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ANGÚSTIA E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO
Admardo B. Gomes Júnior1
CEFET-MG
admardo.jr@gmail.com
GT7: TRABALHO, FLEXIBILIZAÇÃO E PRECARIZAÇÃO
RESUMO
Partimos de um caso clínico de uma trabalhadora de um centro de chamadas telefônicas, que
apresenta sintomas com o trabalho, para demonstrar como a angústia apresentada é, em última
instância, o fracasso do desejo pelo trabalho. Uma resposta à inconsistência/inexistência de
um suposto saber atribuído ao ofício e ao trabalhador. A suposição de saber no outro, que
ordena as ficções simbólicas pela via do reconhecimento, parecem ruir frente à inconsistência
do Outro do trabalho. O que vemos aparecer é uma resposta num nível de causalidade
material direta que conduz o indivíduo à uma “cultura da queixa” sob a lógica do
ressentimento. O desafio do percurso que aqui nos propomos percorrer é o de empreender
nossas análises sob o caso clínico no fio da navalha entre a constatação da realidade social e o
gozo de uma posição subjetiva, preservando a atividade do sujeito sob a forma de sua
responsabilização subjetiva e material.
Palavras chave: Angústia; precarização; trabalho; psicanálise.
INTRODUÇÃO
Neste artigo, ao nos perguntarmos sobre o contexto social das manifestações
contemporâneas das mais variadas formas de transtornos de ansiedade em sua relação com o
trabalho (Síndrome do Pânico, Fobia Específica, Fobia Social, Estresse Pós-Traumático,
Transtorno Obsessivo-Compulsivo e Distúrbio de Ansiedade Generalizada) optamos por
tomar, com a psicanálise, o afeto de base que sempre se encontra nestes e outros transtornos: a
angústia.
1 Pós-doutorado em Política, Trabalho e Formação Humana - Fae/UFMG. Doutor em Filosofia pela Aix-
Marseille Université e em Educação pela FaE/UFMG. Professor do programa de pós-graduação em
administração do CEFET-MG.
Na tradição do texto de Freud de 1926 “Inibição, sintoma e angústia”, compreendemos
que ela é um sinal com o qual o eu (moi) se adverte do perigo que vem do isso (ça). É a
incompatibilidade da satisfação pulsional com a ameaça de castração que produz a angústia.
Já Lacan, em seu seminário proferido entre 1962 e 1963, intitulado “A angústia”, em sua
empreitada de mapear o solo da angústia, entre outras nuances estabelece relações entre as
estruturas da angústia e da fantasia em sua relação com o desejo do Outro. Para Lacan a
angústia nos é apresentada como signo do desejo, isso que não se engana, ponto de deiscência
entre o desejo e o gozo na relação imaginária com o desejo do Outro. Daí a proximidade de
sua estrutura com a fantasia. A angústia revestida da fantasia encena suas relações com o
desejo do “Outro”. E o que é este grande Outro? A resposta conduz-nos ao campo da ordem
simbólica.
Para a psicanálise o Outro não existe. Não existe uma ordem simbólica universal que
nos sirva de referência. O que temos é o inconsciente, com sua estrutura de linguagem, e a lei
que conta é a do desejo. Mas isso só complicam os fatos, pois não deixamos de criar com a
linguagem ficções que encenem “tal ordem”, que nos ajudem a orientarmo-nos. No mundo da
tradição, a família, a natureza e religião serviram de referência e ainda serve para alguns,
mesmo que hoje de forma um tanto precária, pois na modernidade estas referências perderam
parte de sua consistência. Hoje, reconhecemos novos vetores como o consumismo, o
hedonismo, o individualismo, orientando (ou desorientando / desbussolando) as escolhas dos
sujeitos.
Nesta perspectiva, é preciso então nos colocarmos a questão: qual é afinal a ordem
simbólica que marca o Grande Outro no campo do trabalho? Como esta marca tem se
manifestado na fantasia daqueles que relatam suas ansiedades a um psicanalista? Que relações
podemos estabelecer entre os sintomas atuais e o mundo contemporâneo do trabalho?
1. O CASO DE APARECIDA: UMA FANTASIA ORIGINAL2
Aparecida procura o departamento de saúde de seu sindicato com queixa de
irritabilidade, insônia e sensação de trabalhar durante o sono. Não consegue sair sozinha, tem
ficado perdida e confundindo-se ao falar, alterando o que queria dizer inicialmente. Faz
tratamento psiquiátrico e usa antidepressivos. Trabalhava há um ano e 8 meses como
2 O caso apresentado a seguir foi atendido pelo pesquisador no departamento de saúde do Sinttel-MG. Omitimos
a data, o nome da empresa em questão e alteramos o nome da paciente para preservar-lhes o anonimato.
teleatendente de um grande centro de chamadas, tendo trabalhado cinco anos, anteriormente,
como telefonista, escolhas profissionais marcadas pelo uso da voz. Com apenas três meses de
trabalho na última empresa, apresentou uma disfonia funcional.
Queixa-se de muita cobrança de metas no trabalho e da sensação constante de “voltar
pra trás”. Diz: “antes era telefonista, fui treinada para ser gentil e atender bem ao cliente; hoje,
como teleatendente, fico correndo atrás do TMA (tempo médio de atendimento), numa meta
que chega a 272 ligações em seis horas”. Relata que sempre se cobrou bater as metas e estar
entre os primeiros lugares, o que não conseguia nunca.
Uma semana antes de procurar atendimento, ao regressar de suas férias, foi
surpreendida com sua demissão. Na fala de sua supervisora, não estava mais dando lucro para
a empresa. É essa fala que Aparecida diz não conseguir retirar da cabeça, “por ter ficado
marcado demais”. Sobre a supervisora, diz: “ela me voltou para trás, eu chorava de vergonha,
era como estar na quarta série e te voltarem para trás [...] Ela disse que eu estava dando
prejuízo, eu me senti uma inútil”. O sentimento é reforçado pela reação familiar: “até a minha
irmã falou para a minha mãe que eu não sabia fazer o serviço e, por isso, fui mandada
embora”. Aparecida afirma: “Eu valorizei demais e fui desvalorizada”.
Apresenta-se muito colada às queixas sobre o trabalho, e aspectos de sua história de
vida só aparecem após uma intervenção: quando repete que “voltou para trás” e que quer
provar para si mesma que é capaz, ressalto que ela sempre traz muito sofrimento quanto a esse
“voltar para trás” – a que isso remeteria? Ela responde: “voltar para a mãe, para o que perdi”.
Aparecida é a filha caçula de uma família de seis filhos. Viveu muito ligada aos pais
até os trinta anos de idade. Solteira, tem dois filhos, um de quatorze anos e outro de onze.
Mora com o companheiro, pai do segundo filho, que é aposentado e tem uma banca de
revistas. Vivem na casa que é dele e que ela não sente como sua. Não há mais relações
sexuais entre o casal. Recentemente, ele tem cobrado dela uma contribuição financeira, o que
a faz sentir como uma despesa. Sobre o companheiro, diz: “o que passa em mim falta nele, eu
tenho que amar o amor meu e o do pai”, dizendo que é só ela quem dá carinho e dedicação
aos filhos e que, nisso, ele não contribui em nada. Não há conversa, como não havia na casa
dos pais: vive de novo com o companheiro o que viveu com o pai – ambos, inclusive,
chamam-se José.
Quis ser freira, mas foi desaconselhada pela madre superiora, pois era muito ligada aos
pais e não suportaria a clausura. Deseja então ser mãe e professora. Como mãe, mostra-se de
tal forma colada aos filhos que, sobre o caçula, chega a afirmar: “ele é eu”. Um filho caçula
como ela, de quem foi a voz até aos quatro anos de idade, quando ele começa a falar.
Aparecida sempre conviveu com pessoas mais velhas – seu companheiro também é
bem mais velho que ela. A saída da casa dos pais só se dá quando engravida de um homem
mais velho e casado, com quem os pais não admitiam que ela se relacionasse. Diz amar ainda
essa pessoa, que nunca assumiu a relação. Ao saber da gravidez, a mãe lhe disse: “ou você ou
eu dentro de casa”. Diz que o que a mãe fez foi estragar sua vida. Durante algumas sessões,
fala de seu lugar de dependente, frágil, que só tem seu amor para dar, “isso que ninguém
quer”. Relaciona esse aspecto ao trabalho: lá, o que ela tinha para dar era um bom
atendimento ao cliente, e isso não teve valor.
Em meu sexto e último contato com Aparecida, ela afirma não ter mais dinheiro para o
deslocamento até o sindicato e que não voltaria aos atendimentos. Mostra-me, bastante
envergonhada e chorando, uma foto sua fantasiada de “Supermulher Tele-x”, com crachás e
contas3 espalhadas pelo corpo, com a qual recebeu o prêmio da empresa de “fantasia original”.
Sobre a foto, diz: “olha o que eu fiz”.
Durante essa última sessão, demonstrava um misto de vergonha e pesar, o que permite
inferir que, naquele momento, ela pôde vislumbrar algo da fantasia que sustenta seu modo de
gozo, o preço da “conta a pagar” por permanecer como dependente, frágil e amorosa nos
lugares onde repete uma série de demissões: a casa dos pais ao engravidar, o pai do primeiro
filho que não a assume, o pai do caçula que parece também não a admitir como mulher. A
cena do trabalho, da demissão sem meias palavras “por não dar lucro”, atualiza a dimensão
traumática.
2. A FUNÇÃO DA SUPOSIÇÃO DE SABER NO TRABALHO
Uma leitura do Outro do trabalho, ou seja, como ordem simbólica nos ajuda a
compreender os impasses hoje de nossa singularidade. Uma das possibilidades de lermos os
traços daquilo que dá singularidade a nós, seres humanos, é entendermos a forma com a qual
opera a homologia entre o valor do trabalho e a identificação fundamental de cada sujeito.
Afirmar que o valor do trabalho e da identidade sejam homólogos é destacar que, do ponto de
vista psíquico, o valor simbólico atribuído a um ofício tem a mesma estrutura e origem de
3 Aparecida trabalhava no setor de cobrança de pagamentos atrasados, e as contas que ela pendura pelo corpo
para compor sua fantasia são contas telefônicas.
nossas construções identitárias. Não se trata porém de uma analogia, eles não tem
necessariamente a mesma função, mas necessariamente a mesma estrutura e origem. Mas,
qual?
O trabalho, assim como a identidade, marcam nossas relações com o ideal, ou seja,
com as ideias que construímos sobre nós mesmos e que nomeamos “eu”. A psicanálise nos
ensina a diferenciar dois tipos destas ideias e construções: o ideal do eu, e o eu ideal.
Para a psicanálise, o que conta é a singularidade de cada um. Esta é uma
especificidade que não permite incluí-la no conjunto das ciências, ponto que a distingue, por
exemplo, da psicologia. Porém, o próprio fato de pretender falar daquilo de singular que há
em cada um coloca problemas, pois o uso da linguagem e a pressuposição de que haja
entendimento, compartilhamento de sentido, aponta para algo comum e não singular. A
questão da identificação em psicanálise é tomada exatamente nessa contradição, ser singular
mas não sem o outro. Ou seja, o que há de mais genuíno no sujeito dividido pela linguagem é
uma falta, falta de sentido, falta de significação, algo que só se acessa pelas margens, pelo
modo singular de gozo, pelo uso que cada um faz de si com o que ele recolhe no campo do
Outro.
Com a psicanálise nos referimos ao sujeito como sujeito do inconsciente, ou seja, um
sujeito que porta certas palavras do campo do Outro e que se assentam dando lugar ao desejo.
Pois como nos afirma Doguet-Dziomba (2012), o desejo não prescinde dos processos de
identificação enquanto orientadores dos nossos modos de gozo. A identificação, para a
psicanálise, é uma operação na qual o sujeito encontra seu complemento simbólico, servindo-
se dos significante do campo do Outro. Ela é uma resposta à precariedade constitutiva do
sujeito, à sua falta-a-ser, conjugando tanto a complementaridade significante quanto a
materialidade corporal do gozo. Os destinos da identificação podem apontar para uma
orientação de realização futura, funcionando como um valor, um ideal que mantém o desejo
(ideal do eu); ou impor um valor inflexível e feroz, expondo o sujeito à precariedade e aos
abalos que o fazem sofrer e comprometem a fruição do desejo em sua vida (eu ideal).
Processos identificatórios orientados pelo “ideal do eu” ou pelo “eu ideal” indicam também
dois destinos diferentes para os modos de gozo do sujeito.
Parece-nos indiscutível o valor que o trabalho (stricto senso) ocupa na identificação.
Nosso nome próprio e a atividade que nos ocupa no cotidiano (nosso trabalho) estão sempre
em primeiro plano quando nos fazemos identificar. A identificação pelo trabalho, contudo,
não nos diz dos melhores ou piores destinos que ela pode encontrar no sujeito. A
singularidade da forma com a qual opera a homologia do valor do trabalho e da identificação
fundamental de cada ser que fala não pode ser apagada em nome de uma identificação
standard ao trabalho como algo positivo, a priori. É preciso que reconheçamos a
singularidade do valor do “saber” atrelado ao “fazer” em jogo na relação de cada sujeito com
seu ofício. O valor do saber-fazer atribuído a um trabalho impacta a economia do desejo e do
gozo daquele que o realiza.
O saber-fazer próprio a um ofício, se sustentado como ideal, deve permite ao sujeito
uma forma de portar seu modo de gozo e de incluí-lo na dimensão coletiva que o trabalho
comporta. Além disso, deve servir como suporte imaginário, nutrindo o narcisismo mais
legítimo e singular, naquilo que permite uma identificação genuína pelo saber-fazer com o
sintoma, o que amarra as dimensões real, simbólico e imaginário (GOMES JÚNIOR, 2013).
Uma satisfação narcísica que enlaça o coletivo no que permite aos sujeitos, nos ambientes de
trabalho, a promoção de uma reciprocidade dos interesses que mantêm o laço social também
sob a mediação produtiva do ponto de vista subjetivo.
Assim, trabalho e identidade terão a mesma função apenas quando o desejo mais
genuíno do sujeito puder encontrar expressão no seu saber-fazer. Ou seja, o trabalho como
expressão de um saber-fazer com o desejo. Como nos apresenta Leguil (2012), o saber que
aloca a relação entre o eu ideal e o ideal do eu é um saber suposto. Gozar de um saber nos dá
a autoridade e a possibilidade de sermos reconhecido pelo outro, nos satisfaz narcisicamente,
garantindo a reciprocidade dos interesses no laço social onde se ganha a vida. Esta relação
entre o eu ideal e o ideal do eu é uma mediação subjetiva essencial em cada um de nós, e que
nos permite lidar com um saber que vale o reconhecimento do outro, porque nos é suposto.
No trabalho, o desejo é de adquirir um saber suposto responder à promessa de poder,
de potência efetiva, logo, de gozo. É um desejo autêntico, posto que jamais acabado, pois há
sempre algo a saber. Nesse saber suposto, um mais-de-saber corresponde a um mais-de-gozar
como causa do desejo que dá o sentido ao trabalho. Mais precisamente, o mais-de-gozar
como causa do mais-de-saber sustenta o desejo, organizando a relação com o saber sob o
modo de uma suposição. Um saber é suposto ao trabalhador que o sustenta pelo
reconhecimento do outro.
3. A ANGÚSTIA E O CERNE DA PRECARIZAÇÃO SUBJETIVA DO TRABALHO
CONTEMPORÂNEO
No mundo do trabalho contemporâneo, assistimos à propagação de um ideal
organizacional cientificista que induz à crença de que o saber-fazer do trabalhador não apenas
pode, mas deve ser apreendido (e, com isso, reduzido) como somatório de competências
(comportamentais) identificáveis, quantificáveis, mensuráveis e replicáveis. Uma vez
supostamente instrumentalizado o saber-fazer, ele passa a orientar os processos de avaliação e
gestão da força de trabalho. Sob esse ideal, o valor do reconhecimento só recai sobre aquilo a
que as malhas da ambição instrumentalista da “psicologia” reduziram o homem
(CANGUILHEM, 1972). O ideal de avaliação instrumentalizado pela psicologia não apenas
desconsidera a função psíquica do reconhecimento do saber-fazer do trabalhador, como acaba
por se tornar um obstáculo a ele.
Como nos demonstra Dejours (2003), a avaliação tem se tornado a base dos novos
métodos de gestão, gerenciamento e organização do trabalho, e grande parte do sofrimento e
da doença no mundo do trabalho está associada a estas novas formas de avaliação individuais
atreladas às metas de produtividade. Segundo o autor, vivemos em uma época onde se
pretende que tudo possa ser avaliável. Imaginariamente o que escapa à avaliação é posto sob
suspeita de conluio com a fraqueza ou com a ignorância. Fonte de dificuldades que aumentam
a carga de trabalho, a avaliação das performances acaba tendo efeitos perversos sobre os
trabalhadores, disseminando sentimentos de injustiça e de conduta desleal entre colegas.
Grande parte do sofrimento e da patologia mental no mundo do trabalho, que está associada
às formas de avaliação, decorre da desvalorização do trabalhador que contamina o coletivo
dos trabalhadores criando um ambiente deletério. Isso na medida em que não permiti aos
trabalhadores se localizarem de forma colaborativa tendo consequências na qualidade do laço
social entre eles.
O que o taylorismo e toda a administração científica do trabalho quiseram separar –
saber e fazer, pensamento e operação –, parecendo tê-los cindido de forma irreparável,
provocou, para além da produção e do consumo de massa, uma série de manifestações de mal-
estar de trabalhadores. Um mal-estar que pode ser lido a partir da destituição de um saber-
fazer e que afeta o valor do trabalho e as possibilidades de identificação do sujeito. Parece-nos
que uma especificidade da localização da angústia no mal-estar contemporâneo, no que
concerne ao trabalho, surge na identificação fundamental do sujeito frente a uma crise do
valor do trabalho como tal. O valor do trabalho humano não é nunca disjunto do saber-fazer
que a realização do trabalho comporta. No entanto, o que as atuais formas de gestão do
trabalho têm propagado é a destituição, senão a destruição do saber industrioso que há em
cada ofício.
A leitura que Leguil (2012) faz do que está em jogo no sofrimento no trabalho indica
que esse saber suposto está sendo invadido e atacado pelas tecnocracias. O que é visado aí é
transformar, ao longo do tempo, o “saber exposto” pelo trabalhador em um “saber imposto”
aos trabalhadores, por meio de condutas e protocolos a serem seguidos, submetendo-os ao
controle dos instrumentos de avaliação. Um “saber imposto”, portanto, estabelece-se sob as
ruínas da autoridade de um “saber suposto”. O que há de insuportável nos desajustes entre o
que é prescrito fazer e o que cada um pode inventar para se reapropriar do cumprimento do
que é demandado é a imposição de um saber. Seguindo o jogo de palavras sobre o saber
“suposto” que é “exposto” e transformado em “imposto”, o autor acrescenta que ele acaba por
se tornar “oposto” ao próprio sujeito e ao trabalho. Explicaremos.
Primeiramente, é importante destacar que Leguil (2012, p. 123, tradução nossa)
reconhece que “o sofrimento no trabalho é o signo de uma tragédia social [...], uma figura do
desamparo contemporâneo”4, cujas causas não ficam restritas às situações profissionais, mas
que estão no centro do que Lacan chamou de ordem simbólica, como um dos signos de
perturbação da mesma. Na leitura que Leguil (2012) faz de alguns casos clínicos, ele constata
que o “sofrimento no trabalho” é tomado como “un ravage”, verdadeiro estrago, dano, retorno
no real de uma dor que decorre da exclusão simbólica de uma função subjetiva, mas que, ao
mesmo tempo, é tomado pelo psicanalista como reivindicação do sujeito, insurreição do ser
que havia sido proscrito.
Leguil (2012) chama a atenção para como a formação e a experiência profissional
representa a garantia de uma possibilidade de governo do trabalho pelo saber. É ela que atrela
o poder ao domínio do saber, enlaçando saber e gozo. Um laço que aponta para o lugar
concedido ao poder na economia libidinal.
Uma das causas do “sofrimento no trabalho”, identificadas por Leguil (2012), é que o
laço entre o saber e gozo é comprometido frente aos imperativos de competitividade e aos
riscos que a concorrência desmedida impõe. Há uma perda de gozo operada no sujeito em sua
relação com os saberes, que, a reboque, conduz a uma crescente opacidade em relação ao seu
desejo. Vê-se que o trabalho não está apenas ligado ao gozo da potência de um saber, mas
também às possibilidades de expressão do desejo que aponta para a verdade subjetiva de cada
um em sua relação com o trabalho.
4 “la souffrance au travail est le signe d’une tragédie sociale”, “une figure de la détresse contemporaine”
A precariedade subjetiva do trabalho contemporâneo pode ser lida na imposição de
saber no trabalho que abala sua função simbólica ao destituir a suposição de saber no
trabalhador. O Outro do trabalho passa a se mostrar nas suas rígidas regras prescritivas, sob o
ideal de controle não apenas do corpo do trabalhador e seus gestos, mas sobretudo sua
subjetividade. Tal controle conduz o trabalhador à uma adesão sem crítica, sem mediação,
empobrecida em sua dimensão simbólica (já que o trabalho não se presta a servir de um ideal
de eu) e inflada em sua dimensão imaginária (já que o trabalho passa a impor um eu ideal).
4. DE VOLTA AO CASO APARECIDA
Nosso intuito aqui não é expor a realidade material do contexto do trabalho de
teleatendimento que Aparecida realiza5. Uma análise clínica desta realidade a partir da
Ergologia e da Psicanálise (GOMES JÚNIOR, 2013) explicita a contradição entre o desejo de
realizar bem os atendimentos telefônicos e a impossibilidade de fazê-lo pela rigidez das regras
do trabalho. Os sintomas que Aparecida desenvolve com o trabalho, demonstra-nos assim
como a angústia apresenta-se, em última instância, no fracasso do desejo pelo trabalho. A
realidade material do trabalho de Aparecida demonstra-nos que a hierarquia, a organização do
trabalho e mesmo o coletivo de trabalhadores não supõem um saber em Aparecida e nem
mesmo em seu ofício. Esta realidade com a qual ela se depara não sustenta os mecanismos de
reconhecimento necessários à sua capacidade de manter o desejo pelo trabalho.
Do ponto de vista clínico o que interessa à um psicanalista é o sujeito e suas invenções
frente a realidade material. Isso não retira o peso das determinações de tal realidade sobre a
angústia que se produz com o trabalho, mas também não reduz a angústia do sujeito a ser um
simples efeito de tais determinações. Os sintomas e a angústia de Aparecida podem ser lidos
como uma resposta à inconsistência/inexistência de atribuição um suposto saber sobre seu
trabalho. A suposição de saber em Aparecida e seu ofício, que ordenaria suas ficções
simbólicas pela via do reconhecimento, parece ruir frente à inconsistência desta ordenação
simbólica que se esperaria do Outro do trabalho. O que aparece é uma resposta num nível de
causalidade material direta que conduz Aparecida a queixar-se de forma ressentida.
O desafio de um percurso que se quer clínico e que traga contribuições para
intervenções, tanto junto ao sujeito quanto no contexto de trabalho, deve estar atento em se
posicionar no fio da navalha entre a constatação da realidade social e o gozo de uma posição
5 Para tal veja: GOMES JÚNIOR e CARVALHO (2010).
subjetiva, preservando a atividade do sujeito sob a forma de sua responsabilização subjetiva e
material.
No caso de Aparecida, assim como em tantos outros, o adoecimento que conota uma
impotência e expressaria uma impossibilidade em lidar com os imperativos de produtividade
em meio laboral, acaba, por outro lado, a se apresentar como uma saída, uma criação frente ao
obstáculo que o trabalho representa, rompendo com os interesses da produção e com o próprio
laço com o trabalho.
Uma leitura empreendida com a psicanálise permite-nos sair da perspectiva que reduz
o sintoma a um disfuncionamento provocado pelo meio de trabalho. Importa-nos o
funcionamento do sintoma como algo que porta um sentido. Os sintomas de disfônica,
desorientação espacial e da linguagem apresentados por Aparecida, nos dizem o que ela
conseguiu produzir com o que encontra no meio de trabalho. Eles são sua saída, sua invenção
possível e a condução clínica deve implicar o sujeito nelas.
No caso de Aparecida, até onde conseguimos caminhar, o que aparece como
insuportável no trabalho é a repetição do encontro com algo que já estava presente em sua
vida: fazer-se demitir pelo Outro (pelo inconsciente como discurso do Outro).
Como vimos com Freud (1930/1976), a renúncia à satisfação pulsional (e aqui
podemos reconhecer as construções humanas no campo do amor e do trabalho) pode
apresentar tanto uma face pacificante para o sujeito, no que possibilita o estabelecimento de
laços simbólicos que unem desejo e lei e permite operar um ideal do eu, quanto uma face que
guarda suas relações com a pulsão de morte, com a ação do superego, de um eu ideal que,
usando das interdições da cultura, impõe uma forma de gozo deletéria. Saber fazer com essa
renúncia pulsional, ou seja, com a castração, é o que está em jogo na construção de laços
simbólicos entre lei e desejo.
A lógica do trabalho da telefonista permitia que Aparecida exercer o “atender bem”
sendo amorosa com o outro. No teleatendimento, e ainda mais em um setor de cobrança, outro
cálculo é exigido, pois atender bem não parece ser mais o principal objetivo da empresa, e sim
a efetivação da cobrança em um tempo cada vez mais reduzido. Ser amorosa, ali, não dá
lucro. É por essa via que podemos compreender o encontro de algo do trabalho com o modo
de Aparecida gozar com seu sintoma em sua face mais mortífera, que, até onde conseguimos
nos aproximar, parece exprimir-se nesse “fazer-se demitir”. Assim como em suas relações
amorosas, o cálculo que ela não pôde fazer é aquele que exigiria dar um outro destino a este
modo de gozo. A direção da cura, apenas esboçada devido ao limitado número de encontros
com Aparecida, passaria por um saber fazer nos campos do amor e do trabalho, saídas
sublimatórias do mal-estar, saídas que pudessem enlaçar desejo e lei, possibilitando um
posicionamento produtivo frente ao obstáculo intransponível da castração. Vê-se aqui que a
relação de causalidade entre o trabalho e seus sintomas passa por não a reduzir à pura
determinação simbólica do trabalho. O desejo, por exemplo, de atender bem e ser amorosa
com o cliente não é insatisfeito unicamente pelo contexto do trabalho. Ele é um desejo de
insatisfação, ou seja, o próprio lugar em que Aparecida se coloca frente ao Outro.
No último encontro com Aparecida, quando ela mostrou a foto onde indicava,
envergonhada, que percebia sua parte nisso tudo, pareceu-nos que a originalidade narcísica de
sua fantasia de “Supermulher TeleX” pôde, então, cair, e algo da castração pôde ser
anunciado. A fantasia, enquanto disfarce (déguisement), encobria e desvelava sua fantasia
(fantasme), que sempre encobre e desvela o desejo. Os sintomas de Aparecida, isso do qual
ela se queixa, surgem exatamente quando um ponto da fantasia deixa transparecer a castração,
para de novo encobri-la, paralisando-a, como na foto. Lembremos que Aparecida não se
desloca mais sozinha, o que exige que seu companheiro a acompanhe aos atendimentos. E,
que é pelo fato de não ter mais recursos (dinheiro) para o deslocamento que ela interrompe os
encontros. Qualquer movimento novo não aconteceria sem um deslocamento que exigiria
atravessar o fantasma. Não é permanecendo na paralisia do disfarce que a originalidade do
desejo poderá advir.
A angústia frente a precarização do trabalho tem produzido adoecimentos que podem
ser escutados como uma forma do corpo falar. O psicanalista escuta-o para:
- Primeiro, possibilitar ao sujeito a apreensão de um ponto de verdade na repetição de seu
modo de gozo (seu sintoma), que possibilite um saber fazer com este mais-de-gozo atrelado
ao Outro que com muita frequência incluem as atividades laborais.
- Segundo, (e este é um novo desafio com a psicanálise) destacar as possibilidades e
invenções que possam tanto ampliar as margens de emprego desse saber fazer em situações
laborais específicas, quanto produzir um retorno sobre os patrimônios de saberes sobre o
trabalho na contemporaneidade. Ambas implicando na ampliação da suposição de um saber
fazer do sujeito no campo do Outro do trabalho. Essas são possibilidades de leitura que
podem apresentar resultados diferentes sem serem excludentes, ou seja, tratar não só os
sujeitos, mas também o trabalho.
CONCLUSÃO
Para finalizar, esperamos ter apontado, e exemplificado com o caso clínico, como
nossas identificações, sempre imaginárias, se enlaçam com a dimensão simbólica que sustenta
um valor no trabalho dando um contorno possível ao indizível do real e do gozo em cada um
de nós. Além disso propusemos ler no mal-estar gerado pelas gestões empreendidas sobre o
saber dos trabalhadores um deslocamento do lugar da suposição de saber que exposto, passa a
ser imposto e finalmente oposto ao trabalhador. A contribuição da psicanálise aplicada à
leitura da atualidade de nossa civilização do trabalho é marcar que há que se recuperar uma
suposição de um saber do trabalhador. Ou seja, é a dimensão do prestígio da experiência que
precisamos recuperar como “[...] a suposição de um saber sobre o real da verdade que
buscamos (LEGUIL, 2012, p. 126, tradução nossa)6”.
A instrumentalização tecnocrática do "saber" no mundo do trabalho desnuda a
inconsistência da referência do Grande Outro neste campo. Os rumos desta reflexão podem
conduzir-nos à investigação de como uma postura cínica frente ao saber pode chega mesmo a
destruir, por sua vez, toda e qualquer dimensão de coletividade no trabalho, restando aos
coletivos o lugar do ressentimento (vide os grupos de ajuda mútua, grupos de atingidos,
sindicatos assistencialistas, etc.)
REFERENCIAS
CANGUILHEM, G. O que é a psicologia? In: Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 30/31,
jul-dez ,1972.
DEJOURS, Christophe. L'évaluation du travail à l'épreuve du réel: Critique des
fondements de l'évaluation. Paris, INRA Editions, 2003.
DOGUET-DZIOMBA, Marie-Hélène. La mort du sujet au Travail ? Subjectivités
contemporaines et crise du travail. Texto apresentado no 3º. Colóquio realizado pela
associação no dia 6 de novembro de 2010, em Paris. Disponível em:
http://www.causefreudienne.net/psychanalyse-et-politique/2010-12-01
FREUD, Sigmund. Inibições, sintomas e ansiedade (1926 [1925]). In: FREUD, Sigmund.
Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro,
Imago, 1976. v. XX, p. 107-201.
GOMES JÚNIOR, A. B.; CARVALHO, R. A. O trabalho de teleatendimento e as
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Educação (UFMG), v.19, p.65 - 77, 2010.
6 [...] La supposition d’un savoir sur le réel de la vérité que l’on cherche.
GOMES JÚNIOR, A. B. O uso de si e o saber fazer com o sintoma no trabalho. Tese
defendida na Fae/UFMG em cotutela com a filosofia/Aix-Marseille Université, 2013.
LEGUIL, F. Postface. Souffrances au travail: rencontres avec des Psychanalystes. Paris:
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