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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
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AS NAÇÕES IMAGINADAS DO BRASILEIRO 1
Cássia Rita Louro Palha 2 Marialva Barbosa 3
Resumo: O texto procura historicizar o processo de construção de uma dada identidade nacional procurando enfatizar, na contemporaneidade, o papel primordial que os meios de comunicação, sobretudo os eletrônicos possuem neste processo. Além de procurar resgatar historicamente a questão das comunidades imaginadas construídas no território brasileiro correlacionando-a sempre com o processo histórico no qual foi produzida, reflete sobre questões atuais envolvendo as comemorações dos 500 anos do Descobrimento do Brasil e a atual campanha da ABA “Eu sou brasileiro e não desisto nunca”.
Palavras-Chave: Identidade, Televisão, Brasil.
Das comemorações ufanistas dos 500 anos do país à onda verde-amarela do governo
petista, fica para muitos a sensação de que o Brasil de uns tempos para cá, definitivamente,
está na moda ! Contudo, para além das mudanças e permanências que em poucos anos
parecem separar o triste episódio do índio Gildo Terena em Porto Seguro (BA) - tentando
deter o poder armado que avançava contra manifestantes antigovernistas - e o atual apelo da
campanha “Eu sou brasileiro e não desisto nunca”, o que se manifesta a cada momento, são
as reapropriações simbólicas da Identidade Nacional.
Benedict Anderson (1983), em seu livro “Comunidades Imaginadas” 4, entende as
identidades nacionais, como o próprio nome de sua obra sugere, enquanto comunidades
imaginadas. Trata-se de um tipo particular de imaginação, o que não significa que as nações
imaginadas sejam contrastadas com comunidades reais . Para o autor, todas as comunidades
1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho “Comunicação e Cultura”, do Encontro da Compós em 2005. 2 Doutoranda em Comunicação pela UFF, onde desenvolve pesquisa sobre Comunidade eletrônica na Abertura Política , sob orientação da Prof. Marialva Barbosa. Prof. Assistente do Curso de História da UFSJ. 3Doutora em História pela UFF. Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense, onde coordena o Grupo de Pesquisa Mídia, Memória e História. É atualmente coordenadora do PPGCOM da UFF 4 Publicado no Brasil, com o título Nação e Consciência Nacional , São Paulo, Àtica, 1983.
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que transcendem o contato face à face das aldeias primitivas, são imaginadas, portanto, o
nacionalismo como sentimento de pertença à uma comunidade, é anterior ao surgimento das
próprias nações modernas. Em outras palavras, a comunidade é uma ideologia em certo
sentido espontânea, fixada para além da permeabilidade do desmascaramento puramente
teórico.
A possibilidade de se imaginar a nação, surge quando historicamente, três conceitos
culturais básicos, passaram a perder seu domínio axiomático sobre o pensamento dos homens
: uma verdade ontológica ligada a uma determinada língua escrita sagrada; a crença em
governantes providos de uma disposição divina e por fim, uma temporalidade onde a
cosmologia e a história não se distinguiam, sendo totalmente idênticas as origens do mundo e
dos homens.(ANDERSON, 1983,45).
Esses laços, quando da transição dos tempos medievais rumo à modernidade,
começam a se afrouxar, abrem espaço para a emergência de novos vínculos de
pertencimento, vínculos capazes de dar aos sujeitos cada vez mais dispersos e distantes de
uma experiência de comunidade, uma base simbólica de união, de irmandade. Mais do que
isso, essa experiência diz respeito a um elo de identificação capaz de preceder à nossa
existência enquanto indivíduos continuando a existir após a nossa morte. Enquanto os reinos
da Igreja e da dinastia se retraem como agentes simbólicos de uma suposta imortalidade da
humanidade, a nação passa cada vez mais a atender a essa promessa de identificação com a
posteridade, nos ajudando a superar o caráter definitivo da morte e do esquecimento. Apesar
de não ser possível nos encontrarmos na esquina da frente com nossos heróis nacionais, a
comunidade imaginada resgata a identificação com esses símbolos do passado, os heróis
comunitários, os mitos fundadores, os ritos cívicos, as perdas e triunfos de um povo. Enfim,
na “invenção” (HOBSBAWN,1997 ) de suas tradições que passam cada vez mais a cimentar
a idéia de quem “fomos” e de quem “somos”.
Esse imaginário relacionado à nação deve ser antes de tudo, entendido enquanto uma
construção social, historicamente ancorada em seus múltiplos contextos, dentro de um
processo contínuo de invenções, reelaborações e disputas em torno dos aspectos capazes de
evidenciar as diferenças de uma nação para a outra.
Um imaginário que, portanto, nunca é fixo ou acabado, mas sim, um produto histórico
capaz de nos mostrar que as identidades fazem parte de uma complexa rede de disputas/
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negociações de atores e grupos por uma certa afirmação de hegemonia5. O que nos leva ao
entendimento de que a idéia dessa identidade nacional pressupõe uma interdependência entre
condições objetivas e subjetivas de vida.
Algo que nos parece convergir com a idéia de habitus proposta por Bourdieu (1998),
ou seja, enquanto um senso prático capaz de dar sentido às ações dos indivíduos, sem
determinálas mecanicamente; disposições adquiridas em experiências passadas que se
incorporam à lógica prática dos sujeitos, como princípios geradores/organizadores de
práticas/representações. Neste sentido, a identidade nacional representa um poder simbólico,
que na concepção de Bourdieu (1989,10), corresponde a um “instrumento por excelência de
integração social -enquanto instrumento de conhecimento e de comunicação, tornando
possível o consensus acerca do sentido do mundo social”.
Assim, não devemos tratar o nacionalismo como um agente social e perguntarmos
simplesmente se ele é bom ou ruim, conservador ou progressista ou ainda se é condizente ou
não com uma política democrática6. Antes, devemos nos voltar para o contexto em que
diferentes grupos competem pelo controle desse símbolo e de seus sentidos. Quais grupos ?
Dentro de quais projetos societários ? À partir de quais condições político-sociais ? Essas
questões são fundamentais para desnaturalizar o “ismo” do nacionalismo e resgatar não
apenas os sujeitos dessa construção simbólica, mas também para nos atentarmos para os
contextos históricos em que funcionam uma ou outra definição ou simbolização da nação.
Nesse processo contínuo de resignificação simbólica das comunidades imaginadas, os
meios de comunicação assumiram um papel central. Para Benedict Anderson a “tecnologia
do capitalismo de imprensa”, tornou possível, “a um número cada vez maior de pessoas,
pensarem sobre si mesmas, e se relacionarem com outras, de maneira profundamente
renovada”. (ANDERSON,1983, 45).
5 Entendida aqui no sentido gramsciano do termo. Para Gramsci, a hegemonia implica a capacidade de direção política e cultural de um grupo ou classe sobre as demais. O teórico faz uma distinção entre a hegemonia das frações dominantes, possuidoras de um caráter educativo arbitrário ou ainda não orgânico, na busca do consenso frente às demais frações e a hegemonia das frações subalternas, fundadas na base de uma ideologia orgânica, portanto, exercendo uma função organizadora da vontade coletiva das massas, estruturando “o terreno onde os homens se movimentam, adquirem consciência de sua posição, lutam etc...”. GRAMSCI (1995,62-63). 6 Cf. entrevista feita a diversos intelectuais sobre o patriotismo do governo federal: LIUDVIK, Caio. Nacional por Adição. In: Nacional S/ A . Caderno Mais!Folha de São Paulo, 19/09/2004, p4-5.
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Um processo histórico: especificidades do cenário brasileiro: Se no cenário das novas entidades políticas, que surgiram no ocidente entre os séculos
XVIII e XIX, o papel da tecnologia da imprensa, juntamente com o capitalismo e a
diversidade das línguas, possibilitava uma nova forma de comunidade imaginada, que
preparou o cenário da concepção moderna de nação no Velho Mundo, na América Latina
esse processo vai se tornar incisivo somente em meados do século XX. Para Barbero (2001),
a própria integração das nações da América Latina, e de seus projetos nacionais se
consolidaram graças ao controle dos Estados com as massas, promovido pelas tecnologias
comunicacionais. Este momento iniciado no Brasil pela década de 1930, não ficou isento,
porém, das marcas anteriormente deixadas por uma elite que desde a independência, tentava
construir uma certa imagem do país ou de sua brasilidade.
No pós-independência, a idéia de nação veiculada pelas elites apresentava-se como
um elo de continuidade entre a Colônia e o novo país, conservando a monarquia enquanto
garantia da unidade política e da ordem social. Um sentimento monarquista que não
significou necessariamente, um sentimento de brasilidade. Antes de tudo, era mais uma
fidelidade a uma tradição monárquico-católica, portanto, mais de natureza religiosa e cultural
que política. O exemplo mais pomposo na busca dessa identidade nacional foi sem dúvida a
criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1838. Patrocinado pelo jovem
imperador, o objetivo maior do IHGB, era resgatar o passado histórico da nação recém
independente, leia-se, suas referências luso-brasileiras: “os grandes vultos, os varões
preclaros, as efemérides do país, os filhos distintos pelo saber (...) enfim, os luso-brasileiros
exemplares, cujas ações pudessem tornar-se modelos para as futuras gerações” (REIS, 2002,
25).
Ao lado do Instituto, a imprensa também marcou sua presença na divulgação desse
país luso-brasileiro.Tanto no IHGB quanto na imprensa, especificamente a ilustrada,
encontramos como figura central do brasileiro, o índio diga-se de passagem, sempre em meio
à exuberância da natureza nativa. Esta escolha pode ser explicada segundo Carvalho (1998),
pela disputa acirrada de interesses no seio das frações dominantes, no que diz respeito às
implicações políticas resultantes de um país onde a resistência monárquica se contrastava
frente a uma América Republicana. A solução para o impasse foi assim, a proposta de uma
não rejeição à monarquia, buscando-se o lado americano de nossas raízes no indianismo
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romântico. Varnhagen, seguindo o que havia recomendado seu precursor no IHGB, Von
Martius, dedicou parte central de sua obra ao estudo indígena, enquanto na literatura,
romances como O Guarani e Iracema, de José de Alencar, resgatavam uma visão romantizada
do índio, enquanto “o coração de uma imaginada identidade nacional” (CARVALHO, 1998,
243).7
Em todo o período, o fato mais marcante no que diz respeito à divulgação de um
sentimento de pertença ao país, foi sem dúvida a Guerra do Paraguai, que mobilizando a
nação inteira, durante cinco anos, exigiu esforços materiais e de vida humana. Carvalho
(1998) descreve da seguinte forma este impulso ao nacionalismo brasileiro: “Talvez pela primeira vez um sentido positivo de pátria brasileira tenha começado a desenvolver-se entre a população. A imprensa refletiu com clareza esta mudança. A bandeira nacional começou a aparecer nas cenas de partida de batalhões e de vitórias no campo de batalha. O Imperador surgiu como líder da nação empenhado em conseguir a colaboração dos dois partidos políticos. Começaram a ser construídos os primeiros heróis militares, nas figuras de Caxias, Osório, Mena Barreto, Barroso” (CARVALHO, 1998,246-247).
Nas últimas décadas do século XIX, mais especificamente após a Guerra do Paraguai,
nossas elites pensantes , voltaram-se para a busca de um entendimento de Brasil , que
abarcasse o problema da nossa diversidade, esta, sobretudo entendida em termos raciais.
Tratava-se da busca de uma interpretação de nossas especificidades, frente às modernas
teorias científicas européias, baseadas no princípio da evolução histórica dos povos a partir
das matrizes do positivismo de Comte, do darwinismo social e do evolucionismo de Spencer.
Nomes como Manoel Bonfim, Euclides da Cunha, Nina Rodrigues, Sílvio Romero, buscavam
entender o Brasil, construir os parâmetros de sua identidade.
A busca de nossa brasilidade em meio a essas teorias, teve dois importantes divisores
de águas: a abolição em 1888 e a proclamação da República no ano seguinte. O que
significava por um lado, a necessidade de uma tomada de posição efetiva em relação ao
negro e ao problema de uma nação mestiça e por outro, a construção simbólica de uma nação
moderna e republicana, proclamada no vácuo da inexistência de um movimento social, ou
seja, sem a participação efetiva do povo.
7 Apesar da temática da mistura de raças não ter passado desapercebida, o papel do negro nesse momento ainda não era contemplado pelos românticos, que quando se referiam aos negros, o associavam antes de tudo, às questões humanitárias envolvendo o debate sobre o abolicionismo. Cf. CARVALHO (1998).
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No primeiro caso, as mestiçagens juntamente com as diferenças naturais do meio,
tornaram-se as duas âncoras de explicação de nossa inferioridade, frente ao estágio
civilizatório europeu. Segundo Ortiz (1994, 17), “ser brasileiro significava viver em um país
geograficamente diferente da Europa, povoado por uma raça distinta da européia”.
Quanto à nossa segunda questão, a construção simbólica da nação republicana, para
Carvalho (1998) muito foi feito, embora seus efeitos tenham sido freados pela ausência do
batismo popular na instauração do novo regime. O maior êxito, concentrou-se na construção
do mito do Tiradentes, associado à simbologia cristã em torno de Jesus Cristo.
Diante de uma enorme diversidade de projetos de organização nacional, gestados com
a proclamação da república, destacaram-se as obras de Capistrano de Abreu (1853-1927) e de
João Ribeiro (1860-1934). Ambos, ao resgatarem a experiência do povo junto a sua história,
abriram caminho para uma mudança na moderna historiografia do país, ultrapassando o
nacionalismo naturalista em prol de um nacionalismo com bases em análises político-sociais.
Capistrano em especial, ao projetar a identidade do povo brasileiro, trocava de forma singular
o cerne da discussão de raça pelo viés de explicação da cultura, sendo considerado neste
sentido, o precursor de Gilberto Freire (REIS, 2002, 95). E com Gilberto Freire, tivemos a
construção de um de nossos mitos fundadores: o da “democracia racial”, no clássico Casa
Grande e Senzala (1933).
O pós-30 e o papel decisivo dos meios massivos: Assim, os anos 30 inauguraram uma “Comunidade Imaginada” que aos poucos
passava a imprimir a marca do povo brasileiro como uma raça de mestiços, baseada na
convivência harmoniosa de seus três elementos, que juntos, eram portadores de
características morais, políticas e sociais positivas. Enquanto o federalismo era acusado de
transformar o país em um arquipélago de estados usurpados por oligarquias locais, tentava-se
construir uma unidade indissolúvel entre Estado e Nação em detrimento dos mecanismos
tradicionais da representação, freados em 1937.
As forças que compunham o Estado, mais precisamente as frações da burguesia
industrial e dos grandes proprietários rurais voltados para o mercado interno -associaram o
capitalismo com a nação através da institucionalização corporativa e do apelo ao
personalismo populista. Segundo Vianna :
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“(...) ao invés do Estado-Nação, a nação estatalizada . Sob a forma corporativa, o Estado particularista faz seu simulacro de universalização através da cidadania regulada .(...) Criatura do Estado, a nação não tem identidade própria. Não se organiza, é organizada como um corpo de funcionários a serviço do ideal da expansão da acumulação”. (VIANNA, 1986, 42-43) .
No plano da cultura, esse Estado demiurgo fundiu cultura e política, no momento em
que a América Latina era palco da inversão direta de capital norte-americano, investindo não
só nas redes nacionais de rádio, mas também mais tarde, implementando a expansão das
redes de televisão, já na década de 1960. Era o embrião de uma indústria cultural que se
estruturava a partir não apenas da emergência do capital, mas também de seu vínculo
ideológico com o Estado.
Segundo Barbero (2001, 242), o papel decisivo que os meios massivos
desempenharam de uma forma geral na América Latina neste período (mais precisamente,
dos anos 30 aos anos 50), para além de sua organização industrial e de seu conteúdo
ideológico, foi o de se apresentarem como porta-vozes da interpelação que a partir do
populismo convertia as massas em povo e o povo em Nação. Interpelação que apesar de vir
do Estado, só foi eficaz na medida em que as massas reconheceram nela algumas de suas
demandas mais básicas e a presença de seus modos de expressão.
O rádio representou o exemplo mais notório dessa realidade naquele momento,
tornando-se o mediador por excelência entre o governo e o povo. Além de ter desempenhado
importante papel como agente econômico, no que diz respeito ao consumo e à publicidade, o
rádio passou a ser o divulgador dos projetos ideológicos do governo, que com sua
propaganda com horário marcado ( A Hora do Brasil , inspirada na Hora da Nação, da
Alemanha nazista), desenhava a identidade brasileira em torno do trabalhador e de seu
sentimento nacionalista.
Um controle do qual a imprensa não escapou, pressionada que foi pelo rolo
compressor da censura e pelos efeitos da Grande Depressão, que já em 1932 provocava
indiretamente o aumento dos exemplares.
A grande novidade no plano cultural passou a ser a visão positiva do povo brasileiro
e,portanto, do mestiço, que deixou de representar obstáculo ao progresso, comportando ainda
uma redefinição de sua psicologia, na máxima do homem cordial de Ribeiro Couto, retomada
mais tarde por Sérgio Buarque de Holanda.
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A “redescoberta” do povo foi acionada por um projeto maior de nacionalidade, do
qual os “Tempos Capanema” 8 - como ficou conhecida a gestão de Gustavo Capanema junto
ao Ministério da Educação e Saúde (1934-1945) - pareciam sintetizar por dois ângulos:
priorizando sua missão educacional e patrocinando a alta cultura.
No primeiro caso, tivemos as reformas do sistema de ensino em âmbito nacional,
padronizando procedimentos pedagógicos e curriculares, além da busca pela erradicação de
minorias étnicas, lingüísticas e culturais. No segundo caso, atribuiu-se à alta cultura o critério
maior de nacionalidade em detrimento das culturas menores , onde coube ao Estado situá-la
no limite entre a mobilização controlada das massas e a mera propaganda política do regime.
Foi esse o caso da criação de serviços na área da radiodifusão, comunicação e canto coral,
todos eles mediadores de uma imagem do Brasil integrado e harmônico capaz de obscurecer
as diferenças inerentes à sociedade de classes. (MENDONÇA, 1990, 345-346).
Se a eficácia da propaganda do regime foi inegável na construção do brasileiro ligado
ao trabalho e mais especificamente, ao controle do movimento operário, atrelando-o a uma
perspectiva paternalista e dependente, quanto ao resto, a ausência de experiências políticas
coletivas e a recusa da participação, fizeram cair no vazio os esforços do governo. Este vácuo
se tornou mais nítido no contexto liberalizante do imediato pós-45, onde o panorama da
política cultural do país, começou a alterar-se.(CARVALHO, 1998).
E se a Guerra do Paraguai rendeu bônus à construção imaginada da nação no período
imperial, com a mobilização de todos os filhos da nação e de seus singulares heróis, a
Segunda Guerra Mundial ao contrário, não gerou proporções tão significativas, afetando mais
especificamente os setores militares, apesar da considerável simpatia popular pelos nossos
pracinhas. Segundo Carvalho (1998), melancolicamente, o principal símbolo gerado pela
guerra veio dos estúdios Disney, na figura do Zé Carioca. Ora, a malandragem e o bom
humor do papagaio, que tudo resolvia na base da esperteza, vinha de encontro a construção
do homem trabalhador e cívico.
Além disso, os princípios democráticos do pós-guerra chegaram com a força do sonho
americano, atualizando o país no contexto da modernidade dos centros industrializados. No
lugar do folclórico, o cosmopolitismo.
8 A respeito do período em questão, ver SCHWARTZMAN (2000)
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No lugar das matérias literárias nacionalizantes, a renovação da linguagem da imprensa, o
impacto do cinema industrializado e o surgimento da televisão. A mudança de um discurso
radiofônico que se até meados de 30, possuía um tom sóbrio, tratando o ouvinte com
respeitosa distância, agora passava a adotar uma linguagem coloquial e humorística, marcada
também por mudança na programação, baseada na música popular nacional e estrangeira, nos
programas humorísticos de auditório e nas radionovelas, que atingindo as camadas populares
tornaram-se alvo das investidas publicitárias.
Os anos cinqüenta que se seguiram, foram de fértil produção na arena da construção
simbólica do nacional. Nos esportes, enquanto o boxe revelava em Èder Jofre-o Galinho de
Ouro- a pátria de chuteiras conquistava a Taça Jules Rimet, além de revelar, o ídolo Pelé . No
cinema, ao lado das chanchadas, o cinema novo buscava no contra-peso da ideologia
nacionaldesenvolvimentista e o resgate dos problemas sociais, através de sua estética da
fome. Um resgate também presente no método de alfabetização de Paulo Freire, ao lado dos
discursos revolucionários das montagens do Teatro de Arena.
Longe das proposições racistas do fim do século XIX e do homem cordial e
trabalhador do Estado Novo, a identidade do brasileiro passou a ser alvo de discussões,
enquanto sujeito transformador da sociedade. A partir do viés cultural, passou-se a entender o
elemento popular antes de tudo, como um vir a ser , ou seja, a identidade cultural tomou o
status de transformadora sócio-econômica. Rompendo com o conceito tradicionalista de
cultura, quase sempre vinculado ao prisma folclórico, obteve-se, graças em muito, aos
trabalhos dos intelectuais do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), uma visão de
cultura como propulsora da ação política junto às frações subalternas. (ORTIZ, 1988). Os
isebianos consolidaram uma visão dualista das grandes questões nacionais, cujo cerne residia
na luta entre o setor arcaico (campo) e o setor moderno (urbano-industrial), de cuja tensão
resultava o atraso do país. A solução do impasse tinha no domínio da técnica a grande
panacéia, como agente modernizador e neutralizador da miséria e das desigualdades, onde, de
certa forma, legitimava-se a própria presença do capital estrangeiro, enquanto alavanca de
desenvolvimento, rumo ao controle da tecnologia. O povo nesse contexto, aparecia sendo
convocado a participar de um novo projeto ideológico de construção nacional, baseado na
projeção de um futuro melhor, a ser conquistado pelo trabalho ainda que diferenciado -de
todos.(MENDONÇA, 1990,347).
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O panorama de uma sociedade de classes cada vez mais complexa, em meio ao
desenvolvimento do capitalismo mundial e das discrepantes diferenças sociais, nortearam os
trabalhos de intelectuais como Nelson Werneck Sodré (anos 50), Caio Prado Júnior (anos 60)
e Florestan Fernandes (anos 60/70), que passaram a redescobrir o Brasil sob os temas da
emancipação, da autonomia nacional e da dependência. Soma-se, apesar dos seus diferentes
matizes ideológicos, instituições como o CPC, o PCB e a JUC, que possuíram em comum, a
valorização da identidade como potencial transformador da nação.(ORTIZ, 1988,162).Um
efervescer político-cultural que com, e apesar da ditadura militar, tomou outros contornos e
estratégias, sem perder de todo, a visão transformadora dos ideais do que, para muitos,
significou um romantismo revolucionário.
Este termo, usado mais precisamente para caracterizar a atuação de parte da política-
cultural da esquerda após o golpe, representava segundo Ridenti (2000), não simplesmente
uma volta ao passado, mas antes de tudo, um resgate do encantamento da vida, a busca de
uma comunidade inspirada no homem do povo, “um projeto de modernização para a
sociedade que não implicasse a desumanização, o consumismo, o império do fetichismo da
mercadoria e do dinheiro” (RIDENTI, 2000, 25), que passaram a se delinear de forma
selvagem, nos anos que inauguraram o regime militar no país.
O projeto de “integração nacional” : 1964 marcou o início de um processo, onde o mercado cultural assumia dimensão
nunca antes vista. Com o crescimento da classe média e a concentração populacional nos
grandes centros urbanos, os bens simbólicos passaram a ser consumidos por um público cada
vez maior. Uma expansão da produção, distribuição e consumo de bens culturais,
consolidando na mesma proporção os grandes conglomerados que passaram a controlar os
meios de comunicação de massas no país (TV Globo, Editora Abril, etc...)
A proposta de modernidade do regime militar, sediada nas bases de um capitalismo
monopolista dependente e na exclusão brutal da participação política, fez da unificação
cultural, o pano de fundo da proposta de Integração nacional9.
9Destacamos o sentido dessa Integração, em dois apêndices desse projeto: o Conselho Federal de Cultura (CFC) e o Manual da Escola Superior de Guerra (ESG) .Conf. ORTIZ, 1998.
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Um projeto de Integração viabilizado, de certa forma, pela mídia eletrônica que
passou a ser a voz do regime junto às massas. Integração esta que encontrou na Rede Globo a
parceria de uma programação que tinha por objetivo “falar ao povo”, enquanto na maioria das
vezes o inseria numa ampla rede simbólica onde a nação aparecia enquanto o verdadeiro país
das mil e uma maravilhas, com suas contradições escamoteadas por altas doses de emoção e
suas crises, pela panacéia do patriotismo. Em outras palavras, tivemos o deslocamento do
espaço público para a cena doméstica proporcionada pela TV, esta sim, com a outorga de
reproduzir a realidade sob o prisma do “desenvolvimento” e da “Segurança Nacional” .
Sobre esse momento da história do país, Saboga e Fontes (1994,49), colocam duas
questões de fundo que gostaríamos de destacar: os princípios da liberdade e da igualdade
resignificadas pela mídia eletrônica. No primeiro caso, entendemos que a televisão trazia
assim, a sociedade para dentro dos lares, instaurando uma socialização aparentemente
integral (..) , sem barreiras: nem hierarquia, nem controle, nem disciplina -em casa, cada um
era o senhor de sua nação imaginada, possuíam a liberdade de escolher o canal, o programa, a
hora de ligar e desligar o aparelho10. Dessa forma, sob um regime de repressão como o
implantado em 1964, a TV passou a ser a voz possível, o espaço possível, a liberdade
possível naquele momento.
Em contrapartida, o princípio da igualdade também ficava explícito se entendermos
que, em primeiro lugar, o televisor foi popularizado exatamente naquele período, tornando-se
acessível à grande maioria -escondendo por detrás do cidadão, o consumidor.
Além disso, a igualdade também se manifestava pelo fato de que as imagens -eram
como apenas em parte ainda são11-as mesmas para todos os telespectadores,
independentemente da posição social, sexo, idade ou raça.
10 Além disso, nos últimos anos, -aproximadamente a partir da década de 90 -eles passaram a ter a autonomia de decidir o destino de personagens, a programação da semana seguinte, de dar seu depoimento, de agir. Se nos anos 70, o debate entre muitos teóricos da área, era sobre o caráter antidemocrático da TV, que detinha o monopólio da fala ( vide SODRÉ, Muniz. O Monopólio da fala .Petrópolis: Vozes, 1977.) em detrimento do telespectador, ou seja, hegemonia tecnológica do falante sobre o ouvinte; hoje a interatividade aparece como a panacéia democrática do médium. A interatividade junto ao telespectador causa a ilusão de que realmente se opina, se interfere, se muda os caminhos de uma transmissão. Em uma palavra, é delegado ao telespectador o direito de participação . Contudo, sabemos que na verdade o que muda com a interatividade é o modo como o telespectador é ensinado a ser livre ou controlado dentro desse sistema. 11Salvo nos últimos anos a larga comercialização das TVs a cabo, que se tornaram uma alternativa de acesso às frações com um melhor poder aquisitivo, à uma programação mais eclética e ao mesmo tempo seleta frente à onda de popularização das programações em VHF .
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Ora, liberdade e igualdade, esses dois pilares da democracia tradicional, foram assim
incorporados à lógica de um Príncipe Eletrônico (IANNI,1998) capaz de sobreviver na
condição de mediador por excelência de toda uma sociedade. E não por acaso, passou a
sintetizar a “alma nacional”, o sentido de uma brasilidade acima de regimes e presidentes e
que sob os parâmetros de suas veiculações, vem norteando o jogo de interesses que de
tempos em tempos se desnudam pela luta simbólica em torno do nacional.
Se de 1822 a 1945 tivemos segundo Carvalho (1998), uma nação imaginada por
nossas elites políticas e intelectuais, primeiramente com a ausência do povo, a segunda pela
visão negativa do povo e a terceira pela visão paternalista do povo, a partir mais precisamente
da década de 1960, passamos a ter uma nação antes de tudo eletrônica . O que implica para
além da potencialização radical da produção simbólica que a televisão inaugura, uma nova
mediação/reapropriação da própria noção de povo e de sua participação política.
Ou seja, não apenas o peso dos conteúdos simbólicos que passarão a ser palco de
disputas junto às telas, mas a resignificação da noção mais elementar de democracia. Esta que
retomada pela abertura política, de certa forma também passou a ser norteada pelos princípios
de igualdade e liberdade que o próprio meio passava a instaurar. O que evidentemente não
nos leva a sugerir que a mídia eletrônica é o baluarte dominante e intocado do poder na
democracia brasileira, uma vez que entendemos que a construção midiática, faz parte de uma
via de mão dupla onde a veiculação do outro e de sua realidade, dependem daquilo que este
também exprime e comporta em sua prática cotidiana.
Mas estamos falando, de um poder que insere definitivamente a televisão, no quadro
mais amplo do que Jameson (1996) chama de lógica cultural do capitalismo tardio. Um
momento que segundo o autor, usa em detrimento das antigas formas de
dominação/exploração, a saturação por mercadorias e a extraordinária “simultaneidade
informacional pós-geográfica e pós-espacial quetece uma teia bem mais fina, minuciosa e
penetrante do que qualquer coisa imaginável” .(Jameson,1994, 71).
A mediação dos meios de comunicação Assim, se voltarmos ao início deste texto, onde colocávamos a moda verde-amarela
de nossos últimos anos, evidentemente que poderemos evidenciar as diferenças de momentos,
sujeitos e até mesmo projetos diferenciados de sociedade, separando as comemorações pelos
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500 anos e as campanhas nacionalistas do atual governo. Mas a marca desse tipo de mediação
eletrônica e de seu lugar na estruturação dessa atual configuração de forças do capitalismo
global, devem estar sempre presentes ao se pensar na construção de laços de brasilidade e
conseqüentemente, de representatividade do país, seja para os próprios brasileiros, seja para
os nossos outros . O que implica, associarmos às perguntas que anteriormente fizemos, sobre
a importâncias dos sujeitos, de seus interesses e contextos sociais e entre elas, uma que é
fundamental: quais recursos simbólicos estão sendo utilizados para demarcar a singularidade
da identidade nacional de um país, que vive na fronteira de sua própria representação política
na arena globalizada dos interesses internacionais ?
Sem a pretensão de aqui respondermos a esta pergunta, um paralelo ainda que
superficial pode ser feito. Na campanha dos 500 anos, exaustivamente estudada, ficou patente
a exaltação de um povo exótico, festeiro, religioso, multirracial e multicultural, capaz de,
segundo FHC, inserir-se ao mundo globalizado, com um certo passaporte: o da tolerância: 12
“Somos talvez a maior nação multirracial e multicultural do mundo ocidental, senão em número de habitantes, na capacidade integradora da civilização que fundamos (...).E essa identidade dá-nos a base para a entrada no novo milênio, o da civilização globalizada, nos distingue pelos valores da tolerância, permite que reflitamos, a partir dela, o quanto conseguimos caminhar nesses 500 anos”. (Citado em COGO, 2002 grifo nosso).
A dobradinha multirracial/ multicultural , veiculada pela mídia impressa e eletrônica,
e devidamente traduzida para as massas, mostra por um lado, a tendência ao sectarismo
pasteurizante dos elementos formadores da nação. Assim, o mestiço, que evoca a
ambigüidade enfatizada por DaMatta (1984), ou seja, como parte da expressão dos encontros
e desencontros construídos na relação entre índios, negros e brancos, ao longo de um
processo histórico marcado por diferenças que não se limitam às marcas étnicas, mas que
informam sobre conflitos e desigualdades de todas as ordens, dá lugar ao discurso do país
multirracial, ou seja, as diferenças que separam esses sujeitos em suas singularidades,
totalizadas em si mesmas, voltam-se para aquilo que cimenta as suas diferenças.
12 À esse respeito, diversas fontes poderiam ser citadas. Vou me restringir aqui a citar sobre os 500 anos pelo crivo damídia impressa, COGO, Denise (2002); pela mídia eletrônica, BARBOSA, Marialva (1999). No enfoque dos historiadores, o site Brasil outros 500 , com os trabalhos de Marcelo Badaró com Considerações na contracorrente da invenção dos 500 anos e Sônia Regina de Mendonça com o Brasil, 500 anos de quê? . Sobre a influência do discurso multirracial / multicultural nos parâmetros nacionais de ensino (PCN´s) produzidos nesta época no país, ABREU & SOIHET ( 2003).
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Por outro lado, o discurso multirracial quase sempre é evocado em sua dobradinha
com o multiculturalismo, mais apropriadamente, nas suas raízes norte-americanas de
entendimento. Nelas, a sociedade é entendida como uma rede instável de posições
individuais, de grupos sociais heterogêneos. Em contrapartida, o Estado representa o
elemento capaz de preservar a manutenção destas diferenças, em prol da liberdade, ou ainda -
citando Charles Taylor, um dos principais formuladores do multiculturalismo se apresenta
como aquele capaz de assegurar uma política de reconhecimento da dignidade dos grupos
subalternos. (citado em MAGALHAÊS, 2003).
Assim, os diversos grupos identitários existem, devem ser valorizados e resgatados
enquanto elementos da nação. Só que agora eles são grupos e, enquanto tal, possuem
diferenças que devem ser respeitadas, leia-se, distanciadas do eixo que um dia fez desses
mesmos sujeitos, elementos constitutivos do processo de formação da identidade nacional.
Quando se elimina o processo de relação desses grupos, eliminam-se também os conflitos
dessa formação, que não é apenas étnica, mas histórica. Na equação da valorização da
diferença por ela mesma, naturaliza-se a história e o que era conflito passa a ser denominado
tolerância . Não é por acaso que este foi o nome dado por FHC, ao nosso passaporte
de entrada nas disputas internacionais: subalternamente, tolerados!
No nosso segundo caso, apesar de o governo petista estar demonstrando até agora um
certo esforço no sentido de uma nova política de inserção do país internacionalmente, a
construção simbólica em torno dos símbolos nacionais não parece tão animadora. Tendo
como slogan a frase de Câmara Cascudo, “O melhor do Brasil, é o brasileiro!”a campanha da
ABA (Associação Brasileira de Anunciantes), tem segundo seus representantes, o objetivo de
resgatar os níveis de auto-estima do brasileiro, que está em baixa, e, nesse empuxo, aumentar
seu patamar histórico. Explorando figuras como as de Ronaldinho e Herbert Vianna, e sob a
“forte carga emocional” da trilha musical de “Tente outra vez” (Raul Seixas, Paulo Coelho e
Marcelo Motta), os organizadores do evento dividiram esta empreitada em três tempos: a
campanha “Eu sou brasileiro e não desisto nunca”, o lançamento do movimento com a
presença do Presidente da República e a união entre o ramo empresarial, das comunicações e
da rede pública no engajamento do projeto. Destacamos um trecho, onde os organizadores
resumem de forma singular, a intenção de resgate de nossa brasilidade, presente na
campanha:
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“Eu sou brasileiro e não desisto nunca, inicia na prática o movimento pró auto-estima de nossa população, seguindo a perspectiva de que o primeiro passo nesse esforço é o de conscientizar, despertar e incentivar o sentimento de orgulho e satisfação nas pessoas, a respeito de suas próprias realizações e potencialidades, bem como destacar o efeito de suas atitudes e ações para a auto-realização individual e para o futuro do Brasil”. (http:// www.aba.com.br. Acesso em 01/08/2004-grifo nosso).
O texto mostra claramente que o futuro do país se faz na dimensão individual, que se
torna por ela mesma, a única via de acesso para se obter a satisfação e o orgulho. Esses
últimos, antes resgatados enquanto elos de um sentimento de pertença a uma comunidade:
têm-se orgulho e satisfação, por ser parte de uma coletividade, uma nação, não qualquer uma,
mas a brasileira.
Agora, satisfação e orgulho estão sendo veiculados nas propagandas dentro de um
invólucro individualista que tende a naturalizar as diferenças sociais, apostando nas
singularidades individuais, estas que efetivamente, sob o prisma das mensagens, parecem ser
as únicas capazes de levar a algum tipo de mudança. Portanto, satisfação e orgulho passam a
fazer sentido, quando convergem para a auto-realização individual, que em última instância,
pode mudar o país. Para isto, “basta ser brasileiro e não desistir nunca !”
Não por acaso, o brasileiro proclamado pela mídia deixa pouco a pouco de ser aquele
construto simbólico do nacional, para ser cada vez mais, o indivíduo. Um ser que, para
muitos, é fragmentado e reflexo de interesses demarcados por uma certa cidadania do
consumo . Há inclusive aqueles que acreditam ser esta, a cidadania possível dentro da atual
contemporaneidade. Segundo Canclini, “vamos nos afastando da época em que as identidades
se definiam por essências a-históricas: atualmente configuram-se no consumo, dependem
daquilo que se possui ou daquilo que se pode chegar a possuir” (CANCLINI, 1999, p.39).
Entre os “multi” sectários do Brasil 500 e o indivíduo que não desiste nunca de agora,
é interessante notar que estamos nos distanciando cada vez mais da comunidade imaginada
em seu sentido de pertencimento coletivo, para uma comunidade imaginada de grupos e
indivíduos marcados por uma diferença, que em seu limite, nega-lhes sua própria história.
Não queremos com estas colocações, fazer um paralelo, uma síntese ou mesmo uma
convergência dos usos e abusos dos símbolos nacionais dos últimos tempos. Muito menos foi
aqui o nosso intuito, decretarmos o quanto a hegemonia midiática é capaz de socializar
interesses do moderno capital, que entendidos desta forma, seriam no mínimo deterministas
para não dizer, de observação simplista.
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Contudo, inegavelmente, essas apropriações simbólicas permeiam uma tessitura
social densa de conflitos e disputas, onde a mídia possui uma centralidade estratégica a nível
local, nacional e global. O que nos motiva à pesquisa das identidades, e em específico da
identidade nacional junto ao processo midiático eletrônico, são, portanto, as sutilezas que
envolvem a concatenação do passado com o presente de uma coletividade. São, enfim, as
veiculações que estão sendo produzidas sobre o nacional, que permeiam questões que têm a
ver não com perguntas como quem somos e de onde viemos, mas principalmente com outras
envolvendo “como nós temos sido representados”, “quem nós podemos nos tornar” . Ou seja,
não somente o chamado retorno às raízes, “mas uma negociação com nossas próprias rotas”
(HALL, 200,109).
Se a mídia televisiva se tornou o árbitro por excelência na visibilidade das identidades
contemporâneas, as veiculações de nossas comunidades imaginadas, podem nos ajudar a
desnudar essas disputas em torno do projeto de nação e de brasilidade que estamos ajudando
a construir, enquanto integrantes de uma mesma comunidade eletrônica.
A questão não é mais se o melhor do Brasil é o brasileiro, mas que tipo de brasileiro
será esse, capaz de se colocar como o centro e a razão de ser da sociedade, como assim
entendem e tratam seus cidadãos, os países ditos “igualitários”e desenvolvidos.
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