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“DEVE-SE DEIXAR VIVER AS CRIANÇAS ANORMAIS?”:
A ABORDAGEM DA MÍDIA BRASILEIRA SOBRE A TRAGÉDIA DO
MEDICAMENTO TALIDOMIDA NA DÉCADA DE 60
Adriana Moro Wieczorkievicz1
Josemari Poerschke de Quevedo2
Noela Invernizzi3
Resumo: A talidomida foi descoberta em 1953 na Alemanha para ser agregada em antibióticos. Foi
reconhecida em 1957 pelo efeito sedativo e hipnótico, tornando-se um dos medicamentos mais vendidos
na Alemanha Ocidental. Comercialmente se popularizou em vários países como medicamento para
enjoos. Em 1961 vieram à tona casos de teratogenia em crianças relacionados ao consumo de talidomida
por mulheres grávidas, estimando-se entre 10 e 15 mil casos em todo o mundo. Considerando a
importância da mídia na construção de significados na história da ciência e da tecnologia, este artigo tem
por objetivo demonstrar como os jornais veicularam no Brasil, na década de 1960, as notícias sobre o
surgimento da talidomida como “droga mágica” até os malefícios provocados pela mesma. Para tanto, é
realizada uma análise de conteúdo sobre o enquadramento feito pelas publicações, pesquisadas no arquivo
da Associação Brasileira de Portadores da Síndrome da Talidomida. São analisados trechos dos jornais
Folha de São Paulo, Estado de São Paulo, Diário da Noite do Brasil e Diário do Povo; e as revistas
Manchete, O Cruzeiro e Seleções , com enfoque na forma como a notícia foi difundida, nos atores em
pauta e na forma como o corpo dos atingidos é descrito. Verifica-se que a mídia apresentou enfoque
preponderante sobre as deformidades do corpo das crianças atingidas, remetendo-se à origem grega da
palavra “teratos” - que significa monstro; podendo ser visualizado também o advento de discussões éticas
acerca da temática, suscitado pelo questionamento da mídia:“deve-se deixar viver as crianças anormais?
Palavras-chave: Talidomida; Mídia; História Regulação Farmacêutica
1 INTRODUÇÃO
O termo “teratogenia” tem sua origem na palavra grega “teratos”, que significa
monstro, e é utilizado para descrever as alterações externas causadas pela ingestão do
medicamento talidomida na gestação. Segundo Lima, Fraga e Barreiro (2001), a palavra
refere-se a malformações anatômicas macroscópicas. No plano simbólico, os atingidos
pela talidomida vivenciam o que Goffman (2006, p. 7) chama de estigma: a situação
social em que o indivíduo está inabilitado para a situação social plena, numa perspectiva
contrária às expectativas normativas. Há a abominação do corpo devido às várias
deformidades físicas. O portador do corpo estranho passa pela desconsideração de
“criatura comum e total”, sendo reduzido a uma pessoa estragada e diminuída, com
efeito de descrédito muito grande (GOFFMAN, 2006, p. 12).
1 Enfermeira, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da UFPR. Bolsista
CAPES. Email: adri.moro@gmail.com 2 Jornalista, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da UFPR. Bolsista CAPES.
Email: josemari.quevedo@gmail.com 3 Professora, doutora em Política Científica e Tecnológica, Professora Associada do Programa de Pós-
Graduação em Políticas Públicas da UFPR. E-mail: noela@ufpr.br.
Entre as anormalidades em órgãos internos ocasionadas pela talidomida estão
malformações cardíacas, incluindo defeitos do septo ventricular, coarctação da aorta e
tetralogia de Fallot; estes ocorrem com frequência considerável, sendo a principal causa
de morte. A taxa de mortalidade entre as vítimas da talidomida variou entre 40% e 45%,
na época em que foi lançada e entre 10 e 15 mil crianças nasceram com malformações
típicas associadas à ela no mundo (VIANNA, 2014).
No Brasil há três gerações de atingidos pela talidomida, ou seja, mesmo com a
regulação vigente pela Lei n.10.651, de 16 de abril de 2003, que dispõe sobre o controle
do uso da medicação, ainda ocorrem casos de teratogenia pela ingesta desse
medicamento na gestação, tornando o tema atual e de discussão necessária. Assim, é
pertinente revisitar a história da tragédia provocada pela droga e seus desdobramentos.
O objetivo deste artigo é analisar a abordagem da mídia sobre a tragédia da
talidomida ao longo da década de 1960 a partir da teoria do enquadramento. Interessa-
nos levantar as maneiras como o corpo das vítimas foi referido nas notícias e examinar
o papel da mídia ao colocar o problema em debate público, dando voz a vários atores.
Ressalta-se que as análises de conteúdo baseadas nos enquadramentos midiáticos
tornam acessíveis perspectivas de interpretação da realidade, incluindo neste viés o
mapeamento de controvérsias públicas.
A relevância de mostrar os eventos na perspectiva da mídia radica em que,
segundo Borges e Froehilch (2003), a ação da imprensa foi instrumental para ventilar o
caso da talidomida. Ademais, foi agente para a retirada da droga em vários países do
mundo, em que pese os estigmas empregados para noticiar o problema.
2 FONTES DE DADOS, ENFOQUE DE ANÁLISE E METODOLOGIA
O artigo se baseia em dados coletados no arquivo de notícias de mídia impressa
da Associação Brasileira de Portadores da Síndrome da Talidomida (ABPST),
localizada na cidade de São Paulo (SP), que inclui jornais e revistas de ampla circulação
no país. Embora não se trate de uma base de dados montada a partir de uma recopilação
exaustiva, compõe-se de um conjunto significativo de matérias consideradas relevantes
por este grupo de atingidos, suficiente para mostrar como o problema foi enquadrado na
mídia nacional e quais foram os principais atores que se posicionaram em torno dele.
Optou-se pela metodologia mista, com métodos qualitativos na discussão do tema e do
conteúdo coletado a partir da amostra quantitativa de matérias selecionadas para análise.
O levantamento das notícias ocorreu entre dezembro de 2014 e agosto de 2015,
com o consentimento da ABPST. Como se teve acesso somente às cópias das notícias
impressas foram excluídas aquelas que não estivessem legíveis e as que não estavam
redigidas no idioma português.
Foram analisadas 20 notícias que datam da década 1960 cujos trechos são
representativos das principais publicações em circulação no período no Brasil, a saber:
os jornais Folha de São Paulo, Estado de São Paulo, Diário da Noite do Brasil e Diário
do Povo; e as revistas Manchete, O Cruzeiro e Seleções.4
Os jornais e revistas que nos ocupam nesta análise são caracterizados pela
estrutura empresarial burguesa do jornalismo. No anos 1960, este modelo de imprensa
estava em derrocada devido a transformações capitalistas pela alta do preço do papel e
da importação de máquinas, reduzindo a pluralidade de opiniões (SODRÉ, 1999).
A produção noticiosa enquanto construtora da realidade que noticia se
fundamenta em processos de escolha do que noticiar num universo de possibilidades.
Neste sentido, a teoria do enquadramento se debruça sobre a delimitação do que é
relevante informar. Tais escolhas podem concretizar significados no imaginário do
público pelas repetições de estruturas narrativas. Apesar das investigações de Goffman
(1986) abrangerem a comunicação face a face, o conceito de enquadramento é utilizado
em estudos de mídia visto que “quadros específicos adquirem visibilidade nos media e
atravessam outros processos sociais” (MENDONÇA et al, 2011, p. 191).
Entman (1993) centra a questão no discurso comunicacional, especificamente
nas escolhas verificadas na seleção e saliência do que está exposto na realidade:
Enquadrar é selecionar alguns aspectos da realidade percebida e ressaltá-los
4 A Folha de SP é o jornal com maior tiragem no Brasil e foi fundado em 1960 quando os três títulos da
empresa Folha da Noite (1921), Folha da Manhã e Folha da Tarde se fundiram. Nos anos 1960, foi
pioneiro na tecnologia de impressão offset em cores (CÍRCULO FOLHA, 2016). O Estado de São Paulo
é o mais antigo jornal de SP, fundado em 1875. Na década de 1960, foi um dos periódicos mais
censurados pela ditadura, com tiragem ultrapassando os 34 mil exemplares no ano de 1967 (ACERVO
ESTADÃO, 2016). O jornal Diário do Povo, de Campinas (SP), foi fundado em 1912 e tinha enfoque
voltado às classes sociais menos favorecidas. Nos anos 1960, o jornal passou por modernizações,
encerrando atividades em 2012 (CARMO-ROLDÃO et al, 2013). A revista O Cruzeiro existiu de 1928 a
1975, lançada por Assis Chateaubriand, do conglomerado Diários Associados. Era líder no segmento nos
anos 1960. Já a Revista Manchete foi fundada por Adolfo Bloch, em 1952, e encerrou atividades em 2000
(MOURA, 2011). A revista Seleções do Reader’s Digest foi fundada nos EUA, em 1922, e circulou em
português a partir de 1942 com enorme sucesso nos anos 1960 (RAAD, 2004).
em um texto comunicativo, promovendo uma definição particular de um
problema, uma interpretação causal, uma avaliação moral e/ou um tratamento
recomendado (ENTMAN, 1993, p. 52).
Na produção de notícias, influenciam a seleção os quesitos profissionais, as
fontes, as burocracias empresariais e as relações com outras esferas de poder, não
necessariamente de forma coordenada, mas também a partir de processos interacionais
não previsíveis. Em uma notícia, a ênfase dada a certos aspectos promove uma
“orientação estruturada” sobre o significado do quê informa (HACKETT, 1993).
Indo além de mero condutor de informação, o jornalismo seleciona certos temas
e questões e os organiza (enquadra) de modo inteligível para a interpretação do público.
Dentro deste campo, os enquadramentos noticiosos podem ser detectados nas
formatações, titulações ou angulações de notícias (PORTO, 2007)
Neste artigo, realizou-se uma classificação de conteúdo de acordo com dois
critérios: atores salientados e macroenquadramentos, ou seja, o enfoque amplo em que a
notícia foi divulgada na mídia (LOOSE et al, 2014). Além disso, foram evidenciadas as
formas como a mídia descreveu o “corpo” das vítimas da talidomida nas manchetes,
visto que as caracterizações sobre o corpo foram constantes.
Primeiramente, examinou-se como são retratados os atores enquadrados mais
recorrentemente em cada notícia, que incluem: atingidos/vítimas, farmacêuticos,
médicos, cientistas, indústria, governo e a mídia quando se posiciona (cf. TABELA 1).
TABELA 1: Frequência das notícias sobre Talidomida segundo o destaque aos atores na década de 1960.
As vozes destacadas na notícia Número de Notícias
Atingidos/Vítimas 11
Mídia* 3
Farmacêuticos 1
Médicos 2
Cientistas 1
Indústria Farmacêutica e/ou
laboratórios farmacêuticos
2
Governo -
Total 20
FONTE: Elaboração das autoras a partir do arquivo de notícias da ABPST..
* Nesta categoria agrupamos as notícias que são apresentadas em colunas de opinião ou editoriais,
deixando evidente um posicionamento do jornalista e/ou do jornal ou revista.
Observa-se que na década de 1960 o posicionamento assumido pelos jornalistas
trazendo as vítimas como principais atores foi preponderante nas notícias acerca da
talidomida, acumulando 11 das 20 notícias veiculadas.
Em segundo lugar, as matérias foram classificadas conforme o
macroenquadramento, abarcando as seguintes modalidades: problematização,
divulgação, sensacionalização e posicionamento (cf. TABELA 2).
TABELA 2: Frequência dos modos de divulgação das notícias sobre a Talidomida nas décadas de 1960.
Conteúdo/Década 1960
Problematização 5
Divulgação 10
Sensacionalização 5
Posicionamento -
Total 20
FONTE: Elaboração das autoras a partir do arquivo de notícias da ABPST.
Na Tabela 2, nota-se que as notícias estavam bastante relacionadas à divulgação
do problema da talidomida, ocorrendo 12 vezes. No período, houve cinco
macroenquadramentos sensacionalistas; mas este tom não foi preponderante.
A partir das Tabelas 1 e 2, podemos representar, de forma sintética, os
conteúdos das notícias da década de 1960 pela problematização em torno da causa da
tragédia, conforme mostraremos mais detalhadamente à frente.5
3 O SURGIMENTO DA DROGA MÁGICA E O PRINCÍPIO DA TRAGÉDIA
A talidomida foi descoberta em 1953 por Wilhelm Kunnz, na Alemanha.
Segundo Lima, Fraga e Barreiro (2001), a sua primeira síntese foi realizada na indústria
Chemie Grünenthal tendo como objetivo ser agregada em antibióticos. Foi lançada no
mercado em 1956, como um medicamento antigripal, com a marca registrada
Grippex®. Apesar de insuficientes estudos quanto à segurança do seu uso em humanos,
a Grünenthal lançou o medicamento Contergan® como sedativo em outubro de 1957 e
posteriormente foi utilizado em larga escala para náuseas de gestantes. Foi um dos
5As notas jornalísticas foram transcritas em sua maioria na íntegra, respeitando a gramática da época. Os
trechos das notícias citados no artigo estão dispostos em itálico e examinam os elementos enquadrados.
medicamentos mais vendidos na Alemanha Ocidental, onde ficava localizada a sede da
indústria primária deste medicamento (LIMA, FRAGA, BARREIRO, 2001).
A empresa Grünenthal promoveu ampla campanha publicitária com slogan
afirmando a segurança da substância e com anúncios se encarregando da massificação
desta informação (OLIVEIRA et al, 1999). Conforme Mokhiver (1995a, p.371), foram
produzidas 50 publicações médicas de primeira linha, além de 200 mil cartas enviadas a
médicos e a 50 mil farmacêuticos no mundo. Segundo Bosch (2012), a talidomida foi
comercializada com cerca de 52 nomes comerciais.
O sucesso da talidomida foi tão grande que em 1958 uma distribuidora de
bebidas alcóolicas, a Distillers Biochemicals Ltd (DBCL), detentora do rótulo Johnnie
Walker, resolveu garantir sua participação neste mercado, tornando-se também uma
distribuidora do medicamento. A empresa de bebidas iniciou a comercialização da
talidomida na Grã-Bretanha sem nenhum suporte técnico.
Um dos únicos países que não permitiu a comercialização da talidomida foi os
Estados Unidos da América, por indicação de Kelsey Frances, pesquisadora da agência
Food and Drug Administration (FDA).6 Mas há relatos de casos de uso “off label”7 no
país (LIMA, FRAGA e BARREIRO, 2001), assunto ao qual retornaremos adiante.
Já em 1958 a Chemie Grünenthal começou a receber notificações leigas de
neuropatias periféricas pelas pessoas que usaram a droga. Porém, não se percebia
claramente a relação entre o uso do remédio e outras reações adversas, principalmente
as mais graves, descritas posteriormente (BORGES, FROEHILICH, 2003).
Os primeiros relatos médicos de casos de teratogenia em crianças na Alemanha
datam de 1959. Eles caracterizavam um tipo peculiar de malformação congênita
causado pelo desenvolvimento defeituoso dos ossos longos dos braços e pernas em que
mãos e pés variavam entre o rudimentar e o normal. A primeira pesquisa que alertou
para o aumento da incidência de malformações de extremidades foi realizada por
Wiedemann em 1961 (OLIVEIRA et al, 1999 apud MOKHIBER 1995a). Mas foi Lenz,
ainda em 1961, quem denunciou a associação de 34 casos de bebês com malformações
nas extremidades nascidos de mães que tinham tomado a talidomida, e se posicionou
pela retirada da droga do mercado para realização de novos estudos (LENZ, 1988).
6 FDA foi fundada em 1931 (MELLO; OLIVEIRA; CASTANHEIRA, 2008). 7 “Off label” significa um uso fora do que está previsto em bula (WANNMACHER, 2014).
Os eventos de teratogenia por talidomida nos EUA ocorreram em consequência
do uso da medicação para enjoos em gestantes em ensaios clínicos realizados por 1200
médicos que receberam o remédio direto da empresa (APEL, 2010). Segundo
Daemmrich (2002), o laboratório Merrell estava tão confiante na segurança da
talidomida que usou o período de testes para captar médicos nos EUA. Apesar de 16 mil
pacientes terem recebido a droga nesta fase, só 17 crianças nasceram com focomelia.8
Na Alemanha, país de origem da droga, o evento teratogênico provocado pela
talidomida ocasionou discussões sobre agendas de pesquisa, regulação de fármacos,
bem como sobre as condições dadas aos portadores de deficiências físicas, além de
propostas de leis que apoiassem e indenizassem as vítimas (DALLY, 1999).
Daemmrich (2002) refere que o julgamento sobre a responsabilização da
empresa Grünenthal pelo desastre da talidomida começou em janeiro de 1968 e só
terminou três anos mais tarde, quando os promotores retiraram as acusações em troca da
concordância da empresa em criar um fundo para as crianças vítimas do medicamento.
3.1 A talidomida no Brasil
A história da talidomida no Brasil se diferenciou da maioria dos países. A droga
começou a ser comercializada em março de 1958, dois anos após a identificação do
primeiro caso de malformação de crianças relacionada ao uso da droga na Alemanha.
A primeira propaganda comercial da talidomida no Brasil foi publicada em três
diferentes jornais de grande circulação em 1959. Os anúncios direcionavam-se aos
médicos, oferecendo-lhes literatura e amostras grátis do medicamento “Sedalis”, nome
comercial da Talidomida lançado pelo Instituto Pinheiros Produtos Farmacêuticos,
representante da Chemie Grünenthal no país. A propaganda enfatizava propriedades
sedativas-hipnóticas, não barbitúricas e ainda destituídas de efeitos secundários, bem
tolerada por crianças e portadores de lesões hepáticas.
A retirada da droga do mercado foi estabelecida em 1962. Notas sobre apreensão
da talidomida saíram no Diário Oficial e no O Estado de São Paulo em agosto de 1962.
Mas a retirada do mercado brasileiro só ocorreu de fato em 1965, pelo menos quatro
anos depois da Alemanha (OLIVEIRA et al, 1999 apud MOKHIBER 1995a).
8 Focomelia é o nome dado ao tipo de malformação, na qual as crianças tinham aspecto parecido com
uma foca, sendo que os pés e mãos apareciam implantados diretamente no tronco dos mesmos
(DAEMMRICH, 2002).
Mesmo após a retirada da droga, a Talidomida continuou a ser comercializada
no Brasil por diversos laboratórios, pois não havia regulação efetiva para a proibição.
3.2 As notícias sobre a talidomida no Brasil nos anos 1960: Análise
Em julho de 1962, o jornal Folha de São Paulo publicou artigo com a manchete
“Mais de 3.000 mulheres tomaram a droga nos Estados Unidos” e prosseguiu:
[...] A talidomida.... foi entregue, como amostra, a 15.904 pacientes nos
Estados Unidos... “o número de mulheres norte-americanas que tomaram as
pastilhas e que se encontram em idade de procriar, é calculado em 3.272.
Porém as investigações indicam que elas ingeriram a droga nos últimos
meses de gravidez... ao que sabemos, até o presente, o medicamento não teve
influência sobre os recém-nascidos...” [...]
O trecho se refere a uma matéria de macroenquadramento de divulgação e
aborda o caso nos EUA em que um relatório sobre o problema é repercutido. Destacam-
se entre os atores salientados as mulheres americanas, que seriam potenciais atingidas,
colocando-se em evidência a vítima. Os afetados aparecem de antemão já no título, o
elemento mais importante da notícia. Já o corpo das crianças é descrito como disforme.
O Diário da Noite do Brasil enfocou, em agosto de 1962, as malformações ao
publicar a denúncia do pediatra Vicente Monetti, em artigo com o título “Thalidomida –
responsável pela metade dos casos de malformações congênitas”, conforme trecho:
[...] “Repetem-se com frequência cada vez maior as comunicações de
cientistas de diversas partes do mundo, principalmente da Europa, sobre a
relação de más-formações congênitas e a administração de talidomida às
gestantes... este fato retrata o que pode acontecer...com outras medicações...
A maior parte das gestantes em nosso meio não faz tratamento pré-
natal...Em geral, se socorre do farmacêutico ou de pessoas leigas para fazer
um tratamento indevido, inadequado” [...]
Ao dar espaço para um ator especialista médico expor parecer sobre a situação, o
jornal se posicionou de maneira a problematizar a situação da talidomida. Sobre o corpo
das vítimas, o artigo refere-se como “más-formações congênitas”.
No mesmo mês, a FSP destacou: “Cientistas advertem: não é só a
“Thalidomide” que causa malformações”. O jornal incluiu declarações do professor
Newton Freire Maia, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Genética:
[...]“a dolorosa experiência da Thalidomida veio demonstrar que drogas
semelhantes devem ser submetidas antes a exaustivos testes de laboratório,
que devem tomar cuidados especiais antes de lançar no mercado os produtos
que vão sintetizando [...].
Nesta notícia, o ator central foi o cientista Freire Maia, que citava pesquisa
publicada na Inglaterra sobre a responsabilidade da talidomida pela metade dos casos de
má formações graves, levando a crer que outros tranquilizantes poderiam elevar os
nascimentos de crianças com problemas causados por drogas ingeridas na gestação. A
notícia segue o enquadre de problematização e caracteriza o corpo como “malformado.”
Revelou-se ainda que havia um padrão deficiente de regulação de medicamentos.
Neste sentido, as duas últimas notícias refletem a importância de se realizar
estudos sobre as medicações antes da comercialização para garantir segurança, trazendo
à tona o conceito de risco potencial. No período, médicos reiteraram a importância do
pré-natal e da necessidade de se procurar orientação para a utilização de medicamentos.
Em 30 de maio de 1962, na Casa Maternal Leonor Mendes Barros, nascia a
primeira vítima da talidomida conhecida no país. Em setembro O Cruzeiro publicou:
[...] ele com 22 anos e ela com 18, sofreu o impacto de receber tão esperado
primeiro filho com a marca da deformação causada pela droga. Era uma
menina sem braços. As mãos atrofiadas, partiam diretamente do tronco, uma
com 3 e outra com 4 dedos... [...]
A matéria noticiou o fato em reportagem no macroenquadramento de
divulgação, salientando enfaticamente os atores como vítimas. Aqui, a filha é
apresentada com o corpo marcado pelas deformações e as descrições “menina sem
braços”, “mãos atrofiadas”. Como se tratava de uma grande reportagem, a revista
mencionou que a equipe que examinou o caso da menina elaborou um trabalho
científico que seria enviado à Organização das Nações Unidas (ONU), órgão que vinha
pesquisando a talidomida em vários países. A mesma matéria também informou que um
professor identificado como Hepp havia criado um sistema de classificação dos casos
observados e que posteriormente faria membros artificiais para auxiliar as crianças
atingidas. Nesta notícia observa-se a preocupação das condições de vida das crianças
com a síndrome, algumas das quais estavam completando 3 ou 4 anos.
Em agosto e setembro de 1962, um conjunto de notícias tratou da proibição da
comercialização da droga no Brasil, ocorrida em agosto. Observam-se contradições uma
vez que algumas fontes ouvidas nas reportagens negaram a problemática.
O Estado de São Paulo, em edição de agosto de 1962, apresentou a manchete
“Apreendidos 4 milhões de comprimidos de talidomida”, denotando que a droga era
amplamente vendida nas farmácias brasileiras. Já a revista O Cruzeiro registrou em
setembro de 1962 a “continuidade da venda do produto no Brasil”. Mas, por outro
lado, citou que, segundo o Serviço de Fiscalização do Exercício Profissional do Estado
de São Paulo, a droga nem era comercializada no país. Ademais, tal enquadre de
divulgação demonstra um desencontro de informações e evidencia a mídia como ator ao
exercer a função de denunciante. Nestas notícias o corpo não foi enfocado.
Em estudo sobre jornais brasileiros, Leandro e Santos (2015) destacam uma
cobertura na qual a única fonte ouvida foi o representante do Laboratório Pinheiro,
distribuidor da talidomida no país, Aníbal Coré. Ele buscou negar a problemática ao
avaliar que a suposição de que a talidomida seria responsável por casos de
malformações foi uma manobra de trustes internacionais para eliminar um concorrente
brasileiro, no caso o Laboratório Pinheiro, empresa com aceitação na Europa e Ásia.
Como desdobramento, verifica-se a disputa de interesses comerciais e de concorrência
entre laboratórios na ocultação de problemas decorrentes do uso do medicamento.
Em setembro de 1962, o Jornal Diário do Povo titulou “Relação de drogas
farmacêuticas a base de sedativos” e referiu a prevenção a casos como da talidomida:
[...] Alcançaram em todo o mundo a maior repercussão as notícias sobres às
drogas a base de Thalidomida. Várias providências foram adotadas no
sentido de retirar do mercado e dos laboratórios todos os produtos
farmacêuticos condenados pelos fatos universalmente apontados [...]
O macroenquadre de divulgação ressaltava os problemas, as vítimas crianças e
as mães afetadas, enfocando também os produtos farmacêuticos, sendo o principal ator
justamente os laboratórios farmacêuticos. A matéria também relatava que a Associação
de Farmacêuticos havia solicitado que as medicações a base de sedativos fossem
registradas por meio de livro. Os remédios deveriam ser recolhidos e, a partir de então,
controlados por meio de registro. Alude-se aí marco histórico para o início do controle
dos medicamentos, sendo um fato antecessor das receitas controladas. Mesmo fora do
foco central, o corpo dos atingidos apareceu retratado pelas “deformações”.
Com a manchete “É trágico o balanço da talidomida”, a revista O Cruzeiro de
setembro de 1962 publicou entrevista com o professor Widukind Lenz, geneticista de
Hamburgo, que disse não perdoar as autoridades sanitárias da Alemanha Ocidental por
não terem agido logo que ele denunciou a Talidomida:
Êles levaram dez dias para proibir a droga. E esses dez dias poderão custar
mais de 300 bebês deformados”.
O corpo das crianças é referido pela expressão “bebês deformados”, gerando um
estigma, uma vez que a deformação rompe com a expectativa de um bebê saudável. No
macroenquadramento de problematização, Lenz chegou a dizer que pensou ser apenas
uma epidemia localizada. Mas, para ter certeza, escreveu aos grandes pediatras da
Alemanha Ocidental e observou que o resultado era pior do que esperava.
Tais conjecturas foram de relevância para os estudos epidemiológicos atuais,
levando ao reconhecimento de que, mesmo atualmente com a garantia dos testes de fase
III para liberação dos medicamentos, a vigilância pós-comercialização é uma das mais
importantes e desafiantes etapas para garantir o uso seguro de medicamentos.
Em outra entrevista de Lenz, publicada na FSP, também em setembro de 1962, o
cientista foi contundente ao enfatizar que a tragédia da Talidomida não foi apenas
resultado da negligencia de um laboratório, mas uma falha mais ampla, que ele atribuiu
“ao funcionamento da sociedade”:
[...] Lenz não põe toda a culpa nos laboratórios. Acha que tão culpada
quanto eles é a própria sociedade... por outro lado, a venda franca e a
publicidade espalhafatosa deixam o público entregue ao perigo das drogas
de que não tem necessidade. Isso sem sequer uma palavra de conselho por
parte das autoridades sanitárias [...]
O macroenquadre de problematização tem como ator principal o médico como
denunciante e detecta a publicidade que sustenta a mídia. Em decorrência do estigma,
observado na maneira como a mídia enquadra o problema, e da culpa das mães por
ingerir a droga, além do desconhecimento dos eventos teratogênicos é que havia,
segundo Lenz, dificuldade em mapear novos casos que a droga poderia ainda provocar.
Na sua declaração à revista O Cruzeiro de setembro de 1962, ele já relatava essa
dificuldade dizendo que “Havia mesmo...as mães que se mostravam relutantes, em
admitir que haviam tomado a droga, como medo dos maridos e da família “. Esta
notícia tem macroenquadramento de problematização, trazendo as vítimas como atores.
Neste sentido, muito além das lutas nos tribunais para indenizar a vítimas e na saúde
pública para retirar a droga do mercado e exigir novas regras para os testes nos
laboratórios farmacêuticos, o problema que se instalava no mundo era um “terrorismo”
vivenciado pelas famílias atingidas. As constantes referências às deformidades do corpo
não deram espaço a outros enquadramentos para lidar com o problema.
Notícia da FSP em 1962 exemplifica a ênfase explícita no corpo da vítima com
“deformações”, aferindo-se como causa do assassinato de filha pela mãe em um
macroenquadramento sensacionalista. O caso na Bélgica tratou da jovem de 25 anos
que, “após ter parido uma filha com deformações por causa da ingestão da Talidomida
na gravidez, conseguiu de um médico uma receita de barbitúricos, o misturou com mel
e deu a filha, matando-a, com consentimento do marido e de sua mãe”.
Ainda sobre este caso, a FSP, no mesmo ano, noticiou “Mãe presa”, referindo-
se ao episódio utilizando-se do macroenquadramento sensacionalista. Ainda em 1962, a
revista Manchete noticiava “Após longos debates, o júri de Liege absolveu os réus
processados pela eliminação de uma criança deformada pela talidomida”. Nesse lance
do caso, a notícia induz ao entendimento de que a deformação justificaria a absolvição
dos réus no assassinato da criança “deformada”, que por fim seria “eliminada”.
Em notícia da revista Manchete, de data indefinida, a palavra “eliminação”
novamente utilizada pela imprensa denotou a importância da discussão ética sobre o
“corpo disforme” das vítimas da Talidomida. O início da notícia registrava que:
[...]o que estava em causa era mais do que um drama de família: eram os
erros da medicina e a cupidez dos industriais, que querem fazer lucro...por
trás de tudo isso, havia ainda a torturante e grave pergunta: deve-se deixar
viver as crianças anormais? [...]
A notícia revela o drama da problemática e o preconceito estigmatizante. Em
macroenquadre sensacionalista questiona-se o que fazer com as “crianças anormais”.
A FSP, ainda em 1962, noticiou “Abortos legais na Suécia”, tratando de sete
mulheres suecas que se submeteram a abortos legais por terem tomado a talidomida. O
macroenquadre de divulgação tem foco nas vítimas.
Em outra notícia da FSP, em 1962, intitulada “Drama da talidomida: Vaticano
ataca decisão de mãe de futura criança disforme”, acusa-se uma mulher do Arizona de
provocar um aborto para não dar à luz a uma criança por causa do efeito da talidomida.
Afirmou-se: “Não é admissível, contudo, que esta aberração subjetiva se transforme
numa prática da vida , num princípio moral. O homicídio jamais é ato de bondade...”.
Referem-se práticas relacionadas ao problema, enfocando as vítimas em macroenquadre
sensacionalista e o estigma do corpo aparecendo na definição “aberração subjetiva”.
Outro texto do jornal FSP de novembro de 1962 informava sobre os efeitos
adversos da droga em gestantes e uma adaptação do desenho original da dra. Helen
Taussig, mostrando algumas das características da “síndrome da talidomida”. A nota
dizia: “Notam-se os braços atrofiados e deformados e as marcas de morango
(hemangioma) na testa, no nariz e no lábio superior. Várias alterações esqueléticas e
internas completam o quadro”. A notícia tem o macroenquadramento de divulgação e
salienta as vítimas. O corpo é descrito com os “braços atrofiados”.
Após o grande número de matérias no período em que a droga foi reconhecida
como causa das malformações e banida em muitos países, seis anos depois, começam a
aparecer em 1968 informações sobre o julgamento da empresa produtora de talidomida
na Alemanha. Na manchete intitulada “Talidomida: responsáveis começam a ser
julgados”, em maio de 1968, o jornal FSP descreveu o início do júri da farmacêutica
alemã Chemie Grünenthal e seus colaboradores:
[...] O julgamento do dr. Heinrich Mueckter, chefe de pesquisas científicas
da Chemie Grünenthal, e seu colaboradores teve início às 10 horas... Os
diretores são acusados de violação da lei nacional sobre drogas, causando
danos físicos, primeiro por imprudência e depois deliberadamente, e ainda
apontados como autores de homicídio culposo por negligência [...].
Na notícia, o macroenquadramento de divulgação apresenta outros atores, sendo
o principal a indústria farmacêutica. A notícia se refere à violação da lei nacional sobre
drogas da Alemanha, com foco no julgamento. O corpo é retratado por “danos físicos”.
Em junho de 1968 artigo na FSP denuncia novos casos de teratogenia por
talidomida com a manchete “Sedativo fez surgir pequenos monstros”, conforme trecho:
[...] Milhares de pequenos “monstros”, vítimas de deformações congênitas,
apresentam-se hoje em diversos países no mundo como terrível advertência
quanto aos perigos desconhecidos das modernas drogas milagrosas [...]
Nesta notícia as crianças com problemas são referidas como “monstros”, em
macroenquadramento sensacionalista. O viés privilegiou o explicitamente o estigma.
A revista Seleções do Readers Digest do Brasil, em janeiro de 1969, advertia no
título “Isto pode acontecer de novo”. Relatava-se que a droga tinha voltado a ser
testada para uso em nódulos. A tragédia foi relatada a partir dos posicionamentos da
família das vítimas que na Alemanha contavam com 42 organizações de pais dedicados
ao problema. Contudo, indicava-se, alguns pais e crianças continuavam se isolando.
Neste macroequadramento de divulgação, as vítimas são os principais atores.
3.3 Discussão
A análise de conteúdo a partir dos enquadramentos sobre o problema da
talidomida põe em relevância a articulação dos macroenquadramentos, a saliência de
atores e a ênfase no corpo.
No que tange aos macroenquadramentos, a divulgação voltou-se para relatar
como o problema repercutia no Brasil tendo como parâmetro os casos em outros países.
Quando a primeira criança talidomida brasileira nasce, a divulgação ocorre em tons
dramáticos com descrição minuciosa das deformidades corporais. Os enquadres vão
dando sequência ao desenrolar dos fatos com as características variadas do problema, a
apreensão da droga, a continuidade da venda mesmo após proibição e escassos enfoques
alternativos sobre resoluções e prevenção. Há concentração de notícias na divulgação
sobre a “eliminação” de crianças talidomida e, depois, no julgamento da empresa. O
macroenquadramento de divulgação seguiu os fatos no intuito de contá-los como
história dramática.
O macroenquadramento da problematização se diferenciou na medida em que
enfoca as questões por trás do fato central do acontecimento da talidomida: negligência
da regulação de medicamentos e questões de saúde pública; críticas e denúncias de
médicos e cientistas; exposição de falhas no “funcionamento da sociedade”, isentando
um pouco os laboratórios, crítica à excessiva publicidade e às autoridades sanitárias.
O macroenquadre sensacionalista foi o que explicitou o estigma do corpo das
vítimas, referindo os episódios de “eliminação” das crianças pelas famílias e a
referência às vítimas como “aberração subjetiva”. Seja por palavras ou sugestão de
ação, este macroenquadre evidenciou também uma opção da mídia em estereotipar as
crianças, denominando-as tanto de “pequenos monstros” como em termos mais neutros
como deformações congênitas, em um mix entre o termo estigmatizante “monstro” e do
termo mais científico “deformações congênitas.”
Sobre os atores envolvidos com a talidomida, as saliências sobre determinados
protagonistas também revelam o ritmo pelo qual a problemática vai se desdobrando.
Como o cerne da questão deram as deformações no corpo de crianças, em uma tragédia
familiar com centro nas mães, os principais atores das notícias foram as vítimas.
Médicos, enfermeiras, cientistas e pesquisadores aparecem como pano de fundo e vozes
que analisam a situação posta pela tragédia. No entanto, após o impacto inicial, a
apuração dos responsáveis joga luz sobre atores que até então estavam mais ocultos:
laboratórios farmacêuticos, indústria e empresas relacionados com a fabricação e
distribuição da talidomida.
A tragédia da talidomida suscita questionamentos sobre contextos e condições
em que o ser humano é exposto à maior vulnerabilidade, nos quais a vida humana pode
ser impactada pela ciência e pelas transformações no mundo da saúde (SANCHES;
GUBERT, 2012). Segundo Sanches e Gubert (2012), avanços devem ser acompanhados
da reflexão sobre suas consequências na sociedade. Diante dos valores morais e éticos
da época, a tragédia trouxe reflexões até então pouco frequentes diante da deficiência
física. A tragédia também coloca o descolamento ético da ciência e indústria
farmacêutica e o entrelaçamento com estratégias de marketing visando a disseminação
de um medicamento em fase experimental através da comunidade médica para alcançar
a sociedade.
Sobre as reações das famílias em torno da deficiência gerada pela talidomida, o
enfrentamento ao fato variou conforme características individuais e foi determinado
pela extensão e a profundidade do impacto dos nascimentos. Da parte da mulher, o
problema tornou-se ainda mais conflituoso, pela desigualdade de gênero na sociedade e
a responsabilização pelo problema. Muitas se culparam, houve conformismo e
frustração considerando as dificuldades em compreender os mecanismos causadores da
deficiência. Além disso, pressupõem-se choque e medo com relação ao evento ou o
reconhecimento da deficiência, bem como dor e ansiedade de se imaginar quais seriam
as implicações futuras (BRUNHARA, TETEAN, 1999).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A mídia descreveu o corpo dos atingidos na década de 1960 usando os termos
como “disforme”, “deformado”, “mal formado”, mas em algumas situações chegou a
descrever os sujeitos como “mostros”, “aberrações” e “anormais”, até a mais
estigmatizante determinação em uma questão sobre o destino dos atingidos: “deve-se
deixar viver as crianças anormais?”. Esses enquadramentos referem-se a padrões
estigmatizantes repetitivos sobre os atingidos.
O impacto do problema repercutiu em diferentes países envolvendo sociedades
que tiveram de corresponder rapidamente ao choque. Há, em geral, uma
homogeneização nos enfoques dos diferentes jornais e revistas, com saliências similares
quanto ao corpo e atores envolvidos bem como aos fatos narrados. Esses elementos
eram componentes do momento socioeconômico da imprensa no Brasil de redução da
independência editorial em face da influência de agências de publicidade internacionais.
Ainda assim, em face dos casos das deformações, a opção da mídia por retratar o
corpo sobremaneira evidenciou a pregnância cultural sobre a normalidade corporal e
também elos de significância intercultural, visto que o problema atravessava a realidade
brasileira ligando-se a um problema de saúde pública internacional.
A imprensa brasileira fez avaliação moral dos casos e questionou o que deveria
ser feito com as crianças talidomidas. Contrasta-se pelo não questionamento de qual
seria a pena apropriada para os causadores da tragédia. Por fim, a mídia privilegiou a
problematização enfocando os atingidos pela talidomida, com alguma atuação de
denúncia na repercussão do problema e a atenção constante centrada no corpo.
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