AFASIA - Arthus Fochi

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AFASIA

Arthus FochiAFASIA

Ilustrações:Liv Nicolsky

Thiago Amaral

outrar-se

Dedicado à memória deAntar Parra

“No quiero problema...”

“... Mas sempre tive a mão giz-de-ceraPorque cinza deixa mórbidoOu morno, ou ambos

Foi assim que aprendia colorir poeira...”

Liv Nicolsky

ÍNDICE

Homenagem a Walt Whitman - 15Desejo o outro - 17

Ser - 19Veja a cordilheira branca... - 21

Não sei... - 23Vou à praia... - 25Perdi o sol... - 27

As vozes do passado... - 29Entre fronteras/Entre fronteiras - 30/31

Da Pampa a la Cordillera- 35

À Montevideo - 39De vez em quando... - 41

Aqui - 43O termo fuma a imagem... - 45

Veja pela janela... - 47

Para ti... - 53Terra I - 55

Barrigas de Roundup - 61Onde olho... - 63

Alimentando as Saíras com banana - 65

(Contemporânea I - 57)

Carta VI - 69Carta XIV - 70Carta XVI - 72

Carta Austral - 73

Plástico Paraguai - Hules - 77No coletivo I - 79

Comia um pastel... - 81Nas redondezas... - 83

A cultura venezuelana... - 85Quatro dias sísmicos - 89

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Homenagem a Walt Whitman

Trago a fumaça das gerações passadasAs que passaram e preconizaramEste passar sem nada deixar

Trago fumaçaPara transformar em oxigênioRespiro-te

Pois bebo das marés altas e baixasQue levam garrafasrecheadas de mensagensPor estes países, continentes

Migro no arCansado de sustentarA inane segurançaDe um caminho já traçado

Sou todos animaisEtnias, hierarquias,Nada me detém!Doméstico e selvagem

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Mostro aqui, prestes a vomitarNossa própria geração:Um deserto num mar.

17

Desejo o outro

Desejo seu cotidianoSua comida, seu trabalhoSua angústia e alegria

O cansaço de asfalto dos motoristasOs sorrisos de porcelana das aeromoçasAs mãos encardidas do mecânicoAs roupas manchadas do pintor

Desejo o outroE sinto-me um poucoDestes livros que caminhamPelas calçadas

Rostos que falam sem dizer palavrasAnseio por essas peles de papelPor essa gente misteriosaQue nada é, senão o inadiável

Penso por elesPor essa multidão de alguénsPela sabedoria do porvirAndo por eles

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Às nuvens de chuvaÀs estrelas que anunciamA manhã ensolarada

Anseio pelo outroNum congestionamentoÀ luz de algum sol

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Ser

Contempla a chuvaE o gole de vinho

Vai pelo sol E volte molhado

Sente o calorE o frioDas nuvens Depois de tua varanda

Deseja as pelesAtrás das gradesSê personagem Das histórias alheias

E se apenas águaPuderes beberSe apenas teu suorPode te molhar

Se não houver sonhosDepois de tua varanda

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E somente existir plásticoAtrás de tudo

Histórias sem futuroPresente ou passado

Tenta assim mesmo contemplarSentir, desejar...

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Veja a cordilheira branca, intactaMontanhas rodeiam Os animais dos vales

Uma criança mira fascinadaOs cumes reluzentes

As primeiras terrasQue fitamO nascer do sol

(Aos pouquinhos) Escorre Água Pura De Seus Corpos

O suor do gigantePurifica o que surge

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A seus pés cria mananciais E deixa o mistério:Quantos anos mais Aguentará A neve que aí está?

23

Não seiSe as ostrasQue coleteiFerem o mar em suas ausências

Se falta farãoSeus corpos, seus cálciosNesta unidade e imensidão

Levo-as para cidadeNum plano artificial

Levo-as para que conheçam outras ostrasProdutos das marés de lá

Do pacífico tiro a beleza friade ondas golpeando pedrasPara deixar suspiros nas praias atlânticas

Coleto algo selvagemPara que possam imaginar

Ostras não sabem nadar

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Vou à praiaLimpar o cheiroDe tabaco e enxofre das mãos

Ver o horizonte imensoDe fantasia e sonhoNa névoa das incertezas

Voy con dedos desnudosIntentando puentes de fertilidad

Ando aos pássarosNo céu mais sólido e terrestreDe um ser que não sou eu

Viviendo bajo alfombras de héroesCazando culebras en las cunetas

Para marcar nova impressãoNesse papel rasuradoDo pensamento

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Em Caracas, na Venezuela:1. A palavra “revolução” é utilizada em propagandas, na publicidade.Exemplo: “Uma revolução de sabor” “O shopping da revolução de preços”

27

Perdi o solmas vou à praiaassim mesmo

A roda do carroTá fora do eixo

O homem de chapéuNão conheço

A moça pôs a blusado avesso

Quanto mais tropeçoMenos meço

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2. Uma enquete num canal nacional perguntava ao públi-co se era a favor ou contra o ensino socialista nos colégios estatais. E aí? Sim ou não?

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As vozes do passado chegam até mimE com elas pedaços de almas perdidasAlgumas histórias sem fim

Em todas as vidas háGritos de uma vida passada

Quem eu era?Quem nós éramos?Por que sinto algo que negoe parece não me pertencer?

No limiar das iniciações e decisõesVivo medos antigose dores de feridasincicatrizáveis

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Entre Fronteras

Es verano en la cordilleraHay cabellos blancos apenasen las más altas cumbres

Un gran cuerpo morenoLuce en el horizonte sobreEl alba de Mendoza

De a poco nos acercamosA la gigante ola de piedra y tierra

Horas de colores pedrosos y secosDe infinitos arbustos que poco me dicenNada se mueve, ni el viento...

De repente un valle!

Una verde esperanza sustenta en las copasLenguas de nieve que más parecen llamasla llama indigena no está muerta:

Suena en una zampoña, en imaginación,

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Entre Fronteiras

É verão na cordilheiraHá cabeleira brancaApenas nos mais altos cumes

Um grande corpo morenoBrilha no horizonteSobre a alvorada de Mendoza

Aos poucos nos aproximamosDa gigante onda de pedra e terra

Horas de cores rochosas e secasDe infinitos arbustos que pouco me dizemNada se move, nem vento...

De repente um vale!

Uma verde esperança sustenta nas copasLínguas de neve que mais parecem llamasA chama indígena não está morta:

Soa numa distante zampoña, em imaginação,

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Como si de las grietas de la montañaY de la soledadBrotasen en sábanas de paz.

33

Como se das frestas da montanhaE da solidãoBrotassem em lençóis de paz.

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3. Um taxista disse-me que lavava as mãos com gasolina.

35

Da Pampa a la Cordillera

Ando enfermo de contradiçõesPor la manhã desayuno mate calienteOlho e vejo um belo negroCamarada de la pampa

Me façoPortunhol

Y vivo varios mundosDentro de sotaques y acentos

Suspiro una savanade pieles y expressões

Soy doente de contradiccionesMergulho em playasPara boiar en Vulcões

Rosario, Argentina. Fevereiro de 2010.

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4. O mesmo taxista contou-me que havia um decreto-lei que obrigava as rádios tocarem 50% da programação de música folclórica venezuelana.

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Pedindo licença ao Galeano

Num muro de Montevideo:“ Onde termina o estado, começa o orgasmo.”

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À Montevideo

Os Plátanos e Ibiscos das ruas Sopram folhas Agarradas nos sapatos

O chão sujo de MatiasReclama, mas ri

Em Pajas BlancasSereno o ser sentindoA calma de AndrésAlumbrada numa vela

A chama dançaNos acordes de Sebastian

A calçada choveComo tortas fritasDas moças e senhorasCom seus mates tomados

Melodias amigasDo Cuarteto RicacosaCriam poema e fantasia!Abrem caderno curioso

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Assovioà mata colorida

Violões atraem fauna

Ao ritmo de MilongaA cidade anda de bicicleta

Quadros são pintadosPela aurora do Rio da Prata

E as veias incham num canto:O amor batuca tamboresDe uma Murga apaixonadamente política

Os altos tetos das casasCriam uma paz acusticamente sonhadora

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De vez em quando Precisamos mudar de cidadePela insegurança criada em gaiolaArdem os pesadelos de ir até ali

Em chiquitos momentosEsquinas Ruelas amizadesMarchas sofrimentosBecos compromissos

Dá de dor Querer ser árvore Em cada ventoTer raiz sentidos

Ai, oi, ei...

Como o lobo que uivaComo o ancestral negroSem lágrima que choreUm enxame detido

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43

Aqui

Neste prédio em que vivemosOs vizinhos de cima rugemCom suas camas inquietasDe projetar amanhãs sem porquês

Subimos às alturas do nada e tudoPara sermos um pouco do poucoE vivermos escondendo nossos medosNos jogos que existem

Neste prédio em que vivemosO vizinho do lado mija pela janelaDe madrugada para que ninguém vejaE ele possa rir em paz

Subimos aos mais infames métodosPara fazer com que consigamosUm tantinho, um quase tudo ou nadaDe nós mesmos

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Em dia de tragédia no morro do Bumba

O termo fuma a imagemE sopra no ar sentidos

certos

Pontos desmoronamCasebres adubam à penúria

Corações pintam chuvas de verão

E o carvão dos olharesMostra um não dito

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Veja pela janela as árvoresbalançarem num espetáculoque só existePara os que a têm

Sente tristeza em lamentarEnquanto aprecia?

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“Terra mãe, é mulher...”Leal Carvalho

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Para tiNenhum poema valePara ti, sim

Todos e miúdosRuídos e cálicesDos crepúsculos da história

Para tiAs cores do arO som das auroras

Para tiA ancestralidade da genética minhaA voz dos meus pésO luar de minhas mãosA juventude da construção!

Para tiO protelar de um gozo...Para que desabrochemsorrisos continentais!

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Para tiTodo o tremer dos pronomes

O cálcio das conchasO sopro dos maresA terra que parte-se em pedraO ar que se modificaA canção feita numa cantigaO peito que amamentaO rio que não enjeitaA trama da naturezaO saber que a alma existeAs pétalas que compõem as mãesO filho que quero ter

Para tiAquilo que já planteiCom o tudo que plantarei

Mas, nenhum poemaVale

à Marina

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Terra I

A terra ascende nas jovens almasFeldspatos, açucenas, acauãsEvocam os elementais

Árvores crescem em fortaleza

O dom do arPoliniza grãos de paz

Salamandras sopramSéculos em dias de mata

Fauna e floraJuntam-se em corredor

Contemplam o homem consciente de suas mãos

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(

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Contemporânea I

Entrou na casa como quem entra no marFez poemas e canções das paredesFincou bandeira no telhado

Semeou entre raízes do pátioColheita de ilhasSementes de ilusões

Sua foz é na nascenteNão deságua em parte algumaVai vilAssorear em si mesma

Nas orlas sorriam curumisEntre a neblina crivada na passagemIara disse: - Não vá!Guri atenta à mãe?

O idílio desfez o campoFlores e sonhos em idaNos idos

Névoa gris...

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Ao fundoDum poço opaco

Flutuantes estátuas

59

)

60

No Mercado Municipal de Guayaquil:1. Um pregador grita a seu Deus por ajuda e canta entre a multidão.

61

Barrigas de Roundup

Barrigas crescemNa ausência de calosObsoletas enxadasCriam limo no canto

Cultivos padecemFome de manejo adequado

Embalsamaram a diversidade!Em Livros-museus-naturais

Desnutrindo a terra em ócio

Ventres de RoundupCrescem na ferrugem do facão

62

2. Um gato malhado come dentro dum recipiente de restos.

63

Onde O L H O

PALEE NLA JA

Vejo PastoÁrvores? Amigas?

Apareçam Deste V a s t o D e r r a m e

E se não for infame pedir...

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Avise aos indígenas:

VENDE-SE LOTES AQUI!

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Alimentando as saíras com bananas

De estorvos sinistrosSameio no campo muito longeCom meu balaio levo o mundoConstruindo pontes de embaíbasPara passar dos riosQue estrovam a gente

à agricultura familiar

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3. O feirante grita: - Gringo! Venga mirar!!

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4. Vejo um dólar encostado no queijo da barraca de frios;Pedaço de Abacaxi – Piña - por $ 50 cents

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Carta VI

¿Como estás, mi Hermano?Te extraño, y me acuerdo siempre al

echar jabón en la esponja (¿Te acuerdas que me enseñaste a echar en la parte amarilla?), al pensar en las miradas, y en el poder que tienen estas junto a la palabra.

Ando con una mirada muy reservada, me gusta las madres, me atrae el oficio - cada cual en su concentración. Mi atracción es, sin embargo, sexual, natural, reptil...

Quiero la experiencia, no la ansiedad, y veo un seno futuro susceptible, listo para recibir el cuerpo delgado del mundo.

Baja del hambre, el hambre de placer, el hambre de guerra.

Somos el mundo, uno está en si y en él.Cuando nazca un niño la aurora será la

misma, de necesidad, de atención, de natu-raleza.

Así pienso la vida y recuerdo.

Para Andrés Deus,representando meus irmãos.

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Carta XIV

Senti uma pontada no peito.Minha avó, não fique assombrada com

a expressão de minha dor; aproximei-me como nunca da morte e vi a angústia da hu-manidade refletida em todo rincão.

Vi filhos da escravidão deitados baixo duma estátua de conquistador.

Escutei nas conversas a inane lembran-ça de fatos televisivos, os artistas cantando e atuando sem amanhã.

Queria chegar a casa para escrever todo fardo do olhar. Quando entrei todas as lu-zes estavam acesas, apaguei e perguntei para ao irmão: - Você trabalha para poder desperdiçar? Saiu um pouco aturdido, e voltou.

Você, de uma época remota, de guerra, sabe das expressões de dor, via os conterrâ-neos italianos à beira do fuzilamento.

Talvez porque presenciou, sente que não estou brincando. Há muito arder pelo ar, e nesta tarde foi tudo para meu peito...

O sangue dos desertos árabes, as ruínas

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por impérios, o ranço das tribos nômades. Os corpos e olhares dos torturados. A vida dos sorridentes explorados.

Quanto mais sei, mais morro. E há quem diga que são gases.

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Carta XVI

Chegando ao Rio, casas simples ao corpo do primeiro morro avistado.

Um homem solta pipa frente à rodoviá-ria sob a observação de um menino (deduzi como filho) que enrola na lata a linha que o pai puxa, trazendo o brinquedo alado do céu.

Displicente cidadão caminha pelo meio da rua. Feroz automóvel assusta-o e parte.

O céu está azul, faz calor, é janeiro. Parece tempo de bonança, porém, notícias confirmam o revés.

Na calçada, uma senhora negra fala só, loucura de uma dor hereditária. Acho que sua melhor amiga foi à brisa que lhe tocara.

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Carta austral

Don Sérgio, em Quellón, disse-nos que o vulcão Michimahuida destruiu a cidade de Chaiten nas bordas da erupção que cons-truiu uma imensa escada de cinzas no es-paço.

A nuvem gris fechou as persianas sobre os vales da cordilheira levando a história até Quellón, onde o conheci.

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Dicas de Carona:1. Em Montevidéu, voltando sentido Brasil, buscar pelo Mercado Modelo - equivalente ao CEASA.

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Plástico Paraguai – Hules

Visitei Ykua´Karanda´y, que em guarani significa: “Água que brota”. Companhia de Luque, villa de hules, onde há moradias feitas de plástico. O banheiro é a latrina, um bu-raco no chão.

As famílias que ali vivem ocuparam o baldio, não fazem parte da arrecadação tri-butária. Não há luz, água, saneamento. Dez metros adiante da rua que cruza o bairro brilham luxuosas mansões.

Na caminhada pelo lugar parei numa casa, precisava molhar a cabeça - o calor tonteava, quase tombava a gente. Buscava hidratar-me e via ao lado um córrego por onde passavam os dejetos dos que viviam ali.

No lar que estive, um homem silencio-so serviu-me água do poço generosamente. Crianças pescavam girinos nas veias do po-dre regato.

Este bairro fica a poucos minutos da ca-pital Asunción.

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No dicionário português, Assunção sig-nifica a elevação de um cargo ou dignida-de. No dicionário espanhol, ação e efeito de assumir.

Assunção, 2008.

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No coletivo I

No ônibus indo para Ilhéus ouvimos Flávia, de Eunápolis até São João da Pane-linha. Ela entrou no coletivo entoando um grito estridente, completado duma larga risada.

A primeira sensação que tivemos ao vê-la foi de conforto: - viva a esperança! Pensei na Alegria do povo Baiano.

A voz de Flávia ecoava com humor du-rante a viagem.

“Capar o Gato” foi uma das expressões que usou querendo dizer: Tomar outro rumo.

- Eu vou é capar o gato pra lá! Suas filhas são Bruna e Bruniele. Flávia

disse querer um filho, mas contou que a despesa já é muita. Perguntou se no Rio de Janeiro havia farinha de Mandioca, e com-placente com nossa condição de viajantes ofereceu-nos abrigo em sua casa.

Nos despedimos agradecidos, e ela saiu - sorridente, em paz com as meninas, cheia de algo simples e eloqüente.

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Comia um pastel no Rio Grande do Sul, em Santa Cruz do Sul, quando uma se-nhora – destas que passam o dia coletando lixo – apareceu de repente.

Tão de repente chegou perguntando: “- Tá vendo? Este ônibus! Aí, olha! Foi

meu filho quem desenhou, é ônibus para deficiente. Meu menino é muito bom, sem-pre gostou de desenhar; ele desenha de tudo. Flores, bolas, brinquedos, saem do papel e viram realidade...! Viu o ônibus?”

Disse que sim, que era bonito. Ela sor-ria, sorria... Fui pensando se a historinha era verdade. Por que a senhora vivia mal-trapilha se o filho projetava ônibus?

Naquela tarde tanto a verdade quanto a mentira, valia. Pois no mistério dos dois estava a felicidade, e a celebração de uma fantasia.

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2. Olhe bem no olho, e vai!

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Nas redondezas do Mercado Municipal de Sucre (Bolívia), um engraxate de dez anos chamado Javier pediu-me para com-prar-lhe um caderno. Comprei o caderno e quis saber mais sobre a vida e o trabalho do menino.

Na Bolívia o trabalho infantil é comum, seja rural ou urbano. A criança é incorpora-da ao labor na arrecadação familiar, antes até de concluir seus primeiros anos de estudo. Tal fato inibe a criatividade quan-do a criança assume responsabilidades de um mundo impróprio para recebê-la – sem os descompromissos de infância.

Javier era engraxate desde os sete anos. Estudava à tarde, trabalhava na manhã. Convidei-lhe para almoçar no mercado. Surpreendeu-me quando após poucas garfadas colocou seu almoço numa sacola plástica, e levou-a para casa. (É um costume popular)

No outro dia disse-me que dividira com a mãe.

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Vi aquele menino tímido, pensei na minha infância colorida, no desperdício e na equi-dade.

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“A cultura Venezuelana tem impor-tante referência na região dos llanos, uma região de planície e pântano – as savanas venezuelanas.”

Contou-me um homem no ônibus de Mérida à Barinas, que ostentava um gran-de sombrero feito da fibra de uma palmeira (Palma Moriche) bastante encontrada na região e utilizada na confecção artesanal ancestral.

Tratou de explicar-me que aquele era um exemplar venezuelano, e que é bom comprar produtos nacionais. Disse também que o couro do gado era utilizado na fabri-cação de redes para descanso.

Perguntei-lhe o que pensava do governo. Disse-me que estava melhorando a vida de todos – dos mais pobres.

Atravessado, perguntei: - E os ricos estão insatisfeitos?

Ele: - sim, sim... Há pouco meu presi-

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dente expulsou os latifundiários que exis-tiam por aí. Trezentos... Duzentos mil hec-tares na mão de um, dois, ou três? Agora o povo está lá produzindo.

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3. Sorria, agradeça, construa uma lembrança se puder.

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Quatro dias sísmicos

1º dia (27 de fevereiro de 2010)

Sinto a terra tremer, os objetos em cima da mesa estão instáveis. Não estou bêbado. Despertamos aproximadamente três horas da manhã como gatos assustados correndo pro pátio. A estante de livros que acabamos de levantar carrega uma cicatriz e alguns pedaços pelo chão.

Nunca havia visto a lua dançar de tal maneira! Para mim a terra sempre foi o mais seguro, fixa, invariável, como o dito popular: “ Do chão não passa...”

Tocou-me pensar hoje na liquidez da terra, em como poderia abrir-se uma boca do solo e tragar a superfície.

Do quintal víamos a casa como um brinquedo frágil. Tentávamos permanecer de pé ainda um pouco mareados pelo le-vantar no susto, entre o áspero e o elástico.

Os cães ladram no vizinho, anunciam um pequeno tremor...

Aqui é Nancagua, campo chileno, sul da 6º região. Eduardo foi ao hospital saber

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se necessitam de sua ajuda. Meus compa-nheiros de casa estão tensionados, alguns buscam informações na rádio – onde have-rá sido o epicentro deste terremoto?

Descansamos um pouco. Quando Edu-ardo voltou soubemos que na cidade as ca-sas mais antigas haviam caído, que lhe to-cou ver dois mortos, e que o hospital estava cheio e impossibilitado de transferir seus pacientes a outros postos.

Em meio à catástrofe comentou sobre um nascimento, o que soou um engraça-do paradoxo, pois o ministério do interior anunciava na rádio 64 falecimentos.

As replicas tremiam as taças de café enquanto nos olhávamos.

As calçadas enfeitadas de laranjeiras estão cheias de laranjas caídas e escombros. Há cheiro de escombro e um silêncio de la-ranja no ar.

A igreja de Nossa Senhora das Mer-cedes possui rachaduras por sua estrutura, talvez caia o campanário não resistindo as replicas. As caminhonetes passam carrega-das de despojos: telhas, madeiras, pedras.

Há um conjunto de casas em monte,

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haverá gente soterrada? A população se junta ao redor, poucos falam, alguns tiram fotos... Como estarão as outras cidades?

Chillan, Curicó? Cidades maiores e mais próximas do Epicentro.

Há impotência frente ao caos. Apenas uma rádio funciona e as informações são difusas, dizem que há risco de Tsunami e que nas cidades costeiras estão evacuando a população para as montanhas.

A energia e a água foram cortadas. A população sai com garrafas em busca de um vizinho generoso, um poço. Os muros estão literalmente desfeitos.

Encontramos Eduardo saindo de uma ambulância. Disse-nos que havia mais dois óbitos por queda de escombros, e que teve de ir aos locais mortais fazer as notas de falecimento, ou seja, averiguar se estavam mortos.

Conversamos sobre o médico e sua importância como entidade dentro de um povoado pequeno. Nestes momentos são instituições elementares que acalmam a po-pulação.

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Nossa ponte com o sangue da tragédia, Eduardo, voltou pela tarde contando novas notícias. Os lesionados em sua maioria se machucaram durante o desespero da fuga: tropeços, golpes contra parede, e feridas causadas pela queda de escombros.

No hospital há gerador de energia e a televisão mostrou um edifício de 16 anda-res partido ao meio em Concepción, onde o terremoto foi mais violento. Acreditamos que o número de mortos passa facilmente os cem.

O dia passou devagar, foi um dos mais duradouros de minha vida, às vezes volto a lembrar do ruído da terra tremendo, das montanhas, da lua numa febre agitada, e de nossa languida existência ante a natureza.

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2º dia .

Somos títeres neste mundo.Despertamos em Nancagua às oito da

manhã. Dividimos dois pães em quatro e tomamos café. Hernan, pai de Eduardo havia racionado a comida para que tivésse-mos este pão antes de viajar.

Na estrada observei muros desfeitos, poucos veículos viajando, e certo alento de-solado no ar.

Os postos de gasolina estavam fecha-dos, e as exceções abertas possuíam filas de formigueiro.

No caminho, um desvio. Uma ponte tombada, quantas não haverão caído?

Lembrei que Eduardo fez curativo na testa de um motociclista. Justamente no momento do terremoto, passava por uma pontezinha.

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3º dia .(Nota-se que o terceiro e o quarto dia têm linguagem mais dura, jornalística. Codifiquei como marcada pela influência da cidade, do contato com a popula-ção e com os meios de comunicação)

Em Santiago víamos bairros enfileira-dos na frente dos mercados. Soubemos da notícia que em Concepción os saques ha-viam começado. Ficamos discutindo sobre a moral do roubo, e em sua fragilidade ante a necessidade. O estado havia colapsado em alguns lugares, e o monopólio da vio-lência voltava ao rigor.

Fui para casa de Valentina, seu bairro estava em paz, faltava luz, mas nada havia caído - nenhum muro ou parede, os anos de estudo em arquitetura sísmica bastaram àquelas casas.

Fomos para casa de Nicolas, conver-samos sobre os dias e decidimos visitar o grupo da FECH (Federação de Estudantes da Universidade de Chile) de voluntários.

Se não fosse fazendo algo, não seria. Turista?

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4º dia .

Jovens na maioria, se reuniam para aju-dar os bairros mais afetados pelo terremoto. Tomamos o metrô em direção à Comuna de Santiago. Havia muitas casas comerciais, o que não nos interessava tanto. As casas fa-miliares eram antigas, quase todas feitas de adobe - as que sofreram mais danos.

Estávamos vivos finalmente. Depois de três dias prostrados, enfim, conversáva-mos com a população, sentíamos suas ne-cessidades e medos. Era um trabalho psi-cológico na medida que escutávamos com empatia as moléstias causadas pelo terre-moto.

Dona Dina vivia só numa pequena vila, a casa de adobe fundiu-se. Havia ra-chaduras por toda parte, e o teto estava na sala. A senhora de oitenta anos possuía úmedo olhar, mas era forte. Quando per-guntei para onde iria, respondeu: “ Yo no sé, mi hijo...”

A parte mais penosa deste cadastro de danos foi escrever as recomendações para prefeitura: URGÊNCIA. Senhora idosa, só,

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sem apoio familiar. Visitamos casas e conversamos com

seus donos, certas ocasiões averiguávamos como técnicos, a estrutura da casa, o risco de queda, e a urgência dos tetos e muros.

O primeiro encontro foi simbólico, uma família ocupava de móveis e objetos o baú de um caminhão. A casa estava sob decre-to de demolição, porém, todos encaravam com risos o ocorrido, e a última embarcada foi a bandeira chilena. Disse um cidadão ao se despedir, balançando-a e sorrindo: “- Apesar de todo, continuamos chilenos!”

Pensei na tragédia e no nacionalismo, em seus respectivos laços.

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Arthus Fochiarthusfochi@gmail.com

Editores Responsáveis: Wohlfeilheit Duran e Arthus FochiDiagramação: Barateza DuranRevisão: Jaca Foca

Créditos das ilustrações:Liv Nicolsky - Capa e págs. 51, 67, 88 e 97.Thiago Amaral - págs. 5 e 75.

Todos os esquerdos reservados. É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, para fins

não comerciais, desde que citado o autor. Porque não permitir a reprodução de livros numa fotoco-

piadora é promover o desaparecimento de leitores.

Rio de Janeiro, 2010

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