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Dissertação sobre cultura material em São Paulo.
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Luciana da Silva
ARTEFATOS, SOCIABILIDADES E SENSIBILIDADES: CULTURA MATERIAL EM SO PAULO (1580 1640).
CAMPINAS 2013
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LUCIANA DA SILVA
ARTEFATOS, SOCIABILIDADES E SENSIBILIDADES: CULTURA MATERIAL EM SO PAULO (1580 1640).
Orientadora: Prof. Dr. LEILA MEZAN ALGRANTI
CAMPINAS 2013
DissertaodeMestrado apresentadaao Programa de PsGraduao em Histria doinstituto de Filosofia e Cincias Humanas daUniversidade Estadual de Campinas, para obtenodo ttulo de Mestra em Histria, na rea deconcentraoPoltica,MemriaeCidade.
UniversidadeEstadualdeCampinasInstitutodeFilosofiaeCinciasHumanas
ESTEEXEMPLARCORRESPONDEVERSOFINALDADISSERTAODEFENDIDAPELA ALUNA LUCIANA DA SILVA E ORIENTADA PELA PROFA. DRA. LEILA MEZANALGRANTI.CPG,21/02/2013
iv
FICHACATALOGRFICAELABORADAPORCECLIAMARIAJORGENICOLAUCRB8/3387BIBLIOTECADOIFCH
UNICAMP
InformaoparaBibliotecaDigitalTtuloemIngls:Artefacts,sociabilitiesandsensitivities:materialcultureinSoPauloVillage(15801640)Palavraschaveemingls:MaterialcultureSociabilityInheritanceandsuccessionSoPaulo(State)Citiesandtownsreadeconcentrao:Poltica,MemriaeCidadeTitulao:MestraemHistriaBancaexaminadora:LeilaMezanAlgranti[Orientador]MariaAparecidaMenezesBorregoMilenaFernandesMaranhoDatadadefesa:21022013ProgramadePsGraduao:Histria
Silva, Luciana da, 1984- Si38a Artefatos, sociabilidades e sensibilidades: cultura material em So Paulo (1580-
1640) / Luciana da Silva. - - Campinas, SP : [s. n.], 2013.
Orientador: Leila Mezan Algranti. Dissertao (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas.
1. Cultura material. 2. Sociabilidade. 3. Herana e sucesso. 4. So Paulo (Estado) Cidades e vilas, 1580-1640. I. Algranti, Leila Mezan, 1953- II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. III.Ttulo.
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Agradecimentos
Agradeo, primeiramente FAPESP, que tornou vivel, por meio do financiamento
fornecido, a execuo dessa pesquisa de mestrado.
Tenho ampla dvida de gratido para com a orientadora deste trabalho, Leila Mezan
Algranti, assim como para com cada pessoa que me auxiliou em algum momento dessa jornada:
os funcionarios prestativos das bibliotecas nas quais precisei consultar e tomar emprestados livros
e outros materiais, os amigos ntimos que suportaram minhas reclamaes e questionamentos, a
banca de qualificao que me ajudou, de maneira decisiva, a organizar esta dissertao, os
amigos de trabalho que me deram dicas diversas e me auxiliaram nas correes necessrias e aos
meus familiares, que me incentivavam a seguir com a pesquisa de mestrado, mesmo no
compreendendo muito bem o que eu fazia.
Este trabalho tem, portanto, um pouquinho de cada um desses sujeitos to importantes na
minha vida. A todos muito obrigada pelas crticas, elogios e palavras de conforto!
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RESUMO: Esta pesquisa se dedica anlise da cultura material e das redes de sociabilidades em
So Paulo, entre 1580 e 1640, utilizando-se como fontes principais os Inventrios e Testamentos.
Desejamos, por meio do estudo da vida material, vislumbrar o cotidiano dos habitantes do
planalto e atingir o seio de suas relaes e formas de sociabilidade instigadas pelo trnsito de
objetos e bens. Refletiremos sobre tais redes sociais no nvel familiar e de vizinhana, para
alcanar as sensibilidades dos moradores da vila em relao aos indivduos e s coisas.
Investigaremos as condies de vida material dos moradores da regio e sua maneira de se
relacionar com a cultura material, a qual os inventrios nos permitem acessar. Atravs do estudo
de certos aspectos da materialidade da vila e do domiclio conheceremos limites e possibilidades
materiais da sociedade que se constitua na regio.
Analisaremos as redes de relaes de sociabilidades em que os indivduos se imiscuam, e pelas
quais circulavam objetos e bens, a partir das trocas comerciais, dos emprstimos e das partilhas
de bens. As trocas evidenciam a importncia econmica das mercadorias, objetos e bens,
apontando para diferentes nveis de riqueza e pobreza presentes na regio. Os emprstimos
revelam algo das relaes de solidariedade e de interesse que conectavam os indivduos de um
mesmo ambiente, uma vez que faziam passar, por um perodo de tempo, um item de um
indivduo a outro. J as partilhas e heranas faziam crescer ou reduzir patrimnios, desvelando
dispositivos e lgicas que marcavam a dinmica de sua constituio e reconstituio.
Atravs dos testamentos, por fim, possivel entrever aspectos das formas de sentir dos
habitantes da regio, concernentes a familia, principalmente, e a materialidade do patrimnio.
Palavras-chave: 1. Cultura Material; 2. Sociabilidade; 3. Herana e sucesso; So Paulo (Estado)
Cidades e vilas, 1580 1640.
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ABSTRACT: This research is related to the analyses of the material culture and So Paulo
relationships, between 1580 and 1640, consisting in inventories and wills. We would like,
through the material life study, present the daily of the people who lived in the village of So
Paulo and shows which was the main way to relation done through the objects and goods. We are
going to think about these social relationships on family and neighborhood, to reach the
sensitivity of villages residents related to individuals and things.
We are going to investigate and understand the conditions of residents material life in the So
Paulo plateau, even so their connection behavior with material culture, which are in the
inventories. Through the study of specific aspects in the village and houses, we are going to know
some of the limits and material possibilities in the society that was born in the region. We are
going to analysis the social networks due to goods and objects, commercial, lending and division
of the property. This trading shows the economic importance of the goods and objects,
confirming the different levels of richness and poverty in the place. The trading prove the
community of interests that connected the people in the same environment, since they changed,
for a period of time, an item to person and after to other. The legacy and divisions collaborated to
increase or decrease the birthright, unveiling and logical devices that marked the dynamics of its
constitution and reconstitution. Over the wills, its possible to see the aspects of the residents
feelings, related the family, and the material legacy.
KEY WORDS: 1. Material culture; 2. Sociability; 3. Inheritance and succession; 4.So Paulo (State) Cities and towns
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Lista de Quadros:
Quadro 1: Nmero de inventrios por faixas de valores de montemores na vila de So Paulo no
perodo de 1596 a 1640........................................................................................................p. 57
Quadro 2 : Categorias patrimoniais presentes nos 130 inventrios trabalhados por ordem de
freqncia de seu registro nas fazendas da Vila de So Paulo entre 1596 e 1640...............p. 64
Quadro 3: Percentual representado pelos mveis na totalidade do patrimnio em faixas de tempo
(1596 1640)........................................................................................................................p. 93
Quadro 4: Padres de escolha referentes ao endereamento de remanescente de tera nos
testamentos produzidos na vila de So Paulo e arredores entre 1590 e 1640.......................p.195
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Sumrio
Introduo..................................................................................................................................p. 17
Cap. 1: A vila de So Paulo e a casa seiscentista .....................................................................p. 39
1.1) A vila: vida material e cotidiano............................................................................p. 39
1.2) Os patrimnios materiais........................................................................................p. 56
1.3) A morada do colono no planalto............................................................................p. 80
Cap. 2: Redes sociais e circulao de objetos e bens: necessidades em trnsito ....................p. 109
2.1) As relaes familiares vistas a partir dos Inventrios e Testamentos ..................p. 109
2.2) Os emprstimos de artefatos e trocas comerciais no planalto paulista ...............p. 134
2.3) Partilhas, heranas e redes de sociabilidades .......................................................p. 148
Cap. 3: Os testamentos e a distribuio dos legados aps a morte..........................................p. 175
3.1) Medos e crenas diante da morte .........................................................................p. 175
3.2) Artefatos, sujeitos e sensibilidades: disposies de ltimas vontades..................p. 188
3.3) A circulao das vestimentas: valores e representaes ......................................p. 207 Consideraes finais ...............................................................................................................p. 225 Bibliografia.............................................................................................................................p. 231
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Introduo
No ano de 1595, casava-se, na Vila de So Paulo, Joo da Costa com Ins Camacho. Joo
era o segundo marido de Ins. difcil saber o que cada um possua ao se casarem, pois no h
documentao que nos traga informaes desse tipo. No entanto, como era comum no perodo, a
unio conjugal servia como meio de juntar bens, os que a mulher e os que o homem possuam, e,
dessa forma, dar incio ao acmulo de patrimnio, que, devido ao casamento, passava a ser
familiar, e no mais individual.
Casa prpria ou cedida para morar, com quintal no qual se cultivava parte dos alimentos
consumidos no cotidiano e com alguma moblia, utenslios e alfaias que permitiam um mnimo de
conforto no espao domstico, o qual tambm era, no mais das vezes, espao de produo e
trabalho, sem que houvesse uma diferenciao explcita (ao menos nos inventrios e testamentos)
desses ambientes. Algumas ferramentas ligadas ao cultivo agrcola ou a um ofcio mecnico,
algum gado, alguma escravaria. Essa poderia ser uma descrio genrica que se encaixaria
perfeitamente na composio do patrimnio, familiar ou individual, presente em muitos
inventrios paulistas quinhentistas e seiscentistas.
O casamento, a famlia, as redes sociais em que o indivduo estava inserido permitiam ou
auxiliavam que ele incrementasse suas posses ou mesmo, em situaes de extrema pobreza,
garantisse sua sobrevivncia e a de seus filhos atravs de compras de mercadorias a prazo,
emprstimos ou mesmo esmolas concedidas em testamento. Objetos e bens circulavam dessa
forma, passando de mos em mos, alimentando relaes de dependncia, solidariedade e
interesses na sociedade que se formava no Planalto de Piratininga. Observar estes objetos e bens
permite ao historiador compreender facetas importantes das redes de sociabilidades nas
sociedades.
A histria de Joo da Costa, a qual iniciamos anteriormente, elucidativa de alguns
aspectos da dinmica de formao, dilapidao e reconstruo de patrimnios. Dinmica essa que
se encontra no cerne de nosso interesse. Vejamos um pouco da trajetria desse personagem.
Ao falecer em 1639, Joo da Costa possua um patrimnio cuja somatria era de 61$040
(sessenta e um mil e quarenta ris). Desse valor, 28$000 (vinte e oito mil ris) eram referentes a
um escravo negro africano pequeno e 10$880 (dez mil, oitocentos e oitenta ris) eram referentes
a trinta e quatro pesos, dinheiro que havia sido entregue ao padre por Joo, dias antes de morrer.
Seus objetos somavam um valor de 22$160 (vinte e dois mil, cento e sessenta ris).
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A ele pertenciam algumas poucas coisas: duas caixas de 5 palmos, que serviam para
guardar seus outros objetos, e um bofete eram os itens que mobiliavam a casa onde morava, um
pequeno cmodo erguido na ermida de Santo Antonio, onde passara a viver, certo tempo aps o
falecimento de Ins. Seu conjunto de mveis, composto dessas trs peas, fora avaliado em
3$080 (trs mil e oitenta ris). Duas tolhas de mesa pequenas, avaliadas em $160 e $200 (cento e
sessenta e duzentos ris) ornavam o pequeno mvel no qual, possivelmente, se serviam as
refeies utilizando-se dos quatro pratos e trs tigelas de loua, que valiam em conjunto $200
(duzentos ris)1. Ao que parece, pela ausncia de cadeiras no inventrio, se Joo de fato comia
sobre o bofete, certamente fazia uso de uma de suas caixas para assento. Provavelmente, tais
refeies eram preparadas em um tacho pequeno de cobre, avaliado, por sua vez, em $640
(seiscentos e quarenta ris). Estes seriam uma parcela de seus poucos utenslios de cozinha2.
Em seu inventrio no consta registro de peas de roupas, o que poderia indicar que as
vestes teriam ido para o tmulo com Joo. No entanto, havia duas varas e meia de picote, pano
grosseiro, spero e cinzento, utilizado em vestes pastoris, que assim era chamado por parecer que
picava a pele daquele que o vestia3. A existncia do pano, avaliado em $500 (quinhentos ris)
poderia indicar a posse de matria-prima, com a qual se intencionava a feitura de roupas novas.
Alm disso, apesar de no haver vestimentas, constavam trs chapus, um velho, um sem
caracterizao e um novo, que valiam respectivamente $240 (duzentos e quarenta ris), $480
(quatrocentos e oitenta ris) e $640 (seiscentos e quarenta ris), e uma caixa com dois pares de
culos, avaliados em $640 (seiscentos e quarenta ris), os quais deveriam ser utilizados nos
momentos de leitura do ermito, que possua trs livros, as quais valiam juntos $640 (seiscentos e
quarenta ris). Ademais, Joo possua treze arrteis de cera da terra, que era matria prima para
velas, avaliados em $780 (setecentos e oitenta ris), bem como duas velas de cera do reino, que
valiam $160 (cento e sessenta ris).
As ferramentas desse personagem indicam que ele teria trabalhado como barbeiro: um
estojo com uma tesoura, duas navalhas, uma pedra (de amolar) e um pente, que valia 1$600 (mil
1 Segundo apontou Leila Mezan Algranti, o fato de os bufetes passarem a substituir as mesas nos inventrios paulistas poderia apontar para um aproveitamento melhor desse mvel, por exemplo para a realizao das refeies. Vide: ALGRANTI, Leila Mezan. Artes de mesa: espaos, rituais e objetos em So Paulo colonial. (Apresentao de Trabalho/Conferncia ou palestra). Texto fornecido pela autora. 2 Inventrio e Testamento de Joo da Costa. IN: Inventrios e Testamentos. Vol. 12, pp. 347 370. 3 Picote tambm era chamado de burel. Era um tecido grosso feito de l. BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico ... Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712 - 1728. 8 v. Disponvel em: http://www.brasiliana.usp.br/en/dicionario/edicao/1. Vol.6, p.500.
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e seiscentos ris); outro estojo, de cirurgia, com seis lancetas, uma tesoura, umas agulhas, uma
pina e um cautrio, conjunto avaliado tambm em mil e seiscentos ris; um botico, dois
escarnadores e dois ferros como tenazes, avaliados em oitocentos ris; um rebolo4 pequeno e
um banco, que juntos valiam duzentos ris; dois arrteis e meio de azougue, substncia
medicamentosa, usada, no perodo, no tratamento de volta ou n nas tripas5, o qual fora
avaliado em 3$600 (trs mil e seiscentos ris). No entanto, sua principal atividade, ao que parece,
aps se isolar da sociedade na ermida de Santo Antonio em busca de salvao para sua alma, era
varrer a casa do santo, servindo-o dessa forma.
Este era um homem de poucos pertences, mas alguns de seus hbitos associavam-se a
costumes que eram perpetrados no cotidiano das pessoas mais abonadas. Entre esses, o consumo
do sal, do qual Joo, ao falecer, tinha um alqueire e meio proveniente do Reino e mais seis
arrteis provenientes de Benguela, quantidade que somava 3$160 (trs mil, cento e sessenta ris).
Esse valor era trs vezes maior do que o preo de seu bofete e fazia do artigo um dos itens mais
caros de seu inventrio6. O sal, no inicio da colonizao, era produto escasso e de oferta irregular.
A falta desse determinava o consumo ocasional para o homem e para os animais, assim como seu
alto preo7.
Sal, leitura e propriedade de livros e culos, fazer as refeies em um mvel para o qual
se tinha duas toalhas e a propriedade de um escravo africano... Tais posses e costumes, um tanto
refinados se comparados aos grossos modos da populao em geral, so indcios de uma origem,
ou de condies de vida diferenciadas experimentadas por este personagem.
De fato Joo da Costa j havia vivido dias mais confortveis. Durante parte de sua vida,
esteve na ocupao de cargos de governana ou ligados diretamente a esta. Em 1600, por
exemplo, foi nomeado repartidor de terras da vila e distrito de So Paulo e avaliador dos rfos,
permanecendo no cargo at 1616. Em 1603 ocupou o cargo de Juiz Ordinrio da mesma vila. Em
1608 o nomearam mamposteiro dos cativos8. Tudo indica ter sido um homem relativamente
importante da governana local, visto os cargos que ocupara.
4 Rebolo era a pedra redonda ou roda de pedra, armada em cavaletes de madeira, em que os barbeiros amolavam as navalhas. Vide BLUTEAU, op. cit. Vol. 7, p. 138 5 Vide BLUTEAU, op. cit. Vol. 1, p. 697. 6 Inventrio e Testamento de Joo da Costa. IN: Inventrios e Testamentos. Vol. 12, pp. 347 370 7 MENESES, Jos Newton Coelho. O continente rstico: abastecimento alimentar nas Minas Gerais setecentistas. Diamantina, MG: Maria Fumaa, 2000, p. 116. 8 Mamposteiro de cativos era a pessoa designada para arrecadar esmolas e condenaes que se do para cativos. Vide BLUTEAU, op. cit., Vol. 5, p. 227. Os cargos ocupados por Joo da Costa podem ser acompanhados na seguinte
20
Joo da Costa e sua esposa Ins Camacho, nos vinte e oito anos que permaneceram
casados, tiveram dez filhos 9 . Quando Ins faleceu, em 1623, a filha mais nova do casal,
Margarida, tinha doze anos. Desses dez herdeiros, sete eram mulheres, as quais deveriam ser
dotadas, e trs eram homens.
As filhas Ana da Costa, Isabel da Costa e Maria da Costa, Joo dotou para que pudessem
casar. Para Maria de Lima, outra filha, a qual havia sido mulher de Joo Pedroso e j havia
falecido na data do testamento do pai, no havia recebido nada, porque no a casara. O casamento
teria sido arranjado por Ins e justamente por ter sido feito na ausncia de Joo, este declarou que
no sabia o que a mulher havia prometido ou dado em casamento filha. Outra filha sua,
chamada Pscoa da Rosa, casara-se por ordem de seu irmo mais velho, Joo da Costa o moo,
tambm na ausncia de seu pai. Por este casamento, especificamente, Joo chamara os familiares
de traidores, visto que, devido ao tamanho do dote, o pai de famlia perdera mais de cento e
cinqenta mil ris10. O filho dilapidara o patrimnio da famlia na ausncia do pai, negociando
um dote excessivamente grande para sua irm, que no quis herdar, quando da morte deste,
mostrando que no compensava trazer colao a fortuna que recebera em casamento, a fim de
herdar junta e igualmente com seus irmos11.
Os objetos dispostos no dote usados como ponte para trazer famlia mais um membro, o
marido de Pscoa da Rosa, Gaspar de Lubria, na realidade ergueram uma cerca entre o pai e o
restante dos familiares, j que ele se sentiu lesado pelo alto valor dado em casamento.
Os inventrios, os ris ou listas de bens e objetos pertencentes ao inventariado informam,
por meio dos artefatos que compunham o patrimnio, sobre as formas de viver e os gestos do dia-
a-dia. Informam tambm sobre as preferncias e prioridades no que se refere ao acmulo de
patrimnio, bem como de que maneira este contribua para posicionar o individuo na sociedade.
documentao: Atas da Cmara da Vila de So Paulo. Vol. 2, ano de 1603; Registro Geral da Cmara de So Paulo. Vol. 1, p. 164 165; Inventrios e Testamentos. Vols. 1 5. 9 Inventrio e Testamento de Joo da Costa. IN: Inventrios e Testamentos. Vol. 12, pp. 347 370. Cabe observar que no testamento de Ins Camacho foram declarados 9 filhos e no testamento de Joo da Costa foram declarados 10. 10 Testamento de Joo da Costa. In: Inventrios e Testamentos. Vol. 12, p. 349. 11 Trazer a colao era devolver ao montemor aquilo que havia sido doado pelo inventariado em vida, ou o valor correspondente aos itens, para que fosse dividido na partilha de maneira igual entre os herdeiros. Vide: Ordenaes Filipinas, Quarto Livro. Ttulo XCVII. Edio de Candido Mendes de Almeida. Rio de Janeiro de 1870. Disponvel em http://www.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm. Consultado em 07. abr. 2012.
21
O consumo algo ativo e constante no cotidiano dos indivduos. Ele estrutura valores que
do base s identidades, regulam relaes sociais e definem mapas culturais. Os bens em si so
neutros, porm seus usos so sociais. Eles podem ser usados como cercas ou como pontes 12.
Definir o consumo como um uso de posses materiais que est alm do comrcio e livre dentro
da lei, permite pensar as decises do consumo enquanto fonte vital para a cultura13. Nesta
perspectiva, os bens so necessrios para tornar categorias da cultura visveis e estveis, se
admitimos que as posses materiais possuem significao social e podem ser usadas como
comunicadores. Dessa forma, os bens possuem capacidade de estabelecer e manter relaes
sociais. Afinal, eles so sinais fsicos de cdigos de organizao e ordenamento da realidade e das
relaes sociais. Eles estabelecem nas diversas situaes, a leitura do jogo de direitos e
obrigaes, de valores e expectativas, produzindo sua visibilidade por meio da materialidade14.
O objetivo do consumidor construir, atravs dos bens que escolhe, um universo
inteligvel. Os bens seriam, portanto, o meio utilizado pelo consumo para tornar firme e visvel
um conjunto particular de julgamentos nos processos fluidos de classificar pessoas e eventos15 e
o consumo seria um meio de o indivduo dizer algo sobre si mesmo. Alm disso, esse estaria na
base do gosto e da distino, sem o que no se poderia falar de indivduos e de estratgias de
reproduo de muitos grupos e identidades sociais no mundo moderno. Assim, alm de produzir
vnculos sociais, o consumo tambm gera formas particulares de solidariedade, confiana e
sociabilidades fundamentais para a vida social16.
Os bens de Joo da Costa, como pudemos observar, permitiram entrever aspectos das
formas de viver e de seus gestos cotidianos, bem como sua posio na sociedade. Este um caso
em meio a muitos outros. Se ampliarmos a perspectiva, fazendo uma anlise serial dos
inventrios, podemos inferir dados da sociedade planaltina, as formas de viver, os gestos
presentes no cotidiano de diferentes pessoas que partilhavam um mesmo espao de vivncia: a
Vila de So Paulo. Alm disso, ao rastrearmos a circulao desses objetos por meio das trocas
12 DOUGLAS, M. ISHERWOOD, B. O mundo dos bens: para uma antropologia do consumo. Traduo Plnio Dentzien. 1a. ed. 2a. reimpresso. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009, p. 36. 13 DOUGLAS; ISHERWOOD, op. cit., p. 102. 14 MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. A cultura material no estudo das sociedades antigas. In: Revista de Histria. Nova Srie. Nmero 115, Julho / Dezembro, 1983, pp. 103 117. 15 DOUGLAS; ISHERWOOD, op. cit., p. 115 e 116. 16 GOMES, L. G. Breve introduo edio brasileira. IN: APPADURAI, Arjun (org). A vida Social das Coisas. As mercadorias sobre uma perspectiva cultural. Traduo Agatha Bacelar. Rio de Janeiro. EDUFF, 2008. p. 10.
22
comerciais, emprstimos e heranas, possvel vislumbrar um universo de relaes de
sociabilidades que se formavam no dia-a-dia.
Os inventrios, como assinalou Alcntara Machado, so fontes repletas de detalhes17. No
entanto, s vezes esses no se mostram to completos quanto possvel, no que se refere a retratar
a fazenda do inventariado na totalidade dos objetos. H nos inventrios produzidos entre 1578 e
1640 descries bastante detalhadas dos objetos de origem europia. Instrumentos indgenas,
porm, no eram contemplados com avaliaes ou registros nestes documentos. Talvez pelo fato
de que mesmo sendo importantes na execuo de tarefas no cotidiano, esses no eram valorizados
monetariamente.
Alm disso, cabe salientar que o fato do inventrio ser realizado a partir das declaraes
do inventariante, o qual era geralmente o cnjuge, um membro da famlia ou vizinho prximo,
mesmo sob juramento, abria a possibilidade de se ocultarem objetos, fossem esses de grande ou
de pequeno valor.
Cremos, entretanto, na validade dessas fontes enquanto retrato dos patrimnios, afinal, a
maior parte das coisas pertencentes aos inventariados era registrada nos ris, de maneira que,
sculos depois da ocorrncia do registro, possvel ao pesquisador vislumbrar os modos de vida
e a materialidade do cotidiano de uma dada sociedade por meio de tais documentos.
Muitos trabalhos foram realizados com base no estudo de inventrios ps-morte. A partir
deles possvel observar os diferentes tratos dados a uma mesma documentao. Essa
importante fonte histrica, apesar de utilizada por diversos autores na historiografia brasileira
focando, na maioria das vezes, os objetos contidos nos ris de bens inventariados, recebe
tratamentos diferentes, conforme os objetivos de cada estudo. A metodologia e o arcabouo
terico de cada pesquisador so fundamentais na lida com esta documentao, pois estes levam as
diferentes perguntas cujas respostas so possveis de serem pensadas a partir das fontes.
Valores culturais, sociais e econmicos das diversas sociedades humanas podem ser
apreendidos por meio desta documentao privilegiada para tratar a cultura material. A vida
cotidiana, os hbitos da sociedade no que se refere materialidade que cerca as pessoas em seus
ambientes de vivncia, como os domiclios, as relaes pessoais e de sociabilidade, podem ser
17 ALCANTARA MACHADO. Vida e morte do bandeirante. Imprensa Oficial. So Paulo. 2006, p. 34.
23
compreendidos em sua dinmica e nos momentos de transformao proporcionados pelo
desenvolvimento econmico ou por processos de modernizao.18
A cultura material possui, assim, uma profunda relao com as transformaes nos
costumes das sociedades. possvel afirmar que o sistema da convivncia social foi
transformado pela evoluo simultnea dos cdigos de costumes e das sensibilidades quando
por outros consumos ou pela utilizao diferente das coisas os indivduos podem se construir de
outra forma e reajustar sua relao com a coletividade 19.
A insero das pessoas nas diversas sociedades pode ser alcanada atravs do estudo do
universo material arrolado em inventrios e testamentos, pois, o trabalho e as variadas atividades
econmicas, as quais so testemunhadas nesta documentao por mltiplos objetos, podem ser
compreendidas como meio para se ocupar determinados espaos sociais. Gostos estticos e
permanncias culturais tambm so temticas passiveis de apreenso por meio do estudo dos
bens registrados nos inventrios20.
Os artefatos, assim como seus usos possuem um papel social no interior de cada poca. A
materialidade presente no cotidiano se altera conforme vo se inserindo novos valores na
sociedade em que esta se encontra. Tais mudanas trazem, por sua vez, transformaes nos
gestos, costumes e tarefas cotidianas21. O meio urbano e rural, as propriedades de diferentes
tipos, o espao domstico e de produo, podem todos ter aspectos desvendados por meio do
estudo de inventrios ps-morte.
Os artefatos, no apenas nos expressam, eles tambm nos moldam e, em graus variados,
nos constituem: O artefato, desse modo, , ao mesmo tempo, produto e vetor das relaes que
seus fabricantes e usurios estabelecem em sociedade e , ainda, produtor de seres sociais22. Eles
18 ABRAHO, E. M. Mobilirio e utenslios domsticos dos lares campineiros (1850 1900). Dissertao de mestrado. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. Campinas, SP. 2008. 19 ROCHE, Daniel. Histria das coisas banais: nascimento do consumo nas sociedades do sculo XVII ao XIX. Traduo de Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro. Rocco. 2000, p. 20. 20 MOL, C. C. Mulheres forras: cotidiano e cultura material em Vila Rica (1750 1800). Dissertao de mestrado. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Cincias Humanas, Letras e Histria. Belo Horizonte. MG. 2002. 21 LIMA, Tnia Andrade. Pratos e mais pratos: louas domsticas, divises culturais e limites sociais no Rio de Janeiro, sculo XIX. Anais do Museu Paulista. Histria e Cultura Material, Nova Srie, v. 3, p. 129-191, jan./dez. 1995. 22 MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. Prefcio. IN: CARVALHO, Vnia Carneiro de. Gnero e Artefato: o sistema domstico na perspectiva da cultura material So Paulo, 1870 1920. So Paulo. Editora da Universidade de So Paulo / Fapesp. 2008, p. 12.
24
resultam de formas de organizao do homem em sociedade e criam condies para que se
produzam e se efetivem as relaes sociais23.
A cultura material matriz e mediadora de relaes. Ela denota que a matria possui
matriz cultural e que a cultura possui uma dimenso material. Tal dimenso abrangeria todo
segmento fsico socialmente integrado 24 . Em outras palavras, segmento fsico socialmente
apropriado pelo homem, entendendo-se essa apropriao como a ao interventora e modeladora
do homem em relao aos elementos do meio fsico, de acordo com propsitos e normas
culturais, ou seja, conforme padres, entre os quais se encontram objetivos e projetos25. Conhecer
a cultura material de uma sociedade, portanto, leva o historiador pelos caminhos, s vezes
velados, dos costumes, dos hbitos, das prticas, dos pensamentos de uma comunidade... Pode
levar, inclusive, aos indcios das formas de sentir.
A vida material opera papel fundamental em nosso dia-a-dia. A materialidade pode ser
compreendida como aquilo que organiza, significa e nos permite experimentar a vida cotidiana26.
De acordo com Isabel T. C. Augusto, esta potencialidade da materialidade se concretiza medida
que ela serve para definir a ns mesmos. Essa auto-definio do indivduo alcanada atravs
da vida material pelo fato dela nos servir como instrumento de poder, como um prolongamento
de ns mesmos, e pela sua intermediao em nossas relaes com outros indivduos27.
Sociedades so estudadas atravs dos artefatos. Cabe sempre atentar para o seguinte: no
basta contextualizar o artefato, deve-se compreender estes contextos em sua interdependncia das
prticas cotidianas28. Afinal, esse contingente principal da cultura material encontra-se imbricado
nas mais diversas interaes sociais29.
Focalizar a circulao dos objetos e bens pelas redes de sociabilidades na vila de So
Paulo entre finais do sculo XVI e primeira metade do XVII, um dos objetivos do presente
23 MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. A cultura material no estudo das sociedades antigas. In: Revista de Histria. Nova Srie. Nmero 115, Julho / Dezembro, 1983, pp. 103 117. 24 REDE, Marcelo. Histria a partir das coisas: tendncias recentes os estudos de cultura material. In: Anais do Museu Paulista. So Paulo. N. Sr. v.4 p.265-82 jan./dez. 1996. 25 MENESES, U. T. 1983, op. cit., p. 112. 26 CSIKSZENTMIHALYI, Mihaly. Why we need things. In: LUBAR, Steven and KINGERY, W. David. History of things: essays of material culture. Washington: The Smithsonian Institution, 1993. P. 20 29. 27 AUGUSTO, I. T. C. Entre o ter e o querer : domiclio e vida material em Santa Maria de Belm do Gro-Par (1808 1830). Dissertao de mestrado.Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. Campinas. SP. 2007. p. 8. 28 ABRAHO, op.cit. 29 MENEZES, Ulpiano Toledo Bezerra de. Apresentao. In: MARTINEZ, Claudia Eliane Parreiras Marques. Riqueza e escravido: vida material e populao no sculo XIX Bonfim do Paraopeba / MG. So Paulo: Annablume; Fapesp, 2007, pp. 13 16.
25
estudo e possibilita-nos observar caractersticas importantes nas diversas maneiras como as
pessoas se relacionavam entre si e com a cultura material, bem como as formas de intermdio que
esta realizava nos circuitos sociais, configurando relaes. Nisso reside o diferencial de nosso
trabalho em relao historiografia produzida sobre o tema. Com o foco nos artefatos e bens em
movimento, buscamos compreender aspectos das sociabilidades fomentadas por esse trnsito e
das sensibilidades nele envolvidas. No conhecemos, at o momento, estudo histrico que tenha
se dedicado a compreender as formas de sentir desta populao, seja de maneira geral ou em seus
traos particulares, por meio da anlise da vida material.
Este trabalho, contudo, busca compreender as vivncias cotidianas a partir da cultura
material registrada nos ris de inventrios. Mas no pretende se limitar materialidade, visto que
o universo material seria uma dimenso do fenmeno social, compartilhando de suas idias,
relaes sociais e instituies30. Como na anlise de uma parte da trajetria de Joo da Costa,
desejamos capturar os gestos, as idias e as sensibilidades que se relacionam a esta cultura
material e principalmente, refletir sobre as relaes de sociabilidades implcitas nas formas de
circulao dos objetos, como nas trocas comerciais com pagamento a prazo e nos emprstimos,
mas tambm, nas dinmicas de construo, reconstruo ou diviso dos patrimnios familiares.
Nossa hiptese central de que a formao e manuteno dos patrimnios materiais na
vila de So Paulo, no perodo inicial da colonizao (final do sculo XVI e incio XVII),
dependiam da insero e bom posicionamento do indivduo em redes de sociabilidades, pelas
quais circulavam mercadorias, objetos e bens, sendo estas redes condicionadas pela constante e
intensa mobilidade. Alm disso, as mercadorias, objetos e bens, enquanto instrumentos
simblicos de comunicao, quando em posse de um indivduo, definiriam visivelmente o lugar
que este ocuparia na sociedade, contribuindo para seu reconhecimento e distino no interior da
comunidade. Pensamos, tambm, que os artefatos podem ser compreendidos como
prolongamentos da ao e influncia do indivduo, permitindo a circulao desses elementos e
sua infiltrao em meios sociais diversos, mesmo em sua ausncia. Isto se torna evidente quando
pensamos no ato de legar, atravs do qual o testador, mesmo aps sua morte, de certa forma
mantm controle e influncia sobre situaes diversas.
30 REDE, Marcelo. Histria a partir das coisas: tendncias recentes nos estudos de cultura material. In: Anais do Museu Paulista. Histria e Cultura Material. So Paulo. Nova Srie, V.4, p 265-82, jan/dez, 1996.
26
Assim, nos debruaremos sobre o perodo de 1580 a 1640, poca em que se intensificaram
as viagens ao serto em busca de indgenas31. Eles passariam a integrar os patrimnios, sendo
aproveitados tanto como mo-de-obra nas diferentes atividades produtivas e cotidianas, bem
como no exerccio da funo de carregadores. Nesse caso, atuavam no transporte de pessoas e
cargas diversificadas nos caminhos que ligavam a vila ao litoral e outras paragens, contribuindo
dessa maneira, para tornar menos difcil o acesso a artefatos variados e de diferentes
provenincias. Os ndios de carga, bem como aqueles que trabalhavam nas lavouras e nos
diversos ofcios contriburam para o desenvolvimento e ampliao das atividades econmicas no
Planalto paulista, e conseqentemente para o crescimento dos patrimnios familiares e
individuais. Nosso recorte cronolgico, portanto, se vincula intensificao das atividades
sertanistas, pelo fato dessa contribuir para o aumento da presena desse elemento fundamental
para o enriquecimento dos moradores de Piratininga, o escravo indgena, mas no s.
Paralelamente, tais expedies constituem o pano de fundo dessa pesquisa, j que marcavam o
cotidiano dos habitantes da vila de So Paulo e arredores, imprimindo nesse uma constante
mobilidade.
Durante o sculo XVI, desenvolveram-se diversas formas de apropriao direta de mo-
de-obra indgena: os resgates, o apresamento e as expedies punitivas, que se articulavam
enquanto verdadeiras guerras ao gentio. Com o alvorecer do sculo XVII, estas formas foram
sendo ampliadas e aperfeioadas pelos portugueses de So Vicente32. Neste segundo momento,
com a expanso das atividades econmicas aps a pacificao do Planalto e a ocupao de terras
em bairros mais distantes do ncleo paulistano, os colonos passaram a montar expedies
visando o apresamento para sustentar suas novas empreitadas agrcolas e pastoris. As expedies,
portanto, aumentaram em tamanho e freqncia, especialmente pelo fato de que a dizimao dos
indgenas do Planalto levou os paulistas a regies mais distantes como o sul do Mato Grosso e o
31 importante observar que o nosso recorte coincide com o perodo da Unio Ibrica. O interessante trabalho de Jos Carlos Vilardaga tratou de maneira aprofundada do impacto da realidade poltica peninsular na Vila de So Paulo, bem como das relaes entre a vila paulista e a regio paraguaia do Guair. Vide: VILARDAGA, J. C. So Paulo na rbita do Imprio dos Felipes: conexes caslelhanas de uma vila da Amrica portuguesa durante a Unio Ibrica (1580 1640). Tese de doutorado. Universidade Estadual de So Paulo / So Paulo, 2010. Veja tambem: CANABRAVA, A. P. Comrcio portugus no Rio da Prata (1580 1640). Belo Horizonte / So Paulo. Editora Itatiaia / EDUSP, 1984. 32 Ver MONTEIRO, J. M. Negros da terra: ndios e bandeirantes nas origens de So Paulo. So Paulo: Companhia das Letras, 1994, pp. 58 68.
27
Paraguai33. Tais empreendimentos teriam alcanado seu apogeu nas primeiras quatro dcadas do
sculo XVII, com as grandes viagens, capitaneadas por Manuel Preto, Antonio Raposo Tavares,
Ferno Dias Paes e outros. 34
Para o estudo da cultura material na Vila So Paulo do sculo XVII, algumas obras so de
grande importncia para a compreenso das caractersticas do perodo. Os principais nomes que
gostaramos de destacar so: Capistrano de Abreu, Sergio Buarque de Holanda, Alcntara
Machado, Muriel Nazzari, Milena Fernandes Maranho, Ilana Blaj e Jonh Manuel Monteiro35. Boa
parte das discusses realizadas pela historiografia sobre o tema se baseia em suas idias, visto
que suas obras so referncias fundamentais.
A anlise do trabalho clssico escrito por Capistrano de Abreu traz apontamentos sobre a
importncia da cultura material na formao da sociedade colonial. Em Captulos de Histria
Colonial, o historiador observou a formao do Brasil sob o impacto da cultura material, a qual,
moldada pelo meio, conferiu identidade especfica aos colonos. No captulo intitulado O Serto,
ele apresentou algumas das adversidades enfrentadas pelos paulistas em seu movimento
expansivo em direo ao interior do territrio colonial, acentuando as dificuldades impostas pelo
meio natural que separava a regio litornea do serto, tornando a populao que nesse se
estabelecia independente das autoridades da marinha36. O autor afirmou a fora do meio em
influenciar os moradores do planalto a empenharem-se no sertanismo: Sob aquela latitude,
naquela altitude, fora possvel uma lavoura semi-europia, de alguns, seno de todos os cereais e
frutos da pennsula. Ao contrrio, o meio agiu como evaporador: os paulistas lanaram-se a
33 MESGRAVIS, L. De bandeirante a fazendeiro: aspectos da vida social e econmica em So Paulo colonial. IN: PORTA, P. (org). Histria da Cidade de So Paulo. Vol.1: A vila colonial. So Paulo: Paz e Terra, 2004. p 115-143. 34 Ver: MONTEIRO, J. M. Dos Campos de Piratininga ao Morro da Saudade:a presena indgena na histria de So Paulo. IN: Histria da cidade de So Paulo. Vol. 1: A cidade colonial. Organizao: Paula Porta. So Paulo, Paz e Terra, 2004. p. 41. 35 ABREU, Joo Capistrano de, Captulos de histria colonial. Rio de Janeiro. Civilizao Brasileira, Braslia. INL. 1976; HOLANDA, S. B. Caminhos e Fronteiras. So Paulo. Companhia das Letras, 1994, 3a ed.; ALCANTARA MACHADO, op. cit.; MARANHO, M. F. A opulncia relativizada: significados econmicos e sociais dos nveis de vida dos habitantes da regio do Planalto de Piratininga 1648 1682. Dissertao de mestrado. Universidade Estadual de Campinas. Campinas / SP. 2000 (Dissertao publicada); BLAJ, Ilana. A trama das tenses. O processo de mercantilizao de So Paulo colonial (1681 1721). So Paulo: Humanitas, FFLCH, Fapesp, 2002; MONTEIRO, J. M. Negros da terra: ndios e bandeirantes nas origens de So Paulo. So Paulo. Companhia das Letras, 1994; NAZZARI, M. O desaparecimento do dote. Mulheres, famlia e mudana social em So Paulo, Brasil, 1600 1900. So Paulo. Companhia das Letras, 2001. 36 ABREU, op. cit., p 99.
28
bandeirantes 37. Na viso de Capistrano, pobreza e riqueza estavam igualmente presentes na vila
de So Paulo, pela existncia de uma elite faustosa paralelamente a uma populao miservel.
Capistrano apontou para duas caractersticas propiciadas pelo meio material que foram
compreendidas na produo historiogrfica como peculiaridades paulistas. Primeiramente, o
isolamento geogrfico teria levado os paulistas a adotarem uma certa autonomia, caracterstica
essa que se explorou na construo historiogrfica do inicio do sculo XX38, como a imagem
indmita e brava do bandeirante paulista, destinado a expandir os limites geogrficos da nao.
Em seguida, destacou-se o movimento constante proporcionado pelas bandeiras. O isolamento
geogrfico, de acordo com alguns autores teria tambm proporcionado o ambiente de extrema
pobreza, que, por sua vez, determinaria aos paulistas a necessidade de remediar tal situao
atravs das expedies ao serto.
Alcntara Machado, voltando-se para os aspectos da vida material, em Vida e morte do
bandeirante, publicado em 1929, identificou a movimentao proporcionada pelas bandeiras no
s como especificidade dos paulistas, mas tambm como conseqncia da carestia que assolava a
vila entre os sculos XVI e XVII.
Opondo-se idia de uma vila paulista opulenta, Machado, trabalhando a partir dos
inventrios e testamentos, mostrou as dificuldades cotidianas e alguns aspectos culturais dos
paulistas no perodo em questo. Para o autor, os hbitos seriam justificados pelas necessidades
cotidianas e no contexto identificado, o apresamento de indgenas era fundamental devido s
necessidades impostas pela pobreza.
Apesar de esta idia da existncia de uma conexo entre o isolamento, a pobreza e as
incurses no serto j marcar a historiografia da primeira metade do sculo XX, uma viso
comparativa que ressaltava tais caractersticas da vila paulista em relao ao Nordeste aucareiro
e exportador se estabelecera como dominante nos escritos sobre So Paulo nas dcadas de 1950,
1960 e 1970. Essa abordagem se deveu a uma espcie de primazia da histria econmica,
37 ABREU, op. cit., p 99. 38 A historiografia sobre So Paulo produzida na primeira metade do sculo XX possui forte enviesamento poltico: atravs da valorizao da histria regional paulista e da figura do bandeirante, pretendia-se criar uma identidade paulista que legitimasse seu papel de destaque na economia e poltica nacionais. Esse foi nosso objeto de estudo na pesquisa de iniciao cientifica. SILVA, Luciana da. Uma tradio construda: a memria bandeirantista em So Paulo (1895 1954). Pesquisa de iniciao cientfica, realizada com bolsa PIBIC UNICAMP, nos anos de 2008 e 2009, sob orientao da Prof. Dra. Leila Mezan Algranti. Vide, tambm sobre o tema: ABUD, Ktia Maria. O sangue intimorato e as nobilssimas tradies. A construo de um smbolo paulista: o bandeirante. Tese de doutoramento, Departamento de Historia, Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, 1986.
29
ocorrida em um contexto no qual os historiadores, influenciados pela viso cepalina, passaram a
focar questes relativas a problemtica do subdesenvolvimento. Nesse momento, a produo
historiogrfica sobre o perodo colonial voltou-se para as zonas exportadoras, numa tentativa de
explicar a formao das estruturas que levaram o Brasil ao subdesenvolvimento39 e o Nordeste
passou a ser visto como ponto de estrangulamento ao desenvolvimento brasileiro no sculo XX.
Esta regio tornava-se dessa forma o eixo referencial dos estudos histricos sobre o perodo
colonial, sendo relegada a So Paulo a funo de fornecer um contraponto que revelaria uma
situao marginal e especfica40.
Em Histria da cidade de So Paulo41 Affonso dEscragnolle Taunay referiu-se pobreza
paulista apontando para existncia de uma lavoura rudimentar e para a falta de produtos de
exportao, em comparao com regies nordestinas42. Richard Morse, em A formao histrica
de So Paulo43, cuja primeira edio data de 1954, mostrou um ambiente marcado pela economia
de subsistncia, carestia de moeda, propriedades rurais auto-suficientes no que diz respeito s
manufaturas simples e lentido no acmulo de capitais. J Raymundo Faoro, em Os donos do
poder, com primeira edio de 1958, apesar de identificar a constituio de uma vigorosa rede de
comrcio de escravos indgenas, possibilitada pelas incurses ao serto, que alcanava o Rio de
Janeiro, Bahia e Pernambuco, algo que poderia remediar a pobreza da lavoura de subsistncia,
concluiu que o paulista no enriquecia com estas atividades.
Paralelamente a esta produo historiogrfica, Sergio Buarque de Holanda, ao optar por
um outro vis, que enfatizava So Paulo, proporcionou inovadora interpretao focando a
39 De acordo com Ilana Blaj, A crena na histria cientfica e na possibilidade da formulao de leis explicativas para a mudana histrica, (...) resultou, no Brasil, na predominncia de estudos mais preocupados (...) em buscar as razes de nossa dependncia. Com efeito, nas dcadas de 1950, 1960 e 1970 (...)as reas exportadoras tradicionais na colnia transformaram-se, no sculo XX, em obstculos (...)para o desenvolvimento brasileiro aps a 2 Guerra Mundial, BLAJ, 2002, op. cit., p. 65. 40 Sobre a distino entre a pobreza de So Paulo e a riqueza do nordeste, feita pela historiografia, Vide: MARANHO, Milena Fernandes. O moinho e o engenho: So Paulo e Pernambuco em diferentes contextos e atribuies no Imprio colonial portugus (1580 1720). Tese de doutorado. USP. 2006. 41 O livro no possui ano de publicao, porm o prefcio de 1953. 42 Cabe ressaltar que Taunay inicia sua vasta produo historiogrfica antes do perodo da referida mudana. Mesmo assim, constatamos, atravs de nossa pesquisa de iniciao cientifica, que possvel notar nas obras anteriores a 1950 a identificao de relaes causais entre o isolamento, a pobreza e constante movimento dos paulistas rumo ao serto. 43 MORSE, R. M . Formao Histrica de So Paulo (De comunidade Metrpole). So Paulo: Difuso Europia do Livro. 2a ed. 1970.
30
vocao da sociedade constituda no Planalto de Piratininga que estaria no caminho, que
convida ao movimento44.
Em seu livro Mones, publicado em 1945, assim como em Caminhos e fronteiras,
publicado em 195745, o autor se afirmou enquanto historiador da cultura, voltando-se para o
estudo das tcnicas e prticas da vida cotidiana.
Observando So Paulo nos tempos coloniais, na dimenso da vida material, Sergio
Buarque procurou compreender o processo pelo qual o legado da cultura europia diluiu-se e
transformou-se diante das adversidades e em contato com a cultura dos antigos naturais da terra,
nos primeiros tempos da colonizao, e reconstituiu-se lentamente. Em Caminhos e fronteiras,
Holanda apresentou ao leitor situaes surgidas do contato entre a populao adventcia e os
antigos naturais da terra com a subseqente adoo, por aquela, de certos padres de conduta e,
ainda mais, de utenslios e tcnicas prprios dos ltimos46. Seria este o momento em que os
colonos se mostraram mais sensveis s manifestaes divergentes da tradio europia, no que
diz respeito aos aspectos da vida material.
Em suas obras, o estudioso diverge das imagens cristalizadas na historiografia produzida
na primeira metade do sculo XX. Ele rejeita a viso evolutiva da Histria, que levara muitos
historiadores do perodo referido a aceitarem a idia de um destino manifesto por meio do qual
os paulistas teriam sido responsveis pela expanso das fronteiras nacionais. As expedies ao
serto, em sua interpretao, seriam fruto da integrao entre o meio, a cultura e a sociedade e
no apenas do mpeto aventureiro do paulista. Em artigo, publicado em 1966, Movimentos da
populao em So Paulo no sculo XVIII 47 , o historiador afirma que a raiz da atividade
expansionista estaria na m distribuio de solos e em seu mau uso, que logo o tornava
imprestvel, gerando grande atrao por reas espaosas do interior, nas quais poderia ser
aplicada a mo-de-obra indgena, capturada mais facilmente nessas regies. Na viso de Buarque
de Holanda, a valorizao do indgena no deveria proceder de uma anlise que afirmava o
surgimento de uma nova raa, mas pelos saberes dos nativos e pela importncia fundamental de
sua apropriao para a sobrevivncia dos moradores do planalto. 44 Sergio Buarque citando trecho de Mones, na introduo de HOLANDA, S. B. Caminhos e fronteiras. 3 ed. So Paulo. Companhia das Letras, 1994. p 9. 45 O livro rene e um conjunto de monografias e estudos que, anteriormente publicados em revistas nacionais e estrangeiras, foram adaptados. Vide: Prefcio. In: HOLANDA,1994, op. cit. 46 HOLANDA, 1994, op. cit., p. 12. 47 HOLANDA, S. B. Movimentos da populao em So Paulo no sculo XVIII. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, So Paulo, n. 1, p. 54-111, 1966.
31
Na dcada de 1970, a historiografia brasileira passou por um novo processo de reviso.
De acordo com Ilana Blaj, o que teria ocasionado tal movimento seria a crtica nfase
estruturalista na Histria, o debate da histria social reintroduzindo o homem e os grupos sociais
enquanto ncleo de estudos48. Nesse caso, temas como a colnia como um todo e suas conexes
com a metrpole e o mercado mundial foram focados, bem como a questo da regionalizao, das
especificidades e dos diversos agentes sociais. A partir dessa viso atenta as particularidades e a
complexidade social, outras categorias que no senhores e escravos passaram a ser analisadas,
numa tentativa de iluminar as estruturas de dominao interna, os interesses especficos das
vrias camadas sociais e as mltiplas articulaes possveis no mbito do complexo social49.
John Manuel Monteiro em seu livro Negros da terra proporcionou uma reviso da histria
do bandeirantismo e da formao de So Paulo direcionando sua abordagem e interpretao para
um sentido diverso da historiografia tradicional50. Enfatizando a figura do indgena, no interior do
sistema produtivo paulista durante os sculos XVI, XVII e XVIII, ele traou um panorama no
qual os paulistas expandiram as fronteiras da Amrica portuguesa. Para o autor, as expedies
para o interior, eram organizadas como forma de se explorar as potencialidades do meio e
sustentavam uma crescente base de mo-de-obra indgena no planalto paulista que possibilitava a
produo e o transporte de excedentes agrcolas, conectando a regio a outras partes da colnia
portuguesa e ao circuito mercantil do Atlntico meridional. A mo-de-obra indgena era
fundamental para tocar os empreendimentos agrcolas dos paulistas, da ser motivao das
expedies, ampliadas a partir do sculo XVII, projetando-se a distncias maiores. Tal ponto de
vista, mais uma vez, refora a idia de uma intensa mobilidade paulista, caracterstica dessa
sociedade.
Monteiro, em artigo intitulado Celeiro do Brasil: escravido indgena e a agricultura
paulista no sculo XVII51, contestou a idia de uma profunda pobreza de So Paulo colonial,
criticando a postura comparativa que a historiografia adotara. O autor afirma que a comparao
entre a riqueza produzida atravs da economia regional de So Vicente e aquela produzida nas 48 BLAJ, 2002, op. cit., p. 75. 49BLAJ, 2002, op. cit., p. 78. 50 Por historiografia tradicional referimo-nos a que foi produzida na primeira metade do sculo XX por intelectuais paulistas ligados ao Instituto Histrico e Geogrfico de So Paulo, bem como ao Museu Paulista, dentre os quais podemos destacar Afonso dEscragnolle Taunay, Alfredo Ellis Junior e Cassiano Ricardo, a cujas obras deve-se a imagem herica do bandeirante. Essa historiografia foi objeto de estudo De nossa pesquisa de iniciao cientifica, realizada entre 2008 e 2009, com bolsa PIBIC CNPQ. 51 MONTEIRO, J. M., Celeiro do Brasil: escravido indgena e a agricultura paulista no sculo XVII, em Histria, n. 7, 1988, p. 1 12.
32
reas aucareiras plenamente integradas ao circuito comercial atlntico revelaria apenas um vis
da histria. Para o historiador, a agricultura comercial desempenhara papel fundamental na
formao das estruturas que caracterizavam So Paulo colonial. O autor nega a importncia dada
ao trfico de escravos para o Nordeste, enfatizando que o auge das atividades de apresamento de
guaranis, ocorrido entre 1628 e 1641, estaria relacionado de maneira intrnseca a economia que
florescia no Planalto. Dessa forma, com o desenvolvimento da agricultura para o comrcio,
muitos bandeirantes transformaram-se em proprietrios, plantando gneros alimentcios.
Em O desaparecimento do dote 52, publicado em lngua inglesa em 1991 e traduzido para
o portugus em 2001, Muriel Nazzari estudou como o declnio do dote esteve vinculado s
transformaes econmicas e sociais ocorridas em So Paulo na longa durao compreendida
entre os sculos XVII e XIX, captando, a partir do vis da histria econmica, as mudanas
referentes ao casamento e ao papel da mulher.
As pesquisas da historiadora norte americana proporcionaram a relativizao de vrias
afirmaes tradicionais acerca da sociedade paulista do sculo XVII. A autora apontou para o
fato de que tanto a terra quanto os escravos indgenas no eram avaliados monetariamente nos
inventrios da primeira metade do sculo XVII, questionando a idia de pobreza da sociedade
paulista. Ademais, sua amostragem sublinhou o fato de que a maioria dos proprietrios
empregava indgenas na produo agrcola para subsistncia e na produo de mercadorias para
venda, no sendo, ao contrrio do que muitos historiadores afirmavam, a venda do ndio para
outras capitanias a principal fonte de renda dos paulistas. Neste sentido, sua argumentao se
aproxima da apresentada por John Manuel Monteiro, por questionar a importncia do trfico de
mo-de-obra indgena para regies do Nordeste.
Ilana Blaj, em A trama das tenses, enfatizou a inexistncia de imagens de uma vila
extremamente rica ou pobre para a segunda metade do sculo XVII. Estudando as crises de
escassez de gneros alimentcios, juntamente com a ao dos atravessadores e os motins paulistas
no final do sculo XVII e incio do XVIII, a autora observou as potencialidades da regio que se
voltava para o abastecimento interno nos quadros da colnia, algo que destoa da idia de uma
pobreza geral paulista. O desenvolvimento da economia paulista estaria articulado desde meados
do sculo XVII, da a impossibilidade de se caracterizar a vila enquanto regio pobre e voltada
52 NAZZARI, M. O desaparecimento do dote. Mulheres, famlia e mudana social em So Paulo, Brasil, 1600 1900. So Paulo. Companhia das Letras, 2001.
33
para a subsistncia. No final deste perodo era perceptvel a dinamizao da economia na
capitania de So Paulo, pois haveria, anteriormente descoberta das minas, uma produo
agrcola que superava a finalidade da subsistncia, bem como redes de comrcio, ambas
favorecidas pelo uso da mo-de-obra indgena, que possibilitavam o abastecimento dessas novas
regies. A argumentao da autora se aproxima da interpretao de John Monteiro por destacar a
concentrao de riquezas nas mos de uma elite local e a conseqente marginalizao dos mdios
e pequenos colonos, como sendo processo que ocorria desde finais do sculo XVII.
Milena Maranho inspirou-se na obra de Blaj para analisar os nveis de riqueza dos
habitantes do Planalto de Piratininga na segunda metade do sculo XVII, constatando que a
mobilidade social era possibilitada pelo intenso movimento econmico53. A idia de uma pobreza
geral em So Paulo foi duplamente relativizada pela autora. Primeiramente tratando riqueza e
pobreza enquanto conceitos, considerando-os como caractersticas econmicas e sociais, cujos
significados sofrem alteraes ao longo do tempo, variando de acordo com as sociedades e os
momentos histricos nos quais se encontram. Dessa forma, a historiadora identificou na
documentao por ela trabalhada um uso retrico da pobreza, para burlar o pagamento de
impostos. No geral, a autora critica a viso comparativa por meio da qual as condies materiais
e econmicas da vila foram amplamente analisadas.
Cada um desses autores, independentemente do prisma adotado para anlise, tratam, de
certa maneira, da vida material. A questo da pobreza da vila torna-se inescapvel em trabalhos
que privilegiem aspectos da vida material. H que se ter cuidado especial portanto ao se adotar
vises generalizantes das condies materiais de vida dos paulistas da vila. Para o sculo XVII,
de larga importncia pensar a dinmica econmica, especialmente as engrenagens responsveis
por seu movimento, e o tipo de riqueza produzida em So Paulo, bem como os significados dessa
riqueza para o perodo estudado.
Assim como Ilana Blaj, cremos que no h como desconsiderar os fatores que distorcem
uma viso geral das condies econmicas da vila, quando est analisada por meio dos
montantes constantes nos inventrios: as terras e a mo-de-obra indgena no eram contabilizadas
nesse valor, de forma que parte do patrimnio do qual gozavam os moradores do Planalto de
Piratininga permanece ocultada nesta documentao.
53 MARANHO, op. cit.
34
Para pensar as questes relacionadas riqueza e pobreza de forma aprofundada,
evitando generalizaes, acreditamos ser necessria uma abordagem que trabalhe, ao mesmo
tempo, sobre o patrimnio do qual desfrutavam os indivduos e sobre as redes sociais das quais o
mesmo fazia parte. Isso remete o pesquisador a trabalhar duas dimenses do patrimnio: a
material, focando-se na cultura material descrita nos ris de inventrios, e a imaterial, capturada
atravs das dvidas e crditos inventariados ou mencionados nos testamentos. Por meio dessa
dimenso imaterial do patrimnio, torna-se possvel apreender relaes de confiana, interesse,
solidariedade e os conflitos relacionados ao rompimento dessas relaes.
Cabe tambm, analisar os significados com os quais os objetos eram revestidos,
observando de que maneiras a propriedade de certos objetos poderia ser indicativa do
posicionamento social do indivduo, assim como a posse influenciava no conjunto das relaes de
sociabilidades do qual a pessoa fazia parte.
Para o estudo da vida material, bem como das transaes comerciais a prazo, dos
emprstimos e das distribuies das heranas no h fonte mais apropriada do que os Inventrios
ps-morte por seu carter descritivo. Estes documentos fornecem elementos que possibilitam
uma anlise que trata no de coisas isoladas, mas de conjuntos de coisas: das diversas categorias
de artefatos presentes nos ris, suas quantidades e qualidades. Os atributos descritivos e a
adjetivao presentes nos inventrios viabilizam identificar valores monetrios, pragmticos e
afetivos, bem como hierarquias, preferncias e significaes 54 . J os testamentos so
fundamentais para se capturar a dimenso das sensibilidades, assim como escolhas e prticas
referentes s disposies sobre o patrimnio e a famlia. Essas duas fontes, juntamente com as
Atas da Cmara Municipal da Vila de So Paulo e as Ordenaes Filipinas, constituem a base
documental principal do estudo que, a seguir, o leitor acompanhar.
Por meio dos inventrios e testamentos acessaremos as redes sociais em que os indivduos
estavam envoltos, capturando a constituio e as relaes familiares e de vizinhana. Para tanto,
perseguimos os indivduos pelo nome, selecionando e agrupando documentos que os
mencionassem. Os inventrios foram privilegiados nesse trabalho, buscando-se averiguar as
variaes patrimoniais, especialmente daqueles que se casavam diversas vezes.
54 MENEZES, Ulpiano Toledo Bezerra de. Apresentao. In: MARTINEZ, Claudia Eliane Parreiras Marques. Riqueza e escravido: vida material e populao no sculo XIX Bonfim do Paraopeba / MG. So Paulo: Annablume; Fapesp, 2007, pp. 13 16.
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O procedimento adotado consistiu, primeiramente, em partir da relao de herdeiros
registrada em cada inventrio, para averiguar nomes de pais, mes e filhos, observando a famlia
se constituindo no domiclio. A partir dos nomes dos cnjuges, buscamos seus outros
casamentos, anteriores ou posteriores ao que identificamos inicialmente. Em seguida, procuramos
os documentos, desse mesmo tipo, referentes aos outros familiares: filhos, filhas, irmos, pais e
mes dos cnjuges, de forma a buscar novas menes ao personagem e ao seu patrimnio. Em
seguida, com tal levantamento completado, passamos a procurar novas informaes em outras
fontes. As genealogias disponveis para So Paulo nos permitiram conhecer vnculos no
registrados nos primeiros documentos, ampliando a rede social pela incorporao da parentela. J
as cartas de datas de terras, bem como os ris de testemunhas que assinaram os testamentos
selecionados, informaram sobre a vizinhana, local de morada, entre outros dados importantes.
Desenvolvendo a pesquisa dessa maneira, pudemos obter fragmentos de vida e
informaes variadas sobre indivduos em perodos de tempo considerveis. Isso permitiu
traarmos alguns percursos caminhados por estas pessoas, nos quais enfatizamos as relaes
familiares e de vizinhana, bem como as variaes patrimoniais concernentes a alguns
personagens. Em outras palavras, tendo em vista os vnculos entre os sujeitos, acompanhamos o
crescimento ou a reduo dos esplios familiares ao longo de parte de sua trajetria de vida
captando tambm os elementos que poderiam contribuir para tais movimentos, como recebimento
de heranas, dvidas e crditos, emprstimos de coisas, auxlios de parentes, etc.
Optamos por realizar nossas anlises por meio de estudos de caso, nos quais empregamos
esses conjuntos de inventrios e testamentos, cujas informaes foram complementadas com
dados extrados de fontes diversas. Assim, proporcionaremos ao leitor o acesso a ncleos
familiares e redes de relaes em que objetos e bens circulavam configurando e reforando laos
de diversas naturezas.
A seleo dos casos, cabe salientar, seguiu dois critrios. Primeiramente, nossa escolha
incidiu sobre os exemplos melhor acabados, de situaes que descobrimos serem recorrentes ao
longo da leitura das fontes. Em seguida, todos os casos selecionados foram alcanados por meio
do entrecruzamento de fontes, atravs do qual tecemos as relaes que vinculavam
comportamentos, prticas cotidianas e atores sociais diversos. Afinal, homens e mulheres so
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sujeitos de sua prpria histria, a qual , ao mesmo tempo, econmica, poltica, social e
cultural55.
Em outras palavras, tomamos homens e mulheres como protagonistas de sua histria,
buscando compreender como, nas suas experincias e dinmicas, as diferentes dimenses da
realidade se relacionam e articulam. Como assinalou Jos Maria Imzcoz, partindo dos atores
sociais possvel perceber a relao ntima e efetiva entre dimenses que, de outro modo,
aparecem dissociadas, e que relacionamos de forma superveniente, mediante supostas cadeias de
dependncia ou determinao 56. Neste procedimento, no se pode descuidar da globalidade de
elementos que constituem os sujeitos e que interferem nas relaes que eles travavam uns com os
outros, os contextos e os processos de mudana, os quais esto todos imbricados. De acordo,
novamente, com Imzcoz, os indivduos tm atributos e valores, sejam eles econmicos, culturais,
ou de qualquer outra natureza, e se relacionam no s entre si, mas com todos os elementos
materiais e imateriais sua volta. Estas dimenses da realidade no so exteriores aos atores
sociais. A cultura, as instituies, a economia, o poder poltico, no existem fora das pessoas,
esto encarnados nelas ou so carregados por elas. Com base nisso, pode-se afirmar que os
sujeitos atuam com seus atributos e com sua cultura: com sua riqueza, com seu status, com suas
atribuies hierrquicas, com seus valores, com suas convices e dvidas, com suas normas e
instituies, com seu interesse e desinteresse, etc. 57 .
Nosso objetivo , a partir das coisas, ou seja, da cultura material, compreender as relaes
de sociabilidades em que o indivduo se engajava e pelas quais circulavam objetos e bens, assim
como as sensibilidades presentes nessas relaes entre pessoas e coisas.
Para tanto, organizamos a dissertao em trs captulos, os quais descreveremos
brevemente.
No primeiro captulo, A vila de So Paulo e a casa seiscentista, levaremos o leitor a
conhecer alguns aspectos da materialidade do cotidiano analisando as formas de viver dos
habitantes da vila. O objetivo central deste captulo compreender o espao da vila, como viviam 55 IMIZCOZ, Jos Maria. Actores, redes, processos: reflexiones para uma histria ms global. In: Revista da Faculdade de Letras. Histria. Porto, III srie, vol. 5, 2004, p. 115 140. 56 Partiendo de los actores socialeses possible percibir la relacin intima y efectiva entre dimensiones que, de outro modo, aparecem disociadas y que relacionamos de forma sobrevenida, mediante supuestas cadenas de dependencia o determinacin. IMIZCOZ, 2004, op. cit., p. 118. 57 La cultura, ls instituciones, la economia, el poder politico, no existen fuera de las personas, estn encarnados em ellas o son llevados por ellas. sus atributos y con su cultura: con su riqueza, con sue status, con sus atribuciones jerrquicas, con sus valores, con sus convicciones y dudas, con sus normas e instituciones, con su inters y desinters, etc. IMIZCOZ, 2004, op. cit., p. 125.
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seus habitantes e o funcionamento da sociedade. Trataremos tambm as formas dos moradores de
Piratininga se relacionarem com seus espaos de vivncia: a vila como um todo, a qual dependia
do esforo coletivo para a construo de edificaes e outros elementos que marcavam
materialmente o domnio portugus sobre esta regio do Novo Mundo; e o domiclio, no qual se
encontrava depositada, em muitos casos, a maior parte dos objetos e bens que compunham os
patrimnios.
No segundo captulo, abordaremos as Redes sociais e circulao de objetos e bens:
necessidades em trnsito, no qual focalizaremos as redes de sociabilidades tecidas no cotidiano.
Nosso objetivo central compreender a constituio dos patrimnios e a importncia da famlia,
vnculos de parentesco, vizinhana e amizade neste processo. Nesta parte da dissertao
trabalharemos mais detidamente as partilhas de bens, com base nos inventrios, observando quo
complexa poderia ser a distribuio do patrimnio entre os herdeiros. Afinal, essa abria caminhos
em vrias direes: alterava redes de relaes de sociabilidades, bem como o conjunto do
patrimnio dos herdeiros e das vivas principalmente.
No terceiro captulo, Os testamentos e a distribuio dos legados aps a morte,
abordaremos as mudanas que ocorriam por fora da morte, das crenas no alm e suas
representaes, nas posturas em relao materialidade e famlia evidenciadas no momento em
que se registravam as ltimas vontades. A partir da compreenso dessas mudanas,
compararemos as sensibilidades e motivaes que levavam s decises de legar presentes nos
testamentos.
Com as anlises presentes nas pginas seguintes, pretendemos colaborar com as
discusses acerca da cultura material e formas de viver e sentir no planalto piratiningano,
desvendando aspectos das intrincadas imbricaes entre a materialidade cotidiana, as relaes de
sociabilidade e as sensibilidades experimentadas pelos moradores da vila de So Paulo.
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Captulo 1 : A vila da So Paulo e a casa seiscentista 1.1) A vila: vida material e cotidiano
Entre o final do sculo XVI e meados do sculo XVII, So Paulo era uma vila
pequena, cercada por muros, situada numa regio de planalto, prxima de uma serra
ngreme. Tal posicionamento geogrfico, como muitos autores j apontaram, dificultava o
acesso aos artefatos provenientes da Europa, assim como o comrcio dos produtos da vila e
seus arredores com outras localidades 1. O acesso difcil, isolava a regio, mas no de todo.
Solues foram encontradas que permitiam o comrcio com as reas litorneas. Os ndios
carregadores executavam a importante funo de manter a conexo com as regies de serra
abaixo, levando as mercadorias produzidas em So Paulo e trazendo produtos obtidos na
regio porturia.
Os caminhos antigos, pelos quais trilhavam os europeus do planalto, j existiam
quando de sua chegada. Aqueles haviam sido construdos pelos povos naturais da Amrica,
e, apesar de serem rudimentares, no sofreram adaptaes significativas por parte dos
europeus2. No entanto, a preocupao com relao manuteno dos caminhos diversos no
interior da vila e os mais usados fora dela era, constantemente, assunto presente nas Atas da
Cmara da Vila de So Paulo.
Cabia aos moradores realizarem o esforo coletivo, empregando suas prprias
ferramentas e escravos, na manuteno dos espaos pblicos pelos quais circulavam
habitantes e forasteiros. Era parte do cotidiano esse empenho em construir, manter e
reconstruir as estruturas gerais que caracterizavam materialmente a vila. E isso se realizava
paralelamente s atividades de produo para a subsistncia e o comrcio, as quais
marcavam o dia-a-dia no espao domstico, fosse nas casas da vila ou nos stios da roa,
bem como paralelamente ao empreendimento da busca de mo-de-obra no serto.
1 Vide principalmente MORSE, R. M . Formao Histrica de So Paulo (De comunidade Metrpole). So Paulo: Difuso Europia do Livro. 2a ed. 1970; e ALCANTARA MACHADO. Vida e morte do bandeirante. Imprensa Oficial. So Paulo. 2006. 2 HOLANDA, S. B. Caminhos e Fronteiras. So Paulo. Companhia das Letras, 1994. Vide Captulo 1: Veredas de p posto, pp. 19 35. Vide tambm BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira. Dilatao dos confins: caminhos, vilas e cidades na formao da Capitania de So Paulo (1532-1822). Anais do museu paulista. So Paulo. Nova Serie. Vol. 17, n. 2, dez. 2009, pp. 251 194.
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Essa dinmica de construo e manuteno do espao da vila revela algo sobre as
formas de se relacionar com o espao vivenciadas pelos moradores de So Paulo de
Piratininga. A formao da estrutura material que caracterizava a vila enquanto tal, ou seja,
a construo dos espaos pblicos de convivncia e congregao dos habitantes do planalto
foi lenta e dificultosa. Vem ao encontro dessa caracterizao a maneira, ora assdua, ora
desinteressada, com que a populao bem como os oficiais lidavam com as construes e
com a necessidade de manuteno de tais espaos.
Dessa forma, importante conhecer as estruturas materiais que marcavam a vila.
Com essa finalidade, atentaremos para alguns de seus aspectos, como as ruas e as pontes, e
acompanharemos o processo de construo, reconstruo e manuteno de algumas
edificaes, dentre as quais destacamos duas: a Casa da Cmara e Cadeia e a Igreja Matriz.
Os dois edifcios em questo eram representativos da dimenso material do domnio
portugus sobre a Amrica, da a importncia de estud-los. Tratava-se de dois organismos
que tentavam regular as relaes entre os colonos, bem como seu comportamento de
maneira a permanecerem identificados com os padres culturais ibricos.
Por meio desse processo de construo, reconstruo e manuteno, poderemos
observar as formas com que os moradores da vila se relacionavam com o espao e sua
estrutura material, reveladas pelos conflitos e tenses que dele decorreram. Alm disso,
poderemos refletir acerca das dificuldades que marcaram o processo construtivo da vila.
Comumente se escolhiam datas prximas s festividades para reunir a populao
nas tarefas de manuteno da estrutura pblica (ruas, muros, etc.). Em 11 de maro de
1581, perto da Pscoa, o procurador do Conselho requereu que mandassem limpar os
caminhos e pontes e mandassem cobrir os muros dessa vila3.
Era dever do poder pblico, representado pelos oficiais que compunham o Conselho
da Cmara, determinar as datas, prazos e penalidades referentes s tarefas de conservao
de parte da estrutura material da vila. A todos, ou como se dizia na poca, de mo comum,
competia construir e reconstruir constantemente o espao no qual se passava parte de seu
cotidiano.
3 ATAS da Cmara da Vila de So Paulo. 1562 1596. Publicao da Diviso do Arquivo Histrico. Sculo XVI. Vol. 1. 2a ed. 1967. p. 176.
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Nas reas de expanso paulista, a adoo de formas de sobrevivncia e a cultura
material dos silvcolas, apontavam claramente para um processo de americanizao dos
portugueses e no apenas a europeizao das populaes indgenas. A colonizao teria
sido um processo adaptativo ao meio hostil do Novo Mundo, e a cultura indgena seria o
manancial do qual beberiam os peninsulares para garantir sua sobrevivncia e, dessa forma,
a sobrevivncia da conquista portuguesa4.
No universo cultural da colnia, marcado por um amplo conjunto de diferentes e
diferenas, em movimento constante, misturando-se mas tambm chocando-se,
antagonizando-se, superpondo-se em ritmos que as vezes so lentos e outras vezes so mais
velozes, de maneira harmoniosa e/ ou conflituosa 5, processavam-se fuses, superposies
e recrudescimento de diferenas, a partir da interao e interveno dos vrios grupos
sociais que se influenciavam mtua e continuamente, mesmo que alguns deles se
impusessem em relao aos outros, no mais das vezes por seu maior poderio. Tradies
eram reforadas e repetidas, bem como recriadas e adaptadas, por meio dos contatos
cotidianos entre os diversos grupos, de origens variadas e de posicionamentos sociais
diferentes6.
Em So Paulo nos sculos XVI e XVII, as situaes surgidas do contato entre
europeus e indgenas foram caracterizadas amplamente pela adoo de certos padres de
conduta, bem como de utenslios e tcnicas silvcolas. Os colonos e seus descendentes
imediatos, no que dizia respeito cultura material, se mostraram muito mais acessveis a
manifestaes divergentes da tradio europia do que, por exemplo, no que se refere s
instituies e sobretudo vida social e familiar em que procuraram reter, tanto quanto
possvel, seu legado ancestral. 7 Cabe perceber que, no ambiente colonial, em que o
cotidiano era vivenciado de maneiras diferentes do Velho Mundo, os modelos de ordem
social concebidos nem sempre eram praticados da maneira que o eram na matriz
metropolitana8.
4 HOLANDA, 1994, op. cit. 5 PAIVA, Eduardo Frana. Escravido e universo cultural na colnia: Minas Gerais, 1716 - 1789. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001, p. 32. 6 PAIVA, 2001, op. cit., p. 32. 7 HOLANDA, 1994, op. cit., p. 12. 8 PAIVA, 2001, op. cit., p. 33.
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De acordo com Paulo Csar Garcez Marins, ao se adaptarem terra e se
relacionarem diante do movimento de conquista e produo econmica, diferentes grupos
tnicos ou sociais, transformaram suas prticas culturais. Nesse sentido, os traos culturais
indgenas ligados alimentao, teriam permanecido de maneira mais forte no cotidiano
dos paulistas, do que a arquitetura ou as formas nativas de vestir. Nestes aspectos, a herana
europia se imporia, porm, no sem adaptaes9.
No caso da arquitetura, Carlos Lemos, Julio Katinsky e Paulo Eduardo Zanettini
observaram na estrutura da casa a existncia de cmodos no identificveis com os padres
de morar europeus. Estes espaos internos estariam associados aos modos indgenas de
viver. Como apontou Zanettini, uma grande sala cercada de camarinhas (forma como os
remanescentes de casas bandeiristas esto configurados em sua parte posterior) no
condiz com a estruturao cultural e social perceptvel atravs da histria tradicional e
oficial10. Ao contrrio, as funes primrias e secundrias dessa espcie de salo central,
atuando como agenciadora e articuladora dos demais espaos, inclusive o mundo exterior,
agindo de forma ativa na construo da estrutura social mameluca seriam correspondentes
s do ptio central da aldeia. Este seria um dos principais componentes do padro
bandeirista mameluco. Na viso do autor, o espao do grande salo seria adequado aos
processos de transculturao em jogo na construo da sociedade paulista, ou seja, na
construo da sintaxe do morar no planalto dos primeiros sculos11. Tal espao interno da
casa articularia e distribuiria as diversas etnias que compunham a sociedade escravista.
A adoo pelos moradores do planalto de produtos, tcnicas, utenslios, alimentos,
entre outros traos da cultura silvcola, apontam para um processo que ocorria em todos os
planos possveis. Crenas (religiosidade), posturas e comportamentos cuja origem era a
matriz portuguesa conviviam e se mesclavam no viver cotidiano s de origem indgena e
africana durante todo o perodo colonial12. Mas, se no correr do dia a dia os colonos
9 MARINS, Paulo Csar Garcez. A vida cotidiana dos paulistas: moradias, alimentao, indumentria. IN: Terra Paulista. Histrias. Arte. Costumes. Vol.2: Modos de vidas dos Paulistas: identidades famlias e espaos domsticos. So Paulo. CENPEC. Imprensa Oficial. 2004, pp. 89 190. 10 ZANETTINI, Paulo Eduardo. Maloqueiros e seus palcios de barro: o cotidiano domstico na casa bandeirista. Tese de Doutorado. So Paulo. Universidade de So Paulo. Museu de Arqueologia e Etnologia. 2005, p. 84. 11 ZANETTINI, op. cit, p. 166. 12 Sobre o assunto, vide: SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiaria e religiosidade popular no Brasil colonial. So Paulo. Companhia das Letras, 1986 e MOTT, Luiz. Cotidiano e vivncia religiosa: entre a capela e o calundu. In: SOUZA, Laura de Mello e (org). Cotidiano e vida
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adaptavam suas crenas, a Igreja os pressionava atravs de dispositivos diversos, para a
manuteno do modelo proveniente da Pennsula Ibrica.13
Isso se dava pela presena de instituies marcadas pelos modos e lgicas de viver
presentes em Portugal: a Cmara e a Justia, que pretendiam estender o conjunto das
relaes polticas e formas de administrar o espao e as pessoas s terras americanas; e a
Igreja, que tentava regular as formas de viver, as crenas e os comportamentos dos fiis.
Alis, como apontou Ludmila Gomide Freitas, os colonos que entenderam o sentido e a
importncia da apropriao dos signos culturais e de poder do reino, constituram, com o
passar das geraes, a elite local14.
O acesso a algumas vias que permitiam o acmulo de riqueza e poder dependiam da
identificao do indivduo com os traos culturais europeus. Afinal, as misturas e
adaptaes que se faziam presentes na colnia no eliminaram espaos, prticas, crenas e
ritos que se fizeram impermeveis e permaneceram resistentes a alteraes e a
adaptaes 15 . importante reconhecer, como ressalta Eduardo Frana Paiva, a
coexistncia de dois movimentos na sociedade colonial: um que tendia a misturar heranas
culturais diversas e outro constitudo por resistncias ao hibridismo. No se tratava, na
viso do autor, de movimentos antagnicos, mesmo que os embates entre os dois fossem
freqentes e naturais. A pluralidade do universo cultural da colnia residiria nessa
caracterizao: simultaneamente mestio, distinto, hbrido e impermevel16. Nas esferas de
exerccio do poder institucionalizado, as impermeabilidades se faziam mais presentes, ou
seja, havia maior resistncia a mudanas. No campo das relaes, no cotidiano dos
contatos, e em diversas direes, trocas e misturas se efetivaram.
privada na Amrica portuguesa. Volume 1 da coleo Histria da vida privada no Brasil, coordenada por Fernando Novaes. So Paulo. Companhia das Letras, 1997, pp. 155 220. 13 Sobre as formas e meio de pressionar os colonos para a manuteno de seu comportamento de acordo com os padres estipulados pela Igreja, veja: DEL PRIORE, M. Ao sul do corpo: condio feminina, maternidade e mentalidades no Brasil Colnia. So Paulo: Editora UNESP, 2009; e FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Barrocas famlias: vida familiar em Minas Gerais no sculo XVIII. So Paulo. Hucitec, 1997. 14 FREITAS, Ludmila Gomide. A Cmara Municipal da Vila de So Paulo e a escravido indgena no sculo XVII (1628 1696). Dissertao de mestrado. Campinas: UNICAMP, 2006, p. 102. 15 PAIVA, 2001, op. cit., p. 38. 16 PAIVA, 2001, op. cit., O autor afirma que: Um conceito criado e empregado a posteriori, como o de mestiagem cultural, no pode privilegiar os elos que favorecem o hibridismo, em detrimento das distines e variaes cultivadas pelos grupos sociais. Mas, preciso ressaltar, os diferentes mantm relaes entre si e, s vezes, tais contatos propiciam misturas.
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A Amrica configurou-se no perodo colonial enquanto zona de contato: espaos
sociais onde culturas dspares se encontram, se chocam, se entrelaam uma com a outra ,
freqentemente em relaes extremamente assimtricas de dominao e subordinao17. O
ambiente colonial promovia o contato entre sujeitos diferentes, propiciando interaes e
improvisaes que destacam a questo da constituio dos indivduos nas e pelas relaes
que possuem uns com os outros18.
Nas dcadas finais do sculo XVI, ficou registrado, de forma intensa, nas atas da
Cmara o constante movimento da populao piratiningana em direo ao serto, em busca
de mo-de-obra indgena. A partir do ano de 1585, os moradores da vila de So Paulo
travaram verdadeiras guerras contra o gentio. E nessas ocasies, os homens da vila,
inclusive os oficiais da Cmara, se armavam e muniam, juntamente com seus ndios, e
partiam rumo ao interior, no qual passavam longas temporadas. J na primeira metade do
sculo XVII, alm dessas guerras, que marcaram os quinze primeiros anos do perodo,
passaram a ocorrer campanhas em regies mais distantes, como o Guair ou Tape,
conforme a relao feita por Alfredo Ellis Junior19.
Nas capoeiras e campos, espaos que se encontravam fora dos muros da vila, muitos
moradores se instalavam para morar e ou cultivar roas e criar gado. Tais construes no
deveriam situar-se a menos de trezentas braas, de um morador a outro, conforme
regulamentara a Cmara em 1583. A medida reconhecia como exceo os casos em que os
moradores estivessem contentes com a proximidade 20 . Talvez o nmero crescente de
pessoas habitando este espao tenha criado a necessidade de se estabelecer as delimitaes
citadas.
As casas, j no interior do espao murado da vila, at a dcada de 1590 costumavam
ser prximas umas das outras, visto que os oficiais da Cmara da Vila estabeleceram, no
17 PRATT, Mary Louise. Os Olhos do imprio: relatos de viagem e transculturao. Bauru, SP. EDUSC, 1999, p. 27. 18 PRATT, op. cit., p. 32. 19 Ao relacionar as viagens ao serto, o autor conta 31 expedies realizadas entre 1585 e 1640. Ellis, no entanto, computa apenas as bandeiras mais importantes, dando indcios de que paralelamente ocorriam expedies menores ou no to documentadas. De qualquer forma, a obra assinala o constante deslocamento de homens do Planalto de Piratininga em direo ao interior. Vide: ELLIS JUNIOR, Alfredo. O bandeirismo Paulista e o recuo do meridiano. Pesquisa nos documentos quinhentistas e setecentistas publicados pelos Governos Estadual e Municipal. So Paulo, Companhia Editora Nacional. 1934. 2a edio. (primeira edio de 1924). 20 ATAS da Cmara da Vila de So Paulo. Vol. 1, p. 201.
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incio do referido ano, que nenhuma pessoa edificasse casa, fazenda nem curral, junto com
a fazenda de nenhum vizinho menos de 200 braas de distncia com pena de cinqenta
ris21. Se a antiga unidade de medida, braa, equivale a 10 palmos, ou seja, 2,2 metros, a
distncia que se estipulava para separar as construes era de 440 metros, se medirmos
pel
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