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Boletim de artigos e resenhas de livros e filmes sobre o oriente Médio e o Mundo Muçulmano
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Malala n.3 v.1 dez. 2014
boletim do Grupo de Trabalho Oriente Mdio e Mundo Muulmano (GTOMMM)
Laboratrio de Estudos da sia (LEA)
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas (FFLCH)
Universidade de So Paulo (USP)
Comisso editorial
Ariel Finguerut
Cila Lima
Danilo Guiral Bassi
Natlia Nahas Carneiro Maia Calfat
Coordenao
Peter Robert Demant
Capa
Garotos em Hebron/al-Khalil
foto cedida por Danilo Guiral Bassi
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Malala Yousafzai no dia 12 de julho de 2013, ao completar dezesseis anos, falou no plenrio das Naes Unidas sobre educao, luta e coragem, declarando, logo no incio, que no sabe ao certo o que as pessoas esperam dela.
Malala desperta desconfianas e tambm expectativas. Com seus 16 anos recm-completos, ela pode ainda mudar de opinio, de postura ou at mesmo pode rever suas bandeiras e relao com o isl. Portanto sabemos dos riscos que estamos aceitando ao escolher Malala como nome de nosso boletim eletrnico.
Sua trajetria, de menina paquistanesa que, no dia 9 de outubro de 2012, foi alvejada no rosto, em ataque assumido pelo grupo extremista Talib, em resposta sua luta por educao, tanto pela internet como em dimenso internacional, com divulgao pela grande mdia, at seu discurso na ONU em comemorao aos seus 16 anos e recuperada do atentado desperta grande comoo. O mundo conheceu a luta dessa jovem muulmana por educao, igualdade e contra o extremismo religioso. Sem se deixar vencer ou silenciar (j que se salvou do ataque), nem se colocando como vtima, nem prometendo vingana ou declarando guerra, Malala mostrou a fora de suas (delicadas, mas assertivas) palavras, declarando na ONU que ela, Malala, uma garota entre muitas.
Para ns, Malala mais do que um smbolo poltico uma inspirao acadmica. Ela nos leva a pensar que podemos transcender e vencer preconceitos, superar esteretipos e criar um espao para discusso e troca de ideias sem medo, com pluralidade, coragem e abertura, sem abrir mo de textos claros, de pesquisas srias e de debates com ideias que muitas vezes podem ser conflitantes sobre Oriente Mdio e Mundo Muulmano.
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Os artigos publicados so de inteira responsabilidade de seus autores. As opinies neles emitidas no exprimem, necessariamente, o ponto de vista do boletim Malala
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SUMRIO
O MXIMO QUE ISRAEL EST DISPOSTO A OFERECER NO CHEGA AO MNIMO QUE OS PALESTINOS ESTO
DISPOSTOS A ACEITAR E VICE-VERSA ENTREVISTA DO PROF. DR. SAMUEL FELDBERG
(UNIVERSIDADE DE SO PAULO) AO BOLETIM MALALA 3
IMPERIALISMO E GUERRA CIVIL NO MUNDO RABE: A TRAGDIA SRIA APORIAS E CONSEQUNCIAS DA
FALTA DE INTERVIR (PETER DEMANT UNIVERSIDADE DE SO PAULO) 17
BETWEEN THE TWO WORLDS, PALESTINIANS IN ISRAEL (ALCINDO GABRIEL FRANCISCO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO) 45
CONTRA A LIMPEZA TNICA E O ESQUECIMENTO (SORAYA MISLEH UNIVERSIDADE DE
SO PAULO) 61
A RESPONSABILIDADE DE PROTEGER EM SITUAO DE OCUPAO ESTRANGEIRA: PALESTINA DEBAIXO
DO JUGO DE ISRAEL (PABLO ZAMORA PONTIFCIA UNIVERSIDADE DO PERU) 69
DESENHANDO O CONFLITO ISRAEL-PALESTINA: NARRATIVAS E REPRESENTAES EM HQS (PATRCIA
RANGEL UNIVERSIDADE DE SO PAULO) 77
QALNDIA: MURO FECHADO (MAIT LAMESA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA) 109
O CONFLITO ENTRE ISRAEL E PALESTINA EM 2014: A SOLIDARIEDADE BASTA? (LUCIANA SAAB
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA PROGRAMA SANTIAGO DANTAS) 119
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FROM EXCLUSIVITY TO EXCLUSION: THE CONSTANT INTERPLAY OF THE ISRAELI-PALESTINIAN POLITICS
(SOTIRIS S. LIVAS IONIAN UNIVERSITY) 125
RESENHA: WITH GOD ON OUR SIDE, DE PORTER SPEAKMAN JR. (MAGNO PAGANELLI UNIVERSIDADE
PRESBITERIANA MACKENZIE) 129
RESENHA: MY PROMISED LAND: THE TRIUMPH AND TRAGEDY OF ISRAEL, DE ARI SHAVIT (DANIELLA
KOHNEN ABRAMOVAY NEW YORK UNIVERSITY) 137
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O MXIMO QUE ISRAEL EST DISPOSTO A OFERECER NO
CHEGA AO MNIMO QUE OS PALESTINOS ESTO
DISPOSTOS A ACEITAR E VICE-VERSA
Entrevista do Prof. Dr. Samuel Feldberg ao boletim Malala1
Boletim Malala: Geralmente um ponto de partida de nossas entrevistas falarmos da
formao de nosso entrevistado. O senhor estudou em Israel?
Samuel Feldberg: Eu estudei em Israel, minha graduao foi na Universidade de Tel
Aviv. Eu morava no Brasil e consegui uma bolsa para estudar em Israel e como eu j
estudava numa escola judaica aqui em So Paulo eu j falava e escrevia em hebraico
ento foi um processo relativamente simples de adaptao. A graduao foi em Israel,
em Cincia Poltica e Histria, depois, em 1979, eu voltei ao Brasil, no auge do Regime
Militar. Descobri que no era muito vivel ser cientista poltico no Brasil, naquela poca,
ento, como eu falava ingls fluente, eu fui trabalhar na rea de exportao da
Companhia Suzano. E depois quando eu fiz 40 anos eu decidi voltar faculdade e fazer o
mestrado e o doutorado na USP. Nesse momento, ao voltar para a faculdade eu sabia
exatamente o que eu queria fazer. E eu sempre pensei no Oriente Mdio, sempre fui um
realista e por conhecer a regio e falar a lngua, eu me especializei nesta regio.
B.M.: A sua imagem sobre o Oriente Mdio mudou depois da experincia de morar em
Israel?
S.F.: Ah, sim, claro. Todo mundo projeta uma imagem. Mas de fato a imagem que eu tinha
naquela poca no mudou muito porque eu vivi numa poca relativamente benigna. Em
1 Entrevista realizada no dia 3 de junho de 2014 por Cila Lima e Ariel Finguerut.
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comparao aos dias de hoje. Naquela poca um atentado terrorista era o sequestro de
um nibus (ningum explodia nibus) e a presena israelense nos territrios era muito
amena, frequenta-se e podia se fazer compras nos territrios ocupados e os palestinos
trabalhavam em Israel. Voc no entrava num restaurante ou oficina mecnica ou
marcenaria, que no tivesse palestinos trabalhando. Era muito corriqueiro a presena da
populao palestina.
B.M.: Sobre sua atuao como pesquisador e professor, o senhor atua no PPG
Diversidades Intolerncias e Conflitos? Qual a proposta do programa, que tipo de
pesquisadores pretende formar?
S.F.: O programa interdisciplinar ento a nossa inovao est na forma como as aulas
so ministradas. Todas as aulas so ministradas por um professor com a participao de
outros dois professores de duas outras reas. Cada professor d 1/3 das aulas do curso
com a participao dos outros 2 colegas de outras disciplinas. Esta a inovao. Ns
proporcionamos de fato uma abordagem interdisciplinar. Ento nos reunimos
professores de diferentes reas, cientista poltico, socilogo, psiclogo, linguista e de
outras reas fazendo combinaes das mais variadas. Sempre com o enfoque na
diversidade. O direcionamento das pesquisas variado, depende da perspectiva do
curso e da pesquisa que o candidato est promovendo. Quando eu participo, h
geralmente o tema dos conflitos envolvido, que minha especialidade, mas os trabalhos
dialogam com outras reas, como por exemplo, tem professores que trabalham com
gnero. Agora no segundo semestre eu vou propor uma pesquisa voltada para os
instrumentos de ensino em Israel, na Autoridade Palestina e no Brasil tentando
entender como visto o outro (ou, talvez, como no visto o outro) nos instrumentos
de ensino. Ento poderemos discutir, por exemplo, a figura do Palestino na bibliografia
escolar israelense. A figura do judeu na bibliografia palestina e a figura do negro na
bibliografia brasileira.
B.M.: Falemos agora mais diretamente dos desafios e do conflito entre Israel e Palestina.
Na sua perspectiva, faz sentido falarmos em negociaes de paz? Quais seriam as
precondies? Quanto distante estamos de uma paz possvel e permanente?
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S.F.: No momento com certeza no. Se olharmos no exatamente para os governos, mas
para os dois grupos que representam os dois lados e como eles esto articulados,
certamente no h sentido nenhum em desperdiar recursos e esforos numa
negociao. Est claro que no haver nenhum resultado.
B.M.: Podemos dizer que no h um denominador comum mnimo?
S.F.: Exatamente, a frase que caracteriza melhor o problema destas negociaes
sempre: o mximo que Israel est disposto a oferecer, no chega ao mnimo que os
Palestinos esto dispostos a aceitar e vice-versa. Ento se Israel no inclui a questo dos
refugiados, desagrada o lado palestino e se os palestinos cedem na questo dos
refugiados - Mahmud Abbas perde a legitimidade sob o argumento de que ele est
somente representando os palestinos da Cisjordnia e da Faixa de Gaza e no a Dispora
Palestina. Ento, isso de partida j elimina a negociao, no momento que voc define
quais so os itens que vo ser negociados ou no negociados.
B.M.: Quais so esses itens negociveis e no negociveis?
S.F.: Basicamente as negociaes devem ser construdas sobre um nmero de pilares. A
questo dos refugiados. O esgotamento da questo de 1947. A negociao precisa
esgotar a questo de 1947, no se est discutindo se Israel tem ou no o direito de
existir na regio e sim quais sero as fronteiras de um Estado judeu ao lado de um
Estado palestino. Esse o teor das negociaes. A aceitao por parte dos palestinos de
Israel como o lar nacional do povo judeu prcondio do lado israelense, pois eles no
esto dispostos a reabrir a questo de 1947 (se Israel deveria ou no deveria ser criado).
Essa questo est ligada tambm a questo dos refugiados, pois dependendo da soluo
para os refugiados essa questo que voc est reabrindo. A questo das fronteiras, a
definio de fronteiras. At hoje Israel o nico pas do mundo que no tem fronteiras
definidas, elas so baseadas nos armistcios de 1949. A questo dos locais sagrados. No
s em Jerusalm, normalmente se fala s de Jerusalm, mas h uma seria de locais que
so considerados sagrados por Israel, que esto na Cisjordnia, que o local onde os
judeus veem a sua origem como nao. Como vai ser esse acesso, por exemplo, Hebron,
os stios relacionados a personagens bblicos, so questes complicadas de serem
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definidas e resolvidas, porque elas tm um componente abstrato muito grande. Se esse
poo de gua ficar deste lado ou daquele da fronteira fcil de resolver, eventualmente
at uma questo financeira, pode-se pagar uma planta de dessalinizao e pode ficar
com o poo. Agora os problemas menos tangveis so os mais difceis de serem
resolvidos.
B.M.: Poderia haver alguma negociao direta? Por exemplo, os palestinos poderiam
negociar o acesso aos locais considerados sagrados por Israel e Israel poderia negociar o
freio expanso das colnias?
S.F.: Sem dvida! Isso tudo parte de uma negociao que precisa ser feita de boa f e
com a percepo, de ambos os lados, que ela ir vingar no futuro. O que eu vejo nesse
processo um circulo vicioso. Ambos os lados tm receio de ceder na negociao,
porque acreditam que a negociao no dar certo e a prxima etapa das negociaes
vai partir do ponto que j foi cedido. Esta a crtica que vem recebendo os negociadores
do perodo Ehud Olmert.
B.M.: Ento podemos dizer que o fator confiana seja decisivo?
S.F.: Sem dvida nenhuma! No h possibilidade de negociao sem uma base mnima
de confiana mutua. Que o que ns vemos que aconteceu na Jordnia, onde essa
confiana de certa forma j existia, pois sempre foi um pas menos hostil, que mais tinha
em comum com os israelenses, inimigo palestino comum etc. E o que aconteceu com o
Egito. Quando foi que se rompeu esse estigma? A ida de Sadat Jerusalm e mesmo
assim isso precisou de uma enorme presso americana para concretizar os acordos.
B.M.: Como o senhor citou de passagem os EUA, como mediador, hoje em dia como o
senhor v o papel dos EUA nestas negociaes?
S.F.: O governo Obama est pagando hoje o preo de uma combinao do fracasso da era
Clinton, que traz o questionamento de porque se envolver num processo to espinhoso
quanto esse? Se o Clinton que tinha tantas possibilidades de chegar num acordo e no
conseguiu chegar. Ento para que o esforo? Alm disso, Obama paga o preo do apoio
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incondicional as polticas israelenses da era Bush. Ao mesmo tempo se tem o
desincentivo causado pelo fracasso da era Clinton e a necessidade de desmantelar uma
srie de elementos criados ao longo de dois mandatos de apoio praticamente
incondicional a Israel. Ento da mesma forma que os Palestinos querem partir das bases
das ofertas que o Olmert fez, o Netanyahu quer partir das bases de todo respaldo que ele
recebeu do Bush. Porque ele iria abrir mo das cartas trocadas, as questes dos
assentamentos, do reconhecimento da provvel incluso dos assentamentos em
qualquer fronteira definida entre Israel e os palestinos. Os israelenses j tm isso como
um dado, isso j est garantido, eles no querem colocar isso em discusso.
B.M.: O senhor no acha que Israel j est definindo suas fronteiras? Principalmente,
considerando a construo do muro e agora com aplicao, por parte do governo de
Israel, em concorrncia e investimentos para construo de mais assentamentos?
S.F.: Sem dvida, as fronteiras de Israel esto sendo definidas desde 1967. O Muro de
certa forma uma iluso. Ele extremamente controverso. Se voc for a regio ao sul da
montanha de Hebron, parte sul da rea das colinas onde Hebron foi construda, envolve
toda a zona do assentamento, no sei se vocs conhecem a histria? Tinha uma rea
assentada ao sul de Hebron antes de 1947 e a populao judaica que vivia l foi morta ou
expulsa durante a guerra de 1948. Quando os israelenses reconquistam esta rea em
1967, os filhos daqueles que foram mortos voltaram para as casas que eles
consideravam que tinham sido expulsos um espelho da histria dos refugiados
palestinos. Eles recriam os assentamentos, uma enorme rea de populao judaica e
nessa rea o muro no foi construdo. O muro vem descendo desde o norte, passa por
Jerusalm, chega at Belm, tumba de Raquel, separa o que tem que ser separado em
Hebron e ai ele para. Por qu? Porque esses colonos, que em muitos casos so muito
radicais, eles veem o muro como um empecilho expanso de suas colnias. Ento o
que no norte eles dizem que o muro uma barreira para impedir a entrada de
terroristas palestinos, ali, ao Sul, eles dizem: deixa que a gente lida com os terroristas
palestinos, o que ns no queremos um muro que nos diga que essa fronteira no
podemos ir mais alm. Ento a histria do Muro muito simplificada, na maior parte
dos lugares no um muro uma cerca, mas fotografar o muro para fazer toda a
propaganda muito mais sex, aparece muito melhor na foto o muro do que a cerca.
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Agora, onde o Muro foi construdo na maior parte da extenso da fronteira realmente
no limite dos grandes assentamentos que foram construdos. So os parmetros
formulados e aceitos por George W. Bush. Os grandes assentamentos vo ser includos
dentro da linha verde do lado israelense quando eventualmente um acordo for assinado.
A lgica aqui que se Israel efetivamente incorpora os grandes assentamentos, nos
estamos falando de em torno de 90% da populao da Cisjordnia e em torno de 5% do
territrio. E essa a proposta que mais avanou nas negociaes de troca equitativa de
territrios, ento se incorpora os assentamentos, retira da Cisjordnia a maior parte da
populao, deixa somente os assentamentos isolados, que so tambm os mais radicais.
Que de qualquer forma teriam que ser retirados, porque seno se perpetua o problema e
voc troca por reas equivalentes em outros pontos da fronteira. Em princpio a questo
da fronteira a mais fcil de ser resolvida a no ser em alguns pontos muitos espinhosos
e especficos, que precisa de uma soluo especfica para cada um deles. Mas a grosso
modo a ideia de trocar a maior parte dos assentamentos por outros territrios e com
isso retirar a maior parte da populao judaica da Cisjordnia resolve o problema das
fronteiras.
B.M.: Muitos crticos de Israel costumam comparar a situao do conflito IP como o
Apartheid da frica do Sul (1948 a 1994). Neste sentido h iniciativas que propem
boicotar e tentar isolar se no Israel mas algumas colnias e responder economicamente
a expanso dos territrios. Como o senhor avalia possveis boicotes Israel?
S.F.: Eu acho que um aspecto importante a desproporcionalidade que o tema tem na
mdia. Se olharmos para o nmero de mortos no conflito israel-palestina, se somarmos
todos os mortos, militares e civis desde 1947 voc tem o equivalente h 1/3 do nmero
de mortos nos ltimos trs anos no conflito na Sria. E mais ou menos o mesmo nmero
de pessoas assassinadas no Brasil no ltimo ano. Brasil e Sria tem nmeros
equivalentes de assassinatos/ano. Ns estamos falando de mortos palestinos e
israelenses nos ltimos 67 anos equivale ao nmero de mortos na Sria em 1 ano de
conflito. Sem lembrar de Ruanda, Congo, no faltam exemplos de conflitos que so muito
mais violentos e com um nmero muito maior de mortos. Na Sria j temos 9 milhes de
refugiados (internos e externos). Em 1948/49 o nmero de deslocados civis foi de 700
mil. Hoje um contingente 7x maior por causa da perpetuidade do conflito. O ponto
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central notarmos como a exposio do conflito na mdia completamente defasada.
Chega a ser um mistrio do porqu dessa exposio? O outro aspecto a capacidade de
exposio dos eventos. As comunidades judaicas ao redor do mundo, de alguma forma,
esto sempre vinculadas, no obrigatoriamente de apoio Israel. Hoje em dia,
principalmente entre os jovens da comunidade judaica ao redor do mundo, h uma
crtica muito grande s polticas do governo israelense. Isso no os transformam em
antissionistas, mas muitas vezes so muito crticos s determinadas polticas
israelenses. E os representantes rabes ao redor do mundo, principalmente os pases
ricos em petrleo, tem muita capacidade de articulao. Ento o que temos uma
grande capacidade de articulao muito grande que tornam desproporcional o interesse
sobre a questo Israel Palestina.
B.M.: Em torno dos fatores domsticos, recentemente o Hamas e o Fatah declararam um
governo de unio e formaram uma coalizo para um governo de unidade. Quais as
consequncias desta unidade para as negociaes com Israel? Como o senhor avalia essa
articulao?
S.F.: Num primeiro momento no vai haver nenhuma consequncia por que as
negociaes j tinham sido interrompidas. Esse acordo entre o Hamas e o Fatah foi
usado como o ltimo instrumento de legitimao para encerrar as negociaes. Porque
elas no iam para lugar nenhum, ento melhor interromper as negociaes com uma
boa desculpa. Mas no foi isso que levou ao final das negociaes ou ao seu fracasso. As
negociaes fracassaram porque nenhum dos dois lados esta interessado em avanar.
Na perspectiva israelense a unio FatahHamas motivo para legitimar o fracasso das
negociaes. O que antes Israel dizia que no adiantaria fazer um acordo com o Fatah
por que o Hamas no iria respeitar o acordo, agora isso mais reforado ainda porque o
argumento agora que no adianta negociar com um governo que tem como membro
uma organizao terrorista.
B.M.: No seria possvel acreditar que o Hamas pode se transformar em um partido
poltico? Ou uma vez grupo terrorista sempre grupo terrorista?
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S.F.: No, veja o que aconteceu com o IRA na Irlanda ou mesmo o caso colombiano. No
caso da Colmbia mesmo as negociaes ocorrendo o exercito segue enfrentando e
lidando com aes de terrorismo. Ontem mesmo o exrcito colombiano atacou um
reduto das FARC matando 7 membros terroristas ou no - e outros tantos foram
presos. Nisso h um paralelo com aquilo que Israel vem fazendo. Quando h negociao
se continua negociando, mas sem abrir mo daquilo que eles consideram como um
direito que combater os grupos terroristas. Se o Hamas abandonar a prtica do
terrorismo eles deixam de ser um grupo terrorista, mas isso precisa ser feito
formalmente e isso pesaria na legitimidade do grupo uma vez que o Hamas se diferencia
de outros grupos palestinos especialmente do Fatah, pela sua postura anticonciliatria.
A plataforma do Hamas o que est na Carta do Hamas a substituio de Israel por
um Estado Palestino. Eles no falam de um Estado palestino para conviver ao lado de
Israel, por isso eu comecei dizendo que nas negociaes o que os israelenses exigem
que no seja reaberta a questo de 1947 ou seja, Israel no est negociando com os
palestinos o direito ou no da existncia de um Estado judeu. O ponto a ser negociado
onde o estado Palestino ser criado ao lado do estado israelense. Quando se inclu o
Hamas na discusso o que se refere o direito de existncia de Israel. O mesmo vale
para o Hezbollah no Lbano.
B.M.: O Hamas precisa de tempo para acreditar na luta poltica?
S.F.: Eu diria que o que falta uma boa dose do efeito de 1967 no qual o principal efeito
geopoltico da guerra foi o reconhecimento por parte dos pases rabes de que Israel no
podia ser eliminado. Levou 20 anos para que os pases rabes reconhecessem que Israel
no podia ser eliminado. Na guerra do Yom Kippur em 1973 foi, na viso do Sadat, uma
tentativa de modificar o status quo e no de destruir o Estado israelense. Na relao com
os palestinos, pelo menos com relao a esses grupos como o Hamas ou a jihad islmica
ou o Hezbollah ainda falta este componente. Falta este componente reconhecerem que o
estado israelense no pode ser destrudo. Enquanto elementos deste conflito
acreditarem que o tempo est a seu favor eles podem achar que no conseguem
destruir Israel em 10, 20 ou 50 anos, mas em 100 anos isso vai acontecer isso faz com
que estes grupos no tenham razo para aceitar a presena de Israel na regio, por isso
eles propem uma trgua de longo prazo e no um acordo de paz.
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B.M.: Alguns dizem que esses grupos no so terroristas... Mas, o fato que a cada
negativa aos acordos de paz, o povo palestino est perdendo (perdendo vidas, fronteiras
e legitimidade). Israel est se fortalecendo, formando suas fronteiras, protegendo-se
contra os terroristas, ento a populao de Israel est mais confortvel hoje,
principalmente com a construo de muro e aplicao financeira do governo de Israel
pelo aumento e solidificao dos assentamentos. O senhor acha possvel que esses
grupos terroristas, Hamas e Hezbollah, tomem conscincia dessa necessidade do acordo
de paz?
S.F.: Ns voltamos para a questo da identidade desses grupos. Se esses grupos se
identificam atravs da luta, se isso que diferencia esses grupos de outros grupos que
aceitaram negociar, eles no vo ter nunca uma motivao para abandonar a luta,
porque isso desqualifica o grupo e elimina a principal base da sua existncia. Qual a
diferena entre o Hamas e o Fatah no momento em que os dois esto na autoridade
palestina, se transformam em governo, tem que administrar o territrio e no pregam
mais a luta armada contra um inimigo que era o horizonte. Eles se diluem dentro de uma
estrutura administrativa e poltica. Crticos de Arafat dizem que ele (Arafat) nunca
poderia ter feito um acordo com Israel, pois a legitimidade dele vinha da disposio para
o conflito contra Israel. Ele perderia grande parte da legitimidade sobre a qual ele se
construiu, se ele abrisse mo do conflito, seria visto como traidor da causa palestina.
Agora, eu quase te interrompi com relao a denominao dos grupos como terroristas,
porque isso no depende de quem diz ou quem no diz, terrorismo uma definio
amplamente aceita e o que se discute a motivao para o grupo atuar como um grupo
terrorista ou utilizar o terrorismo como instrumento. Agora se o grupo terrorista ou
no, ou se ele um grupo terrorista e mais alguma coisa, isso uma discusso
semntica. Um grupo que ataca civis com determinado objetivo poltico utilizando da
violncia um grupo que pratica o terrorismo. Sobre isso no tem discusso, se um
grupo de libertao nacional ou se um grupo de criminosos ou se um grupo de
traficantes ou qualquer outro tipo de classificao, no faz diferena. A frase o terrorista
de um o freedom fighter do outro no faz referncia definio de terrorismo, faz
referncia a motivao pela qual o terrorismo utilizado.
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B.M.: Se olharmos tambm para o lado da poltica domstica israelense interessante
como em pouco tempo o jogo de foras mudou. Quando o senhor foi para Israel nos anos
70, a esquerda era hegemnica...
S.F.: No tinha direita, eu fui para Israel antes do Likud subir ao poder pela primeira vez,
a esquerda j vinha sofrendo os impactos da guerra de 1973, quando eu fui para Israel
em 1975 o Rabin se tornou primeiro ministro e os trabalhistas j estavam enfraquecidos
por causa do resultado da guerra de 73.
B.M.: Foi no governo de Ariel Sharon que a configurao mudou um pouco, ele formou
um bloco de centro direita...
S.F.: Na verdade ns temos primeiro a consolidao do Likud, depois a ascenso do
Sharon com a segunda intifada, ainda no marco do Likud e com a proposta de retirada
unilateral da faixa de gaza, a criao, o fortalecimento e o desaparecimento do Kadima.
B.M.: Nos ltimos dez anos, alguns atores nacionalistas colocam Israel como hostil aos
vizinhos, mas esse discurso se desgasta, surgindo ento atores de centro que tentam de
novo uma plataforma de emprego, de bem estar... Ento gostaria que o senhor
comentasse um pouco essa geografia do voto. Tem os assentamentos que reverberam
esse discurso nacionalista, mas temos tambm as grandes cidades, Tel Aviv...
interessante notar como Israel tem um dado poltico com uma diversidade de atores.
S.F.: Isso vai ao encontro um pouco ao que ela estava dizendo em relao forma como a
populao consegue conduzir a sua vida sem se relacionar com o conflito, se olharmos
por exemplo para os resultados das ltimas eleies parlamentares em Israel. Eu estava
l o ano passado durante as eleies e no perodo anterior s eleies, eu lembro como
isso me marcou. No tinha nenhum candidato falando da questo Palestina. Toda a
discusso das plataformas eleitorais era reflexo das manifestaes sociais do ano
anterior. O Yair Lapid que surgiu como a grande surpresa das eleies, no tinha
plataforma de poltica externa, no falava de poltica externa nos seus discursos, as
propostas eram em relao aos problemas do dia-dia da vida do cidado israelense.
Naftali Bennett que hoje ministro da economia, chefe do partido (vamos chamar de)
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nacionalista religioso, esse o representante da populao dos assentamentos. Ento
temos hoje um governo de centro direita, onde a esquerda praticamente desapareceu,
no tem peso nenhum. Ento se teve uma transio da direita para o centro. Que estava
lastreada no sucesso do Sharon. Alguns dizem que no pode haver mais direita que o
Sharon, mas ele j tinha feito essa transio. E quando ele desaparece do cenrio, todo
esse apoio vai por gua abaixo.
B.M.: Mas agora, as foras mais nacionalistas, ligadas aos assentamentos, parece que
esto crescendo, no esto?
S.F.: Eles no esto crescendo... Esse governo poderia ter sido formado com o Lapid, a
esquerda e os religiosos, ou da forma como ele foi formado, com o Lapid e os nacionais
religiosos, s tinha duas formas de estruturar esse governo depois das ltimas eleies.
A presso (ou a opo) do Lapid, de centro, pela excluso dos ortodoxos, foi o que
definiu que os nacionalistas religiosos participassem do governo. mais complicado do
que soa, pois quando se fala de religiosos em Israel, ns no temos um grupo religioso
monoltico. Tem-se uma srie de faces religiosas onde os nacionalistas religiosos so
to hostis aos ortodoxos, quanto os de centro esquerda, porque eles praticam a religio
de forma completamente diferente. Eles praticam sua insero na sociedade de forma
completamente diferente. Tem os ortodoxos e os nacionalistas religiosos, alm de ter
faces dentro dos ortodoxos. Os conflitos religiosos no so s entre os ortodoxos, mas
principalmente entre os ortodoxos e os nacionalistas religiosos.
B.M.: Foi uma escolha de uma coaliso a partir de um fator decisivo para a balana de
governabilidade...
S.F.: Eu diria que foi a partir de uma opo por deixar os ortodoxos fora da coaliso, para
atender uma demanda importante da sociedade laica em Israel. A sociedade laica em
Israel chegou num ponto em que no queria mais ver os ortodoxos isentos do servio
militar, fora do mercado de trabalho, recebendo subsdios. As manifestaes do ano
anterior tinham sido a gota dagua nesse processo de pagamento pela participao dos
ortodoxos no governo.
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B.M.: Isso um ponto que eu acho bastante interessante. No caso dos Estados Unidos se
fala muito no conceito de guerra cultural, que a ideia da sociedade dividida entre
foras seculares e religiosas, duas culturas, dois governos. No caso de Israel o senhor
acha que podemos falar em guerra cultural?
S.F.: Se brinca em Israel que se a Repblica de Tel Aviv pudesse se separaria do Estado.
Tem uma proposta de uma guerra de secesso. Porque a populao de Tel Aviv no tem
absolutamente nada em comum com a populao ortodoxa em Jerusalm e
especialmente nos assentamentos. Tem uma separao total. Eu, por exemplo, que sou
um judeu laico me sinto discriminado, sinto que os ortodoxos so antissemitas. Porque
aos olhos deles eu no sou judeu o suficiente, porque eu no sigo as regras da forma
como eles acreditam que elas devem ser seguidas. Isso vale para a populao laica de
Israel, que v seu vnculo ao povo judeu pelas tradies e pelos costumes e no pela
religio. Eu diria que a maioria da populao laica de Israel ateia, do ponto de vista
religioso realmente estrito.
B.M.: Ser que a esquerda israelense pode se reencontrar entre os laicos?
S.F.: Eu no sou especialista em poltica interna israelense, mas se olharmos para o
histrico, se tem ciclos. Tem a esquerda substituindo a direita, depois a direita se
fortalecendo, muitas vezes depende de insumos externos. Quando tem uma onda de
atentados, por exemplo, derruba o governo, faz com que um Sharon seja eleito, mais do
que compreensvel. Agora, com o nvel de demanda social que houve em Israel nos
ltimos anos, combinado com essa percepo de calma, de conteno do problema da
segurana, do terrorismo. O que talvez se tenha uma ascenso desproporcional das
questes internas e a talvez os trabalhistas tenham mais a oferecer do que a direita neo-
liberal. Mas depende do quanto a situao eventualmente se deteriora para uma parcela
significativa da classe mdia israelense. Eles vivem um fenmeno parecido com o que
ns estamos vivendo aqui, de ascenso de uma determinada parcela da populao, que
depois se v frustrada nas suas expectativas. Em Israel, por exemplo, tem uma enorme
parcela de populao que vive abaixo da linha da pobreza. Obviamente, o que eles
consideram pobreza parmetro por eles, principalmente se olharmos com os nmeros
do Oriente Mdio. Tem uma porcentagem significativa de crianas que vivem abaixo da
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linha da pobreza, nenhuma delas passa fome, mas esto abaixo da linha da pobreza.
Tem um problema gritante com creches em Israel, a maioria das mulheres na populao
laica trabalha e no tem com quem deixar as crianas, pois as creches so privadas e
custam uma fortuna, muitas mulheres fazem a conta, se tiverem que deixar as crianas
nas creches, sai mais barato ficar em casa do que trabalhar para pagar a creche. Tem
problemas srios, estruturais, que eventualmente, numa nova eleio que no tenha um
componente externo importante esses elementos se tornam to significativos que levam
uma maioria automtica dos centro-esquerda ao poder.
B.M.: Um ltimo tpico a questo do antissemitismo. Ns tivemos eleies europeias
para o parlamento europeu, recentemente o atentado ao museu em Bruxelas e tambm,
no h muito tempo, um atentado nos Estados Unidos, num centro de convivncia
cultural judaico. Como o senhor avalia o antissemitismo no contexto de hoje? Como o
senhor explica o aumento dessas manifestaes?
S.F.: A crise econmica um propulsor do fortalecimento da direita, isso no de hoje,
historicamente, quando se tem crise econmica, tem fechamento da sociedade, aumento
da xenofobia e automaticamente produz antissemitismo. No caso da Europa no s o
antissemitismo, essa guinada para a direita, na verdade deveria levar uma aproximao
da populao muulmana com a populao judaica, porque so as vtimas comuns desse
processo. Mas tem o componente, vamos chamar de, nacional nessa disputa, que tornam
os dois lados que so vtimas dos movimentos de direita, adversrios por causa da
questo nacional no Oriente Mdio. O outro aspecto que eu acho importante, quando se
olha para o recrudescimento do antissemitismo a confuso que, muitas vezes, ocorre
entre a definio de antissemitismo e crticas s polticas do Estado de Israel. Muitas
vezes aqueles que defendem o Estado de Israel vo acusar de anti-semitismo o que
simplesmente uma crtica a determinadas polticas. A eu sempre me resguardo o
direito de no concordar com essa associao. Por que voc pode fazer crticas
pertinentes e legtimas ao Estado israelense, s determinadas polticas do governo
israelense sem incorrer a nenhum aspecto de antissemitismo. Se bem que, muitas vezes,
posturas anti-israelenses so reflexos de polticas antissemitas. Mas no pode ser
sinnimo, no pode ser sempre enquadrado dessa forma. Os casos precisam ser
analisados na raiz de sua crtica. Sem dvida existem crticas Israel que refletem o
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antissemitismo e existem crticas que so rotuladas como antissemitas simplesmente
tentar esvazi-las.
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IMPERIALISMO E GUERRA CIVIL NO MUNDO RABE:
A TRAGDIA SRIA APORIAS E CONSEQUNCIAS
DA FALTA DE INTERVIR
Peter Demant
Resumo: Segunda parte do artigo analisando a crise sria no contexto internacional, lida com a situao desde o levante popular anti-Assad e a decorrente guerra civil de 2011 at o comeo de 2014, defendendo a posio de que apenas uma postura internacional muito mais pr-ativa poderia frear a violncia e colocar as bases de um debate abrangente para repensar a convivncia das vrias comunidades, etnias e religies. Entre os fatores que tornaram esta convivncia mais complicada na Sria Lbano e Iraque - do que em outras sociedades mdio-orientais esto questes no-resolvidas de identidade coletiva. Uma ditadura modernizadora, essencialmente unipartidria de uma comunidade (alawita) sobre as demais, resultado das contradies internas entre as diversas comunidades, provocou, por fim, as demonstraes de 2011. Apesar das reivindicaes para democratizar a estrutura poltica, a extrema heterogeneidade da sociedade sria no permitiu a unificao das oposies. Estas, fracas para comear, receberam pouco apoio externo (ocidental em particular), enquanto o regime se beneficiou da ajuda de Hizbullah, Ir, Rssia e de outros aliados. Paradoxalmente o uso de ADMs do regime de Assad contra civis srios sepultou a possibilidade de uma interveno internacional e acabou enfraquecendo as foras democrticas e/ou liberais a favor dos interesses do eixo xiita e de jihadistas sunitas. Em consequncia a partir do fim de 2013, o carter do conflito comeou a se transformar de guerra civil em guerra aberta por proxy entre interesses sauditas, turcos e iranianos, entre outros. O artigo argumenta que o conflito no pode se resolver pelas prprias foras internas; tenta relativizar o papel do Estado numa soluo; esboa alguns elementos de uma nova constituio democrtica com fortes garantias para minorias; discute o dilema do papel do isl nela; e explica porque a soluo do conflito srio est vinculada soluo de outros conflitos no Oriente Mdio. Abstract: Second part of an article analyzing the Syrian crisis within an international context, dealing with the situation in Syria from the popular anti-regime revolt and consecutive civil war from 2011 to the onset of 2014. It defends the position that only a much more proactive international posture has a chance to curb the violence and lay the bases for a wide-ranging debate to rethink coexistence of the various communities, ethnical and religious groups. Among factors that made such coexistence more problematic in Syria (as well as in Lebanon and Iraq) than elsewhere in the Middle East are unresolved questions of collective identity. The outcome of the communitarian clash was a largely one-party modernizing dictatorship of one community (the Alawite) over the others; its contradictions eventually sparked the 2011 demonstrations. Despite calls to democratize Syrias political structure, the extreme heterogeneity of its society did not allow unification of the oppositions. The latter, weak to start with, received little aid from abroad, while the regime enjoyed help of Hizbullah, Iran, Russia and other allies. Paradoxically the Assad regimes use of WMD against Syrian civilians buried the possibility of international intervention, and in the end weakened democratic and/or liberal forces even more, and strengthened the Shiite axis
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and Sunni jihadists. As a result, as of late 2013, what had been an internal civil war started to mutate more and more into an open war of proxies for Saudi, Turkish, Iranian and other interests. The article argues that the conflict cannot be resolved solely by internal factors, relativizes the role of the State in its future solution, and outlines elements of a new democratic constitution with ample guarantees for minorities; discusses the dilemmas surrounding the role of Islam; and explains why resolving the Syrian conflict is linked to a solution of other Mideast conflicts.
Prefcio
Os desenvolvimentos no Oriente Mdio se sucedem to rapidamente que mesmo
escritos recentes podem ser amplamente ultrapassados pelos eventos, dando a
impresso de um artefato quase arqueolgico. O intervalo entre escrita e publicao
particularmente gritante em revistas cientficas, impondo um distanciamento entre o
evento e sua anlise objetiva. O intervalo no s cronolgico mas constitui tambm
uma brecha metodolgica, por vezes, saudvel - mas nem sempre. Tal tambm a sorte
desta segunda e ltima parte do artigo sobre a tragdia sria, cuja primeira metade foi
publicada no Malala 2.
No incio de 2014 a guerra civil sria se caracterizava pelo enfraquecimento da
oposio secular-pluralista anti-Assad, consequncia da fraqueza ocidental frente s
macias violaes de direitos humanos e ao uso pelo regime de Assad de armas qumicas
contra sua prpria populao civil. Analisamos ento como a derrota da alternativa
democrtica estava jogando cada vez mais srios nas mos de oposies islamistas (de
radicalidade varivel).
No entanto, o ano de 2014 tem testemunhado uma reviravolta imprevista, com
gravssimas repercusses globais: o fortalecimento das milcias islamistas, j em
andamento, ganhou um mpeto sem precedentes com a fulgurante expanso do grupo
Da`ash ou ISIS (Estado Islmico no Iraque e no Levante), ramo dissidente de al-Qaeda,
que em meados de 2014 se transformou no califado Estado Islmico (EI) controlando
num territrio contiguo um tero do Iraque e da Sria. Entre as facetas mais notrias
desta recente evoluo apontamos as seguintes:
(1) Combinando estratgias de terrorismo e de guerrilha com guerra clssica
por exrcitos, Da`ash conquistou um territrio muito maior do que qualquer
outra oposio anti-Assad;
19
(2) ao juntar territrios de vrios Estados e rejeitar as fronteiras internacionais
decorrentes do arranjo imperialista ps-Primeira Guerra Mundial, EI faz vacilar
todo o sistema de Estados no Oriente Mdio;
(3) EI combina um programa de destruir os governos iraquiano e srio e
substitui-los por um novo Estado islamista, com ideologia e prticas jihadistas
antimodernas e antiocidentais, prometendo levar a cabo mundialmente uma
guerra sem fim contra todos os no-muulmanos e todos os muulmanos
herticos;
(4) onde estende seu poderio o EI impe com extrema violncia um regime
fundamentalista sobre as populaes conquistadas, usando como instrumentos
de intimidao perseguies a minorias e grupos especficos (cristos, yazidis,
xiitas...), execues sumrias, massacres, mutilaes, escravido de mulheres e
crianas, e uma gama de controles comportamentais e de doutrinao tiradas do
repertrio dos taleb afegos e paquistaneses; tudo devidamente justificado por
referncia s fontes escriturais islmicas, segundo sua peculiar leitura destas;
(5) apesar de (ou talvez por causa de) seus atos e propagandas cruis, EI
consegue atrair um apoio significativo, localmente (entre sunitas discriminados e
populaes mentalmente quebradas e exaustas pelos incessantes deslocamentos
e derramamento de sangue) e internacionalmente: jovens enraivecidos do
mundo muulmano inteiro mas tambm muulmanos alienados da Europa,
Rssia, China, e alhures, atrados por seu programa universalista;
(6) a violncia expansionista do EI se refora pela mobilizao de milhares de
muulmanos simpatizantes (e.o. recm convertidos): estes contestam os sistemas
polticos e culturais nos quais esto imersos e se deixam inspirar pelo EI para
atacar alvos nos pases onde vivem; e/ou se deslocam para o prprio territrio
do EI. Este fenmeno tem se tornado um pesadelo securitrio para Estados to
diferentes quanto os EUA, Arbia Saudita, Jordnia, Egito, Israel, Lbano, Ir,
Paquisto, Nigria, China e Rssia, alm de quase todos os Estados europeus.
Levou os EUA a gradualmente abandonar sua politica de neutralidade de fato na
Sria em favor de um novo intervencionismo velado (por enquanto bastante
limitado e de eficcia desconhecida). Os EUA lideram uma coalizo curiosa onde a
Turquia exerce o papel do spoiler e o Ir o de coadjuvante do ocidente.
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(7) Alm destas caractersticas do prprio EI, tem sido notvel em 2014 (e
tampouco previsvel) a sobrecarga do sistema internacional, devido emergncia
simultnea de novas crises, ou exacerbao de algumas j existentes (p.ex.
Crimeia e Ucrnia e a nova tenso entre Rssia e o ocidente, entre outras)
paralisando ainda mais o j afetado potencial de reao da comunidade
internacional.
Como resultado dos fatores supracitados, o quadro poltico na Sria e a percepo
internacional dele se modificaram fortemente: a partilha territorial de fato no cessou
mas, no olhar de muitos, o regime mortfero de Damasco, antes um obstculo a ser
eliminado na rota da tirania para a autodeterminao, parece doravante um mal
menor. Especula-se em voz alta sobre a possibilidade ou necessidade de pactuar com o
diabo que conhecemos contra um EI demonizado como mal absoluto. Ora, fazer isto
sacrificaria a ltima esperana das vrias populaes srias de reescrever seu contrato
social, tal como sugerimos na primeira parte deste artigo. Uma realidade j ameaadora
se tornou ainda mais perigosa. Uma soluo possvel que j foi utopia, agora no mais
que uma miragem que se desmancha. Mas no por isto menos imprescindvel...
A despeito destes caveats decidimos publicar a segunda parte do texto mais ou
menos tal qual, como modesta contribuio ao debate sobre as responsabilidades da
comunidade internacional pelo destino da Sria, cujas populaes continuam pagando o
preo da nossa iseno.
O impasse srio ilustra as contradies da poltica estadunidense em particular, mas
tambm dos demais atores da comunidade internacional: intervir tem tido resultados to
ruins que novas intervenes so hoje politicamente arriscadas. No intervir e ficar na
postura do observador externo que, no mximo, faz esforos paliativos para minimizar o
sofrimento humano, parece tambm exacerbar uma situao que a cada momento
arrisca atravessar o limiar de uma crise internacional. Para entender o conflito srio, o
primeiro fator a se ter em mente que embora ele seja externamente mantido e
impulsionado, suas causas so internas. Como consequncia, nenhuma intromisso
externa pode resolv-lo, sem mexer com as causas estruturais.
Defendo nesta Parte II a tese de que apenas uma interveno poderia garantir
uma pausa na violncia ampla o bastante para permitir que se inicie um processo de se
21
reinventar a Sria de reescrever seu contrato social. Na impotncia das perspectivas
para uma soluo interna (e descartando a hiptese de uma derrota iminente e
definitiva de um dos lados no conflito), alm do atual crescimento do EI, apenas uma
interveno internacional poder frear o derramamento de sangue - e ainda apenas se
esta dispuser de suficiente fora e carregar uma alternativa poltica suficientemente
clara, atraente, e legtima. Para explicar esta posio mister lembrar antes as linhas
matrizes contraditrias da sociedade sria, que tornaro entendvel porque a guerra civil
atual improvvel de ser resolvida internamente.
Pano de fundo srio: a simbiose entre heterogeneidade, modernizao e ditadura
Enquanto as revoltas na Tunsia, Lbia e Egito conseguiram depor com relativa
facilidade os tiranos daqueles pases, o levante srio contra o ditador Bashar al-Assad
desaguou numa monstruosa guerra aberta entre comunidades e ideologias. Uma
desgraa que pde acontecer porque a crise sria , antes de mais nada, um embate
entre identidades que se sobrepem, se odeiam e simultaneamente precisam
umas das outras. O tirano de um o protetor do outro. A Sria como conceito existe
desde a antiguidade. A Sria como Estado existe apenas desde os anos 1920. Mas, a Sria
como ideologia apenas uma opo entre um leque de identificaes contrastantes e
incompatveis, que concorrem pelo corao dos srios.
Apesar da presena na antiguidade de altas civilizaes na regio que hoje
constitui a Sria, da memria de Damasco como sede do califado omada (670-750), e de
ideologias nacionalistas que desde o sculo 19 afirmam a perenidade da nao sria, os
traos determinantes da sociedade sria tm na realidade razes bem mais recentes.
Muitas dessas so, alis, comuns a outras sociedades do Mashriq.2
A Sria emergiu do imprio otomano j como sociedade extremamente
heterognea. At agora ela fragmentada entre comunidades cujas relaes se definem
por preconceitos mtuos, memrias de difcil coexistncia, e medo. Pelo menos 80 % da
populao sunita, mas esta maioria convive com alawitas, drusos e outras seitas xiitas,
2 mashriq/maghrib Aqui se fala em Mashriq como oriente (leste) em oposio ao Maghrib como ocidente (oeste)
do mundo rabe.
22
com cristos subdivididos em inmeras igrejas em competio entre si e, at a
independncia de Israel, com disporas judaicas. til lembrar que se trata de
identificaes comunais, rtulos mais do que religiosidades individuais. As origens
longnquas deste estado de coisas, no muito diferente do que se observa hoje em outros
pases rabes, deixaremos em aberto. O que certo que as potncias coloniais usaram
a fragmentao interna que elas encontraram para sua poltica de dividir para
imperar. A Frana, potncia mandatria sobre a Sria pela Liga das Naes aps a
Primeira Guerra, para controlar a maioria, privilegiou os alawitas, seita anteriormente
pobre e desprezada, armando-os e tornando-os o ncleo das foras armadas srias.
Quando em 1943 a Sria se tornou independente, nunca se estabeleceu uma democracia
baseada na coexistncia livremente negociada entre as varias partes da populao. Ao
invs disto o pas caiu sob o controle de grupos armados. Eventualmente o partido pan-
rabe Ba'th ("Renascimento") tomou o poder. Ainda o tem. Apesar de sua ideologia
secularista e universalista, escondem-se atrs das bandeiras do partido, cls armados,
principalmente dos alawitas. Estes tm mantido a hegemonia de um conglomerado de
minorias sobre a maioria sunita pela violncia e pelo cooptao embora uma parcela
da burguesia sunita seja aliada de Assad.
Esta situao de uma convivncia controlada de comunidades desiguais, em
ltima instncia, pelas foras armadas, se perpetua desde que a Sria obteve sua
independncia. O pas nunca desenvolveu uma unidade nacional enraizada, e pelo
menos trs ideias sobre sua identidade continuam se enfrentando:
(1) Wataniyya ou patriotismo baseado no territrio: h quem enfatize a
unidade histrica do Levante (Sham), da qual o territrio atual srio seria o
ncleo, mas que engloba tambm o Lbano, a Palestina e zonas afins.
Particularmente complicada a relao com o Lbano. Este pas possui uma
identidade coletiva no menos contraditria do que a Sria; uma parte esteve sob
protetorado francs desde o sculo 19; outra foi descolada do corpo da Sria nos
anos 1920 por clculos polticos um desmembramento nunca aceito pelos
nacionalistas srios (nem por uma parte dos libaneses).
(2) Qawmiyya ou nacionalismo pan-rabe, baseado na lngua ou etnia,
ideologia que busca estabelecer um Estado nico para todos os rabes, do
Atlntico at o Golfo. No surpreende que grupos minoritrios tais como os
cristos rabes estivessem entre os primeiros ativistas destes dois tipos de
23
nacionalismo secular, que prometia igualdade de dignidade e de oportunidade
para todos os habitantes independentemente da sua religio - bem diferente do
sistema poltico otomano que se baseava na primazia poltica, religiosa e militar
do isl (embora proporcionasse liberdade religiosa e boas oportunidades
econmicas s comunidades "protegidas" no-muulmanas). A referncia
histrica do pan-arabismo o califado rabe, numa chave de leitura que associa
isl arabidade, enfatizando o isl no como religio universal, mas como
expresso do gnio nacional rabe. Hoje o mesmo pan-arabismo, moribundo
enquanto projeto poltico, continua sendo a ideologia oficial de um regime que
realiter representa os interesses no dos rabes, mas de certas seitas.
(3) islamiyya ou islamismo: sempre existiram os nostlgicos do califado
otomano. A diviso da umma (comunidade dos fiis) em naes separadas no
condiz com o sonho de unidade e com a reivindicao da predominncia mundial
do isl. Eventualmente surgiram grupos islamistas (muulmanos
fundamentalistas) que propem a restaurao de uma sociedade pautada pela
religio e de um Estado regido pela lei religiosa, o xaria. Na Sria, como tambm
no Egito, na Palestina e alhures, o movimento islamista mais forte era o da
Irmandade Muulmana, que buscou a transformao do Estado atravs de uma
militncia social gradualista e logo se colocou como a principal oposio aos
nacionalistas da esquerda do Ba`th. A destruio desta oposio pelos ba`thistas
nos anos 80 abriu a porta para uma radicalizao jihadista.
Obviamente possvel combinar identidades. Algum pode falar rabe, seguir o
isl, e ainda se definir em primeiro lugar como srio. Pesquisa anterior primavera
rabe aponta que a religio islmica o primeiro item da auto identificao para o maior
grupo em muitos pases rabes, seguida pela identificao com o Estado; de modo que a
identificao rabe estaria em declnio. razovel que a situao ideolgica na Sria
corresponda a essa diviso.
Quando as polticas coloniais francesas de dividir para imperar fracassaram, o
resultado das resistncias anticoloniais e o denominador comum das vrias ideologias
em competio foi uma Sria independente, mas no democrtica, e extremamente
instvel, onde golpes militares se sucederam. Na luta mortfera entre as ideologias
contrastantes o Ba`th se imps na Sria como predominante em 1963. Na luta interna
24
dentro do Ba'th emergiu o cl dos Assad em 1970. Hafez al-Assad governou de 1970 at
sua morte em 2000 e seu filho Bashar lhe sucedeu desde ento. Tambm neste sentido a
evoluo da Sria tem paralelos, no caso com o Iraque, pas no menos heterogneo,
onde um outro ramo do partido Ba'th chegara ao poder. Tambm ali um cl, no caso os
Tikiritis ao qual pertencia Saddam Hussein, monopolizou o poder. H outras
semelhanas: ambos os regimes so ditaduras modernizadoras (industrializao,
educao, obras, emancipao da mulher...) mantendo a preponderncia de uma minoria
contra a maioria, eliminando todas as oposies - at sobrar apenas aquela que se
organiza na mesquita. Em ambos os Estados o contrato social implcito garantido pela
ditadura se baseava numa troca desigual, mas passivamente aceita pela maioria da
populao: o regime mantm a segurana das demais minorias contra os radicalismos da
maioria (sunita na Sria; xiita no Iraque); garante a liberdade religiosa e um mnimo de
liberdades econmicas para todos; em contrapartida, reprime quaisquer demandas de
liberdade poltica, e impe (com tanta violncia quanto necessrio) a permanncia de
seus prprios privilgios.
A Sria nas relaes internacionais
Em ambos os casos, srio e iraquiano, o regime tambm precisava de inimigos e
de conflitos externos para sustentar a artificial unidade nacional e a mobilizao interna.
No caso do Iraque, os curdos, o Ir, e o Kuwait preencheram este papel. Israel e uma
variedade de inimigos no Lbano (maronitas, sunitas, drusos, e palestinos ligados
OLP...) apresentaram oportunidades semelhantes para o regime srio. Nos anos 80,
quando o Egito e a Jordnia buscaram uma pacificao baseada em solues de meio-
termo, a Sria que ainda tem parte de seu territrio (as Colinas do Gol) ocupado por
Israel, se colocou como fulcro da oposio rejeicionista que em nome do nacionalismo
pan-rabe se ops a qualquer acomodao com Israel. Desde ento a Sria lidera uma
"Frente de Resistncia" que engloba radicais palestinos e os xiitas libaneses do
Hizbullah, alm do Ir.
Internamente, o dilema srio semelhante ao da Rssia, China, Ir, Coria do
Norte e outras ditaduras que mantm o poder de suas elites minoritrias por meio de
violaes s vezes macias dos direitos humanos e polticos de seus sditos:
25
politicamente florescem no poro de um submundo inacessvel; economicamente, no
entanto, no podem sobreviver no isolamento. Num mundo cada vez mais globalizado,
precisam de uma economia mais competitiva para se manter; mas, como demonstra o
caso chins, difcil modernizar a economia sem modernizar a sociedade, modernizao
esta que mais cedo ou mais tarde acarreta demandas por reformas polticas que
ameaariam os privilgios da minoria no poder. Certas autocracias ricas em recursos
naturais podem usar p.ex. sua renda petrolfera para subornar a populao e desta
maneira adiar o momento das reivindicaes, mas a Sria no pode se dar este luxo. Ela
possui, por outro lado, um "recurso" negativo interno, advindo de sua extrema
heterogeneidade, do dio e medo entre as comunidades, o que proporciona ao regime
uma alavanca para cooptar partes da oposio (cristos, drusos...) e manter a oposio
dividida. Estes fatores ajudam a explicar a longevidade e paradoxal "popularidade" desta
ditadura sangrenta - aqueles que o apoiam temem o dia do acerto de contas com os
grupos oprimidos. impossvel calcular, mas no seria surpresa se at um tero ou mais
dos srios se sentissem mais protegidos pelas cmaras de tortura do carrasco de
Damasco do que sem elas...
No entanto, mesmo num quadro que combina a opresso da maioria sunita com o
aval passivo de minorias, o regime de Bashar provavelmente no sobreviveria sem a
ajuda de amigos externos. Hoje a Sria pode contar com dois grupos de entusiastas
externos: os resqucios da velha esquerda pr sovitica, e o eixo xiita. Ideologicamente
as duas vertentes no poderiam ser mais diferentes entre si. A primeira remete Guerra
Fria. Apesar do clima pouco favorvel ao comunismo no mundo muulmano, existia at
os anos 70 uma proximidade historicamente crescida entre o nacionalismo rabe
antiocidental e progressista (o chamado socialismo rabe) e a URSS. Quando o Egito,
Arglia, Iraque, a OLP e outros ex-satlites do bloco comunista se voltaram para os EUA
ou para a Frana, a Sria manteve seu link com a URSS, e aps a virada pr dois Estados
da OLP, com os cismas palestinos mais radicais. At recentemente, inclusive, apos a
diviso dos palestinos em dois regimes, Damasco abrigava a liderana "externa" do
Hamas. A "amizade" com Ir e Hizbullah revestida, por outro lado, de um carter
mutuamente instrumental. A relao da Sria com o Lbano se pauta por algumas
questes contraditrias: a primeira o fato da Sria dificilmente reconhecer a soberania
do pequeno irmo, cujo territrio foi artificialmente constitudo pela Frana por pedaos
anteriormente srios no intuito de produzir um contrapeso predominncia
26
demogrfica crist no Monte Lbano, amputao territorial nunca reconhecida pelos
srios. Para os seguidores do patriotismo regional gro-srio, o Lbano faz parte da Sria.
Existe, portanto, o desejo de reintegrar o Lbano na Gr-Sria. Mas, por outro lado, o
Lbano mais moderno e cosmopolita do que seu vizinho - da a infiltrao do territrio
libans por servios de inteligncia srios e as intervenes militares que, paralelamente
luta anti-israelense, so feitas para evitar que os srios sejam "infectados" pela
tendncia crtica que vigora em Beirute.
Por outro lado, h o fator xiita internacional. Apesar da impreciso do termo,
legitimo falar de um eixo xiita que vai de Teer e Damasco at Hizbullah no Lbano. A
hegemonia e at a sobrevivncia do movimento xiita no Lbano dependem do influxo de
armas e outras formas de apoio iraniano: trfico vivel j que apenas atravessa o
territrio do Iraque e da Sria. O regime srio usa seu controle das rotas vitais para o
Hizbullah, aliado do Ir no Lbano, para extorquir concesses polticas e militares de seu
compadre em Teer.
A posio sria aproveitou uma crise existencial do Hizbullah: este, na verdade,
est numa posio problemtica desde a retirada unilateral de Israel de territrio
libans em 2000. Uma vez que o exrcito israelense foi embora, a posio do Hizbullah
como "frente" anti-Israel se tornou mais fraca. Manter a retrica (e ocasionalmente
alguma prtica militar) antissionista , portanto, fundamental para o Hizbullah, pois
dela que deriva boa parte de sua legitimidade e a justificativa para manter suas milcias
e sua proeminncia na convoluta paisagem poltica do Lbano. Ora, novamente, a aliana
triangular Sria-Hizbullah-Ir proporciona vantagens propagandsticas a todas as partes.
Do ponto de vista iraniano, o lao srio abre um canal para posicionar armas e
eventualmente tropas, mais perto do inimigo sionista, comprando assim influncia na
Sria. Para o Hizbullah, o fluxo armamentista pr-condio para sobreviver. Mas o
regime de Assad, por sua vez, tambm se beneficia do apoio de seus dois aliados xiitas.
Desde que eclodiu a revolta em 2011, tanto o Ir quanto o Hizbullah proporcionam
ajuda militar e poltica a Assad.
Apesar das aparncias os trs parceiros so todos xiitas e enfrentam inimigos
comuns: Israel, EUA, sunitas - em termos ideolgicos no existe proximidade. O regime
em Damasco teoricamente nacionalista secular, praticamente um conglomerado de
mfias sectrias pouco ideolgicas. Por outro lado, tanto o regime em Teer quanto o
Hizbullah se inspiram do khomeinismo. So foras polticas com ideologia religiosa, que
27
consideram a Sria como uma base de apoio, um n fundamental no eixo anti-EUA e anti-
Israel, mas no como amigo religioso.3
A Sria da Primavera rabe Guerra Civil
Os movimentos reformistas e as demonstraes pr-reformistas da Primavera
rabe que eclodiram nos primeiros meses de 2011 evoluram de maneira diferenciada
em vrios pases. Na Sria, Assad respondeu s demonstraes populares, inicialmente
pacficas, que reivindicavam respeito aos direitos humanos e abertura poltica, com
brutal represso e logo massacres. Fechado o caminho poltico, a resistncia se
transformou de poltica em militar. Uma tal transio quase sempre sinal de desespero,
pois normalmente um regime consolidado dispe de muito mais recursos militares para
reprimir a oposio do que uma oposio possui para derrubar o regime. Na verdade, o
regime de Assad reagiu com excessiva brutalidade, torturas, desaparecimentos,
punies coletivas e massacres, que alcanaram um triste auge em agosto de 2013 com
os ataques de gs txico que quase provocaram uma interveno armada ocidental. Os
ataques, inicialmente dispersos, se transformaram numa guerra civil que at 2014
vitimou mais de 130.000 pessoas, metade delas civis.4 Mesmo assim, o mero fato da
guerra perdurar durante dois anos e meio j demonstra o surpreendente poder de
resistncia da oposio. Esta no conseguiu estabelecer regies inteiramente libertadas,
mas localmente desalojou as foras de ordem do regime, provocando repetidas batalhas
de reconquista por parte do governo, com resultados variados.
Aps trs anos de conflito se desenham as seguintes concluses provisrias:
(1) A extrema heterogeneidade poltica e religiosa no deixou na Sria uma base social
forte e coesa o bastante para derrotar o regime de Assad. (2) A oposio, fraca para
comear, sofreu ainda pelo frouxo apoio externo. (3) A ajuda russa e iraniana a Assad,
contra a reticncia ocidental, em apoiar a oposio permitiram uma conjuntura onde o
3 Os alawitas so uma seita heterodoxa e at recentemente no reconhecida do xiismo, enquanto a maioria dos
xiitas libaneses e iranianos pertence ao ramo majoritrio, o dos duodcimos. O reconhecimento do alawismo
como xiitas autnticos pelo regime iraniano no passa de truque propagandstico.
4 Em agosto 2014, a ONU avaliou em mais de 191.000 o nmero de mortos:
http://edition.cnn.com/2014/08/22/world/meast/syria-conflict/index.html?hpt=imi_c2
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uso de ADMs (Armas de Destruio em Massa) pelo regime srio, ao invs de provocar
uma interveno, conduziu a um acordo internacional de neutralizao das armas
qumicas que fortaleceu o regime. (4) Por outro lado grupos jihadistas na oposio anti-
Assad, quase inexistentes h dois anos, so hoje o fator predominante em vrios lugares.
Na verdade estas milcias sunitas extremistas so o outro vencedor: conquistaram um
ponto de apoio em territrio srio, e esto preenchendo o vazio de poder em Estados
limtrofes, gerando o espectro de uma internacionalizao do conflito.
Detalhemos essas afirmaes:
1. A fragmentao da oposio tem sido um bnus para o regime de Assad. O
desequilbrio de foras entre o regime (ainda apoiado pela Rssia, Ir, Hizbullah etc.) e
as milcias da oposio, muito mais fracas e profundamente divididas entre si, levou
essas ltimas a pedirem ajuda s potncias ocidentais e sunitas. A evidente falta de
vontade dos EUA e da maioria dos Estados da Unio Europeia, resultado das frustraes
de intervenes anteriores no Oriente Mdio, deixaram as faces da resistncia
dependentes da ajuda da Arbia Saudita, Qatar, Turquia - e de voluntrios jihadistas
irregulares, muitos deles simpatizantes ou ligados a al-Qaeda. A evoluo dos ltimos
trs anos aprofundou a fragmentao da oposio e reforou as correntes mais
extremistas, sectrias, antiocidentais e totalitrias. Localmente grupos tais como a
Frente Nusra ou ISIS (Da`ash, ou Estado Islmico do Iraque e do Levante) estabeleceram
micro-Estadinhos intolerantes e opressivos lembrando o dos Taleb no Afeganisto.5
Por outro lado, grupos relativamente liberais ou secularistas da Coalizo Nacional Sria
tm perdido apoio e terreno.
2. A passividade ocidental tem exacerbado a radicalizao islamista dos
oponentes sunitas prximos al-Qaeda. Isto por si toca sinos de alarme nas capitais
ocidentais, diminuindo ainda mais a disposio para providenciar armas, o que se torna
um ganho para o regime de Assad, cuja tenacidade tem sido no menos surpreendente
do que a de seus inimigos. Torna mais irreparvel a fragmentao e as tenses entre
grupos de resistncia anti-Assad moderados e relativamente democrticos e secularistas
5 Em julho de 2014 Da`ash oficializou o estabelecimento de um califado chamado Estado Islmico em partes
da Sria e Iraque
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por um lado, e os com crescente expressividade islamistas, por outro. Como
consequncia, a frente est se fragmentando numa guerra triangular que ope o regime
Assad tanto oposio liberal, relativamente pr-ocidental, quanto s milcias jihadistas
sunitas, que tambm combatem umas as outras. No h claro ganhador nesse embate, e
os especialistas especulam que em virtude do equilbrio de foras a guerra arrisca se
prolongar por anos. Desde ca. dezembro de 2013 os EUA consideram a Sria no mais
como problema poltico e humanitrio, mas como ameaa securitria, interromperam a
entrega de ajuda oposio mesmo (nominalmente) pr-ocidental e comearam a
contemplar a negociao com Assad ou grupos islamistas ou ambos.6
3. a questo das ADMs eliminou provisoriamente o risco de interveno e
enfraqueceu as foras democrticos e pr-ocidentais a favor dos interesses do
eixo xiita e dos jihadistas sunitas.
Em termos militares, locais tanto quanto internacionais, a guerra civil sria
passou por uma virada crucial em meados de 2013.
At a recente resoluo do Conselho de Segurana proibindo as armas qumicas
de Assad e ordenando sua destruio, tentativas consecutivas para legitimar alguma
forma, mesmo que modesta, de interveno internacional foram obstrudas pela Rssia
e pela China.
No incio de 2013 muitos observadores avaliaram a queda do regime de Assad
como uma mera questo de tempo. Porm, na primeira metade do ano o regime no s
demonstrou uma surpreendente resilincia como tambm comeou a reconquistar
terreno perdido. Sem dvida o apoio mais firme por parte do Hizbullah e outros aliados
influenciou. Mais importante era a reticncia dos torcedores ocidentais da posio sria
para intervir a favor da oposio democrtica. Tanto o governo quanto o pblico nos
EUA se opunham a uma interveno; na Europa, os governos da Frana e da Gr-
Bretanha mostravam mais entusiasmo mas sem o aval de seu prprio eleitorado; e a UE
ficou paralisada, com Alemanha e outros Estados contrrios a uma interveno. O
ocidente entregou apenas uma modesta ajuda no-letal resistncia democrtica e
islamista moderada. Por consequncia esta foi paulatinamente ultrapassada pelos
6 Ver Sarah Birke, 2013, How al-Qaeda Changed the Syrian War. In: NYR - New York Review of Books.
Disponvel em: http://www.nybooks.com/blogs/nyrblog/2013/dec/27/how-al-qaeda-changed-syrian-
war/?insrc=hpss&utm_source=Sailthru&utm_medium=email&utm_term=%2AMideast%20Brief&utm_ca
mpaign=Mideast%20Brief%201-3-2013
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guerrilheiros islamistas radicais que no sofreram tais limitaes e se beneficiam de
amplo apoio financeiro da Arbia Saudita, Qatar, do Gulf Cooperation Council e de
doadores particulares no Golfo - e da entrada de milhares de voluntrios jihadistas
estrangeiros.
Obama colocara o uso de ADMs como linha vermelha cuja transgresso
provocaria uma interveno. Em julho um ataque com gs letal pelo regime de Assad
matou centenas de opositores e civis indefesos em Damasco, desencadeando uma crise
internacional: no reagir minaria a (j afetada) credibilidade dos EUA e tiraria qualquer
remanescente influncia ocidental sobre a oposio alm de exibir uma covardia imoral.
Mas o governo de Obama mostrou uma patente falta de vontade para intervir. A opinio
pblica tanto quanto o Congresso estadunidense rejeitou ainda mais qualquer reao
militar - mesmo uma relativamente segura e pouco comprometedora como p.ex.
atravs do uso de alguns bombardeios areos simblicos (no estilo dos ataques contra
Belgrado em 1999). Rssia, China, Ir e outras potncias estiveram totalmente contra;
especulou-se na mdia at o cenrio da Rssia colocar como armadilha alvos tripulados
para dissuaso: baixas russas desencadeariam uma gravssima crise internacional.
Antes da crise das armas qumicas alcanar este nvel, os prprios russos propuseram
que o governo srio eliminasse voluntariamente seu arsenal no-convencional sob
controle e com ajuda dos rgos especializados da ONU. Assad, que temeu uma
interveno ocidental, rapidamente assinalou seu aval. Aliviados, os EUA aceitaram a
sada honrvel, evitando uma derrota de Obama no Congresso e internacionalmente.
No aconteceu nenhuma ao punitiva contra o regime srio.
A partir deste ponto, a guerra civil sria, que continua sem interrupo, mudou
de carter:
- o regime de Assad recuperou respeitabilidade por mostrar boa vontade e se
engajar em tratativas com a comunidade internacional, sem que por isto parea
se enfraquecer militarmente;
- a oposio democrtica anti-Assad se sentiu trada e perdeu folego e territrio
contra as foras do regime - e contra milcias sunitas extremistas que no a
reconheciam. Seguiram-se batalhas entre milcias da oposio ideologicamente
inimigas;
- os grupos jihadistas radicais (em particular Jubhat al-Nusra e Da`ash/ISIS, ambos
vinculados al-Qaeda e entrando na Sria a partir da Turquia e do Iraque) se
31
fortaleceram e conseguiram implantar mini-emirados, em particular no norte e
leste da Sria. Esto impondo localmente, com extrema brutalidade um regime
islamista sunita radical e perseguem xiitas, cristos e outros: em consequncia a
brutalidade de Assad parece agora menos excepcional e/ou inaceitvel;
- A influncia dos EUA no Oriente Mdio sofreu uma eroso e o poder russo
aumentou. O cenrio de uma interveno internacional desapareceu por
completo.
- O enfraquecimento da oposio moderada e a expanso de grupos jihadistas so
vistos com crescente preocupao por Washington, como potencial nova base de
terrorismo antiocidental. No comeo de 2013 os EUA encerraram seu apoio
oposio, e esto reconsiderando suas opes. Contemplam p.ex. trabalhar junto
com Assad, os russos e/ou o Ir contra os jihadistas sunitas. Isto fortalece ainda
mais o eixo xiita apoiado pela Rssia e contra a qual as demonstraes de 2011 se
levantaram.
- Outros ramos dos mesmos grupos jihadistas esto estabelecendo zonas
independentes no Iraque ocidental (Anbar) regio fronteiria com a Sria.
Entreve-se a possibilidade de um Estado al-Qaeda unificado englobando partes
dos dois pases. Baseado em extensa violao de direitos humanos tais como
entendidos no ocidente, tal Estado no apenas acabaria com quaisquer
experimentos democrticos como estabeleceria um regime fundamentalista
sunita. Tal emirado se considerar como ncleo de um futuro califado universal e
funcionar como plataforma de lanamento de operaes terroristas e militares
contra alvos ocidentais, mas tambm antirussos, anti-iranianos, antichineses,
etc.7
4. o risco de uma exploso regional cresceu. Apesar das tentativas para cont-
la, a guerra civil sria est, portanto, desestabilizando todo o mundo rabe. A guerra civil,
ao invs de se limitar, est se espalhando. Isto traz dois prolongamentos regionais: uma
crise humanitria de refugiados, e uma extenso da beligerncia alm das fronteiras.
Um em cada trs srios fugiu de sua moradia em busca de segurana. O nmero de
refugiados srios em Estados vizinhos alcana mais de dois milhes com previso de
7 A previso tem se realizado ao decorrer do ano 2014.
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chegada de muito mais.8 Este deslocamento macio desafia os meios de absoro de
Estados acolhedores e dos rgos internacionais de ajuda emergencial, e est
produzindo uma crise humanitria de grande envergadura.
O que pior que, exceto a Turquia, cada um dos Estados recipientes j sofre por
si mesmo de gravssimos problemas de coexistncia entre etnias e seitas. Semelhante a
como a chegada de refugiados palestinos aps 1948 e 1967 produziu mortferas tenses
comunitrias no Lbano e eventualmente constitui o estopim da guerra civil de 1975-
1990, assim o influxo de centenas de milhares de refugiados srios das mais diversas
comunidades arrisca romper os frgeis equilbrios comunitrios nos pases vizinhos e
provocar ondas de violncia em srie. Os dois pases em maior risco so o Lbano e o
Iraque. Beirute e Trpoli j vivem uma recrudescncia de violncias provocadas pela
entrada de tropas Hizbullah na Sria ao lado de Assad: rixas sectrias e ataques
terroristas anti-xiitas, produzindo atos de vingana anti-sunitas. No Anbar iraquiano e
na regio predominantemente sunita do Iraque central (Falluja) a discriminao anti-
sunita pelo governo de Maliki alimenta ressentimentos que preparam o terreno para a
militncia de ISIS e de grupos jihadistas afins.
No necessria muita imaginao para traar um cenrio srio que possa
incendiar o Oriente Mdio inteiro, criando uma crise de amplitude global.
O paradoxo da no interveno: O que necessrio fazer e porque os srios no
podem faz-lo sozinhos
Estamos, portanto, frente a uma situao paradoxal (embora no nica na
histria). H dois anos, uma ajuda externa relativamente modesta (armas, treinamento,
talvez a imposio de zonas de excluso area e de refgios) a uma populao sedenta
para se livrar de um tirano e por estabelecer um incio de democratizao, poderia ter
sido suficiente para encorajar as foras democrticas e progressistas e lhes outorgar a
vitria. As democracias tinham uma oportunidade para promover, a baixo custo, uma
8 6,5 milhes de srios so desalojados no prprio pas. De acordo com a ONU, em setembro de 2014 a Turquia
acolheu 1 milho de refugiados e o Lbano 667.000. Outras grandes concentraes de refugiados srios buscaram
abrigo no Iraque, na Jordnia e no Egito: http://www.reuters.com/article/2014/08/29/us-syria-crisis-refugees-
idUSKBN0GT0AX20140829
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mudana de regime com bvio apoio da maioria da populao. Essa uma hiptese que
nunca mais poderemos testar. A prolongada reticncia (ou impotncia) da comunidade
internacional em tomar uma deciso, por medo de piorar uma situao j bastante
complexa, resultou na prpria piora que buscou evitar e tornou um conflito nacional de
dificlima resoluo num beco sem sada com risco de internacionalizao. Hoje at uma
interveno muito mais robusta e incluindo botas no cho, teria grande dificuldade de
simplesmente estancar o sangramento. Hoje o preo mais elevado e o que se obtm em
troca, menos animador.
Na realidade, a eventualidade de uma interveno, ainda discutida em meados de
2013, est hoje praticamente enterrada. Desde a soluo vergonhosa da crise das
armas qumicas, ningum mais seriamente a prope. Os diplomatas se esconderam atrs
as esperanas ilusrias de um congresso de paz multilateral. Desde o fracasso
(anunciado de antemo) do congresso Genebra II, janeiro de 2014) e sob o espectro da
fulgurante expanso do Estado islmico em meados do ano, no mais houve iniciativas
diplomticas srias envolvendo a prpria guerra civil sria. Talvez o adiamento da
catstrofe inevitvel seja a nica tarefa vivel para diplomatas. Como intelectuais
responsveis precisamos, contudo, transcender as restries de um realismo que s faz
crculos insensatos. Precisamos refletir sobre as necessidades para resolver um conflito
que s piora e se expande mesmo se os contornos forem, na conjuntura atual,
improvveis. Proponho abaixo tal exerccio em utopia:
A Sria precisa de uma nova constituio, para expressar um novo contrato social.
Historicamente contratos sociais foram a responsabilidade exclusiva de uma
nao um grupo habita certo territrio e, a partir de determinadas caractersticas
coletivamente aceitas e internalizadas (lngua, costumes, religio, certos valores, a
memria de um inimigo comum...) desenvolve e formula os princpios constitutivos de
sua convivncia. Os franceses desenvolveram uma repblica laica centralizada, os
ingleses um parlamentarismo baseado em representaes locais, os alemes um imprio
autoritrio baseado numa identidade ancestral, etc. O processo podia demorar anos ou
sculos, mas eventualmente todos expressaram sua identidade coletiva num Estado
territorial. A frmula fez sucesso, e hoje a terra inteira est partilhada em 200 Estados
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soberanos, que teoricamente abrigam uma nao cada. A ideologia nacionalista at hoje
se baseia neste valor da autodeterminao, e o princpio da autodeterminao,
transposta da nao para o Estado que (supostamente) a expressa, se tornou a ideologia
normativa da comunidade internacional. Consequentemente a soberania do Estado a
pedra angular da lei internacional e da ONU.
Porm a mesma autodeterminao tambm coloca alguns limites: os critrios da
participao poltica, a difcil coexistncia entre naes - e os Estados multi- ou no-
nacionais.
Por um lado, h o problema do critrio do pertencimento, da cidadania. Um
Estado que acolhe todos os estrangeiros que assimilem sua lngua, seus valores, arrisca
diluir sua nacionalidade e entrar numa crise de identidade. O Estado que, pelo contrrio,
exclui a priori a entrada de novos candidatos pode se tornar um monstro de apartheid,
de discriminao e at de genocdio.
Por outro lado, h o problema do choque das autodeterminaes. A terra cada
vez mais explorada, a presso sobre recursos finitos aumenta, as populaes se
expandem, mas os territrios permanecem os mesmos. Conflitos e guerras resultaram
da competio desordenada entre naes. A industrializao e a modernizao
trouxeram grande prosperidade, mas igualmente tornam as massas urbanas cada vez
mais vulnerveis. A corrida armamentista produz armas cada vez mais destruidoras. As
guerras mundiais do sculo passado comprovaram como os Estados-nao tm se
tornado perigosos mutuamente e, no raramente, tambm para seus prprios cidados.
No por acaso, a Liga das Naes e a ONU, que so as primeiras tentativas srias para
controlar o comportamento dos Estados, nasceram como remdios polticos decorrentes
das guerras mundiais.
Apesar de suas importantes realizaes, os experimentos para encaixar as
tendncias agressivas de Estados contra outros Estados ou contra seus sditos, no
avanaram o bastante. A ONU e outras estruturas supranacionais esto paralisadas pela
tenaz resistncia dos Estados individuais que (frequentemente exortados pelas prprias
populaes nacionalistas) insistem na sua soberania. Estamos ainda no sistema meio
anrquico que simultaneamente produz insegurana e torna arriscado demais ceder
soberania a uma instncia mais abrangente, que seria a nica sada do dilema da
segurana. Portanto o prprio Estado deve ser repensado.
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H, porm, ainda um terceiro problema: muitos Estados atuais no nasceram
como resultado de movimentos de naes que antecederam o (seu) Estado. Muitos
Estados so fruto de invaso, colonizao e depois descolonizao de populaes que se
encontraram mais ou menos por acaso dentro de um mesmo territrio: a prpria luta
contra o colonizador ento o fator que forja (bem ou mal) uma nova nao, meio
artificial, com fronteiras arbitrarias, e travada por contradies. O resultado de tal
heterogeneidade ps-independncia registra frequentes tenses tnicas e comunitrias:
lembremos os casos da ndia, Indonsia, e de muitos Estados africanos. O mundo rabe
no diferente, como vimos acima. E dentro do mundo rabe, a heterogeneidade alcana
seus nveis mais extremos na Sria e seus vizinhos. A prpria fraqueza (ou
multiplicidade) das identidades nacionais pode, em tais Estados, provocar, por
compensao, um verdadeiro culto ao Estado...
Facilmente esquece-se que tal quase-sacralizao do Estado nacional no uma
lei da natureza, mas o resultado de lutas histricas. O Estado, como forma especfica
para organizar sociedades, atrelou vantagens para as populaes mas a um alto preo
humano.
Com a globalizao, no apenas econmica, financeira e miditica, como tambm
militar e cultural, o preo de manter a primazia do Estado soberano ameaa se tornar
ainda mais alto. A Sria exemplifica uma conjuntura quando o respeito soberania
(ainda amplamente incorporado lei internacional) parece acarretar maiores
desvantagens do que sua violao. O Estado um fenmeno com um comeo no passado;
ter tambm um fim futuro. Este fim chegar quando as populaes humanas
conclurem que o preo da sua manuteno excede seus benefcios. Apenas ento se
desenvolvero novas formas polticas alternativas que, idealmente, combinaro as
vantagens da autodeterminao com as da coexistncia global.
No podemos no mbito deste artigo detalhar o contedo de um contrato social
desejvel para uma sociedade tal como a Sria: ultra heterognea, traumatizada, sem
fronteiras e princpios consensuais, sem qualquer experincia histrica democrtica, e
profundamente marcada por uma religio explicitamente universalista e antinacional: o
isl. Se no houvesse diferenas entre etnias, religies, e naes, os Estados como os
conhecemos nunca teriam emergido. Alm do mais, as diferenas que esto rasgando o
corpo social da Sria no param nas suas fronteiras meio artificiais, elas ameaam
tambm desestruturar seus vizinhos. Podemos, contudo, apontar algumas matrizes.
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Qualquer futura base de coexistncia, para ter uma mnima viabilidade, implicaria um
respeito a essas particularidades.
O mnimo necessrio para enderear construtivamente a tragdia na Sria j
constitui em si um pacote extremamente ambicioso: (1) democratizar para conter a
fragmentao, (2) pacificar o autoritarismo violento, (3) reassentar e reabilitar a
economia e sociedade desestruturadas, e (4) dividir os islamistas para integrar as alas
mais moderadas:
1. governo da maioria com garantias para as minorias. Esta precondio
provavelmente a mais crucial, pois a Sria, como o Crescente Frtil em geral, se
caracteriza pela fragilizao das hierarquias tradicionais entre comunidades, tais como
estas funcionaram no imprio otomano, que precedeu a fragmentao colonial da regio
ps-Primeira Guerra: muulmanos e no-muulmanos, sunitas e xiitas, rabes e no
rabes, etc. (cada grupo subdividido em subgrupos com seus preconceitos mtuos s
vezes brutais). As divises tradicionais de poder, riqueza e prestgio j estavam em
decomposio no sculo 19. No sculo 20 nenhum princpio de ordenamento social
conquistou uma hegemonia consensual. Pelo contrrio, os processos simultneos de
afrouxamento e de crescente rigidez das divises comunais tm produzido insegurana,
incertezas, e tentativas de (re)impor hegemonias. As autocracias estabelecidas no
mundo rabe so fruto destas tentativas hegemnicas, mas a crescente educao e
globalizao das populaes exauriram sua viabilidade. Numa tal situao a democracia
que combina o poder da maioria com a proteo das minorias, e que assim
combina autodeterminao com direitos humanos, parece o nico modelo vivel que
possa garantir uma convivncia mais ou menos bem-sucedida. No por acaso a
democratizao foi a reivindicao principal dos protestos pacficos que desencadearam
a tragdia sria em Maro de 2011.
No caso da Sria, a minoria alawita (mas tambm outras minorias associadas a
eles, p.ex. os cristos) precisa ceder sua hegemonia: mesmo no cenrio mais otimista
no o far sem garantias para sua segurana, explicitamente ameaada por milhes de
pessoas que por dcadas sofreram as indignidades que a elite poltica-militar alawita
lhes imps (alm do anti-xiismo visceral dos sunitas radicais). S nesta condio uma
partilha do poder pode fazer jus heterogeneidade da sociedade sem atomiz-la.
Tais garantias s possuiro credibilidade se as novas regras forem incorporadas em
novas instituies autnomas do governo, p.ex. uma magistratura independente,
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partidos, sindicatos, imprensa e organizaes religiosas livres. Nenhuma democracia
pode funcionar sem o consentimento dos governados e sem um governo claramente
limitado, que deixa amplo espao sociedade civil.
2. resoluo no-violenta de conflitos. Nenhuma sociedade pode sobreviver
num clima de permanente violncia aberta. Em muitas sociedades pr-modernas, as
funes so atribudas e as regras mantidas pela ameaa de violncia punitiva, nunca
longe da superfcie. As sociedades rabes no foram exceo. Apesar da existncia de
moldes tradicionais de resoluo de conflitos por negociao e do efeito muitas vezes
moderador da religio, suas caractersticas autoritrias e patriarcais e at tribais
mantinham um alto grau de violncia dentro da famlia. Recentemente a populao sria
afundou numa prolongada involuo dessas normas de convivncia de antemo j
desiguais, tanto entre seitas quanto entre regies e classes. Os moldes autoritrios ao
mesmo tempo inibe
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