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Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação - 1 -
Becoming Symborg: doença, performance e escrita confessional
em literatura eletrônica
Ermelinda Ferreira1
Resumo: Neste ensaio realizamos uma breve análise de uma obra em literatura eletrônica da coletânea Eletronic Literature Collection, vol. 1 (http://collection.eliterature.org, 2006) organizada por Katherine Hayles, Nick Montfort, Scott Rettberg e Stephanie Strickland, intitulada Carrier: becoming symborg (1999), de autoria de Melinda Rackham and Damien Everett. Procuramos discutir as especificidades da proposta narrativa deste projeto, investigando de que maneira ele corresponde à definição estabelecida pelos organizadores da coletânea para o termo “literatura eletrônica”, tanto do ponto de vista estrutural como temático, explorando o modo como rivaliza com a linguagem dos games e do cinema, e destacando o caráter efêmero, crítico e político desta intervenção, que busca na referência à escrita confessional um vínculo com a realidade humana, para além da realidade virtual do meio onde se constrói e a partir do qual pode ser fruído. Palavras-chave: Literatura eletrônica, escrita confessional, performance, doença
A literatura eletrônica: introdução
Quando falamos em “literatura eletrônica”, estamos nos referindo aos
textos reunidos sob esta rubrica pelos pesquisadores Katherine Hayles, Nick
Montfort, Scott Rettberg e Stephanie Strickland, responsáveis pela organização
da antologia digital Electronic Literature Collection (ELC), vol. 1, uma
compilação não comercial de trabalhos criativos reunindo práticas ligadas à
produção textual e multimídia em computador, com ênfase na narrativa,
disponibilizada na Internet no website da Electronic Literature Organization
(ELO) (http://collection.eliterature.org) e num CD-Rom de distribuição gratuita
1 Doutora em Letras, professora da Universidade Federal de Pernambuco.
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nos Estados Unidos, desde outubro de 2006. Acompanha a coletânea o livro
Electronic literature: new horizons for the literary (Notre Dame, Indiana:
University of Notre Dame, 2008)2, de Katherine Hayles, que se propõe a “auxiliar
o avanço da literatura eletrônica na sala de aula”, revelando uma intenção
explícita de reivindicação, para o gênero, de um maior reconhecimento
acadêmico. A ELC reúne sessenta projetos literários de base computadorizada,
de autoria de quarenta e cinco artistas e/ou equipes de criadores. A seleção
cobre a produção de uma década: incluindo desde as primeiras experiências do
gênero produzidas por Alan Sondheim – Internet text – em 1994, e por Michael
Joyce – Twelve blue – em 1996; até os trabalhos mais recentes de Sharif Ezzat
(Like stars in a clear night sky), Mary Flanagan (theHouse), Richard Holeton
(Frequently asked questions about 'Hypertext') e Marko Niemi (Stud poetry),
todos de 2006.
Uma breve leitura destes seis trabalhos, que representam apenas um
décimo da totalidade do material recolhido, é suficiente para atestar a
diversidade de gêneros, temas, estilos e tecnologias representados nesta
coletânea. Sondheim convida o leitor a navegar pelos textos que publicou em
listas de correspondência online durante um ano; Joyce procura adaptar para os
constrangimentos do HTML a narrativa hipertextual que engendrou através do
pioneiro software de criação ficcional interativa Eastgate’s StorySpace; Ezzat
usa o programa Flash para veicular contos escritos em inglês e lidos
simultaneamente em árabe; Flanagan cria um ambiente arquitetônico virtual
interativo através do qual textos e formas geométricas desvendam uma
narrativa autobiográfica; Holeton se aproveita do modelo das familiares Web
FAQ, ou “Frequently asked questions” veiculadas em sites para construir uma
meditação sobre autoria, identidade, sexualidade e política, ao estilo
nabokoviano, desenvolvendo uma narrativa a partir de supostas anotações sobre
um poema; Niemi usa o programa JavaScript para criar um jogo de pôquer entre 2 Traduzido para o português por Luciana Lhullier e Ricardo Moura Buckweitz. São Paulo: Global, 2009.
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o leitor e alguns grandes poetas franceses, no qual os valores das cartas são
palavras.
De acordo com a crítica, um dos grandes méritos desta coletânea é a
ampla e internacional abrangência do que se entende por “literatura
eletrônica”. Os editores não restringiram a seleção a trabalhos digitais, por
exemplo, mas incluíram em seu portal obras originalmente pensadas para leitura
fora do meio eletrônico, consideradas “precursoras” de propostas mais
arrojadas, incluindo uma seleção de ficção interativa impressa de autores como
John Ingold (All roads), Aaron A. Reed (Whom the telling changed) e Emily Short
(Galatea), fornecendo os links para download dos textos. A coletânea também
anexou trabalhos em outros idiomas ou provenientes de outros países,
notadamente as produções mais representativas dos grupos franceses A.L.A.M.O.
(Atelier de littérature assistee par le mathematique et les ordinateurs) e
L.A.I.R.E. (Lecture, art, innovation, recherche, écriture), cujos poetas estão
entre os primeiros do mundo a experimentar a produção de textos gerados em
computador: Phillipe Bootz e Marcel Fremiot (The set of U) e Patrick-Henri
Burgaud (Jean-Pierre Balpe ou Les lettres dérangée) são alguns exemplos. Vale
a pena salientar que o Brasil também se encontra representado na coletânea
pelo trabalho de Gisele Beiguelman, intitulado Code Movie 1.
Uma das importantes contribuições desta coletânea é estabelecer,
mediante a promoção da leitura e da experiência direta de recepção desses
projetos, a diferença entre “literatura eletrônica” e “hipertexto”, uma confusão
até hoje muito comum. Definida pela ELO como “o trabalho com importante
aspecto literário que aproveita as capacidades e contextos providenciados pelo
computador conectado ou não em rede”, a “literatura eletrônica” não deve ser
confundida com a mera veiculação digitalizada de textos originalmente
produzidos para impressão em papel, e nem mesmo com o texto impresso
adaptado para o formato hipertextual, com janelas e links visando à leitura em
computador. O diferencial do texto considerado uma peça de “literatura
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eletrônica”, segundo Hayles, é ser digital born, ou seja, concebido, gerado e
fruído diretamente em computador.
A observação dos textos da coletânea também deixa claro para o leitor
que a “literatura eletrônica” não se confunde com jogos eletrônicos, filmes de
animação, arte digital ou obras de design gráfico, embora um navegador casual
possa encontrar numa única sessão de leitura todos esses procedimentos
reunidos até mesmo num único trabalho. A ELC permite que o usuário perceba
que se trata de um gênero híbrido por excelência, e diferente de tudo o que
popularmente se vem definindo como “literatura” em meio virtual: a saber,
emails como substitutos de cartas, blogs como duplos de diários íntimos, canais
de bate-papo ou chats, sistemas de mensagens instantâneas ou redes de
sociabilidade como Orkut, MySpace e FaceBook, nos quais mensagens escritas,
imagens e audios são veiculados.
Naturalmente, é preciso enfatizar que os projetos reunidos nesta
coletânea também não podem ser apreendidos nem compreendidos
satisfatoriamente por uma navegação rápida, fortuita e casual. Como nas
melhores e mais sérias produções literárias de antigamente, a natureza
complexa das propostas eletrônicas demanda tempo, atenção e disposição para
o desvendamento da construção do texto, assim como para a leitura do material
escrito propriamente dito. A contribuição da coletânea também incide no
aspecto da divulgação do gênero ao promover uma apresentação elegante e
facilitadora da pesquisa, normatizando a exibição dos projetos mediante o
fornecimento de dados relacionados à autoria, às tecnologias utilizadas e ao tipo
de ação interativa demandada – ações que seguem os parâmetros estabelecidos
pela ELO desde sua fundação em 2002, em cujo site estão compiladas mais de
2.300 obras sob esta denominação. A ideia dos pesquisadores de selecionar
apenas sessenta exemplos significativos numa coletânea à parte favorece a
familiaridade do usuário iniciante com a nova proposta.
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A coletânea é apresentada numa página de convidativo design que elenca,
na ordem alfabética dos sobrenomes dos autores, uma imagem retirada do corpo
de cada trabalho à guisa de “capa”. Cada instantâneo permite que se acesse
uma página contendo informações sobre título, palavras-chave, autoria, além de
uma descrição concisa ou resumo sobre a obra, elaborado pelos editores e/ou
pelos autores, que oferece ainda dados sobre a história da publicação e
instruções gerais sobre o processo e/ou os programas demandados para a
leitura.
Como se percebe, uma das mais significativas propostas desta coletânea
reside no impulso de registro, catalogação, crítica e resgate deste material
enquanto produção representativa de uma época, considerando-se que tais
projetos, forjados em programas que rapidamente se tornam obsoletos, correm
o risco de se tornaram em breve inacessíveis, na dependência da data de
validade de seus meios. Em função desta peculiaridade, alguns críticos tendem a
ver nos textos de “literatura eletrônica” objetos performáticos, essencialmente
concebidos como fenômenos culturais efêmeros, da ordem dos happenings e das
manifestações políticas, em lugar de concebê-los como artefatos duráveis ou
como “obras de arte”. Contrariando este impulso, a ELO tem por missão
estabelecer critérios e procedimentos visando à preservação dos artefatos
literários digitais. O primeiro volume da ELC, portanto, pode ser entendido
como um ato de convicção curatorial, voltado para o esforço de documentar,
promover e tornar mais acessível ao grande público, inclusive aquele não
familiarizado com tais produções, o texto literário de base computadorizada. A
iniciativa atende à necessidade de recolha da ampla gama de experimentos
surgidos e livremente veiculados na internet nas últimas décadas, com a
intenção de promover uma espécie de “tombamento” desse patrimônio digital, a
fim de preservar sua riqueza e reter sua significação social para futuras
considerações.
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Como dizem os apresentadores da obra de Hayles em português, os
professores Tania Rösing e Miguel Rettenmaier – e ao contrário do que se possa,
talvez, pensar – “a literatura eletrônica surge como um elemento de
humanização das práticas computacionais. Isso é um de seus elementos mais
formidáveis. Se o universo do mundo digital pode nos assustar pela maneira
autônoma como as coisas se processam na vida diária do mundo pós-industrial e
pós-humano, a literatura eletrônica mantém o fado daquela literatura que vivia
apenas das palavras”. Surpreendente como possa parecer, na verdade
encontramos em muitas dessas obras, criadas numa linguagem multimídia e
maquínica, profundos elementos de problematização e crítica sobre as
transformações impostas pela cibercultura aos modos de criar, ler e fruir um
texto, e aos processos de desconfiguração e de reconfiguração dos seres
humanos num contexto de tão violentas, drásticas e desafiadoras
transformações.
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Electronic Literature Collection 1 · Hayles Montfort Rettberg Strickland
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Carrier: becoming symborg, de Melinda Rackham e Damian Everett:
uma leitura
Preâmbulo: sobre a temática do corpo e da doença na arte
Nos dias de hoje, a tecnologia se aproxima a passos largos da biologia. As
experiências recentes com o código da vida, levando a uma manipulação genética
sem precedentes na história da humanidade, têm alterado profundamente a
configuração dos corpos e a percepção do ser humano sobre si mesmo.
Paralelamente, a comunicação em rede e a crescente inserção do sujeito no espaço
virtual projeta a mente numa existência fantasmática que corrobora a percepção
do corpo como um membro excedente, vestígio indigno fadado a desaparecer em
breve. A mística da inteligência artificial e o desprezo pelo corpo na era
cibernética chega ao extremo de produzir a utopia do corpo eletrônico, imune à
corrosão, à deficiência física e à morte. A existência no cárcere físico é vista como
um impedimento em vias de superação. Como diz Timothy Leary:
Num futuro próximo, o homem tal como o conhecemos hoje, essa criatura perecível, não será mais que uma simples curiosidade histórica, uma relíquia, um ridículo ponto perdido em meio a uma inimaginável diversidade de formas. Se tiverem vontade, indivíduos ou grupos de aventureiros poderão reconstruir essa prisão de carne e de sangue, o que, em atenção a eles, a ciência fará com prazer. (Leary apud Le Breton. Adeus ao corpo, in: Novaes, Adauto. O homem máquina, p. 126.)
No entanto, o projeto de dar conta da existência humana a partir de um
modelo mecânico que se confunde com o corpo é ultrapassado pela percepção de
que nosso corpo não é um corpo qualquer: é um corpo próprio, parece ser nossa
propriedade, temos um poder sobre ele. Segundo Renaud Barbaras,
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é incontestável que, numa perspectiva mecanicista ou reducionista, a dificuldade principal reside na existência de uma consciência capaz de perceber, lembrar-se e de agir livremente – existência dada como evidência numa experiência. Com efeito, a característica própria da consciência é que ela não é nada além do que lhe aparece, ela é a identidade absoluta do ser e do aparecer, de modo que sua experiência – o fato de estar consciente – é a garantia de sua existência. Segue daí que o problema da redutibilidade de toda a existência humana ao modelo mecânico remete a um problema prévio: o do valor e alcance da experiência de nossa alma, que primeiro toma a forma de uma experiência de nossa liberdade. (Barbaras. A alma e o cérebro, in: Novaes, Adauto. O homem máquina, p. 66.)
Se a consciência humana, presa aos ditames de um corpo jovem e saudável,
já sinaliza o desconforto com as limitações naturais de seu suporte, o que dizer da
alma presa a um organismo doente e disfuncionante? Susan Sontag compara a
doença “à zona noturna da vida, a uma cidadania mais onerosa”, dedicando seu
livro Doença como metáfora a analisar como é emigrar para o reino dos doentes e
lá viver, mesmo que por um período de tempo, enfrentando não apenas os
infortúnios e as transformações físicas e psicológicas exigidas pela nova condição
que se instala, mas sobretudo os estereótipos e os estigmas socialmente
construídos em torno da ideia de que nascemos e somos destinados a uma condição
ideal de saúde permanente, da qual todo e qualquer desvio – sobretudo os mais
graves e ameaçadores, que desafiam a capacidade da ciência de contorná-los – é
considerado quando não um castigo, uma verdadeira maldição. Sobretudo, e
cruelmente, a doença pode, e cada vez mais frequentemente vem sendo
interpretada, como o resultado previsível de uma irreverente, ignorante ou
deliberadamente perversa conduta do sujeito face aos ditames politicamente
corretos do “bem viver com saúde para sempre”, massivamente divulgados pela
imprensa e pela mídia como alternativas garantidas de bem-estar, longevidade e
jovialidade – resultantes das cada vez mais especializadas e minuciosas pesquisas
médicas –, desde que cumpridas à risca. Qualquer desvio pode ser evocado como
“culpa”, no caso de um tropeço do corpo, levando o sujeito a padecer, além das
dificuldades inerentes à nova condição, a dor da responsabilidade por uma situação
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que, efetivamente, as mais das vezes jamais esteve, minimamente, sob seu
controle.
Talvez por isso, diversos estudiosos têm-se dedicado, na atualidade, a rever
os conceitos sobre saúde e doença ainda hoje vigentes. Georges Canguilhem, em O
normal e o patológico, afirma que a pior doença do homem contemporâneo é a
crença numa suposta “normalidade”, na ideia da uniformidade incorruptível do
normal, como se fosse possível ao corpo existir sem registrar as agressões do meio
ambiente, sem reagir a elas, e sem jamais sofrer os efeitos da entropia. Como se os
corpos fossem destinados a uma existência ideal e atemporal, sobre a qual não
recaíssem jamais a fatalidade, a corrupção e o fim. A intolerância ao caráter
efêmero da vida, em lugar de provocar uma maior discussão e investigação sobre a
morte, leva, ao contrário, ao afastamento desta questão da pauta das relações
humanas, e a uma popularização da utopia do corpo perfeito, salvo da falência
pelas práticas salutares da nutrição balanceada, do consumo de suplementos
vitamínicos, da prática de exercícios físicos, do uso do crescente arsenal da
cosmetologia anti-idade, para além das intervenções mais drásticas e radicais das
cirurgias plásticas reconstrutoras. O espetáculo da doença, da velhice e da morte
deixou de ser corriqueiro, parte da realidade da existência num corpo com prazo
de validade, como mais sabiamente ocorria em tempos pré-modernos. Hoje em dia,
como diz Norbert Elias, a morte é cada vez mais recalcada:
A morte é um dos grandes perigos biossociais na vida humana. Como outros aspectos animais, a morte, tanto como processo quanto como imagem mnemônica, é empurrada mais e mais para os bastidores da vida social durante o impulso civilizador. Para os próprios moribundos, isso significa que eles também são empurrados para os bastidores, são isolados. (Elias, Norbert. A solidão dos moribundos, p. 19)
Para Elias, uma das características das sociedades desenvolvidas que merece
menção como pré-condição da peculiaridade de sua imagem da morte é o alto grau
e padrão específico de individualização. A imagem da morte na memória de uma
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pessoa está muito próxima de sua imagem de si mesma e dos seres humanos
prevalecente em sua sociedade. Em grupamentos mais desenvolvidos, as pessoas
em geral se vêem como seres individuais fundamentalmente independentes, como
mônadas sem janelas, como sujeitos isolados, em relação aos quais o mundo
inteiro, incluindo todas as outras pessoas, representa “o mundo externo”. Seu
mundo interno, aparentemente, é separado desse mundo externo, e portanto das
outras pessoas, como que por um muro invisível. Esse modo específico de
experimentar a si mesmo, segundo o autor, na auto-imagem do homo clausus
característica de um estágio recente da civilização, está intimamente ligado a um
modo igualmente específico de experimentar, como antecipação de nossa própria
morte e provavelmente na situação real, nosso próprio ato de morrer:
Mas a pesquisa sobre a morte – por razões que não são independentes da repressão social – ainda está num estado incipiente. Há ainda muito a fazer para uma melhor compreensão da experiência e das necessidades dos moribundos e da conexão entre tal experiência e tais necessidades, de um lado, e o modo de vida e auto-imagem, de outro. (Elias, Norbert. A solidão dos moribundos, p. 62)
Além do individualismo contemporâneo, contribui para a atual visão da
morte o cientificismo inoculado no discurso e na prática da medicina moderna, que
não raro resulta na consolidação de uma atitude que pode ser considerada, até
certo ponto, como “colonizadora” do sujeito doente. Emigrar para o reino da
doença, como diz Sontag, frequentemente significa, em nosso contexto, passar a
viver num regime de submissão do corpo à ciência e à radical autoridade de seus
discursos, o que não raro produz o silenciamento da experiência individual do
“paciente” no texto médico, objetivador e pragmático da anamnese.
Na prática médica moderna, o doente não fala, é falado. Em The wounded
storyteller: body, illness and ethics, Arthur W. Frank discute a existência de um
reconhecido desnível de forças na atual relação médico-paciente, que habilita o
profissional de saúde a intervir na existência daquele que o procura com uma
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história de sofrimento, elencando diagnósticos, prescrições, intervenções e
prognósticos os quais, por escaparem ao entendimento, percepção e poder
decisório do outro, tendem a submetê-lo a uma vontade superior, arbitrária e as
mais das vezes inquestionável. Tal situação é agravada com a crescente tendência
à valorização do emprego de tecnologias de ponta na medicina, e com a prática
cada vez mais habitual de substituição da clínica pela avaliação laboratorial,
repassando aos equipamentos maquínicos a tarefa, antes delegada a um ser
humano, de analisar o estado daquele outro ser humano que se apresenta em
sofrimento. Como a aposta da medicina moderna reside na manutenção da vida e
da saúde a qualquer preço, o corpo sofredor em situações-limite – tanto aquelas
que desafiam a competência do domínio científico e fazem pouco de seus aparatos,
como as que se deparam com a inevitabilidade da decrepitude e da morte – é
também, muitas vezes, ignorado.
Transformado em “caso clínico”, o doente nas sociedades ocidentais
avançadas perde não só a identidade que construiu no “país dos sãos”: perde o
direito a verbalizar a experiência única, singularíssima, que a condição patológica
representa em sua vida. Sua narrativa – a história dos eventos que culminaram
numa condição extrema e não raro incapacitante para aquele sujeito específico;
reformulando, muitas vezes de maneira drástica, as suas relações identitárias,
emocionais e existenciais com seus grupos de origem – é desconsiderada em favor
de uma suposta soberania da razão científica. Em Medicine and literature, John
Salinsky analisa como a literatura de Franz Kafka, por exemplo, traduz uma
profunda compreensão desta exclusão na radical alteridade que a doença imprime
aos seres humanos, quando subitamente se descobrem transformados em corpos
abjetos, repulsivos e dependentes. Como em A metamorfose, essas pessoas,
desumanizadas por uma aparência ou uma condição não convencional, e sobretudo
pelo silenciamento que lhes é imposto, ou pela incapacidade que revelam, pelos
mais diversos motivos, de se exprimirem, são reduzidas a uma condição sub-
humana, alijada do contexto de uma humanidade inócua, salva, não contaminada –
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“pura”, enfim – no interior da qual navegam os corpos circunstancialmente (ainda)
intocados pela fatalidade e pela dor.
O “texto”: considerações
Layout da página no ELC:
Carrier
(becoming symborg) Melinda Rackham and Damien Everett
The hepatitis C virus is hauntingly personified in
this portmanteau multimedia piece. In envisioning
the virus as a conscious agent, carrier enables us
to think of the disease and the sufferings of those
afflicted with it in a new light.3
3 O vírus da hepatite C é assombrosamente personificado nesta peça multimídia. Imaginando o virus como um agente consciente, portador nos permite pensar na doença e no sofrimento daqueles atingidos por ela sob uma nova luz.
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Author description: carrier investigates the fluid
boundaries of the body and the self via viral
symbiosis in the biological and virtual domains by
weaving an intimate love story between the viewer
and the hepatitis C virus. The site integrates
artificial and viral intelligence with immune system
and computer operating system discourse within the
swarming electronically networked nervous system of
our planet — the world wide web, immersing the
viewer in VRML worlds, Shockwave games, and Java-
generated textual landscapes. We are lead through
the site by sHe, an intelligent viral agent, who
crosses our species boundary, penetrating our
cellular core, repositioning viral infection as
positive biological merging with the flesh. We
become symborg as the boundaries between human /
machine / species dissolve. carrier comes in several
versions, allowing the viewer to navigate alone or
with the virus, as well an offline gallery stand-
alone version.4
Previous publication: carrier was published by
Rackham in 1999 on her site,
http://www.subtle.net/carrier.5
4 Descrição do autor: portador investiga as relações fluídicas do corpo e do ser via simbiose viral nos domínios biológico e virtual, através da veiculação de uma história íntima de amor entre o observador e o vírus da hepatite C. O site integra inteligência artificial e viral com o discurso do sistema imune e do sistema operacional do computador no interior do sistema nervoso eletronicamente disposto em rede do nosso planeta – a world wide web -, imergindo o observador em mundos VRML, em jogos Shockwave, e em paisagens textuais geradas em Java. Somos conduzidos através do site por sHe, um agente viral inteligente, que atravessa os limites de nossa espécie, penetrando no nosso código celular, reposicionando a infecção viral como uma fusão biológica positiva com a carne. Nós nos tornamos symborg quando os limites entre humano/máquina/espécie se dissolvem. Portador vem em diversas versões, permitindo ao observador navegar sozinho ou com o vírus, ou fora da rede numa versão em CD. 5 Publicação prévia: Portador foi publicado em 1999 por Rackham em seu site http://www.subtle.net/carrier.
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Comentário:
A proposta do projeto de literatura eletrônica que selecionamos para este
comentário põe em destaque todas essas questões, e muitas outras. Intitulado
“Portador (tornando-se symborg)”, a obra pode ser entendida como um complexo
narrativo digital e interativo que abrange muitos gêneros. Numa das duas
alternativas oferecidas para a navegação neste site, o leitor se depara com uma
elaboração ficcional, baseada na criação de uma espécie de jogo virtual entre um
ser (personagem-narrador) identificado pelo ambíguo termo “sHe” – na verdade
uma caracterização do vírus da Hepatite C – que é posto a dialogar com o leitor
num ambiente que recria uma atmosfera comum aos filmes de ficção científica de
suspense.
O cenário, que lembra uma placa de petri ampliada, com estruturas
microscópicas flutuando na tela e uma música de fundo ameaçadora, contribui para
criar uma sensação de desconforto, quando “alguém” (o vírus “sHe”) dirige-se ao
espectador digitando uma mensagem, como numa conversa informal em MSN. A
intenção do ser “alienígena” é estabelecer um contato íntimo com o ser humano;
sua primeira investida, portanto, é perguntar o nome do seu interlocutor, passando
então a dirigir-se a ele de forma personalizada.
A ideia de um vírus capaz de conversar e de utilizar várias técnicas de
sedução através da linguagem verbal causa constrangimento e incômodo no seu
eventual “parceiro”, que percebe que está sendo vítima de assédio. Além disso, em
sabendo da natureza do seu atacante, intui para onde deve conduzir tal conversa,
o que acentua a impressão de mal-estar. Mas o programa não deixa alternativa. Ou
você desiste do “jogo” ou, se tem curiosidade de ir adiante, precisa aceitar o
“contágio” e virar um “portador” – o que equivale a dizer que aceita a invasão,
mesmo ficcional, dessa microcápsula proteica no seu organismo, e aceita ver-se a
si mesmo como um “doente”.
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O vírus não desiste até conseguir autorização para a fusão de seu corpo com
o do seu interlocutor. A partir daí, quando o navegador já se encontra em estado
de hibridização com aquela estranha forma de vida inteligente, o programa fornece
a opção de navegação independente, sem a desagradável intervenção da “fala” do
vírus.
A partir de então, a obra abandona o caráter lúdico da simulação de um
diálogo ficcional em MSN, adquirindo uma característica mais séria, expondo uma
nova proposta de ordem didática, confessional e performática. Didática porque
permite que sejam acessadas, durante a navegação na “placa de petri”,
informações úteis e importantes sobre a doença determinada pela infecção do
vírus, a Hepatite C. Confessional porque, neste momento, o navegador tem acesso
ao núcleo da narrativa, feito de um compêndio de cartas-testemunhos de
portadores reais deste vírus, ou de seus familiares, que redigem os depoimentos
mais impressionantes sobre suas experiências indubitavelmente reais de
relacionamento com o vírus.
O discurso médico e técnico, frio e indiferente – que se limita a fornecer
informações científicas sobre a patologia –, é posto, portanto, ao lado de uma
gama surpreendente de relatos dramáticos, intensos, trágicos e de inegável
riqueza, inclusive para a pesquisa médica, na medida em que relatam os sintomas
em sua diversidade, as respostas favoráveis ou não aos tratamentos disponíveis e as
trocas sobre tratamentos alternativos, fitoterápicos e outros que só circulam entre
portadores desesperados, dificilmente chegando aos circuitos oficiais da ciência.
Diversas histórias podem ser inferidas a partir desses relatos; imensos dramas
pessoais se constroem nestas narrativas de vida, morte e sobrevivência. Enredos
que em nada deixam a dever aos dos mais imaginativos romances, exibem-se em
potencial neste universo, traçados em algumas poucas e sempre apaixonadas linhas
escritas para veiculação no espaço democrático e liberal da internet.
A diferença deste “romance” epistolográfico de caráter dramático/trágico é
que seus enredos remetem a pessoas reais, que estão efetivamente sofrendo dentro e
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fora da rede de comunicação eletrônica, e com as quais o navegador, se quiser,
poderá entrar em contato, pois seus emails são disponibilizados no corpo da obra. Daí
o caráter “performático” desta experiência, que reedita um pouco a essência do
happening ou da literatura-manifesto, de clara intenção política, voltada sobretudo
para a denúncia da postura excludente da sociedade “sã” face à sociedade dos
“infectados”, cujas “comunidades” marginais proliferam à medida em que novas
“invasões” virais surgem e ameaçam as populações em escala planetária.
Os “ataques” dos vírus – esses seres incompletos, nem sequer considerados
“seres vivos” pela unanimidade da comunidade científica, porém altamente lesivos
para a humanidade –, em versões modernas e desconhecidas para as quais não
existe ainda uma forma de controle eficaz, têm surgido e se multiplicado como
nunca nos últimos tempos (aids, antraz, ebola, gripe aviária, gripe suína, dengue,
hepatite, etc), gerando uma atmosfera escatológica de terror e insegurança
comparável apenas às determinadas pelas grandes pandemias ao longo da história
(lepra, peste bubônica, varíola, gripe espanhola, etc.), que varreram populações
inteiras, e que já se acreditavam erradicadas com o advento da penicilina, no caso
do ataque de bactérias, e das vacinas, no caso do ataque de vírus.
Nenhum E.T. de filmes de ficção científica pode rivalizar, nem
imaginativamente, em capacidade real de dano ao ser humano, com o elemento
parasitário viral. Com a agressão humana à natureza, responsável pelo
desequilíbrio ímpar e irreversível da homeostase da biosfera; com as pesquisas
cada vez mais radicais na área da manipulação genética, seja na agricultura e na
pecuária (referentes ao controle de pragas e à optimização da produção), seja na
indústria farmacêutica, cosmética e alimentícia (com a crescente inserção no
mercado de substâncias artificiais para consumo e uso); além da recente
possibilidade aberta ao terrorismo biológico pela facilidade de acesso aos
laboratórios e mesmo pela possibilidade de acidentes os mais diversos com esses
materiais, a manipulação da vida em seu âmago, com a determinação real de
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ameaças nunca dantes imaginadas, nunca foi tão intensa, aleatória e devastadora
como nos dias que correm.
Compreende-se, portanto, a proposta dos autores deste exemplar de
literatura eletrônica, que mostram uma ínfima faceta da nova natureza do
problema da saúde pública resultante deste quadro. Obras como esta nos fazem
pensar em como este problema vem se inserindo em nosso cotidiano num ritmo tal
que os discursos filosófico, ético e jurídico não têm dado conta de acompanhar.
Informação científica sobre a doença oferecida no site
Hepatite C (HCV) é um vírus que afeta humanos. Entre as pessoas
expostas ao HCV alguns vão eliminar o vírus, porém a maioria vai
ter a longo prazo uma infecção crônica. A maioria das pessoas
infectadas com o HCV não sabem que são portadores e podem ser
assintomáticos. Em outros, os sintomas podem levar de onze a vinte
anos para se desenvolver. Muitas pessoas com infecção crônica não
têm sintomas perceptíveis ou dano hepático e parecem bem. No
entanto, estão infectadas e devem tomar cuidado para reduzir os
riscos de transmissão do vírus para outras pessoas. A principal
forma de transmissão do HCV é através do contato com sangue
contaminado. Os sintomas refletem os danos causados ao fígado pelo
HCV na maioria dos casos: cansaço, desconforto abdominal e náuseas.
Atualmente não há nenhuma maneira de se prever as conseqüências
desta infecção em qualquer pessoa. Os sintomas podem ser nulos ou
mesmo desproporcionalmente incapacitantes em relação à quantidade
de danos causada ao fígado. A causa da fadiga associada à hepatite
C ainda não está totalmente clara, no entanto, sabese que o uso de
álcool agrava os danos causados pelo HCV. Com o tempo, a infecção
crônica pode resultar em cicatrizes permanentes no fígado
determinantes de cirrose. A cirrose, em si, não constitui risco de
morte, mas com o tempo e a extensão do quadro, pode resultar em
insuficiência hepática ou câncer de fígado, podendo levar a óbito.
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Cartas de pacientes e/ou de parentes de portadores escritas para o site de relacionamento na internet voltado para o apoio aos infectados pelo HCV
De: Adele <affie@aol.com> Assunto: Re: discriminação
Eu simplesmente não revelo mais que sou portadora do
virus da hep C, depois de ter uma série de tratamentos
recusados pelos especialistas. Tanto o dentista local como a
minha ginecologista, por exemplo, me disseram que havia mais
sobre essa doença do que estava sendo revelado ao grande
público. Sei que intervenções mínimas podem se tornar
perigosas graças às práticas pouco seguras de esterilização de
materiais na comunidade. Entretanto, estou exausta de ser
discriminada como viciada em drogas injetáveis apenas por ser
portadora do vírus da hep C.
Devido aos meus filhos e ao meu emprego como advogada
numa pequena cidade, não posso revelar minha situação
também no trabalho, principalmente por causa das
reportagens sensacionalistas veiculadas na TV, que sempre
associam hep C ao consumo de drogas e às populações
carcerárias. Isto me coloca, enquanto advogada e portadora,
“do outro lado” da justiça. Mas estou sempre tão cansada que
vivo me arrastando pelo escritório, e temo que isso me venha
a fazer perder o emprego, considerando as muitas licenças
médicas que fui obrigada a requisitar no ano passado.
Os médicos afirmam que escondo o meu passado... mas a
verdade é que não tenho a menor ideia de onde pude pegar
esse vírus. Só tive três parceiros sexuais, nenhum dos quais
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portadores ou sujeitos à contaminação pelo vírus da hep C:
não fizeram transfusões, tatuagens, ou tiveram
comportamento de risco. Da mesma maneira que eu.
Se o HCV não fosse tão estigmatizado nem tão invisível
como é – o que eu acho difícil de acreditar, considerando que
somos quatro milhões de pessoas infectadas neste país – então
talvez eu pudesse revelar minha condição e receber o suporte
profissional e o tratamento de que preciso dentro da minha
própria comunidade. Mas do jeito que as coisas são, sinto-me
forçada a me mudar para uma cidade grande, levando a minha
família, a fim de ter alguma oportunidade de manter o meu
trabalho durante a progressão da doença.
Agradeço a todos vocês o apoio deste grupo, é o único
lugar hoje onde posso dizer que me sinto uma pessoa normal
☺.
Adele
De: Kerry Anne kab@land.net.au Assunto: Re: crianças
Cada vez que olho para Brendon me sinto tão culpada de
ter passado uma doença incurável para ele. Ele é um
menininho tão alegre e inocente, não tem a menor ideia de
que é portador de um vírus que o torna diferente das outras
pessoas. Eu não sabia que era portadora do HCV até fazer um
exame de sangue de rotina quando fiquei grávida pela primeira
vez, e foi aterrorizante precisar lidar com a revelação desta
doença e com o medo de transmiti-la à minha criança ainda
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não nascida. Os médicos disseram que os riscos de transmissão
eram de 5%, uma vez que eu não apresentava sintomas, minha
função hepática era boa e a possibilidade de infectar a criança
era baixa. O fato é que não consegui fazer um aborto,
havíamos esperado tanto, tanto tempo para ter essa preciosa
criança, até que tivéssemos uma condição financeira estável e
tivéssemos comprado a nossa casa. Como somos ambos casados
pela segunda vez, já não tínhamos idade para arriscar outras
gravidezes, e não quisemos pensar em esperar a eventualidade
de que eles encontrassem a cura dessa doença nos próximos
cinco anos. Por isso, decidimos continuar a gravidez, mas o
parto acabou sendo difícil e acidentado, e durante a cirurgia a
criança ficou coberta com o meu sangue. Mesmo assim
esperamos. Sabemos que crianças nascidas de mães portadoras
fazem o teste sanguíneo entre 12 e 18 meses de idade, quando
perdem os anticorpos da mãe e ficam expostas ao vírus. Apesar
de não haver relato da passagem do vírus pelo leite, preferi
não amamentar o meu filho, pensando em diminuir as chances
que ele teria de desenvolver a doença. No entanto, a cada
terrível exame de sangue, minhas esperanças diminuíam.
Tenho muita sorte de contar com um companheiro
maravilhoso, não teria suportado tudo o que passei se não
fosse ele. Odiei ter que fazer todos aqueles testes em
Brendon, para descobrir que possivelmente ele está mesmo
infectado. Não sou religiosa, mas se fosse tenho certeza de
que estaria implorando a Deus pela cura, não minha, mas do
meu bebê. Tornei-me uma mãe superprotetora e assustada.
Embora ele seja lindo e saudável, fico apavorada com aquilo
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que está por vir, com as histórias terríveis que ouço de
crianças portadoras de HIV que são banidas dos parquinhos e
das escolas, e de famílias que precisam fugir para cidades
grandes a fim de manter o anonimato e esconder da
comunidade a condição de seu familiar portador do vírus.
Brendon é a razão da minha vida. Hoje eu já não viveria sem
ele. Espero que mais e mais pessoas se conscientizem sobre
essa doença, para que ele possa viver num mundo melhor. Se
você está na minha situação, não posso aconselhá-la sobre o
que fazer... essa é uma decisão que só cada um pode tomar.
Kerry Anne
De: Fredrick <fred1@magna.com.au>
Assunto: Re: Dezoito coisas que aprendi sobre meu HCV nestes 4 anos pós-diagnóstico
18. Meu HCV me fez mais vivo.
17. Meu HCV finalmente me ajudou a crescer, depois de quatro
décadas e meia de vida.
16. Meu HCV me deu o presente de me confrontar com a minha
própria mortalidade.
15. Meu HCV me forçou a não perder tempo.
14. Meu HCV me ensinou que é inútil pensar em mim mesmo
como uma vítima.
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13. Meu HCV me ensinou que, embora eu não possa escapar das
conseqüências do passado, a auto-punição é fútil e egoísta.
12. Meu HCV me lembra constantemente do quanto amo minha
mulher e meus filhos.
11. Meu HCV me tornou mais grato pelo que eu tenho do que em
qualquer outra época da minha vida.
10. Meu HCV me tornou mais concentrado agora do que jamais
fui.
9. A redução de ferro por retirada de sangue reduz minha ALT e
AST. Não sei se isso reduz a destruição do meu fígado.
8. Como não reativo ao interferon, tenho somente uma mínima
chance de responder ao interferon e a ribavirina combinados.
Mas tentarei esta combinação de qualquer forma.
7. Preciso observar tudo o que como e bebo – pouca gordura,
muita fibra, nenhum álcool.
6. Algumas vitaminas, minerais e anti oxidantes me fazem sentir
melhor: zinco, sódio, sulfato, N-acetyl cistina, acido lipoico,
cholina, inositol, selênio, vit. C e vit. E.
5. Ervas chinesas que suportam cozimento e fervura mantêm as
minhas enzimas estáveis. Em 1995, estava no estágio 2 de
fibrose. Embora me sentisse bem durante 96 e 97, os testes
mostraram uma evolução para o estágio 3 de fibrose.
4. Se eu tomar um drink de proteína de leite de cabra, água e
guaraná pela manhã, observo que tenho muito menos sintomas e
meu teste sanguíneo apresenta resultados melhores.
3. Manter o regime, contudo, não diminui o risco para o meu
fígado.
2. Manter o regime, custa uma fortuna.
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1. Apesar disso, acho que os meus suplementos, ervas e
vitaminas são válidos do ponto de vista da minha qualidade de
vida.
Considerações finais
Se a palavra “Cyborg” vem da fusão dos termos Cybernetic e Organic,
sugerindo um ser híbrido com características tecnológicas e biológicas (silício e
carbono), poderíamos deduzir que “Symborg” pressupõe a fusão dos termos
Symbolic e Organic, sugerindo o “portador” (Carrier) como um ser híbrido entre um
sistema lingüístico arbitrário e um organismo vivo. Entender a estrutura viral como
um código lingüístico não está muito longe da verdade, determinando, talvez, a
adequabilidade do termo na sua transposição para a linguagem dos computadores.
O “vírus” virtual é identificado com um pequeno programa que se insere dentro de
outros programas. Quando estes outros programas são executados, o vírus também
é executado, e tenta se multiplicar para atingir mais programas ainda. Desta
forma, ele se alastra pelos programas do computador da mesma forma como um
vírus biológico no corpo humano. Os vírus maquínicos, por definição, podem
"infectar" qualquer tipo de código executável, que seriam os equivalentes dos
núcleos celulares no interior dos quais os vírus biológicos, seres muito elementares
e altamente invasivos, adquirem meios para a mutação necessária à sua
reprodução.
A célula que se reproduz após a invasão viral já não é uma célula comum,
nem o vírus é simplesmente um vírus: trata-se de um complexo híbrido, no qual a
parca informação individual deste encontra-se indelevelmente anexada à mais
complexa informação de seu invólucro, transformado em portador posto a seu
serviço. Já não é possível desvincular, portanto, na célula contaminada, o que é
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“vírus” do que não é “vírus”. Uma célula colonizada por um vírus é uma célula
doente, no sentido que propõe Canguilhem: não uma célula “maldita”, mas uma
célula “errada”. Ali haverá sempre um erro de leitura, que configurará uma
interpretação desviada, determinando uma função diferente daquela esperada para
aquele ente antes do evento do ataque.
Seres portadores de células comprometidas tornam-se organismos
simbolicamente afetados de múltiplas maneiras. Suas vidas pessoais e em
sociedade sofrem uma reviravolta radical, especialmente quando não há outra
alternativa além do tratamento paliativo e da longa espera pelo desenvolvimento
de uma condição mórbida crônica e progressivamente incapacitante. A inexistência
de programas eficientes de suporte psicológico, informação, educação e adaptação
dos portadores, seus familiares e demais contactantes à nova condição real e
simbólica que se instala, isola essas pessoas num silêncio destrutivo, que não só
contribui para agravar os seus problemas diversos, como para favorecer a
disseminação dos vírus, uma vez que os portadores preferem ocultar dos demais a
sua condição e não tomar as precauções necessárias à limitação do contágio.
No entanto, como mostram os depoimentos citados nesta obra de literatura
eletrônica, nem sempre as reações à adversidade são negativas. Muitas pessoas
encontram formas positivas e criativas de continuar a viver, e articulam processos
de compensação para as dificuldades capazes de transformá-las em verdadeiros
exemplos de força e resiliência. O abismo entre o discurso científico e a real
situação “symborg” dos portadores de vírus extremamente agressivos como o da
Hepatite C torna-se patente no corpo desta obra, mostrando que há muito a ser
feito com relação às comunidades de contaminados que proliferam no mundo.
Neste aspecto, a incômoda e desagradável estratégia de intercâmbio imaginada
pelos criadores deste site entre um vírus inteligente e seu interlocutor humano,
que abre a experiência de fruição desta obra, parece necessária como uma etapa
de sensibilização do receptor para a gravidade do assunto de que se vai tratar, e
como um processo de vivência, em escala infinitamente menor e ficcional, das
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angústias, aflições e temores experimentados por qualquer pessoa, sujeita à
invasão imprevista de um desses “aliens”, que alterarão suas vidas profundamente,
reconfigurando seus corpos, ressignificando suas histórias e conduzindo seus
destinos por caminhos imprevistos, difíceis e as mais das vezes, extremamente
solitários.
O ciberespaço, porém, imune aos contatos orgânicos de toda a espécie e às
doenças dos corpos humanos, acolhe as mentes perturbadas e isoladas e
proporciona-lhes uma via de intercâmbio, troca de experiências, desabafos, apoio
mútuo e relacionamento, que sem ele não seria possível. Quando os apresentadores
brasileiros da antologia de literatura eletrônica de Hayles comentam que os
projetos identificados como obras digitais trabalham pela “humanização” das
práticas computacionais, é preciso estender e dizer que, algumas vezes, eles
trabalham também pela “humanização” dos próprios seres humanos em suas
práticas cotidianas, mediadas pela realidade de seus corpos falíveis e mortais,
contribuindo para libertá-los do medo e do egoísmo que os impedem de exercitar a
solidariedade. Carrier: becoming symborg é um exemplo de veículo de uma
narrativa multiforme que acontece no espaço virtual, na qual cabem ficção e
realidade, jogo e realidade, trabalho estético e realidade – mas sempre uma
inegável e contundente realidade –, e que mostra como os “outros mundos” e os
“outros seres” que aprendemos a temer com os discursos territorialistas e
imperialistas de outras eras (e todas as fantasias criadas a partir deste imaginário)
estão cada vez mais perto, tornam-se cada vez mais íntimos, a ponto de se
confundirem conosco, como parte constituinte de nossos organismos, como as
palavras-valise de um novo texto escrito e inscrito em nossas próprias células;
obrigando-nos, a cada instante, a uma constante releitura de nós mesmos.
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Referências bibliográficas
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Universitária, 2010.
ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos, seguido de “Envelhecer e morrer”. Rio
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HAYLES, Katherine. Eletronic literature. New horizons for the literary. Indiana:
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_____. Literatura eletrônica. Novos horizontes para o literário. São Paulo: Global,
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NOVAES, Adauto (org.). O homem-máquina. A ciência manipula o corpo. São Paulo:
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SALINSKY, John. Medicine and literature. Oxford and San Francisco: Radcliffe
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SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova
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RACKHAM, Melinda e EVERETT, Damien. Carrier (becoming symborg). In:
http://collection.eliterature.org
SONTAG, Susan. Doença como metáfora. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.
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