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ANAXIMANDRO
IHF – 2017.1 TEXTO 3
Prof. Marcos Aurélio Fernandes
Fil – UnB
Com Anaximandro (610 – 545) principia o princípio do pensamento ocidental.
Sua cidade era Mileto, a mesma terra de Tales (623 – 548 c.), do qual
Anaximandro fora ouvinte e aprendiz.
Simplício (+ 560 d.C.), há cerca de mil e quinhentos anos, e cerca de mil anos
depois de Anaximandro, comentando os livros da “Física” de Aristóteles, nos reportou
uma passagem do livro de Teofrasto (+ 287 a.C.), intitulado “Physikon Dóxai” (Pareceres
dos que estudam a Physis). Essa passagem informa que Anaximandro dissera que a
(arché), o princípio, (ton ónton), dos sendos (entes), era
(tó ápeiron), o ilimitado.
Dessa passagem nos vem um dito que nos foi transmitido assim:
Transliterando:
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Ex hon dè he génesis esti tois ousi,
Kaì tèn phtoràn eis tauta gínesthai
Katà tò chreón:
Didònai gàr autà díken kaì tísin allélois
Tes adikías
Katà tou chrónou táxin.
Toda tradução é uma interpretação. Vamos apresentar, aqui, algumas
traduções/interpretações.
Tradução de Nietzsche (1873):
“Woher die Dinge ihre Entstehung haben, dahin müssen sie auch zu grunde
Gehen, nach der Notwendigkeit; denn sie müssen Busse zahlen und für ihre
Ungerechtigkeiten gericht werden, gemäss der Ordnung der Zeit”.
(A partir donde as coisas têm a sua gênese, para lá elas devem também perecer,
segundo a necessidade; pois, elas têm de pagar a pena e serem julgadas pelas suas
injustiças, segundo a ordem do tempo).
Tradução de Diels (1903):
“Woraus aber ihnen die Geburt ist, dahin geht auch ihr Sterben, nach der
Notwendigkeit. Denn sie zahlen einander Strafe und Busse für ihre Ruchlosigkeit nach
der Zeit der Ordnung”.
(A partir donde as coisas têm o nascimento, para lá vai também o seu morrer,
segundo a necessidade. Pois elas pagam castigo e pena pela sua improbidade segundo
a ordem do tempo).
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Outra tradução possível:
“De onde provém o surgir das coisas, de lá também vem o seu desaparecer – à
medida que estas fogem, indo dar no mesmo – de acordo com a necessidade; de fato,
as coisas rendem justiça e prestam o que é devido umas às outras, de acordo com a
ordem do tempo”.
Tradução de E. Carneiro Leão:
“De onde pro-vêm as realizações, re-tornam também as des-realizações: pois, de
acordo com o vigor da con-signação, elas con-cedem umas às outras articulação e, com
isto, também consideração pela des-articulação, de acordo com o estatuto do tempo”.
De que fala o dito de Anaximandro?
Numa primeira aproximação, fala das “coisas”, das “coisas em geral”. No
entanto, sendo mais fiel ao modo de dizer grego, a sentença diz respeito aos “sendos”
(o que, numa terminologia fixa, se chama de ‘os entes’). Neste dito aparece a expressão
(tois ousi) – “aos sendos” (dativo plural feminino de - ser). A sentença
a respeito de (tó ápeiron), o ilimitado, de modo similar, usa a expressão
(ton ónton), “dos sendos” (genitivo plural neutro de- ser). O
nominativo plural neutro é: (tá onta) – “os sendos” (os entes). O nominativo
singular neutro é: (tò ón) ou (tò eón) – “o sendo”. O sendo, no singular, é
o todo. Mas o todo, não como soma de partes. O todo do ente é mais do que “isto e
mais isto e mais isto, etc.”. Por exemplo: o todo de uma árvore é mais do que a mera
soma de raiz, tronco, ramos, folhas, flores, frutos. O todo do ente inclui todos os entes,
mas, em si, é mais do que o agregado de todos os entes. O todo do ente inclui tudo. Só
não inclui o Nada. Portanto, (tá onta) indica o ente-no-todo. Este “no-todo”
nos é o mais próximo e o mais familiar. É o mais óbvio. Por isso, usualmente não nos
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atentamos para ele. Nós já sempre o experimentamos. Mas dificilmente o
conceituamos. Este “no-todo” inclui cada sendo que, a cada vez, vêm à vigência. Assim,
podemos entender também (tois ousi) como “o ente que, a cada vez, vige”.
Portanto, o plural, pode significar, aqui, tanto o ente-no-todo como também o singular,
que, a cada vez, vige, participando deste todo. O todo do sendo, porém, dizíamos, não
é mero agregado ou soma dos sendos que, a cada vez, se tornam vigentes, presentes. É
algo assim como uma reunião, um recolhimento. Os sendos se recolhem... em que?
Resposta: no ser. O ser “é” os sendos. Aqui, o verbo ser tem sentido transitivo. Quer
dizer: o ser deixa ser e recolhe os sendos, a cada vez, e como um todo. O todo não é
uma simples acumulação e um mero amontoamento. Não é mera dispersão. O todo
acontece como uma reunião dos sendos no ser. Na verdade, (tò ón) ou (tò
eón) quer dizer não simplesmente “sendo”, mas “sendo-recolhido-no-ser”.
Agora, se atinarmos melhor, veremos que a primeira parte do dito de
Anaximandro não fala propriamente dos “sendos”, mas do ser dos sendos, isto é, do
viger de sua vigência, e isto, duplamente, a saber, falando do seu vir-à-presença, quer
dizer, do seu aparecer e brilhar, de sua parousia; e, junto com isso, do seu retirar-se para
a ausência, de seu desaparecer e apagar, de sua apousía. O vir-à-presença e brilhar e
aparecer chama-se, neste dito, (hé génesis). O seu retirar-se para a ausência,
o seu desaparecer e apagar, neste dito, chama-se (hé phthorá). Diels fala de
“Geburt” (nascimento) e “Sterben” (morte, morrer). Nietsche fala de “Entstehung”
(surgir, nascer, originar - gênese) e de “zu-grunde-Gehen” (ir a pique, perecer). Já
Carneiro Leão fala do “pro-vir das realizações” e do “re-tornar das desrealizações”. Mas,
vejamos isso mais de perto.
O texto diz: he génesis esti tois ousi. Podemos
traduzir de modo mais atinente ao texto: “a gênese é para os que vêm à presença”. Dito
de outro modo: “A gênese vige para os vigentes” – ou ainda: “A gênese advém aos
vigentes”. (génesis) é, aqui, o advento à presença daquilo que se torna
presente. É algo como um êxtase da realidade: um vir-para-fora que se dá como
realização do real. (génesis) é o instante, melhor, a instância, o ponto-de-salto,
o vir para fora, em que se dá o eclodir da aberta da presença, a dimensão de todas as
dimensões, em que advém tudo o que se torna presente. (génesis) é a vigência
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do ser dando-se como o raiar, como o amanhecer, o irromper. Algo assim como o
lampejo do raio. É o “no-princípio”. O poeta Rilke, no primeiro dos seus “Sonetos a
Orfeu” canta este irromper como “pura elevação”. A primeira estrofe desse soneto
canta assim:
Então elevou-se uma árvore! Pura elevação!
Orfeu está cantando! Uma grande árvore no ouvido!
E tudo silenciou! Mas mesmo no silêncio unânime,
Nasceu novo princípio, gesto e transformação!
O que quer dizer, entretanto, nesta perspectiva, (phthorá)? Morrer,
afundar, ir a pique, perecer? Ou, mais precisamente, um retirar-se e um ausentar-se,
isto é, o acontecer da apousía? Um subtrair-se, um ir-embora? Talvez isso: um ir embora,
quer dizer, ir-em-boa-hora! Um ir-no-momento-oportuno! Eis de novo o tempo. Em “O
Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna, Chicó, ao se referir à morte de um
cachorro, primeiro, e depois, à morte de seu companheiro João Grilo, diz:
Cumpriu sua sentença e encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca de nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo morre.
(phthorá) assinala certo retraimento. Diz o distanciamento do que se
retrai, do que se retira, do que se vela e se encobre. É algo assim como um ir-embora e
uma despedida.(phthorá) é algo assim como nadificação. É como o declinar e o
anoitecer. Desaparecer.
(génesis) e (phthorá), no entanto, se compertencem. O “ente no
todo”, a totalidade do real, se dá a partir de “realizações” e “desrealizações”.
- phthorá génetai tois ousi. Tentemos traduzir isso de
diversos modos, através de paráfrases: sempre de novo, para os sendos aparece o
desaparecimento. Sempre de novo, para os sendos, surge a nadificação. O subtrair-se,
o retirar-se, o desaparecer, o nadificar, sobrevém, sempre de novo, aos sendos. É que,
podemos dizer, (génesis) e (phthorá) são dois momentos do Mesmo:
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A totalidade do real, o espaço-tempo de todas as coisas, não é apenas o reino aberto das diferenças, onde tudo se distingue de tudo, onde cada coisa é somente ela mesma, por não ser nenhuma das outras, onde os seres são indivíduos, por se definirem em estruturas diferenciais. A totalidade do real é também o reino misterioso da identidade, onde cada coisa não é somente ela mesma, por ser todas as outras, onde os indivíduos não são definíveis, por serem uni-versais, onde tudo é uno – Frag. 50: (hén pánta). No movimento de sua realização, a realidade é tanto o horizonte em expansão da luz de todas as singularidades como a uni-versalidade protetora da noite, onde todos os gatos são pardos. A noite dá à luz os indivíduos para no fim do dia os recolher no seio materno. O mundo é a articulação das diferenças de Dionísio Zagreu, dividido e fragmentado, com a identidade de Hades, simples e indiferenciado.
Dissemos que, numa primeira aproximação, parece que o dito fala das “coisas”.
Em vez de, das “coisas”, podemos dizer, melhor: fala dos “sendos” -(tá onta).
Este plural, porém, é ambíguo: significa tanto o que, a cada vez, é – o ente na sua
singularidade; quanto o todo do que está sendo – o ente-no-todo. Isso quer dizer: os
sendos recolhidos no ser. Para dizer a unidade do sendo, tanto na singularidade (o sendo
que se dá a cada vez), quanto na universalidade (o sendo que se dá como um todo), a
língua grega usa a expressão (tò ón) ou (tò eón). Voltando, pois, à
pergunta: de que fala o dito? Podemos, ainda numa primeira aproximação, dizer: fala
do sendo como tal e no seu todo, fala de: (tò ón). Vamos tentar agora uma
segunda aproximação à “coisa mesma” de que está falando o dito de Anaximandro.
A expressão grega (tò ón) é duplamente ambígua. Primeiramente, pela
sua forma participial: (tò ón) é particípio do verbo (einai) – ser. O particípio
é, antes de tudo, uma forma verbal. O verbo é uma palavra-do-tempo (Zeitwort).
Assim,(tò ón) significa o “sendo”, como verbo, isto é, indica para o “estar
participando do ser”. Em segundo lugar, porém, o particípio se torna substantivo, com
o artigo neutro no nominativo singular: (tó) – “o”. Assim, falamos de “o sendo”, “o
ente”. Ao encararmos assim o sendo, tendemos a considera-lo como uma vigência
permanente, como presença constante, como algo que perdura, enfim, como
(ousía) – substantia; ou como subjacente, como (hypokeímenon) –
subiectum.
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Em segundo lugar, a ambiguidade de se dá, porque, às vezes, esta expressão
quer dizer não tanto o sendo enquanto recolhido no ser, mas o ser mesmo do sendo. O
ser é aquilo pelo que o sendo é. O ser é, assim, a (arché) – o princípio, o
fundamento do sendo. Apresenta-se, assim, uma diferença referente ou uma referência
diferencial entre ser e sendo. Por um lado, o ser é o sendo, caso se entenda este verbo
“ser” em sentido transitivo. Isso quer dizer: o ser deixa ser o sendo. Por outro lado, o ser
não é o sendo, no sentido de que ser não é nenhum “este”, nem nenhum “aquele”, dos
sendos. Não seria este o significado de (tó ápeiron), o ilimitado?
Na antiguidade grega, o homem se era si mesmo e se sabia a si mesmo na
pertença ao desvelamento do ente. Ser homem significava ter o próprio fundamento no
desvelamento do ente. O ente era aquilo que se apresentava no domínio do desvelado.
O ser do ente tinha o caráter de presença e presença constante, perdurável, subsistente.
A verdade era o desvelamento daquilo que estava presente. O homem era aquele ente
finito, que se media com o desvelamento e o velamento do ente, lutando por alcançar
a verdade do ser em meio à aparência do ente. Ser homem é ser interpelado pela
verdade (desencobrimento) do ser.
O ser, entretanto, por um lado, se contrapõe ao vir-a-ser e ao aparecer, e, por
outro, o vir-a-ser e o aparecer co-pertencem ao ser e vice-versa. O vir-a-ser é o aparecer
do ser; e o aparecer é o vir-a-ser do ser. O ser é presença. O vir-a-ser é o chegar à
presença e o sair dela. O aparecer é o apresentar-se que se clareia e brilha. Assim como
o vir-a-ser e o aparece co-pertencem ao ser, também o não-ser, o nada, pertence ao ser.
Ser e não-ser se co-pertencem como presença e ausência, como emergir e submergir,
como manifestação e ocultação.
Voltemos, de novo, à nossa pergunta: de que está falando o dito de
Anaximandro? – Que resposta pode ser dada a partir desta segunda aproximação a ele?
Resposta: o dito não fala do ente, mas do ser. Ou melhor: só está falando do ente como
tal e no todo, por estar falando do ser – do ser em referência ao aparecer e desaparecer.
Com outras palavras, está falando da verdade e do mistério do ser, como
desencobrimento e como encobrimento, como manifestação e ocultação. É a partir daí
que precisamos entender (génesis) e (phthorá): (génesis)
seria, então, o desencobrir e manifestar-se do ser; (phthorá) seria o encobrir-se
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e ocultar-se do ser. Mas ser é entendido, aqui, não como efetividade, e sim como viger
da vigência, da (ousía). Assim, nesta segunda aproximação, suspeitamos que o
dito esteja falando do dar-se sub-reptício do ser, do viger de toda a vigência, advindo e,
ao mesmo tempo, se retraindo em tudo quanto está sendo e à medida que está sendo,
respectivamente, em todo o modo de ser. Ser “é”, ou melhor, vige como arché).
Vige comoarché), princípio, origem, no sentido do vigor imperante, originário,
que erige e rege, sustentando e governando tudo. Vige como(hyparkhé), o
fundo-abismo a partir donde se dá a proveniência de todo o sendo e para onde se
recolhe todo o seu acontecer. O dito de Anaximandro, a nosso ver, estaria acenando
para este fundo, o fundo da (ousía), vigência. Enfim, o que está em jogo, aqui...
É o fundo a partir do qual todo um mundo de entes
recebem identidade, localização no todo, unidade de
participação, no sentido do ser que os faz surgir, crescer e se
consumar, como elementos componentes ou melhor
estruturantes da eclosão de uma paisagem da possibilidade
de ser. Trata-se, portanto, digamos, do ponto de salto do
próprio eclodir que se perfaz, como surgir, crescer e
consumar-se num possível mundo (Harada).
De que fala o Dito? Já vimos: não propriamente das coisas da natureza,
entendendo-se natureza como uma “região do ser”, diferente de e oposta a outras
regiões de ser, por exemplo, arte, costumes, história, etc. Já vimos: fala dos “sendos”,
isto é, dos “entes”. Ou melhor, fala do ente como tal e no seu todo, o ente enquanto
ente, segundo a formulação de Aristóteles. Ou, ainda mais precisamente: fala do ser do
ente. O ser do ente se tornou manifesto para o homem, nas épocas da história do
pensamento ocidental: como ousía (idea + enérgeia), na grecidade; como substantia
(essentia + existentia), e, ainda mais, como actualitas, na romanidade (antiguidade
romana e idade média); como efetividade, de início, como objetividade + subjetividade,
tendo o todo como sistema, e, por fim, como funcionalidade da informação. Tudo isso
está meio jogado. São colocações tateantes. Mas ao menos acenam para a vigência do
mistério de ser como história do ocidente, em suas diversas épocas: grecidade,
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romanidade e cristianismo, modernidade, expansão planetária do mundo tecnológico.
Tudo isso é o ocidente: a terra do pôr do sol. O oriente deste ocidente é a grecidade
arcaica, isto é, a grecidade da “arché”, que emergiu no tempo que Jaspers chamou de
“axial” (eixo), a grecidade de Anaximandro, Parmênides e Heráclito, a grecidade do
pensamento que Nietzsche considerou como pré-platônico, Hegel como pré-
aristotélico, e Diels e a historiografia em geral, como pré-socrático.
Na primeira proposição do Dito de Anaximandro aparece uma referência a
(génesis) e (phthorá). Estas duas palavras ainda não têm, aqui, o sentido
terminológico que terá em Platão e Aristóteles: como geração e corrupção, surgimento
e perecimento das coisas materiais. O seu sentido, ao que parece, precisa ser
compreendido a partir da experiência grega do ser da verdade enquanto verdade do ser.
No texto anterior entendemos a experiência grega da verdade como: “os espetáculos
dado dados nas realizações pela retirada de retração da realidade” (E. Carneiro Leão). O
Dito de Anaximandro acenaria para o seguinte: “De onde pro-vêm as realizações, re-
tornam também as des-realizações”. O surgir do real na proveniência das realizações e
o desaparecer do real no retornar das desrealizações têm uma mesma origem e o
mesmo destino: “a retirada de retração da realidade”. Pensar é questionar o sentido do
ser. Questionar o sentido do ser é seguir o rumo de seu dar-se oblíquo, indireto, sub-
reptício. É ser atraído pela tração desta retração da realidade em retirada. Esta retração
da realidade em retirada é o que chamamos, anteriormente, de mistério de ser. Não são
só os espetáculos das realizações que provocam o thaumadzein, o espanto primigênio,
do qual provém e no qual se sustenta o filosofar, segundo Platão e Aristóteles. É
sobretudo o mostrar-se do escondimento, a doação da retirada, da subtração, do
mistério enquanto mistério. Pensar não é se complicar com a complexidade dos
problemas do conhecimento, pensar é implicar com a simplicidade do mistério do ser.
No dizer de Heidegger: “O simples guarda na verdade o enigma do que permanece e é
grande. De chofre surge inesperado entre os homens e, não obstante, necessita crescer
e amadurecer durante longo tempo. No invisível do que é sempre o Mesmo, protege
seus dons”. O nosso maior desafio é aprender a paciência de pensar este simples, que é
sempre o Mesmo. O simples é silencioso. O simples é o silêncio. O silêncio é a linguagem
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originária do mistério de ser. Talvez o muito ruído do mundo em que vivemos nos
impeça de escutar este silêncio. Pois este ruído nos dispersa. Então, o que acontece?
E assim o homem se dissipa e erra sem caminho.
Para o dissipado o Simples parece uniforme. O uniforme
causa tédio e náusea. Os entediados pela náusea só acham
monotonia à sua volta. O simples já se retirou. Sua força
silenciosa sucumbiu (Heidegger: o caminho do campo).
Tentamos pensar (génesis) e (phthorá) a partir do sentido, isto
é, da verdade do ser, e esta, por sua vez, a ambivalência do mistério de ser, que é, ao
mesmo tempo, (alétheia), desencobrimento, doação, e (léthe),
encobrimento, retração, subtração. Esta retração é o próprio viger do mistério da
origem. Origem não é começo. O começo é apenas a alavanca, com que um processo se
ergue; o impulso, com que algo se põe a deslanchar. O começo, mal começou, já está
superado, e desaparece do processo. Origem é o que já sempre foi e o que já sempre
está por vir. De onde tudo (todo o real e todas as realizações) surge e para onde tudo
(todo o real e todas as desrealizações) retorna. A origem é aquilo, a partir donde tudo
brota, cresce e se consuma, nas suas realizações. A origem é aquilo, para onde tudo
retorna, nas desrealizações. A origem, porém, é aquele passado mais arcaico, mais
antigo, imemorial, e, por isto mesmo, o futuro mais longínquo, o porvir mais extremo, o
que, por excelência, está sempre por vir. Origem é algo assim como fonte. A fonte se
nega a si mesma, para deixar ser o manancial que dela emana. No dizer cantante do
poeta Hölderlin, que mais a fundo pensou a experiência da grecidade: “Um enigma é o
que puro jorrou. Mesmo o canto (do poeta) quase não pode desvelá-lo” 1.
Chegando a este momento de nossa meditação escutemos de novo o Dito de
Anaximandro, desta vez numa tradução mais à letra:
Mas aquilo a partir do qual se dá, para as coisas, o
surgir, também é aquilo a partir do qual surge, para este
surgir, o desaparecer, segundo o necessário; elas pagam,
1 Hölderlin...
11
nomeadamente, justiça e penitência umas às outras pela
injustiça, segundo a ordem do tempo.
O mistério de ser, a origem, é aquilo a partir do qual se dá, para os sendos (o
ente como tal e no seu todo), o surgir. Mas é também “aquilo a partir do qual surge,
para este surgir, o desaparecer”. Da origem surge o surgimento. Mas, da origem surge
também o desaparecimento do surgimento. O surgimento do surgimento é o momento
(alétheia), desencobrimento ou desesquecimento, do mistério. O surgimento
do desaparecimento do surgimento é o momento (léthe), encobrimento ou
esquecimento, do mistério.
Na meditação do pensamento de Heidegger, esta origem, o mistério do ser, “a
retração da realidade em retirada”, nas palavras de Carneiro Leão, constitui o princípio
(não o começo) da história do pensamento ocidental. Anaximandro é o pensador em
cujo pensamento este princípio vem à fala. O seu Dito fala deste princípio, a saber, a
retração, a subtração, do ser que se dá como o viger da vigência do vigente, quer dizer,
como a entidade do ente: “O ser subtrai-se na medida em que se desencobre no ente”.
A claridade diurna do ente e da sua entidade (ser do ente), predominante na história do
pensamento ocidental, encobre a luz noturna do mistério do ser, apenas insinuada na
origem do pensamento ocidental, com Anaximandro. O ser se retrai na sua diferença
abissal, doando-se como o ser do ente, como a entidade sua, diversamente configurada:
como ousia (idea e enérgeia), como actualitas (essentia e existentia), como efetividade
(subjetividade e objetividade), como funcionalidade (ciência = a verdade do conhecer; e
técnica = a verdade do fazer).
De que fala o dito de Anaximandro? Numa terceira aproximação, podemos dizer
o seguinte: o Dito de Anaximandro não estará falando da origem de (génesis)
e (phthorá): do surgir das coisas (o provir das realizações), por um lado, e do
surgir do desaparecer das coisas (o retornar das desrealizações), por outro lado. O
mesmo é a origem tanto de (génesis) quanto de (phthorá). Nós, de
modo tateante, hesitante, chamamos a este Mesmo de mistério do ser. Os dois
momentos deste mesmo são (alétheia), desencobrimento, doação, e
(léthe), encobrimento, retração, subtração: dia e noite, presença e ausência,
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patência e latência, ser e não-ser. Escutemos de novo a tradução à letra da primeira
parte do Dito de Anaximandro:
Mas aquilo a partir do qual se dá, para as coisas, o
surgir, também é aquilo a partir do qual surge, para este
surgir, o desaparecer, segundo o necessário.
Parece, pois, que o dito de Anaximandro está falando do Mesmo – da Identidade
– que se dá a todos os entes. Este Mesmo seria o tema do pensamento de Anaximandro,
de Parmênides e de Heráclito. Nas palavras de Carneiro Leão:
Nos albores do Pensamento Ocidental, Heráclito de
Éfeso (540-480 a.C.), pensava a identidade, ora como
pólemos, “combate de opostos”, ora como logos, “união de
contrários”. Assim, o frag 53 (DK,I p.) diz que pólemos, “o
combate dos opostos”, é pai (patér) e senhor (basileus) de
todas as coisas (pántōn) e o frag. 50 insiste que ouk emou
akoúsantes, “não tendo escutado a mim”, allà tou lógou,
“mas ao Logos”, “reunião de contrários”, sofón estin, “é
sábio”, omologein, “dizer como diz o Logos”, hèn pánta
einai, que “tudo é um”.
E não apenas para Heráclito, mas para todos os
pensadores originários dos Gregos, Heráclito, Anaximandro
e Parmênides, a identidade é sempre, em qualquer ser,
dinâmica da integração da igualdade e diferença. Basta ter o
pensamento nos ouvidos para escutar, na Sentença de
Anaximandro, a identidade em tò Chreón, “a mão do
destino, que leva os seres a prestarem (didónai) uns aos
outros (allélois) pela desconsideração (tes adikías) expiação
(tísin) e consideração (díkes) de acordo com a propiciação
(taksin) do tempo real (tou Chrónou). (DK, I, 231)
Para Parmênides, a identidade vive na e da per-
tinência recíproca (tò gar autó) de “saber e ser”, noein te kaì
einai. Todas as experiências destes pensadores originários
recolhiam na identidade a dinâmica de ser e não ser de tudo
13
que é e está sendo, de tudo que não é nem está sendo, de
tudo que está vindo ou deixando de ser e não ser.
Anaximandro vê, assim, esse Mesmo, o mistério de ser, na necessidade:
katà tò chreôn – “segundo o necessário”.
Pode ser que este Mesmo, a identidade da diferença de (génesis) e
(phthorá), seja nomeado com esta expressão: katà tò chreôn
– segundo o necessário. Já comentamos a primeira parte do Dito, menos a expressão
Katà tò chreón – normalmente traduzida com “segundo a
necessidade”. Voltaremos a esta expressão depois de interpretarmos a segunda parte
do Dito. A segunda proposição é:
Didònai gàr autà díken kaì tísin allélois
Tes adikías
Katà tou chrónou táxin.
Numa tradução imediata, à letra, sem aprofundamento nas significações mais
originárias das palavras e em seus sentidos, a proposição soa assim: “elas pagam,
nomeadamente, justiça e penitência umas às outras pela injustiça, segundo a ordem do
tempo”. Em vez, porém, de transpor a sentença grega para a familiaridade de nosso
modo de pensar usual e tradicional, vamos tentar nos transpor a nós mesmos para a
estranheza da sentença e para o sentido de pensamento, isto é, o rumo para o qual ela
aponta, à medida que meditarmos sobre ela.
Há pouco chegamos à seguinte suspeita: o que está em causa no Dito, é a
identidade da diferença de (génesis) e (phthorá), isto é, do surgir das
coisas (o provir das realizações), por um lado, e do surgir do desaparecer das coisas (o
retornar das desrealizações), por outro lado. O mesmo é a origem tanto de
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(génesis) quanto de (phthorá). Esse mesmo, ao que nos parece, é a
(physis: o surgir), a retração da realidade em retirada, que se dá tanto como
surgimento do surgimento, das realizações, quanto como surgimento do
desaparecimento, das desrealizações. Os dois momentos deste mesmo são, pois,
(alétheia), desencobrimento, doação, e (léthe), encobrimento, retração,
subtração: dia e noite, presença e ausência, patência e latência, ser e não-ser.
A esse mesmo (idem) nós, de modo tateante, hesitante, chamamos de “mistério
do ser” ou “Identidade”. No entanto, esta Identidade não exclui a diferença. Pelo
contrário, ela a promove. Com a expressão “mistério do ser” estamos nos referindo à
imanência transcendente do ser em relação ao ente. Imanência, como identidade,
enquanto ser é o ente, no sentido de deixar-ser o ente, e, no sentido de desencobrir-se
no ente, como ser do ente. Transcendência, no sentido da diferença abissal, segundo a
qual, o ser não é o ente, e, neste sentido, vige como vigência do nada, como “retração
da realidade em retirada”. Ser é tanto é tanto o aparecer do aparecer quanto o aparecer
do desaparecer. É tanto o brilho solar-meridiano, apolíneo, do meio-dia, quando o sol
alcança o zênite, e em cuja luz aparecem todas as coisas na sua presença; como é o
brilho noturno, lunar ou estelar, hermético, que recolhe e encobre todas as coisas na
sua não-diferença. Esse nada, que é não-ser não como privação ou negação do ser, mas
como transcendência do ente, portanto, um nada cuja niilidade é criativa, por deixar
viger tanto as realizações (- génesis) quanto as desrealizações (-
phthorá) é a pérola-cor-da-noite do Imperador Amarelo, na estória oriental de Chuang-
Tzu.
15
No tempo de mando, desmando e comando da
China Imperial, um Imperador Amarelo não possuía a pérola
cor da noite. Mandou, então, a ciência pesquisar. Mas
debalde a ciência não encontrou a pérola cor da noite. O
Imperador mandou a técnica inventar. Mas a técnica
também não encontrou a pérola cor da noite. O Imperador
mandou a análise calcular. Mas em vão, a análise não
encontrou a pérola cor da noite. O Imperador mandou a
filosofia investigar. Mas, sem sucesso, também a filosofia
não encontrou a pérola cor da noite. O Imperador mandou a
arte criar. Mas outro fracasso, a arte não achou a pérola cor
da noite. O Imperador achou tudo muito estranho e ficou
ainda mais abismado quando, com o tempo, descobriu que
o nada que não fora enviado, que não pesquisa, que não
inventa, que não calcula, que não investiga, que não cria
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nada é a pérola cor da noite. Desde então, o Imperador
Amarelo deixou de somente mandar, de somente
desmandar, de somente comandar os chineses, para poder
no e com o nada ser também a pérola cor da noite2 (Leão,
2013, p. 212).
A história do pensamento ocidental, como o Imperador Amarelo, se dá a partir
da errância do esquecimento desse nada criativo. A isso podemos chamar de niilismo.
O niilismo do pensamento ocidental baseia-se, não na recordação, mas no
esquecimento do nada. Somente por ter se dado na errância deste esquecimento é que
o ser, por último, nada mais é, isto é, perdeu mais e mais a sua vigência, reduzindo-se a
um “vapor”, uma palavra sem sentido. Todo o pensamento que guardou, de alguma
maneira, a memória do ser enquanto nada, ficou à margem, ficou apócrifo, a começar
do pensamento dos pensadores da origem: Anaximandro, Heráclito, Parmênides.
Vamos tentar, agora, enfrentar a segunda proposição do Dito de Anaximandro.
Ela fala de (dike) e de (adikía), que, de costume, se traduz,
respectivamente, por “justiça” e “injustiça”. É preciso cuidar, no entanto, para não
entender “justiça” nem em sentido moral, no sentido de uma virtude, como a
(dikaiosyne) de Platão (República) e Aristóteles (Ética a Nicômaco), muito
menos em sentido jurídico. Extravio seria também a interpretação de Teofrasto,
segundo o qual o Dito, na primeira parte, falaria “fisicamente” do surgir e do perecer
das coisas materiais, e, na segunda parte, falaria “poeticamente”, isto é,
figurativamente, metaforicamente, deste mesmo surgir e perecer das coisas materiais.
Pior ainda seria atribuir uma espécie de antropomorfismo às coisas materiais e aos seus
processos físicos, como tendem a interpretar aqueles que seguem o extravio de
Teofrasto. Se tudo isso é um extravio, então, como ter acesso a uma compreensão de
(dike) que fosse mais em consonância com a primeira parte do Dito, no sentido
como nós a interpretamos antes?
2 Apud Leão, Emmanuel Carneiro. Filosofia contemporânea. Teresópolis: Daimon, 2013, p. 212. Cfr. a versão de Merton, Thomas. A via de Chuang-Tzu. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 118.
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Há uma outra forma de pensamento na grecidade arcaica que está muito
próximo ainda do pensamento dos primeiros pensadores, como Anaximandro. É o mito.
O mito falava da deusa Dike, a “Justiça”. Era filha de Zeus e de Themis.
Zeus é πατὴρ ἀνδρῶν τε θεῶν τε, patēr andrōn te theōn te – pai dos homens e
dos deuses. De Zeus, Heráclito diz: “Um (hen), o único sábio (tó sophón), não se dispõe
e se dispõe a ser chamado com o nome de Zeus” (fragmento 32). Zeus é o senhor do
raio, ou melhor, o raio como senhor. Em Heráclito, o raio é origem, no sentido de arché:
a proveniência essencial de todas as coisas e, ao mesmo tempo, o que tudo governa.
Um fragmento de Heráclito (64) diz: “o raio conduz todas as coisas que são” (tàde panta
oiakídzei keraunós) – Isto é: o raio conduz o ente em sua totalidade. O raio, portanto,
evocaria o viger do ser dando-se e retraindo-se em todo o ente. O raio é o fogo do céu.
Outro fragmento (66) diz: “pánta tò pyr epelton krínei kaì katalépsetai” – “o fogo,
sobrevindo, há de distinguir e reunir todas as coisas”. Dito de outro modo: “O fogo,
sempre em advento, haverá de (numa junção) desprender e suspender tudo”. O vigor
ou o viger do ser, enquanto origem, arché, que, advindo, reina na vigência de todo o
vigente, deixando vir à presença todo o presente, que se distingue, e, ao mesmo tempo,
recolhendo tudo de volta na ausência, no encobrimento, se revela como fogo. O fogo é
aquilo que clareia, que ilumina e que queima. O fogo traz vida e morte. O fogo é luz. A
essência da luz, segundo Heidegger, “é a claridade sem a qual nada aparece, sem a qual
nada pode sair do encobrimento para o desencobrimento”. Para o pensamento de
Heráclito, o fogo é o que chameja e neste chamuscar é quando ocorre a cisão entre o
claro e o obscuro. No ato do chamuscar ocorre “o que o olhar apreende num piscar de
olhos, o instantâneo, o único, que cindindo e decidindo rescinde união do claro com o
obscuro”.
Themis é, por sua vez, uma titânide, filha de Urano e Gaia (Céu e Terra), os pais
primordiais, o princípio dual, que está na origem de tudo. Themis é a que põe e institui
as leis eternas dos deuses. De fato, o seu nome tem a ver com o verbo títhemi: pôr,
colocar. Por isso, ela era a conselheira de Zeus e tinha a autoridade de reunir e dissolver
as assembleias dos deuses e dos homens. Themis gerou com Zeus as Moiras, deusas do
Destino. Destino é entendido, aqui, como destinação, envio. É o poder de realização do
historiar-se do sendo como um todo, e da existência humana, especificamente. Ser vige
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como o destino dos entes. Moira é outro nome para o mistério de ser, em Parmênides.
O nome “Moira” remete ao verbo medial meiromai: dividir, repartir. “Moira” significa,
com efeito, a parte que toca, a porção que é assinalada, reservada e destinada, a cada
ente, também a cada homem, no todo do ente. Daí: destino. No mito, a ideia de Moira
(Destino) e a de Nómos (Lei) estão em consonância. Na concepção mítica, com efeito,
lei é uma destinação. De fato, o nome Nómos vem do verbo Nemo, que tem vários
significados: distribuir o alimento; dar a cada um o que lhe pertence; destinar a cada um
o seu lugar na Terra; habitar de maneira ajustada a Terra; saber administrar o mundo;
cuidar da casa; reger os usos e costumes; regular a convivência. A respeito do sentido
grego de nómos e némein, diz Heidegger:
O nómos não é apenas a lei, porém, mais
originariamente, a recomendação protegida pelo destinar-se
do Ser. Só esta recomendação pode dispor o homem para o
Ser. E somente essa disposição pode trazer e instaurar
obrigações. Do contrário, toda lei permanecerá apenas um
produto (das Gemächte) da razão humana. Mais essencial
para o homem do que todo e qualquer estabelecimento de
regras é encontrar um caminho para a morada na Verdade
do Ser. Pois é essa morada que assegura a experiência do
que propicia amparo e sustento. “Apoio” (Halt) significa, em
alemão, o “amparo”, “a guarda”. O Ser é a guarda que
resguarda o homem, em sua essência ec-sistente, para a
Verdade do Ser, a ponto de fazer a ec-sistência habitar
(behausen) na linguagem. Por isso a linguagem é
conjuntamente (zumal) a casa do Ser e a habitação da
essência do homem. E só por ser a linguagem a habitação da
essência do homem é que as comunidades históricas dos
homens podem não habitar na sua linguagem, a ponto de a
linguagem se tornar para eles um recipiente (Gehäuse) de
seus afazeres (Carta sobre o humanismo, 1967, p. 94-95).
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Projetando uma interpretação da segunda proposição do Dito de Anaximandro,
numa formulação provisória, que poderá ser corrigida mais adiante, podemos dizer:
cada coisa, que vem à luz, surge à medida que ocupa o lugar-tempo que lhe é destinado
pelo mistério do Ser. E cada coisa está relacionada com todas as outras coisas, num
ajuste bem articulado. Essa justeza rege, pois, o relacionamento das coisas no todo: suas
correspondências, seu dar e receber. O Dito diz que os sendos, “as coisas”, concedem
justiça umas às outras. Justiça significa, neste sentido, o que é devido segundo a justeza
do todo, ou seja, o que as coisas devem umas às outras, devido ao íntimo pertencimento
que as liga. Quem rege, porém, os movimentos de surgimento e desaparecimento,
nascimento e morte, segundo os ditames da justeza, é o tempo. O tempo, de fato,
instaura e revela os ditames da justeza, as determinações do destino (Moira), as suas
concessões e consignações. Ele rege, portanto, tudo quanto acontece, tudo quanto vem
à presença e desaparece na ausência, ou seja, tudo que surge do abismo e tudo que
retorna ao abismo do mistério do Ser.
Traduzimos por “Justiça” o nome Dike. Aqui, porém, não se há de entender a
Justiça como virtude moral, muito menos no sentido jurídico. Ouçamos esta advertência
de Heidegger:
Traduzida por “Justiça” e entendida essa no sentido
jurídico e moral, a palavra dike perde todo o seu conteúdo
metafísico fundamental. O mesmo vale da interpretação da
dike como norma. Em todos os domínios e poderes, o vigor
que se impõe e subjuga, é conjuntura. O Ser, a physis, como
vigor imperante, é unidade originária de reunião, lógos, é
conjuntura dispositiva, dike (Introdução à metafísica, 1987,
p. 182).
Dike, aqui, em Anaximandro é, pois, o mesmo que lógos em Heráclito. O “Um:
Tudo” (Hen: Panta). A reunião que tudo reúne. A conjuntura de todas as coisas. A
conjuntura que tudo dispõe e articula, que rege toda articulação e estruturação dos
sendos no Ser. Dike é, aqui, a justeza desta articulação e estruturação, da conjuntura
essencial e originária. Dike significa a articulação íntima de todas as coisas, enquanto
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pertencentes, todas, nas suas realizações e desrealizações, ao Mesmo, ao mistério do
Ser. Existindo no meio do espaço aberto da liberdade, o homem precisa, no entanto,
sempre de novo encontrar a justeza na articulação íntima de todas as coisas no Ser:
medir-se com o destino.
A história, no sentido do acontecer pleno e próprio da existência humana, tem o
seu ponto de salto, a sua abertura e eclosão, no porvir, no futuro, não no passado. O
homem é essencialmente porvir, futuro. Ao assumir sua finitude, sua mortalidade, ele é
remetido de volta para o seu passado, para o fato de já existir, de ter sido lançado na
existência, de ter entrado nela não a partir de si mesmo. Assumir, desde o futuro, o
passado, no presente, é o exercício da responsabilidade de ser, que acompanha o
homem, como traço essencial de sua liberdade, a qual se dá sempre no limite do envio
do destino. O que quer dizer, pois, no Dito de Anaximandro, a expressão “segundo a
necessidade”, na primeira proposição, e, “segundo o estatuto do tempo”, na segunda
proposição? Vamos retomar isso depois. Aqui fica apenas a insinuação.
Estamos meditando acerca da “Dike”. Dike é a que mostra a justeza: a existência
“nos eixos”, ajustada, integrada em si mesma e bem encadeada não só com o real e as
suas realizações e desrealizações, mas com a realidade mesma, isto é, com a retração
da realidade em retirada. O nome “Dike” vem de “dikéin”: lançar; ou de deiknymi:
mostrar, indicar. Dike é o lance que mostra ao homem o seu lugar no mundo, o que lhe
está disposto, isto é, destinado, e a que o homem deve dispor-se, para poder viver uma
existência histórica bem articulada. Na tragédia, o tempo tem a função de revelar os
ditames de Dike.
Dike é uma moira. Seu nome traz a raiz indo-europeia dik- ou deik-, que em grego
deu deiknymi, que significa mostrar, e em latim, dicere, que significa dizer. Dike é o lance
do destino, que diz, isto é, mostra a cada ente, e também, em particular, ao homem, o
que lhe está disposto e destinado na verdade do Ser. Dike significa, então, a articulação
do todo segundo o envio, a destinação, o destino do Ser. Ser vige, pois, como o advento
permanente, que conduz o historiar-se do ente como tal e no seu todo. “Advento”
traduz a palavra grega “Parousía”, que já encontramos ao longo de nosso curso.
Anteriormente, insinuamos que a primeira parte do Dito de Anaximandro estava falando
do mistério do Ser como “Parousía” (advento). O advento permanente do Ser seria,
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então, aquele Mesmo, aquela origem, que deixa e faz surgir tanto o surgimento do que
advém à presença, quanto o surgimento do desaparecimento, do ausentar-se do ente.
Assim, tanto a parousía (advir à presença) quanto a apousía (o retornar à ausência) do
ser do sendo (ousía), se rege pela Parousía, o advento permanente, do Ser (como
mistério, isto é, identidade da diferença de desencobrimento e encobrimento). A
propósito disso, diz Heidegger:
Transformar em linguagem cada vez esse ad-vento
permanente do Ser que, em sua permanência, espera pelo
homem, é a única causa (Sache) do pensamento. É por isso
que os pensadores essenciais dizem sempre o mesmo (das
Selbe); isso, no entanto, não significa que digam sempre
coisas iguais (das Gleiche). Sem dúvida, eles só o dizem a
quem se empenha em re-pensá-los. Enquanto o
pensamento, re-memorando historicamente, preza o
destino do Ser, ele já se prendeu ao destinado (das
Schickliche), que se acorda com o destino (...). Prezar o que
está destinado no dizer do pensamento, não inclui apenas,
que reflitamos cada vez sobre como e o que é para se dizer
do Ser. Igualmente essencial é pensar-se e até que ponto o
que há para pensar deve ser dito (...). Na atual indigência do
mundo o que se faz necessário é menos filosofia e mais
cuidado em pensar; menos literatura e mais cultivo das
letras (Carta sobre o Humanismo, 1967, p. 98-99).
Filosofia é o empenho de aprender a pensar. Um dos modos de aprender a
pensar é medir-se com o pensamento dos pensadores, isto é, daqueles homens cuja
existência, no essencial de sua vigência, se deixa resumir em três verbos: nascer, pensar,
morrer. Um pensador é um homem que simplesmente nasceu, pensou e morreu. Talvez
possamos dizer: um homem que nasceu e morreu a cada dia, dedicado à arte e ao ofício
de pensar, sempre de novo e sempre de modo novo, criativo, libertador. Em sentido
lato, pensador é todo homem. O pensar não só incide sobre o seu próprio ser, mas
também, e sobretudo, coincide com ele. Pensar não é uma possibilidade que o homem
tem, mas uma possibilidade que tem o homem, à qual o homem pertence, e à qual ele
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responde e corresponde, em sendo homem, de um modo ou de outro, afinando-se ou
desafinando-se com ela, nos envios e desvios de suas destinações, de sua história.
Pensador essencial é aquele que pensa provocado pela única coisa a se pensar, a saber,
aquilo que, originariamente, requer o pensamento a ser pensamento. Trata-se daquilo
a que acena, a nosso ver, o Dito de Anaximandro e que nós, pobremente, chamamos de
“mistério do ser”. Ser homem é já sempre estar nesta correspondência ao apelo e à
provocação do mistério de ser. No entanto, em sentido estrito, pensador essencial é
aquele homem que toma esta condição constitutiva do humano como a tarefa de sua
vida, correspondente ao apelo do mistério do ser. Numa sentença de Periandro, um dos
antigos sete sábios dos gregos, este apelo aparece com o seguinte dizer: “meléta tó
pan!” – “cuida do Todo”!
Aprende-se a pensar medindo-se com o pensamento dos pensadores. Este
medir-se impõe o exercício de explicar um pensamento e de explicar-se com ele.
“Explicar um pensamento” é pôr-se a caminho com ele, e, no caminho, aprender como
ele corresponde ao mistério de ser, ao seu apelo e provocação, ou seja, como ele está
implicado com o real, aplicado às realizações, complicado com a realidade. Por outro
lado, “explicar-se com um pensamento” quer dizer, aqui, confrontar-se com ele,
receptivo ao seu pensado e ao seu não pensado, ao seu dito e ao seu não dito, para abrir
novos caminhos de pensamento, caminhos que tocam a cada aprendiz encontrar,
caminhos que só podem ser os seus. Explicar-se com um pensamento significa encontrar
tais caminhos, e, na realização atual da responsabilidade de ser, retomar, com gratidão,
a vigência do passado, e, na espera do inesperado, responder aos apelos do porvir,
deixando-se tornar, portanto, um homem “porvindouro”.
Explicar um pensamento e explicar-se com um pensamento, importa algo mais
do que nomear e elucidar o seu tema central, investigar e expor a sua questão nuclear,
nas suas retomadas ao longo de um caminho de meditação. Requer fazer a experiência
do que, anterior a todo o discurso e tematização, se dá numa doação primigênia, e, ao
mesmo tempo, se retrai, como um “Nada”. Significa, pois, na receptividade do
pensamento, auscultar o silêncio do sentido do ser, da realidade em retirada. Quer dizer
fazer a experiência de que esta retração e retirada, esta fuga, doa a abertura para as
realizações do real. É justamente esta retração que atrai o pensamento, pondo-o, cada
23
vez, a caminho. Aprender a pensar requer escutar a palavra do princípio. O princípio é o
que deixa e faz começar, o que rege e governa, o que leva a consumar. O princípio de
um caminho de pensamento não é um axioma, uma tese, uma ideia. O princípio é o que
não está dito, mas o que o pensador sempre de novo tenta dizer, o que não está
pensado, mas que o pensador, sempre de novo tenta pensar. O princípio é o que se
retrai e, no retraimento, atrai, e, atraindo, provoca o pensamento a pensar. O princípio
se dá apenas sub-reptícia, furtivamente, como o silêncio do sentido, nos discursos das
realizações. É o que nos recorda Carneiro Leão, ao dar a seguinte dica:
A arte de pensar é dada por um modo extraordinário
de sentir e escutar o silêncio do sentido, nos discursos das
realizações. No pensamento não somos apenas enviados a
remissões e referências. Não está na semântica ou na sintaxe
a originariedade do pensamento. Uma paixão mais originária
do que toda semântica ou qualquer sintaxe, a paixão do
sentido, toma posse de nosso ser e nos faz viajar por dentro
do próprio movimento de referir, de remeter, de enviar3.
Se nos dispomos a esta experiência de pensamento, começamos, então, a ouvir
uma espécie de “Toccata e Fuga” do pensamento. De repente, a filosofia, a arte de
pensar, se torna música! O pensamento se torna uma espécie de “Arte da Fuga”. O
pensamento se torna, então, entoação de um tom e a sua escuta (Stimmung): a
percussão e repercussão do mistério de ser, que deixa viger o ente e a sua entidade,
vigendo, ele mesmo, simultaneamente, como doação e retirada. Nesta experiência
somos conduzidos, então, pela tonância do mistério de ser e suas estruturações
(Fügungen). Dike pode significar articulação, estruturação. Em cada estruturação
(Fügung), esta tonância é re-petida, isto é, re-tomada, cada vez numa diversa cadência,
e cada vez num diverso grau na escala da sua repercussão. Em cada momento, se dá o
desafio do contraponto de duas vozes: a do mistério de ser e a do homem, desafiado à
escuta do seu silêncio e à correspondência de seu apelo.
3 Leão, Emmanuel Carneiro. Posfácio. In: Heidegger, Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 551.
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Na composição do pensamento expõe-se a tonância do mistério de ser (das
Seyn), como “parusia”. Para dizer o advento permanente do Ser, a sua Parousía,
Heidegger usou a palavra alemã Ereignis. Traduz-se usualmente “Ereignis” por “evento”.
Mas evento aqui não este ou aquele acontecimento da história. É a própria abertura da
história, como irrupção de destinações do ente no seu todo, fundação da existência
humana em sua historicidade, inauguração de mundos históricos, enfim, abertura, em
que se dá e aparecem os envios das realizações do real. O ser-pensar como “parusia”
não tem história, é história. Seguir as estruturações da tonância do mistério de ser é,
pois, tornar-se histórico, na e com a história do Ser (o que se dá com seu advento
permanente). A parusia (Ereignis) vige e se essencializa (west) como a originária (Er-)
manifestação e auto-mostração (-äugnis) do mistério de ser, como mistério, isto é, como
abertura que deixa e faz pressentir o encobrimento, o velamento, a oclusão, a fuga, a
retirada, no dar-se da vigência do presente, que recolhe e acolhe em si, a vigência
retraída do passado e do futuro. Parusia (Ereignis) vige, pois, como a mira originária (Ur-
äugnis), que deixa e faz aparecer, na coincidência de ser e pensar, a aberta, a clareira
(Lichtung) da presença humana enquanto lugar de revelação do mistério do ser e da sua
proximidade (Da-sein), e que, assim, deixa e faz o homem morar na verdade de ser,
entre desencobrimento (mundo) e encobrimento (terra). É o mistério de ser que nos fita
do fundo de tudo o que emerge e se mostra e do fundo de nós mesmos, isto é, do
humano em nós.
O Dito de Anaximandro não estará falando da origem de (génesis) e
(phthorá): do surgir das coisas (o provir das realizações), por um lado, e do surgir
do desaparecer das coisas (o retornar das desrealizações), por outro lado. O mesmo é a
origem tanto de (génesis) quanto de (phthorá). Nós, de modo tateante,
hesitante, chamamos a este Mesmo de mistério do ser. Os dois momentos deste mesmo
são (alétheia), desencobrimento, doação, e (léthe), encobrimento,
retração, subtração: dia e noite, presença e ausência, patência e latência, ser e não-ser.
Escutemos de novo a tradução à letra da primeira parte do Dito de Anaximandro:
Mas aquilo a partir do qual se dá, para as coisas, o
surgir, também é aquilo a partir do qual surge, para este
surgir, o desaparecer, segundo o necessário.
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Uma parte, porém, desta primeira proposição do Dito de Anaximandro, ficou
sem comentário. Esta parte diz:
katà tò chreôn – “segundo o necessário”.
Pode ser que este Mesmo, a identidade da diferença de (génesis) e
(phthorá), seja nomeado com esta expressão: katà tò chreôn
– segundo o necessário.
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