sejam “efetivadas a partir do orçamento-programa ou do marco lógico e
qualquer outro modelo racional-compreensivo ou misto”. O que se constata recorrentemente,
entretanto, é que a intencionalidade contida nos manuais e receituários de planejamento e
orçamento, insistentemente produzidos pelos órgãos centrais, não se concretiza na prática. O
modelo formal vigente representa um importante ponto de inflexão da função de planejar, mas
não se traduziu em capacidade de apoio ao governo na identificação e no acompanhamento de
prioridades, tampouco em capacidade de implementação das ações desenhadas. Pelo
contrário, “o resultado dessa tentativa de relacionar políticas públicas e orçamento, para o
planejamento, foi a produção de documentos com milhares de informações recortadas”, como
a relação de problemas, objetivos, estratégias e ações, mas com conteúdos de “pouca base
analítica que as justificasse e que, ainda assim, não revelaram vários dos graves dilemas do
Estado”.
A partir das assertivas, torna-se evidente o dilema persistente do esvaziamento de sentido do
planejamento público, tanto em conteúdo quanto em correspondência com a realidade ou
capacidade de implementação. Santos (2011, p. 335) aponta sugestões que vão ao encontro de
movimentos que buscam observar as características que qualificaram não o preenchimento de
instrumentos, mas o planejamento real. Assim, entende-se que a complexidade e a
obscuridade do cenário no qual está imerso o processo impõem grandes desafios ao
planejamento público, a começar pela necessidade de qualificar a dimensão de diagnóstico e
73
provocar uma releitura de conceitos e instrumentos. Dessa forma, é recomendada a ênfase “na
relação fundamental que deve haver entre as cartas de intenções (planos) e o universo da
implementação das políticas públicas”, propondo ao planejamento a atribuição de alinhar os
planos ao arcabouço de implementação das políticas públicas para garantir que seja realmente
cumprido.
Por fim, lança-se mão de achados de Paulo (2010, p. 172) para fechar a exposição do
descompasso entre planejamento e implementação com um tema que é pouco tratado pela
literatura, mas de extrema importância para refletir o alcance das funções. Embora o
planejamento seja um exercício essencialmente político, aspectos técnicos e metodológicos
realmente importam para o seu sucesso – “metodologia importa”. A ideia principal é a de que
“quanto melhor a base técnica e metodológica do plano, melhor o debate acerca das políticas
públicas a serem implementadas por meio dele”. O autor vai além: a estrutura e as opções
metodológicas adotadas nos últimos tempos são os responsáveis por afastar os propósitos de
integração entre planejamento e a execução das políticas públicas, tal como idealizados pela
Constituinte. Exemplo disso é o emprego da metodologia por programas adotada após os anos
2000, que, segundo Paulo (2010, p. 180), apresenta duas falhas fundamentais, sendo a
“insistência em preservar o formato ‘puro’ dos programas e a preferência pela universalidade
em lugar da seletividade”. Como “puro” sugere-se a “formatação padronizada e a (...) lógica
dos programas como diretriz central de organização do governo”, muitas vezes incompatíveis
com as organizações reais e com as pressões orçamentárias. Essas críticas destoam das
anteriores, na medida em que enfatizam a dimensão operacional do plano em detrimento de
seu caráter estratégico, mas cuidam de sinalizar entraves à implementação.
1.3.6 Viés economicista do planejamento: reducionismo e
pressão do caráter técnico-orçamentário
Em praticamente todos os itens e seções até então expostos neste trabalho está presente o
conflito entre o planejamento público desejado e o viés economicista com que é submetido
recorrentemente, com ou sem intencionalidade. O fenômeno ocorre algumas vezes de forma
intencional, como no período da Era de Ouro da década de 70, apoiado de forma transparente
na missão desenvolvimentista, e outras vezes de forma não intencional. Símbolo desse último
caso é a tentativa de refundação do planejamento em bases mais democráticas no intento
74
constitucional da década de 80, e que inevitavelmente recaiu em desgastes semelhantes.
Assim, as empreitadas de planejamento quase sempre estiveram permeadas por uma
racionalidade econômica, impulsionadas ora pelo anseio de desenvolvimento nacional, ora
pela necessidade de crescimento econômico, ou ainda devido aos múltiplos cenários de
restrições nos quais esteve imerso o Brasil ao longo de sua história. Este item apoia-se em um
conjunto selecionado de autores críticos do viés economicista do planejamento para
sistematizar e apresentar, de forma não exaustiva, alguns pontos julgados essenciais para o
debate, considerando a priori a assertiva de que esse viés impõe limitações à função de
planejar e ao seu alcance. Nesse caso, a crítica é apresentada menos como disfunção ou
limitação, e mais como uma problemática de enfoque do planejamento público.
Decorrente de um esforço de sintetizar algumas disfunções do instrumento dos planos
plurianuais, Garcia organizou dois textos em coletânea do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA) em 2015 (a/b), o primeiro tratando da reorganização do processo de
planejamento do governo federal a partir do ciclo 2000-2003 e outro intitulado “PPA: o que
não é e o que pode ser”, com enfoque no ciclo 2012-2015, embora com ponderações que
dialogam com a concepção do instrumento e até mesmo com a intencionalidade da
Constituinte. Sobre o viés economicista, é marcante em todas as assertivas do autor – e como
aspecto que abriga, como um guarda-chuva, as críticas dos demais autores – a seguinte noção:
tradicionalmente, os únicos recursos abrangidos no olhar planejador são os econômicos. Ao
longo da história do planejamento nacional, as peças e planos de desenvolvimento foram se
amadurecendo a partir da técnica de racionalização da aplicação de recursos, esses
exclusivamente econômicos. O exercício não extrapola o planejamento para outras dimensões
sociais e políticas, entendidas, assim como seus respectivos recursos, necessários “à condução
de uma sociedade multidimensional, mas uma”, impondo-se assim o reducionismo (GARCIA,
2015a, p. 20).
Foi pouco diferente no cenário pós-constitucional, com a formalização do instrumento de
PPA. O viés econômico do planejamento à época também se impõe às dimensões sociais e
políticas da realidade, conduzindo o Estado à cegueira unidimensional. Garcia (2015b, p. 55)
faz a crítica afirmando que o “único olho (do Estado) é o econômico, e está nublado, seu agir
será errático, sem direção, ainda quando faça uso de outros recursos que não os econômicos
ou quando atue em outros âmbitos da realidade”. Segundo ele, foi essa orientação que o
governo federal seguiu para conduzir o enfrentamento da crise fiscal da década de 90 e por
isso reduziu o seu escopo de atuação à mediação de problemas econômicos (GARCIA,
75
2015b), como se não se tratasse de um país que acabara de batizar os direitos sociais na CF-88
e tivesse uma agenda longa de medidas para garantir esses direitos. Vale ponderar que o autor
propõe críticas bem severas e acaba por desconsiderar muitos esforços que vêm sendo feitos
no sentido de efetivar tais direitos.
Bercovici (2015) também contribui para organizar as críticas sobre o modelo de planejamento
tradicional e em curso, com o diferencial de apresentar comentários e argumentações sob a
ótica do Direito Público no Brasil contemporâneo. Isso permite expor as críticas ao
planejamento a partir do confronto da função de planejar, tal como motivada pela
Constituição Federal de 1988, e a prática atual. Em sua análise, o autor discorre sobre alguns
obstáculos ao planejamento, enfatizando a redução do planejamento ao orçamento. Mesmo a
integração entre plano e orçamento sendo uma necessidade de controle da atividade
planejadora e um ponto positivo da sistemática de planejamento no Brasil (GRAU apud
BERCOVICI, 2015), assim como reconhecem outros autores, essa integração normalmente
recai na redução do plano ao orçamento.
A tendência problemática da redução do plano ao orçamento é fruto da necessidade de
controle e ao menos do esforço pela implementação das ações desenhadas, já que o orçamento
parece conectar o sonho à realidade, isto é, garantir a materialização do que está posto no
plano. Essa dicotomia do papel do orçamento é um dos dilemas mais difíceis de equalizar no
âmbito do planejamento público no Brasil, posto que, à medida que garante materialidade,
facilmente ganha centralidade. De acordo com Bercovici (2015, p. 32), o principal motivo
pelo qual o plano não pode se resumir ao orçamento é o fato de que tende a perder sua
principal contribuição, que é a de apresentar diretrizes para a atuação do Estado, na lógica da
dimensão estratégica já tratada. Se a simples previsão de gastos toma o lugar das diretrizes
gerais, e ainda sem “qualquer órgão de controle da sua execução”, não há garantia nenhuma
de efetividade do planejamento, tampouco das ações desenhadas. A vinculação do plano ao
orçamento deveria ser “apenas uma forma de coordenar mais racionalmente os gastos
públicos”, não a compreensão do planejamento em si, aquele voltado de fato ao
desenvolvimento, ou “à transformação das estruturas socioeconômicas do país”.
Bercovici (2015) sugere que os instrumentos de controle orçamentário que compõem o
sistema de planejamento atual, como a LDO e a LOA, contribuem para o cerceamento da
função de planejar e, por consequência, para a limitação do próprio plano. Alguns exemplos
disso, segundo o autor, são o plano “Brasil em Ação”, da gestão de Fernando Henrique
76
Cardoso, e os PPAs dos governos petistas, que imprimem um desejo de mudança, mas se
prendem à dimensão orçamentária. Segundo o autor, os planos não inovam significativamente
frente às primeiras experiências de planificação dos gastos públicos no Brasil, como aquelas
empreendidas a partir da constituição do Departamento Administrativo do Serviço Público
(DASP) durante o Estado Novo (1937-1945). Nas iniciativas de planejamento oriundas dessa
estrutura, por exemplo, “o orçamento era o plano traduzido em dinheiro”. Sendo assim, os
planos foram reduzidos a disciplinar as inversões públicas, estabelecendo as dotações a serem
distribuídas pelos vários ministérios (DRAIBE, 1985; SOUZA, 1994 apud BERCOVICI,
2015, p. 31) – nada muito distinto dos exercícios recentes.
O PPA não conseguiu superar completamente a lógica da programação plurianual ou
periódica de despesas, ou de orçamento plurianual de investimentos – o OPI da Ditadura
Militar. Assim como os PNDs não superaram o PAEG e o Plano de Metas, também o PPA
não respondeu muitas das demandas do reordenamento das ações governamentais almejadas
no final da década de 80 (BERCOVICI, 2015). Como já tratado em seções anteriores, o
legado reducionista, autoritário e centrado no desenvolvimento econômico é significativo e,
mais preocupante ainda, retroalimentado conforme pleitos contextuais, normalmente
marcados por cenários de restrição econômica. Parece razoável afirmar que, enquanto alguns
passos são dados adiante com o PPA, sobretudo pela formalidade do sistema, garantia de
cumprimento e gestão democrática, alguns outros são dados para trás com a vinculação
programa-orçamento.
Por sua vez, Paulo tece algumas críticas próprias sobre planejamento público e outras
emprestadas do relatório do Banco Mundial, de 2006, em análise produzida em 2010 que
avaliou as experiências dos planos plurianuais no Brasil. Interveniente à crítica geral sobre o
viés economicista dos planos plurianuais é a primeira consideração de Paulo (2010, p. 181)
sobre o grau de detalhamento pressionado pelo caráter técnico-orçamentário. Existe uma clara
e acrítica obediência à estrutura do orçamento na elaboração do PPA, representada pelo
detalhamento excessivo de ações orçamentárias e não-orçamentárias, inclusive com previsão
de recursos. O plano não se limita ao apontamento de diretrizes e metas gerais como
requisitado pela dimensão estratégica. Isso seria possível mesmo que chegasse ao nível
detalhado por programas. Segundo o autor, “essa estrutura desvia a discussão estratégica de
planejamento, essencialmente política, para um enfoque técnico-orçamentário”, e esse
enfoque corrobora para o esvaziamento do aspecto político do planejamento.
77
A segunda consideração refere-se à dicotomia aparentemente irreconciliável entre horizonte
estratégico com transparência dos gastos, duas prerrogativas da peça de planejamento
plurianual. De acordo com Paulo (2010), existe uma “dubiedade teleológica do PPA”,
considerando que o instrumento é construído a partir de duas pretensões mutuamente
excludentes, que acabam por anuviar a profundidade de detalhamento das ações programadas.
O horizonte estratégico demanda a redação de uma vontade geral do Estado, ao passo que a
transparência de gastos requer detalhamento orçamentário, de alcance até operacional do
plano. A pretensão de que “um mesmo instrumento cumpra dois papeis distintos nos parece
uma falha conceitual e estratégica que, com o tempo, acaba por desacreditá-lo para os dois
fins previstos” (PAULO, 2010, p. 181-182). Em função da crescente centralidade assumida
pelos órgãos de controle e dos compromissos democráticos assumidos com a sociedade, com
vistas ao accountability e ao controle social, supõe-se que prevaleça o segundo, a prejuízo,
posta a incompatibilidade, da dimensão estratégica. Até nesse ponto a pressão do caráter
técnico-orçamentário se apresenta como desafio ao planejamento.
A última consideração de Paulo (2010, p. 182) traz à tona uma questão relevante do viés
economicista e que, sugere-se, pode impactar na efetividade do planejamento governamental,
que diz respeito à preponderância do monitoramento orçamentário em relação ao
monitoramento de resultados, isto é, ao acompanhamento dos gastos ao invés do
acompanhamento do alcance dos programas e políticas. O autor afirma que “a estratégia de
gestão do plano adotada pelo Ministério do Planejamento (...) privilegia o monitoramento da
execução orçamentária das ações em detrimento de uma avaliação do programa como um
todo”. São criadas estruturas internas no governo que se responsabilizam por averiguar o
alcance de metas orçamentárias, enquanto o cumprimento das metas físicas dos programas
não recebe cuidado apropriado. Nesse cenário, a avaliação das ações governamentais se apoia
significativamente em um cálculo racional e econômico.
Essa problemática de enfoque do planejamento lembra o debate eficiência versos efetividade.
Sobre os termos, a eficiência é uma medida que indica os meios de se concretizar uma ação
estatal e afere principalmente a qualidade da relação custo-benefício e da aplicação de
recursos em determinado processo. O cálculo da eficiência é feito, sobretudo, sobre a maneira
mais adequada de executar uma determinada ação de modo a garantir que os recursos
financeiros sejam aplicados da forma mais racional possível (CHIAVENATO, 1994). As
práticas de avaliação e cálculo de eficiência, exaustivamente apropriadas na década de 90 e
nos resquícios da administração gerencial ainda notados, são, muitas vezes, postas como fim
78
em si mesmas e como expressão máxima de resultados do setor público. No entanto, pulam
etapas importantes de averiguação dos impactos delas na transformação da realidade social do
país, missão essa que é dada à avaliação de efetividade. Na problemática apresentada estão
resumidas as limitações da abordagem do monitoramento e da avaliação sob o ponto de vista
da eficiência em detrimento da efetividade, que é a expressão dos resultados dos programas e
políticas. E, assim, fecha-se este item, que buscou iluminar basicamente o viés economicista
como legado do desenvolvimento da economia no passado e a exacerbação da prerrogativa
orçamentária no presente.
Esta seção buscou apresentar as disfunções, limitações e problemáticas de enfoque do
planejamento público nacional, observando legados passados, determinismos da própria
estrutura do planejamento plurianual instituído pela Constituição Federal de 1988 e
desdobramentos desorientados para o desenvolvimento multidimensional, colocando em
evidência as principais críticas na concepção, desenvolvimento e potencial de alcance da
função de planejar do Estado. O próximo capítulo promove uma leve ruptura com a linha de
argumentação da temática de planejamento por discorrer sobre a outra chave teórica do
trabalho: a democracia e a participação social.
79
Capítulo 2. Democracia e participação social no planejamento público
Este capítulo apoia-se no pressuposto de que promover o entendimento sobre as bases da
democracia recente é fundamental para explicar suas conexões com a ressignificação do
planejamento público, especialmente no processo de democratização da administração pública
brasileira. Essa explicação é iniciada a partir da trajetória e das limitações da função
apresentadas em capítulo anterior e ganha corpo na exposição da primeira seção adiante –
Seção 2.1 Participação social como pauta de ressignificação do planejamento público.
A essência deste capítulo está, portanto, na exposição da revisão teórica da democracia e
participação social; e isso é realizado a partir de recortes específicos na literatura. Esses
recortes apresentam, em síntese, descrições sobre o movimento democrático abrangente de
ruptura com modelos dominantes de desenvolvimento pelo mundo (SANTOS e AVRITZER,
2002), o caminho da radicalização democrática (FUNG e COHEN, 2004), algumas
fundamentações das teorias da democracia deliberativa e participativa (WARREN, 2002;
FUNG et al., 2003; HABERMAS, 2003; FUNG e COHEN, 2004; AVRITZER, 2009;
MANSBRIDGE et al, 2010; ALMEIDA e CUNHA, 2011) e o enfoque nas Instituições
Participativas (IPs) (AVRITZER, 2002, 2008 e 2009) e nas prerrogativas dos arranjos
institucionais participativos (FUNG e WRIGHT, 2003). Caminha-se, em seguida, para o
descritivo da adoção da participação no planejamento nacional e em contexto subnacional.
Seção 2.1 Participação social como pauta de
ressignificação do planejamento público
As disfunções, limitações e problemáticas de enfoque do planejamento renderam discussões
críticas relevantes sobre o papel desempenhado pelo Estado na prática de ordenamento das
ações programáticas. Essas críticas agregam à pesquisa a constatação de que existem de fato
limitações da função – estruturantes e fundadas no tradicionalismo da administração pública
brasileira –, que devem ser corrigidas em prol de sua efetividade e legitimidade. Constatando
essas limitações, as críticas abrem caminhos para a reflexão sobre um horizonte de solução
80
possível, ainda que em plano normativo, ao passo que sobre um potencial ganho de
significado do planejamento. Entende-se, dessa maneira, que a apresentação do conceito de
ressignificação do planejamento público não pode se eximir de problematizar questões mais
subjetivas, orientadas para uma discussão finalística do Estado e resolvidas a priori num
plano normativo; “a priori” porque a ressignificação vai tornando-se mais clara conforme a
exposição da teoria democrática e dos modelos analíticos do caso concreto da Bahia.
Compreende-se como primordial subir alguns degraus na análise, rumando a uma visão
holística do papel do Estado, abordando a sua essência na indução do desenvolvimento
nacional – desenvolvimento esse que também tem caráter abrangente e multidimensional – e a
partir da vontade política da abertura dos processos decisórios a uma “nova soberania
democrática” (SANTOS e AVRITZER, 2002).
Como primeira via de análise normativa para a ressignificação do planejamento público
expõe-se a problemática da gestão pública purista, que se refere à centralidade da lógica de
desempenho frente aos desafios de sociedades multidimensionais e tradicionalmente
desiguais. Como já explorado em itens e seções anteriores, a ênfase na gestão pública pode
provocar o esgotamento do planejamento público, ao atribuir mais importância aos meios de
realização das ações governamentais que aos fins. Essa análise é lançada aqui a partir de uma
produção técnica e reflexiva de peso para a América Latina. O Centro Latino Americano de
Administração para o Desenvolvimento (CLAD), por meio do documento “Gestión Pública
Iberoamericana para el siglo XXI” (2010), promove uma reflexão sobre o que o planejamento
deveria tratar em termos de conteúdo estratégico, considerando as muitas peculiaridades da
região, normalmente ignoradas ou escurecidas pela preponderância da lógica do desempenho.
As argumentações dessa produção confluem para a defesa de um planejamento estruturado
em torno de resultados abrangentes que poderiam transformar a realidade social dos países.
Segundo a publicação, a prática da gestão pública contemporânea está contaminada por um
gerencialismo equivocado, que se manifesta de forma mais evidente nos países da América
Latina e que implica em orientar as ações do Estado em função exclusiva de metas de
desempenho (CLAD, 2010). O grande desafio imposto pelo paradigma gerencial às nações é
de definir claramente os resultados que são almejados em processo de planejamento sem
perder de vista em nenhum momento que “o objetivo principal da administração pública
iberoamericana deve ser o de alcançar o desenvolvimento sustentado em suas diversas
facetas: econômica, social, política e ambiental” (CLAD, 2010, p. 14). Nem sempre o
81
desenvolvimento nessas facetas é mensurável em desempenho, menos ainda pelo cálculo
puramente econômico.
A proposição das metas no planejamento, segundo constatações e recomendações do CLAD,
não pode se caracterizar por uma tarefa essencialmente gerencial, como a que requer uma
grande empresa, cuja finalidade é o lucro. Tal proposição precisa compreender uma função do
Estado em perseguir objetivos políticos mais aderentes e complexos. Mesmo que se tratando
de gestão por resultados, segundo essa visão, “o mundo iberoamericano deve se orientar pela
busca do desenvolvimento sustentável em sentido mais amplo, respeitando as particularidades
dos países e regiões” (CLAD, 2010, p. 14). Dessa forma, se foi mesmo copiada uma estratégia
de gestão por resultados, cabe o questionamento contínuo de quais são esses resultados, com
base no reconhecimento de que a lógica de desempenho tem sentido bem relativo.
O sentido que se atribui ao desenvolvimento nacional – econômico, social, político e
ambiental – impõe uma complexidade à função de planejamento governamental, que não pode
se abster do reconhecimento das peculiaridades da região, tampouco do enfrentamento das
perversidades bem características, como os índices de desigualdade social, violência, baixa
sociabilidade política, entre outros aspectos. Esse sentido complexo de planejamento também
deve corresponder às aspirações dos povos em cada momento histórico, respeitando os
múltiplos pleitos dos movimentos sociais e políticos (CLAD, 2010). Se há a comprovação de
uma negligência por parte de planejadores e implementadores em reconhecer esse sentido, é
sinal de que o desejo de mudança é inexpressivo e que a vontade política para promover
transformações estruturais é pequena – lembrando que essa temática no Brasil, tratada no
primeiro item da seção 1.3, põe a culpa pela resistência à mudança nas limitações tradicionais
da administração pública e nas disfunções constitutivas dos planos plurianuais.
Outra análise normativa circunscreve a agenda de desenvolvimento para recuperação e
ressignificação do planejamento; foi apresentada pelo IPEA no final da década de 80. No
contexto da comemoração dos 25 anos do IPEA, em 1989, foram discutidas, em um
importante seminário, a herança autoritária e centralizada do planejamento e a pauta de sua
recuperação, tendo como figura principal o ex-diretor do Instituto de Planejamento (Iplan),
Roberto Cavalcanti de Albuquerque. A partir das discussões no seminário, foi organizada uma
agenda de ressignificação da função que em muito foi interveniente à própria discussão sobre
a redemocratização da administração pública e do país (REZENDE, 2011, p. 187). Essa
agenda de ressignificação do planejamento governamental teve peso simbólico relevante para
82
forçar a prática da conciliação entre planejamento e participação social, assim como foi um
mecanismo orientador do Estado para a nova realidade política e institucional esperada pela
sociedade plural e democrática. A agenda buscava sucesso nas empreitadas de participação da
sociedade no levantamento das prioridades nacionais e no desenho das ações governamentais.
Na leitura de Rezende (2011, p. 200), a agenda proposta por Cavalcanti no final da década de
80 ainda é válida e pode orientar discussões profundas sobre o papel do Estado e as reformas
pendentes da administração pública nacional, posto que, entre outros aspectos, questiona o
estilo de planejamento governamental equiparado a um projeto nacional de desenvolvimento
– assim, questiona os pressupostos no planejamento, não somente sua forma. Sob essa ótica,
“tem posição de destaque a necessidade de um novo estilo de planejamento governamental”,
que deve “ter como referência um projeto de nacional de desenvolvimento, construído
mediante ampla discussão com a sociedade”, portanto, mais perene aos múltiplos interesses e
correspondente a uma “representação dos interesses sociais no processo de formulação e
execução”.
Nesse sentido, o agente formulador atuante no contexto pós-democratização e, sobretudo,
pós-2000 dificilmente abstém-se de considerar a infinidade de interesses e atores sociais
envolvidos com as políticas, programas e ações desempenhadas pelo Estado. As gestões
recentes não podem “ignorar a pluralidade da representação política e a intensa mobilização
que ocorre na sociedade brasileira com vista à promoção e à defesa de seus particulares
interesses”. E essa prerrogativa bottom-up impõe desafios à função de planejamento e à etapa
de formulação do ciclo das políticas públicas (REZENDE, 2011, p. 201), na medida em que
requer uma sistemática de escuta e consideração dos pleitos da sociedade. Tanto é
contemporânea a pauta de recuperação do planejamento pelo IPEA que a função foi de fato
sendo recuperada no cenário da administração pública nacional, ao passo que sua
ressignificação a partir da democratização e da participação social também foi ganhando
centralidade.
No tocante à ressignificação do planejamento a partir da participação social, Rezende (2011,
p. 201-202) argumenta que a escuta à sociedade deve conduzir o planejamento para um
projeto nacional de desenvolvimento exequível, fugindo da produção de um documento
genérico, “com um extenso rol de supostas prioridades que, na realidade, indicam a perda de
foco naquilo que é realmente prioritário, perdendo credibilidade”. O alinhamento com um
projeto de país, sob essa visão, não pode incorporar detalhes de programas e projetos nos
83
planos, mas permitir escolhas básicas que digam respeito ao “estilo de desenvolvimento”.
Como exemplo, o plano pode apontar estrategicamente sua orientação pelo crescimento
econômico, pela redução das desigualdades sociais e regionais, pela sustentabilidade
ambiental etc. Vale lembrar que o modelo defendido por Rezende dialoga favoravelmente
com as limitações já tratadas do planejamento em relação à dimensão estratégica que deveria
assumir enquanto função.
Outra fonte inspiradora para a ressignificação do planejamento aqui tangenciada é o
arcabouço teórico-normativo para a reestruturação do Estado, de Martins (1995). O autor
ilumina a problemática da desconsideração, em período de planejamento e de desenho de
planos de reformas nacionais no Brasil, de aspectos como formação social, cultura política e
desenvolvimento institucional. Argumenta que alguns elementos básicos devem ser
considerados em fase de planejamento e de projeto de reforma das estruturas do Estado e da
administração.
Idealmente, as mudanças necessárias para garantir coerência entre os planos e programas com
as estruturas do Estado e a administração pública somente podem ser desencadeadas quando
resolvidas algumas questões preliminares e interrelacionadas, que refletem sobre o papel do
Estado; o autor propõe uma reflexão para responder à seguinte pergunta: “que tipo de Estado
queremos?”. Entende-se pela expressão que devem ser realizadas discussões a priori do
planejamento sobre qual é o modelo ideal de atuação do Estado, para quê ele existe e para
quem ele existe. A reflexão tem potencial de alterar a condução das políticas e programas e
colocar à prova a atuação do governo, seja em sentido normativo, institucional e jurídico, ou,
por exemplo, em termos do seu compromisso com a justiça social (MARTINS, 1995).
Por fim, a contribuição de Santos (2011, p. 308) sob o aspecto normativo do planejamento se
dá em função do esvaziamento do debate de conteúdo e da primazia da racionalidade
econômica no ato de ordenar as ações governamentais. Segundo ele, antes mesmo de buscar a
concretização do desejo de mudança, é fundamental pensar o planejamento para além de
definições mais simples, baseadas em “conceitos geralmente vinculados às teorias da
administração”, e contextualizar o debate da função “nas relações entre Estado, sociedade
civil e esfera pública; no papel do Estado; nos dilemas entre política e análise de políticas; e
nos assuntos que decorrem destas relações”. Além disso, “quando se pensa em planejamento
governamental, é imperativo associar a esses conceitos o espaço público, com todas as suas
84
características”, considerando os “conceitos básicos de ciência política relativos ao Estado –
poder, legitimidade, conflito, política, hegemonia, ideologia, etc”.
No âmbito do planejamento de conteúdo, o autor convida à reflexão sobre o alcance do
debate, no que diz respeito à profundidade com que são discutidas questões orientadas para o
desenvolvimento, ou seja, o debate de conteúdo, não de forma. Isso não é tarefa fácil,
tampouco é simples imaginar um documento-plano sem conteúdo. Supõe-se por estruturação
que alguns objetivos e metas expressos em plano podem estar vazios de temas de interesse
social, ou de áreas que viabilizam as políticas públicas e os direitos sociais, ou ainda de
assuntos que remetam ao desenvolvimento orientado para grandes transformações estruturais,
como a redução da desigualdade social. Argumenta Santos (2011) que, quando existe a
sufocação do debate de conteúdo e quando o planejamento não consegue dar vazão às
decisões coletivas, é sinal de que a administração não é orientada para cumprir objetivos e
para viabilizar escolhas legítimas, mas sim para imprimir racionalidade econômica às suas
decisões. A noção de legitimidade do ordenamento e da ação governamental, nesse sentido,
estaria vinculada imediatamente ao preenchimento do debate de conteúdo, em que a
diversidade de visões da sociedade seria considerada no esforço de planejamento, ponderando
interesses e gerando cálculos mais subjetivos.
As discussões normativas apresentadas neste item promovem uma aproximação entre os
debates sobre a transformação de sentido do desenvolvimento e a ressignificação do
planejamento em bases democráticas e mais legítimas. Nas próximas seções serão tanto
apresentadas as bases teóricas da democrática, sobretudo nos contornos recentes da
democracia participativa, quanto o processo de adoção da participação social no planejamento
público no Brasil em nível federal e estadual. Na análise do estudo de caso, a aproximação
entre as noções de planejamento ressignificado e participação social deve ficar mais evidente,
posto que avalia, por meio de modelos objetivos, o potencial da participação social como um
novo paradigma agregador de (re)significados à função.
85
Seção 2.2 Caminhos da democracia recente e as
instituições participativas (IPs)
Esta seção tem o objetivo de apresentar um recorte especial na fundamentação teórica da
democracia, com ênfase em suas linhas participativas e deliberativas, como estratégia para
fundamentar os achados da pesquisa subsequentes e estreitar o conceito de ressignificação do
planejamento público. A exposição parte do movimento democrático mundo afora, com sua
pauta de reivindicação de um novo princípio que transforma e reconfigura a relação entre
Estado e sociedade, e chega até o momento em que esse princípio é organizado e fomentado
dentro das institucionalidades do Estado. Os movimentos da sociedade civil, quando
transbordam para institucionalidades estatais, estimulam a operacionalização da democracia
“mais radical” (FUNG e COHEN, 2004) ou “contra-hegemônica” (SANTOS e AVRITZER,
2002). Vale destacar que ao longo do trabalho foram usadas algumas expressões para a
participação social no planejamento, como referente à adoção do “componente participativo”,
ou promoção de “fóruns participativos” ou ainda criação de “espaços e instâncias de
participação”, entre outros. Os desenvolvimentos teóricos apresentados nesta seção não
desconstroem essas expressões, mas acomodam as mesmas na concepção de “instituições
participativas (IPs)”, de Avritzer (2002, 2008 e 2009).
2.2.1 Movimento de resistência à globalização hegemônica e
reinvenção da democracia
Antes de adentrar mais detidamente nas linhas de democracia deliberativa e participativa, é
relevante percorrer a construção do argumento de como a democracia é um princípio que
organiza transversalmente e de forma multidimensional a vida sociopolítica dos países, e
como esse princípio dialoga com movimentos de resistência à globalização hegemônica. Uma
vez entendendo essa globalização como a responsável pela exclusão social, marginalização de
amplos contingentes populacionais e aprofundamento da desigualdade mundo afora, o
despontamento e o fortalecimento de democracia no século XX vieram apresentar um
adversário com alto potencial de embate à força hegemônica. Segundo Boaventura de Souza
Santos (2002, p. 457), a globalização hegemônica vem sendo enfrentada por “resistências,
86
iniciativas de base, inovações comunitárias e movimentos populares que procuram reagir à
exclusão social”, promovendo espaços que, aos poucos, constroem agendas para a
“participação democrática [e] para a edificação da comunidade, para alternativas às formas
dominantes de desenvolvimento e de conhecimento”. Esses novos espaços e oportunidades de
participação democrática são compreendidos como uma frente de globalização contra-
hegemônica.
O formato, os públicos e as temáticas dessa frente opositora são muito diversos, tornando a
manifestação da participação presente em diferentes contextos, sejam eles urbanos ou rurais,
com público comum ou mais vulnerável, entre outras variações. Um dos pontos mais
relevantes possibilitado pelas variações é o debate e produção de conteúdos diversos,
advindos de uma multiplicidade de visões de mundo e sobre temáticas como “direito à terra,
as infraestruturas urbanas, a água potável, os direitos trabalhistas, a igualdade dos sexos, a
autodeterminação, a biodiversidade, o ambiente, a justiça comunitária etc” (SANTOS, 2002,
p. 457). Sobre seu entrosamento com o Estado, também é particular da frente contra-
hegemônica a diversidade de modelos de relacionamento, como “distância total,
complementaridade, confrontação, resistência ativa ou passiva” (Idem, p. 457). Esse processo
de diversificação de formas de embate e resistência, além de aumentar a incidência da
democracia em diferentes contextos e situações, gera mais subsídios para a promoção das
transformações sociais necessárias à correção das perversidades da globalização hegemônica.
Santos (2002) analisou14
empiricamente algumas experiências nacionais e internacionais de
participação democrática em países cujas bases estruturantes são oriundas de regimes
autoritários ou dependentes de forças globais, ou ainda, experiências em lugares sem
tradicionalismo institucional de abertura política e administrativa. Foram constatadas
inovações em arranjos de participação ainda que sob um sistema de democracia
institucionalizada para a representação política. Isto é, práticas participativas
institucionalizadas e não institucionalizadas coexistem a esses sistemas de representação e
tencionam a ressignificação da democracia, demonstrando uma via democrática em
permanente construção. Tais inovações vão obrigando os Estados nacionais a curvar-se para
uma nova e importante identidade relacional, antagônica àquela imposta por regimes
autoritários e coloniais que a população ora esteve sujeita.
14
Sob o título “Democratizar a democracia – os caminhos da democracia participativa” (2002).
87
Santos e Avritzer (2002) complementam a discussão sobre a globalização adicionando à
temática a vinculação ou subordinação da democracia representativa ao poder hegemônico
global, que faz com que a democracia tenha uma concepção mais enxuta e seja
convenientemente reduzida às intenções das estruturas políticas e econômicas dominantes, no
âmbito de uma proposta neoliberal. Sob essa perspectiva, a democracia representativa serviria
de instrumento para viabilizar a manutenção do poder decisório nas mãos das forças
predominantes e seria restritiva para a noção de política e de conteúdo de política, operando
com a redução de “terrenos, sujeitos e temas” que são elementos constitutivos da própria
política. Sendo assim, como um enfrentamento à globalização hegemônica e à democracia
liberal, o “projeto político-participativo” vincula-se com a noção de política e ganha corpo
com a promoção de novas e inovadoras práticas políticas, assim como com o agendamento de
novas temáticas de conteúdo (DAGNINO et al, 2006 apud SANTOS e AVRITZER, 2002).
Os autores introduzem, a partir dessas explanações, a ideia de “reinvenção da democracia
participativa”, cujo mote de desenvolvimento é o ativismo pleno dos movimentos de base.
Compreendem que o processo de democratização – democratização como um processo de
reinvenção da própria democracia, que busca ascendê-la da representação para a deliberação/
participação – deve valer-se de “combates políticos cotidianos”, realizados na esfera da
sociedade civil. A transformação assim desenvolvida não só é desejável como faz a
democracia reinventada tornar-se “uma forma de organização e uma prática política
necessária” (SANTOS e AVRITZER, 2002, p. 110). A reinvenção da democracia sob a égide
da participação social, e como uma política continuada de reestruturação de relações entre
Estado e sociedade, tende a promover um processo enriquecedor de redescoberta das
chamadas “práticas societárias” dos países analisados.
Por meio de uma afirmação das práticas societárias e do aprofundamento democrático,
indivíduos à margem do progresso encampado pelas forças hegemônicas poderiam ser
ouvidos e considerados na edificação da comunidade, nas formas de desenvolvimento
econômico, no projeto de país, entre outros aspectos. Santos e Avritzer (2003, p. 54)
argumentam sobre isso que a democracia se constitui como “um projeto de inclusão social e
de inovação cultural que se coloca como tentativa de instituição de uma nova soberania
democrática”.
O Brasil acompanhou esse projeto e em poucas décadas passou de um regime autoritário, em
que cidadãos não participavam sequer de organizações coletivas independentes e voluntárias,
88
para um modelo bem mais aproximado de soberania democrática, com muito mais poder de
enfrentamento às forças dominantes e diversificadas frentes de organização, civil e política.
Isso ocorreu em paralelo às institucionalidades deliberativas e participativas criadas pelo
Estado, sendo abertas oportunidades para “novas reivindicações por direitos e serviços
urbanos e para a redistribuição do poder entre as autoridades centrais e locais” (AVRITZER,
2009, p. 1 – tradução nossa). Assim, tanto no quesito de preenchimento de conteúdo político
nos processos decisórios quanto nas prerrogativas de reinvenção da democracia, as formas de
aprofundamento democrático conectam-se com novas intencionalidades de estruturas e
funções governamentais, entre elas para a transformação do planejamento público.
2.2.2 Da representação à radicalização democrática
Existe outra interpretação na literatura, mais comum, que se relaciona à premissa de
alargamento da democracia representativa – democracia essa fundada no âmbito de uma
concepção elitista – para o processo de “radicalização democrática” (FUNG e COHEN,
2004), que seria viabilizada pela deliberação e participação enquanto conceitos, valores e
instrumentos organizadores de uma nova relação entre Estado e sociedade.
A formatação teórica do elitismo foi dada por pensadores da democracia como Schumpeter
(1942 apud SANTOS e AVRITZER, 2002), sob uma concepção mais conservadora e
restritiva de participação e inclusão política, sendo operacionalizado por meio de arranjos
institucionais endereçados à representação. Santos e Avritzer (2002) compreendem o elitismo
como uma “concepção hegemônica da democracia”, que conformou, sobretudo pelo
desdobramento via representação, o modelo mais influente e recorrente de democracia no
século XX em muitas, a maioria, das nações.
A concepção hegemônica é baseada em alguns pressupostos básicos, defendidos pelos
teóricos da democracia conservadora e restritiva, que são eles: a valorização positiva da apatia
política, situação em que há o reconhecimento conformado de que os cidadãos não se
envolvem devidamente com questões políticas; a falta de capacidade ou interesse político do
cidadão comum em agir politicamente, levando-os a somente escolher líderes políticos para
representá-los e tomar decisões de forma autorizada e delegada; o enfoque do debate
democrático se dá mais em questões de formato do que de conteúdo, isto é, mais nos termos
89
dos contornos eleitorais do que na qualidade das decisões tomadas pelos representantes; a
compreensão do pluralismo como forma de incorporação partidária e disputa entre as elites; e
uma solução bem minimalista ao problema da participação, devido aos entendimentos
anteriores (SANTOS e AVRITZER, 2002).
Esses pressupostos são complementados por três questões estruturantes da noção de
representação política, segundo Santos e Avritzer (2002). A primeira delas constata uma
relação entre procedimento e forma, em que a democracia ascende em diversos países como
uma forma de governo, como um meio de organizar as ações governamentais e a vida
sociopolítica para um contexto de capitalismo, e não como uma substância ativa de
organização da sociedade, que teria o potencial de transformar de fato estruturas de poder e
instaurar práticas redistributivas mais justas. Essa primeira questão corresponde às imposições
do modelo de globalização hegemônica problematizadas em item anterior.
A segunda questão tangencia o papel da burocracia na vida democrática. Nesse aspecto,
enquanto as missões impostas pelo contexto ao governo ganham complexidade, naturalmente
as estruturas governamentais devem ser aprimoradas, o que demanda uma organização
burocrática intangível do ponto de vista do controle direto pelos cidadãos comuns (SANTOS
e AVRITZER, 2002). A representação, nesse sentido, desobrigaria os cidadãos a
compreenderem a complexidade de normas, procedimentos e regras que regem a
administração pública. Isso parece positivo, se não fosse prejudicial à inclusão política e se
não impusesse restrições à legitimidade das ações governamentais.
Acerca da burocracia, é importante notar que se fundiu ao modelo de democracia hegemônica,
e essa combinação promove a equação dominante no século XX, de “democracia
representativa combinada com a administração tecno-burocrática”. Também contribuem
Fung e Wright (2003, p. 3 – tradução nossa) para a explicação da conveniência da burocracia:
“como as tarefas do Estado e das grandes organizações políticas tornaram-se mais complexas
e mais heterogêneas, as formas institucionais da democracia liberal”, que foram
impulsionadas ainda no século XIX, “parecem cada vez mais inadequadas para os novos
problemas que enfrentamos no século XXI”. A complexidade das demandas, portanto, gera
um efeito dúbio e de difícil solução: ao mesmo tempo em que pressiona uma organização
burocrática mais robusta e um quadro técnico bem selecionado, essa mesma organização
inviabiliza a participação política do cidadão comum. Responder às demandas da sociedade
90
requer, vão defender os teóricos da democracia participativa, um ajuste que faça perenizar as
estruturas públicas de vozes dos cidadãos.
Por fim, a terceira questão estruturante que fomenta a defesa da democracia representativa
recorre a um fator compreendido como inevitável: em países cujos contingentes populacionais
são significativos, é impossível que todos os cidadãos exerçam poderes políticos diretamente;
portanto, é necessário um modelo de representação que atenda a grande escala e que permita
um tráfego de interesses dos níveis locais para os mais centrais ou dentro de uma temática
específica. Nos modelos mais originais de democracia clássica, os cidadãos exerciam seus
poderes políticos de forma aberta e direta, mas esse modelo é impensável nas realidades
modernas. Sendo assim, quanto maior a unidade democrática – a grande maioria dos países
democráticos tem contingentes populacionais significativos –, mais necessária se faz a
estrutura de delegação de decisões para representantes (SANTOS e AVRITZER, 2002).
Com esses pressupostos apresentados, utiliza-se a interpretação de Cohen e Fung (2004) sobre
o que chamam de democracia convencional (conventional democracies) para apresentar a
definição de democracia representativa. A democracia representativa é um sistema de
representação competitiva que assegura aos cidadãos os direitos políticos – esses direitos
podem ser resumidos como o direito de votar e ser votado, garantido o sufrágio universal. O
exercício do voto é promovido por eventos de eleições regulares, organizadas por partidos
políticos competidores, que partem de campanha política pela disputa do voto dos cidadãos. A
partir da concorrência eleitoral, os representantes com mais voto ganham o controle do
governo e das ações governamentais por um tempo determinado pelas regras da democracia
de cada país - “o que garante aos candidatos vencedores a autoridade para formular políticas
públicas por meio de legislação e do controle de administração” (COHEN e FUNG, 2004, p.
23 – tradução nossa). Sob esse modelo, o controle das ações do governo se organiza dentro da
estrutura administrativa e na burocracia estatal, e os cidadãos avaliam os políticos de forma
mais significativa somente em nova oportunidade de voto, de modo a encerrar ou validar o
compromisso público daquele representante. Entre os resultados negativos está o fato de os
representantes eleitos agirem com distinta discricionariedade no interstício das eleições.
Os adeptos das teorias de radicalização democrática vão de encontro a muitos dos
pressupostos e formas de organização da democracia representativa. Cohen e Fung (2004)
argumentam acerca das limitações da representação em três perspectivas: responsabilidade,
igualdade e autonomia. A primeira remete às limitações de controle, defendendo que a
91
representação se conforma como um instrumento de baixíssimo alcance do ponto de vista do
accountability democrático, já que mantém relações de assimetria de informação entre
cidadãos e burocratas ou eleitos ao delegar completamente as decisões e afastar-se da
substância política contida nessas decisões. A segunda perspectiva remonta à questão da
igualdade, e pode ser interveniente à discussão sobre globalização hegemônica, no sentido de
que a representação pode servir à manutenção dos status sociais e de poder. Nesse caso, as
desigualdades sociais e econômicas, imersas em um sistema de representação competitiva,
fomentam oportunidades para o exercício arbitrário de influência política e de manutenção de
poder de determinados grupos sociais. A última perspectiva, por sua vez, resgata o tema da
soberania democrática e apresenta as limitações em termos de autonomia, argumentando que
o sistema de representação não subordina os cidadãos a regras criadas por eles mesmos,
tampouco necessariamente os beneficia de políticas desejadas por eles. Esse sistema
subordina os cidadãos a um conjunto estreito e desigual de interesses representados.
No intento de aprofundamento da democracia representativa para a democracia deliberativa e
participativa – sem substituir a primeira, destaca-se –, houve o reconhecimento dessas e outras
limitações. De acordo com Fung e Wright (2003), ascenderam os mecanismos de avaliação,
conceitual e empírica, dos sistemas de participação pelo mundo, e com eles ganharam
evidência as falhas graves do sistema de representação política. Colocando em cheque a
essência da democracia, a representação demonstrou sua inefetividade em promover e
alcançar os objetivos e ideais centrais do próprio sistema; esses seriam manifestados da
seguinte forma:
facilitando a participação política ativa dos cidadãos, formando um
consenso político por meio do diálogo, elaborando e implementando
políticas públicas que fundamentam uma economia produtiva e uma
sociedade saudável e, em versões igualitárias mais radicais do ideal
democrático, garantindo que todos os cidadãos se beneficiem da riqueza
da nação (FUNG e WRIGHT, 2003, p. 3 – tradução nossa).
As falhas e limitações da democracia representativa conduziram processos de revisão da
gramática social nas sociedades contemporâneas, tencionando uma disputa pelo significado da
democracia. Esse movimento, que teve grande protagonismo da sociedade civil e, em seguida,
mais disposição dos governos na abertura da escuta social e de novas formas de
relacionamento, inaugurou linhas de democracia “mais radical” (FUNG e COHEN, 2004) ou
“contra-hegemônica” (SANTOS e AVRITZER, 2002).
92
Sob a primeira perspectiva, a radicalização se concebe como promessa para dar um novo
sentido à democracia por meio da transformação tanto da “esfera pública informal” quanto do
sistema competitivo de representação, ambos valendo-se de conexões com novos arranjos
deliberativos e participativos para resolução de conflitos e problemas. De acordo com Cohen
e Fung (2004), esses novos arranjos têm potencial de identificar e solucionar problemas
empíricos coletivamente, sobretudo porque ajusta a solução às circunstâncias locais. Além
disso, os democratas radicais apoiam-se no potencial de aprimoramento da igualdade política,
primeiro porque a democracia radical pode relativizar a assimetria de poder em razão da
produção coletiva de melhores argumentos (deliberação), e segundo porque também relativiza
o determinismo da riqueza dos atores na produção de escolhas coletivas, transformando a
arena de discussão (participação) “do dinheiro organizado para pessoas organizadas”, ou seja,
gerando oportunidades de influência política não somente àqueles que detém o poder
financeiro, mas à sociedade civil organizada (COHEN e FUNG, 2004, p. 25 – tradução
nossa).
A concepção contra-hegemônica da democracia, cuja essência se dá nas propostas
deliberativas e participativas, segue a mesma linha e compreende o movimento de disputa por
novo significado da democracia a partir da revisão da gramática de organização da sociedade
e, consequentemente, da relação entre o Estado e a sociedade. Santos e Avritzer (2002)
argumentam à luz de Habermas (1984, 1995) que é provável, ao examinar as correntes da
democracia hegemônica e contra-hegemônica – portanto, representativa e deliberativa-
participativa –, que elas tenham origem nas mesmas preocupações, quais sejam, de organizar
a vida sociopolítica a partir de múltiplos interesses da sociedade. Porém, a resposta que é dada
pela segunda promove um olhar diferente para essa diversidade de interesses, apoiando-se em
um reconhecimento da pluralidade humana. Nesse sentido, as democracias deliberativa e
participativa vêm reconhecer “concepções substantivas da razão e [que existem] formas
homogeneizadoras de organização da sociedade”, ao passo que as democracias elitista e
representativa justamente negam essas premissas.
93
2.2.3 O papel da sociedade civil na democratização do Estado
É possível atribuir ao empoderamento da organização da sociedade civil, no tocante ao seu
papel na democratização do Estado, duas dimensões teóricas15
associadas e complementares.
Uma dimensão mais subjetiva e complexa, interveniente ao significado mais normativo da
democracia, que se molda a partir de um processo de reconhecimento do potencial combativo
da sociedade civil ao avanço das estruturas econômicas e burocráticas que organizam a
democracia convencional. E uma outra dimensão mais empírica, constatada a partir das
transformações em curso nas sociedades modernas, que dizem respeito à criação de
institucionalidades estatais de participação deliberativa. A sociedade civil, nessa segunda
dimensão, se conforma como uma força que pressiona o Estado a criar espaços, oportunidades
e instituições formais de deliberação e participação social com o objetivo de organizar
relações que superam a subordinação dos cidadãos comuns, característica da democracia
representativa, em direção a relações de interdependência entre Estado e sociedade.
Apoiada na revisão da teoria habermasiana, a primeira dimensão do papel da sociedade civil
na democratização do Estado parte de uma tensão entre as estruturas sistêmicas e o chamado
“mundo da vida” (HABERMAS, 1984). Cohen e Arato (1992 apud AVRITZER, 2012)
definem a compreensão dada a essas estruturas sistêmicas da seguinte forma: elas são tanto os
“mecanismos que coordenam a ação na economia (dinheiro)” quanto as “organizações
formalmente organizadas e burocraticamente estruturadas (poder)” (COHEN e ARATO,
1992, p. 429 apud AVRITZER, 2012, p. 384). Sendo assim, as estruturas sistêmicas são
compreendidas como estruturas bem demarcadas de dinheiro e poder, respectivamente, no
mercado ou dentro da burocracia estatal. De outro lado, entende-se por “mundo da vida” o
espaço designado à atuação da sociedade, “entendido como um lugar de socialização,
interação social e atividades públicas”, que, portanto, empodera a sociedade civil do lado de
fora das estruturas estatais e do mercado. A partir dessas distinções conforma-se uma das
definições possíveis sobre sociedade civil, que é: tudo aquilo que se diferencia das estruturas
sistêmicas e toda forma de organização que não está embutida nas relações econômicas e de
poder (COHEN e ARATO, 1992 apud AVRITZER, 2012, p. 384).
15
Concomitantemente ao desenvolvimento e incremento da própria teoria da democracia, em suas linhas mais
radicais ou contra-hegemônicas, também surgiu a teoria da sociedade civil, em meados dos anos 90, que buscou
dar os contornos teóricos do despontamento de interdependência entre Estado e sociedade, analisando
motivações e desdobramentos da organização de grupos sociais na ressignificação da democracia.
94
De acordo com essa dimensão teórica, existe uma tensão entre as estruturas sistêmicas e o
mundo da vida que tem como produto a constituição de ambientes democráticos. Os grupos
sociais organizados surgem e vão se fortalecendo segundo uma proposta de “demarcação da
especificidade do mundo da vida frente ao avanço das estruturas econômicas e administrativas
(essas últimas burocráticas, próprias da lógica estratégica do poder, relativa ao Estado)”,
constituindo-se como esferas autônomas societais não mais subordinadas às estruturas de
poder predominantes. Esse fortalecimento implicaria, assim, na dita tensão entre as estruturas
sistêmicas e o mundo da vida e no aprofundamento dos processos de democratização,
inclusive despertando novos significados, ainda que normativos, à própria democracia
(ROMÃO e MARTELLI, 2013, p. 128). Sobre isso, destacam Brasil e Carneiro (2011, p. 73 –
tradução nossa) que houve, com as práticas contemporâneas de democracia participativa e
deliberativa, “a retomada de ideais substantivos e horizontes normativos da democracia
relacionados com a construção do bem comum e do princípio da soberania popular”, muito
derivada do protagonismo dos movimentos sociais e da sociedade civil organizada.
Alguns potenciais normativos de empoderamento da sociedade civil são apresentados por
Warren (2002) e Santos e Avritzer (2002). No primeiro caso, o autor argumenta que a
democratização da sociedade é um processo que corrobora para a democratização do Estado
(democratizing society democratizes the state), gerando oportunidades de inclusão política e
accountability estatal. Nesse sentido, a sociedade civil e os movimentos sociais carregariam
genuinamente ingredientes de democracia que produzem, ou deveriam produzir, muitas
oportunidades de participação democrática. Em uma perspectiva ideal, as associações da
sociedade civil devidamente empoderadas poderiam controlar o poder econômico e pautar a
responsabilização do Estado.
Na mesma linha, Santos e Avritzer (2002, p. 15-16) focam no entendimento de que a
inovação institucional, que cria uma nova institucionalidade da democracia, é articulada à
inovação social. Assim, as mudanças provocadas na democratização do Estado não seriam
fruto simplesmente de um desenho institucional. Eles afirmam que “a democracia não
constitui um mero acidente ou uma simples obra de engenharia institucional”, mas sim uma
nova gramática histórica entre Estado e sociedade construída como mérito dos movimentos e
grupos sociais organizados. Apreende-se dessas exposições que o nível de empoderamento da
sociedade civil – e de inovação social – de uma determinada sociedade pode corroborar no
aprofundamento da democracia e na democratização das funções do Estado.
95
A segunda dimensão teórica associada ao empoderamento da sociedade civil possui, como
dito, um viés mais empírico, consolidando um entendimento sobre a democracia deliberativa
e participativa à luz das experiências ao redor do mundo. A aproximação da democracia
convencional com o princípio da soberania popular, protagonizado pela organização da
sociedade, corroborou para a “radicalização” da democracia, sendo recorrentemente traduzida
na prática em esforços das nações em estabelecer fluxos de coordenação e expansão dos
mecanismos de inclusão política. Destacam-se, nesse processo, as apostas dos “atores da
sociedade civil para as possibilidades de construção de novas e mais democráticas gramáticas
de relacionamento entre Estado e sociedade, especialmente por meio da criação de instituições
participativas”, entre elas conselhos, conferências, orçamentos participativos (OPs), arranjos
de participação na construção de planos diretores, entre outros fóruns e mecanismos (BRASIL
e CARNEIRO, 2011, p. 73 – tradução nossa). Esses são exemplos da dimensão empírica do
empoderamento da sociedade civil.
No caso brasileiro, as possibilidades de empoderamento foram significativamente motivadas
pela construção de uma relação de interdependência com o Estado e pelo aprofundamento
democrático em si, ocorrido em seguida a uma crise de legitimidade da administração pública
e frente ao esgotamento do modelo autoritário da Ditadura Militar (DAGNINO et al., 2006
apud AVRITZER, 2012). O empoderamento da sociedade civil brasileira foi despertado por
dois tipos de processo, segundo Avritzer (2012, p. 394), primeiro pela “reação dos setores
populares ao processo antidemocrático de modernização do país que interferiu intensamente
na sua vida cotidiana”, e segundo pelo “processo de democratização do país que fez das
associações civis atores importantes no processo de aprofundamento democrático”.
As preocupações que moviam a ação da sociedade civil brasileira no início da década de 80
eram relacionadas às pautas reivindicatórias de autonomia, democratização do Estado e das
políticas públicas e abertura de formas de controle social, em oposição à discricionariedade do
Estado – processo semelhante às demais funções do Estado, como narrado em capítulo sobre
planejamento. As pautas eram muito naturais de um processo transitório da Ditadura Militar
para um período de retomada da democracia, e ainda de seu aprofundamento. Vale destacar a
esse respeito o comportamento da sociedade civil no contexto da Assembleia Nacional
Constituinte, situação em que despertaram diversos e significativos atores sociais nas áreas
das políticas públicas, como saúde e reforma urbana, e no bojo de movimentos como a
Central Única de Trabalhadores (CUT) e o Movimento de Trabalhadores Sem Terra (MST).
Houve, nesse contexto, a ascensão dos movimentos sociais em quantidade, relevância e poder
96
de embate aos resquícios ainda muito determinantes das forças tradicionais da Ditadura
Militar e períodos anteriores. Avritzer afirma que o contexto da Constituinte foi fértil para o
“aprofundamento democrático que criou instituições participativas nas áreas de saúde,
planejamento urbano, meio ambiente e assistência social” (AVRITZER, 2012, p. 390).
Esses relatos empíricos sugerem que existiu uma distância segura entre o espaço designado ao
mundo da vida e as estruturas financeiras e de poder da burocracia estatal, à época da
Constituinte, que foi muito importante para a afirmação do papel da sociedade civil e para o
aprofundamento da democracia em um contexto em que era fundamental transformar, via
autonomia dos movimentos, a gramática de relacionamento entre Estado e sociedade. Com o
tempo, foi-se constituindo espaços institucionalizados designados à participação da sociedade
que nem por isso desconstruíram a autonomia e o papel de enfrentamento dos grupos sociais.
Sobre isso, vale destacar que este trabalho assume desde o início como foco de análise o
espaço ocupado pelas institucionalidades estatais na abertura à escuta e às influências na
tomada de decisão – e por isso investiga-se o planejamento público participativo –, mas não
deixa de analisar a condução da sociedade civil no processo de ressignificação da função de
planejar. Na estruturação do modelo de análise, em especial no indicador de extensão de
autoridade e poder de agenda organizado por Fung (2006), e nos resultados da pesquisa, são
detalhadas variações de engajamento, conhecimento, partilha de poder e influência no
processo decisório pelos grupos sociais.
2.2.4 Democracias participativa e deliberativa
No campo da teoria democrática, notadamente a partir de meados do século XX, o modelo
elitista de democracia – fundado estritamente na representação eleitoral – passa a ser
fortemente questionado, tendo em vista a qualidade da democracia. Com compromissos de
radicalizar a democracia por meio de formas ampliadas de participação, moldam-se
concepções de democracia participativa e deliberativa (SANTOS e AVRITZER, 2002). Nessa
linha, os desenvolvimentos teóricos contemporâneos, como reivindicam Cohen e Fung
(2004), apontam para o aprofundamento da democracia representativa nas dimensões de
participação-deliberativa. Parece razoável citar de antemão que o planejamento participativo,
adotado como foco de análise da pesquisa, carrega elementos relevantes de ambas as
97
dimensões da democracia, e por isso esse item trata das mesmas com relativa fluidez e sem a
intenção de esgotar as diferentes concepções de deliberação e participação.
A democracia deliberativa pode ser compreendida como um processo decisório permeado
pela vocalização de interesses daqueles cidadãos interessados ou diretamente afetados pelas
políticas que estão sendo concebidas, carregando uma dimensão comunicativa forte. A
definição de deliberação pode ser resumida como uma “comunicação que induz a reflexão
acerca de preferências, valores e interesses de uma forma não-coercitiva” (DRYZEK, 2000, p.
76 apud MANSBRIDGE et al, 2010, p. 65 – tradução nossa). A deliberação pressupõe, assim,
que os atores sejam envolvidos nos processos participativos em modelos indutivos de
produção de preferências, reconhecendo-se entre si enquanto pares de uma reflexão coletiva
para o desenvolvimento de interesses comuns. Por essas razões, em consonância com a teoria
habermasiana, não devem ser exercidos nos processos decisórios deliberativos o poder
coercitivo ora garantido pelas estruturas tradicionais (sistêmicas).
Existem algumas convergências em torno da democracia deliberativa que podem ser
resgatadas como as bases formadoras da teoria. Entre os mais relevantes está o fato de a
deliberação, idealmente, garantir que sejam abertos os processos decisórios aos cidadãos mais
afetados pelas decisões. Sob essa perspectiva, somente haveria legitimidade das decisões
políticas quando garantidos procedimentos que permitem e estimulam a participação daqueles
atores sociais impactados de forma mais significativa por essas decisões (HABERMAS, 2003;
MANSBRIDGE et al, 2010; ALMEIDA e CUNHA, 2011). E isso denota que deliberação e
legitimidade das decisões caminham juntas rumo ao aprimoramento de democracia.
Além disso, os participantes “devem ter igualdade de oportunidades de influenciar o processo,
assim como os mesmos recursos, e serem protegidos por direitos básicos” (MANSBRIDGE et
al, 2010, p. 65 – tradução nossa). Para isso, faz-se necessária, entre outros procedimentos, a
institucionalização de fóruns deliberativos “plurais e inclusivos, destacados do sistema
político, mas que com ele estabeleçam algum nível de interação”; ainda, que tenham
“capacidade de produzir decisões legítimas acerca de ações públicas, aproximando cidadãos e
responsáveis pelas políticas públicas” (ALMEIDA e CUNHA, 2011, p. 110).
De acordo com Mansbridge (et al, 2010), existem variadas formas de deliberação, como a
deliberação clássica, mais ideal, que valoriza a produção do consenso, e a deliberação
98
negociativa. Os autores reivindicam no texto16
essa dimensão de negociação nos espaços
deliberativos, contrariando em parte a teoria habermasiana, ensejando que a deliberação traga
a tona não uma apenas uma dimensão consensual, mas a ideia de conflito; conflito esse que
pode ser fundamental para o “reconhecimento e celebração do próprio ideal da diversidade
dos seres humanos, livres e iguais” (Idem, p. 69 – tradução nossa). Sugerem, principalmente,
que os espaços de deliberação permitam aos participantes descobrir e formar os interesses
comuns por meio de uma dimensão negociativa. Nesse sentido, enquanto os autores
reivindicam uma maior importância para a busca de um senso comum mais “genuíno” entre
os participantes, eles também argumentam que a “deliberação pode e deve, em certas
condições, incluir ambos o auto-interesse e a negociação de interesses conflitantes”. E
complementam apresentando os principais ingredientes para as negociações deliberativas,
quais sejam: “convergência, acordos teorizados incompletos, negociação integrativa e
negociação cooperativa” (MANSBRIDGE et al, 2010, p. 94 – tradução nossa).
No âmbito da “democracia radical”, Cohen e Fung (2004) fazem uma leitura diferente, mas
que converge em partes com as reivindicações dos teóricos da deliberação negociativa. Eles
argumentam que não pairava as intenções dos democratas deliberativos mais clássicos
erradicar do processo decisório os interesses pessoais e de grupos enquanto forças políticas,
mas que isso fosse promovido com responsabilidades, assegurando que o “argumento político
e a defesa de interesses fossem embasados por considerações como justiça, igualdade e
vantagem comum” (COHEN e FUNG, 2004, p. 26 – tradução nossa). Ainda que com uma
ênfase clara na dimensão comunicativa, na exposição de razões e posicionamentos as forças
políticas de “interesse próprio e interesse do grupo” deveriam ser pautadas seriamente por
esses valores. Assim, em uma perspectiva ideal, nos processos argumentativos até mesmo os
cidadãos que “perderam” as discussões para outros atores veriam vantagens nas decisões
tomadas coletivamente, por estarem convencidos de que estão apoiadas em boas razões
(COHEN e FUNG, 2004).
No campo da teoria participativa, parte da literatura compreende a participação “como um
conceito sociológico relativo à intenção do sujeito a participar” (MELUCCI, 1996 apud
AVRITZER, 2009, p. 4 – tradução nossa), defendendo uma prerrogativa de disposição da
sociedade pela participação; enquanto outros autores (BACHRACH e BARATZ, 1962, 1975;
PATEMAN, 1970 apud AVRITZER, 2009) compreendem a participação como um conceito
16
Texto “The place of self-interest and the role of power in deliberative democracy” – em português “O lugar do
interesse próprio e o papel do poder na democracia deliberativa” - Mansbridge (et al, 2010).
99
político que envolve a organização de uma determinada política tendo aquela como base
estruturante. A segunda perspectiva dialoga significativamente com o objeto deste trabalho,
na medida em que reconhece que a participação passa de um mero componente de uma
política para um princípio que organiza transversalmente as funções da administração
públicas, entre elas o planejamento, tornando a abertura à sociedade um elemento essencial da
formulação de políticas públicas.
À democracia mais radical são atribuídas muitas promessas, que vislumbram um cenário de
alcance abrangente de qualidade democrática, de consistência à formulação de políticas
públicas e de legitimidade das escolhas públicas. Pode ser compreendida como um processo
de construção coletiva que, por si só, incrementa as capacidades dos cidadãos e atores
coletivos em transformar a realidade e os promove a atores protagonistas das mudanças
sociais, especialmente em realidades marcadas pela pobreza e exclusão. Ao questionar-se
sobre o alcance da democracia participativa, Warren (2002, p. 693-694 – tradução nossa)
afirma que “igualdade democrática é igualdade complexa”, sugerindo que a participação será
tão inclusiva e democrática conforme os indivíduos afetados por uma decisão tiverem a
mesma oportunidade de afetar essa decisão. Para isso, na visão do autor, a participação deve
ser “embasada, segmentada por setor, distribuída entre diferentes de locais, e com diferentes
significados e impactos em diferentes locais”. Ainda, segundo ele, esses requisitos
demandariam um arranjo participativo de alta complexidade – inclusão complexa (complex
equality).
Na mesma linha, a autora Mansbridge (et al, 2010, p. 84 – tradução nossa) disserta sobre o
alcance da democracia afirmando que ela requer uma institucionalidade e uma normativa
própria, funcional e complexa, a fim de garantir legitimidade e a efetividade empírica das
decisões tomadas. Os autores partem do entendimento de que a democracia “é uma forma
prática de tomada de decisão que deriva (...) a sua legitimidade sociológica do grau em que
ela funciona na prática” e de que somente há uma legitimidade normativa quando essa prática
se aproxima dos seus ideais democráticos. Sendo assim, em um contexto em que nem sempre
há situações de interesse comum ou de acordos consensuais, mas também conflitos e
negociações, seria necessário emplacar ideais normativos capazes de “alcançar a legitimidade
sociológica significativa”, aumentando, consequentemente, a complexidade da estrutura
participativa do processo decisório.
100
As assertivas teóricas de Warren (2002) e Mansbridge (et al, 2010) convergem no sentido da
complexidade de arranjos de participação demandada pelo aprofundamento da democracia. A
democracia participativa e a participação nascem e conectam-se genuinamente a elementos e
ambientes institucionais, impondo requisitos estruturais, organizativos, metodológicos e
normativos à prática democrática. Assim, além da dimensão do diálogo e da comunicação,
típicas da deliberação, o conceito de participação vincula-se à ação estatal de formulação de
políticas públicas, em que as discussões podem ocorrer dentro das estruturas do governo. Por
isso, a democratização recorrentemente se alia à (re)criação de instituições específicas, que
deem conta da complexidade e requisitos exigidos (AVRITZER, 2009).
A ideia de democracia participativa aliada às instituições especialmente (re)criadas para o fim
da participação acarreta em um processo de transformação das estruturas de governo em todo
o mundo. Fedozzi e Martins (2012) apoiam-se no contexto de disseminação da chamada
cidadania ativa para explicar as múltiplas e diversificadas rupturas político-administrativas
voltadas a implantar uma “esfera pública de co-gestão”, ainda em curso diversos países.
Segundo eles, a complexidade e os requisitos exigidos para a efetivação da democracia
participativa tal como concebida originalmente provocaram essas rupturas político-
administrativas, despertando a nova gramática de abertura da co-gestão – Estado e sociedade
gerindo sem hierarquias e subordinações as decisões governamentais. Embora essa visão
dialogue com o processo de institucionalização de uma nova relação entre Estado e sociedade,
os autores centram as análises nas rupturas também provocadas na forma de ação coletiva e
em como as transformações institucionais das democracias radicais provocam a
reconfiguração dos atores da sociedade civil (FEDOZZI e MARTINS, 2012).
Santos e Avritzer (2002), por sua vez, tratam das transformações pelo mundo não como uma
ruptura político-administrativa, simplesmente, mas de uma nova ordem mundial, em que até
mesmo o significado da democracia é reivindicado por diferentes correntes teóricas. Os
autores pesquisam alguns países - Moçambique, Colômbia, África do Sul, Índia, Brasil e
Portugal – para analisar o surgimento da democracia participativa e os processos de transição
ocorridos em diferentes contextos. Seus achados apontam que existem modelos de
coexistência e complementaridade à democracia representativa, o que sugere que as
democracias deliberativa e participativa não despontam no cenário mundial como uma ruptura
plena à democracia representativa, tampouco como substitutas.
101
No caso da coexistência, os autores compreendem que existe a convivência entre as formas de
democracia, em diferentes “procedimentalismos”, organizações administrativas e desenhos
institucionais, normalmente estruturadas como representativas em nível nacional e
participativa em nível local. Vale destacar que, em nível nacional, a representação se
manifesta de modo a respeitar o “domínio exclusivo a nível da constituição de governos; a
aceitação da forma vertical burocrática como forma exclusiva da administração pública”. Por
sua vez, a complementaridade é menos óbvia e mais complexa, e expressa um
aprofundamento da integração entre democracia representativa e participativa. Nesse caso,
existe uma disposição do governo em operacionalizar o controle social, os processos
deliberativos e o monitoramento público das ações do governo. O objetivo da
complementaridade “é associar, ao processo de fortalecimento da democracia local, formas de
renovação cultural associadas a uma nova institucionalidade política que recoloca na pauta
democrática as questões da pluralidade cultural e da necessidade da inclusão social”. De
acordo com os autores, o Brasil vem aprimorando o desenvolvimento de ambas as formas via
arranjos participativos mais consistentes, contando com a “articulação entre argumentação
(deliberação) e a justiça distributiva” e permeando o sistema representativo de “propostas de
reconhecimento cultural e de inclusão social” (SANTOS e AVRITZER, 2002, p. 47-48).
Para fechar essa exposição, discorre-se sobre algumas limitações das democracias mais
radicais. Segundo Warren (2002, p. 688 – tradução nossa), essas limitações são esperadas nas
democracias de sociedades liberais e com amplo contingente populacional, permanecendo
restritas as oportunidades de participação nas institucionalidades políticas estatais apesar da
nova gramática, por fatores que são inerentes à formação da própria sociedade e dos sistemas
políticos: “o tamanho e a escala dos Estados determinam que a democracia seja representativa
por natureza, contando com referendos ocasionais”. Sob essa perspectiva, o modelo
participativo parece recair na máxima da democracia representativa, uma vez que, na maior
parte das decisões políticas, a participação cidadã é “limitada ao voto para representantes, a
petições, influenciando a opinião pública, participando de audiências públicas, e protestando”,
sem, portanto, exercitar a democracia diretamente.
102
2.2.5 Instituições Participativas (IPs) e a prerrogativa do
arranjo institucional
Após a exposição teórica dos caminhos percorridos pela democracia até a consolidação de
uma nova gramática de relacionamento entre Estado e sociedade, são apresentados a seguir os
conceitos que mais se aplicam à realidade do planejamento participativo, especialmente à
figura do PPA Participativo, objeto central deste trabalho. Esses conceitos referem-se às
instituições participativas (IPs) e às discussões sobre a partilha de autoridade na
democratização das IPs – e o papel dos movimentos da sociedade civil na pressão pela
democratização – e a relevância e/ou determinismo do arranjo ou desenho institucional
participativo para o sucesso da democracia.
Avritzer (2002, 2008 e 2009) é uma referência teórica importante para sustentar a definição de
“instituições participativas”; conceito esse que foi reconhecido e incorporado pelo
pensamento democrático mundo afora a partir das publicações do autor. As IPs são o produto
de um aprofundamento da mobilização, articulação e enfrentamento da sociedade civil
organizada em relação às forças dominantes, e resultam na abertura institucional das esferas
decisórias aos atores políticos naturalizados na sociedade. São compreendidas como formas
diferenciadas de incorporar esses atores e demais associações da sociedade civil em processos
deliberativos para desenho de políticas, e possuem três 17 características que são mais
marcantes.
A primeira delas resume-se à operação simultânea, em estruturas híbridas, de princípios
representativos e participativos, misturando atores sociais e estatais em processos decisórios e
neutralizando em medidas significativas a soberania estatal nas decisões políticas: “embora
atores estatais ainda mantenham a soberania formal sobre o processo de tomada de decisão
(...), eles transferem essa soberania a uma esfera mais participativa” (AVRITZER, 2009, p. 9
– tradução nossa). A segunda característica marcante das IPs refere-se a uma transformação
importante de atuações antes voluntárias da sociedade civil para uma adesão permanente à
organização política. Nesse aspecto, os atores sociais organizam-se em torno de instituições
especialmente formatadas para operação do novo modelo de democracia, e o fazem em
17
No livro “Participatory institutions in democratic Brazil” (2009) – em português “Instituições participativas no
Brasil democrático” –, Avritzer apresenta quatro características, mas a última delas corresponde à relevância do
desenho institucional, tema esse que será aprofundado e dialogado com outros autores adiante neste item.
103
variadas formas – o orçamento participativo (OP) é uma grande referência dessa organização.
Essas transformações organizativas permanentes decorrem no seguinte: “práticas da sociedade
civil se tornam institucionalizadas como formas permanentes de interação com o Estado”
(AVRITZER, 2009, p. 9 – tradução nossa).
Essa característica está vinculada à terceira, que diz respeito à interação da sociedade civil
com partidos políticos e atores estatais no tráfego de “grassroots conceptions”,
compreendidas como concepções “de base” partidárias. Assim, no seio das instituições
participativas toda a sociedade política tem oportunidade de lembrar, reafirmar e fixar
concepções gerais de participação política que estão na raiz dos partidos políticos, sobretudo
nos de esquerda (AVRITZER, 2009).
A natureza das IPs remonta ao momento em que as reinvenções da democracia contra-
hegemônica, mais radical, transbordam da sociedade civil para as institucionalidades
estaduais. Esse momento refletiu uma conciliação entre participação política e
institucionalização, em que as instituições abriram mão de parte de sua soberania e autonomia
para incorporar atores sociais, por meio do seguinte processo de transição: de um cenário de
polarização ao longo do século XX – “participação e institucionalização permaneceram como
blocos de construção de diferentes tradições teóricas” – para um cenário de democratização
em que as duas formas aparentemente contraditórias se sobrepuseram. O Brasil e outros
países da América Latina passaram por esse processo de transição, muito em função da
retomada da democracia nas últimas décadas do século XX e, assim, “em vez de manter
formas monopolistas de expressar sua soberania, as instituições abriram-se à participação de
atores da sociedade civil”, mediante uma aprendizagem democrática que promoveu
adaptações das instituições à participação política (AVRITZER, 2009, p. 8 – tradução nossa).
Avritzer (2008) contempla o processo de difusão das IPs em variedades de formas de
participação. Segundo o autor, é possível distinguir três formas sobre as quais a sociedade é
inserida no processo decisório via práticas institucionalizadas. Na primeira delas, apresenta o
conceito de “desenho participativo de baixo para cima”, compreendido como aquele que abre
o processo decisório a qualquer cidadão interessado em participar e cujas regras da operação
institucional são dadas de baixo para cima, isto é, da sociedade para as esferas estatais. Como
exemplo dessa forma o autor cita os orçamentos participativos, cuja “participação de atores
sociais [é] capaz de gerar mecanismos de representação da participação” (FUNG e WRIGHT,
104
2003 e BAIOCCHI, 2003 apud AVRITZER, 2008, p. 44-45). O desenho de baixo para cima
ganha suporte marcante nas teorias da sociedade civil, tangenciadas em item anterior.
A segunda forma é concebida num esquema de partilha de poder, que se dá por meio da
constituição de um espaço institucionalizado de participação em que ambos, atores sociais e
representantes do Estado, participam simultaneamente do processo decisório e com nível de
poder equilibrado e compartilhado. O principal exemplo dessa forma são os conselhos
setoriais de políticas, criados no âmbito do Estado, mas com composição normalmente
paritária, de representação mista e com mesmo poder decisório – em termos de oportunidade
de vocalização e voto (AVRITZER, 2008). A terceira e última forma de instituição
participativa é moldada em um processo de ratificação pública. E isso significa que são
construídos no escopo de atuação das IPs alguns ritos e procedimentos de validação das
decisões tomadas. Nesse caso, a sociedade não participa diretamente do processo decisório,
somente é chamada a referendar publicamente as propostas governamentais. Um exemplo
desse formato de participação são os planos diretores municipais, que contam com a
obrigatoriedade de realização das audiências públicas para referendo das ações discutidas e
sistematizadas pelo Estado (AVRITZER, 2008).
As IPs se manifestam, assim, por meio de desenhos participativos diferenciados, que
combinam as três formas com mais ou menos intensidade, e esses desenhos impactam em
diferentes graus na efetividade da democracia enquanto sistema transversal de organização
política. Dessa forma, quando são analisados os casos empíricos de participação, como os
citados OPs, conselhos e planos diretores, exibem-se variedades de desenhos e efeitos
democráticos (AVRITZER, 2008). O planejamento participativo no Brasil, na figura do PPA-
P, apresenta, constitutivamente, um arranjo participativo que percorre os três tipos, agregando
características de cada forma de participação social: primeiro, enquadra-se como um tipo de
movimento oriundo do aprofundamento da mobilização da sociedade civil pós-democrática;
segundo, procede a uma partilha de poder quando agrega ao ordenamento das ações do Estado
as reivindicações de conselhos e outras entidades representativas da sociedade; e, terceiro,
recorre à aprovação pública, nas audiências, das propostas apresentadas em texto-plano.
Existem potencialidades e limitações da participação social na tomada de decisões segundo
linhas teóricas específicas. Ao tratar sobre arranjos de participação e de instituições
participativas, Carneiro e Brasil (2011) resumem as potencialidades das IPs em quatro pontos
principais, de forma abrangente e dialogando com benefícios defendidos genericamente por
105
toda a teoria democrática, que são eles: (1) “aprendizagens democráticas dos atores
envolvidos”; (2) “o desafio de lógicas democráticas sedimentadas no aparato político
institucional”; (3) “experimentalismo democrático”; e (4) "a produção de um repertório de
políticas públicas mais justas e legítimas", essas últimas oportunizadas pela troca de
experiências e ideologias originadas no seio da “inovação social” (CARNEIRO e BRASIL,
2011, p. 73 – tradução nossa). Sendo assim, as instituições participativas agregam elementos
de diversas correntes democráticas, desde a oportunidade de formação política e cidadã pelos
participantes até uma aprendizagem institucional sobre como se praticar melhor a democracia.
Por outro lado, de acordo com a revisão de Romão (2013), deve-se atentar para alguns
cuidados com as expectativas da implementação das IPs, com destaque para o caso brasileiro,
e outras limitações da consolidação dessas instituições. Existe, incontestavelmente, um
“contexto paradoxal em que as IPs se disseminam por todo o território nacional e fazem
inveja aos participacionistas de todo o mundo”, ao mesmo tempo em que despontam algumas
inconsistências em relação ao seu potencial de superação – sem substituí-la – da democracia
representativa. É certo que não foram poucas as expectativas criadas a partir da Constituição
Federal de 1988; a intenção de gerir de forma compartilhada as políticas públicas se enquadra
perfeitamente nisso. Agora “as IPs devem se haver com as expectativas que recaem sobre
elas, em um sentido amplo” (ROMÃO, 2013, p. 130).
Citando Wampler (2011), o autor argumenta que as IPs “funcionam como enxertos na
estrutura do Estado e da democracia representativa, uma vez que atuam como canal de ligação
de funcionários governamentais e líderes comunitários”. E, funcionando dessa forma, a
participação institucionalizada pode “forjar” ligações e alianças entre os diversos atores
sociais – “os cidadãos 'comuns', os funcionários públicos, as lideranças comunitárias, os
dirigentes sindicais e os prestadores de serviços” –, orquestrados tanto para a construção de
novas relações quanto para manutenção de relações preexistentes (WAMPLER, 2011 apud
ROMÃO, 2013, p. 135).
Feitas as apresentações da definição, natureza, formatos, potencialidades e limitações das
instituições participativas, a sequência deste item do trabalho vislumbra responder outros
questionamentos importantes, quais sejam: no que consiste a disputa teórica acerca do alcance
do arranjo ou desenho institucional participativo para a qualidade da democracia nos
processos decisórios? Sabendo que existe essa disputa teórica acerca da prerrogativa do
arranjo de participação para a qualidade da democracia, quais são então os elementos
106
defensáveis de cada teoria e como isso é relevante para o objeto da pesquisa, ou seja, para a
função pública de planejar as ações do governo?
Quando consideradas as IPs, a qualidade e a efetividade da participação têm sido associadas
na literatura, dentre outros aspectos, ao desenho ou arranjo institucional participativo como
uma chave que pode favorecer ou ser determinante para a qualidade dos processos de
participação e deliberação, bem como sua efetividade (FUNG, 2006; AVRITZER, 2008,
BRASIL e CARNEIRO, 2011). No âmbito das discussões sobre efetividade deliberativa e das
avaliações do alcance efetivo da democracia em espaços institucionais – preocupações
centrais para a evolução da teoria da democracia deliberativa recente –, existem concepções
convergentes sobre como os desenhos institucionais têm potencial de tornar as instituições
mais fortemente deliberativas que outras. Essas avaliações partem do pressuposto construído
por Cohen (1997) de que “diferentes instituições (...) desempenham diferenciadamente seus
papéis deliberativos”, e por isso a importância do olhar caso a caso para o formato
institucional com que é praticada a democracia deliberativa (AVRITZER, 2011). Por outro
lado, também pode ser relevante o papel da participação da sociedade civil nas instituições
participativas, requerendo uma avaliação de como essa participação é determinante para a
consolidação de uma deliberação de sucesso.
A disputa teórica pela qualidade da democracia nas instituições participativas tem como
emblemáticas as concepções de Avritzer18
(2002, 2012) e de Fung e Wright19
(2003), sendo
que ambas tratam especialmente de experiências da democracia deliberativa pelo mundo, em
todas as esferas de governo, e subsidiam análises empíricas posteriores20. De um lado, para
Avritzer, o determinismo, se assim pode ser chamado, do arranjo de participação para a
qualidade da democracia pode ser questionado e relativizado em função da compreensão da
sociedade civil enquanto insumo para o aprimoramento da democracia. De outro, para Fung e
Wright, a forma como são desenhadas as instituições participativas pode incidir
significativamente sobre a qualidade da democracia nos processos deliberativos. Assim, em
uma via, “a sociedade civil se torna precondição para um desenho deliberativo exitoso”
18
As principais obras que organizam essa crítica são: “Democracia e o espaço público na América Latina”
(2002) e “Sociedade civil e Estado no Brasil: da autonomia à interdependência política” (2012). 19
A principal referência para a crítica é a obra “Deepening Democracy: institutional innovation in empowered
participatory governance” (2003) – em português “Aprofundando a Democracia: inovação institucional na
governança participativa empoderada”. 20
As pesquisam que abordam as experiências da democracia deliberativa conduzem Archon Fung (2006) na
consolidação constrói um framework para a compreensão das possibilidades institucionais da participação e
indicadores de institutional design, ou desenho institucional, que são utilizados no modelo de análise da pesquisa
deste trabalho.
107
(AVRITZER, 2011), e, em outra via, “a sociedade civil é entendida como resultado da própria
efetividade das IPs” (FUNG e WRIGHT, 2003, p. 20-22 apud AVRITZER, 2011).
Avritzer não refuta a relevância do desenho institucional para a efetividade da deliberação,
compreende sim o “design de forma participativa como um elemento institucional que
desencadeia a inovação e as relações das políticas horizontais”, e, nesse sentido, o desenho
institucional teria capacidade de gerar diferentes consequências no processo deliberativo. O
fato de enxergar o desenho como variável que impulsiona a inovação societal, todavia, não
implica em acreditar que ele seja imparcial e independente – o “desenho não é neutro”. Pelo
contrário, o desenho institucional é compreendido como uma parte dependente de interações
entre as sociedades civil e política; é o veículo, não a essência da deliberação. É o lugar onde
as interações “entre a sociedade civil e política produz resultados e cria novos padrões de ação
política” (AVRITZER, 2009, p. 65 – tradução nossa).
A análise da origem dos arranjos institucionais participativos em fatores intervenientes ao
papel da sociedade civil aponta que aqueles “emergem a partir da interação entre a inovação e
experimentação da sociedade civil”, de um lado, e de outro, a partir de “preocupações da
sociedade política com a deliberação mandatória e o acesso universal à formulação de
políticas públicas” (AVRITZER, 2009, p. 65 – tradução nossa). É reconhecido o papel da
sociedade política, governamental, na abertura do processo decisório, mas o autor pondera
que isso se dá senão a partir de uma pressão advinda pelo amadurecimento democrático, por
sua vez, atribuído ao amadurecimento da própria sociedade civil. Nessa perspectiva, a medida
que a democracia vai ter sucesso em determinado contexto não depende da qualidade de um
arranjo inexpressivamente neutro, mas de um conjunto de características da organização
social desse mesmo contexto. O autor reivindica que “a expansão de instituições participativas
pode produzir resultados diferentes dependendo do contexto” (Idem, p. 3 – tradução nossa),
sendo esse contexto influenciado pelo grau de mobilização e articulação da sociedade civil.
Considerando as limitações do desenho institucional para a capacidade de democratizar o
governo, Avritzer propõe em artigo que tece considerações sobre a variação da participação
no Brasil democrático o chamado “desenho participativo interativo”, que reconhece as
interações os cidadãos e o Estado como precondição para o sucesso dos processos
participativos. Dessa maneira, esse sucesso é atribuído “não ao desenho institucional e sim à
maneira como se articulam desenho institucional, organização da sociedade civil e vontade
política de implementar desenhos participativos” (AVRITZER, 2008, p. 47). Até mesmo a
108
vontade política, sob essa visão, é compreendida como variável independente do desenho
institucional. No caso brasileiro, as instituições que emergiram nos últimos anos incorporaram
as formas culturais de participação “que originalmente haviam se desenvolvido dentro das
associações voluntárias durante o processo de democratização”, isto é, somente após a pressão
democrática da Constituinte é que se estruturaram como instituições políticas no bojo do
Estado (AVRITZER, 2009, p. 64).
Em sentido oposto, a literatura de Fung e Wright (2003) analisa uma diversidade de
experiências pelo mundo que apresentam perspectivas concretas de aprofundamento da
democracia (deepening democracy) a partir de arranjos participativos arquitetados
administrativamente e politicamente pelo Estado. As quatro experiências analisadas21 diferem
em conjuntura e permeiam variadas estruturas governamentais, áreas de políticas públicas,
níveis de desenvolvimento econômico e culturas políticas, o que relativiza a preponderância
do contexto na qualidade das práticas democráticas tal como argumentado por Avritzer. Por
outro lado, as experiências guardam similaridades que as aproximam no quesito de motivação
pela arquitetura institucional participativa; elas “têm o suficiente em comum para garantir sua
descrição enquanto instâncias originais, mas amplamente aplicável”. Fung e Wright (2003)
compreendem essa forma democrática de estruturar e expandir as instituições participativas, à
luz das experiências analisadas, como reformas de organização política e administrativa, que,
portanto, “oferecem uma variedade de projetos políticos e administrativos como alternativa
real ao aprofundamento da democracia”.
Nesse sentido, os desenhos institucionais, dito “ambiciosos”, não são apenas funcionais para a
operação da democracia, mas meios essenciais de superação ou aprimoramento das formas
institucionais democráticas convencionais com foco no compromisso de fortalecer a
capacidade de resposta e a efetividade do Estado, “ao mesmo tempo em que a torna mais justa
e participativa, deliberativa e responsável” (FUNG e WRIGHT, 2003, p. 6 – tradução nossa).
Na perspectiva de Fung e Wright, portanto, os arranjos não são meros organizadores da
política participativa, mas protagonistas de formas de aprofundamento da democracia,
inclusive fomentando a mobilização e articulação da própria sociedade civil nos ambientes
institucionalizados.
21
As experiências analisadas por Fung e Wright (2003) são as seguintes: um conselho de associações
comunitárias de bairro (“neighborhood governance councils”) na cidade de Chicago, nos Estados Unidos; um
plano de conservação de habitat de espécies ameaçadas nos Estados Unidos, em nível nacional; o orçamento
participativo da cidade de Porto Alegre, no Brasil; e reforma de governanças locais para empoderamento dos
chamados Panchayat, ou vilas, em West Bengal e Kerala na Índia.
109
Ao argumentar sobre princípios e variáveis institucionais, os autores reconhecem a
importância do escopo de interações embutidas no processo participativo, mas o fazem
também afirmando que a qualidade dos arranjos participativos não somente absorve, mas
também acaba por espelhar as próprias virtudes da democracia participativa (FUNG e
WRIGHT, 2003). A diversidade de variáveis contextuais desfavoráveis que circundam os
casos analisados, e que mesmo assim produziram planos e reformas com bons resultados,
sugere que os desenhos institucionais podem resolver problemas complexos. Segundo os
autores, uma vez que contextos desfavoráveis apontam para caminhos democráticos não
virtuosos, é natural que a literatura enalteça a articulação da sociedade civil como uma
precondição do sucesso, “em que o engajamento popular aprimoraria as discussões a partir do
aumento do accountability e de capacidades ou por trazer mais informações a tona” (Idem, p.
39 – tradução nossa). Entretanto, defendem que nem sempre a solução se dá em virtude da
organização da sociedade. Em uma variedade de contextos são necessárias reformas que
promovam novas organizações políticas e administrativas e novas configurações institucionais
para fortalecer a democracia.
O desenho institucional participativo apresenta ainda outro potencial significativo, segundo a
literatura de Fung e Wright (2003), o de replicação. Tendo como base reformas institucionais
e modelos de sucesso do aprofundamento da democracia, o desenho pode se expandir em dois
sentidos: horizontal, para outras instâncias, funções públicas – por que não o planejamento? –
e regiões; e vertical, “em níveis mais altos ou baixos da vida social e institucional” (FUNG e
WRIGHT, 2003, p. 15 – tradução nossa). Isso aponta que os arranjos de participação, além do
potencial de influenciar positivamente o aprofundamento da democracia nas IPs, apresentam
oportunidades de replicação para outras esferas de interação com a sociedade civil. A
abrangência da democracia nos espaços participativos para a construção dos planos
plurianuais participativos, com enfoque no caso do PPA-P da Bahia, será apresentada na
seção de resultados, mas instiga-se a reflexão prévia de como esse planejamento participativo
pode ter um potencial de replicação horizontal e vertical, tal como citado, se confirmada a
preponderância do arranjo, em variáveis institucionais, no aprofundamento da democracia.
A disputa teórica apresentada requer uma correspondência direta às inquietações da pesquisa.
Toda a revisão apresentada oferece parâmetros para a análise do caso concreto, e espera-se
que a pesquisa seja de fato realizada à luz de cada mensagem da teoria democrática, suas
evoluções e contrapontos. Avritzer ilumina ponderações de que o desenho institucional
participativo é relevante para a efetividade do processo deliberativo, mas que o roteiro de
110
articulação da sociedade civil é mais determinante, pois influencia no contexto em que são
implementadas as instituições políticas da participação social. Como será aprofundado no
Capítulo 3 deste trabalho, nem de longe se refuta o potencial agregativo do contexto para o
sucesso das IPs, tanto que esse capítulo discorre sobre o histórico de mobilização social na
Bahia de forma dialogada com a construção do arranjo de participação pelo governo. Por
outro lado, Fung e Wright vinculam o sucesso de planos e reformas democráticas mais à
arquitetura institucional de participação que às variáveis históricas de surgimento e
fortalecimento da sociedade civil. A escolha metodológica conduz a pesquisa para a avaliação
de princípios organizativos e variáveis institucionais do arranjo de participação no PPA
Participativo da Bahia segundo um modelo tridimensional22
de Fung (2006) que valoriza o
princípio da inclusão política. Sendo assim, embora a pesquisa se debruce mais na questão da
prerrogativa do arranjo ou desenho institucional participativo, o próprio modelo do autor
indica nuances do papel dos movimentos na democratização da IP.
Seção 2.3 A adoção da participação social no PPA
Esta seção tem como objetivo apresentar as características e principais momentos do processo
de adoção do componente participativo no planejamento público no Brasil, considerando que
integram a democratização da administração pública as iniciativas de planejamento
participativo, e, nesse contexto, a participação social nos instrumentos plurianuais instituídos
pela Constituição Federal de 1988. O Plano Plurianual Participativo (PPA-P) figura como
expressão da participação social no planejamento formal, e, por isso, tem um enfoque especial
nas descrições apresentadas. Supõe-se, vale destacar, que os elementos do processo de
democratização da administração pública têm potencial de agregar à função cargas de
(re)significado, de acordo com achados oriundos da exposição sobre a trajetória do
planejamento público e das razões que foram apresentadas nos “caminhos da democracia”
(todo o Capítulo 2). Assim como na seção 1.2, a exposição do caso federal é justificada
porque se trata de uma referência incorporada no processo de amadurecimento do
planejamento público em outros níveis de governo, como é especial no caso da Bahia,
22
Os três indicadores que compõem esse modelo são: seleção de participantes – se mais restrito ou aberto à
mobilização massiva; modo de comunicação e decisão; e extensão de autoridade e poder de agenda; sendo todos
eles permeados pelo princípio da inclusão social para indicar a grandeza e a intensidade da democracia.
111
influenciando ambas a consolidação do ordenamento da programação formal da função e a
adoção da participação social.
2.3.1 O caminho do modelo de participação: do Orçamento
Participativo (OP) ao PPA Participativo (PPA-P)
Alguns autores (AVELINO e SANTOS, 2014; AMARAL, 2015) argumentam que existe uma
linha lógica de construção dos modelos participativos no processo de definição de prioridades
das ações governamentais. Essa linha origina-se no OP e caminha rumo à adoção da
participação social no planejamento formal, cuja expressão está posta nos dias atuais no rótulo
PPA-P – os dois instrumentos são significativamente chancelados pelos governos petistas. A
partir dos anos 2000, e, a participação social passou a compor as estratégias de planejamento
público durante a elaboração dos planos plurianuais, nos três níveis de governo. Além do
governo federal, na figura do PPA 2004-2007, os estados brasileiros têm adotado mecanismos
de escuta para a elaboração dos seus PPAs, sendo a Bahia uma referência nacional nessa
iniciativa. E, na visão de Amaral (2015, p. 233), “entre os motivos que concorrem para isso
estão as experiências anteriores em estados e municípios com o Orçamento Participativo (OP)
e a tônica de relação com a sociedade civil e movimentos sociais”.
O OP se caracteriza por um conjunto de estratégias governamentais voltadas para o
estreitamento do diálogo com a sociedade civil e para o fortalecimento da participação social
no processo decisório (AVELINO e SANTOS, 2014). Constitutivo do próprio nome “OP”, o
alvo dessas práticas deliberativas é de fato o orçamento público – não percorre a dimensão
estratégica. Por meio de instâncias participativas, o Estado abre a possibilidade para a
população opinar acerca da aplicação dos recursos públicos. Constitui-se em um “momento
em que a população é consultada e tem a oportunidade de colaborar com a priorização da
atuação do ente público” (p. 3), no nível do investimento. Os resultados principais do OP, em
termos de produto gerencial e administrativo, é a eleição de prioridades do orçamento e a
elaboração do projeto da LOA.
As iniciativas foram disseminadas pelo Brasil com formato e metodologias muito
heterogêneas, inclusive nos pressupostos de intermediação dos interesses da sociedade, mas
tiveram forte influência do caso emblemático do OP de Porto Alegre, iniciado em 1989 e
112
considerado “como a manifestação mais conhecida da prática” (AVELINO e SANTOS,
2014). Entre 1990 e 2004, o OP de Porto Alegre colocou em prática um arranjo complexo de
escuta e deliberação, que se desdobrou em assembleias regionais, reuniões intermediárias e
fóruns permanentes de representantes no Conselho do OP (AVRITZER, 2012), possibilitando
a sustentabilidade da participação tanto em recorrência de oportunidades quanto em
adensamento de tipos de participantes.
Em diálogo com a teoria democrática, em outra perspectiva, o OP se caracteriza como uma
política participativa que proporciona um espaço de deliberação entre a sociedade civil e o
Estado, especialmente em nível local. A ideia central no quesito democrático é de inclusão de
múltiplos atores sociais, como representantes comunitários e cidadãos comuns, não
organizados, em um espaço de negociação e deliberação. O processo deliberativo ocorre em
dois momentos distintos, um de caráter participativo direto, em que há o convite à presença
massiva da comunidade, e outro de caráter representativo indireto, que abre a participação aos
delegados e conselheiros eleitos (AVRITZER, 2012).
Os resultados das instâncias de participação no que se refere à democracia são mais
abrangentes. Sobre isso, Santos (2002), em larga argumentação e análise acerca do orçamento
participativo de Porto Alegre, problematiza três questões relevantes para a democracia no
âmbito do OP, quais sejam: aprendizagem democrática; justiça redistributiva e ganhos de “co-
gestão”. A primeira questão, a aprendizagem democrática, é oriunda de um processo de
amadurecimento tanto do Estado quanto, principalmente, da sociedade civil, e acaba por
refletir uma evolução conceitual e metodológica do orçamento participativo em termos de
estrutura e desenvolvimento. Parte do amadurecimento observado da sociedade civil adveio
da transformação dada pela “participação popular de tipo não-clientelista” que, por si,
perturba a política tradicional e as estruturas de poder das comunidades. Segundo o autor,
tradicionalmente “os líderes das comunidades não só estavam socializados numa cultura
política do confronto, mas também numa cultura política do clientelismo, com base na qual
canalizavam recursos para as comunidades” (SANTOS, 2002, p. 502). Em situação de
“porosidade” democrática e deliberação, como ocorre no orçamento participativo, esse tipo de
sistema clientelista tende a ruir, positivamente.
A segunda questão relevante pontuada por Santos (2002, p. 514) é sobre as conexões entre
participação, negociação e redistribuição. Se considerada o que o autor chama de “natureza
democrática da distribuição”, “o OP pode ser considerado o embrião de uma democracia
113
redistributiva”. A lógica encadeada na assertiva é de que tal natureza democrática da
distribuição ou evolui de forma weberiana, por meio da ampliação da burocracia, ou devido
ao aumento da complexidade decisória. Nitidamente, o orçamento participativo obedece à
segunda lógica, ou seja, corrobora para a evolução da redistribuição não por medidas
puramente administrativas estatais, mas pela complexificação do processo decisório. Nesse
sentido, o autor defende a seguinte hipótese de trabalho: “em sociedades internamente
diferenciadas, quanto mais forte é o vínculo entre democracia e justiça distributiva, mais
complexa tende a ser a metodologia que o garante” (Idem, p. 514). A simplificação do
processo decisório fomentado pela burocracia é, segundo essa visão, prejudicial ao vínculo
entre a democracia e a justiça redistributiva. Ao contrário disso, o OP representa um
mecanismo mais complexo de tomada de decisões, logo, com potencial maior de gerar a
citada redistribuição.
A terceira e última questão refere-se às dosagens de autonomia e poder entre os atores sociais
e os atores políticos no processo decisório. O OP rompe com um modelo de relacionamento
sempre sensível entre os participantes dos fóruns, especialmente os conselheiros e
representantes do conselho, e o Estado. Não é pequeno o desafio de conciliar as decisões
coletivas, construídas em processos deliberativos, e a “representatividade política do prefeito
inscrita na Constituição da República” (SANTOS, 2002, p. 526). Isto é, misturam-se as
oportunidades participativas do OP em instâncias de democracia representativa e deliberativa.
O autor argumenta que é possível a chamada esfera pública emergente e o governo municipal
coexistirem no processo decisório, por meio de um “contrato político” que garante que a
autonomia mútua de cada ator se transforme em “autonomia mutuamente relativa”, moldada
em um arranjo de partilha de poder. O OP, nesse sentido, se configura como um “modelo de
co-gestão, ou seja, um modelo de partilha de poder político mediante uma rede de instituições
democráticas orientadas para obter decisões por deliberação, por consenso e por
compromisso” (Idem, p. 526).
Em texto intitulado “Do orçamento participativo ao monitoramento participativo: o lugar e o
método da participação social nas escolhas estratégicas de governo”, Avelino e Santos (2014,
p. 13-14) discorrem sobre como a iniciativa do OP influenciou a expansão e a releitura do
modelo de participação a outras esferas de governo e funções da administração pública. O
governo federal implementou estratégias de ampliação da participação social na elaboração
dos planos plurianuais, “não por coincidência no mesmo período de expansão do orçamento
participativo pelos municípios brasileiros, no início da década de 2000”, promovendo a
114
releitura do OP a fim de enquadrá-lo na função de planejamento no decorrer do ordenamento
também programático, não só orçamentário das ações governamentais. Dessa forma, na
medida em que o OP “ganhava fôlego em um número maior de municípios e iniciava sua
impulsão sobre alguns estados, o governo federal trazia a sociedade para debater sobre o seu
Plano Plurianual (PPA)”.
Não pode ficar de fora dessa análise, que talvez aponte para uma via mais abrangente do PPA
em relação ao OP, que o orçamento é parte integrante do sistema de planejamento (PPA, LDO
e LOA), “com base constitucional”, denotando o PPA como um “guarda-chuva” de intenções.
Assim sendo, por que então as experiências do orçamento participativo antecederam às
iniciativas dos planos plurianuais participativos? Novamente a explicação recai sobre a
preponderância das preocupações orçamentárias características da década de 90. A revisão
teórica apontou, sinteticamente, que pressionavam o governo federal à época as crises fiscais
estruturais, a necessidade de colocar as contas do país em patamares equilibrados, a
necessidade de redirecionar o Brasil para o crescimento econômico e a agenda gerencialista
da NPM imposta pelos agentes planejadores, o que reprimia o processo de redemocratização
da administração pública. Enquanto isso, nas gestões locais, municipais, “havia espaço
político suficiente para o experimentalismo e adoção de novas estratégias de legitimação das
decisões públicas”. Isso explica porque “boa parte da energia transformadora das
organizações e movimentos sociais encontrou solo mais fértil nas experiências locais de
orçamento participativo” (AVELINO e SANTOS, 2014, p. 3), além de um horizonte mais
factível (em termos operacionais) nesse nível de governo. Diante desse cenário, o governo
federal encampou estratégias participativas de planejamento a partir dos anos 2000, somente
10 anos depois, com uma abordagem diferenciada e relativa clareza de que a esfera nacional
demanda ajustes em termos de escala.
É interessante dispor neste item de algumas distinções entre o OP local e o PPA-P federal,
derivadas de características e mecanismos próprios de incorporação da participação social no
nível federal, com uma série de iniciativas particulares na definição de plano e orçamento.
São resumidas em três pontos, segundo Avelino e Santos (2014, p. 16), a saber: primeiro, a
atividade de planejamento em nível federal acontece a priori das iniciativas locais,
precedendo e direcionando processos participativos descentralizados de cunho orçamentário;
segundo, a representação no nível federal de planejamento demanda não a participação direta,
como no nível local, mas a representação institucional, como por meio dos conselhos
nacionais, movimentos sociais, entidades da sociedade civil e outros colegiados; terceiro, por
115
fim, a estrutura estatal cuida de forma mais significativa (ou tem mais potencial para tanto) da
permanência e continuidade da estratégia participativa, instituindo espaços, fóruns e
colegiados permanentes de acompanhamento das ações governamentais. Dessa forma, o
governo federal demonstra uma capacidade de adaptação das iniciativas que são promissoras
em nível local para uma adequação à escala nacional.
2.3.2 Desencontros do planejamento governamental e
participação social: fases marcantes Este item inicia a apresentação das fases marcantes do desencontro entre planejamento
governamental e participação social na experiência brasileira recente. Pomponet (2008), Pires
et al (2014) e Amaral (2015) concordam que existiram no Brasil três intervalos de tempo com
diferentes manifestações, coincidentes e não coincidentes, de ambos os elementos,
planejamento e participação. Entre 1930 e 1980, o modelo foi “planejamento sim,
participação não”, marcado por uma noção tecnocrática de planejar. Em 1990, o modelo foi
“participação sim, planejamento não”, norteado pela “reforma do aparelho do Estado e por
uma visão que privilegiava a gestão ao planejamento”. Já a partir dos anos 2000, o modelo se
constitui como “planejamento sim e participação sim, porém ainda em desencontro”, que
registra a ascensão de um instrumento formal de planejamento, liberto da tecnocracia do
passado e com embasamento constitucional para articulação entre plano e orçamento
(AMARAL, 2015, p. 236).
A trajetória histórica da atividade de planejamento no Brasil é singular em termos de
“desenvolvimento e institucionalização de formas de participação social na produção de
políticas públicas” (PIRES et al, 2014, p. 115). Da década de 1930 até os dias atuais, o país
oscilou seus esforços de desenvolvimento em estratégias distintas de atuação governamental,
a começar pela própria escolha do tipo de papel a ser exercido pelo Estado na condução das
políticas públicas. Nesse cenário, planejamento e participação pouco coexistiram, e estiveram
presentes quase de forma alternada até o início do novo século, do que tratará o próximo item.
Entre 1930 e 1980, foi marcante a ênfase no planejamento tecnocrático em detrimento da
inclusão plural de atores sociais (PIRES et al, 2014, p. 118).
Na Era Vargas, o planejamento ascendeu como um importante mecanismo de
desenvolvimento nacional, na medida em que organizava a estratégia de transformação da
116
estrutura produtiva, que ainda era dominada pela agricultura de exportação, para uma
estrutura voltada à industrialização. No interregno democrático que se estendeu até 1964, o
planejamento ocupou lugar de destaque na ação governamental, até mesmo incorporando
grupos executivos e conselhos setoriais na formulação e monitoramento das políticas. Sob um
modelo centralizado, entretanto, a população não foi convidada a participar das discussões e
foi predominante a noção de planejamento tecnocrático, realizado por especialistas, e
incompatível com a participação social (POMPONET, 2008; CARDOSO JR, 2011; PIRES et
al, 2014). Assim, “somente os técnicos governamentais, os grandes empresários e a classe
política eram mobilizados para discutir e propor” (POMPONET, 2008, p. 2). Esse formato de
planejamento avesso à participação social sugere que somente o ator especialista, burocrata, é
composto tecnicamente de capacidades de solucionar problemas da sociedade (SABEL, 2004
apud AMARAL, 2015).
A incompatibilidade entre a função de planejamento e a ampliação da participação social foi
acentuada quando do golpe militar que depôs o período democrático e instaurou a ditadura
militar. A partir de 1964, “não havia mais apenas o desprezo pelo envolvimento da sociedade,
mas a ameaça comunista, onipresente, que justificou os reiterados atentados aos mais
elementares princípios democráticos” (POMPONET, 2008, p. 2-3). Inclusive, a justificativa
para o golpe foi justamente a pressão popular, a partir da atuação de sindicatos e movimentos
sociais que reivindicavam a abertura de espaços de participação nas decisões políticas. Essas
iniciativas corroboraram para a deposição do então presidente João Goulart em 1º de abril de
1964, e, a partir disso, os governantes militares fortaleceram a condução da máquina pública e
das políticas “sem a preocupação de envolver a sociedade na tomada de decisões, limitando as
discussões às esferas burocráticas” (Idem, p. 3). Sendo assim, a ausência do engajamento,
diálogo e escutas sociais foi acirrada durante todo o período autoritário, assim como
priorizado e fortalecido regularmente o planejamento tecnocrático (POMPONET, 2008;
CARDOSO JR, 2011; PIRES et al, 2014).
Uma interpretação interessante sobre a ausência da participação social no citado intervalo de
tempo é apresentada por Pomponet (2008, p. 4), que encontra e organiza três razões para tal,
de natureza política, social e da própria administração pública. A primeira delas sugere que a
escuta social seria facilmente compreendida, num contexto de Guerra Fria, como uma
“ameaça comunista”, que a marca da justificativa da manutenção do poder pelos generais-
presidentes. A segunda razão, de natureza social, considera os determinismos da herança de
tradições patrimonialistas, oligárquicas e escravocratas na manutenção das correlações de
117
força – “a classe dirigente brasileira com certeza jamais veria com simpatia a mobilização
social que almejava maior participação nas decisões políticas”. Por fim, a razão imposta pela
própria configuração da administração pública remete à valorização da qualificação técnica e
da crença positivista na tradição militar para formação de uma elite dirigente de poder com
capacidade de alavancar o desenvolvimento nacional; equipe essa que bem ocuparia gabinetes
da alta gestão, em contraposição a qualquer iniciativa de escuta social.
O segundo intervalo de tempo que marca o desencontro entre planejamento e participação é
representado pelos anos 1990. Segundo o enquadramento de Pires et al (2014), o momento foi
de “participação sim, planejamento não”, em que coexistiram práticas típicas do processo de
redemocratização da sociedade, mediante a incorporação de atores sociais e criação de novas
arenas de diálogo e escuta, e práticas gerencialistas internas à máquina pública que
sobrevalorizaram a gestão em detrimento do planejamento. Essas práticas foram combinadas
com uma agenda neoliberal orientada para a redução do papel do Estado na mediação de
relações da sociedade e para o enxugamento da máquina administrativa.
O ponto de inflexão que despertou as iniciativas de participação social foi a promulgação da
Constituição Federal de 1988, que desencadeou uma série de mecanismos de perenização de
interesses sociais nas esferas nacional, estaduais e municipais. Foi observado um processo
intenso de mudança na atenção dada à participação social a partir de iniciativas como do
orçamento participativo e dos conselhos gestores de políticas públicas, sobretudo em nível
local, “alcançando a cobertura quase plena dos municípios brasileiros em áreas como saúde,
educação, assistência social, direitos da criança e do adolescente” (PIRES et al, 2014, p. 119),
entre outras. Na década de 90, foram empreendidas ações públicas para colocar em prática o
que estava posto no horizonte normativo da CF-88, em perspectiva democratizante, e também
para dar respostas aos sucessivos escândalos de corrupção que vieram à tona no governo
Collor. Em ambos os casos a solução é interveniente ao envolvimento da sociedade no
gerenciamento de recursos públicos, como é o caso emblemático do Sistema Único de Saúde
(SUS), maior sistema de saúde pública do mundo, que além de prever a participação das
comunidades atendidas em todos os níveis decisórios, ainda teve sua origem pressionada por
movimentos sociais sanitaristas atuantes (POMPONET, 2008).
À medida que emergiam iniciativas de participação, por outro lado, observou-se na mesma
década de 90 um esvaziamento da função de planejamento. A atividade planejadora foi
marcada mais por uma postura de contenção, pelos governantes, “do que para a construção de
118
visões e metas de desenvolvimento de médio e longo prazo” (PIRES et al, 2014, p. 120). As
características básicas do processo de esvaziamento da função e consequente ascensão da
gestão já foram tratadas em seções anteriores, mas é importante destacar que houve no
contexto gerencialista e na agenda neoliberal iniciativas reformistas da máquina pública.
Colocou-se em marcha nos anos 90 a reforma administrativa, tendo o Plano Diretor de
Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE23
) como principal referência, buscando apoio na
aderência do instrumento a nível nacional e internacional. O plano em si teve êxito relativo,
mas contribuiu para o desmantelamento do planejamento público.
Alguns anos após a promulgação da CF-88, certos postulados da carta foram questionados em
contexto de crise fiscal, e o PDRAE surgiu como resposta a esses questionamentos e como
proposta de revisão da estrutura administrativa e financeira do Estado. De acordo com o texto
do plano de reforma, as promessas para os anos 90 eram de responder à crise com mais
consistência, situação essa em que seriam firmados compromissos para retomar a autonomia
financeira do Estado e ampliar sua capacidade de implementar políticas públicas, colocando
como processos inadiáveis: o ajustamento fiscal duradouro; reformas econômicas orientadas
para o mercado, que, acompanhadas de uma política industrial e tecnológica, garantam a
concorrência interna e criem as condições para o enfrentamento da competição internacional;
a reforma da previdência social; a inovação dos instrumentos de política social,
proporcionando maior abrangência e promovendo melhor qualidade para os serviços sociais; e
a reforma do aparelho do Estado, com vistas a aumentar sua ‘governança’, ou seja, sua
capacidade de implementar de forma eficiente políticas públicas. (PDRAE, 1995, p.10).
Alguns autores (BURSZTYN, 1998; PINTO, 2000; MARTINS, 2004; SANTOS, 2011),
entretanto, não veem como positivos os pressupostos da reforma empreendida no contexto da
NPM e da agenda neoliberal no Brasil. Segundo eles, o PDRAE compreendia a aferição de
um Estado de bom desempenho somente como aquele consequente de práticas articuladas de
controle dos meios. Mesmo com resultados muito limitados e com uma implementação
parcial, o plano pressionou a agenda de modernização da máquina pública centrada no
princípio da eficiência, a qual buscava preencher a administração de técnica e deixar à deriva
o desenvolvimento em outras dimensões da vida social, por minguar de conteúdo democrático
os instrumentos de planejamento e gestão. A reforma centrou esforços no controle dos
23
Como já apresentado, o PDRAE foi elaborado pelo Ministério da Administração Federal e da Reforma do
Estado, aprovado pela Câmara da Reforma do Estado em 21 de setembro de 1995, após ampla discussão, e
aprovado pelo então presidente da república, Fernando Henrique Cardoso.
119
recursos públicos e, na prática, colaborou para minguar a capacidade de agir do Estado, uma
vez que foram adotadas soluções questionáveis de privatizações em série, terceirização da
prestação de serviços sob a lógica do cidadão-cliente, e muitas outras medidas que não só
enxugaram a máquina pública, como diminuíram a noção de cidadania. Nesse cenário
restritivo de atuação do Estado, orientado pela a agenda neoliberal, a função de planejamento
teve baixo alcance político e social – ainda que a abertura das instâncias decisórias para a
sociedade a partir da carta constitucional estivesse em processo de amadurecimento.
2.3.3 A virada conciliatória dos anos 2000: porosidade da
ação governamental e o PPA Participativo
No contexto pós-2000 predominou o modelo de “planejamento sim e participação sim, porém
ainda em desencontro”, que representa o esforço de conciliação entre planejamento e
participação. A presença concomitante dos dois elementos demonstra reencontros recentes e
aprimoramentos na atuação do Estado, sobretudo em torno da elaboração dos planos
plurianuais em nível federal e estadual. Os dois elementos consolidados também indicam
tanto a transformação afirmativa do planejamento, no sentido de que a função voltou a ter
centralidade após uma onda de desmantelamento, quanto a ressignificação do planejamento,
em que o processo de democratização da administração pública agrega à função cargas de
(re)significado. Reflexo do segundo movimento é que a construção dos PPAs vem sendo
permeada, em alguns governos, por processos participativos, que incorporam diferentes atores
sociais na priorização e desenho de ações governamentais – alguns instrumentos são,
inclusive, chamados de “PPA Participativo”. Como reflexo do estímulo crescente à
institucionalização de espaços de participação social no planejamento público, ao longo dos
anos 2000 foram observadas no Brasil mudanças significativas na “’porosidade’ da ação
governamental às influências dos cidadãos e organizações da sociedade civil”, sendo
mensurados em cerca de 92%, na década, os programas federais com diversificadas iniciativas
de engajamento da sociedade (PIRES et al, 2014, p. 121).
No tocante ao planejamento público, após a onda gerencialista dos anos 90 o país passou a
considerar e empenhar medidas para recuperação da função esvaziada, consideradas neste
trabalho como uma aposta pela transformação afirmativa. Especialistas da área (GIMENEZ e
120
CARDOSO JR, 2012 apud PIRES et al, 2014) argumentam que esse empenho é em parte
oriundo da própria recuperação da capacidade de crescimento econômico e social vivenciada
a partir de 2004, situação que permitiu a criação de condições e espaços para a retomada de
esforços de planejar um futuro mais promissor, de longo prazo. Como exemplos desses
esforços, têm-se o maior rigor metodológico da elaboração dos planos plurianuais (2004-2007
e 2008-2011, principalmente) e a proliferação de iniciativas de desenvolvimento de planos
setoriais, como aqueles da indústria e de infraestrutura (PIRES et al, 2014).
A partir dos anos 2000, foram dados importantes e significativos passos no quesito de
inovação do planejamento governamental no Brasil, acentuados pela ascensão de Lula à
Presidência em 2003. A disseminação e diversificação dos espaços institucionalizados de
participação social iniciadas na década de 90 foram também incorporadas na função de
planejamento, promovendo resultados de conciliação entre os dois paradigmas (AVELINO e
SANTOS, 2014; PIRES et al, 2014; AMARAL, 2015). A passagem rápida pela história
recente em relação à adoção do componente participativo demonstra um “esforço sistemático
de adoção de formas de interação com a sociedade civil em diferentes áreas de atuação do
Governo Federal” (PIRES et al, 2014, p. 121), incluídas as formas dessa interação no
processo de definição de planejamento e orçamento públicos. Afirma Abrucio (2007, p. 76),
especificamente sobre o planejamento plurianual formal, que o governo Lula “aproveitou sua
inspiração na democracia participativa para discutir mais e melhor o PPA com a sociedade,
em várias partes do Brasil, realizando um avanço no campo do Planejamento”.
O estreitamento da conexão entre o planejamento e a participação se iniciou no primeiro
mandato do então presidente, durante a elaboração do PPA 2004-2007. O plano “Brasil de
Todos: Participação e Inclusão” manteve a metodologia por programas característica do
período anterior, mas inovou com a abertura de uma grande consulta popular, contando com o
diálogo, em todo o território nacional, com entidades da sociedade civil e a promoção de
fóruns participativos - 27 Fóruns Estaduais de Participação Social no PPA. Também
promoveu a aproximação do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) nas
discussões do plano. Essas e outras iniciativas de participação resultaram na criação de um
grupo de trabalho (GT) composto por representantes da sociedade civil e do governo com o
objetivo de (re)pensar coletivamente a metodologia de diálogo social (PIRES et al, 2014). De
acordo com Adelino e Santos (2014, p. 14), o PPA 2004-2007 realizou “audiências regionais
acerca do conteúdo do planejamento governamental para os quatro anos seguintes” e inovou,
quando comparado ao modelo de participação na definição do orçamento – os orçamentos
121
participativos (OPs) – pelos conselhos, no sentido de que mobilizou também discussões
acerca do conjunto das políticas públicas (debate de conteúdo) a serem empenhadas pelo
Estado.
O processo de incorporação do componente participação no âmbito do planejamento público
foi continuado e aprimorado no PPA 2008-2011. Processos semelhantes ao ciclo anterior
foram mantidos, mas trocou-se o foco da mobilização social para os conselhos nacionais, de
modo a pautar a elaboração do plano na representação de interesses difusos e, supôs-se, na
legitimidade da escuta social. Os conselhos foram chamados a participar de debates
específicos das políticas-objeto de sua atuação, e os resultados dessa medida, ao menos no
plano da intencionalidade, deveriam ser conduzidos para a agenda do executivo federal
(AVELINO e SANTOS, 2014). No referido ciclo de elaboração, também foram
oportunizados seminários regionais e um grande evento de diálogo em Brasília, em 2007.
Ainda, já na competência do legislativo, foram promovidas discussões entre a Comissão
Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização (CMO) do Congresso Nacional e a
sociedade civil, com a promessa de priorizar suas sugestões no texto do PPA (PIRES et al,
2014).
Apesar da introdução da participação social nos planos e dos avanços metodológicos
apresentados do PPA 2004-2007 para o PPA 2008-2001, algumas críticas severas tecidas
sobre a condução do processo participativo podem ser citadas, que correspondem,
principalmente, às limitações na efetiva incorporação dos pleitos sociais e do impacto da
escuta na agenda pública governamental. No primeiro ciclo, alguns grupos entrevistados,
representantes da sociedade civil organizada, consideraram um verdadeiro “espetáculo da
participação” a suposta abertura proporcionada, na medida em que as propostas não foram
incorporadas no plano como esperado. As estratégias não corresponderam às expectativas de
criação de espaços de participação institucionalizados com profundidade e sustentabilidade,
tampouco orientou as discussões para um “modelo de desenvolvimento”, somente para
questões pontuais (MORONI, 2010 apud PIRES et al, 2014). O segundo caso repetiu alguns
erros e produziu outros novos. Tanto os participantes frustraram as expectativas de ter seus
pleitos considerados na concepção do PPA, quanto a atuação da citada comissão do
Congresso Nacional apropriou-se do espaço de participação para vocalizar discursos longos e
próprios, inclusive limitando a oportunidade de vocalização da sociedade (INESC, 2007 apud
PIRES et al, 2014).
122
O ciclo de elaboração do PPA 2012-2015, por sua vez, apresentou incrementos mais
substantivos de participação no planejamento público. Por meio do chamado “Fórum
Interconselhos”, foi introduzida uma nova metodologia de “perenização” de interesses da
sociedade no texto do plano plurianual. De acordo com publicação da Secretaria Nacional de
Articulação Social (2011 apud PIRES et al, 2014, p. 125), era esperado que o fórum fosse
uma “instância de debate efetivo, qualificado, contínuo e institucionalizado sobre participação
social e planejamento público, assim como [ampliasse] a conexão entre a participação social e
expressões das escolhas estratégicas de governo, como PPA, LDO e LOA”. Com uma
contribuição inovadora na questão da discussão de políticas públicas – inclusive no cuidado
com a transversalidade dessas políticas públicas – os conselhos tiveram a oportunidade de
serem ouvidos, primeiramente, dentro da sua própria estrutura e, em seguida, em um
momento coletivo que agregou diferentes representantes eleitos. A oportunidade também foi
estendida a um conjunto de governadores e representantes de municípios, de/em todas as
regiões do Brasil, por meio de processos de diálogos regionalizados (AVELINO e SANTOS,
2014; PIRES et al, 2014).
Participaram do processo de escuta e diálogo cerca de 300 pessoas, e mais de 600 propostas
foram apresentadas, sendo 77% delas incorporadas no plano. Foi atestada de fato a
contribuição do fórum na alteração significativa do formato de diálogo com a sociedade e no
aprofundamento e aperfeiçoamento das experiências anteriores. É importante destacar que,
além desses resultados, o componente de participação ganhou centralidade também no
monitoramento expandido do PPA, contribuindo à função de planejamento em aspectos de
profundidade e sustentabilidade. Nessa perspectiva, Avelino e Santos (2014, p. 14-15)
afirmam que o “grande diferencial do Fórum Interconselhos é que a mobilização da sociedade
não se esgotou no momento da elaboração do Projeto de Lei do Plano Plurianual”, pelo
contrário, após a elaboração e aprovação em si, os participantes foram convocados mais
outras três vezes, o que pode indicar um maior grau de institucionalização de participação em
processos decisórios e em práticas governamentais rotineiras.
Naturalmente, apesar de todos os avanços e da inegável disposição do governo federal em ao
menos estreitar laços com a sociedade, o modelo participativo no planejamento formal e na
elaboração das peças plurianuais ainda está inacabado, carecendo de aprimoramento
conceitual e metodológico. Pires et al. (2014) criticam o patamar de conciliação entre
planejamento e participação no sentido do enfoque e do formato dados ao processo,
promovendo assertivas interessantes acerca da manutenção dos desencontros entre os
123
paradigmas e limitações remanescentes, mesmo nos PPA-Ps do contexto pós-2000. Segundo
os autores (p. 121), “persistem desencontros entre a operação [dos] canais de participação e os
objetivos de construção de um planejamento de médio e longo prazo compartilhado entre o
governo e sociedade”. Existem muitas limitações persistentes responsáveis por também
persistir o prejuízo à mobilização da sociedade na construção de conteúdo dos planos
plurianuais, que são de naturezas diversas, como referentes ao tipo de arranjo participativo ou
às inalcançáveis capacidades burocráticas governamentais de implementar e gerir o PPA. Os
atores ainda “exibem baixas capacidades propositivas e de promoverem reflexões coletivas,
discussões ampliadas sobre os rumos das políticas públicas e do país”, ou insuficiência em
proporcionar a “concertação necessária para a construção de visões compartilhadas de
futuro”.
2.3.4 Participação social em contexto subnacional: o PPA
Participativo nos estados
O planejamento governamental esteve historicamente nas mãos da burocracia estatal e,
consequentemente, pouco aberto à construção coletiva participativa. Como apresentado
reiteradas vezes neste trabalho, a partir dos anos 2000 foram dados importantes passos na
abertura do planejamento governamental via adoção da participação social. E esse movimento
de aproximação de formas de participação na elaboração dos PPAs não se restringiu ao
governo federal. Como espelho do movimento central e das transformações das relações com
a sociedade civil e movimentos sociais, além das experiências exitosas de participação em
níveis locais, diversos estados brasileiros passaram a implementar, pouco a pouco, fóruns e
mecanismos de participação social na elaboração dos respectivos planos plurianuais (PIRES
et al, 2014; AMARAL, 2015). Uma das noções possíveis (AMARAL, 2015, p. 238) do
objetivo da adoção da participação social é a de aprimorar planos de governo, planos de longo
prazo e “ao menos o escopo geral de conteúdo do PPA, expresso, em geral, em suas diretrizes,
metas, programas e ações”.
As experiências estaduais de perenização do desenho das ações governamentais datam de
forma efetiva do PPA 2004-2007 e, desde então, a prática é cada vez mais recorrente. Alguns
estados, inclusive, chamam o seu plano plurianual de PPA Participativo (PPA-P), pois
124
agregam a participação social ao planejamento como “elemento-chave” da elaboração do
conteúdo programático, compreendendo o elemento como premissa de todo o processo. Essas
experiências no nível estadual vêm se constituindo dentro de arranjos participativos
específicos e relativamente heterogêneos, expressando formatos e naturezas de participação
distintos (PIRES et al, 2014; AMARAL, 2015). Como já adiantado no Capítulo 1, as
arquiteturas institucionais em que foram moldados os sistemas estaduais de planejamento
representam estratégias distintas de sobrevivência dentro da máquina pública, em confronto
com as inúmeras iniciativas de desmantelamento da função de planejamento, e essas
estratégias refletem na forma como os governos estaduais praticam a elaboração dos planos
plurianuais (CARNEIRO, 2015).
Somada aos determinismos da trajetória de planejamento de cada contexto subnacional
estadual está a afinidade ideológica dos dirigentes com o tema da participação social. Ela vem
sendo incorporada em perspectiva voluntarista de certos governos estaduais, assim como
ocorreu em ganhos de intensidade nos governos locais ao longo do tempo. Uma vez que a
normatização de elaboração do PPA somente exige a adoção da participação social em fase de
validação do texto final, no Legislativo, por meio de audiências públicas, quando os governos
abrem a inclusão política de atores sociais também no processo de discussão programática,
esses novos canais refletem a vontade política do Executivo em ampliar a participação social
e, supõe-se, qualificar o planejamento público. Ou seja, a ausência de prescrição normativa
que obrigue os governantes a abrirem escutas sociais em fase de elaboração dos planos acaba
por sinalizar a vontade política de estreitar relações com a sociedade (CARNEIRO, 2015).
A partir então dessa vontade política e das arquiteturas institucionais inerentes a cada governo
estadual, conformam-se de forma variada os canais e instâncias de participação social na
elaboração do planejamento. São incorporados de forma heterogênea os múltiplos atores
sociais na priorização e desenho de ações governamentais. De acordo com Carneiro (2015, p.
287), a princípio, “os conselhos e conferências de política setorial instituídos nos estados
seriam uma espécie de candidato natural à viabilização dessa participação”, considerando “o
caráter também setorial que caracteriza o arranjo organizacional estruturado para a elaboração
do PPA”. Mas foram as instâncias de participação, representadas em fóruns presenciais e
virtuais, que ganharam mais ênfase no PPA participativo. Na maioria das experiências
estaduais, o governo protagoniza ambas a “realização de audiências públicas ou fóruns, de
recorte regional, e a criação de sites ou portais específicos para a interlocução com a
sociedade”, muitas vezes de forma combinada.
125
Olhando para os casos empíricos, sistematizados pelo já citado projeto do IPEA
“Planejamento e Gestão Governamental na Esfera Estadual: uma análise comparativa dos
processos, conteúdos e sistemas de acompanhamento dos PPAs”, Pires (et al, 2014) e
Carneiro (2015) classificam, de forma diferente, mas com resultados parecidos, as
experiências estaduais na elaboração do PPA 2012-2015 entre aquelas mais ou menos
participativas.
Os primeiros autores identificam três grupos de estados – entre os dez contemplados no
projeto – que promoveram arranjos participativos para o referido ciclo do PPA em diferentes
graus de intensidade. Em um polo de maior complexidade, visando à construção de um amplo
sistema de participação integrado, estão Bahia, Rio Grande do Sul e Ceará. Já em outro polo,
se constituíram arranjos pouco abrangentes, não integrados em diferentes espaços e com a
promoção de eventos descontínuos, muitas vezes limitados às audiências públicas obrigatórias
no âmbito do Legislativo. Os estados expoentes nesse polo são Minas Gerais, Mato Grosso do
Sul, Rio Grande do Norte e Paraná. Em linha intermediária estariam Espírito Santo, São Paulo
e Rio de Janeiro. Os resultados das análises são oriundos de uma proposta de indicadores que
refletem a profundidade do arranjo de participação em que estão imersos os respectivos
planejamentos estaduais. São representados de forma sintética tal como no Quadro 01 a
seguir.
126
Quadro 01. Classificação dos indicadores de arranjo participativo nos PPAs estaduais
por estado
Estado
Indicador de arranjo participativo na construção e debate do PPA estadual
Regionalização
da participação
Presença de
mais de um
canal de
participação
Eleição de
representantes
regionais para
deliberação na
esfera estadual
Criação de
conselho ou
fórum
exclusivo
Participação
promovida
tanto pelo
Legislativo
quanto pelo
Executivo
Bahia Alta Alta Alta Alta Alta
Rio Grande do Sul Alta Alta Alta Alta Alta
Ceará Alta Alta Média Média Alta
Espírito Santo Baixa Média Baixa Média Média
São Paulo Baixa Média Baixa Média Média
Rio de Janeiro Baixa Média Baixa Média Média
Minas Gerais Baixa Baixa Baixa Baixa Baixa
Mato Grosso do Sul Baixa Baixa Baixa Baixa Baixa
Rio Grande do Norte Baixa Baixa Baixa Baixa Baixa
Paraná Baixa Baixa Baixa Baixa Baixa
Fonte: elaboração própria; extraído das ideias de Pires et al, 2014.
Como se pode observar, somente Bahia e Rio Grande do Sul cumprem com os cinco
indicadores apontados. Todavia, como a regionalização é uma importante medida de inclusão
política, o Ceará compõe o polo de maior complexidade. A formatação dos arranjos
participativos desses estados em torno de territórios – no caso da Bahia, os “Territórios de
Identidade” – é compreendida como um esforço de integrar diferentes regiões e perspectivas,
“com vistas a não só atender o maior número de cidadãos nesses espaços, bem como
pluralizar (em termos regionais) os debates em torno da priorização e hierarquização de
propostas advindas da sociedade” (PIRES et al, 2014, p. 128). Além disso, a diversificação de
canais de participação reflete o esforço de ampliar as instâncias participativas e, por
consequência, de ampliar a inclusão de mais atores e respectivas propostas no processo de
elaboração dos planos plurianuais. Os referidos estados por fim promovem a “criação de um
conselho ou fórum temático específico para debater o PPA com participação de membros do
governo e da sociedade civil organizada, e tentativas de integração entre Legislativo e
Executivo no fomento aos espaços de participação”, apontando para um futuro de
127
sustentabilidade das estratégias e para o desenho de metas mais aderentes aos anseios da
sociedade, inclusive em perspectiva “subestadual”.
Carneiro (2015), por sua vez, considera apenas Bahia e Rio Grande do Sul como estados que
atribuem maior centralidade política à participação social na elaboração dos PPAs, não
incluindo o Ceará no rol de estados com arranjos participativos mais consolidados e
aprofundados. Pensando em um traço contínuo de intensidade da participação, estariam Bahia
e Rio Grande do Sul em um extremo, presente, e o Paraná em outro extremo, ausente. No
PPA 2012-2015, o Paraná não apresentou avanços na inclusão política no planejamento,
sequer foi representativo o número de audiências públicas realizadas no estado, obrigatórias
pela constituição.
A tônica da participação na Bahia se dá, segundo o autor, pela “arquitetura institucional de
relativa complexidade” que consolida “como principal espaço de interlocução a realização de
plenárias nos denominados ‘territórios de identidade’ que representam as unidades regionais
de planejamento utilizadas no estado” (CARNEIRO, 2015, p. 288). Abranger o território
dessa forma tem a intencionalidade de fomentar a inclusão e incorporação das múltiplas
intervenções e propostas da sociedade na programação do PPA, ainda que sem a garantia
dessa inclusão. Já o Rio Grande do Sul é o estado “que conta com o arranjo institucional de
maior abrangência e complexidade para a interlocução com a sociedade no processo de
elaboração do PPA”, na ótica de Carneiro (2015, p. 288). A referência nacional que o RGS
impõe se expressa por meio da conformação do chamado Sistema Estadual de Participação
Popular e Cidadã, que diversifica a participação em vários canais e instrumentos, com o
objetivo de promover a participação na elaboração do planejamento e também em seu
acompanhamento, garantindo um caráter permanente de discussão, revisão e accountability. O
estado também inova com iniciativas de deliberação, ainda que imaturas.
É importante destacar no caso da Bahia, para fins deste trabalho, que o estado se encaixa entre
aquelas iniciativas de planejamento que busca empréstimo das experiências federais, enquanto
outros estados optam por trilhar caminhos constitutivos e metodológicos independentes
(PIRES et al, 2014). Assim, a Bahia tem a peculiaridade não só de expressar-se favorável à
participação, mas também de mostrar-se disposta ao alinhamento com as diretrizes do
governo federal e às oportunidades de aprimoramento metodológico abertas no reflexo de
experiências mais bem consolidadas. Sobre esse aspecto, Carneiro (2015, p. 303) reconhece
um conjunto de estados que busca “acompanhar as inovações na concepção metodológica do
128
PPA 2012-2015 introduzidas pelo governo federal” e outro conjunto, como Minas Gerais, que
se caracteriza pela “incorporação das ferramentas do planejamento estratégico utilizadas na
iniciativa privada”. Nesse último caso, o discurso em prol da eficiência ganha centralidade e
se estabelece um paralelo de diálogo com medidas gerencialistas que focam em gestão por
resultados, no alcance de metas e na racionalização do gasto público. Normalmente as duas
visões são inconciliáveis, não porque seja impossível coexistir seus elementos constitutivos,
mas porque são produto de construções ideológicas distintas. Ainda assim, como exemplo, as
experiências recentes do PPA do Ceará demonstram essa tentativa de conciliação.
Para fechar a presente seção, é razoável compartilhar alguns achados críticos de Carneiro
(2015, p. 288) na leitura transversal das experiências estaduais no planejamento formal. A
primeira é que “quaisquer que sejam os canais adotados, o alcance da participação no tocante
à efetiva incorporação das demandas manifestadas pela sociedade na programação do PPA
revela-se, na ampla maioria dos estados pesquisados, muito restrito”. Isto é, pouco do
conteúdo discutido nas instâncias participativas tem sido efetivamente colocado nos planos, o
que é problemático do ponto de vista da efetiva perenização do planejamento público em
função da abertura do processo para a sociedade. A segunda diz respeito à natureza da
participação, sendo a maioria “meramente informativa”, no máximo consultiva. “Quando
consultiva, as sugestões e demandas constituem apenas subsídios a serem considerados na
formulação do documento, sem o compromisso formal do governo de acatá-las”, ou seja,
reforça que a abertura de escuta pode não se dar no sentido da adesão de propostas, mas em
uma via de mão única que continua a valorizar a burocracia técnica estadual na programação
governamental. Para Carneiro (2015) é possível afirmar que o componente participativo na
elaboração do PPA 2012-2015 no âmbito dos estados, “na maioria dos casos, se presta,
quando muito, à aprendizagem democrática, pouco contribuindo para tornar o conteúdo dos
documentos produzidos mais permeáveis à manifestação das preferências e interesses da
sociedade”. Espera-se que este trabalho responda de forma mais aprofundada tanto os avanços
dos arranjos participativos quanto os aspectos críticos apontados.
129
Capítulo 3. Estudo de caso do PPA Participativo da Bahia
Nos capítulos anteriores, este trabalho apresentou e problematizou os principais conceitos e
desdobramentos do planejamento público no Brasil e da democracia e participação social.
Esses esforços iniciais contribuíram para identificar as brechas no planejamento público no
Brasil e indicar o potencial da participação social em superar os problemas destacados.
Concluídas as exposições teóricas, este capítulo apresenta o estudo de caso selecionado para a
realização da pesquisa, que é o Plano Plurianual Participativo da Bahia (PPA-P/BA). Está
organizado em quatro seções: primeiro, apresenta a delimitação da pesquisa, retomando
objetivamente os pressupostos teóricos e delimitando o recorte analítico do estudo de caso;
segundo, discorre sobre a metodologia empregada na pesquisa; terceiro, percorre o histórico
da mobilização social no Estado da Bahia, a evolução do processo de elaboração do PPA nos
últimos ciclos quadrienais e a construção do arranjo participativo; por fim, apresenta o
modelo de análise e os resultados nos indicadores da democracia no PPA-P da Bahia.
Seção 3.1 Delimitação e objetivos da pesquisa
Esta seção tem a missão de delimitar objetivamente a pesquisa e apresentar seus objetivos. O
estudo foi motivado por uma inquietação acerca do padrão de planejamento público no Brasil,
que seria reprodutor de uma série de características conservadoras da administração pública.
Partiu-se de uma ideia de que esse padrão adotaria convencionalmente ritos de planejamento
não afinados com preceitos democráticos de inclusão política e participação cidadã e
assumiria vieses equivocados nos processos decisórios, contribuindo para a elaboração de
planos nacionais esvaziados de conteúdo político, de soberania democrática e de requisitos de
legitimidade.
Diante dessa inquietação, as seções iniciais responderam às seguintes perguntas: A origem,
motivação e os ciclos marcantes da trajetória do planejamento no país (seção 1.1) afirmam
que a função foi tradicionalmente realizada em desacordo com os princípios democráticos?
Quais aspectos críticos da função do Brasil (seção 1.3) poderiam ser preenchidos de
130
princípios democráticos e de sentido? Ainda, ao analisar as experiências de planejamento
recente, será que existe um cenário de transição dos aspectos críticos da função para soluções
via democratização e participação social (seção 2.3)? O estudo exploratório buscou organizar
as ideias a respeito da transformação de sentido do planejamento público, verificando o
potencial de ressignificação da função a partir da democratização da administração pública.
O Capítulo 1 abordou a problemática do planejamento tradicional desde sua origem na década
de 30, encontrando de fato um descompasso com princípios democráticos. Esse modelo de
planejamento teria se consolidado de forma burocrática, centralizadora, discricionária,
economicamente orientada e politicamente esvaziada, entre outros legados nocivos à
democratização. Além disso, a primeira linha teórica lidou com a questão do esvaziamento da
função a partir de meados da década de 80, que foi responsável por pressionar importantes
agendas de recuperação e reformulações normativas, como a própria CF-88, para tornar o
planejamento um rito de ordenamento programático formal. Essas mobilizações foram
organizadas neste trabalho sob a ótica de um processo de transformação afirmativa do
planejamento público, no sentido de que ele deve preencher lacunas na ação programática do
governo frente ao dito esvaziamento.
O Capítulo 2 deu os contornos da democracia, focando os achados no seu processo de
reinvenção a partir de instituições deliberativas e participativas, como uma política continuada
de reestruturação de relações entre Estado e sociedade. No Brasil, de forma paralela ao
processo de transformação afirmativa do planejamento, a agenda democrática impulsionada
pela carta constitucional também buscou promover um novo sentido para a função, voltado a
edificá-la em bases democráticas. Assim, as mudanças de cunho democrático foram
incorporadas na agenda de desenvolvimento do planejamento não somente para recuperá-lo
enquanto função do Estado, mas também para dotar essa função de mais sentido. Valendo-se
de vontade política e de arquiteturas institucionais de participação, a partir dos anos 2000 o
país vem intensificando a conciliação entre planejamento e participação – ainda que as
práticas participativas coexistam com sistemas mais tradicionais da administração pública e
da representação política –, o que é indicativo da constituição de um possível cenário de
transição dos aspectos críticos do planejamento para soluções via democratização.
É da seguinte forma que este trabalho organiza a concepção de ressignificação do
planejamento público: dar um novo significado e/ou um novo sentido para o planejamento,
apoiado na participação política, na inclusão social e em um projeto político que cria
131
instâncias de participação no âmbito do Estado, as quais viabilizam, entre outros, rotinas de
escuta social e espaços de construção coletiva da agenda governamental. Dar um novo
significado e/ou um novo sentido para o planejamento também se refere a mitigar suas
disfunções constitutivas, limitações e problemáticas de enfoque (seção 1.3) e preencher a
função de conteúdo político, de soberania democrática e de requisitos de legitimidade.
O que se apreende dessas exposições sobre o planejamento, a democracia e a ressignificação é
que a pesquisa bibliográfica e documental já respondeu às inquietações iniciais deste estudo,
promovendo afirmações sobre o potencial de qualificação do planejamento com o processo de
democratização da administração pública e com a adoção da participação social.
Para confirmar (ou refutar) os achados teóricos, optou-se pela análise do Plano Plurianual
Participativo da Bahia (PPA-P/BA), devido à possibilidade de exploração do histórico de
mobilização social e participação à luz do caso concreto e do enquadramento em modelo de
análise que dispõe de indicadores capazes de examinar com qual grandeza e intensidade a
democracia ressignifica o planejamento público. Sendo assim, coloca-se como objetivo
central deste trabalho examinar, a partir da adoção de modelos de análise fundamentados na
teoria da democracia, em que medida o planejamento público é ressignificado pela
participação social, tendo como referência a grandeza – tamanho da área do “Cubo da
Democracia” de Fung (2006) –, e a intensidade da democracia nas instituições participativas
do PPA-P/BA.
A análise e a demonstração dos resultados em modelo trazem algumas vantagens para o
estudo, entre elas: traduzir a ressignificação do planejamento público a partir da
institucionalização da participação social em um contexto específico; promover uma
compreensão mais apurada sobre a grandeza e a intensidade da democracia possibilitada pelo
arranjo institucional participativo adotado; e indicar variedades de intensidade com que a
democracia participativa pode preencher o planejamento de significado. O modelo de análise
para o estudo do caso concreto vai permitir o posicionamento do PPA-P/BA em diferentes
intensidades de inclusão política, extensão do chamamento à participação, desenvolvimento
de preferências pelos participantes da sociedade, diluição da autoridade governamental nos
processos decisórios, empoderamento de pauta à agenda governamental, entre outras variáveis
da democracia.
Vale ressaltar que o enfoque da pesquisa está na identificação de variedades de grandeza e
intensidade de democracia na função de planejar – assim, na democratização do planejamento
132
e em sua ressignificação a partir da participação social –, e não em resultados da participação
no produto-plano do PPA ou em sua implementação. Esse enfoque foi motivado por
constatações de que o planejamento é processo, uma função permanente do Estado e um
exercício essencialmente político, ainda que exija rigor formal e metodológico para evitar o
voluntarismo e a discricionariedade dos gestores públicos. Esse exercício requer
questionamentos e debates que enriquecem o conteúdo das ações programadas e tornam a
função de planejar mais complexa que um produto impresso rígido. Além disso, os atributos
da democracia não têm compromissos diretos com o produto ou efetividade na
implementação do que foi desenhado, pois a democracia é compreendida como valor que,
entre muitos outros ganhos, constrói uma soberania social e forma politicamente os
participantes das IPs para o exercício da cidadania. Por isso, o ganho de democracia não se
daria necessariamente na qualidade do produto, o plano plurianual em si, mas em fortalecer o
debate de conteúdo com uma multiplicidade de interesses e visões de mundo e perenizar o
processo decisório, dotando o planejamento de mais legitimidade.
O caso da Bahia foi selecionado tendo em vista três razões principais, a saber: primeiro,
porque a experiência do estado mostrou-se uma referência no país pelo arranjo institucional
adotado e pelos resultados alcançados, conforme destacaram alguns estudos transversais sobre
o planejamento participativo nos estados brasileiros; segundo, porque o modelo implantado
no estado fez uma releitura adaptativa e um aprimoramento da adoção do componente
participativo à luz do modelo federal, o que projetou a análise desta pesquisa em diálogo com
a experiência nacional e a permitiu dispor de mais literatura; e, por fim, porque houve uma
continuidade na gestão estadual em 2014 que corroborou para que se mantivesse no governo a
mesma equipe que vem construindo os entendimentos e a metodologia sobre o PPA
participativo, o que é fundamental para uma análise crítica contextualizada dos avanços e
retrocessos do planejamento no estado.
Procedem, neste capítulo, a descrição da metodologia utilizada para a realização da pesquisa,
o histórico de participação na Bahia e a construção do arranjo participativo no estado24
. Na
última seção, são apresentados o modelo de análise e os resultados dos indicadores
selecionados, que analisam a grandeza e a intensidade da democracia no arranjo de
participação do PPA-P baiano, valendo-se de modelo analítico fundamentado em Fung
24
O item 3.3.3 correspondente à construção do arranjo de participação já tem um aspecto analítico forte, pois
adiciona às descrições perspectivas importantes da revisão documental e da pesquisa qualitativa aos
entrevistados da SEPLAN; assim, as descrições são também apoiadas nas percepções dos gestores da secretaria.
133
(2006), de configuração multidimensional. Motivado por uma exposição voluntária e
sinérgica dos entrevistados, o último item do capítulo apresenta, ainda, temas específicos que
têm potencial de responder às críticas do planejamento organizadas na revisão teórica.
Seção 3.2 Metodologia
Para alcançar os objetivos desta dissertação, partiu-se de uma ampla revisão teórica de ambos
os objetos centrais da pesquisa: o planejamento público; e a democracia e a participação
social. A construção argumentativa e lógica do trabalho se deu da teoria para a investigação
empírica – abordagem dedutiva (FERREIRA, 1998; LAKATOS e MARCONI, 2000) –,
promovendo contribuições às discussões de fundo acerca da democratização da administração
pública e adiantando alguns resultados do potencial de ressignificação do planejamento
público a partir da participação social.
Foi adotado o estudo de caso como modelo de procedimento, entendendo que a análise em
profundidade permite compreender como ocorre a construção da participação social, quais as
consequências empíricas das opções metodológicas (variáveis do arranjo participativo) para a
construção das instituições participativas e como se caracteriza a grandeza e a intensidade da
democracia, demonstrada em modelos, no arranjo institucional participativo em análise.
Pondera-se que não se trata de um estudo de caso convencional – em que o caso particular é
praticamente todo o trabalho e explorado até que se informe a teoria sobre os achados –, pois
neste trabalho foram impressos esforços significativos de pesquisa bibliográfica e documental,
caracterizando um estudo exploratório que, antes mesmo da análise do caso concreto, já
adianta pressupostos teóricos relevantes. O Plano Plurianual Participativo do Estado da Bahia
(PPA-P/BA) foi selecionado como objeto empírico para o estudo de caso por se caracterizar
como um instrumento que agrega tanto planejamento quanto participação social – portanto, as
duas chaves teóricas centrais – e que oportuniza a pesquisa na aplicação dos indicadores de
democracia.
A pesquisa realizada tem natureza qualitativa e é de tipo exploratório-descritivo na busca pela
caracterização do processo participativo em curso no cenário administrativo baiano. A via
exploratória desse tipo pressupõe algumas técnicas de pesquisa que serão apresentadas a
seguir, como levantamento bibliográfico e entrevistas, enquanto a via descritiva cuida de
134
apresentar características de um determinado grupo social ou fenômeno específico, no caso, a
democratização da administração pública e da ressignificação do planejamento público a
partir da participação social. Ambas as vias são relevantes para a imersão analítica no estudo
de caso.
A coleta de dados foi sustentada por três técnicas de pesquisa, sobrepostas e coincidentes do
ponto de vista de cronograma de execução, que são elas: pesquisa bibliográfica, observação
direta e entrevistas/ coleta de depoimentos.
A primeira técnica foi adotada em duas diferentes perspectivas: pesquisa bibliográfica e
análise documental. A pesquisa bibliográfica apoiou-se nas assertivas de autores de referência
e multidisciplinares das áreas de administração, ciências sociais aplicadas e ciência política, e
de disciplinas correlatas e quase autônomas como planejamento público, participação social e
democracia. O trabalho teve o cuidado de identificar na literatura o suporte teórico de
referência para embasamento dos seguintes temas principais: trajetória, críticas e limitações
do planejamento público no Brasil; avanços e retrocessos oriundos da institucionalização do
PPA, juntamente com a descrição dos ciclos quadrienais de planejamento formal; modelos e
perspectivas de democracia e participação social, com ênfase nas instituições participativas
(IPs); e o caso empírico e objeto de análise da dissertação, a construção e o legado da
participação social na Bahia. A segunda perspectiva complementou essa técnica por meio da
análise da documentação direta do PPA-P baiano, ou seja, os planos propriamente ditos, assim
como outros documentos, legislações correspondentes, publicações, divulgações e notícias no
site do Governo do Estado da Bahia; a maioria dos documentos deriva das mobilizações e
produtos dos ciclos de planejamento estaduais, sobretudo dos ciclos de 2012-2015 e 2016-
2019. Nessa segunda perspectiva, a pesquisa apoiou-se principalmente nos seguintes
documentos:
PPA Participativo: registro de uma história – Caderno SEPLAN, 2012;
Relatório de Pesquisa do Estado da Bahia. Projeto Planejamento e Gestão
Governamental na Esfera Estadual: uma análise comparativa dos processos, conteúdos
e sistemas de acompanhamento dos PPAs – IPEA, 2013;
Decreto nº 16.014 de 20 de março de 2015, que dispõe sobre a elaboração do Plano
Plurianual Participativo – PPA 2016-2019 do Estado da Bahia, de 2015;
Apresentação de slides para Capacitação do Módulo de Cadastramento do FIPLAN
para o PPA 2016-2019, de 2015;
135
Orientações para a construção do PPA Bahia 2016-2019, de 2015;
Caderno de orientações metodológicas para a construção do PPA Participativo Bahia
2016-2019, de 2015.
A segunda técnica adotada na pesquisa chama-se observação direta25
. Essa técnica
normalmente é utilizada de forma conjugada com outras abordagens qualitativas, de modo a
complementar as percepções coletadas em conversas com os atores do processo de
planejamento, além de permitir um olhar crítico do próprio observador para o objeto de
análise (LAKATOS e MARCONI, 1992). A observação direta somente foi viável no
desenvolvimento da pesquisa devido a uma articulação com o poder público estadual, uma
vez que os assessores da SEPLAN deram abertura à participação em alguns momentos
coletivos, nas mesas temáticas, e em mais estratégicos, como nas conversas com os diretores.
Assim, aproveitando a mobilização governamental para o processo participativo de
planejamento realizado em 2015, e relacionado ao ciclo do PPA-P 2016-2919, foi agregada
uma importante visita à estratégia metodológica de observação direta. A visita à SEPLAN foi
realizada no início de maio de 2015, enquanto eram promovidas as chamadas “mesas
temáticas” do PPA-P. Foram observadas duas mesas temáticas, em dois dias diferentes (7 e 8
de maio de 2015), com os seguintes temas estratégicos: “Tema XII. Igualdade Racional e
Identidades” e “Tema XIV. Gestão Governamental e Governança”. Os temas permitiram à
pesquisa observar comportamentos colaborativos dos representantes de diversas setoriais e
captar a mensagem estratégica de públicos de órgãos distintos e com características
particulares. Cada tema ainda possibilitou o contato com problemas e soluções,
respectivamente, das áreas-fim e das áreas-meio, que conduzem rotinas de preparação e
diálogos internos de forma diferenciada, assim como impõem diferentes níveis de
engajamento nos fóruns.
A terceira e última técnica de pesquisa foi direcionada à realização de entrevistas com
stakeholders estratégicos do órgão central de planejamento e à coleta de depoimentos com
atores participantes das mesas temáticas internas e que fazem parte da comunidade
governamental. A técnica de realizar entrevistas e coletar depoimentos consolida abordagens
ao público em caráter qualitativo e são fundamentais para a captura de percepções mais
25
De acordo com Lakatos & Marconi (1992), a observação direta, quando do tipo “intensivo”, “utiliza os
sentidos na obtenção de determinados aspectos da realidade. Não consiste apenas em ver e ouvir, mas também
examinar fatos ou fenômenos que se deseja estudar”.
136
subjetivas em relação ao processo que se pretende investigar26
. As próprias divulgações da
SEPLAN, resultados da iniciativa da secretaria em estudar e avaliar a implementação do PPA-
P, já valeram-se de entrevistas com “stakeholders, dirigentes institucionais e representantes
dos movimentos sociais, que estiveram, ou ainda estão presentes na cena política e
administrativa, exercendo funções nos organismos públicos ou representativos da sociedade
civil” (BAHIA, 2012, p.11). Essas informações foram devidamente incorporadas na pesquisa
objeto da dissertação.
A pesquisa identificou a oportunidade na utilização dessa técnica o fato de estarem ainda
mobilizados, mesmo que não em sua totalidade, mas de forma considerável, todos os atores
envolvidos em ciclos participativos anteriores na nova rodada de elaboração para o ciclo de
2016-2019, em curso entre os meses de março a outubro de 2015. Na visita descrita às mesas
temáticas, que corroboraram para a observação direta, nos intervalos das discussões, também
foram mobilizadas perguntas a alguns participantes, cujas respostas serão utilizadas neste
trabalho a título de “depoimentos”. O Apêndice 1 apresenta um quadro-resumo dos seis
depoimentos coletados, com a função, o órgão que representa, o papel que o órgão
desempenha na estrutura do governo e a percepção do manifestante sobre a vinculação do
órgão com a elaboração do PPA Participativo.
De forma intercalada à observação das mesas temáticas, articuladas pela assessoria da
Superintendência de Planejamento Estratégico (SPE/SEPLAN), foram promovidas quatro
entrevistas com stakeholders estratégicos do órgão central de planejamento. As entrevistas
cobriram a percepção acerca do PPA-P de todos os diretores da SPE, nas áreas de
planejamento social (DPS), econômico (DPE) e territorial (DPT). No último caso, o mesmo
ator entrevistado responde à assessoria do secretário, interinamente à diretoria do DPT e como
secretário executivo do Conselho de Desenvolvimento Territorial (CODETER). Ainda, o
quarto entrevistado representa a Assessoria de Planejamento e Gestão, estrutura diretamente
ligada ao secretário e responsável pela concepção metodológica e executiva do PPA-P. O
Apêndice 2 apresenta um quadro-resumo das quatro entrevistas realizadas, especificando a
função, o órgão que o entrevistado representa, sua formação acadêmica e atuação profissional.
Os achados decorrentes das entrevistas, assim como aqueles oriundos dos depoimentos,
26 Mauro Silveira defende em sua tese de doutorado (2013) que processos investigativos como esse permitem a
compreensão dos “significados que os entrevistados atribuem às questões e situações relativas ao tema de
interesse, assim como as elaborações que eles usam para fundamentar suas opiniões e crenças. É utilizada para
recolher dados descritivos na linguagem do próprio sujeito, possibilitando ao investigador desenvolver uma ideia
sobre a maneira como eles interpretam aspectos do mundo” (SILVEIRA, 2013, 108).
137
colaboram para o aprofundamento das respostas aos indicadores da pesquisa, na seção de
resultados, e foram oportunamente interpretados e transcritos para reforçar as respostas
proporcionadas pelo levantamento documental. Todos os depoimentos e entrevistas foram
gravados e as falas parcialmente transcritas.
Por fim, é importante mencionar que o trabalho deve ainda apresentar no item “3.4.1 –
Modelo de análise” alguns parâmetros utilizados pela pesquisa para abordagem ao caso
concreto, recortando, a partir da teoria, um conjunto de indicadores destinados à mensuração
da grandeza e intensidade da democracia no PPA-P da Bahia – com base em Fung (2006).
Dessa forma, fecha-se o agregado de opções metodológicas deste trabalho. Entende-se que
compreender as chaves teóricas, vivenciar a interação que permeia a comunidade
governamental nos fóruns, discutir com os mentores metodológicos as reflexões internas
acerca das experiências de participação social e captar as percepções do núcleo dirigente da
SEPLAN sobre o alcance da democracia promoveu a compreensão dos fenômenos da
participação no planejamento e uma importante conexão entre a teoria e a prática. E foram
somente alguns dos resultados alcançados com a metodologia escolhida nesta dissertação.
Seção 3.3 Participação na Bahia: histórico e construção
do arranjo participativo no estado
3.3.1 Histórico de mobilização social
A trajetória da Bahia aparece em revisões teóricas sobre a participação no Nordeste como um
caso bem particular. A referência nacional que o estado se tornou ao longo das últimas
décadas, no âmbito das instituições participativas, pouco se parece com a sua dinâmica da
democratização durante o século XX e com o histórico de participação social de suas diversas
regiões, inclusive Salvador, capital do estado. A Bahia constituiu um “padrão de
sociabilidade” – ou seja, um modelo de desenvolvimento da sociedade civil – considerado
típico de todo o Nordeste, caracterizado por três elementos básicos: oligarquias fortes, anti-
modernização e de hierarquias bem demarcadas entre indivíduos (DUARTE, 1939; LEAL,
1948; LAMBERT, 1960; HOLANDA, 1963; PANG, 1978 apud AVRITZER, 2007).
138
O papel das oligarquias regionais é central para toda a organização política e social do estado,
contribuindo para o baixo peso político da capital de Salvador até mesmo após a retomada da
democracia no país. A partir de alianças entre os grupos oligárquicos nos anos 20, fundiram-
se grupos de origens agrárias e outros de origens urbanas que, juntos, organizaram não uma
ordem política modernizadora, mas conservadora, rejeitando um projeto transformador na
Bahia. Nesse contexto, a modernização da própria sociedade também vem tardiamente, posto
que imperava a manutenção dos status de poder; essa ordem política não deu origem a um
“novo padrão de vida cultural com consequências na dinâmica associativa e participativa
desde o final do século XIX” (AVRITZER, 2007, p. 12). A herança oligárquica somada às
imposições anti-modernizadoras constituíram uma sociedade pouco mobilizada e ativa, e que
respeitava hierarquias moldadas no bojo dos poderes regionais tradicionais.
Esse contexto muda somente em parte após a redemocratização do Brasil em 1988. O
paradigma democrático não consegue romper completamente com as estruturas oligárquicas e
com a conduta política conservadora. Tanto na prefeitura de Salvador quanto no governo
estadual a implantação de políticas públicas de participação social e de instituições
participativas sofreu resistência. Salvador contava com a presença de grupos de esquerda,
mais tradicionais, mas pouco com os movimentos urbanos que são os protagonistas de
grandes pressões pela modernização social; esses tiveram pouca expressão na capital. Ainda,
com uma “dominação política de longo prazo exercida pelo grupo ligado a Antônio Carlos
Magalhães, a Bahia acabou se tornando um estado com uma administração anti-participativa”
(MOTA, 2007 apud AVRITZER, 2007, p. 15-16). A participação social no estado da Bahia
ocorreu em regiões alternativas à capital, cujas maiores expressões de movimentos
modernizadores se deram em Vitória da Conquista e Alagoinhas, muito devido à ascensão de
grupos de esquerda ao poder – “o Partido dos Trabalhadores foi introduzindo instituições
participativas à medida em que foi elegendo os seus prefeitos” (AVRITZER, 2007, p. 16).
Em artigo com a investigação sobre estruturas de associativismo e efetividade deliberativa de
conselhos em três estados nordestinos – Bahia, Pernambuco e Ceará – o estado da Bahia
desponta como aquele que menos agrega às políticas públicas as decisões participativas e
menos fomenta políticas participativas (AVRITZER, 2007). Isso mostra uma inobservância
de princípios democráticos na atuação do governo estadual até o início do século que não
parece corresponder ao projeto constituinte, o que sugere que as transformações
democratizantes recentes no âmbito do estado da Bahia, e o nível de maturidade democrática
139
que apresenta nas experiências de planejamento, decorrem mais do novo cenário político dos
anos pós-2000 que pela retomada da democracia em 1988.
3.3.2 Evolução da elaboração participativa do PPA no estado
As práticas de relacionamento entre Estado e sociedade por meio de esferas participativas
institucionalizadas foram sendo pouco a pouco incorporadas no processo de planejamento
público estadual, e a Bahia é hoje reconhecida por um esforço democratizante ímpar e com
amplo e efetivo histórico de participação social. Nesse contexto, o planejamento plurianual foi
se transformando em planejamento plurianual participativo nos últimos anos, e esse
movimento, por se tratar de uma iniciativa voluntária dos governos, é carregado de
significado ideológico sobre o sentido que se atribui às escutas sociais e à politização de um
processo que é tradicionalmente técnico. O Rio Grande do Sul27
tem a fama equiparada ao
estado da Bahia, mas não é objeto empírico deste trabalho, pelas razões explicadas na
delimitação da pesquisa.
Na Bahia, os primeiros sinais de imersão do componente participativo no planejamento
formal do estado foram apresentados no ciclo do PPA de 2004-2007. O estreitamento da
relação entre o governo e a sociedade na formulação de políticas públicas baianas se
desenvolveu por meio da criação de um canal de comunicação social em 2003, situação em
que foram convidados à participação do processo de elaboração do PPA atores socialmente
relevantes, representantes de conselhos, associações, entre outros. Ainda que incipiente e sem
uma divulgação ampla, com baixa democratização do processo, o novo sistema permitiu que
tais atores sociais tivessem a oportunidade de participar de discussões sobre temas que são
caros à sociedade baiana e contemplar anseios e expectativas quanto à ação governamental
naquele quadriênio (POMPONET, 2008).
27
As primeiras iniciativas participativas do Estado do Rio Grande do Sul datam de mais tempo do que no caso
baiano, e são fruto de uma “tradição” consolidada de participação social. O estado apresenta histórico notório de
engajamento da sociedade civil e de abertura à escuta social pelo governo. Os mecanismos de participação
nasceram alinhados às iniciativas de planejamento regional desde o governo de Alceu Collares, da gestão de
1991 a 1994. O Rio Grande do Sul é reconhecido pela vanguarda das iniciativas do orçamento participativo,
tendo seu despontamento e valorização encampados pelo governo entre 1992 e 2002, quando também passou a
orientar o planejamento governamental. Em curso desde 1998, a Consulta Popular, também ligada ao
planejamento orçamentário, contava com o voto direto da população para hierarquizar prioridades para o
orçamento estadual (RIO GRANDE DO SUL, 2013).
140
No ciclo seguinte, de 2008-2011 de elaboração do PPA, a Bahia apresentou uma metodologia
mais consistente e abrangente e, por consequência, caracterizou-se por um avanço
significativo em termos de participação social em relação ao ciclo de 2004-2007. O chamado
PPA-P, que coloca o componente participativo no “rótulo” do instrumento de planejamento,
inaugura um amplo processo de escuta social (POMPONET, 2008). Entre as inovadoras
medidas adotadas estão o enfoque territorial descentralizado e a formação e capacitação de
agentes multiplicadores.
O próximo e importante passo da participação popular no planejamento público se deu no
ciclo do PPA-P 2012-2015. O plano plurianual de 2012-2015 baiano está, juntamente com o
do Rio Grande do Sul, entre as maiores referências de aprimoramento e institucionalização de
democratização do planejamento público para o nível estadual28
. No caso da Bahia, é
importante lembrar que foi construída uma compatibilidade conceitual e metodológica do
PPA-P com o modelo implantado pelo Governo Federal e que essa perspectiva de
alinhamento entre os dois modelos parte de uma afinidade ideológica e político-partidária, já
que o governador e o presidente são do mesmo partido (BAHIA, 2013).
O amadurecimento do PPA-P da Bahia veio com a revisão de processos anteriores,
protagonizada pela SEPLAN, e com a aprendizagem gerada pela equipe de acompanhamento
do plano. O governo baiano manteve nos últimos anos uma unidade em termos do fomento ao
PPA-P, compreendendo o mesmo como um instrumento promissor para o desenvolvimento
social do estado. A equipe mobilizada internamente manteve o olhar cuidadoso para pontos
positivos em relação à implementação de políticas exitosas em todas as esferas de governo, e
demonstrou, tal como será apresentado nos resultados da pesquisa, um alinhamento em prol
de políticas transformadoras, com carga de ativismo social e que demarcam uma postura mais
progressista e garantista do governo.
Para o ciclo de 2016-2019, a principal promessa era de configurar o plano como “um
documento político, pactuado e utilizado estrategicamente por todas as instâncias e, seguindo
o objetivo de fortalecer a sinergia para o PPA”. As diretrizes norteadoras, expressas em
publicação de orientação são: fortalecimento da dimensão estratégica; fortalecimento da
dimensão territorial; fortalecimento como instrumento da articulação setorial; aproximação
com os planos setoriais e sistemas estaduais; e ampliação da participação social no
28
Embora o Brasil apresente inúmeras experiências bem-sucedidas de planejamento participativo no âmbito dos
municípios, as experiências estaduais se destacam. Os desafios impostos à esfera estadual são maiores, devido,
entre outras razões, à distância entre ela e a sociedade.
141
planejamento (BAHIA, 2015c, p. 2). A resposta aos indicadores na seção de resultados
também deve apontar ao menos o potencial de fidelidade do plano vigente a partir de janeiro
de 2016 a essas diretrizes.
3.3.3 A construção do arranjo institucional participativo
A seção “2.3.4 Participação social em contexto subnacional: o PPA participativo nos estados”
citou uma pesquisa que foi realizada pelo IPEA em 2012 que buscou analisar experiências de
elaboração dos PPAs para o ciclo 2012-2015 em dez estados brasileiros. Os resultados dessa
pesquisa foram sistematizados e apresentados em documentos intitulados “Planejamento e
gestão governamental na esfera estadual: uma análise comparativa dos processos, conteúdos e
sistemas de acompanhamento dos PPAs”29. A partir dessa sistematização, Amaral (2015) fez
um esforço de categorizar algumas medidas de participação por meio da elaboração de uma
lista com características básicas que são julgadas essenciais para posicionar o nível de
participação social adotado pelos governos. Para os casos em que foram constatadas práticas
mais amadurecidas de participação social institucionalizada nos planejamentos plurianuais –
Bahia, Rio Grande do Sul e Ceará, tal como apresentado na seção 2.3.4 –, utilizou-se alguns
parâmetros para descrever a construção do arranjo institucional participativo (BAHIA, 2013
apud AMARAL, 2015).
Os itens que seguem apresentados neste trabalho explicam esses parâmetros e contribuem
para detalhar a construção do PPA-P da Bahia. Além do aspecto descritivo, os itens têm um
aspecto analítico forte, pois estão apoiados na revisão bibliográfica e documental e também
em alguns depoimentos com as percepções dos entrevistados.
a. Regionalização e descentralização das instâncias participativas
Esse primeiro parâmetro refere-se à iniciativa de promover a divisão estratégica dos territórios
em regiões de intervenção participativa, para fins de descentralização de fóruns participativos
29
A Bahia e o Rio Grande do Sul participaram do projeto do IPEA, e os textos correspondentes a cada estado são
as grandes referências para análise dos casos, nesta pesquisa, realizada à luz dos quadros de indicadores de
efetividade apresentados nesta seção.
142
e organização de eventos locais. Relaciona-se ao princípio da inclusão social e à busca pela
equanimidade entre as regiões, já que estende oportunidades de participação a agentes locais
de realidades díspares em termos socioeconômicos. Por isso, quanto mais pulverizada a escuta
social, maior a chance de democratizar o processo de planejamento público.
Segundo a literatura de Amaral (2015), as estruturas de participação social tendem a tornar-se
mais efetivas quanto mais próximas à realidade local, e quanto mais conseguem contemplar a
diversidade dos territórios e a pluralidade de atores e interesses na formulação de suas
políticas e programas. Isso impõe alguns desafios importantes aos estados nacionais, e mais
ainda ao Governo Federal: por uma questão de escala, precisam aproximar as instâncias
participativas dos territórios impactados pelas suas ações; e o recorte territorial deve ser feito
conforme as distintas características socioeconômicas, aumentando as chances de
representatividade de demandas de diferentes naturezas no processo de planejamento.
A Bahia atende positivamente a esse parâmetro, e ainda evolui da divisão territorial em
aspectos socioeconômicos para a consideração de elementos culturais. A partir de 2007, como
estratégia de regionalização e descentralização, e alinhada com as diretrizes do Ministério do
Desenvolvimento Agrário (MDA), a Bahia adotou 26 ”Territórios de Identidade” (TI), que
espelha na demarcação de áreas de intervenção uma relação de pertencimento dos cidadãos.
No último ciclo, os TIs foram expandidos para 27 regiões. Para a elaboração do PPA de 2008-
2011, o governo baiano provocou reformulações nas demarcações do território, cujas
principais são: adoção do ”Mapa Estratégico de Governo” como referência para a consulta
pública, enfoque territorial dos processos de planejamento (inauguração dos Territórios de
Identidade), envolvimento das secretarias na implementação do PPA-P e qualificação dos
servidores públicos estaduais para moderação das plenárias territoriais (BAHIA, 2013). Essas
reformulações demonstram também que a descentralização pode não estar somente na
abertura de escuta social, mas na consideração de toda a “comunidade governamental”, de
técnicos e gestores das secretarias e estruturas públicas regionalizadas.
Em cada território existe um colegiado, composto por metade de representantes da sociedade
civil, ligados principalmente aos movimentos sociais, e metade pelo poder público das três
esferas de governo com atuação localizada, ambos com representação institucional
reconhecida no território, segundo o documento “PPA Participativo, registro de uma história”
143
(BAHIA, 2012). O entrevistado 03 30 discorre sobre o processo de articulação para
institucionalização dos colegiados territoriais como espaços legítimos de representação da
sociedade civil pública e de “auto-adesão”, principalmente para o ciclo de 2012-2015.
O entrevistado é uma figura importante na estrutura do planejamento baiano, sobretudo
quando os assuntos são a capilaridade da instituição participativa, o arranjo das chamadas
”escutas sociais” – que serão descritas e aprofundadas adiante, no item de formação de
conselho ou fórum exclusivo para a construção e debate do PPA estadual –, a mobilização
social e a representatividade nos territórios. O entrevistado 03 é assessor do secretário da
SEPLAN, atual ouvidor da mesma secretaria, à época da entrevista substituto do diretor de
planejamento territorial (DPT/SPE/SEPLAN) e ainda secretário ativo do Conselho de
Desenvolvimento Territorial (CODETER). Segundo o gestor,
em cada território tinha um grupo de trabalho, certo, que eram
umas dez pessoas mais ou menos, que era a metade da
representação dos movimentos sociais, metade da representação
do governo estadual. Esses grupos ficaram com o papel de
preparar a audiência pública – preparar no sentido de tentar fazer
debates ou setoriais, ou municipais, ou sub-regionais, onde tivesse
público e possibilidade de fazer essas reuniões31
.
Isso sinaliza a capilaridade do governo nos territórios e as estratégias de mobilização social
que são tocadas por representações localizadas.
No documento de orientações para a construção do PPA Bahia 2016-2019 (2015c), o governo
reforça a importância atribuída à divisão estratégica dos territórios nos últimos ciclos de
elaboração do PPA, afirmando que os TI “são um grande avanço para o planejamento público
na Bahia, pois revela e considera toda a diversidade existente em suas múltiplas dimensões:
cultural, ambiental, econômica e social”, e ainda de “captura o sentimento de pertencimento
da população àquela região”. Segundo o documento, é necessário “respeitar a organização
espacial que a população se sente pertencer e naturalmente estabelece seus vínculos e inter-
relações” (BAHIA, 2015c, p. 8-9), e, nesse sentido, garantir que sejam implementadas
políticas públicas mais aderentes às necessidades de cada região e mais efetivas.
30
A relação de entrevistas com a discriminação da função, órgão, formação acadêmica e atuação profissional de
cada um dos entrevistados, resguardados os nomes dos atores, está colocada no Apêndice 2 deste trabalho. 31
Todas as falas dos entrevistados e depoimentos estão colocados em itálico no texto, como forma de destacar as
contribuições dos participantes na pesquisa. O formato substitui as aspas.
144
O posicionamento de todos os entrevistados é favorável à regionalização da participação
social e à distribuição dos fóruns participativos. Como exemplo, lança-se um depoimento
coletado nos intervalos das mesas temáticas, de uma técnica da Secretaria de Relações
Institucionais do Governo do Estado da Bahia (SERIN) (Depoimento 0132
):
A atuação da secretaria se vincula ao PPA participativo
exatamente porque a sociedade civil hoje demanda para o governo
políticas públicas que nós temos de atender, para dar respostas
aquelas necessidades, e nós vamos aos territórios porque lá estão
nossas referências de planejamento. O território é um espaço onde
você consegue efetivamente chegar na ponta, entender e ouvir o
que de fato o que é a necessidade daquela população, e a gente
não lida só com necessidade não, com aspirações também.
O alcance “da ponta”, por meio dos TIs, potencializa a representação da diversidade do
território baiano e da pluralidade de interesses, assim como de desejos mais subjetivos
(“aspirações”), colaborando para a democratização do plano plurianual.
b. Diversificação de canais de participação e o protagonismo do Executivo
A discussão que permeia o segundo parâmetro é de que devem compor o processo de
planejamento outras instâncias participativas que não aquelas obrigatórias, previstas em lei,
como as audiências públicas que são promovidas no âmbito do Legislativo somente para a
aprovação das ações delineadas no interior do Executivo. Embora as ações do Legislativo
sejam reconhecidamente importantes, não há um diálogo prévio mais propositivo, posto que a
sociedade somente é convidada a aprovar e validar programações prontas. Entende-se, a partir
disso, que a intensidade e a qualidade com as quais são adotados componentes participativos
no planejamento público demandam um protagonismo do Executivo na diversificação dos
canais de interação entre governo e sociedade. Como exemplos de iniciativas mais abertas,
que envolvem a participação social, têm-se: plenárias regionais e/ou estaduais, oficinas,
seminários, por meio da Internet, conselhos de políticas públicas e/ou conselhos próprios
criados para o PPA estadual em questão (AMARAL, 2015).
Ao ser posicionada entre os estados reconhecidamente mais participativos na função de
planejamento, é natural que a Bahia atenda positivamente ao parâmetro de diversificação de
32
A relação de depoimentos com a discriminação da função, órgão, papel do órgão e vinculação com o PPA
Participativo de cada um dos abordados, resguardados os nomes dos atores, está colocada no Apêndice 1 deste
trabalho. Cabe ressaltar que os depoimentos foram coletados em caráter aleatório, de acordo com oportunidade e
conveniência, de forma mais solta que as entrevistas e abordando perguntas específicas, motivada pela
observação das discussões nas mesas temáticas.
145
canais de participação, por ter ampliado e diversificado suas instituições participativas. A
Bahia passou a adotar o componente participativo na estruturação formal de planejamento a
partir de 2003, quando da institucionalização de um canal de comunicação social. A partir dali
novos fóruns foram criados para a ampliação das escutas sociais, por intermédio de
colegiados territoriais, escritórios regionais, reuniões entre conselhos de políticas públicas e
do envolvimento da comunidade governamental mais descentralizada. Cabe ressaltar ainda
que a participação nesses fóruns foi estendida ainda a outros poderes e representantes de
outras esferas de governo, em parcerias com vereadores e prefeitos municipais (POMPONET,
2008; BAHIA, 2012; BAHIA, 2013).
Todos os entrevistados vincularam essas iniciativas a um complexo e generalizado processo
de ressignificação do planejamento público no Brasil, enfatizando a orientação democrática e
a vontade política dos governantes de esquerda como forças disparadoras de novas formas,
mais abertas, de planejar. O entrevistado 02 inicia seu relato apontando grandes
transformações no planejamento público. Ele é diretor de planejamento econômico da
Superintendência de Planejamento Estratégico (DPE/SPE/SEPLAN), servidor de carreira do
estado com ampla trajetória em estruturas sistêmicas e finalísticas no Governo da Bahia e
gestor com participação ativa na temática da estratégia governamental, internamente, no órgão
central de planejamento. Segundo ele,
com relação ao planejamento participativo, e como eu estou no
estado há muitos anos - são trinta e três anos de serviço público –,
eu pude passar pela experiência de planejamento onde havia um
centralismo do processo de planejamento. Vimos a partir da
eleição do presidente Lula para o Governo Federal o
empoderamento da sociedade civil organizada, coisa que vem
acontecendo desde o processo de retomada das eleições diretas, aí
volta a atividade sindical, volta a atividade de podermos nos
associar em grupos, volta o fortalecimento e o empoderamento de
determinados grupos sociais mais organizados.
Esses movimentos corroboram para a abertura do planejamento público, como fruto da
redemocratização, mas também com forte centralismo na figura de Lula: quando o Lula
efetivamente assume e que os movimentos sociais passam também a fazer parte do governo,
ele termina influenciando uma forma de fazer gestão pública, uma forma de fazer formulação
de políticas públicas.
Por sua vez, o entrevistado 04 faz ponderações aos avanços da democracia e cobra uma
“paciência histórica” da sociedade para que a participação social e a perenização de propostas
146
e interesses das esferas regionalizadas sejam efetivas. O entrevistado é assessor do
superintendente de planejamento estratégico (SPE/SEPLAN) e possui trajetória acadêmica
estendida na Sociologia. Atua na estrutura governamental com desenvolvimento regional e
gestão de políticas públicas e, em se tratando de PPA-P, foi um importante mentor
metodológico dos avanços recentes do planejamento no Estado da Bahia. Na visão do
entrevistado, existem limites republicanos à democracia, e isso a desobriga de ser ou não
participativa:
É uma democracia, mas você pode aprofundar o caráter
participativo dela. Hoje a gente não tem uma democracia, quer
dizer, hoje a gente não tem uma participação deliberativa. São
muito poucos os conselhos que são deliberativos no estado. E,
assim, talvez, se você tiver uma paciência histórica, olhar um
pouco a história, talvez a gente tenha que amadurecer, de certa
forma no ponto de vista da participação consultiva opinadora,
para chegar no nível da deliberativa.
Com isso, nota-se que os canais de participação foram diversificados e que o governo dispôs-
se a abrir escutas sociais como forma de aprofundar a democracia existente, já dada por
estruturas representativas, mas que a democracia em si é um contínuo de aprofundamento
possível.
Os entrevistados relataram as orientações participativas da alta gestão, como uma bandeira
política fundamental para o governo recente. Houve, desde o início da gestão, um respaldo
político do então governador, Jaques Wagner (PT; gestão 2007-2014), e dos secretários de
estado. Nos primeiros PPAs com o componente participativo, foram valorizados o
chamamento amplo e a demarcação de uma nova postura dos governantes. O entrevistado 03
aponta que o primeiro [PPA] foi muito a coisa afetiva, foi muito a marca do novo governo,
que tá saindo do governo de décadas que tinha uma tradição centralizadora a um novo
governo que se reivindicava democrático. Então, o primeiro foi muito da festa, tanto que teve
até manifestação cultural. Isso reforça o protagonismo do Executivo em estreitar relações
com a sociedade como uma marca de valorização da democracia, assim como uma nova
estratégia de ação programática do governo, a parte de outras intencionalidades que poderiam
existir nesse movimento. O mesmo entrevistado ainda afirma que a disposição do Executivo
tem que se dar também no nível adequado de investimentos para o aspecto formativo das
instituições participativas: eu estou cada vez mais convencido que se gente quiser ter um
processo de participação, a gente tem que ter um investimento do governo pra preparar a
147
sociedade, pra ela participar de algumas questões. Essa afirmativa tangencia um indicador do
framework de Fung, que será apresentado no item 3.4.2.
Embora com essa vontade política e da nova orientação para o estreitamento da relação com a
sociedade, a instituição da participação no planejamento não esteve livre de resistências. Pelo
contrário, todos os entrevistados discorreram naturalmente sobre entraves à nova orientação,
parte devido às transformações no como fazer e parte devido às inclinações ideológicas
contrárias à participação, inclusive aquela participação que pressupõe a integração das
secretarias setoriais.
Não vou dizer a você que foi fácil no primeiro momento. O
processo de fazer planejamento participativo ele requer um
aprendizado, ele requer um trabalho de persistência em algumas
coisas, porque a gente cansa de ouvir “mas eu já sei o que é
importante para a atividade econômica”. Então tem muito técnico
de secretaria, tem muito dirigente de órgão público que acha que
por ter mestrado, doutorado ou já ter trabalhado nisso há muito
tempo já conhece a realidade (Entrevistado 02).
Além disso, aspectos conjunturais influenciam na aderência das novas orientações. O
entrevistado 04, ao ser provocado sobre aspectos críticos do planejamento, afirma:
Parte [da avaliação] é desejo de como deveria ser, que é diferente
de uma análise crítica, entendeu? Do que poderia ser tem outros,
por exemplo, a força política, que tem a ver muito com o momento
que a gente vive. Existe um governo de colisões, então você tem
uma série de restrições orçamentárias que ajuda a determinados
discursos se fortalecerem, entendeu? O discurso de racionalização
de recursos... você sabe sempre quem perde nessa hora (risos).
Existem, portanto, limitações que perpassam desde a concepção de democracia – e o que ela
pode significar em termos de participação social – até conjunturas críticas de implementação
de medidas, como citado nesse último relato. Mesmo, porém, com essas ponderações, este
trabalho entende que a construção do arranjo de participação do PPA baiano atende
positivamente ao parâmetro de diversificação de canais de participação e do protagonismo do
Executivo, podendo oscilar em intensidade e qualidade.
c. Eleição de delegados e representação de interesses regionais em outras esferas
O terceiro parâmetro da construção do arranjo institucional participativo aborda a existência
de eleição de representantes regionais para deliberação na esfera estadual, situação em que se
148
viabiliza a participação social em dois níveis, primeiro por intermédio de encontros regionais
e, em seguida, por um ou mais encontros estaduais. Na ocasião do fórum em nível local, são
apresentadas as regras para a eleição de representantes e seleção coletiva de atores que levam
as pautas e demandas ao nível superior de governo, tudo isso pautado em critérios de votação,
transparência e pluralidade. Segundo a visão de Amaral (2015), essa iniciativa tem os
objetivos de envolver um número maior de pessoas no processo político de construção do
PPA, contribuir pedagogicamente para a compreensão do instrumento e da política e
incentivar a pluralização de demandas.
Algumas instâncias participativas contam tradicionalmente com a eleição de delegados para a
representação de interesses locais em esferas superiores de governo, como os conselhos e
conferências. Todavia, essa prática ainda é pouco consolidada nos fóruns de planejamento
plurianual, principalmente pelo seu papel mais formativo e consultivo, e ainda por se tratar o
instrumento formal de PPA de um compromisso público do ente planejador, em suas
prerrogativas constitucionais e arranjos de competências, com as comunidades que atende. No
caso do PPA da Bahia, se trata de um compromisso específico do governo estadual com os
cidadãos atendidos pelo estado. O trânsito de ideias, demandas, reivindicações e proposições
formais da sociedade, do âmbito local para esferas superiores, entretanto, pode ser mais fluido
com a eleição de delegados, que representam os interesses regionais.
A Bahia inseriu em 2007 a prática de eleição de delegados não para o trânsito de interesses do
âmbito estadual para o nacional, mas para determinar pessoas que deveriam compor um
sistema de monitoramento e avaliação do PPA. Do ciclo de elaboração do PPA de 2008-2011
em diante, foram eleitos os delegados de cada região que representariam o Território de
Identidade no chamado Conselho de Acompanhamento do PPA (CAPPA). Esse era, à época,
inclusive, compreendido como um dos indicadores de participação popular. Isto é, a eleição
de representantes para o conselho era tida como um mecanismo de engajamento social, já que
as atividades de debate e proposição eram ainda incipientes. O próprio governo reconhece que
as atividades mais propositivas só vieram a se consolidar em 2011 com o desenvolvimento
das plenárias regionais (BAHIA, 2013).
Existe também outro órgão colegiado que se chama Conselho Estadual de Desenvolvimento
Territorial (CEDETER), instituído em 2010 no âmbito do Programa Territórios de Identidade
como fórum permanente de caráter consultivo e com a finalidade de subsidiar a elaboração de
propostas de políticas públicas e estratégias integrantes desse programa. De acordo com o
149
entrevistado 03, trata-se de um conselho paritário, com 11 representações do governo estadual
e 11 representações da sociedade civil. Esse conselho, o papel dele é fazer o controle social
do PPA, lei orçamentária, e execução orçamentária. Seria acompanhar o ciclo de
planejamento do governo. Esse colegiado sim dialoga mais profundamente com questões de
representação de interesses, em comparação à atuação do CAPPA.
À época da criação do CEDETER, o governo precisou discutir a “coalizão” que operaria
ambos os sistemas de acompanhamento:
Quando criou-se o CEDETER, aí a coalizão do governo foi a
seguinte: ‘olha, não dá para você ter dois grupos fazendo a mesma
coisa (...), então não faz sentido ter o CAPPA’. Agora que voltou
dentro do CEDETER a ter uma câmara técnica com representação
só da sociedade, que tem o papel de acompanhar a execução
orçamentária.
O debate interno ao CEDETER colabora no trânsito de propostas dos territórios para o nível
central e no acompanhamento da execução orçamentária, mas, segundo o próprio gestor e
secretário ativo do conselho, ele é interveniente “vírgula” [ao planejamento público], porque
o papel dele, o caráter dele, é consultivo... então ele palpita, mas não decide.
Reconhece-se aqui que a temática que circunscreve esse parâmetro de construção do arranjo
de participação é muito superficial, primeiro porque pouco trata da eleição dos delegados em
si, mais sobre o trânsito de interesses e colegiados de acompanhamento do PPA, e, segundo,
porque o tema foi pouco documentado em publicações oficiais e acadêmicas e menos ainda
discutido pelos entrevistados. A elaboração do PPA segue uma dinâmica própria, que
distingue-se da tramitação de propostas das conferências, por exemplo, e por isso o parâmetro
parece até mesmo pouco pertinente à realidade do plano. De toda forma, os papeis do CAPPA
e do CEDETER na ação programática e também de monitoramento e avaliação, atestando
processos de eleição e de representação, atendem parcialmente o parâmetro colocado neste
item.
d. Formação de conselho ou fórum exclusivo para construção e debate do PPA
estadual
A criação de conselho ou fórum exclusivo para construção e debate do PPA estadual, último
parâmetro do modelo de Amaral (2015), além de reforçar os demais pontos, em uma
perspectiva transversal, reforça a centralidade do PPA como instrumento de planejamento e
150
também uma vontade de governo pela imersão, no processo de elaboração, da sociedade civil
e suas demandas. O governo adota estratégias alternativas àquelas tradicionais de
planejamento público quando expande canais de participação exclusivos para a elaboração do
PPA, buscando fazer desse momento não um fim em si mesmo, tampouco limitado às
prerrogativas formais, mas uma aprendizagem que se institucionaliza, se renova e incorpora
novos atores com o tempo. Na construção do arranjo participativo, nota-se ainda que ter uma
institucionalidade exclusiva para a participação da sociedade indica um caminho para a
democratização do planejamento público.
Parte dessa motivação pela expansão de institucionalidades participativas já foi afirmada nos
itens anteriores, sobretudo no aspecto do protagonismo do Executivo na diversificação de
mecanismos participativos. O que vale ser ressaltado no caso da Bahia é o profundo avanço
metodológico e operacional apresentado no ciclo de 2012-2015, e mais ainda nos relatos do
último ciclo de 2016-2019, no que se refere às estruturas de construção e debate do PPA
estadual. Duas amplas frentes de trabalho empenham a elaboração do plano interna e
externamente, respectivamente chamadas de (a) mesas temáticas e (b) escutas sociais. Elas
mais do que respondem à criação de fóruns com exclusividade para a elaboração do plano,
avançando enquanto inovações na ressignificação do planejamento público.
No âmbito interno, foi tecida pela SEPLAN uma estrutura ainda hoje responsável por
conceber e mobilizar, de forma integrada, todo o nível técnico-operacional das secretarias de
governo em rodadas de (a) mesas temáticas. As mesas temáticas são responsáveis por garantir
a participação dos atores governamentais desde sua introdução na elaboração do PPA 2012-
2015. Na época, o objetivo do fórum, além de permitir a discussão entre as secretarias de
governo, era de contribuir na elaboração dos compromissos de cada área, bem como dos
indicadores de programas, metas e iniciativas (BAHIA, 2012). Nas orientações metodológicas
do ciclo de 2016-2019, foi estabelecida uma perspectiva transversal inovadora para o
planejamento formal, caracterizando as mesas temáticas como fóruns que põem em debate
diferentes olhares sobre as políticas públicas, ampliando a participação interna e também o
grau de cogestão na efetivação das políticas (BAHIA, 2015d).
De um ciclo para outro do PPA, muitos passos foram dados no aprimoramento das mesas
temáticas, que são oriundos da própria complexidade de atendimento gerada pela abertura da
consulta à sociedade e às iniciativas de agregar a participação social. O entrevistado 04 afirma
sobre isso que
151
os avanços que a gente fez acabou proporcionando um nível de
necessidade de interação, de articulação dentro do governo que
nunca antes... Muito reflexo da metodologia que a gente buscou,
assim, aprofundar a transversalidade. Significa que a gente tem
que conversar mais, e isso aconteceu nas mesas agora.
Ou seja, é razoável empreender que as mesas temáticas ganharam centralidade, e até mesmo
corrigiram parte das resistências internas, ao promover a cogestão e o apoio mútuo entre as
secretarias, como forma de resolver problemas complexos e tecer políticas transversais.
A transversalidade é um tema que merece destaque e, por isso, ganhou um item especial nos
temas adicionais apresentados ao final da pesquisa. Ela foi citada por todos os entrevistados
como um dos pontos mais altos do aprimoramento do último ciclo. Segundo a visão do
entrevistado 02, é interessante
colocar numa mesma mesa, de segurança pública, a própria
secretaria de segurança pública – que envolve polícia civil, polícia
técnica, polícia militar, bombeiros militares – e eles terem que
conversar com a secretaria de proteção à mulher, a secretaria de
promoção da igualdade racial, a secretaria de justiça, de direitos
humanos, de desenvolvimento social, a secretaria de administração
do sistema prisional.
Em uma perspectiva estratégica, a mesa temática, sob a orientação da transversalidade, pode
servir para o desenho de políticas mais efetivas e correção de rumos com ações complexas:
Na hora que você coloca todas essas secretarias para discutir o aporte de compromissos que
sejam aderentes àquele tema e àquele programa, eu criei ali, uma sala de situação.
Esse viés positivo não foi percebido exclusivamente pelos agentes responsáveis pela
concepção da participação. Também foi observado pelos participantes das mesas temáticas,
público-alvo desse tipo de fórum, como é o caso do depoimento 05, extraído da coordenadora
executiva de planejamento e gestão de políticas para as mulheres da Secretaria de Políticas
para as Mulheres (SPM). Sua fala diz o seguinte: Eu acho que é um momento fundamental,
porque hoje a política, a orientação é ser transversal... a gente precisa das outras
secretarias. A secretaria da técnica abordada no depoimento se caracteriza como uma área
fim e que faz, de forma voluntária, um exercício interno de levantar prioridades. Pelo
depoimento, fica claro que eles levam a cabo as próprias diretrizes estratégicas, mas que
também valorizam a troca nos espaços oportunizados pelo PPA-P. Segundo a técnica,
152
a gente pensa internamente, dentro dos nossos conhecimentos. Mas
quando a gente senta nesse momento de construir nossas diretrizes
– porque vamos ter que seguir o PPA, o nosso orçamento é
atrelado ao PPA –, sentamos com os técnicos que conhecem a
fundo aquilo que a gente imaginou. Se a gente conta com aquele
colega que é daquela atividade fim, dentro daquela secretaria e
conhece de fato, então a gente consegue alinhar que a política seja
feita de forma mais adequada possível. (...) A nossa construção
interna, que tem o nosso olhar, a gente consegue dialogar com os
profissionais, os colegas, os servidores de outros órgãos para que
isso saia da melhor forma possível.
No âmbito externo, nos 26 Territórios de Identidade (agora 27), é promovida a (b) escuta
social ampla e descentralizada, responsável por levantar propostas da sociedade. Essas, uma
vez sistematizadas pelo comitê, são devolvidas para o crivo dos gestores das áreas (BAHIA,
2013). No decreto que estabelece as bases normativas para a operacionalização da elaboração
do PPA 2016-2019 no ano de 2015 – Decreto nº 16.014 de 20 de março de 2015, Art. 4º –,
são orientadas as etapas do processo de escuta social, contemplando, concomitantemente, a
realização de reuniões com os Colegiados Territoriais dos 27 Territórios de Identidade,
reuniões com Conselhos Estaduais de Políticas Setoriais e reuniões com as instituições
representativas dos segmentos produtivos. As bases para a discussão nas reuniões, que geram
as propostas territoriais, parecem bem delineadas, pois são “oriundas de processos
participativos anteriormente realizados, especialmente as plenárias territoriais para a
elaboração do Plano de Governo Participativo – PGP” (BAHIA, 2015a, Art. 4º/§1º). Somam-
se ao PGP como pauta das reuniões os “Cenários Prospectivos para a Bahia”, planejamento
de longo prazo com projeções de cenários esperados para 2015, 2020 e 2030, e os relatórios
de monitoramento e avaliação do PPA ainda vigente em 2015. Detalhes sobre a mobilização
social, o papel esperado das esferas descentralizadas colegiadas, o trânsito de propostas dos
conselhos, entre outros temas relevantes que caracterizam a escuta social serão apresentados
nos indicadores do modelo de Fung (2006) e em temas independentes do último item.
As frentes de trabalho criadas com exclusividade para organizar e viabilizar a elaboração do
PPA atendem positivamente ao parâmetro de construção do arranjo participativo e ainda
permitem uma avaliação qualitativa dos termos dessa organização no Estado da Bahia. As
mesas temáticas e as escutas sociais compõem e fecham uma lógica de planejamento própria,
que considera tanto diretrizes estratégicas internas quanto demandas objetivas e subjetivas da
sociedade. Pode-se afirmar que o processo ininterrupto de aprimoramento metodológico
153
dessas frentes é responsável ainda por gerar uma carga de ressignificação do planejamento em
termos mais democráticos.
Seção 3.4 Análise e resultados da democracia no PPA
da Bahia
Dando sequência ao enfoque no caso concreto do PPA Participativo da Bahia, esta seção tem
o objetivo de apresentar os resultados dos indicadores de grandeza e intensidade da
democracia a partir do framework tridimensional de Archon Fung (2006), e também os
resultados agregados desses indicadores na representação gráfica do “Cubo da Democracia”.
Os resultados contam com a exposição de achados da revisão documental e da pesquisa
qualitativa; nesse último caso, os indicadores são problematizados e respondidos na
perspectiva dos idealizadores e promotores da política participativa no Estado da Bahia, na
figura dos dirigentes do governo da SEPLAN que desenvolvem e implementam as estratégias
de participação no planejamento formal quadrienal, e de outros técnicos da comunidade
governamental. Nas entrevistas também despontaram temas relevantes que são apresentados
isoladamente ao final do trabalho, com a motivação de reforçar os achados da pesquisa,
provocar novas reflexões e responder a algumas problemáticas do planejamento público
organizadas no Capítulo 01. Esses temas foram motivados pela sinergia na exposição
voluntária dos dirigentes e técnicos do governo baiano acerca de temas afetos à
democratização do planejamento.
3.4.1 Modelo de análise
A análise do PPA Participativo da Bahia requer definir e dar transparência aos parâmetros que
serão adotados como referência na pesquisa. Estão seção organiza o modelo de análise que
será utilizado para cumprimento do objetivo central da pesquisa, ou seja, para a demonstração
da grandeza e intensidade da democracia no PPA-P da Bahia e em que medida o planejamento
público é ressignificado pela participação social.
154
Utilizam-se essencialmente os parâmetros dispostos por Archon Fung (2006) em artigo33
sobre institutional design, ou desenho institucional, que constrói um framework para a
compreensão das possibilidades institucionais de algumas conhecidas formas de participação.
Os indicadores de Fung (2006) estão fundamentados na teoria da democracia participativa e
das instituições participativas (IPs), e vem produzindo modelos de análise para diversos tipos
de práticas de participação ao redor do mundo. Isso garante ao conjunto de indicadores um
potencial de aferir a intensidade da democracia no PPA de forma dialogada e comparativa às
análises já realizadas com outras IPs, como os orçamentos participativos, os conselhos
setoriais e planos diretores participativos (FUNG e WRIGHT, 2003; AVRITZER, 2008,
2009).
Mesmo que sem dar enfoque especial ao planejamento público, o autor aprofunda
sobremaneira os mecanismos de avaliação de potencialidades e limites da participação social
em processos decisionais diversos, o que agrega à pesquisa uma correspondência bem
estruturada entre as possibilidades institucionais das variáveis do framework com a grandeza e
a intensidade da democracia a ser mensurada nas instituições participativas voltadas à
elaboração dos planos plurianuais. Os três indicadores do framework são: seleção de
participantes – quem participa? –; modo de comunicação e decisão; e extensão da autoridade
e poder de agenda.
O primeiro deles, seleção de participantes, é estruturado em um contínuo de sete variáveis,
que caracterizam não propriamente o perfil34, mas a representatividade dos participantes nas
instituições participativas em relação à totalidade da sociedade, assim como o grau de
vinculação mais ou menos técnica com o objeto da instituição participativa – no caso do OP, o
orçamento público; no caso do PPA, o planejamento público; e assim por diante. Ambas as
perspectivas, de representatividade e de vinculação com o objeto, demonstram quão inclusiva
é essa IP, e de uma forma proporcional ao incremento da democracia. A Figura 01, abaixo,
ilustra as relações entre o indicador e a democracia.
33
O artigo tem o seguinte título: Varieties of Participation in Complex Governance – em português, Variações
da Participação em Governança Complexa. 34
Não há registro de levantamento de perfil nas experiências dos PPAs estaduais, sendo isso empreendido
somente em estruturas mais consolidadas de instituição participativa, como os conselhos de políticas públicas e
os orçamentos participativos. Também não foi empreendido neste trabalho o levantamento de informações mais
profundas dos cidadãos participantes do PPA-P da Bahia, como contagem exata e aspectos de gênero,
escolaridade, vinculação institucional, entre outras, que permitisse auferir a representatividade em relação aos
estratos da sociedade. Além da opção fundamentada pelos modelos qualitativos, houve na pesquisa
indisponibilidade de tempo, recurso e, sobretudo, oportunidade no levantamento.
155
Figura 01. Relações do modo de seleção de participantes com a democracia
Fonte: Elaboração própria; interpretação do modelo de Fung (2006).
Os modos mais inclusivos referem-se, primeiramente, ao chamamento à esfera pública difusa,
que se caracteriza como o método mais irrestrito de seleção de público e se mobiliza para
convidar massivamente toda a sociedade à participação. O modo aberto de auto-seleção
também ocorre em chamamento amplo, porém, conta de forma mais significativa com o
voluntarismo e a disposição na participação pelos próprios cidadãos. Por esse motivo,
naturalmente já se torna um modo menos representativo do público maior, cujo desafio se
expressa no seguinte fato: “indivíduos com renda maior e mais instruídos tendem a participar
mais do que aqueles que têm menos vantagens, como fazem aqueles que têm interesses
especiais ou pontos de vista fortes” (FIORINA, 1999 apud FUNG, 2006, p. 67 – tradução
nossa).
Algumas estratégias de mobilização pouco mais restritivas buscam responder a esse desafio,
operando no recrutamento mais selecionado de subgrupos da sociedade (recrutamento
selecionado), de forma a incentivar a participação nas IPs de cidadãos menos propensos a esse
tipo de interação com o poder público, mas de algum modo interessados pela temática. Esse
recrutamento também se caracteriza pela passividade do Estado, uma vez que atua somente na
promoção de incentivos estruturais à participação. Outro modo pouco menos inclusivo, mas
mais representativo é a seleção aleatória, que se utiliza de recursos estatísticos para garantir a
representação de estratos da sociedade nos espaços deliberativos. Segundo o modelo, se trata
da melhor forma de garantir representatividade nas instituições participativas.
156
Os modos mais exclusivos (menos inclusivos) acentuam-se a partir da participação dos
chamados “stakeholders leigos” – podendo ser interpretados como “stakeholders voluntários”
–, participantes típicos dos conselhos de políticas públicas, que apresentam denso interesse
sobre a temática discutida e se fazem presentes voluntariamente nos espaços participativos
como representantes da sociedade. Em seguida, entram em cena em alguns processos de
governança específicos os stakeholders profissionais, que são representantes de interesses
organizados, de sociedades organizadas, e burocratas estatais normalmente pagos para atuar
em situações que demandam alto conhecimento técnico. Por fim, o modo mais exclusivo de
seleção de participantes e que agrega pessoas com alto grau de vinculação técnica com o
objeto é o engajamento de representantes eleitos e administradores experts (selecionados via
concurso público) que fazem parte do corpo técnico do governo. Nesse último caso,
praticamente não se detecta qualquer intervenção social e não se identifica o componente
participativo no processo decisório.
O modo de comunicação e decisão, segundo indicador, refere-se à intensidade com a qual os
participantes interagem nos fóruns, no sentido do conhecimento, do nível de engajamento e
comprometimento e dos recursos variados que asseguram à participação. Existem seis
variáveis na composição desse indicador, sendo que três delas posicionam a participação em
um polo mais comunicativo e outras três que já caracterizam outro extremo, mais decisional,
ou seja, com mais capacidade de influência dos participantes no processo decisório. É
interessante notar que, no indicador de modo de comunicação e decisão, Fung (2006)
compreende a dimensão comunicativa como sendo mais democrática que a dimensão de
influência na decisão, argumentando que indivíduos com menos recursos (educacionais,
técnicos, políticos, financeiros, entre outros) são mais representativos da totalidade da
população – portanto as IPs são mais inclusivas – que aqueles indivíduos com maior
possibilidade e capacidade técnica e política de influenciar a tomada de decisão. A Figura 02,
abaixo, ilustra as relações entre o indicador e a democracia.
157
Figura 02. Relações do modo de comunicação e decisão com a democracia
Fonte: Elaboração própria; interpretação do modelo de Fung (2006).
Na dimensão comunicativa, a primeira variável coloca o participante em uma condição de
ouvinte, como espectador do processo, em que a via de transmissão de mensagens entre os
atores nos fóruns é de mão única, do Estado para a sociedade. Nesse aspecto, os indivíduos
comuns que atendem aos fóruns, oriundos de mobilização massificada, pouco conseguem
levar a cabo algumas opiniões e reivindicações, situação agravada pela assimetria de forças
diante da presença de políticos, ativistas e outros grupos de interesses.
As duas variáveis seguintes também pertencem à dimensão comunicativa do modelo e
inserem um importante processo de aprendizagem política nas IPs, de forma a contribuir com
a exposição e formação de preferências individuais. Entretanto, de acordo com o modelo de
Fung (2006, p. 68 – tradução nossa), esse processo de aprendizagem não ocorre sem que haja
uma influência dos atores mais técnicos e políticos sobre as concepções dos participantes: “Os
mecanismos empregados nesses três primeiros modos de comunicação muitas vezes não
buscam traduzir as opiniões ou preferências dos participantes em uma visão coletiva ou
decisão”. Dessa forma, ainda que seja importante qualificar os participantes e o debate via
construção de preferências, isso tende a constranger a democracia. Há controvérsias, inclusive
pelas argumentações assumidas por este trabalho na construção teórica, sobre a relação
inversamente proporcional entre aprendizagem política e a profundidade da democracia, mas
admite-se o risco à democratização da IP quando o debate vai se tornando mais e mais
158
qualificado do ponto de vista da negociação técnica e política, já que pode estreitar a
oportunidade dialógica e a representatividade de interesses gerais da sociedade.
Caminhando para a dimensão da influência na decisão, o modelo incorpora três variáveis que
agregam à comunicação e às decisões coletivas das IPs algumas configurações mais técnicas e
políticas. O modo mais comum é o de agregação e barganha, que busca integrar as
preferências dos participantes à decisão social (social choice) por meio do método de
mediação de interesses e conforme os respectivos recursos de influência e poder. O outro
modo é o de deliberação e negociação. Contando com maior background educacional, nesse
caso, os participantes trocam experiências e perspectivas e então deliberam para uma decisão
coletiva aquelas reivindicações que são oriundas de anseios individuais. Por fim, o último
modo decisório desse contínuo de Fung (2006) dá centralidade ao conhecimento técnico de
alguns experts burocratas e profissionais, que traçam estratégias para resolução de problemas
particulares. Trata-se, portanto, de um processo mais selecionado de tomada de decisão, com
uma perspectiva de diálogo e negociação muito limitada e de alta discricionariedade. São
atores centrais, tipicamente, agentes planejadores, reguladores, servidores públicos, agentes
políticos, entre outros.
A extensão da autoridade e poder de agenda é o terceiro indicador do framework
tridimensional de Fung (2006) e refere-se ao potencial de impacto da participação social no
desenho e implementação das políticas públicas. O indicador apresenta um contínuo com
cinco variáveis de mais ou menos potencial de impacto entre aquilo que os participantes
aconselham ou sugerem nos fóruns participativos e o que as autoridades públicas
efetivamente fazem, partindo de um ponto em que pouco se espera em termos de influência na
agenda política até o efeito de uma autoridade direta na ação programática. É necessário
esclarecer que o indicador não busca aferir o impacto propriamente, mas o potencial de
impacto da participação social na formação da agenda política, tendo como referência a
expectativa em torno do exercício da autoridade. Sendo assim, não é investigado o que
“entrou” ou “não entrou” na agenda, mas sim o tipo de exercício de autoridade empregado
pela participação social e, num plano mais normativo, até uma medida de soberania social.
A esse indicador estão associados dois importantes pressupostos do autor: primeiro, a
participação social agrega menos influência política na tomada de decisões que a autoridade
direta, entre outros fatores, pela assimetria de forças e recursos já citada; segundo, a
ampliação da participação social e a ampliação da autoridade direta estão em polos opostos no
159
espectro. Assim como no indicador anterior, molda-se uma curiosa relação inversamente
proporcional entre o aumento do potencial de impacto nas políticas e o constrangimento da
democracia, advinda também da ênfase na inclusão social, na medida em que o aumento da
autoridade representa uma limitação à participação social. A Figura 03, abaixo, ilustra as
relações entre o indicador e a democracia.
Figura 03. Relações da extensão da autoridade e poder de agenda com a democracia
Fonte: Elaboração própria; interpretação do modelo de Fung (2006).
A primeira variável do indicador assume a baixa expectativa do participante comum em
influenciar a agenda de políticas públicas, tendo como justificativa para a participação uma
perspectiva de contribuição para uma evolução cidadã mais pessoal que coletiva, ou seja,
voltada ao benefício social (personal benefits, como é o nome da variável) de educação para a
cidadania. Essa primeira variável é interveniente à primeira dimensão comunicativa do
indicador anterior e compreende que o fórum afeta mais o participante que a política em si. A
segunda variável trata da influência comunicativa, nesse caso nos termos da eficiência
argumentativa do governo para com os ouvintes em processo de defesa de agendas e projetos
específicos. A terceira variável corresponde ao modelo mais recorrente de compartilhamento
de autoridade e poder, que são os fóruns de conselho e consulta. As discussões ocorrem nos
espaços como forma de perenizar as intenções das autoridades públicas no desenho das
políticas (FUNG, 2006).
As últimas duas variáveis do indicador e do modelo são menos recorrentes, e elas se
caracterizam por um exercício de poder direto em determinadas políticas e ações, primeiro,
em regime de relacionamento de co-governabilidade (cogoverning partnership), em que
160
participantes se juntam aos agentes públicos e políticos para desenvolvimento das estratégias.
Segundo, e de forma mais intensa, exercem autoridade direta nas decisões públicas e alocação
de recursos. Co-governabilidade e autoridade direta são as variáveis de maior empoderamento
e de influência política, “embora não necessariamente mais desejável”, sobretudo porque
cerceiam a participação social e a manifestação da democracia (FUNG, 2006, p. 69 – tradução
nossa).
Além do resumo descritivo dos indicadores, o Quadro 02 mostra também os polos de variação
e a relação com a democracia, segundo a interpretação de Fung (2006).
Quadro 02. Quadro Analítico do Arranjo Institucional Participativo para Ampliação da
Democracia – “Cubo da Democracia” de Fung (2006)
Indicador Descrição geral35 Polos de variação Relação com a
democracia
Seleção de
participantes
(Quem
participa?)
A classificação,
posicionada em
contínuo, demonstra
quão representativo é o
público participante em
relação à população
geral e quão
familiarizado
tecnicamente com o
processo de tomada de
decisão está.
A seleção de participantes
caminha de um polo mais
inclusivo para um polo
menos inclusivo, dentro
de sete possíveis
classificações de
chamamento:
1. Esfera pública difusa;
2. Aberto à auto-seleção;
3. Recrutamento
selecionado;
4. Seleção aleatória;
5. Stakeholders leigos;
6. Stakeholders
profissionais;
7. Representantes eleitos
e Administradores
experts.
Relação
proporcional:
quanto mais
inclusiva a
participação, mais
democrática é a IP.
Modo de
comunicação e
decisão
A classificação,
posicionada em
contínuo, demonstra a
profundidade com que as
pessoas interagem na IP,
de forma mais ou menos
intensa. Entende-se por
intensidade: nível de
investimento,
O modo de comunicação e
decisão caminha de um
polo mais intenso para um
polo menos intenso,
dentro de seis possíveis
classificações:
1. Implanta técnica e
Relação
inversamente
proporcional:
quanto mais intensa
a comunicação,
menos democrática é
a IP (restrição à
democracia).
35
Descrição geral foi adaptada da revisão bibliográfica do texto de Archon Fung intitulado “Varieties of
Participation in Complex Governance” (2006), publicado na Public Administration Review.
161
Indicador Descrição geral35 Polos de variação Relação com a
democracia
conhecimento e
compromisso exigido
dos participantes.
expertise;
2. Deliberação e
negociação;
3. Agregação e barganha;
4. Desenvolve
preferências;
5. Expressa preferências;
6. Ouvinte/ Espectador.
Extensão da
autoridade e
poder de
agenda
A classificação,
posicionada em
contínuo, demonstra o
impacto da participação
pública, no sentido da
capacidade de influência
dos participantes e do
potencial de as decisões
tomadas tornarem-se
política.
A extensão da autoridade
e poder de agenda
caminha de um polo de
mais autoridade para um
polo de menos autoridade,
dentro de cinco possíveis
classificações:
1. Autoridade direta;
2. Co-governança;
3. Conselho/ Consulta;
4. Influência
comunicativa;
5. Educação individual/
Benefício pessoal.
Relação
inversamente
proporcional:
quanto mais
autoridade
(capacidade de
influência), menos
democrática é a IP
(restrição à
democracia).
Fonte: Elaboração própria; adaptado de Fung (2006).
Os resultados dos três indicadores apresentados no Quadro 02 preenchem o framework
proposto por Fung (2006) para a compreensão das possibilidades institucionais das formas de
participação, de modo a compor a área geométrica daquilo que o autor chama de ”Cubo da
Democracia” – leia-se, a área de abrangência da democracia em uma dada instituição
participativa. Compreende-se, a partir desse modelo, que os três indicadores posicionados nos
respectivos espectros delimitam um espaço tridimensional que permite ilustrar o “tamanho” –
tamanho porque o gráfico permite uma análise visual, mas se dá no sentido da grandeza – e a
intensidade da democracia. Como exemplo, o Cubo da Democracia representado na figura 04
mostra a transformação do arranjo institucional do orçamento tradicional para o orçamento
participativo.
162
Figura 04. Representação do Cubo da Democracia de Fung (2006) na transição do
Orçamento Tradicional para o Orçamento Participativo
Fonte: Elaboração própria; interpretação do modelo de Fung (2006).
Observa-se que a área do gráfico, representativa do “tamanho” da democracia, ampliou-se
significativamente de uma estratégia para outra, sobretudo em relação ao indicador de seleção
de participantes e de modo de comunicação e decisão. No primeiro caso, deixou-se de utilizar
o polo mais restritivo de seleção, da participação de pessoas estratégicas, técnica e
politicamente selecionadas internamente no Estado, para a utilização de um arranjo que capta
a participação de um número expressivo de cidadãos comuns, oriundos, no processo, de uma
mobilização massiva e irrestrita de participantes. Se a relação entre o tamanho do desenho
cubo e a grandeza da democracia no processo é proporcional, nota-se a ampliação
significativa da democracia após a adoção do componente participativo no planejamento
orçamentário.
Com a mesma intencionalidade, o presente trabalho ambiciona apresentar na seção de
resultados o Cubo da Democracia do PPA Participativo da Bahia, detalhando a posição de
todas as variáveis, atinentes ao caso concreto, no espectro tridimensional de Fung (2006).
Espera-se apresentar, inclusive, algumas mudanças significativas adotadas de um ciclo de
planejamento para outro, que impactam na grandeza e intensidade da democracia nos quesitos
de seleção de participantes, modo comunicativo no processo decisório e poder de influência e
agenda nas IPs.
163
3.4.2 Resultados dos indicadores de grandeza e intensidade
da democracia
a. Seleção de participantes
Como explicado no modelo de análise, o indicador de seleção de participantes é o primeiro do
framework de Fung (2006) e busca aferir a inclusividade das instituições participativas; isso
em três perspectivas: a amplitude de mobilização social, a representatividade dos participantes
em relação ao restante da população e a vinculação mais ou menos técnica com o objeto da
instituição participativa, no caso do PPA, com o planejamento público. Combinadas, as
perspectivas indicam se a instituição participativa respeita o princípio da inclusão social,
aumentando assim o potencial de democratização da IP. Posicionada no contínuo de Fung, a
seleção de participantes caminha de um polo mais inclusivo, representado pelo chamamento à
esfera pública difusa, para o um polo menos inclusivo, representado pelo engajamento de
representantes eleitos e administradores experts no processo decisional. No referido modelo,
inclusividade e democracia estão do mesmo lado do polo, obedecendo a uma relação
proporcional.
Entende-se, neste trabalho, que o princípio da inclusão social – organizado em ampla revisão
teórica por Cunha e Almeida (2011) – corresponde a uma das bases da democratização da
administração pública, ao passo que um potencial indutor da redução de desigualdades
remanescentes na sociedade brasileira. Em sociedades cujos índices sociais demonstram
demasiada precariedade, é ainda mais importante trabalhar a inclusividade de múltiplos
interesses, necessidades e anseios nos processos decisórios. Além disso, é interveniente ao
indicador de seleção de participantes, também segundo a análise da deliberação democrática
de Cunha e Almeida (2011), a participação igualitária nas instâncias democráticas, no que se
refere tanto à oportunidade assegurada de participação quanto à oportunidade de formulação e
apresentação de ideias por todos os cidadãos. Nesse sentido, não bastaria somente incluir os
indivíduos, mas garantir que todos tenham oportunidade de falar e ser ouvidos nos fóruns.
Essas temáticas adicionais, entretanto, são somente tangenciadas neste trabalho, já que a
ênfase é explícita para a questão do arranjo institucional.
Na Bahia, em 2007, aproximadamente doze mil pessoas participaram dos momentos de
escutas sociais, sendo a maioria formada por representantes da sociedade civil organizada, e
milhares de propostas foram elaboradas pelos atores sociais em cada um dos territórios de
164
identidade. Foram programadas 17 plenárias, mobilizadas reuniões prévias e enviados
convites a todas as entidades e segmentos sociais. Estima-se que cerca de 40 mil pessoas
tenham sido mobilizadas pelo PPA Participativo do ciclo de 2008-2011 (POMPONET, 2008).
A mobilização se deu no alcance da esfera pública difusa, que se caracteriza, segundo o
modelo de Fung, como a forma mais irrestrita e inclusiva de seleção de público, uma vez que
convida massivamente toda a sociedade à participação. Esse chamamento conta,
naturalmente, com a auto-seleção, advinda do mesmo esforço de mobilização ampla, mas que
depende também da disposição e voluntarismo dos indivíduos à participação. Assim, na
elaboração do PPA 2008-2011, a Bahia se posiciona no extremo mais inclusivo e democrático
do modelo de Fung.
Os entrevistados lembram com clareza deste momento, que marcou com ousadia a transição
no Estado da Bahia para um governo autodenominado democrático. Desde a construção do
primeiro PPA-P, em 2007, as escutas sociais “eram verdadeiras assembleias abertas a toda
sociedade” (Entrevistado 02):
A escuta do passado, do primeiro mandato do governador Wagner,
terminou sendo uma escuta mais “de livre pensar”, um
brainstorming generalizado. Isso gerou, pra você ter uma ideia, no
Excel, mais de oito mil e quinhentas linhas de propostas. Então,
começamos a ver no processo de filtrar que tinham propostas que
eram da competência da união, não eram de competência do
governo de estado, tem proposta que era de competência exclusiva
do município (...).
Em termos de representatividade, a mobilização ampla e o “livre pensar” confluem para um
modelo de IP mais inclusiva, ampliando a democracia. Por outro lado, impõem muitos e
significativos desafios à operacionalização do plano, uma vez que, segundo o entrevistado 02,
é difícil
canalizar exatamente as discussões, porque eu tenho ali o seu Zé,
dona Maria, seu Pedro... Todos têm acesso, direito, então, você
percebe que eles não estão efetivamente ainda suficientemente
maduros pra saber... Ele sabe o que ele precisa, o que ele não
sabe é como conduzir isso.
Essas falas, que são comuns aos demais entrevistados, sinalizam riscos na gestão operacional
do processo de consolidação de propostas e redações, e, por consequência, na organização da
peça final de planejamento.
165
As nuances do chamamento amplo foram consideradas na revisão e aprimoramento da
metodologia de um ciclo para outro, sobretudo na última rodada de elaboração do PPA, em
2015. Ainda no ciclo 2012-2015, porém, o foco do aprimoramento da metodologia foi dado
no quesito de vinculação com o objeto, por meio de diversas medidas de preparação para a
temática e para o planejamento em si. É interessante notar que a aproximação do participante
com o objeto da participação, no caso o planejamento público, é compreendida como uma
oportunidade de inclusão política e de democratização da IP, não como um mecanismo de
distinção36
. As evoluções pragmáticas podem ser exemplificadas por algumas estratégias
implementadas pela SEPLAN nesse contexto. A secretaria trabalhou estratégias de
envolvimento dos agentes multiplicadores do processo, por meio de seminário de
apresentação do plano estratégico a representantes territoriais e de oficina de
instrumentalização dos grupos de trabalho para a mobilização dos municípios em torno das
plenárias territoriais. Nessas plenárias, também foram trabalhadas estratégias de qualificação
prévia do público mobilizado, buscando posicioná-lo nas regras da participação social. Ainda,
a SEPLAN procurou nesse ciclo de planejamento preparar os territórios para indicar
lideranças pontuais e representativas, que se comprometessem a organizar reuniões e escutas
em seu território de atuação.
No âmbito da mobilização social, a SEPLAN criou os chamados Grupos Territoriais de
Trabalho, os GTTs, compostos por servidores dos escritórios regionais, membros dos
conselhos setoriais de políticas públicas e do poder público local. Coube aos colegiados
territoriais reunir agentes mobilizadores e fomentadores da discussão sobre o que é o PPA e
sobre as regras de funcionamento da estrutura participativa. Segundo o gestor da Diretoria de
Planejamento Territorial (DPT), esse colegiado foi induzido a convocar o público que
julgasse que representasse a diversidade do território. Então vai um grau razoável de
subjetividade, porque passa do olhar que cada um tem sobre o seu território, do ciclo de
relações, de junções políticas (Entrevistado 03). O relato da condução da mobilização pelos
colegiados territoriais ilustra um processo de afunilamento do chamamento à esfera pública
difusa, comparativamente “à festa da democracia” no primeiro ciclo, já notado nos registros
documentais do PPA-P da Bahia. É importante reforçar que a atuação dos colegiados também
36
No próximo indicador, de modo de comunicação e decisão, ao contrário deste, os recursos informacionais
funcionam como mecanismos de distinção. Isto é, os recursos diversos que os participantes devem deter para
exercer influência no processo decisório funcionam como filtro na sociedade, tornando os fóruns menos
representativos do total da população. No âmbito da influência comunicativa, portanto, os recursos
informacionais são compreendidos no polo oposto da democracia. Já nos trabalhos de vinculação com o objeto, a
aproximação do participante com o objeto, o planejamento, é compreendida como uma oportunidade de inclusão
política e de democratização da IP, não como um mecanismo de distinção.
166
é ou impulsionada ou cerceada pelo nível de organização e disposição da sociedade civil –
muito na linha do que é defendido por Avritzer (2012). O entrevistado relata que
tiveram territórios que a sociedade era mais organizada, e esse
grupo [GTT] conseguiu dar operacionalidade, e isso aqui facilitou
o trabalho da escuta, porque aí cada segmento já chegava lá pelo
menos sabendo o que queria. E tiveram outros colegiados, outros
territórios, que esse grupo não conseguiu trabalhar bem, e então
isso se refletia na dispersão de pauta, de proposta.
O governo conta, desde esse penúltimo ciclo, com a parceria de outras secretarias para a
mobilização da sociedade à participação nos fóruns participativos descentralizados. A técnica
da Secretaria de Relações Institucionais do Governo do Estado da Bahia (SERIN) discorre
sobre como a sua secretaria promove ações de engajamento do público-alvo no PPA
(Depoimento 01). Se trata de um órgão que está vinculado ao gabinete do governador; é uma
secretaria que cuida do exercício da democracia, da relação da sociedade civil com o
governo do estado. Além de atender às demandas da sociedade civil organizada e às
solicitações dos movimentos sociais, fazendo uma ponte entre o Estado e as organizações
sociais, a secretaria tem o papel de fomentar a participação de agentes apartados do organismo
participativo, desde o cidadão comum até os grupos não organizados (grupos que não estejam
numa estrutura oficial de sindicato, que ainda não tenha se estruturado, que ainda não tenha
seu CNPJ, coisas desse tipo). Sendo assim, o governo divide as iniciativas de permeabilização
das políticas de diversas formas, entre as secretarias, trazendo a sociedade para dentro da IP
com outros trabalhos que não aqueles exclusivos de desenho estrutural de mobilização social.
No processo de escuta social para o ciclo de 2012-2015, foram cadastradas mais de três mil
propostas, sendo a grande maioria delas oriunda dos representantes da sociedade civil. Quase
duas mil propostas desse universo foram validadas pela equipe da SEPLAN e direcionadas às
equipes setoriais para análise e incorporação no texto final (BAHIA, 2013). Interessam para o
indicador de inclusão os resultados da participação, notados pelos próprios técnicos do
governo. No documento intitulado “PPA Participativo: registro de uma história” (2013), o
governo estadual baiano buscou apresentar os resultados das experiências participativas,
assim como suas contribuições para a gestão pública, que são eles: “aproximação do
planejamento do Estado com a diversidade existente em cada Território de Identidade;
qualificação das ações priorizadas; democratização do planejamento; oportunidade de
participação de segmentos antes excluídos; abertura do diálogo na execução do planejamento;
e oportunidade de acompanhar a execução do planejamento” (BAHIA, 2013, p. 56 e 57).
167
Essas conclusões documentais e os relatos apontam que a busca pela qualificação da
mobilização pode até ter reduzido o grau de inclusividade da IP, mas outras ações de fomento
à participação e de formação para o objeto mantém o PPA-P da Bahia no ciclo 2012-2015 no
polo mais inclusivo e democrático do modelo de Fung.
O ano de 2015 representou um ponto de inflexão metodológico para a elaboração do PPA da
Bahia em vários quesitos. O primeiro deles diz respeito à operacionalidade do plano. Devido
às dificuldades operacionais de fechamento de propostas das escutas sociais – essas que
devem ainda ser filtradas e compatibilizadas com as estratégias advindas das setoriais antes de
serem incorporadas ao plano –, e que oferecem riscos à elaboração do plano plurianual desde
os primeiros ciclos participativos, a equipe da SEPLAN buscou dar um salto qualitativo no
arranjo de participação das escutas sociais. O entrevistado 04, ao ser instigado a falar sobre as
motivações para as transformações metodológicas e também sobre a avaliação crítica disso,
afirmou o seguinte:
A gente foi percebendo – e é a avaliação que a gente tem hoje –
que trazer mais pessoas é um elemento interessante, mas a
qualidade com a qual você... Não é a qualidade de pessoas não,
mas a qualidade do produto de um momento como esse, entendeu?
(...) Por isso que esse PPA, ele buscou assim: afunilar um pouco
em relação à participação, mas não afunilar a participação,
afunilar o produto dela, entendeu? Ela foi de novo aberta, ela foi
de novo ampla, mas ela buscou ter um produto mais coeso no final,
exatamente para que ele seja insumo de elaboração dentro do
planejamento.
Diante dessa orientação metodológica, afunila-se o produto da escuta social em busca do salto
qualitativo, ainda que para isso haja a troca da mobilização massiva e indiscriminada para
organizações estratégicas, em conjunto com coletivos regionais, em torno das propostas
(produto) dos fóruns participativos.
O segundo quesito disparador da inflexão metodológica do plano se relaciona à temática da
representação. Circunscritos ao indicador de seleção de participantes foram evidenciados
alguns dilemas da representação nas instituições participativas. É unânime entre os
entrevistados o risco que a instituição participativa corre ao selecionar pessoas que sejam de
fato representativas dos Territórios de Identidade e, com isso, garantir a legitimidade do plano
formal construído coletivamente. O entrevistado 03 é muito enfático e transparente em relação
aos riscos da representação, admitindo que
168
a configuração de cada público... nem sempre o público presente
na audiência reflete exatamente a configuração da sociedade. Mais
ainda: do ponto de vista da democracia, e da legitimidade, a
legitimidade pode ser questionada. Não existe nada que assegure
que aquele coletivo que esteve presente naquele dia represente de
fato [a população]... Não estou dizendo com isso que haja um tipo
de manipulação, de segundas intenções, cada um convoca de
acordo com o que enxerga, é talento seu, é do seu território.
As afirmações aprofundam o debate sobre a democracia e sua complexidade em agregar com
efetividade a pluralidade dos territórios, ao passo que conferem ao risco um caráter natural,
inerente à sociedade civil organizada e muito característico de todas as instituições
participativas, como os conselhos de políticas públicas.
Na mesma linha, o entrevistado 04 conta que cada fórum de participação tem um tipo de
coletivo formado, que não obedece a nenhuma regra específica e que espelha um organismo
dinâmico particular à região. Sob essa afirmativa, a representatividade e a legitimidade são
condições que fogem à governabilidade do Estado. A equipe pode montar
uma audiência pública, com caráter de audiência pública, com
área aberta, com convocação, em rádio, convocação em tudo,
como a gente fazia. Não significa que o povo [esteja ali
representado]. Às vezes vai o líder da associação que não
representa nada daquela comunidade, e aí vai um grupo de
pessoas... você tem a formação de uma plenária, de uma audiência,
ela tem a sua própria característica.
Isso evidencia um risco associado à composição da plenária, em termos de representação.
Risco esse que, ao invés de reforçar a necessidade de mobilização ampla da sociedade, acaba,
sob o olhar dos técnicos, por justificar a mobilização selecionada e mais restritiva da
sociedade, via representações locais mais consolidadas. No último ciclo de elaboração do
PPA-P, a equipe apostou no arranjo de mobilização social com a atuação de colegiados
territoriais que, segundo o entrevistado, ao menos caminham para um ideal de
representatividade. A gente não limitou a participação, só que a gente foi atrás dos
colegiados territoriais, então você tinha já uma estrutura montada com uma rede de contatos,
com lideranças legitimadas dentro do colegiado.
Por fim, ainda sobre a temática da representatividade, o entrevistado 02 confere um olhar
mais otimista para o arranjo institucional participativo, no sentido de que a moldagem do
arranjo pode ser determinante para mobilizar atores representativos nas instituições
participativas descentralizadas do PPA-P da Bahia. A questão da representação é uma
169
preocupação muito grande que a gente tem, por isso que nós criamos aqui, e isso é muito
cuidado de perto pelos ADTs, agentes de desenvolvimento territorial, é por isso que nós
temos os colegiados territoriais, é por isso que nós estamos sempre junto com os territórios
dessas lideranças. Segundo ele, a equipe da SEPLAN tem compromisso com o
acompanhamento da atuação dos agentes mobilizadores, fazendo treinamento, capacitação,
palestras, fazendo com que os agentes de desenvolvimento territorial que moram lá, residem
nesse território, circulem pelos territórios, sejam agentes multiplicadores e sejam
verdadeiros termômetros e filtros. E complementa afirmando que os ADTs circulam entre os
representados, para que eles filtrem essas propostas, apliquem questionários, façam
entrevistas para verem se realmente esses lideres estão sendo legítimos e representativos.
Todas essas ações sugerem que o arranjo de participação, ou seja, a forma como é desenhado
o processo de mobilização, formativo e decisório, pode garantir pouco mais de
governabilidade, por parte do Estado, na representatividade e legitimidade do produto das
escutas sociais.
A Bahia vem fazendo um esforço de qualificar a mobilização dos territórios para garantir a
presença de lideranças representativas dos interesses locais. Processo semelhante é notado no
PPA federal, em que partiu-se de uma mobilização social ampla para o envolvimento dos
conselhos nacionais, no intuito, segundo a revisão teórica (AVELINO e SANTOS, 2014;
PIRES et al, 2014), de ampliar a representação de interesses difusos no plano e também a
legitimidade da escuta social. Para isso, de acordo com o contínuo de Fung (2006), o PPA-P
caminhou da esfera pública difusa para uma mobilização por recrutamento selecionado, que
objetiva o chamamento de subgrupos da sociedade por meio de incentivos estruturais à
participação. Os nichos sociais de atuação dos ADTs, escritórios regionais, colegiados
territoriais, conselhos e outros coletivos podem representar os subgrupos do recrutamento
selecionado. Esse modelo de seleção de participantes reforça uma centralidade de organização
do Estado e dá uma ênfase ao arranjo ou desenho montado para atender à IP, e nem de longe,
assume-se, descaracteriza um nível bem democrático de inclusividade na seleção de
participantes. A figura abaixo demonstra o processo de transição do modelo de seleção de
participantes adotado nos últimos ciclos.
170
Figura 05. Representação do eixo de seleção de participantes no modelo de Fung (2006)
na transição entre os ciclos do PPA de 2008-2011 para o de 2016-2019
Fonte: Elaboração própria; interpretação do modelo de Fung (2006).
À luz da teoria de Fung (2006), houve um decréscimo de intensidade da democracia no
framework. Entretanto, quando observados os esforços documentados e relatados pelos
técnicos da SEPLAN de aprimorar a seleção de participantes de um ciclo do PPA para outro,
fica claro que a intencionalidade de qualificar a representação não se equipara à
intencionalidade de restringir a democracia na IP – qualificar a representação não é sinônimo
de deixar a IP menos inclusiva, ao menos não na intencionalidade. O arranjo de participação
foi sim modificado de chamamento amplo para chamamento selecionado, entre os ciclos de
2008-2011 e 2016-2019, e isso ocorreu na intencionalidade tanto para dar materialidade ao
plano quanto para melhorar a representação de interesses. Assim, os documentos e relatos
reivindicam o convencimento para sensibilidade da temática da representatividade, incitando
uma crítica indireta e, admite-se neste trabalho, plausível ao modelo, uma vez que
representatividade não é garantida exclusivamente pela quantidade de público configurado em
uma plenária. Os achados da pesquisa, para o indicador de seleção de participantes, deixaram
uma aprendizagem sobre a necessidade de promover-se um equilíbrio entre representação e
inclusão social.
171
b. Modo de comunicação e decisão
O indicador de modo de comunicação e decisão é o segundo do framework de Fung (2006) e
busca aferir a intensidade com a qual os participantes interagem nos fóruns, principalmente o
quanto de conhecimento, engajamento e comprometimento empreendem durante o processo
participativo. Esse indicador possui uma métrica que caminha de um polo mais comunicativo
– e, segundo o autor, mais democrático – para outro polo oposto, mais decisional, em que os
participantes se apresentam com mais informações, tempo, disposição e outros recursos
(educacionais, técnicos, políticos e financeiros) para influir no processo decisório. Fung
apresenta esse polo como sendo menos democrático e menos representativo da sociedade
como um todo, uma vez que agrega indivíduos mais equipados e empoderados.
Os níveis de engajamento e comprometimento dos participantes são aspectos que interferem
na intensidade de interação nos fóruns e são constituídos antes mesmo de a instituição
participativa se consolidar. As representações locais, tal como são despontadas na sociedade,
a atuação de conselheiros, com os recursos educacionais, técnicos e políticos de que dispõem,
as lideranças formais e informais, com a vivência diária no embate pela formação de agendas
públicas e políticas, entre outros fatores, empurram o posicionamento da instituição
participativa mais para o polo decisional no modelo de Fung e, por consequência, menos
democrático. É importante notar que os aspectos citados, de engajamento e
comprometimento, são intervenientes ao grau de vinculação dos participantes com o objeto de
planejamento, já tratado no indicador de seleção de participantes. As diferenças baseiam-se no
fato de que, nesse último caso, vê-se o esforço de explicar o funcionamento do objeto, o
planejamento, como uma oportunidade de inclusão política, ao passo que a disposição de
recursos prévios à consolidação da IP, no caso das representações locais, conselheiros e outras
lideranças, é entendida como um mecanismo distintivo e restritivo.
À parte o grau de representatividade dessas lideranças – o quanto elas são representativas da
sociedade como um todo, tema sensível do indicador anterior –, é indiscutível a variedade e a
quantidade de recursos de que dispõem para influenciar o processo decisório, e também o
quanto isso agrega em termos de intensidade de interação nos fóruns. Sobre essa questão, a
técnica da SERIN (Depoimento 01) primeiro refuta que essas lideranças não sejam
representativas, à controvérsia dos argumentos anteriores e, em seguida, ressalta que já existe
um processo comunicativo de construção de pautas, por vezes até deliberativo, nos coletivos
de origem dessas lideranças:
172
essas lideranças estão constituídas, reconhecidas e são
representativas, e não acredito muito que você tenha pessoas, de
fato, que não representam o segmento, tomando decisões
conjuntas, até porque todos os segmentos (pessoal de sindicato,
pessoal de associação, pessoal de fóruns) eles têm seus processos
de discussão interna, têm seus conflitos também, têm suas disputas
internas... e o que vai para a discussão na disputa territorial já é
consenso.
Nessa perspectiva, o processo comunicativo é influenciado tanto pelos múltiplos recursos
inerentes às representações quanto pelas pautas e propostas predefinidas, assim, o que já era
questionável em termos de potencial democratizante dos fóruns e da IP como um todo fica
ainda mais sensível quando atestadas essas mobilizações preparatórias.
No contínuo de Fung, as instituições participativas de origem das lideranças – conselhos,
associações, conferências, entre outras – se posicionam sobre as variáveis de agregação e
barganha ou até mesmo sobre as variáveis de deliberação e negociação, dependendo da
natureza do fórum, e isso posiciona a IP no polo decisional, menos democrático. Entende-se
que esse posicionamento, embora atenuado, é reproduzido no PPA-P, de forma que as
lideranças originárias exerçam influências significativas no processo decisório e no
desenvolvimento de preferências dos demais participantes, mais leigos. A atenuação ocorre
devido à inserção de outros atores sociais, representações diversas e novas pautas
reivindicatórias, o que faz as lideranças recuarem no espectro de Fung para ações
comunicativas e de agregação e barganha. Os participantes leigos, por sua vez, podem passar
de uma condição de ouvinte para uma condição de defensor das próprias preferências, devido
às oportunidades comunicativas concedidas nos fóruns, mas não sem antes serem
influenciados pelas bandeiras políticas das lideranças, cujas trajetórias lhes conferem uma
significativa assimetria de informação e de poder.
Parte do indicador do modo de comunicação e decisão pode ser respondida, no âmbito da
intensidade de interações nos fóruns, somente com esse olhar para os níveis de engajamento e
comprometimento. Em outra via, na construção do diálogo com a sociedade, no aspecto do
conhecimento, o governo baiano propôs um conjunto de ações para aprimorar habilidades
comunicativas e potencializar talentos regionais, buscando respeitar um processo de
aprendizagem mútuo – de Estado e sociedade – para a participação social. A melhoria do
produto das escutas sociais também é um fator de motivação para a qualificação do processo
comunicativo e decisional. Entre as ações empreendidas, destacam-se as iniciativas de levar
formação política e informações às comunidades dos Territórios de Identidade.
173
De acordo com a análise documental, as iniciativas de mobilização para a elaboração do PPA
2012-2015 foram as primeiras a compor o rol de ações de preparação para o debate nas
escutas sociais. Como já descrito no indicador de seleção de participantes, a SEPLAN criou
uma rede local circunscrita em torno de grupos territoriais de trabalho e agentes
multiplicadores da sociedade, que foram preparados não só para mobilizar atores relevantes,
mas para também disseminar informações sobre o processo participativo e os temas
estratégicos que norteariam as discussões nas plenárias. Foram elaboradas cartilhas digitais
com orientações sobre o PPA, especificando a priori a sua própria razão de ser, histórico,
funções, contribuições, roteiro de elaboração e cronograma de escutais sociais em cada
território. Essencialmente, essas cartilhas problematizaram os temas e apresentaram as
diretrizes postas em planos de médio e de longo prazos, como o “Pensar Bahia 2023”. Em
uma perspectiva otimista, entende-se que a disposição das cartilhas e outras iniciativas de
preparação prévia das pessoas para o debate reduzem a assimetria de informação e possíveis
desigualdades na capacidade de fala dos participantes, contribuindo para uma imersão
comunicativa mais efetiva, rumo ao desenvolvimento conjunto de preferências.
Além dessas iniciativas, também contribuem para incrementar a reciprocidade da fala a
transversalidade temática e a integração entre os múltiplos fóruns participativos, iniciadas no
ciclo de 2012-2015 da Bahia e aprimoradas em 2015. Segundo o registro documental do
governo, essa metodologia foi estruturada com cuidado especial para a integração entre temas
e fóruns de modo a “criar um senso de unidade entre participantes, estabelecer parâmetros
para uma escolha informada e viabilizar o tempo mínimo necessário para a produção e
priorização de propostas” (BAHIA, 2012, p. 45). Entende-se também que, sob a
transversalidade, os participantes ganham força em pautas reivindicatórias complexas,
especializando seu discurso para atendimento integral de temas e problemas, assim como a
multiplicidade de fóruns potencializa o conhecimento sobre determinados assuntos e faz as
pautas ecoarem.
O governo baiano buscou e vem buscando, desde o primeiro ciclo de PPA-P, nas estratégias
de participação social, criar meios de informar e formar cidadãos e agentes multiplicadores,
inclusive os mediadores dos debates das plenárias regionais, esses que exercem papel
fundamental na reciprocidade da fala dos participantes e na influência comunicativa. Segundo
a especialista em políticas públicas e gestão governamental e diretora de monitoramento da
SEPLAN (Depoimento 03), a reciprocidade da fala se dá no seguinte sentido:
174
Se você está conversando com uma pessoa que ignora o que você
está dizendo, não é uma conversa, não é um diálogo, é um
monólogo. (...) Aí a gente evolui pra isso, então, a gente aperfeiçoa
as escutas que acontecem, a interlocução, cria esses conselhos do
CODETER, CEDETER, tudo é criado nesse âmbito.
O contexto do seu depoimento é compreendido em uma discussão ampla sobre a influência
comunicativa entre os participantes e a preparação para o momento participativo, que
impactam sobremaneira, sob o olhar da servidora, a qualidade do produto das escutas sociais.
O ato de formar politicamente e informar o cidadão também é entendido pelos gestores e
técnicos entrevistados como uma forma de atenuar a assimetria de informação e poder nos
fóruns, como já dito, e de diminuir o grau de influência das lideranças políticas. O
entrevistado 02 argumenta sobre isso que a Bahia vem de um processo onde nós tínhamos
lideranças políticas institucionais muito fortes e ditavam muito as questões. A partir do
momento que você chega pra sociedade e diz ‘eu vim aqui agora pra ouvir o que você
precisa’, isso é uma mudança de paradigma muito radical e muito significativa. Essa abertura
deve ser acompanhada de oportunidades de transmissão de informações sobre o conteúdo das
reivindicações, uma vez que a ponta precisa também estar madura, formada ou
conscientizada suficiente pra saber o que ela precisa, o que ela quer, como é que eu posso
ajudar essa sociedade a identificar os seus gargalos e transformá-los, os seus anseios em
propostas efetivas políticas. Assim, as iniciativas do governo com fins à reciprocidade da fala
cuidam para que os participantes sejam expostos a informações que sejam capazes de
absorver, pensar e (re)construir à sua maneira.
Por esse caminho de análise, que foi tornando o olhar das entrevistas e depoimentos mais
subjetivo, o tema sobre o diálogo nos processos comunicativos e decisórios se aproximou da
discussão sobre o significado da democracia no planejamento. O movimento de informar e
formar o cidadão para participação “qualificada” nos espaços de democracia consolidados no
planejamento considera a manifestação da democracia como valor, que enriquece o debate de
conteúdo e promove a formação política de indivíduos. Essa compreensão é unânime entre os
entrevistados. O que se distingue nas falas é justamente o quanto dessa intenção do governo é
percebida na prática, ou em que medida o governo pode realmente intervir na oportunidade
comunicativa, ou na reciprocidade da fala, e o quanto pode de fato instigar as pessoas a
pensarem. Sobre isso o entrevistado 03 afirma enfaticamente:
O governo não instiga (risos). Veja bem, eu acho que não instiga.
Essa questão da participação social, ela ainda tem muito o que
175
caminhar. Houve época que eu achava até que não instigava por
questões maquiavélicas e tal (risos). Hoje eu acho que não, quatro
anos transitando dentro do governo, acho que é mito da nossa
cultura, ou falta de uma cultura democrática.
Compreende-se que a preparação dos participantes, a partir dessas análises, se dá em níveis de
profundidade. O conhecimento compartilhado não deve ser tão somente aquele sobre o
funcionamento das instituições participativas, sobre o que é ou deveria ser o planejamento
público, ou no nível das diretrizes temáticas para o debate de conteúdo. Todos esses níveis são
importantes, mas a significação da democracia nas instituições participativas demanda romper
com o “mito da nossa cultura, ou falta de uma cultura democrática”. O conhecimento deve
ser construído de forma multidimensional nos fóruns de participação ou a partir dos fóruns de
participação, provocando uma aprendizagem ampla sobre a cultura democrática.
Da simples informação sobre o processo de planejamento às questões sobre o alcance da
democracia, as ações do governo induzem a um aprofundamento da dimensão comunicativa.
Ocorre um movimento do governo pela transmissão de informações e formação política aos
participantes leigos como um incentivo à progressão da atuação da sociedade nos fóruns,
passando de uma condição de ouvinte ou espectador para uma condição de aptidão para
desenvolvimento de preferências. Por isso, se por um lado a IP do PPA-P induz a participação
de diversas lideranças que devem abrir mão de parte de sua influência, por outro lado, no caso
dos participantes leigos, a IP justamente oferece uma oportunidade para que a influência
política se desenvolva, o que impõe naturalmente ao governo comprometido com a
participação social desafios de instrumentalizar essas pessoas. Sempre à luz do modelo de
Fung, apreende-se desses achados que a atenuação da assimetria de informações aprofunda a
democracia no âmbito das lideranças e, ao contrário, a instrumentalização dos participantes
leigos cerceia a democracia no âmbito da sociedade. Dessa forma, lideranças e participantes
leigos caminham no espectro de forma a confluir para o limite entre os polos comunicativo e
decisional, tal como representado no espectro a seguir.
176
Figura 06. Representação do eixo de modo de comunicação e decisão no modelo de Fung
(2006) para o comportamento das lideranças e dos participantes leigos
Fonte: Elaboração própria; interpretação do modelo de Fung (2006).
Este trabalho admite o risco à democratização da IP à medida que o debate se torna mais
qualificado, mas os achados encontrados nos documentos e nas falas dos técnicos promovem
a crítica acerca da relação inversamente proporcional entre aprendizagem política e a
profundidade da democracia reivindicada pelo modelo. Os relatos dos entrevistados justificam
as ações formativas como medidas para equipar a população para a participação social, como
precondição para o diálogo mais construtivo e como garantia de materialidade da peça de
planejamento. Na intencionalidade da equipe, os incentivos não são compreendidos como
restritivos à democratização das IPs, embora sejam caracterizados dessa forma no contínuo de
Fung. Portanto, assim como no indicador anterior, parece plausível a crítica e a ponderação do
modelo.
c. Extensão da autoridade e poder de agenda
O indicador de extensão da autoridade e poder de agenda é o terceiro e último do framework
de Fung (2006) e busca aferir o potencial de impacto da participação social no desenho e
implementação das políticas públicas. O indicador tem como objetivo apontar variações de
potencial de impacto da atuação dos atores convidados à participação, enquanto debatedores e
177
proponentes, e a transformação das proposições em políticas efetivas pela comunidade
governamental. O foco, todavia, no objeto tratado por este trabalho – PPA-P da Bahia –, não
está em aferir o quantitativo de propostas oriundas das escutas sociais que “entrou” no plano
plurianual ou se foram implementadas, mas o tipo de exercício de autoridade empregado pela
participação social e as expectativas de influência dos atores sociais, diretos ou
representantes, no processo de formação de agenda e elaboração do PPA. Para embasar os
achados, é importante resgatar do modelo de análise as relações do indicador com o potencial
de democratização da IP, que são inversamente proporcionais: o aumento da autoridade sobre
as decisões políticas, segundo a teoria do autor, implica em um constrangimento da
democracia, uma vez que a autoridade direta pressupõe uma limitação à participação mais
leiga nos fóruns.
A extensão da autoridade e poder de agenda é muito reflexo do perfil dos participantes –
quem participa? – e dos recursos de que dispõem esses atores para influenciar politicamente
os debates nos fóruns do PPA-P – modo de comunicação e decisão. Isso faz com que parte do
indicador já tenha sido respondido nos itens anteriores. No entanto, cabe a esse indicador a
exclusividade de posicionar no espectro de Fung os níveis de autoridade empreendidos pelos
participantes nos fóruns. Pressupõe-se, a partir da análise teórica, que o potencial de impacto
se dá pela partilha de poder e responsabilidades entre uma espécie de autoridade social,
fomentada pelo caráter participativo dos fóruns, e uma autoridade direta, composta por
gestores eleitos e técnicos do governo, no caso do plano plurianual da Bahia, atores centrais
das mesas temáticas internas. Os representantes de conselhos de políticas públicas, esferas já
institucionalizadas de partilha de poder (AVRITZER, 2008), podem se enquadrar em um
nível intermediário entre as autoridades.
O PPA-P da Bahia, nesse sentido, se caracteriza como uma instituição participativa com ares
de aconselhamento, acrescida de uma boa dose de autoridade direta do Estado, como vai
apontar os achados. A análise do caso concreto para mensuração qualitativa do potencial de
impacto da participação social considera três tipos de autoridades, despontadas tanto na
revisão documental quanto nas entrevistas, quais sejam: autoridade das organizações da
sociedade civil, autoridades governamentais e autoridades de representações de conselhos.
Vale ponderar sobre isso que, em razão de um recorte metodológico específico, esta pesquisa
não abordou participantes não articulados (participantes leigos) no processo de planejamento
participativo, o que restringe as conclusões acerca do poder de agenda da sociedade como um
todo. Ainda assim, o olhar dos gestores e técnicos permite algumas assertivas relevantes para
178
se posicionar adequadamente o indicador no espectro de Fung. Ao final, a análise somente
tangencia, por meio de depoimento de uma técnica participante das mesas temáticas, a
indicação de um potencial de formação de agenda das propostas oriundas das escutas sociais.
A autoridade e o poder de agenda exercidos pela sociedade civil variam muito em função da
heterogeneidade do público constitutivo dos movimentos e organizações, e, por isso, não é
razoável apresentar generalizações em termos de alcance do impacto da participação,
tampouco em relação ao potencial democratizante da IP. O diretor interino de planejamento
territorial à época da entrevista (Entrevistado 03) mencionou que havia participado do Fórum
Interconselhos em Brasília, do PPA da União, e percebeu que existe tanto segmentos que vão
organizados, com formulação e até organização – a ponto do cara mapear como é que os
grupos de trabalho vão funcionar, para que eles estejam presentes nos grupos importantes
para eles estrategicamente –, até segmentos que estão lá perdidos. Para essas variações,
importa muito o investimento em processos formativos, já tratado em indicador anterior. O
nível de informação que os grupos possuem tem potencial de empoderá-los no processo
decisório, contribuindo para que emplaquem agendas com reivindicações próprias. Além
disso, é relevante o nível de articulação dos movimentos sociais e a trajetória de participação
social, na linha do que é defendido por Avritzer (2012).
No caso da Bahia, a importância da articulação e da trajetória de luta dos movimentos é
exemplificada pelo entrevistado 03 a partir do caso emblemático do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), cuja atuação pela democratização do acesso à terra é
amplamente organizada e notória no Brasil. Segundo ele,
o MST, que é uma coisa conhecida, tem capilaridade no estado
todo. Se na primeira audiência o cara foi e aí dizem ‘vocês podem
também aportar algumas contribuições’, o cara depois já avisa pra
galera dele toda, aí na última [audiência] o cara chega lá com o
plano de ação todo pronto. Se você é um cara desarticulado, você
só vai saber na hora. Do ponto de vista estritamente formal da
democracia, você tem uma simetria das possibilidades de
participação.
Os dois relatos acima acrescentam à análise do papel dos movimentos, na perspectiva de
autoridade e poder de agenda, três aprendizagens. Primeiro, o potencial de apresentar novas
demandas varia conforme o acesso prévio à informação sobre o que e como pedir. Segundo,
um movimento social articulado como o MST tem mais oportunidade de pautar a formação da
agenda política do governo devido à capilaridade de sua atuação em todo o território, agindo
179
pela disseminação e padronização das suas reivindicações de modo a potencializá-las. E, por
fim, a simetria de que conta o entrevistado contribui, na sua visão, para gerar reciprocidade de
poder entre sociedade e Estado dentro das instituições participativas. Sendo assim, a
possibilidade do exercício compartilhado de autoridade denota ao papel dos movimentos uma
importância ímpar quanto à democratização da IP.
No polo oposto da análise estão as autoridades governamentais, que tradicionalmente
possuem as prerrogativas do planejamento público, com competência direta na formação da
agenda política e desenho das políticas públicas a serem implementadas. A instituição
participativa do PPA, por todas as questões já apresentadas, foi sendo consolidada como
promessa de democratização da administração pública e de ressignificação do planejamento
ora centralizado. Nesse sentido, a autoridade governamental é diluída pela incorporação de
diversos atores da sociedade civil. Esse processo de perenização do planejamento, entretanto,
até mesmo por ser fruto de uma adesão voluntária do governo, não tem a intenção de destituir
a autoridade governamental. Os entrevistados parecem reconhecer a importância de dosagens
entre autoridade direta e autoridade social, garantindo ambos o aprofundamento democrático
e a prerrogativa do planejamento público pelo Estado. Tanto reconhecem que vêm sendo
empreendidos esforços para equilibrar as escutas sociais e mesas temáticas desde o PPA-P
2012-2015.
De acordo com o assessor de planejamento, entrevistado 04, a atividade planejadora requer
um cuidado para a implementação dos programas que nem sempre está no horizonte da
reivindicação da sociedade. Ele discorre sobre isso se valendo de uma situação hipotética,
referente à demanda por saúde:
Eu estou no interior do estado e um dos grandes problemas que eu
tenho é com saúde. Se eu fosse deliberar sobre, eu construiria um
hospital. A demanda de funcionário, equipamento, estrutura, tudo
isso eu não estou pensando, porque sou demandante, eu não sou
planejador, entendeu? Nem executor.
Sob essa perspectiva, a autoridade governamental é quem possui informações relevantes sobre
se a proposta é ou não viável e até mesmo sobre a sustentabilidade física e financeira do
programa a longo prazo. Dessa forma, também a decisão final sobre a agenda política, ou o
plano constituído a partir das escutas, seria de prerrogativa do Estado. Isso não significa
cercear as reivindicações, mas afinar a atividade planejadora: o entendimento de como se dá
um atendimento a um desejo da sociedade, isso ainda não é muito claro, aliás, não é nem um
180
pouco claro, mas acho sim que os movimentos sociais estão no papel certo, o papel de
cobrar.
A autoridade governamental para a elaboração do PPA-P não é restrita ao gabinete e
diretorias de planejamento do Estado, mas também envolve as demais secretarias de governo.
Por isso, é interessante olhar para a estrutura participativa interna, como nas mesas temáticas,
em que os atores das secretarias são chamados a apresentar e negociar compromissos com
cargas de ações e responsabilidades diluídas entre as partes, no escopo de uma nova
orientação pela transversalidade. Sendo assim, pode haver uma parcela de autoridade e poder
de agenda em cada representante de secretaria nos fóruns. Dois depoimentos coletados, um de
uma técnica de área-meio (Depoimento 04) e outra de técnica de área-fim (Depoimento 05),
mostraram tipos distintos de preparação para a rodada negociativa nas mesas temáticas.
Questionada sobre a forma de preparação interna, prévia às mesas, dos compromissos, a
técnica da Fundação da Criança e do Adolescente, cuja atuação se dá no apoio às políticas
para a juventude das secretarias finalísticas, afirma que sua área passou a articular-se
internamente somente após a participação na primeira mesa temática:
Nós não tivemos esse diálogo interno, mas começamos a discutir a
partir do momento que fomos convidados para a rodada da
discussão. (...) Observamos que havia a necessidade de uma
articulação melhor interna. Tínhamos um grupo, mas muito
pequeno, então nós fizemos essa articulação, verificando quais
eram os pontos de maior importância e necessidade pra nós, e
fizemos a construção de compromissos.
Internamente na fundação os técnicos se reuniram para listar necessidades próprias, para que
fossem então inseridas em outras agendas, o que faz com que a autoridade exercida pela área-
meio se conforme, ao menos nesse caso, por meio de uma pressão para incorporação de sua
agenda em compromissos alheios.
Por sua vez, o Depoimento 05 discorre sobre preparação interna da Secretaria de Políticas
para as Mulheres – portanto, enquanto órgão propositor de compromissos essenciais da
política. Questionada sobre essa preparação, a coordenadora executiva de planejamento e
gestão de política para as mulheres afirma que foram realizadas rodadas internas prévias de
discussões com múltiplos atores (gestores, técnicos e operadores da política) para
compreensão do público-alvo, das necessidades e caminhos da política para as mulheres. O
relato dela diz:
181
Desde o início do ano, nós tivemos a orientação do gabinete do
governador, já pensando o nosso PPA, na apresentação que as
secretarias fazem. Estamos pensando quais seriam as nossas
políticas para esse ano, e principalmente com foco nos quatro
próximos anos. Sentamos com nossos gestores e com a secretária,
fechamos quais seriam as prioridades, as nossas metas, as nossas
áreas, objetivos estratégicos, e são esses que a gente traçou.
As discussões internas não escapam às negociações nas mesas temáticas participativas, e
muita coisa surge com o diálogo, mas a secretaria já leva as propostas oriundas de um
processo de construção, para que reflita no PPA aquilo que estão planejando.
É interessante notar que as estruturas internas ao governo também passam por um processo de
aprendizagem para o planejamento assim como a sociedade, buscando aprofundar o
conhecimento acerca de temas e problemas e melhorando habilidades comunicativas e
negociativas. Ainda, a comunidade governamental envolvida nos fóruns – na Bahia representa
cerca de 130 mil servidores públicos – pode contribuir para caracterizar essas oportunidades
como participativas. Por isso, na mesma medida em que a participação das organizações da
sociedade civil se fixa em uma posição, no modelo de Fung, de aconselhamento e consulta,
também a autoridade estatal se posiciona dessa forma, uma vez que abre mão de parte de sua
prerrogativa institucional de propor e decidir e aposta em uma estratégia de construção
coletiva até mesmo internamente.
O último tipo de autoridade selecionado por esta pesquisa para indicar seu posicionamento no
indicador compreende os representantes de conselhos de políticas públicas, esses que se
enquadram em um nível intermediário entre as autoridades social e direta. A participação dos
conselhos nos fóruns de elaboração do PPA é prevista pela norma que dispõe sobre a
organização desse processo. Para o ciclo de 2016-2019, o Decreto nº 16.014 de 20 de março
de 2015 institucionalizou a participação dos conselhos designando um papel significativo no
processo de escuta social, sendo suas interações nos fóruns mediadas com fins à elaboração de
propostas para o plano. O Art. 4º estabeleceu que o processo de escuta fosse realizado, entre
outras etapas, por meio de reuniões com Conselhos Estaduais de Políticas Setoriais, cujas
proposições teriam como base a sistematização das propostas elaboradas nas suas respectivas
conferências temáticas. Essa organização pode ser pouco democratizante se considerado o
risco à participação leiga, e também por qualificar sobremaneira o debate, mas tem potencial
de criar uma rede de acompanhamento do PPA que extrapola o momento de sua elaboração,
além de apresentar propostas mais efetivas.
182
A estrutura de aconselhamento aos moldes da sistemática estabelecida pelo decreto é
reproduzida também nos colegiados territoriais, posto que a mobilização ampla ou
selecionada, a depender do ciclo abordado, comprometeu-se em aproximar dos fóruns os
conselhos de políticas públicas municipais e outros instrumentos de partilha de poder mais
regionalizados. Segundo o documento “Registro de uma história” (BAHIA, 2012, p. 43), “os
integrantes do Conselho de Acompanhamento do PPA e dos colegiados territoriais
desempenharam papel fundamental na articulação do processo”, em três medidas, na
mobilização social, na organização das discussões prévias às plenárias envolvendo os
municípios e na formulação das propostas nas plenárias. Esses achados documentais reforçam
o modelo de partilha de poder e contribuem para o posicionamento da autoridade dos
representantes de conselhos na variável de conselho e consulta assim como as demais
autoridades apresentadas neste item. A figura abaixo demonstra as transformações e a fixação
dos três tipos de autoridade na instituição participativa do PPA-P da Bahia.
Figura 07. Representação do eixo de extensão de autoridade e poder de agenda no
modelo de Fung (2006) para as autoridades direta (governo), social e de conselhos no
PPA-P da Bahia
Fonte: Elaboração própria; interpretação do modelo de Fung (2006).
Tangenciando, por fim, a temática de formação de agenda, a técnica da Assessoria de
Planejamento e Gestão da Secretaria de Promoção da Igualdade Social (SEPROMI) discorreu
183
em seu Depoimento (02) sobre os conteúdos de política pública discutidos e reivindicados nos
fóruns que ela observou serem desenrolados na prática. Ela afirma o seguinte:
algumas coisas a gente sabe que não consegue ter um retorno
imediato. Nem tudo o que a população pede, o que ela sinaliza que
precisa ou que ela deseja, nem tudo você consegue ter um retorno
imediato, mas eu vi um momento, primeiro, uma preocupação em
mudar – em determinadas coisas há necessidade da população – e,
segundo, você começa a ver a aplicabilidade daquilo.
De acordo com o depoimento, algumas propostas das escutas sociais foram de fato
incorporadas no plano e implementadas, mas esse processo requer um amadurecimento
contínuo. Assim como nos demais indicadores, o desdobramento da escuta social na agenda
política e o impacto da participação no planejamento público veem nos aspectos culturais e
nas aprendizagens democráticas alguns fatores limitantes, ainda que o depoimento aponte ao
menos um amadurecimento contínuo na interação entre Estado e sociedade.
Para o indicador de extensão da autoridade e poder de agenda este trabalho assume diferentes
tipos de autoridade nos fóruns participativos, com diferentes atuações, mas estando todas
situadas na variável de conselho e consulta no modelo de Fung. Entre as variáveis possíveis,
os fóruns de conselho e consulta são os mais recorrentes nas instituições participativas e se
caracterizam pela partilha de poder, de modo a perenizar as intenções das autoridades
públicas no desenho das políticas. O trabalho também reconhece tanto limitações quanto
potenciais das autoridades não-diretas (organizações da sociedade civil e conselhos) na
formação de agenda política, a depender, por exemplo, do nível de articulação do movimento
social, do histórico de participação e do nível de institucionalização dos conselhos. Ainda,
reconhecem-se as limitações de análise, dado que não foram abordados os participantes
leigos, o que dificulta a apreensão de resultados sobre a primeira variável do espectro –
educação individual/ benefício pessoal –, que trata de perspectivas pouco ambiciosas de
participação, em que os indivíduos atendem aos fóruns mais com o intuito de se capacitar do
que com intenções propositivas de agenda. No entanto, sabe-se, por meio dos achados
anteriores, que os participantes leigos são submetidos a processos mobilizatórios e formativos
que os empoderam para influenciar nos processos decisórios.
É necessário lembrar, pelos pressupostos do modelo, que o potencial de impacto da
participação no planejamento formal, que demanda graus mais elevados de autoridade, é
contrário ao potencial democratizante das IPs, já que o aprofundamento da democracia estaria
184
vinculado à participação massiva, de leigos e cidadãos comuns. Nesse ponto, mais uma vez
este trabalho encerra a abordagem do indicador reivindicando a ponderação do modelo, uma
vez que esse sugere que a grandeza e intensidade de democracia são produtos quase
exclusivos da inclusão política, desconsiderando a trajetória de luta de movimentos, a
articulação de pautas, o empoderamento de conselhos, entre outros como requisitos para
potencializar o impacto das autoridades sociais na agenda governamental.
d. Cubo da Democracia: Resultados agregados dos indicadores de grandeza e
intensidade da democracia
O Estado da Bahia apresenta um posicionamento moderado em relação à grandeza e à
intensidade da democracia, conforme o framework de Fung (2006). Esse framework, com viés
tridimensional, se consolida como um importante mecanismo de avaliação de potencialidades
e limites da participação social nos processos decisórios ao permitir a análise de diversas
possibilidades institucionais nos arranjos das instituições participativas. Após a análise dos
resultados, tornou-se evidente como aspecto agregador para o presente trabalho que o modelo
permite a compreensão sobre as estratégias voltadas ora para a expansão da democracia ora
para a manutenção das prerrogativas governamentais, o que é bem relevante para conclusões
sobre a ressignificação do planejamento público a partir da participação social.
No caso do PPA da Bahia, como a abordagem qualitativa foi feita aos técnicos idealizadores e
coordenadores da estrutura metodológica, foi possível além de indicar no framework o arranjo
de participação adotado, compreender as motivações para expandir ou dosar a participação
social na elaboração do plano formal. A esse respeito nota-se que o posicionamento do arranjo
no espectro caracteriza a grandeza da democracia, ao passo que a compreensão das
motivações tem potencial de caracterizar a intensidade da democracia, com toda a carga de
subjetividade e ponderações que isso demanda.
O Estado da Bahia, com a institucionalização do PPA Participativo em 2007, expandiu a
participação social na elaboração do plano em relação a todas as variáveis institucionais do
modelo de Fung, assim como ampliou a democracia no planejamento em todos os indicadores
de grandeza e intensidade da democracia. Considerando especialmente os indicadores de
modo de comunicação e decisão e extensão de autoridade e poder de agenda, o PPA-P da
Bahia se caracteriza, respectivamente, pelas variáveis de agregação e barganha e conselho/
consulta. Os dois indicadores são correlatos e, a partir do esforço de apresentação de dados
185
agregados, verificam-se as seguintes movimentações: as lideranças recuam na dimensão
decisória, marcantes em suas IPs de origem, para a dimensão comunicativa no fórum do PPA-
P; os participantes leigos evoluem na dimensão comunicativa, aproximando-se da dimensão
decisional, por meio de estratégias informativas e formativas; e o governo partilha seu poder
enquanto autoridade direta do planejamento com os demais participantes. Essas
movimentações fazem com que os fóruns exibam equilíbrio e convergência em um nível
intermediário de democracia, para ambos os indicadores. Por sua vez, o indicador de seleção
de participantes demonstra caracterização menos permanente, com transformações que serão
apresentadas mais adiante.
Consolidadas as três representações gráficas do posicionamento do PPA-P da Bahia no
espectro, correspondentes a cada indicador apresentado e analisado nos itens anteriores, o
“Cubo da Democracia” apresenta uma “área de democracia” moderada, mas
significativamente maior do que aquela do planejamento tradicional, cuja participação é
restrita à comunidade governamental, representada por técnicos concursados e governantes
eleitos. A figura abaixo ilustra, finalmente, os resultados agregados do modelo no espectro
tridimensional de Fung (2006), acerca da transição do planejamento público tradicional para o
primeiro ciclo participativo do PPA da Bahia, realizado em 2007.
Figura 08. Representação do Cubo da Democracia de Fung (2006) para o PPA
Participativo da Bahia de 2008-2011
Fonte: Elaboração própria; interpretação do modelo de Fung (2006).
186
A partir da área do gráfico, é possível visualizar uma diferença expressiva do “tamanho” da
democracia representada entre o planejamento público tradicional e o planejamento
participativo. Da relação proporcional entre participação social e democracia no
planejamento, à luz de Fung, e a atestação disso nos achados documentais e abordagens
qualitativas no caso da Bahia, apreende-se que a participação social influi no planejamento
público a partir de três aspectos, cada um referente a um dos indicadores: primeiro, pela
abertura do processo decisório a atores da esfera pública difusa, contrariando o modelo
tradicional restrito às pessoas estratégicas, técnicas e politicamente selecionadas internamente
no governo; segundo, pelo aprimoramento da dimensão comunicativa entre governo,
lideranças e participantes leigos nos fóruns, atenuando as prerrogativas governamentais na
elaboração das peças de planejamento e capacitando a sociedade para o debate qualificado em
torno de seus pleitos e preferências; terceiro e último, pela diluição da autoridade direta do
Estado e a partilha de poder com outras autoridades sociais, tornando possível a formação de
agenda em consonância com as demandas dos múltiplos territórios e atores.
O indicador de seleção de participantes requer uma explicação específica, pois varia de um
ciclo para o outro devido a estratégias distintas de mobilização e abertura dos fóruns. O perfil
de participantes nos fóruns mudou significativamente do ciclo de planejamento de 2008-2011,
primeiro PPA participativo, até o último ciclo, das escutas sociais de 2015. Enquanto no
primeiro PPA-P o convite à participação foi massivo, a IP mais inclusiva e a condução das
proposições nos fóruns foi de “livre pensar”, em 2011 e 2015 a responsabilidade pela
mobilização foi sendo transferida a agentes multiplicadores da sociedade – GTTs, ADTs,
escritórios regionais, colegiados territoriais, conselhos setoriais de políticas públicas, entre
outros – de forma a caracterizar um chamamento selecionado do público, com uma
institucionalidade com maior grau de formalização. Nesses últimos ciclos a condução das
proposições também foi buscando qualificar o produto das escutas sociais, capacitando o
público para o debate. A figura a seguir demonstra o processo de transição no modo de
seleção de participantes nos fóruns entre os PPA-Ps 2008-2011 e 2016-2019, ilustrando a
diminuição da área do Cubo da Democracia.
187
Figura 09. Representação do Cubo da Democracia de Fung (2006) para o PPA
Participativo da Bahia, na transição entre os ciclos 2008-2011 e 2016-2019
Fonte: Elaboração própria; interpretação do modelo de Fung (2006).
A redução na área do cubo demonstra a diminuição da grandeza da democracia nos fóruns do
PPA-P de um ciclo para outro, derivada de transformações no modo de seleção de
participantes. Os diretores de planejamento da SEPLAN, em contrapartida, garantem que não
houve restrições à participação, mas sim alterações nas estratégias de mobilização que foram
motivadas sobretudo pela necessidade de qualificação das diversas representações de interesse
e dos produtos das escutas sociais, isto é, das propostas geradoras da peça de planejamento. A
questão da representação é um tema sensível para os entrevistados, que são unânimes quanto à
exposição da IP a riscos de seleção de participantes que pouco representem os Territórios de
Identidade. Esse problema, além de diminuir o potencial de democratização dos fóruns, põe à
prova a legitimidade do plano formal construído coletivamente. Diante dessas constatações,
fica claro que, se por um lado as transformações no indicador de seleção de participantes
impactam negativamente a grandeza e a intensidade da democracia, segundo os pressupostos
do modelo de Fung, de outro pondera-se oportunamente que há um descompasso entre a
intencionalidade da equipe do governo nos seus esforços de democratização e o
comportamento da democracia no referido modelo.
188
Conclui-se resumidamente que o framework de Fung é mesmo um caminho promissor para se
refletir e detectar variáveis e possibilidades institucionais para garantia da democracia nas
instituições participativas. Esse modelo corroborou para que a pesquisa trouxesse à tona
potencialidades e limitações da participação social nos fóruns do planejamento participativo
da Bahia, e também potencialidades e limitações do próprio modelo, que reflete justamente a
complexidade envolvida em se atestar, objetivamente, o potencial democratizante das
instituições participativas, já que as possibilidades institucionais para os arranjos de
participação social são muitas e geram efeitos positivos e negativos. Isso se agrava com o
desafio de avaliar esse potencial como forma de transformar, ressignificando, o modelo
tradicional de planejamento. Esta pesquisa afere e argumenta que as estratégias adotadas pelo
núcleo técnico de planejamento da SEPLAN da Bahia buscou um equilíbrio entre a
democratização do planejamento e a qualidade técnica do planejamento, agregando as
benesses tanto da pluralidade de interesses dos territórios quanto da expertise governamental.
3.4.3 Resultados a partir de temáticas transversais
Esta última seção do trabalho tem o objetivo de complementar a análise dos resultados por
meio da exposição de temas relevantes que têm potencial de fazer um enfrentamento às
disfunções, limitações ou problemáticas de enfoque do planejamento. Esses temas não estão
propriamente no horizonte de investigação dos indicadores de Fung (2006), mas despontaram
nas conversas com os entrevistados de forma voluntária, mesmo sem serem provocados por
roteiro semiestruturado de perguntas, o que sugere que há uma sinergia entre os participantes
da pesquisa acerca dessas temáticas específicas. Entre elas, destacaram-se a transversalidade,
o monitoramento e avaliação, a dimensão estratégica e o princípio da publicidade e
accountability. Entende-se que esses temas oxigenam as discussões sobre as limitações do
planejamento público e reforçam os achados da pesquisa acerca do potencial de
ressignificação da função a partir da participação social.
a. Participação e controle social como promotores da efetividade
Ao longo do trabalho foram provocadas reflexões sobre a carga de efetividade que poderia ser
oportunizada pela participação social. O objetivo neste item é apresentar brevemente o
entendimento dos técnicos abordados qualitativamente nas entrevistas e depoimentos no
189
Estado da Bahia acerca dessa temática da promoção da efetividade. Ela foi apresentada
voluntariamente pelos entrevistados a partir de diferentes olhares, entre eles: a alteração do
conceito de entrega para o conceito de iniciativa, com vistas ao desenvolvimento de
atividades contínuas para o alcance dos objetivos finalísticos das políticas públicas, não de
objetivos intermediários; o alto custo no curto prazo que se converte em investimento a longo
prazo, pela garantia de atendimento de demandas realmente importantes para a sociedade; a
imersão do governo em um processo de autoavaliação contínua; e a vantagem da publicização
de um compromisso de governo, considerando o processo de cobrança e responsabilização
que isso positivamente gera.
No primeiro aspecto, o entrevistado 02 lançou luz voluntariamente às transformações de
concepção que vem sendo debatidas no governo e sensibilizadas nas áreas acerca do alcance
da implementação das políticas públicas para a sociedade – se são concebidas enquanto
entrega ou enquanto iniciativa. Ele afirma:
Acabamos com o conceito de entrega do PPA, nós temos o conceito
de iniciativa. ‘Ah! Mas isso não muda praticamente nada’... Isso
muda tudo! Tanto que a negociação das mesas aí foi duríssima por
conta disso, porque [é difícil] convencer uma secretaria de
segurança pública que ao entregar uma delegacia de polícia
pronta o trabalho não acabou aí, ele apenas está começando,
portanto a minha iniciativa é entregar a delegacia de polícia para
reduzir o indicador de violência, esse é meu compromisso.
A alteração do conceito muda a perspectiva dos compromissos das secretarias de entregas
pontuais para iniciativas contínuas, mais focadas nos fins das políticas públicas que nos meios
para alcançá-las, ou em objetivos intermediários. O entrevistado complementa, ainda,
afirmando: O fim é a política pública, não é o equipamento, não é o hospital, não é o plano
de saúde, não é a estrada, não é a delegacia, não é implantar batalhão novo, não é adquirir
veículo.
O mesmo entrevistado (02) discorre sobre o segundo aspecto compreendido como
interveniente às discussões sobre a efetividade do planejamento, sobre o dilema dos custos da
participação, promovendo uma reflexão sobre o viés econômico do planejamento. Ao ser
provocado a falar sobre os custos envolvidos na condução dos fóruns participativos no
processo de escuta social, notadamente maiores do que processos decisórios centralizados, o
entrevistado apresenta um contra-argumento importante:
190
Esse custo maior que eu tenho durante a etapa de escuta social e
de formulação do planejamento participativo, ele é diluído ao
longo dos anos quando tenho políticas mais focadas, eu termino
tendo uma qualidade do gasto e uma racionalidade do gasto
público muito maior, porque eu estou efetivamente dando aquilo
que a sociedade precisa.
Por essa ótica, se existe um custo operacional significativamente maior ao atender a
pluralidade dos territórios e envolver uma multiplicidade de atores na função de
planejamento, ele reverte-se em investimento em políticas mais direcionadas, aumentando a
assertividade das escolhas do governo.
Como exemplo desse direcionamento estratégico das políticas ele cita:
um estado como a Bahia, que tem vinte e sete Territórios de
Identidade, é um estado que cabem vários países da Europa aqui
dentro, as distâncias são muito grandes... Então nós temos que
ouvir desde marisqueiras, à associação e micro empresa, nós
temos que ouvir o prefeito com seu secretariado, nós temos que
ouvir o sindicato rural dos trabalhadores (...).
É natural que um processo amplo e complexo de escuta como esse implique em custos
maiores, e que também requeira uma vontade política orientada para a abertura do governo.
De acordo com o entrevistado, essa orientação foi adotada pela equipe da SEPLAN, em
detrimento dos custos, motivada pela compreensão de que a participação diminui os riscos à
implementação de políticas desnecessárias ou inadequadas, garantindo mais efetividade,
porque é nessa escuta que vão saindo exatamente onde estão os gargalos, os
estrangulamentos que possam a vir a ser ações de políticas públicas.
De forma relacionada, mas sem o viés econômico, a técnica da SEPROMI (Depoimento 02)
também aborda a questão da adequação da política pública para a sociedade:
Se você trabalha para o estado, você trabalha para a sociedade, e
ninguém melhor do que a própria sociedade para saber o que ela
realmente precisa. Então o PPA participativo é uma forma da
gente trazer essas contas pra sociedade, pra gente descobrir, de
fato, se nós estamos cumprindo o nosso papel enquanto secretarias
de governo, se nós estamos adequando nossas políticas às reais
necessidades da população. (...) Muitas vezes o governo pensa uma
coisa, quando na verdade é outra.
Essa preocupação em conciliar os objetivos institucionais com necessidades iminentes da
população, e, mais ainda, em aproximar o governo de interesses mais localizados, pode ser
fomentadora da efetividade das políticas públicas. Além disso, a pauta da adequação às
191
realidades locais acaba por tangenciar outros entendimentos sobre a democracia e o papel do
Estado, como é o caso das teorias que reivindicam a descentralização das políticas públicas.
Isso, no entanto, não será abordado neste trabalho.
A fala da entrevistada se conecta a outra perspectiva da promoção da efetividade a partir dos
fóruns: a autoavaliação do governo. À medida que o Estado busca descobrir se está
cumprindo seu papel e se está implementando políticas públicas em consonância com as reais
necessidades e anseios da população, entende-se que ele imerge em um processo de
autoavaliação que o permite corrigir rumos e adequar ações. A técnica avalia esse processo da
seguinte forma:
a partir do momento que você tem essa escuta, o governo precisa
parar e pensar o papel que tem feito e o que pode ser feito pra
melhorar; como está sendo feito – ‘É da forma correta? Tem tempo
suficiente pra refazer as diretrizes, aprimorar recursos, mexer
mesmo na estrutura do governo?’. Para que esse retorno para a
sociedade seja cada vez maior e melhor. (...) É um momento de
você pensar, é um momento de você fazer adaptações para que isso
beneficie cada vez mais e de uma forma mais efetiva a população,
a sociedade.
Nesse sentido, o PPA feito de forma participativa também se caracteriza como um momento
de reflexão e autocrítica, pois o governo além de ouvir também se expõe, se justifica e
aprende no coletivo.
O último aspecto interessante do ponto de vista da efetividade é a pactuação pública de um
compromisso do governo, que dispara um processo de accountability governamental. O fato
de as secretarias estaduais se comprometerem com determinadas ações, sobretudo aquelas
publicizadas a partir do PPA, mitiga eventuais descontinuidades e indica mais
sustentabilidade na concretização das ações construídas coletivamente. A diretora de
planejamento social (Entrevistado 01) explica o accountability governamental a partir do
compromisso firmado por meio da seguinte sensibilização:
‘Olha, você assinou uma convenção aqui, você é signatário, você
se comprometeu’ Então, o que é isso? Um comprometimento. É
isso que a gente trouxe pra cá, pra metodologia do PPA, é um
compromisso de estado, é um compromisso de governo. Tem
alguns responsáveis por ele, mas é um compromisso com a
sociedade.
192
Essa lógica de comprometimento com a sociedade, como um pacto, amarrado no plano de
trabalho do PPA, pode ser uma peça fundamental para a garantia da implementação, e da
efetividade.
Enquanto discorria sobre sua trajetória na concepção e coordenação de políticas sociais, a
entrevistada também apontou a importância do componente participativo para a garantia da
efetividade dessas políticas. Sua frase foi marcante na pesquisa e é reproduzida aqui como
forma de reflexão final sobre a temática:
A sociedade, a participação social, ela só vai de fato fazer a
transformação, na minha opinião, da sociedade, quando a
sociedade perceber que tem condições de influenciar no processo
de execução da política pública e que a política pública não é do
governo e que o governo não é uma entidade à parte da sociedade.
Tem que ser uma entidade, um órgão, uma instituição que leve em
consideração a participação social não como uma escuta deles,
mas como um componente do processo de elaboração, de
formulação, também de transparência, controle, monitoramento,
avaliação e correção de rumos.
Essa concepção sobre a participação resume muitas das motivações pela sua adoção no
planejamento público que já foram reivindicadas em revisão teórica tanto do planejamento
quanto da democracia. No caso da Bahia, se considerada a fala da diretora, pode-se indicar o
potencial da democracia participativa na ressignificação do planejamento público,
considerando-a mais do que uma simples decisão operacional de abertura à escuta, mas como
uma base estruturante de todas as ações governamentais, que inclusive perpassa
horizontalmente outras funções, como monitoramento e avaliação.
b. Embasamento e o “fio condutor” da dimensão estratégica do PPA
Na revisão teórica do planejamento, foram apresentadas limitações à dimensão estratégica do
planejamento em si e do instrumento do PPA, em basicamente três aspectos: o horizonte
restrito de médio prazo, o engessamento técnico-orçamentário e a falta de centralidade da
peça programática. Nesse último caso, sabe-se, pela revisão teórica, que a peça do PPA é
recorrentemente negligenciada como instrumento de planejamento e ainda disputa espaço
com outros planos sem a devida coesão entre as ações e intenções. No âmbito estratégico da
Bahia, provocaram-se reformulações metodológicas voltadas à coordenação de ações do PPA-
P com planos de longo prazo e com planos setoriais de políticas públicas, além de novas
193
estruturas de desenho de planejamento que visam articular três pontas, a saber, as diretrizes
estratégicas, a matriz programática e o monitoramento de indicadores. Este item objetiva
extrair dos documentos publicados sobre o PPA-P baiano o embasamento da dimensão
estratégica, assim como extrair dos técnicos entrevistados a motivação para a manutenção
dessa dimensão e para a orientação para o monitoramento e avaliação contínua do
planejamento público estadual.
No “Documento de orientações do PPA 2016-2019” foram fixados e publicizados os
conceitos adotados e pactuados no governo para cumprir com a dimensão estratégica do
plano, projetando-o como um documento técnico e político e como o principal instrumento da
gestão estratégica do estado (BAHIA, 2015c). “Dessa forma, afasta-se de uma peça técnica e
orçamentária, ou mesmo de um documento burocrático para cumprir um requisito legal de
imposição dos órgãos de controle”. Conceitualmente, a consolidação de uma base estratégica
orienta-se por “diretrizes estabelecidas no plano de governo, seguida do levantamento e
organização de informações para análise da situação atual do Estado em seus aspectos
econômico, social, ambiental e demográfico” (BAHIA, 2015c, p. 3-4). Assim, a organização
do PPA da Bahia começa antes mesmo do seu desenho propriamente, nos momentos
participativos, prospectivos ou avaliativos realizados ao longo do tempo – respectivamente,
esses momentos geram o Programa de Governo Participativo (PGP), o documento ”Cenários
Prospectivos” e os Relatórios de Monitoramento e Avaliação do PPA ainda em vigência.
A combinação desses três instrumentos subsidia o governo estadual na consolidação de uma
diretriz estratégica, com definições e objetivos para as diversas áreas e que embasam os
componentes da chamada matriz programática. Essa matriz teve sua organização alterada no
último ciclo. No PPA-P 2012-2015, os programas tinham origem em apenas uma área
temática, montados como reflexo de uma setorial específica, o que acabava por desenrolar no
processo ações isoladas de cada área. Já em 2015, as orientações metodológicas voltaram-se
para a organização transversal de programas, a partir de temas estratégicos que dão vazão à
estratégia do governo como um todo, não de uma única setorial. De acordo com o documento,
“dessa forma, deixamos de lado a Área Temática, para vincular os Programas de Governo aos
temas quais suas ações terão impacto. Tal mudança busca ainda revelar o caráter transversal
dos Programas” (BAHIA, 2015c, p. 3-4).
Além dessas, outras mudanças metodológicas significativas foram realizadas na elaboração do
PPA-P 2016-2019 da Bahia que dizem respeito à visão estratégica. Entre elas, destacam-se
194
duas: o aprofundamento do uso do modelo do Governo Federal como referência norteadora e
a mudança na coordenação do planejamento formal da Superintendência de Planejamento
Orçamentário (SPO/SEPLAN) para a Superintendência de Planejamento Estratégico
(SPE/SEPLAN). Sobre o primeiro aspecto, a diretora de planejamento social (Entrevistado
01) afirma que a metodologia do Governo Federal impôs desafios ao fortalecimento da
dimensão estratégica do plano, no sentido de que o PPA não se torne apenas um plano de
execução de políticas em determinados períodos, mas que ele tenha uma dimensão que
perpasse esses quatro anos, que vá além de você fechar um ciclo e começar outro. Dessa
forma, o modelo de PPA federal não só pauta a dimensão operacional do plano baiano, mas
agrega em conceitos e reflexões sobre o uso contínuo da peça programática e a
sustentabilidade dos programas.
No segundo aspecto, o entrevistado 04 discorre sobre a construção da metodologia e as
transformações causadas pela troca da unidade coordenadora e, por consequência, da troca da
centralidade do plano de uma perspectiva orçamentária para a estratégica. Segundo ele, esse
processo não ocorreu sem resistências internas: O processo dentro da Seplan foi muito
grande. (...) Foram muitas negociações, porque o impacto que as mudanças causam, causam
impactos em diversas áreas. Foi um processo de convencimento interno mesmo, das
mudanças que eram necessárias, porque antes era a SPO que coordenava o processo. E esse
convencimento não foi realizado somente em face da mudança operacional, mas no âmbito
conceitual sobre a importância da dimensão estratégica, e da importância da integração com
as demais fases das políticas públicas para além da elaboração e execução do orçamento;
processo esse gerou uma aprendizagem relevante para a comunidade governamental
envolvida.
Existe uma aposta dos técnicos e gestores da SEPLAN para a coordenação estratégica de
produtos oriundos de momentos participativos, prospectivos e avaliativos, que se concentra
nos sistemas de monitoramento e avaliação (M&A) do planejamento público. A
superintendência que centralizou a criação do sistema de M&A em 2012, a Superintendência
de Monitoramento e Avaliação (SMA/SEPLAN), busca rotineiramente subsidiar o processo
decisório e retroalimentar o planejamento e as leis orçamentárias que cuidam de executar o
PPA. A diretora de monitoramento da SMA (Depoimento 03) descreve que
o sistema é utilizado para abrigar e consolidar informações; ele é
alimentado com informações, roda através de reuniões, [produz]
relatórios com a produção de informações para subsidiar a
195
decisão – decisão desde o ponto técnico até o governador. (...)
Então a gente entrega informações pra todos os processos.
Ela lança em seu depoimento (03) o termo “fio condutor”, que consiste, primeiro, nas ações
de M&A como mecanismos integradores da gestão das políticas públicas, da formação da
agenda política, passando pela formulação, implementação, monitoramento, até a avaliação
das políticas públicas. Segundo, como um mecanismo que conecta diversos planos,
percorrendo verticalmente, de cima pra baixo, planos de longo prazo, planos de governo,
planos plurianuais, planos orçamentários e o desenrolar deles nas ações e entregas diárias. O
que existia antes da construção do fio condutor era um grande descompasso entre
planejamento de longo prazo e plano de governo. A gestora adverte que:
Eu não posso ter um planejamento de longo prazo e um plano que
o governador foi eleito, viro as costas pra isso e construo o PPA,
viro as costas para o PPA e para o plano estratégico que o
governador foi eleito e toco a gestão orçamentária, e cada gestor
dentro das secretarias fazendo o que dá na cabeça. Esse é o nosso
desafio! Tudo isso precisa estar intimamente vinculado.
E complementa ainda com frase emblemática para a dimensão estratégica: a implantação da
gestão estratégica, na nossa opinião, ela só é possível se você roda um processo de
monitoramento. Nesse sentido, coloca centralidade no processo de monitoramento e avaliação
como essencial para garantir a dimensão estratégica do planejamento.
Ainda para fins de monitoramento e avaliação, é orientada a construção de indicadores
estratégicos, que “permitem identificar e aferir aspectos relacionados ao tema estratégico e
devem ter um nível maior de agregação do que o indicador de programa” (BAHIA, 2015c, p.
3-4). O indicador de programa, como aponta o assessor de planejamento da SPE, é aquele que
responde diretamente aos compromissos e que, portanto, medem qualitativamente as ações
que são pactuadas em planejamento. A meta também é considerada um indicador, mas um
indicador operacional e quantitativo, que mede a eficiência das ações. Por sua vez, o indicador
estratégico é novidade no sistema de M&A do PPA-P da Bahia no último ciclo:
A gente criou temas, mas esses temas precisavam ser também
avaliados e monitorados... não monitorados via orçamento nem
nada, mas ter um painel de indicadores e dizer ‘olha, sobre a
geração cidadania e direitos humanos...’. A gente já vai com
números dos indicadores e quer ver como a sociedade está se
movendo. Então são indicadores mais estratégicos, que tem base
em fontes com séries mais espaçadas.
196
Essa preocupação com a avaliação encerraria o ciclo “fio condutor” do M&A, com
indicadores comprometidos com um olhar de médio e longo prazos para o planejamento
governamental e com a mensuração da dimensão estratégica.
Mesmo com todas as transformações metodológicas documentadas, relatadas e observadas na
visita acerca da dimensão estratégica, é possível elencar limitações na construção da base
estratégica. O secretário ativo do CEDETER, que também coordena ações de planejamento
territorial no governo (Entrevistado 03), está mais próximo da realidade do planejamento nas
escutas sociais descentralizadas. Sua fala sugere que a distância entre a estratégia
governamental geral consolidada pelo núcleo técnico e as realidades locais impede que as
partes se conectem e gera uma discrepância em termos de estratégia. Entre outros
apontamentos nesse sentido, ele diz:
Quando a gente vai para o debate no território, a gente não leva,
por exemplo, um diagnóstico sócio-produtivo do território. Então a
gente começa o debate com a população como se estivesse vivendo
no mundo dos sonhos. Além disso, a gente não para pra fazer um
debate prévio, dizendo ‘gente, olha, o cenário macroeconômico é
restritivo, então não vamos aqui ficar levantando demandas
absurdas, porque nós sabemos de antemão que essas demandas
são inviáveis’.
O que se pode supor a partir dos relatos do entrevistado é que a dimensão estratégica do PPA
ainda é limitada no território. A definição da estratégia pode ser robusta na integração da
gestão das políticas públicas ou na conexão entre planos, do ponto de vista interno ao
governo, mas parece que as escutas sociais nos fóruns regionalizados ainda escapam ao “fio
condutor” da estratégia.
c. Importância da transversalidade na elaboração e implementação de políticas
públicas
O aspecto da transversalidade responde a muitos aspectos críticos do planejamento e foi
destaque na fala dos entrevistados. Entende-se que, como esses atores fazem parte do corpo
diretivo da SEPLAN e são no geral os protagonistas da proposta metodológica do PPA-P, é
importante mostrar os entendimentos que têm sobre a temática da transversalidade na
elaboração e implementação de políticas públicas desempenhadas pelo Estado. A Bahia
evoluiu de uma proposta de insulamento entre as diversas áreas – essa proposta é a mais
recorrente entre os modelos de planejamento, tanto tradicionais quanto participativos –, em
197
que os programas são construídos a partir de uma diretriz setorial específica e executados pela
secretaria proponente. Essa proposta foi alterada no último ciclo orientada por uma
metodologia de construção transversal dos programas, que visa respeitar a diretriz estratégica
governamental geral e envolver as diversas áreas em torno de temas que dizem respeito a
políticas multidimensionais, e que, portanto, forçam a cogestão na efetivação dessas políticas.
A lógica até então predominante, de acordo com o relato da diretora de planejamento social
(Entrevistado 01), era de que em
espaços físicos coletivos e compartilhados de negociação de quem
está executando a política pública, uma secretaria A, B ou C não
se vê como parte ou parceira de uma outra, e, naquele município,
naquele bairro, tem ações ali fundamentais que cada uma faz
separadamente. E completa: a gente já tem condição de dizer que
não teve sucesso fechado cada um na sua segmentação.
Sob essa perspectiva de atuação isolada das áreas, é provável que se tenha desperdício de
recursos com ações duplicadas ou regiões totalmente descobertas, além de que diminui-se
consideravelmente o potencial de efetividade das políticas públicas desenhadas e
implementadas, considerando que a transversalidade é um ingrediente para a promoção de
políticas cujas motivações sejam mais complexas.
Se a transversalidade era um elemento inexistente no planejamento, por outra via, o
entrevistado 04 argumenta que sempre existiu na história recente uma lógica de
transversalidade que é organizada na execução orçamentária. Quando despontado o assunto
dos incrementos metodológicos concebidos para garantir a transversalidade, o assessor afirma
que há uma
percepção de que dentro do processo isso já acontecia, mas
acontecia em uma base muito frágil do ponto de vista de
planejamento, que é no orçamento. O orçamento parece ser uma
coisa muito bem planejada, mas ele é muito refém dos momentos
daquele ano, sabe? Restrição de recursos, (...) situações políticas,
tudo muda o orçamento.
Nesse sentido, o orçamento tem uma lógica particular de organizar ações orçamentárias de
setoriais diferentes e compromissos de setoriais diferentes em uma perspectiva transversal, o
que motivou os técnicos a replicarem isso no planejamento: a transversalidade está dada no
orçamento, então a gente tem que suprir ela e transversalizar no planejamento.
198
Os passos da transição foram iniciados no ciclo do PPA-P da Bahia 2012-2015, mas as
resistências das setoriais impediram um avanço significativo na manifestação da
transversalidade na prática. Segundo o entrevistado 02, nós tivemos programas que foram
totalmente esvaziados, no papel está lá bonita a transversalidade, mas no PPA passado essa
transversalidade não ocorreu porque não se conseguiu colocar essa pactuação. Entende-se
que a pactuação, para além do horizonte normativo que determina a transversalidade no
planejamento, requer uma mudança de cultura dos técnicos operadores das políticas e também
uma disposição dos secretários e demais dirigentes pela interação orgânica com outras
secretarias. Nota-se que todo secretário queria o programa para chamar de ‘meu’
(Entrevistado 02).
No caso dos operadores das políticas, as resistências decorrem de diversos fatores, entre eles
destacam-se o acúmulo de tempo de serviços e o aprofundamento da experiência na
especialidade da área: tem funcionários de carreira de 20 anos, então é muito difícil dizer pra
ele ‘agora sua secretaria vai trabalhar com dez secretarias’, com três secretarias ou com
uma secretaria que seja. Então há uma resistência, ‘não, isso aqui é minha área, meu
trabalho’ (Entrevistado 01). O convencimento, nesse caso, passa pela confiança da expertise
de cada um, de que seu olhar será respeitado em detrimento do trabalho construído no
coletivo. Segundo a diretora de planejamento social, na intencionalidade do governo, o
rompimento das resistências não passa pelo rompimento da especialidade, mas na forma de
coordenar e cogestar: a gente está no momento bem privilegiado para a gente tentar romper
essas resistências, cada um fazer sua especialidade não ser destruída, cada um vai ter ao seu
lado a sua especialidade, o seu negócio (Entrevistado 01).
Já em relação aos secretários e demais dirigentes, a resistência à transversalidade pode ser
discutida como um desdobramento de aspectos políticos de divisão de poder. O entrevistado
03 afirma que:
muitas das vezes a transversalidade significa a fragmentação do
poder e compartilhamento de poder que nem sempre isso vai ao
encontro dos pactos que foram feitos, ou construção de maiorias
na assembleia e por aí vai. Como a gente vive sempre num governo
de coalizão, modelo muito particular, (...) a coalizão se repete
também dentro dos estados.
Assim, a abertura das especialidades à lógica da transversalidade implicaria naturalmente em
compartilhamento de poder; lógica essa que as secretarias não estão preparadas para lidar,
tampouco desejam.
199
No último ciclo de elaboração do PPA-P, em 2015, foram lançadas novas orientações
metodológicas para a construção de programas no planejamento formal, com destaque para o
diálogo e a construção coletiva de compromissos pelas diversas secretarias nas rodadas
internas, nas mesas temáticas. O entrevistado 02 cita um exemplo da transversalidade:
‘apoiar os jovens negros que convivem em bairros com risco’: essa
aqui é da Secretaria de Segurança Pública, da Secretaria de
Desenvolvimento, de Direitos Humanos e da Secretaria da
Promoção da Igualdade Social... É um compromisso
compartilhado perfeito. As secretarias vão ter que entrar no
sistema, avaliar o compromisso e tomar um posicionamento.
Diferentemente de como era realizado no PPA passado, cuja imposição era meramente
formal, no novo PPA a sistemática construída para o planejamento condiciona ações
transversais também no decorrer da execução das políticas, dado que existe um processo de
transparência e responsabilização de quais são as secretarias que coordenam ou apoiam
determinado compromisso. Essa sistemática de coordenação por si não necessariamente
assegura que a execução respeitará o que foi planejado, mas impõe alguns ritos de
responsabilização.
Os gestores conseguem enxergar resistências remanescentes à nova lógica, mas também
defendem que a sistemática carrega de fato uma perspectiva transversal inovadora. A
entrevistada 01 vislumbra a ocorrência de uma reflexão promissora dos agentes planejadores
setoriais: ‘A gente tá tratando transversalmente com outra secretaria... Qual é a nossa
responsabilidade e que parte nós temos do sucesso ou do fracasso de determinada ação?’. A
entrevistada acredita que a lógica da transversalidade tira um pouco o foco da
responsabilização de pessoas e unidades e trazer [o foco] para a questão de governo de
estado. Dessa forma, compreende-se que diluir o poder entre as unidades governamentais
também significa diminuir a centralidade ou o protagonismo de pessoas e transferi-lo para o
governo como um corpo único. A lógica da transversalidade na amarração dos programas é
uma determinação metodológica que o governo baiano propôs que tem potencial de
reformular aspectos políticos de divisão de poder no planejamento público e em outras
funções. Além de que pode atuar com mais sucesso na resolução de problemas complexos.
As resistências são dadas, mas a gestora, assim como os demais diretores, entende que é
possível ir transformando a cultura aos poucos por meio de convencimentos e
aprimoramentos metodológicos. A exemplo da implementação da transversalidade, este
trabalho vem apontando diversas transformações metodológicas que colaboraram para saltos
200
significativos de qualidade no planejamento público, o que acaba por reforçar aos poucos os
entendimentos acerca da importância do arranjo institucional para as funções da
administração pública, tal como reivindicado por Fung e Wright (2003).
d. Publicidade: caráter público dos debates e decisões
A publicidade não só foi um ponto de destaque na análise do caso da Bahia, como é também
um princípio da efetividade deliberativa, segundo a revisão teórica de Eleonora Cunha e
Débora Almeida (2011). Esse princípio se fundamenta na premissa de que devem ser
oferecidas pública e coletivamente ao público das instituições e fóruns participativos
informações sobre as razões, roteiros de elaboração e resultados do processo participativo, e
ainda de que os debates e decisões devem ter um caráter público. Questões como
accountability, transparência e controle social permeiam o princípio da publicidade no debate
dos espaços participativos e deliberativos, e isso não é diferente em processos de elaboração
do PPA que se intitulam participativos, como é o caso do PPA-P baiano.
A Bahia apostou no sistema de monitoramento e avaliação (M&A) do PPA, a partir do PPA-P
2012-2015, como forma de garantia do princípio da publicidade, uma vez que cumpre com a
exposição sistemática das práticas e resultados da participação social, tornando-se um
mecanismo interno de controle, mas com potencial de dar um caráter público aos debates e
decisões, sobretudo no nível das propostas de conteúdo. Como afirma o entrevistado 03, o
apoio do governador foi importante para a implementação de mecanismos para prestar a
devida devolutiva à sociedade: Existe uma pressão maior do novo governador, que a gente
tenha um sistema de monitoramento, primeiro para informar a sociedade, e segundo pra
servir como instrumento de aperfeiçoamento da execução, da implantação. O sistema de
M&A, como exposto em item anterior, garante o trajeto do “fio condutor”, essencial para a
gestão e para a efetividade, e ainda produz informações para serem divulgadas para a
sociedade.
Sobre a experiência do último ciclo, o relatório do IPEA expõe percepções de entrevistados
que criticaram firmemente a publicidade e transparência do ciclo 2012-2015 do processo de
planejamento plurianual. Segundo eles, não houve transparência na avaliação dos programas
contidos no PPA anterior, tampouco foram divulgadas as propostas do PPA 2012-2015. A
maior crítica nesse aspecto se deu à falta de devolutiva para a sociedade sobre as propostas
201
que foram ou não incorporadas no texto final, e os porquês (BAHIA, 2013). O entrevistado 03
também conta que
na hora de dar resposta, [o processo] se perdeu também porque
como eles não tinham, não sabiam, não tinham clareza do que foi
aproveitado do PPA, o que é que foi feito e o que é que não foi
feito – e também eu acho que a gente deu um passo maior do que a
perna –, é não ter tido uma equipe estável pra principalmente
explicar o que não foi feito, o que não entrou no PPA e porque não
entrou.
O entrevistado 02, na mesma linha, comenta sobre como essa falta de organização para a
devolutiva causou instabilidade na relação com a sociedade: Como nós não conseguimos
furar o bloqueio cultural da secretaria, de entender, absolver e fazer essa devolutiva, alguns
grupos sociais organizados ficaram efetivamente incomodados, o que é perfeitamente
natural. Essa autoavaliação crítica foi repetida pelos outros gestores, o que sugere que o ciclo
anterior tenha gerado um processo de aprendizagem, tanto que houve nova proposta
metodológica em 2015.
As devolutivas requerem compromisso rigoroso e sistemático com a transparência e ainda um
compromisso com a tempestividade da devolutiva, de modo a permitir que os participantes
sejam envolvidos ao longo do processo de elaboração do PPA. Como aspecto interveniente a
esse compromisso da devolutiva, o entrevistado 03 discorre sobre o timing da transparência:
o lance pra gente voltar pra sociedade... eu acho que, se a gente
quer ter um sistema de transparência pra valer, a gente tem que
voltar isso para a sociedade antes que o PPA tramite na
Assembleia Legislativa. Porque, em tese, se algum segmento social
se sentir preterido, ele tem que ter essa informação prévia, pra ter
a possibilidade de fazer uma intervenção via Assembleia
Legislativa.
No caso do PPA-P 2012-2015, não foi obedecida a tempestividade nem dada qualquer
devolutiva.
Cientes, portanto, dessas limitações, os gestores buscaram incrementar o sistema de
elaboração do PPA-P de forma a agregar e consolidar informações ao longo do processo. Foi
adotado recentemente pelo governo baiano o Sistema Integrado de Planejamento,
Contabilidade e Finanças do Estado da Bahia (FIPLAN/BA), que “permite que em uma única
ferramenta sejam sistematizados os processos de elaboração dos instrumentos de
planejamento, de monitoramento e avaliação da execução orçamentária, assim como as ações
202
de gestão orçamentária, financeira, contábil e patrimonial no âmbito da Administração
Pública Estadual” (Sítio do FIPLAN/BA, acesso em fevereiro de 2016). O entrevistado 04
descreve as vantagens do FIPLAN em algumas dimensões principais, a saber, o apoio à
metodologia, a consistência da informação, a organização e gestão do plano e o accountability
governamental. No anterior, a gente teve uma dificuldade na consistência da informação, de
formular as coisas bem estruturadas, e acabou gerando documentos que nem sempre eram
homogêneos no sentido de sua escrita e formulação. Com esse agora, dentro da SEPLAN, já
todo material de escuta vai estar carregado no sistema, enquanto as secretarias vão
formulando metas e iniciativas para também serem inseridas no sistema.
No âmbito da devolutiva para a sociedade, o FIPLAN se mostra um bom aliado do princípio
da publicidade e do accountability governamental:
Ao final do PPA, você imediatamente – na verdade até durante ele,
mas mais ao final dele – vai poder puxar um relatório onde cada
compromisso respondeu a que proposta do estado, a que proposta
da escuta. Então os retornos que a gente vai dar à sociedade, e que
a sociedade vai ter acesso, são fantásticos (Entrevistado 04).
De acordo com o entrevistado, o sistema garante uma capacidade gerencial significativa aos
dirigentes ao instituir o vínculo desde as escutas sociais até a programação e execução
orçamentária, permitindo a extração de relatórios com esses vínculos: Então você tem um
encadeamento de relações, que vai da ação orçamentária na LOA, entra no PPA, via
iniciativa, a ação se vincula à iniciativa como você vê no documento e essas iniciativas
respondem à escuta, a propostas da escuta. Vale lembrar que essa temática da vinculação
entre as etapas da ação governamental é interveniente aos achados da dimensão estratégica e
que, portanto, o FIPLAN também tem potencial de agregar ao “fio condutor” da estratégia.
Para encerrar esse item, vale-se de um depoimento sensível e bastante relevante apresentado
pela diretora de monitoramento da SMA/SEPLAN (Depoimento 03), sobre accountability,
transparência e responsabilização. Segundo ela, é preciso que o servidor público, de uma
forma geral, seja muito responsável com dados: O estado precisa passar para a sociedade,
pra dizer ‘fiz, não fiz, porque não fiz, fiz gastando isso, porque gastei isso’ (...) Então isso
tudo precisa ser comunicado, precisa comunicar isso a sociedade, pra quem está fora
administração pública. Isso tudo é responsabilização! A diretora defende que o princípio do
accountability governamental, ligado às práticas de transparência, oferece seriedade na
203
execução das políticas públicas e permite um acompanhamento das ações promovidas pelo
poder público pela sociedade. E acrescenta:
A gente precisa qualificar nossa atuação como servidor público, a
gente precisa trazer responsabilidade e seriedade na execução da
política pública, porque só pega na hora que há um roubo, um
desvio, alguma coisa assim, não é? Os nossos delitos estão nas
simples omissões e irresponsabilidades, entendeu? É ser
irresponsável com dados.
Os depoimentos sugerem que o caráter público dos debates e das decisões, se ainda não está
pleno no âmbito do planejamento baiano, ao menos nota-se que está em desenvolvimento ou
amadurecimento, conceitual e operacional (dentro do sistema), como um tema que incita
bastante preocupação entre os gestores entrevistados.
205
Conclusão
O planejamento público no Brasil foi tradicionalmente realizado em discordância com
preceitos democráticos de inclusão política e participação cidadã. De modo geral, as
motivações e os ciclos marcantes da sua trajetória foram economicamente orientados e
esvaziados do ponto de vista de sentido e significado político. Isso impõe sérios limites ao
planejamento quanto à diversidade de visões da sociedade incorporadas no processo decisório
e a possibilidade de discussão aberta de temas de interesse público, o que também resulta em
restrições às escolhas legítimas no ordenamento governamental. Os problemas associados à
trajetória do planejamento remetem a aspectos estruturais que a função carrega ao longo de
sua história como legados prejudiciais do modus operandi tradicional da administração
pública brasileira, incorrendo em uma função de planejar submetida às características
duradouras do patrimonialismo, burocratismo e, de forma mais acentuada a partir da Ditadura
Militar, sob o modelo autoritário-tecnocrático.
Adicionados aspectos contextuais do momento da Constituinte, ficou evidente o intento à
refundação do planejamento em bases mais democráticas e formais, apoiada principalmente
na construção e institucionalização do instrumento do Plano Plurianual (PPA), sendo também
uma aposta de transformação afirmativa do planejamento frente ao seu desmantelamento na
década de 80. A formalização do planejamento pelo PPA teve um papel importante nessa
afirmação da função, contribuindo para passar o planejamento de um rito aleatório e
discricionário para um processo sistemático de debate e entrega da programação
governamental que requer uma contínua aprendizagem metodológica e institucional. Sendo
assim, tal transformação aconteceu de fato em muitas dimensões, devolvendo timidamente o
reconhecimento que a função teve na “Era de Ouro do Planejamento” e tornando a figura do
PPA uma peça cada vez mais central no ordenamento da ação dos governos.
No entanto, as primeiras operacionalizações do PPA ocorreram na década de 90, período em
que foi marcante uma série de descontinuidades do intento constituinte na administração
pública brasileira, muito justificadas pelas crises de financiamento nacionais e pelas
investidas em soluções gerencialistas e neoliberais. Assim, mesmo tendo adquirido um caráter
formal, foi mais difícil afirmá-lo diante de um cenário cujas prerrogativas centrais da
administração pública eram atribuídas à gestão e aos planos econômicos. Além disso, o
206
planejamento não precisa ser afirmado apenas do ponto de vista de ganhos de notoriedade
entre as funções da administração pública e de prerrogativas formais.
Neste trabalho, argumentou-se que o planejamento também precisa ser ressignificado, pois o
modelo tradicional apresenta disfunções constitutivas, limitações e problemáticas de enfoque,
e porque requer ganhos de significado que somente seriam conquistados se apoiados em
novas gramáticas de relacionamento entre Estado e sociedade. O trabalho informou, em
especial, a ponderação normativa acerca do sentido do desenvolvimento, que o planejamento
pode ou deveria estar direcionado a um modelo de desenvolvimento multidimensional,
preenchido de legitimidade e conteúdo e pautado pela abertura dos processos decisórios a uma
nova soberania democrática. Essa argumentação deu os primeiros contornos do potencial da
participação social como um novo paradigma agregador de (re)significados à função.
Muitos dos ingredientes da ressignificação do planejamento público foram identificados na
construção teórica da democracia. Essa construção indicou que as linhas deliberativa e
participativa da democracia são fruto de movimentos abrangentes de ruptura com modelos
dominantes de desenvolvimento – e, consequentemente, das administrações públicas mundo
afora – e que o caminho da chamada “radicalização democrática”, desse debate, provocou um
importante equilíbrio quanto à partilha de poder entre Estado e sociedade, de modo a
“perenizar” a burocracia estatal de interesses e anseios representativos dos grupos sociais e
territórios. A revisão teórica também indicou uma via de operacionalização das democracias
deliberativa e participativa, como um princípio que pode sair da prescrição e ser organizado
institucionalmente dentro de instituições participativas (IPs), cujos arranjos e desenhos
estruturantes são fundamentais para garantir materialidade à democracia e efetividade ao
planejamento em termos de processo de construção.
Todo esse percurso do estudo, apoiado em revisão bibliográfica e documental, levou às
seguintes constatações: a transformação de sentido do planejamento público não só é possível
como desejável; a ressignificação pode ser apoiada no processo de democratização da
administração pública e com a adoção da participação social; e que existe um cenário de
transição dos aspectos críticos da função para soluções via democratização e participação
social, realidade observável tanto em nível federal quanto em contextos subnacionais. Essa
transição pôde ser verificada de forma mais acentuada no Brasil no contexto pós-2000, em
que o planejamento passou a incorporar novos atores da sociedade, estimular reflexões de
207
conteúdo e lançar projetos de desenvolvimento que não levam em consideração tão somente
recursos econômicos.
Coube ao trabalho então confirmar (ou refutar) esses pressupostos teóricos. Para isso, foi
realizado o estudo de caso do Plano Plurianual Participativo da Bahia (PPA-P/BA), que
percorreu o histórico de participação no estado e a construção do arranjo institucional
participativo do PPA-P/BA e, como essência, apresentou os resultados de uma modelagem de
análise capaz de demonstrar a grandeza –, ou seja, o “tamanho” da democracia nos gráficos
do modelo – e a intensidade da democracia no planejamento formal baiano. Os resultados
foram sustentados pela revisão documental dos relatos da experiência baiana e pela pesquisa
qualitativa, por meio de entrevistas e coleta de depoimentos, com os principais dirigentes da
Secretaria de Planejamento (SEPLAN/BA) e alguns técnicos e gestores da comunidade
governamental, de outras secretarias.
O Estado da Bahia apresentou um histórico de mobilização particular, tardio e com um
movimento do interior para a capital, o que indica que a construção das instituições
participativas e o nível de maturidade que o estado conquistou na história recente ganharam
densidade mais em razão das novas orientações políticas da gestão do ex-governador Jacques
Wagner (2007-2014) do que pela pressão pós-constituinte e pela retomada da democracia no
Brasil. No âmbito da construção do arranjo institucional participativo, os documentos e
relatos da pesquisa informam que o estado é uma referência em participação social no
planejamento público por atender a alguns parâmetros de modelagem e diversificação de
fóruns participativos, sendo desenhado e consolidado dentro de uma estrutura sofisticada de
participação social e com potencial de atender aos princípios de democracia deliberativa e
participativa no planejamento.
Destacam-se nos parâmetros de construção dos arranjos, primeiro, a regionalização da
participação – divisão dos “territórios de identidade” e promoção de escutas descentralizadas
–, que representa ganhos de inclusão política da pluralidade de interesses dos territórios.
Segundo, o grau significativo de diversificação de canais de participação, criados com
exclusividade para atender à função de planejamento formal, que transcende e muito o escopo
limitado das audiências públicas no âmbito do Legislativo. Isso se relaciona ao terceiro
destaque, que é o protagonismo do Executivo na abertura do planejamento público, em que a
democratização do processo é fomentada a partir da vontade política dos governantes e
secretários e marcada por uma valorização da democracia no ordenamento das ações
208
programáticas do governo. Por fim, destaca-se o avanço metodológico e operacional na
elaboração dos últimos ciclos do PPA a partir da organização de duas frentes de trabalho – da
participação da própria comunidade governamental, nas mesas temáticas, e da sociedade, nas
escutas sociais –, construindo assim uma lógica de planejamento própria, que concilia
diretrizes estratégicas internas e demandas objetivas e subjetivas da sociedade.
Do ponto de vista da grandeza e da intensidade da democracia nas instituições participativas
do PPA-P/BA, o framework tridimensional adotado neste estudo, a partir do enquadramento
de Fung (2006), posicionou essas IPs em variações de possibilidades institucionais
relacionadas ao (1) modo de seleção de participantes, (2) modo de comunicação e decisão nos
fóruns e (3) extensão da autoridade e poder de agenda de lideranças e atores sociais.
Constatou-se que, com a institucionalização do PPA Participativo em 2007, o Estado da Bahia
expandiu significativamente a participação social na elaboração do plano em relação às
variáveis institucionais do modelo de Fung, ampliando a democracia no planejamento em
todos os indicadores de grandeza e intensidade da democracia e, por consequência,
conquistando patamares sem precedentes de ressignificado.
O planejamento formal baiano se constituiu como amplamente democrático no âmbito da
seleção de participantes (1), sobretudo no primeiro ciclo de elaboração do PPA-P em 2007,
contrariando o arranjo de ordenamento tradicional restrito às pessoas estratégicas, técnicas e
politicamente selecionadas internamente no governo. Mas também caminhou desse modelo
irrestrito de chamamento à esfera pública difusa – “a festa da democracia”, como afirmou um
dos entrevistados – para um chamamento aos subgrupos da sociedade, como os colegiados
territoriais, conselhos e outros coletivos que vêm agindo nos últimos ciclos como
mobilizadores da sociedade e multiplicadores de diretrizes da elaboração do plano. Essas
transformações foram motivadas, justificam os entrevistados, por dilemas de representação e
por preocupações acerca do produto extraído das escutas sociais, e podem até ter reduzido o
grau de inclusividade das IPs, de acordo com o modelo, mas buscaram arquitetar um arranjo
de participação capaz de equilibrar aspectos de mobilização, formativos e decisórios.
O PPA-P da Bahia exibe a convergência em um nível intermediário de democracia em relação
ao (2) modo de comunicação e decisão e à (3) extensão de autoridade e poder de agenda. No
primeiro caso, a investigação sobre o nível de conhecimento, engajamento e
comprometimento que os participantes empreendem nos fóruns posiciona o PPA-P/BA entre
a dimensão comunicativa e decisional, no centro do espectro. Nesses fóruns, as lideranças da
209
sociedade atenuam seu poder decisório deliberativo, que é marcante em suas IPs de origem,
como nos seus respectivos conselhos de políticas públicas, e colaboram com o diálogo para a
construção coletiva. Enquanto, de outro lado, os participantes leigos são instrumentalizados,
por meio de estratégias informativas e formativas, a desenvolver preferências e evoluir da
dimensão comunicativa para a decisional. Ambas as movimentações são fomentadas pela
arquitetura institucional desenhada pelo governo na elaboração do PPA-P, aprimorando
habilidades comunicativas e potencializando talentos regionais.
Da mesma forma, no segundo caso, a investigação sobre o nível de autoridade empregado
pela participação social e as expectativas de influência dos atores sociais no processo de
formação de agenda posiciona o PPA-P/BA no centro do espectro. É caracterizado um
movimento de partilha de poder que dilui a autoridade direta exercida por gestores eleitos e
técnicos do governo na elaboração do plano, ao passo que fomenta a autoridade social das
organizações da sociedade civil (OSC) e outras representações. O desenvolvimento da
autoridade social é muito dependente da trajetória de mobilização e articulação dos
movimentos, nível de acesso prévio à informação, nível de capilaridade de atuação do
território, entre outros, mas também pode ser estimulada pelo tipo de arranjo desenhado para
abrigar as demandas dos múltiplos territórios e atores. O PPA-P/BA demonstrou um arranjo
disposto à extensão de autoridade aos conselhos e às OSCs, caracterizando a IP nas variáveis
institucionais de conselho, consulta e influência comunicativa.
Agregados esses resultados, demonstrou-se a grandeza e a intensidade da democracia do PPA-
P/BA no gráfico do chamado “Cubo da Democracia”, indicando um posicionamento
moderado nas possibilidades institucionais para a viabilização da deliberação-participação. É
evidente o ganho de democracia no planejamento plurianual em relação ao planejamento
tradicional nos últimos ciclos de ordenamento formal, mas os arranjos adotados, segundo o
modelo de Fung, não atendem plenamente aos requisitos democráticos de inclusão política.
Este trabalho vem reivindicar nesta conclusão a ponderação do modelo, valendo-se das
percepções dos participantes da pesquisa sobre os dilemas que envolvem a representação, a
profundidade da democracia e a qualidade do produto das escutas sociais. Não é simples
acomodar esses elementos pouco convergentes dentro de um projeto político deliberativo-
participativo, e dentro de um projeto que promova a ressignificação do planejamento
governamental. As áreas dos gráficos do Cubo da Democracia para cada um dos três últimos
ciclos do PPA-P/BA demonstraram de fato oscilações em estratégias ora para a expansão da
210
democracia ora para a manutenção das prerrogativas governamentais, mas em todos eles
houve um rompimento com a democracia convencional, representativa, sem substituí-la,
agregando muitos dos princípios da democracia deliberativa e participativa ao planejamento
formal.
Os relatos dos dirigentes e participantes das mesas temáticas não convergem para uma
intencionalidade de restrição à democracia nos fóruns quando do estreitamento do
chamamento amplo, por exemplo, mas para um compromisso em equilibrar as propostas das
escutas sociais com a prerrogativa e expertise da comunidade governamental para o
planejamento. Também não se pode perder de vista que a formalização da função, quando os
planos tornam-se obrigatórios, exige a materialização de diretrizes governamentais e anseios
sociais em objetivos, metas e orçamento. Isso impõe aos governos a difícil tarefa de equilibrar
um esforço democrático inevitavelmente trabalhoso com a entrega de um produto-plano
adequado e aplicável. A conclusão que se chega nesse sentido é que os desenhos
institucionais, os arranjos participativos e a metodologia estruturada para atender aos esforços
de democratização são extremamente relevantes para a garantia até operacional de conciliação
entre a democracia e o planejamento, assim como para o sucesso de ambos e para que a
função seja ressignificada em bases mais democráticas.
Outras críticas ao modelo podem ser organizadas a partir das seguintes reflexões: Em um
estado com a extensão territorial da Bahia, como promover uma mobilização massiva e mais
representativa sem contar com multiplicadores locais? Participantes leigos que atendam às
plenárias sem qualquer articulação e conhecimento prévio, e sem qualquer poder de agenda,
contribuem para se configurar um fórum mais democrático? Será que os requisitos para
potencializar o impacto das autoridades sociais na agenda governamental – trajetória de luta
de movimentos, articulação de pautas, empoderamento de conselhos, entre outros – são
mesmo anti-democratizantes? As respostas para essas perguntas são bastante complexas, e por
isso não são respondidas neste trabalho. Para esse propósito seria necessário até problematizar
como se operacionaliza o conceito de democracia, comparando a experiência com outros
estados ou investigando o caso também sob o ponto de vista dos participantes dos fóruns –
enfoques esses que podem ser adotados em futuras pesquisas. Todavia, mesmo sem
responder, as reflexões parecem oxigenar as limitações do modelo de Fung, que reivindica
que quaisquer ingredientes de qualificação das escutas sociais adicionados ao arranjo de
participação são compreendidos como inversamente proporcionais à grandeza e intensidade
de democracia, considerando essas como produtos exclusivos da inclusão política.
211
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218
APÊNDICE 1 – Quadro-resumo dos depoimentos coletados
Ref. Nº Função do(a)
entrevistado(a) Órgão Papel do órgão Vinculação com o PPA Participativo
Depoimento 01 Função técnica
SERIN - Secretaria de
Relações Institucionais
(vinculada ao gabinete
do governador)
Cuida do exercício da democracia, da
relação da sociedade civil com o governo,
do atendimento de solicitações de
movimentos sociais, de organizações sociais
e mesmo de grupos não organizados.
Vincula-se ao PPA participativo porque
a sociedade civil hoje demanda para o
governo, por meio desta secretaria,
políticas públicas que devem ser
atendidas. Secretaria também participou
integralmente da mobilização de
lideranças, do diálogo com os
colegiados territoriais.
Depoimento 02
Técnica/ Ex-
Seplan
(momento de
mudança de
governo e
participação no
primeiro PPA-
P)
SEPROMI - Secretaria
de Promoção da
Igualdade Social/ APG -
Assessoria de
Planejamento e Gestão
APG dá apoio ao gabinete, trabalha com
planejamento estratégico e com a parte
orçamentária da secretaria. SEPROMI não é
uma área finalística, é uma secretaria de
articulação, muito mais política, que
trabalha preparando e intermediando aquilo
que vai voltar como um serviço, como um
bem para o cidadão.
Órgão de apoio às áreas finalísticas, que
participa de todas as mesas temáticas e
identifica quais metas pode apoiar.
Desde o PPA 2012-2015 houve a
orientação para a transversalidade. A
SEPROMI é uma secretaria que se
vincula a muitas questões finalísticas
(igualdade racial, religiosidade, direitos
humanos).
219
Ref. Nº Função do(a)
entrevistado(a) Órgão Papel do órgão Vinculação com o PPA Participativo
Depoimento 03
EPPGG
(carreira) e
diretora de
monitoramento
SEPLAN - Secretaria do
Planejamento/ SMA -
Superintendência de
Monitoramento e
Avaliação
Superintendência que centralizou a criação
do sistema de M&A em 2012, visando
subsidiar o processo decisório e
retroalimentar o planejamento e
principalmente as leis orçamentárias que
dão conta de executar o PPA. Coordenam o
"fio condutor" do planejamento: LP, plano
de governo, PPA e gestão orçamentária.
Órgão responsável pelo monitoramento
e avaliação do PPA, informando a
gestão central para tomada de decisão e
dando publicidade à sociedade
(inclusive para conselhos).
Depoimento 04 Função técnica
SJDHDS - Secretaria de
Justiça, Direitos
Humanos e
Desenvolvimento
Social/ FUNDAC -
Fundação da Criança e
do Adolescente
Secretaria meio, não questionada sobre a
atuação particular, somente como
participante do processo de construção do
PPA via mesas temáticas.
Participantes das mesas temáticas
enquanto órgão de apoio aos
compromissos das finalísticas.
Levantaram a priori as necessidades de
maior importância da área para tentar
inserir nos compromissos dos demais
órgãos.
Depoimento 05
Coordenadora
executiva de
planejamento e
gestão de
política para as
mulheres
SPM - Secretaria de
Políticas para as
Mulheres
Secretaria finalística, não questionada sobre
a atuação particular, somente como
participante do processo de construção do
PPA via mesas temáticas.
Participantes das mesas temáticas
enquanto órgão propositor de
compromissos essenciais da política.
Rodadas internas prévias de discussões
com gestores, técnicos e operadores da
política para compreensão do público-
alvo, das necessidades e caminhos da
política para as mulheres.
220
Ref. Nº Função do(a)
entrevistado(a) Órgão Papel do órgão Vinculação com o PPA Participativo
Depoimento 06 Função técnica
TCE - Tribunal de
Contas do Estado/
Órgão de Controle
Externo vinculado à
Assembleia Legislativa
Órgão de Controle Externo, vinculado à
Assembleia Legislativa, não questionado
sobre a atuação, somente como participante
do processo de construção do PPA via
mesas temáticas.
Órgão em processo de aprendizagem
para desenvolver o próprio PPA,
buscando adequar a linguagem do seu
planejamento no órgão com o
planejamento do estado. Participou das
mesas para aprimorar a própria
metodologia de construção do PPA.
221
APÊNDICE 2 – Quadro-resumo das entrevistas
realizadas
Ref. Nº Função do(a)
entrevistado(a) Órgão
Formação acadêmica e atuação
profissional
Entrevista 01
Diretora de
Planejamento
Social
SEPLAN -
Secretaria do
Planejamento/ SPE
- Superintendência
de Planejamento
Estratégico/
Diretoria de
Planejamento
Social (DPS)
Graduação em Economia, mestre
em Sociologia. Trabalhou com
participação social nas Nações
Unidas. Experiência com
políticas sociais, monitoramento
e avaliação de políticas públicas
e participação social atrelada às
teorias econômicas e às análises
macro econômicas. Atuação na
amarração, negociação e
fechamento da metodologia
participativa na SEPLAN. Nas
Nações Unidas, "fora do
governo", atuou com a
transversalidade temática, na
interlocução com secretarias de
direitos humanos, lei da criança e
adolescente, saúde, educação.
Entrevista 02
Diretor de
planejamento
econômico
SEPLAN -
Secretaria do
Planejamento/ SPE
- Superintendência
de Planejamento
Estratégico/
Diretoria de
Planejamento
Econômico (DPE)
Graduação em Geografia e
Administração de Empresas.
Servidor de carreira do estado.
Mais de 30 anos de serviço
público. Já percorreu diversas
áreas e tem experiência tanto nas
sistêmicas (com destaque para o
planejamento) quando nas
finalísticas: indústria e comércio,
agriculturas, ciência e tecnologia,
planejamento, entre outras.
222
Ref. Nº Função do(a)
entrevistado(a) Órgão
Formação acadêmica e atuação
profissional
Entrevista 03
Assessor do
secretário da
SEPLAN/
Ouvidor da
SEPLAN/
Substituto do
diretor de
planejamento
territorial/
Secretário ativo
do conselho de
desenvolvimento
territorial
(CODETER)
SEPLAN -
Secretaria do
Planejamento/ SPE
- Superintendência
de Planejamento
Estratégico/
Diretoria de
Planejamento
Territorial (DPT)
Ampla trajetória política de base,
integrante do movimento sindical
e militante político. Ex-dirigente
do Sindicato dos eletricitários da
Bahia (Sinergia Bahia) e carreira
de 20 anos na COELBA. Ex-
presidente regional da CUT/BA e
ex-coordenador financeiro da
Escola Nordeste da CUT. Já foi
assessor parlamentar de deputado
do Partido dos Trabalhadores.
Possui carreira no Estado há
alguns anos, desempenhando
assessorias estratégicas e
coordenando ações de
democratização dos territórios.
Entrevista 04
Assessor do
superintendente
de planejamento
estratégico (Dr.
Ranieri)
SEPLAN -
Secretaria do
Planejamento/ SPE
- Superintendência
de Planejamento
Estratégico
Graduado em Ciências Sociais
pela UFBA, mestre em
Sociologia pela UFBA.
Trajetória na academia com a
temática agrária e de cultura.
Desde que entrou para o governo,
a atuação voltou-se para o
desenvolvimento regional e
gestão de políticas públicas.
Mentor metodológico e grande
responsável (reconhecido
internamente, pelas equipes)
pelos avanços do planejamento.
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