Cultura Negra No Carnaval

Preview:

DESCRIPTION

Cultura Negra No Carnaval

Citation preview

Dilogos (Maring. Online), v. 16, supl. Espec., p. 37-68, dez./2012.DOI 10.4025/dialogos.v16supl.709 A memria dos carnavais afro-paulistanos na cidade de So Paulo nas dcadas de 20 e 30 do sculo XX* Zlia Lopes da Silva**

Resumo.Esteartigodiscuteamemriadoscarnavaisbrincadospelosnegros nacidadedeSoPaulodasdcadasde20e30dosculoXX.Ocaminho percorridoporessasreflexesvolta-sebuscadatrajetriadogrupoeos espaosusadosparaexpressarassuasperformancesduranteasfestividades dedicadasaMomo,espalhadaspelacidadedeSoPauloqueaindatinhamo perfildossegmentosendinheiradosquecontrolavamosseuscircuitos. Considerandoessaassertiva,areflexonessetextovolta-separaperscrutar quaisforamosespaosforjadospelogrupoequaisestratgiasforamusadas por essa comunidade para agregar-se aos festejos (oficiais ou no) ocorridos na cidade.E,igualmente,demarcaroformatoeosentidodasbrincadeiras encenadas por esses pndegos na conjuntura.Palavras-chave:Memriadoscarnavaisafro-paulistanos;Carnavaisdos negros; Festejos de Momo. Memoirs of Afro-Brazilian carnivals in So Paulo during the 1920s and 1930s Abstract.CurrentanalysisdealswithmemoirsofCarnivalscelebratedby NegroesinthecityofSoPauloduringthe1920sand1930s.Thenarrative triestoinvestigatethetrajectoryoftheAfro-Braziliangroupandthespaces usedtoexpressitsperformancesduringthefestivitiesdedicatedtoMomo throughoutthecityofSoPaulo,whichwasstillcharacterizedbywealthy peoplethatcontrolleditsseveralsections.Severaldiscussionsareendeavored toperceivethespacesfabricatedbythegroupanditsstrategytogettogether andcelebrateCarnival(officiallyornon-officially).Theformandmeaningsof playful art represented by such festivities are also highlighted.Keywords: Memoirs of Afro-Brazilian Carnivals in So Paulo; Negro carnivals; Momo festivities.

*Artigo recebido em 22/10/2012. Aprovado em 14/11/2012. **Livre Docente em Histria do Brasil. Professora do Departamento e do Programa de Ps-Graduao em Histria da UNESP. Assis/SP, Brasil. E-mail: zelials@assis.unesp.brSilva Dilogos (Maring. Online), v. 16, supl. Espec., p. 37-68, dez./2012. 38 La memoria de los carnavales afro-brasileos de la ciudad de San Pablo durante las dcadas de 1920 y 1930 Resumen.Esteartculodiscutelamemoriadeloscarnavalesprotagonizados por los negros de la ciudad de San Pablo durante las dcadas de 1920 y 1930. El caminorecorridoporestasreflexionesseorientaabuscarlatrayectoriadel grupoylosespaciosusadosparamanifestarsusexpresionesdurantelas festividadesdedicadasaMomo,realizadasendiversospuntosdelaciudadde SanPablo,bajolainfluenciadelperfildelossegmentosadineradosque controlabansuscircuitos.Enestesentido,lareflexindeltextoseorientaa indagarsobrelosespaciosforjadospordichogrupoysobrelasestrategias empleadasporelmismo,paraagregarsealosfestejos(oficialesono) desarrollados en la ciudad. Tambin se busca demarcar el formato y el sentido de los juegos escenificados por las comparsas en esta coyuntura. PalabrasClave:Memoriadeloscarnavalesafro-brasileos;carnavalesde negros; festejos de Momo. Introduo Nestetexto,serodiscutidasasmanifestaescarnavalescasda comunidade afro-paulistana, nas dcadas de 20 e 30 do sculo XX, na cidade de SoPaulo,evidenciandosuasprimeirasorganizaesrecreativasqueforam responsveispelaestruturaodessegrupoepororganizaressesfestejos.As lideranasnegras,cientesdasdificuldadesparasuainseronomundodos brancos,decorrentesdepreconceitos,criaramestratgiasparaenfrentaros muitosdesafios,valendo-sedoreforodeseustraosculturais.Criaram,em consequncia,vriasinstituiesquepassaramaagreg-los,taiscomo:os clubes,osterreiros,oscordes,ranchoseblocoscarnavalescosepublicaes peridicasquebuscaramvalorizarogrupoaodivulgaremosseuseventose feitos.Almejavampromover,igualmente,odilogocomasociedademais ampla. Emboraosespaosdeagregaodacomunidadeafrodescendente sejammltiplos,nestetextopretende-seenfocarosfolguedoscarnavalescos A memria dos carnavais afro-paulistanos na cidade de So Paulo nas dcadas de 20 e 30 do sculo XX Dilogos (Maring. Online), v. 16, supl. Espec., p. 37-68, dez./2012. 39 queseconstituramemelementosparaaorganizaodessacomunidadena cidade de So Paulo, na passagem dos anos 20 aos 30 do sculo XX, a partir de seus cordes, ranchos e blocos, tal o interesse do grupo por essas festividades. Caberessaltar,entretanto,queessasmanifestaesforamlidaspela historiografia especializada da rea de Cincias Sociais no mbito da dicotomia carnavaldeelite/carnavalpopular,interpretaoqueseconsagrouequese confundecomamemriadoscarnavaisdopassado.Essaleituraapoiou-seno fatodeospalcosdasfestanascarnavalescasnoseremosmesmosparaos diferentessujeitos,oqueserviuparaasuafixaoqueseamparouna continuidadedashierarquiassociaisexistentesnasociedade,duranteessas celebraes(QUEIROZ,1995;SIMSON,1989),situaoaparentemente inquestionvel.Porm,nessasanlises,foramnegligenciadasasnuancespara apreender os sentidos e a diversidade das brincadeiras carnavalescas, durante os DiasGordose,tambm,osdesdobramentoscausadospelainserodos segmentospopulares,nadcadade30,noscircuitosdocarnavalelegantede rua.Esseprocesso,contudo,nofoilinearemuitomenosisentodetenses. Assim,seupercursoseracompanhadotomando-secomopontodepartidaa forma como a imprensa diria cobriu as manifestaes desses pndegos, e o seu contraponto,expressonosregistrosdosperidicosoriginriosdoprprio grupo. 1. Os afro-paulistanos modelam seus espaos culturais e miditicos Hconsenso,entreosestudiososdoassunto,dequeocarnaval praticadopelacomunidadenegrafoi,emregra,ignoradopelosrgosde imprensadiriadacidadedeSoPaulo,nasdcadasde10e20dosculo passado.Asnotcias,antesescassas,comearamaaparecer,comcerta regularidade,aps1930.Contudo,aindaeramextremamenteseletivase desproporcionaisemrelaocoberturadocarnavaldaelite.Questoj Silva Dilogos (Maring. Online), v. 16, supl. Espec., p. 37-68, dez./2012. 40 abordadaporOlgaVonSimsonqueobservouadesproporonotratamento dadoaosfolguedosnegrosemrelaoaoscarnavaisdeoutrossegmentos endinheirados. A imprensa noticiava com destaque o carnaval da burguesia: o corso da Av. Paulista e os bailes em clubes e teatros [...]. Quanto aos folguedos negros no havia referncia a eles, a no ser simples meno na seo policial, quando alguma briga ou conflito com a polcia era registrada (SIMSON, 1989, p.180). Essaausnciadenotciassobreaparticipaodosnegrosnesses folguedos, contudo, no significou que no tivessem ocorrido ou, mesmo, sido registrados.Osseusperidicos,Clarim/SP(1923/1924),OClarimdAlvorada (1924/1932),Kosmos/SP(1923-1924),Progresso(1928-1932),Chibata(1932), Evoluo(1933),AVozdaRaa(1933-1937)noticiaramsucintamenteosseus desfiles nos carnavais de rua e, tambm, em seus clubes, ao longo das dcadas de 20 e 30 do sculo XX. Antesdetratardequeformatalpresenafoiregistradaporesses peridicos, convm esclarecer as condies de surgimento dessa imprensa no cenriopaulistano.RogerBastide(1973)eMirianFerrara(1986)atribuema suaemergnciasdificuldadesenfrentadaspelosnegros,emSoPaulo,na sua convivncia com os brancos, no perodo posterior abolio, obrigando-os a construir alternativas prprias para a manuteno de suas vidas em todas asdimenses.AlgunshomensemulherescomoDionsioBarboza,Lino Guedes,CelsoVanderley,SebastianaBarreto,entreoutros,destacaram-se nesseprocesso,aoromperasbarreiraseospreconceitosquedificultavama absorodesuacomunidadenasociedadepaulistana,construindoespaos alternativosdeafirmaodesuaidentidadeporintermdiodacriaode instituiesdiversasedeveculosqueampliaramaaoevozdogrupo, comoasigrejas,osterreiros,osclubeseosjornaisqueforamosseusporta-vozes mais eloquentes.A memria dos carnavais afro-paulistanos na cidade de So Paulo nas dcadas de 20 e 30 do sculo XX Dilogos (Maring. Online), v. 16, supl. Espec., p. 37-68, dez./2012. 41 Aimprensaassumiupapelestratgiconesseprocesso.Graasaela, tornou-se possvel rastrear as notcias das comemoraes diversas de uma parte dossegmentospopularesquehabitavaacidadedeSoPaulo.Apartirde meadosdadcadade20,porexemplo,acomunidadenegraganhoumaior visibilidadeeexpresso,eissosetraduziunaampliaodeseusveculosde circulaodeideias.De1924a1932,OClarimdAlvoradacobriuoseventos diversosemqueesteveenvolvidapartedacomunidadenegra.Emjunhode 1928,surgiuomensrioProgresso,depropriedadedoSr.ArgentinoC. Wanderley, tesoureiro do Grupo Carnavalesco Campos Elyseos, considerado pela imprensa de So Paulo rgo oficioso do referido bloco. Em abril de 1933, apareceoperidicoAVozdaRaa,comtiragemquevariavaentre1.000e 5.000 exemplares. mantido com auxlio da Frente Negra Brasileira.1

Essesperidicoserampequenasfolhasqueraramenteconseguiam manter-seportempomaisprolongado.E,tambm,tiveramdificuldadepara garantirregularidadedapublicaodeacordocomapropostainicial.Emseus relatosmemorialsticos,osprotagonistasenvolvidosexplicamosmotivosdas dificuldades desses peridicos que geralmente estavam associadas carncia de recursos(parasuapublicao)edeadesodaprpriacomunidade,situaes expressas em seus apelos de ajuda e de queixas da falta de leitores no mbito do prpriogrupo.OClarimdAlvoradaqueixou-sedafaltadeapoioedeinteresse dosmembrosdacomunidadeemrelaoaosseusjornais.Constatou,ainda,a ausnciadepagamentodasassinaturasedeapoiosatividadesprogramadas parasocorreroperidico,comoofestivaldananteorganizadopelocordo

1 Areferidaassociaofoicriadaem16desetembrode1931porArlindoVeigadosSantos, IsaltinoVeigadosSantos,AlfredoEugeniodaSilva,PiresdeAraujoeRoqueAntoniodos Santos com a inteno de organizar os negros em mbito nacional. A FNB era dirigida por um GrandeConselhocompostode20membroseumConselhoAuxiliarformadoporCabos Distritaisdacapital.ComsedeemSoPaulo,eraintegradaporrepresentantesoriginriosda capital, do interior e de outros Estados. Consultar: Ferrara (1986, p.62; 73-74). George Andrews (1998) interpretou que os propsitos da FNB eram a ascenso social do negro e comungava das ideiasautoritriasfascistizantesemvoganoperodo,combatendooliberalismoeassumindo posies xenofbicas, acompanhando os integrantes da Ao Integralista Brasileira. Silva Dilogos (Maring. Online), v. 16, supl. Espec., p. 37-68, dez./2012. 42 carnavalesco CamposElyseos, em 1926, e que, devido s chuvas na cidade, foi umfracassototal,argumentoquedeixouinconformadoosresponsveispelo jornaleco,quenoanoseguintelamentouoocorrido(OCLARIM DALVORADA,17jul.1927).Mesmoassim,essaspublicaestiveram significativopapelagregadorparasuasvanguardaseparademarcarassuas lutas, aspiraes e engajamentos diversos, por se tornarem canais de veiculao dessasaspiraesederegistrosdesuasredesdesociabilidadeeconvivncia social fixando, assim, a memria do prprio grupo e de suas realizaes. Nessesentido,essaspublicaesprocuraramdefinircertoperfil, inclusive com capas que visavam delinear o seu layout e objetivos almejados. O ClarimdAlvorada, por exemplo, era um peridico que tinha vinculao com os cordescarnavalescosepodeservistocomosignodasquestesapontadase, tambm, de uma experincia at certo ponto bem sucedida, considerando que o jornal durou oito anos, em que pesem os percalos enfrentados e as constantes queixas de seus responsveis. I magem1 O Clarim dAlvorada. Fonte: Acervo do Cedap Unesp. A memria dos carnavais afro-paulistanos na cidade de So Paulo nas dcadas de 20 e 30 do sculo XX Dilogos (Maring. Online), v. 16, supl. Espec., p. 37-68, dez./2012. 43 Nessesimpressos,asperformancesdoscordesefolguedosnegros noscarnavaispaulistanosforamdivulgadasempequenasnotas,suprindo, assim,lacunasobreoassunto.Assuasmatriaspermitiramnosomente acompanharasvriasatividadesgeradasnombitodessacomunidade,mas tambmidentificarasdiferentesassociaesqueorganizaramoscidados negros e, ainda, o papel que desempenharam em seu interior, incluindo entre elasalgunsdoscordeseblocoscarnavalescos.Essasvriasalternativas, propiciadas aos diferentes pblicos da comunidade, sugerem, igualmente, que osseusmembrospartilhavamdasmesmaspreocupaesquebuscavamna distino e nas regras de convvio, to caras ao mundo culto, formas de demonstrar oseuprocessocivilizatrio,bemcomosuasdiferenciaesinternasesuas crenaspolticaseexpressesculturais.Tantofoiassimqueessesperidicos registraramemsuaspginasnotciasquegarantiamaindividuaodeseus membros. Para tal, destacaram os aniversrios, casamentos e mortes e, ainda, os feitos e a notoriedade conquistada por membros da comunidade negra cuja trajetria poderia servir de inspirao aos demais, alm do engrandecimento e valorizao da raa. Noticiaram, tambm, todos os tipos de festas, at aquelas diretamenterelacionadascomasatividadescarnavalescas,evidenciandoque osnegrostinhamumavidamundanae,talqualaelite,conheciamasregrasda polidez,emclarocombateaopreconceitoqueimpediasuainseroplenana sociedade brasileira. Nesse processo de interao da comunidade negra, os clubes tambm tiveramumpapelfundamental.Aooferecerematividadesmltiplas,essas instituiesviabilizaramaessesestratossociaisaampliaodesuasrelaes deconvvioeoengendramentodeprticassociaismaisdiversificadas.Essas agremiaes assumiram, alm da demarcao dos parmetros da sociabilidade desejadaparaosseusintegrantes,igualmente,opapeldedestaqueno delineamentodaidentidadealmejadaapartirdesuasatividadesldicas Silva Dilogos (Maring. Online), v. 16, supl. Espec., p. 37-68, dez./2012. 44 quermesses, piqueniques, serenatas, bailes e poltico-culturais realizadas ao longodosanos.Tantofoiassimque,passadoocarnaval,associedades recreativasdefiniamoutrocalendriodeeventosquecompreendiam:as festividadesdiversas(saraus,bailes,etc)ecomemoraesdedatascvicase polticas, entre as quais a Lei urea, que aboliu a escravido no pas.2 Nombitodessacomunidade,haviadiversidadedeinteressese diferenciaes de ordem econmica que impunham o surgimento de espaos desociabilidadedistintosparasuacirculaocomo,porexemplo,osclubes3 e,deordempolticaque,emalgumassituaes,impediramotrabalho conjuntodessasentidades.4 Aheterogeneidadedeseusintegrantes,contudo, noimpediuqueessasassociaesprocurassemavalorizaoepromoo socioculturaldogrupo,deixandomargemalutacontraospreconceitos, raramente explicitados em seus peridicos.

2 Em 1925, OClarimdAlvorada noticiou vrias festas que foram organizadas por clubes como: C.R.Paulistano,G.C.CamposElyseos,Club13deMaio,comseosolenee,emseguida, baileemesadedoces.Juntamentecomoutrasatividades,osbailesconstituram-seem elementos significativos na rede de relaes que garantiu a sociabilidade do grupo e que ganhou destaquenonoticiriodeseusperidicos.Em1926,omesmoperidicoOClarimdAlvorada trouxenotciassobrefestasrealizadaspelasagremiaes,commotivaesdiferenciadas, durante os meses de junho e julho. A saber: C.C.CamposElyseos - Em 24/07/1926 realiza, em sua sede, Festival danante em benefcio do O Clarim dAlvorada; G.C. Barra Funda - realizou em 20/06/1926,ChDananteemhomenagemsAmadorasdoBarraFunda,emsuasedenarua Lopes Chaves; Elite da Liberdade - Em 11/07/1926 realizou um sarau; Brinco de Princezas - Matin danante.Emsetembrodomesmoano,omesmojornalpublicounacolunaVidaSocialos bailesnomeadosdematindanante(Kosmos),chdanante(G.C.BarraFunda)esoire (CamposElyseos)realizadosemcomemoraoao7desetembropelasassociaesG.R.D. Kosmos (sede na rua Florncio de Abreu, 45), G.C. Barra Funda e Campos Elyseos. 3 Estas associaes organizavam a comunidade negra e, tambm, estabeleciam diferenas sociais entreseusintegrantes.OsclubesElite,SmartClubeKosmosagregavamoshomensdecor com algumas posses, em ntido esforo de diferenciao em relao sociedade mais ampla e prpriacomunidadenegra.Sobreesseassunto,ver:Andrews(1998,p.220).Paramais informaes sobre outras associaes dos homens de cor, consultar: Siqueira (2009). 4 As divergncias apontadas podem ser identificadas com a criao da Frente Negra Brasileira, dirigida por Arlindo Veiga dos Santos que se alinhou aos integralistas desagradando uma parte de seus integrantes da capital, So Paulo, originando o rompimento do grupo, por discordncias poltico-ideolgicas.OsdissidentesdacapitalformaramoClubeNegrodeCulturaSocialea Frente Negra Socialista. Ver tambm: Andrews (1998, p.239) A memria dos carnavais afro-paulistanos na cidade de So Paulo nas dcadas de 20 e 30 do sculo XX Dilogos (Maring. Online), v. 16, supl. Espec., p. 37-68, dez./2012. 45 Vale lembrar que nem sempre o dia a dia dessas associaes foi marcado dexitos.Emvriosmomentos,aimprensanegraregistrouospercalos enfrentadosporessasagremiaes,quedesligaramdeseusquadros,anoaps ano,muitosdeseusintegrantesporfaltadepagamentodascontribuies mensais.Asmesmasdificuldadesenfrentaramosseusperidicos,comojfoi assinalado anteriormente (O CLARIM DALVORADA,17 jul. 1927, p.2). Emquepeseasituaoconstatada,noestemquestoarelevncia, os significados e os papis assumidos por tais entidades na aglutinao e defesa de seus interesses, construdos com base em sua rede de relaes sociais que se ampliounoinciodosanos1930,comosurgimentodenovosgrupos carnavalescos e com a presena das mulheres nesse processo (EVOLUO, 13 maio. 1933, p.5), a exemplo do Bloco das Baianas Teimosas (tambm chamadas de BaianasPaulistas)edoCamposElyseos,queteveapresenafemininaintegrando suadiretoria.Mas,nestetexto,aintenoevidenciarcomoosperidicosda comunidadenegraregistraramaperformancecarnavalescadessegrupoaolongo dosanospesquisados,mesmosabendoqueospequenosregistrossobreo assunto eram posteriores ao acontecido. 2.Oscordesnegrosnoscarnavaispaulistanos:dimensesda memria nos registros de seus peridicos e de seus protagonistas OsestudosdessesfestejospeloBrasilaforavmmostrandoqueo percurso do carnaval atual nem sempre foi democrtico. O seu trao definiu-se pelarecorrentepresenadaselitesnoseucomando,cujosresultadosforam imprimirosseusvaloreseocontroledoscircuitosdessascelebraespor muito tempo. At 1850, o carnaval era chamado de Entrudo e compunha-se de diversosjogos5 que,desdeosculoXVII,dividiramaopiniodaselitese

5 Osjogosmaiscomunseram:abrincadeiradejogargua(svezessujaoudecheiro)nos foliesouemquempassassepelarua;enfarinharosfoliesoutravestir-sedepalhao(ou mascarado)earreliaraspessoascomabrincadeiravocmeconhece?,nemsempremuito amistosa. Sobre isto, verCunha (2001). Silva Dilogos (Maring. Online), v. 16, supl. Espec., p. 37-68, dez./2012. 46 autoridades,quepassaramaconsider-losperigosos,sujosegrosseiros.Em meadosdosculoXIX,essesjogosdividiramosespaoscomochamado carnavalelegantecompostodebailesdemscaras,dosprstitosdas grandessociedadescarnavalescasqueexibiamricoscarrosalegricos,edo corsodecarrosenfeitadospraticadopelasfamliasendinheiradas,em sintoniacomosseusdesejosderefinamentoedeadesoaosparmetrosde modernidade que se projetavam para o pas. TalsonhomodernizadorprosseguiucomaRepblicaqueinstituiu novas regras para a participao dos carnavais de rua e dos clubes, definindo a obrigatoriedade de inscrio na polcia, das sociedades/clubes, cordes, blocos ou grupos e o pagamento de taxa Prefeitura, se quisessem desfilar, com seus prstitos,nosespaospblicos,ourealizarosbailescarnavalescos.Ouseja, essasagremiaesdeveriamregistrar-senaSecodeDivertimentosPblicos daPrefeituraMunicipal,preenchendofichas,definindoascoresqueseriam usadaspeloagrupamentocarnavalesconasapresentaesepagandoas respectivastaxasparareceberoalvardeautorizaoparaoseventosem espaosfechadosounarua.Paragarantirocontrole,noprpriodiade carnaval,eraprecisoirPrefeituracarimbaroestandarte.Essasexigncias foramreiteradaspelapolcia,aolongodasdcadasde20e30,eamplamente divulgadas pela imprensa. Osilncionosregistrosdaimprensadiriaemrelaopresena popularnessesfolguedossuscitaindagaes:Qualeraentoaparticipao popularnessesfestejos?EainserodosnegrosnoscarnavaisemSoPaulo passava por quais circuitos?Avaliar at que ponto as lideranas negras observaram as regras oficiais de solicitao dos alvars para desenvolver as atividades de rua e dos clubes (em decorrnciadasproibiesexpressascontrainiciativasespontneasde pndegospelasruasdacidade,semautorizaoprvia,oumesmoograude A memria dos carnavais afro-paulistanos na cidade de So Paulo nas dcadas de 20 e 30 do sculo XX Dilogos (Maring. Online), v. 16, supl. Espec., p. 37-68, dez./2012. 47 tolerncia da polcia), ainda continua uma hiptese de pesquisa a ser perseguida, mas de difcil alcance.6 Os carnavalescos em suas memrias ou em relatos orais reafirmaram, em diversas ocasies, que as dificuldades de aceitao dos desfiles pblicosdosblocosdoshomensdecor,porpartedaselites,aindaeram marcantesnodecorrerdosanos10(SILVA,2000,p.53).Asituao, paulatinamente,modificou-seapartirdemeadosdosanos20,emboraas exignciasderegistrocontinuassememvigor.Nessadcada,porm,no contavamnemmesmocomoapoiodasesquerdas,quequalificavamessas festividadesdealienadasemomentosdeorgiadeclasse7,aexemplodos anarco-sindicalistasqueatribuamaessesfestejosrecorrentesameaass mocinhas ingnuas dos segmentos populares que, nessa perspectiva, eram alvos preferenciaisdasinvestidaslibidinosasdosfilhosdaburguesia,vidospor divertimentos sem compromissos. H informaes, na imprensa negra, da participao dessa comunidade nosfestejoscarnavalescos.OClarimdAlvorada,aexemplodosdemais peridicosdogrupo,publicouemsuaspginas,nodecursodosanos20e30, entre outros assuntos, a participao da comunidade negra nos bailes realizados em seus clubes e, tambm, no carnaval de rua, com os desfiles de seus blocos, cordes,gruposeranchosqueseestruturaramapartirde1914,inicialmente comoG.C.BarraFunda,em1919,comoG.C.CamposElyseos,seguidopor Nova Aliana Lyra da Madrugada, em 1920 (O CLARIM DLVORADA, 05 jan. 1928,p.4).EsseengajamentonosfestejosmomescosforaregistradopeloO Clarin(02 mar. 1924, p.2),ao publicar, sem detalhes, que a comunidade tinha sua disposio os bailes nas sedes dos clubes: Flor das Maravilhas, Princesa

6 Issoimplicariarastrearadocumentaopolicial,paraverificarasprisesocorridasduranteo carnaval, ao longo dos anos investigados, empreitada difcil pela ausncia de informaes, uma vezqueacoberturadessesfestejos,feitapelagrandeimprensae,tambm,pelosperidicos alternativos, bastante precria. 7 Os comunistas no discutiram este assunto em seu principal peridico AClasseOperria. Ver tambm: (SILVA, 2008, p. 55). Silva Dilogos (Maring. Online), v. 16, supl. Espec., p. 37-68, dez./2012. 48 doSul,dosBandeirantes,XVdeNovembro,XIIIdeMaio,Unio Militar e o Grupo dos Trs Carnavalescos. Ao longo dos anos pesquisados, as notcias sobre os bailes nos clubes daraaforamrecorrentes.Em1926,OClarimdAlvoradanoticiouos retumbantesbailescarnavalescos(realizadospelas)sociedadesBrincode Princezas, 15 de Novembro, Kosmos, 13 de Maio, Campos Elyseos, Auri-verde, Paulistano eoutrosmais.Informa-nos,ainda,queoBrincodePrincezas,na3feiraGorda, ofereceutrsprmiossfantasias,selecionadascombasenosquesitos:luxo, originalidadeebeleza.OsmesmosforamconquistadospelasSenhorasSebastiana Oliveira,VirgniaSantoseEsmeraldaGodoy,respectivamente(21/03/1926,p.3).Chibata, outro peridico da comunidade negra, noticiou os bailes carnavalescos realizados,em1932,pelasagremiaes:Kosmos,CamposElyseoseBrincode Princeza (CHIBATA,fev. 1932, p.2).Esseseventosseguiamosmesmosparadigmasdosbailesrealizados nosclubesdaselitesquefaziamcertamesepremiavamasfantasiasmais originais,luxuosasebelas,iniciativasquetinhamporobjetivogarantiro interesseeaunicidadeaoseventosrealizadosnessesespaosfechadose, distino, aos seus associados e frequentadores.Oscarnavaisderuadoscordesegruposdessacomunidadetambm foramrecorrentementenoticiadosporseusperidicos.NacolunaEchosdo Carnaval, em 06 de abril de 1924, OClarin realou a passeata, pelas principaes viasdacidade,dosdoiscordesBarraFundaeCamposElyseos(que)vem deannoemannoscolhendojustasvictrias,graasaobomgostoeaofino espiritocomqueempublicoseapresentam(06abr.1924,p.4). Paulatinamente, os cordes8 mencionados tornaram-se referncia no apenas para a comunidade negra, mas tambm para a sociedade mais ampla. Surgiram a

8 Nohaviaumaclaradistinoentreblocosecordes.Muitasvezeselessurgirameforam registradoscomogrupoeassimcontinuarammesmoquandosuacaractersticaeestrutura foram alteradas devido ao seu crescimento. A memria dos carnavais afro-paulistanos na cidade de So Paulo nas dcadas de 20 e 30 do sculo XX Dilogos (Maring. Online), v. 16, supl. Espec., p. 37-68, dez./2012. 49 partir de um grupo inicial familiar e de amigos que habitavam espaos distintos dobairrodaBarraFunda.Essasaes,contudo,iamalmdoscordes. Dionsio Barboza, por exemplo, teve papel de destaque pela liderana assumida naagregaodogrupo,aoorganizarpiqueniques,serestaseaparticipaonas festasdeSoBomJesusdePirapora,entreoutras.E,tambm,notabilizou-se pelacriaodaagremiaoG.C.BarraFundaqueagregouacomunidadenegra daquela regio. Atrajetriadessasagremiaesjfoidevidamenteregistradapela historiografiaespecializada,emboranemsemprehajaconsensonessa rememorao.Porm,issonoumproblema,considerando-sequea construodamemriadequalquergrupoouinstituiodefine-seemmeioa controvrsias, disputas e esquecimentos (POLLAK, 1989), deixando submersas outrasvivnciascomofoipossvelpercebernosregistrosdaimprensadiria sobreaausnciadessegruponosfestejoscarnavalescosocorridosnacidade. Nombitodogruponegro,atrajetriadessescordesnofoidiferente.No cotejamentosobreasorigenseospercursosdessasagremiaesconstatam-se disputas,esquecimentosdasorigens,dedatasedeseusfundadores.Porm,a controvrsiasobreostemposdistintosdefundaodessasagremiaesede seusfundadorestraduzfragmentosdelembranasjesgaradasejparte constitutivadamemriadoacontecercarnavalescodoprpriogrupo,cujo marcotemporalpodedeslocar-seindefinidamenteporqueprescindede qualquer dimenso factual para sua afirmao (NORA, 1993).AtrajetriadoG.C.BarraFundaemblemticaparaasdemais associaes, no por ser a primeira, mas pelo papel aglutinador que exerceu na comunidadenegradaBarraFunda.Oseucaminhofoirememoradopelos peridicosdaraaeporseusprotagonistas,nasentrevistasdadass pesquisadorasIdaMarquesBrittoeOlgaVonSimson,emmomentos diferentes da dcada de 80, para os seus estudos do carnaval paulistano. O G.C. Silva Dilogos (Maring. Online), v. 16, supl. Espec., p. 37-68, dez./2012. 50 Barra Funda foi fundado, em 1914, por Dionsio Barboza, Victor de Souza, Luiz Barboza.SegundointerpretaodeOClarimdAlvorada,elesderam(forma) 1iniciativadeumpequenogruponoqualtomarampartecomofigurade destaqueoSr.SilvanoVidalSilveira,eAntenordosPassos,SebastioDias, Tiburcio de Almeida e outros componentes (05 fev. 1928, p.4). I magem2 Dionsio Barboza-Fundador do Camisa Verde. Fonte: (SIMSON, 2007, p. 300). I magem3 Sr. Victor (do cavaquinho), um dos fundadores do Camisa Verde; Sr. Antenor do Clarinete e Sr Mximo do violo. Fonte: (SIMSON, 2007, p. 304). IdaMarquesBritto,emseulivroSambanacidadedeSoPaulo(1900-1930):umexerccioderesistnciacultural utilizando-se de depoimentos de vrios fundadores,expsversodiferentedasanterioresparaosintegrantesque originaramoG.C.BarraFunda,aoenfatizarqueomesmofoicriadoporum pequeno grupo de parentes e amigos, de seis a oito rapazes companheiros de jogodemalho(BRITTO,1986,p.73)lideradoporDionsioBarboza,Luiz Barboza(irmo),ocunhadoComlioAires,entreoutros.Brittoinformouque ogruposaiupelobairrocantandomsicaprpriaelevandocomo instrumento o pandeiro e o chocalho feito de tampinhas de garrafas de cervejas fazendo tchic, tichich, tchic. Da precria sada inicial, foram se organizando, calasesapatosbrancos,chapudepalhaecamisaverde,substituindoos A memria dos carnavais afro-paulistanos na cidade de So Paulo nas dcadas de 20 e 30 do sculo XX Dilogos (Maring. Online), v. 16, supl. Espec., p. 37-68, dez./2012. 51 trapos e remendos de sua primeira exibio. No ano seguinte, foi acrescentada a surdinha e uma caixa remendada. E, em 1920, sua estruturao j era outra, bem mais complexa:Em1920tinhamjsuaorquestra:SirvanodeTieteseusaxofonemuito velhoeremendado,JoodoBandolim,CapistanodoTrombone,Marcio, Mario,JandiroeVitocomcavaquinhoseumclarinete,DionsioBarbozae seupandeiroe,omaisimportante,osurdoouobumbonasmosde Marcelo Roque, que comandava, l de trs, toda a bateria. Dos oito ou doze participantesiniciais,passaramavintee,noaugedocrescimentoem1920, eraaotodosessentahomens,sendoquenocomeoalgunssetravestiam (BRITTO, 1986, p.74). Osregistros,veiculadospelaimprensanosanos30,apontavamcomo vestimentadoG.C.BarraFundaumacalabrancaeumacamisaverdee,na cabea,umcapacetedeestiloromano.Osseusdesfileseramanimadospelas marchassambadas,easmsicascantadaseramdeautoriadecompositoresdo prpriocordo,geralmentefeitascoletivamenteporDionsioBarboza,Joo Brs, Feij (Jair Bento Ferreira) e Vitor (BRITTO, 1986, p. 76). Naformaodocordoapareceramosconhecimentosevivncias anterioresdeBarbozanocarnavaldoRiodeJaneiro,noranchodeReisdo pastoril, notadamente nas figuras do mestre-sala e da porta-bandeira, introduzida nas exibies pblicas. Abrindo o desfile vinha o baliza, figura que teve origem e inspirao nos desfiles militares. Depois de 1921, foram introduzidas as amadoras (que executavam evolues) e, posteriormente, o abre-alas uma grande alegoria comafiguradeumfalco.Todasessasideiasforamintroduzidaspeloprprio Dionsio Barboza. A esse respeito Britto esclarece: Ogruposaanaordemseguinte:Balizanafrente,atrsseisbatedorescom bastes s mos, o porta-estandarte, o mestre-sala, que corria desde o baliza atabateria,asamadoras(depoisde1921)eogrossodocordo;os instrumentos ficavam divididos: clarinete mais frente, uma caixa ao meio e porfimosinstrumentosdecorda,opessoaldochoronafrentedabateria quefechavaogrupo.Comessadivisoasseguravaadistribuiodosom, todoscantandoascomposiesprpriasdogrupo,deautoriadeseus compositores (1986, p.75). Silva Dilogos (Maring. Online), v. 16, supl. Espec., p. 37-68, dez./2012. 52 Igualmente no h consenso quanto ao percurso e ao dia do desfile do cordo.NainterpretaodeBritto,ogruposaiuinicialmenteaosdomingos, repetindo nos anos seguintes o mesmo roteiro. DesfilavamapportodaaBarraFunda,AvenidaSoJoo,subindoa avenidaAnglicaataAv.Paulista,descendopelaAv.BrigadeiroLuiz Antonio at o Largo So Francisco, Rua So Bento, o Tringulo at a Praa doPatriarca.Depoisogrupovoltavacomamesmaorganizao,passava pelo Correio, faziam uma parada para as mocinhas tomarem guaran, subia aav.SoJooechegavafestivosededaBarraFunda,RuaConselheiro Brotero,casadeDionisioBarbozaedepoisnaRuaVitorinoCarmilo,no mesmo bairro (1986, p.75-76). Simson(2007),porsuavez,assinalouqueogrupodesfilou inicialmentena3feira,partindodobairroemdireoPraadaS, repetindodiaepercursonosanosseguintes.Asnotciasveiculadaspelo CorreioPaulistano,em1929,reafirmamqueoditocordodesfilavana3feira Gorda. Porm,desde1919,oG.C.BarraFundapassaraadividirosespaos pblicoscomoG.C.CamposElyseos,cordotambmdaBarraFunda,que apareceucomumaestruturabemmaiselaboradaeintegradapor50rapazes. Logosedestacoupelaqualidadedeseusinstrumentistas.Suascoreseramo roxo(camisas)eobranco(calas).Traziacomoemblemaumanimal,misto deguiaedrago,queoidentificavaemsuasapariespblicas,assim informa O Clarim dAlvorada, em 1927. NaanlisedeBritto,osCamposElyseosdestacavam-seporseus[...] instrumentistas,comopredomniodapercusso,svezesemumnmero superiora10:caixas,surdosebumbosdetodosostamanhos.Aestes juntavam-se o grupo de choro, o chamado conjunto choro, com trombone, o clarinete,oviolo,banjos,chocalhos,pratosepratocombaqueta(1986,p. 77).SeemrelaoaoG.C.BarraFundaacontrovrsiaemrelaoaos seusfundadores,asdvidasemrelaoaoG.C.CamposElyseosreferem-se A memria dos carnavais afro-paulistanos na cidade de So Paulo nas dcadas de 20 e 30 do sculo XX Dilogos (Maring. Online), v. 16, supl. Espec., p. 37-68, dez./2012. 53 sua data de fundao. Ida Britto (1986) afirma que o grupo saiu pela primeira vezem1917,comumconjuntode50pessoas,jportandocamisaroxae calabranca.EraoriginriodoBlocodosBomios,quedesde1913existiade formanoestruturadanaAlamedaGlette,naBarraFunda.Nainterpretao de Simson (1989), a agremiao foi fundada em 1918 (como cordo), por um grupodenegros,comsituaofinanceiraumpoucomelhordoqueaquelesque formavamoCamisaVerdee,tambm,saasruass3feiras(CORREIO PAULISTANO,08fev.1929,p.4).Mas,operidicoProgresso,vinculadoao cordo, define sua origem em 1919.Essa associao carnavalesca no desenvolvia enredo, mas definia um temaparaapoiarassuasfantasias.Notinhasedeprpriaepodiainiciaro seudesfiletantodaBarraFundaquantodequalqueroutropontodacidade. DizBritto:AsmsicasdoCamposElyseoseramfamosaseoriginriasdeseu ncleodecompositores:AlcidesMarcondes,JoodeSouza,Benedito Carmelinho,pianistarespeitadoeoritmoeraamarchaenoasmarchas sambadas do Camisas Verdes (Barra Funda) (1986, p.78). Osucessodessasagremiaesmaterializou-seemsuasperformances duranteosfestejoscarnavalescos,anoapsano,comoinformouOClarim dAlvorada.Em1926,esseperidico,nacolunaEchosdoCarnaval,noticiouo xitoalcanadopelosdoiscordesBarraFundaeCamposElyseos,graasao bom gosto e ao fino esprito com que em pblico se apresentaram. (21 mar. 1926, p.3) Noanoseguinte(1927),osfoliesafro-paulistanoscontaramcom mais uma agremiao, AFlordaMocidade, originada a partir da dissidncia no G.C.BarraFunda.Mas,aoqueparece,essarupturanocausouabalos significativosnotrabalhodearregimentaodotradicionalcordoque,em 1928,demonstravaaampliaodonmerodeseusparticipantes, estruturando-seporintermdiodaformaodecordesinternosquepermitiao Silva Dilogos (Maring. Online), v. 16, supl. Espec., p. 37-68, dez./2012. 54 crescimentodoGrupoeaconsolidaodeumaestruturadescentralizada, capaz de fortalec-lo e no o contrrio. Trazem nomes convencionais, exceto Misria e fome que jocosamente faz crtica as prprias condies do grupo e, por extenso, da sociedade. Actualmente(1928)vemoGrupoCarnavalescoBarraFundapor intermediodeseusfundadores,organizandooscordesinternosos quaestemsidoaplaudidosedandoaomesmogrupoenorme desenvolvimentotaescomo:MisriaeFomevictoriosoincontestavel; oAngudaBahiananossorival;Camponesesnossorival; Cozinheirosnossosdiscipulososquaestrazemcomochefeosr.Z m-m o terrivel folgazo Carloca que s tem encontrado com o terrivel paulista,C.edadoparatras;osr.JosAlexandreSilvanobiscoito, mais...temqueperderporqueoC.nodorme.Aseguirtemosochefe geralSrDionsioBarbozaauctoredirigentedoGrupoInfantilBarra FundajuntamentecomosrJorgeRaphaelesforadoDirectordo GrupoCarnavalescoBarraFunda,quetemprocuradooenlevodo mesmo.A seguir temos um grupo de amadoras estas que sero o brao direito do Grupo Carnavalesco da Barra Funda conforme suas foras legaes - so ellasquedoasmaisbellasprovasCarnavalescaseemtodasasmais distinctasfestasdestasociedadeempregandoseusesforos(OCLARIM DALVORADA, 05 fev. 1928, p.4). Nofinaldadcada,essescordesganharamdestaquesnonoticirio da imprensa diria. Em 1929, o tradicional jornal Correio Paulistano mencionou ocostumeirodesfiledoCamisasVerdes(G.C.BarraFunda),na3feirade carnaval(dia12/01/1929),eodesfiledoCamposElyseos,compostode100 figurantes.Seguindoatradio,ojornaldescrevequeoprstitodocordo CamisasVerdespercorreuinicialmenteasruasdobairro,dirigindo-seem seguida ao centro da cidade, onde cumprimentar as altas autoridades, visitar as redaces dos jornais, conforme a praxe dos annos anteriores (CORREIO PAULISTANO, 08 fev. 1929, p. 4). Alm dessa notcia, o Chibata ( fev. 1932, p.2) comentou sucintamente osucessodoranchoDiamanteNegroedoscordesGrupodasBahianas,Grupo Vai Vai e Grupo dos Desprezados (Interno dos Campos Elyseos). No ano seguinte, Evoluodestacou,emsuaspginas,asexibiesbemsucedidasdosranchos, A memria dos carnavais afro-paulistanos na cidade de So Paulo nas dcadas de 20 e 30 do sculo XX Dilogos (Maring. Online), v. 16, supl. Espec., p. 37-68, dez./2012. 55 cordeseblocosdacomunidadenegranocarnaval,enfatizandoopapel desempenhadopeloInterventorparaobrilhodetaisfestejose,tambm,as homenagensdoperidicoaosfeitosdanossagentecomosseusvitoriosos cordes:asBahianas(Paulistas),osDesprezados,BarraFunda,CamposElyseos, Mocidade,DiamanteNegro(rancho)eVaeVae (EVOLUO, 13 maio. 1933, p.15). Nofinaldadcadade20,essescordespartilharoosespaos pblicoscomoCordoEsportivoCarnavalescoVaiVai,fundadoem1930,no Bexiga,porFredericoPenteado(Frederico),DonaIracema,Tino,Guariba, Henrico,BeneditoSardinha,DonaCasturina,entreoutros. 9 Eraoriginrio do clube de futebol Vai-Vai, em oposio a outro clube, o Cai Cai, ambos da rua Marques Leo. O Vai Vai estreou naquele carnaval fantasiado de marinheiro, de preto e branco, as mesmas cores do seu clube de futebol. Como os outros cordes, o Vai Vai no tinha um enredo, embora desenvolvesse temas para dar suporte s suasfantasias;aestruturadeseusdesfileseratradicional(asfileiraslaterais), mas,jincorporavaasnovidadesquefaziampartedosdesfilesdosoutros cordes, como por exemplo, o estandarte carregado por uma mulher. Oestandarte,porexemplo,vinhacarregado,pormulher,D.Iracema,uma inovao de 1921 do cordo. Os Desprezados da Barra Funda, dirigido pelo Neco.Nafrente,abrindoocortejo,estavamosbalizas,presenteD.Sinh, entocom12anos,nicamulherdentre10rapazes.Logodepois,vinhaa porta-estandarte, seguida de uma comisso situada entre fileiras laterais, e no meio,aporta-bandeira.[...]Nodecorrerdadcadade30,oVai-Vai introduziu personagens de corte com a figura de uma rainha e de uma dama queemobedinciaascoresdocordo,traziaindumentrianegra,sendo apelidada de dama de negro iniciativa esta, na idia e na representao, de D.Olmpia,umadasprimeirasfigurantesfemininascomquecontouoVai Vai (BRITTO, 1986, p.79).

9 Essecordotransformou-senofinaldadcadade1960naEscoladeSambaVaiVai,e permanece com suas luxuosas exibies, em preto e branco, nos desfiles carnavalescos dos dias atuais. Silva Dilogos (Maring. Online), v. 16, supl. Espec., p. 37-68, dez./2012. 56 As msicas cantadas durante as exibies do cordo eram de autoria de seuncleodecompositores:Tino,GuaribaeHenrico,conhecidossambistas desse perodo. Alm dos fundadores, outros integrantes projetaram-se, sobretudo osmembrosdabateria,algunsdelestornaram-seapitadorescomoSr.Livinho aclamadocomooPrimeiroapitadordeSoPaulo(SIMSON,1989,p.307), PatoNguaeSebastioEduardoAmaral,ofamosoPRachado10,quese integrou ao Vai Vai em 1933 (e tornou-se seu diretor de bateria, posteriormente). I magem4 Sr. Livinho, um dos fundadores do Vai Vai (primeiro apitador) fantasiado de Cossaco, 1933. Fonte: (SIMSON, 2007, p. 307). I magem5 - Pato Ngua, um dos principais apitadores do Vai Vai. Fonte: (SIMSON, 2007, p. 308).

10 Entrevistagravadaem02/10/1981,noMuseudaImagemedoSom/SP.(Fita112.31-32 CarnavalPaulistano).SebastioEduardoAmaraleramineiroeem1934veioaSoPauloa passeio,comamigos.Instalaram-senoBexigaarranjandotrabalhocomopedreiro,emboraem Minas fosse padeiro. Em 1934, viu o VaiVai e resolveu se ligar ao grupo. Em Minas tinha um bloco e j tocava surdo acompanhando congada. Em seu depoimento diz que entrou para o Vai VaipormeiodeseuamigoCota.Ficounafilaparaentrarnabateria.Esperoudoisanospara entrar no surdo. Depois passou a tocar bumbo, em substituio a um rapaz que morreu. Depois passou para apitador. No tinha interesse de ser apitador, quando Pato Ngua se retirou, assumiuessaposio.Ficoutrsanosdirigindoabateria.AmaralafirmaqueoVaiVaiteve importncia significativa na dcada de 1930 e decaiu nas dcadas de 1940 e 1950.A memria dos carnavais afro-paulistanos na cidade de So Paulo nas dcadas de 20 e 30 do sculo XX Dilogos (Maring. Online), v. 16, supl. Espec., p. 37-68, dez./2012. 57 I magem6- Sebastio Eduardo AmaralIn: Blog Multissamba Mestre P Rachado. Disponvel em: http://multisamba.blogspot.com.br/2010/09/mestre-pe-rachado.html. Acessado: 22 out. 2012. VaiVaidestacou-seemrelaoaosoutroscordes,comolembra SebastioEduardoAmaral,porprevalecerosinstrumentosdecouro,almda caixa,rufo,pratoechocalho,quevinhamnafrentedosbumbosenormes, sempremaisdeum.Depois,ocordocriouacaixacariocaqueproduziaum somsemelhanteaorepiniquedostemposmodernos.Aparticipaodos elementos de choro era menor entre os instrumentistas, como informa Amaral, ementrevistaaIedaM.Britto,em1979.Emborafosseumcordodobairro Bexiga e composto de ncleo familiar, tal qual os demais cordes, aglutinou em torno de si folies originrios da Barra Funda ou integrantes do Campos Elyseos. A memria dos carnavais dessa comunidade vai alm das notcias sobre aparticipaonosdesfilesocorridospelacidade.Noinciodadcadade30,a FrenteNegraBrasileira(FNB)instituiuumcertameparaasagremiaes carnavalescasdacomunidadenegraeofereceuataaArturFriedenreichem homenagemaofamosojogadordefutebol,filhodealemoemeafro-brasileira , inaugurando uma situao peculiar no mbito desses festejos, uma vezqueaspreocupaesdessaorganizaovoltavam-separaquestesgerais, comoaeducaodogrupo,asmoradiasprprias,acessoaosempregos Silva Dilogos (Maring. Online), v. 16, supl. Espec., p. 37-68, dez./2012. 58 pblicos,informadasporconcepespolticasdedireitaprximassdos integralistas, atuantes na conjuntura.Embora no atuasse no carnaval, a FNB procurou marcar sua presena nacomunidadenegra,organizadaemtornodosfolguedosdeMomo,criando umcertameque,emdetrimentodesercalcadonosmoldesdaqueles patrocinadospelaselites,perseguiuumcaminhoprprio,valorizandoosseus conesesmbolos,aohomenagearosmembrosproeminentesdeseugrupo. Mesmo assim, teve dificuldade para garantir a unanimidade desejada, pois nem todasasagremiaescompareceramaoevento,evidenciandoumalinhade tenso entre a FNB e os outros grupos organizados dessa comunidade, uma vez quenopartilhavamdasmesmasposiespoltico-ideolgicas,muitoembora no explicitassem essas diferenas. As informaes publicadas pelo peridico A VozdaRaaenfatizaramque[...]participaramdoconcursoosseguintes cordes:CamisaVerde,BlocodoBoi,CordodasBahianas,Blocoda Mocidade;nocompareceramaoconcurso,pormotivosqueaindaignoramos osseguintes:Desprezados,Vae-Vae,CamposElyseoseDiamanteNegro(01 abr. 1933, p.3). 11 O certame, diferente dos demais, ocorreu no Clube S. Paulo ao qual foi confiada a incumbncia de sua realizao. O desfecho final ocorreu em baile convocado especificamente para a entrega do trofu, cuja posse era apenas por um ano. Nocarnavalde1934,novamente,temosnotciasdaocorrnciadetal certame, embora a taa oferecida ao primeiro premiado tenha sido denominada FrenteNegraBrasileiraenofaanenhumarefernciaaojogadordefutebol homenageadonoanoanterior.NacolunaEcosdoCarnaval,publicadaemA VozdaRaa, o jornal noticiou o concurso institudo pela FrenteNegraBrasileira,

11 Est ausente desse concurso o GC CamposElyseos e alguns cordes de sua rea de influncia, como VaeVae, Desprezados (grupo que saiu do GC BarraFunda). Foi a partir desse grupo que saiuaentidadeque,naconjuntura,faziaoposioFNB,pordiscordardesuasposies poltico-ideolgicas. A memria dos carnavais afro-paulistanos na cidade de So Paulo nas dcadas de 20 e 30 do sculo XX Dilogos (Maring. Online), v. 16, supl. Espec., p. 37-68, dez./2012. 59 entreoscordespaulistasquedisputavamartsticataa,oqualfoirealizado na3feiradeCarnaval.Informou,ainda,queojulgamentofoifeitopela seguinte comisso: Salatiel de Campos, Altino Mendes e Francisco Lucrcio. Compareceramaoeventoosseguintesblocosecordes:Mocidadedo Lavaps,CaveiradeOuro,BaianasCarnavalescas,FlordaMocidade,BlocoNaval,Vae Vae,Desprezados.Oresultadodoconcursoapontouovitorioso,opopular cordo G.C. Vae Vae que se apresentou com cento e tantas figuras estandarte balisas-comissodefrenteclarim-msica,fazendograciosasevolues, cantandoasmarchasmaislindasinclusiveumaemhomenagemaF.N.B..O segundolugarcoubeaoBlocoCarnavalescoFlordaMocidade.Outrosprmios foramoferecidosaosbalizas:AoBalisadoG.C.VaeVaeumataa oferecida pela Voz da Raa; Ao Balisa do Caveira de Ouro, Sr Avelino Traves uma medalha de prata oferecida por esta redao; Ao Balisa Flor da Mocidade, Sr.ValdomiroCorradosSantosumamedalhadeprata(AVOZDA RAA, 14 abr. 1934, p.3). 3. As barreiras para colocar o bloco na rua e os novos aliados Aaparenteausnciadeconflitonopodeconfundiroleitor,poisas proibiesaosdesfilesdosblocosecordesquenotivessemoalvarda polcia foram uma realidade vivenciada pelos negros (e demais folies pobres), situao que se agravava pelo fato de no terem um espao definido para suas apresentaes,aocontrriodoqueocorriacomosdemaiscomponentesde agremiaes da elite endinheirada. Por exemplo, os primeiros cordes lutaram, sem sucesso, para desfilar nas avenidas centrais. Apesar da investida fracassada, em todos os desfiles dirigiam-se ao centro da cidade para prestar homenagem autoridadepolicialmxima,pedindo,informalmente,asuaanunciaparaa continuidadedodesfile.Tambmdesfilavamemfrenteaosgrandesjornais. Dirigiam-se,emseguida,aosclubesdaraalocalizadosnaregiocentralda Silva Dilogos (Maring. Online), v. 16, supl. Espec., p. 37-68, dez./2012. 60 cidadedeSoPaulo,ondepodiamexibir-sesemsepreocuparemcomas investidasdapolcia.Fugiraesseenquadramentosignificavaentrarem confrontocomapolciaquetoleravaosfolguedosnegros,comsuasmarchas-sambadas,apenasduranteosdiasdefoliacarnavalesca(SIMSON,1989).O sambista Alberto Alves da Silva, o Seu Nen da Vila Matilde, em depoimento aAnaBraia,falasobreessamemriadarepressopolicialaosmsicosnegros nolivroMemriasdeSeuNendeVilaMatilde,noqualoautorcorrobora informaesquejhaviamsidodadaspeloscontemporneos,sobrea perseguiopolicialaosnegros,nosanos20esuaextensoaosamba,queera tolerado apenas durante o carnaval.12 Asdificuldadesenfrentadaspelosnegrosemseucotidianoobrigaram-nosapensaroutrasestratgiasparacontornarasinterdieseproblemasque noseresumiamapenassinvestidasdapolcia.Nosbairrosondemoravam, embora fossem a maioria, tambm tinham que conviver com imigrantes pobres decorbranca,dediferentesnacionalidades.NobairrodaBarraFunda,por exemplo,tambmmoravamitalianos,portuguesesesrios.Eracomessa populaoqueoscordesteriamdeestabelecerrelaescordiaisetentar conquist-la, para poderem ocupar o espao comum das ruas para seus ensaios e apresentaes (SIMSON, 1989, p.171). Sebastio Amaral tambm fala sobre essarelao,sobretudo,comositalianosbatateiroseossrios,informando que ambos ajudavam financeiramente o Vai Vai.13

Entre os integrantes do cordo Camisas Verdes (G.C. Barra Funda) havia preocupao em relao a essa aproximao. Com os italianos, ela manifestou-sedediversasmaneiras:apoiofinanceiro(contribuionolivrodeouro),

12 Consultar sobre o assunto, o livro Seu Nen de Vila Matilde (Alberto Alves da Silva) no qual o autor relembra que nos anos 19 e 20, o samba s era permitido nos dias de carnaval (SILVA; BRAIA, 2000, p. 53). 13 A presena de brancos no cordo Vai Vai somente ocorreu em 1953, segundo o depoimento j citado, de Sebastio Amaral (MIS - Fita 112.31-32 Carnaval Paulistano). A memria dos carnavais afro-paulistanos na cidade de So Paulo nas dcadas de 20 e 30 do sculo XX Dilogos (Maring. Online), v. 16, supl. Espec., p. 37-68, dez./2012. 61 aplausosetorcida.Porm,aparticipaodebrancoscomointegrantesdos blocos e cordes negros, segundo os depoimentos dos sambistas, no era bem aceitapelosprpriosbrancosquehostilizavamaquelesque,emalgum momento,manifestaraminteresseemintegrar-sebrincadeira.Nesse particular,haviacertareciprocidade.Emboraasexplicaesdeambos procurassemamenizarasdivergncias,elasnoconseguiramesconderqueos obstculos eram tnicos e no culturais. Emquepeseapaulatinaincorporaodosnegrosaosfolguedosmais amplos,issonosignificouaeliminaodopreconceitoedaintolerncia,que ainda definiam as relaes entre negros e brancos, nos anos 30. O Seu Zezinho, docordoCamisasVerdes(emdepoimentoaoMuseudaImagemedoSom MIS), msico que integrava o conjunto guias da Meia Noite, de maior projeo de So Paulo, afirma que o grupo enfrentou muitas dificuldades para tocar nas rdios locais, por causa do preconceito. Em seu relato diz que era msico, mas trabalhavaantes,parasobreviver,emtrabalhopesadocarregandosacasde caf.Comomsico,informaquetrabalhounardioAlvorada,comogrupo guias....Masnoconseguiugravarsuasprpriasmsicas,oquelevoua desagregaodogrupo,anosdepois,porcausadosproblemasde sobrevivncia:oscachserammuitobaixosenemtodososintegrantes queriamviverexclusivamentedaatividademusical,comogostariaque ocorresse.14 Aspesquisasqueabordaramoutrosaspectosenvolvendoa comunidadenegrachamaramaatenosobresuaexcluso,inclusiveno mercadodetrabalholivre,cujainseroocorreusobcondiesde desigualdade,secomparadasadapopulaobranca(ANDREWS,1998). Outros aspectos de seu cotidiano tambm foram afetados por essa intolerncia.

14 Sobre o assunto, consultar o depoimento que se encontra no Museu da Imagem e do Som de So Paulo. (MIS - Fita 112.4-5 Carnaval Paulistano) e Moraes (2000). Silva Dilogos (Maring. Online), v. 16, supl. Espec., p. 37-68, dez./2012. 62 O jornal AVozdaRaa, na matria Os Sambas e os bailes, publicada em 30 desetembrode1933,protestoucontraotratamentodadoaosnegros,pelos senhorios. Quando se candidatavam ao aluguel de um imvel, as exigncias do proprietrioiamdaproibioderecebervisitasataderealizarbailes, deixando-ostolhidosemsuaprivacidade.Ironizaotrminodaescravidoe defende o direito privacidade, como no seguinte trecho: Atacasaquensalugamosepagamospontualmente,notemosodireito defazerumdivertimento.Eupensoquedepoisquenstrabalharmosseis dias em qualquer servio que seja para a manuteno da nossa prole, tambm temosodireitodeprocurarmosumdivertimentoqualquerporem,licito, comordemerespeito,quesoasprincipaesda(s)Bases(da)Educao(A VOZ DA RAA, 30 set. 1933, p.3). Emmeiosdificuldadeshouve,tambm,valorizaodonegrono planosimblico,pelosintelectuaismodernistas,queemsuasrepresentaes passaramaconsiderarasuacultura,comoospintoresTarsiladoAmaral,Di Cavalcanti e Portinari e os escritores Jos Lins do Rego (Moleque Ricardo - 1933) eJorgeAmado(SubterrneodaLiberdade)oque,apesardospercalos,definiao seu lugar na sociedade brasileira. Essasaesforamalmdadimensosimblica.Em1935,oPrefeito FbioPradooficializaosfolguedospraticadospelosranchos,blocose cordes,aodefinirumlugarespecficoparasuaexibio.Certamente,o intelectualmodernistaMriodeAndradefoipartcipedessadeciso,na qualidadedeDiretordoDepartamentodeCulturadaPrefeituranaocasio15. Tambmerasabidooseucontatocomoredutonegromaisinacessvelda Barra Funda, devido ao seu interesse pela msica e demais expresses culturais do grupo. Assim,foinessecontextoque,noscarnavaisde1935a1938,as diversas agremiaes dos negros e as das classes populares brancas participaram

15 Informaes sobre a gesto de Mrio de Andrade, consultar Moya (2011). A memria dos carnavais afro-paulistanos na cidade de So Paulo nas dcadas de 20 e 30 do sculo XX Dilogos (Maring. Online), v. 16, supl. Espec., p. 37-68, dez./2012. 63 dos desfiles organizados pela Prefeitura da capital, que definiu como palco para suasapresentaesaruaLberoBadar,distintodoespaocenogrficooficial montadonaAv.S.Joo,destinadosexibiesdasgrandessociedades carnavalescasprovenientesdaselitesouporelasapoiadas,qualificadasdeo grandecarnavaloucarnavalburgus.Essaparticipaopressupunha inscrever-seoficialmenteparaosdesfiles,nosdiasmarcadospelaPrefeitura, paraaexibiodesuasagremiaesqueseriamavaliadasporespecialistas definidospelaComissoOficialdosfestejos,segundoosquesitos:luxo, originalidade,escultura,harmonia,indumentria,canto,evoluese iluminao (CORREIO PAULISTANO, 05 mar. 1935, p. 7).Essasalteraesfaziampartedomovimentodenacionalizaodo carnaval,queintroduziu,emsuaestrutura,aslendas,osmitosbrasileiros diversoseasmsicas,osritmoseogingadoprovenientesdouniversoafro-brasileiro. Durante esses festejos, a cada ano, foram institudos concursos para elegerasmelhoresmarchasesambascarnavalescos.Essascanespassarama animar os bailes pelo Brasil afora e, em So Paulo, deram vida s exibies dos desfilespblicos,considerando-sequeapenasosblocos,ranchosecordes negrostinhamumncleodemsicosecompositores.Osdemaiscordes parodiavam as letras das canes que faziam sucesso nas rdios (SILVA, 2008, p.184).NocasodeSoPaulo,oscompositoresnegrosnochegarama alcanar a mesma projeo obtida pelos seus colegas do Rio de Janeiro, embora alguns tenham se destacado, como j assinalado anteriormente. Nocarnavalde1935,porexemplo,houveumavastaprogramaode eventospblicos,atumconcursooficialdemarchasesambas,masnoh notciasdaparticipaodemsicosecompositoresnegros.Asnotcias focalizamosdesfilesdegrupos,blocos,cordeseranchos16,cujospr-

16 A definio de cada categoria era feita pelo nmero de participantes, a saber: Grupo - at 25 pessoas;Blocos-de25at50pessoas;Cordes-de50pessoasparacima;Rancho, qualquer nmero de pessoas, sendo, porm, obrigatrio o enredo. Silva Dilogos (Maring. Online), v. 16, supl. Espec., p. 37-68, dez./2012. 64 requisitos,paravencerocertame,seriamoseuenquadramentoaoscritrios acimaespecificados.Ouseja,exignciasqueasentidadesnegrastinham dificuldades em cumprir e, nesse sentido, estavam formalmente concorrendo, masemgrandesdesvantagensfrenteaosseusconcorrentesdeorigembranca. Naquele ano, os inscritos foram os seguintes: Grupos-Vindosdoserto-Nomemisturo-GrupoXdaRadio Educadora - Veteranos da Serra. Blocos-Franco-Brasileiro-BlocodoRoma-FlrdaMocidade- Mocidade do Lavaps - Filhos da Candinha - Bloco Moderado - Cordo dos Innocentes - Bloco do Jockey Clube Nossa Vida um Mystrio - Bloco da Banda Auri-Furgente de Jundiahy - Bloco Banda. Cordes-Luso-Brasileiro-Caveiranos-Gerandino-Terminiano- CordoRugggerone-CamisasVerdes-CamposElyseos-Tenentesdo Hispano-CaveiradeOuro-BahianasPaulistas-Vae-Vae-Marujos Paulistas-CordoSammarone-CordoLiberdade-Peccadoressem arrependimento - Bloco das Misses, de Santos. Ranchos-GarotosOlympicos-DiamanteNegro-MimosoPrncipe Negro-RanchoLuizGama-ArranchadosdeQuitauna(CORREIO PAULISTANO, 05 mar. 1935, p. 7). Nohregistrossobreamsicaeotema,exibidospelosdiversos gruposnessesdesfilesoficiais.Aparticipaonegranoconjuntodeeventos realizadosnesseanoficourestritaaodesfiledosblocosecordes,marcando umapresenasignificativamentedesigual,secomparadadosdemaiseventos organizadospelosclubeseassociaesdaeliteedaclassemdia.Concorrer com o luxo do carnaval da elite branca era extremamente difcil, considerando-se a origem dessas agremiaes. Nos anos seguintes, os blocos, ranchos e cordes fizeram sua exibies naruaLberoBadar.Em1937,asassociaesinscritasforamavaliadaspelos jurados:Prof.AchillesBlochdaSilva,FernandoMendesdeAlmeida,Menotti delPicchia(literato),SerpaDuarteeCastroCarvalho(OESTADODES. PAULO,11fev.1937,p.7).Em1938,osdesfilesforamseparadospelas modalidadesranchos,cordes,blocosegrupos cadaumadelasjulgadas porcritriosespecficos.Osranchosforamavaliadospeloenredo,luxo, A memria dos carnavais afro-paulistanos na cidade de So Paulo nas dcadas de 20 e 30 do sculo XX Dilogos (Maring. Online), v. 16, supl. Espec., p. 37-68, dez./2012. 65 iluminao,evoluo,porta-estandarteemestre-sala17,eoscordespelos quesitosluxo,iluminao,canto,evoluoebaliza.18 Eosblocosegrupos pelo luxo, originalidade, canto e evoluo.19 Emboranosejapossvel,porfaltadeinformao,saberoquefoi apresentadoporessescordesnosreferidosdesfilesquetraziamobaliza frente, o estandarte e a no-obrigatoriedade de enredo , sabe-se que a pugna para integrar-seaoscarnavaisdacidadeeraantiga.Certamente,aspressesdos segmentospopulares,tendocomoaliadospartedaselites,movidasporinteresses mltiplos, entre eles os do comrcio, da indstria e dos meios de comunicao de massa imprensa e rdios que viam a a possibilidade de negcios lucrativos, tornaramvivelessainsero.Umdosargumentosarroladospelaimprensa,em algunsmomentos,foianecessidadedessafestarepublicanizar-separarecuperara animao dos folguedos. Consideraes finais Nestetexto,portanto,procurou-serefletirsobreoenvolvimentodos negrosnoscarnavais(oficiaisouno)deruadacidadedeSoPauloe,emseus clubes,nasdcadasde20e30dosculopassado.Aparticipaonoscertames oficiaissomenteviabilizou-senagestodoPrefeitoFbioPrado,em 1935/1936/1937, graas presena de Mrio de Andrade frente da Secretaria de Cultura e Recreao do Municpio de So Paulo que criou modelo de apresentao dasagremiaespopulares,nosespaospblicos,inclusiveasdosnegros.A propostaenvolviaojulgamentodasexibies,pormsicos,literatoseartistas

17 AComissoJulgadoraeracompostadosseguintesmembros:Dr.MiguelPauloCapalbo; EscultorVictorBrecheret;PintorB.BastosBarreto(Belmonte);JosdeCastroCarvalho;Dr. Jos Corra da Silva Junior. 18 AComissoJulgadoraeracompostadosseguintesintegrantes:Dr.MiguelPauloCapalbo; EscultorVictorBrecheret;PintorB.BastosBarreto(Belmonte);JosdeCastroCarvalho;Dr Jos Corra da Silva Junior. 19 IntegravamaComissoJulgadora:Prof.AchillesBlochdaSilva;PintorJ.WashRodrigues; Dr.RibasMarinho,lvaroVieira;MaurcioLoureiroGama(CORREIOPAULISTANO,26 fev. 1938, p. 10). Silva Dilogos (Maring. Online), v. 16, supl. Espec., p. 37-68, dez./2012. 66 plsticos,deformaoacadmica,originriosdasescolasdeBelasArtesedos ConservatriosdeMsica,reordenamentoqueserviudeparmetroparaos carnavais posteriores.Nota-se,nesseprocesso,acomplexidadedasrelaesculturaisentre brancosenegros,comosugereThompson(1998,p.17),comelementos consensuais,mastambmsituaesdeconflitoscujosresultadosforam,aps insistentesnegociaes,nemsempreexplicitadas,paraaparticipaodos carnavaisoficiaisdacidade.Essaquestofoiexploradacombaseemindcios dispersos, tal a precariedade das notcias da presena do grupo nestes festejos, at mesmo em seus peridicos, cujos registros resumem-se a rpidos informes sobre os desfilesdeseuscordeseranchospelasruasdacidade.Porm,asrelaesde conviviabilidade,entrebrancosenegros,emboraperpassadaspordificuldadese conflitos, elas no impediram prticas culturais partilhadas e, tambm, dissonantes nosmoldesdaacepobakhtiniana(BAKHTIN,1987),apartirdosanos30, considerando-sequeasmsicaseritmos(marchasesambasprovenientesdos ncleosculturaisnegros)chegaramaossalesfrequentadospelaselitesepelos segmentosmdiosdasociedadebrasileiradeformadesigualnopas.Nocasode SoPaulo,houvepartilhadosespaospblicosnocorso,comapresenados caminhes(modalidadenoabordadanestetexto),enosdesfilesoficiaiseda mdia(jornaiserdios).Porm,aincorporaopretendidapelosnegrosafro-paulistanos,nessaconjuntura,foiaqumdoesperadoporessesprotagonistas20, vistoqueosmsicosdogrupotiveramdificuldadesdeinseronosespaos culturais da cidade.21

20 O deslocamento de elementos da cultura negra para o mundo das elites, como foi se explicitando nos carnavais do Rio de Janeiro, nas dcadas seguintes, com festejos que passaram a ser regidos pelo ritmoeogingadodosambaedobatuque,originriosdaqueleuniversocultural,redefine paulatinamente o perfil dos carnavais do pas para os anos seguintes, o que somente ocorreu em So Paulo no final dos anos 60, com a oficializao das Escolas de Samba. Informa Sebastio Amaral que o cordo Camisas Verdes e o Vai Vai somente mudaram para Escola de Samba em 1971. 21 Esta questo foi discutida amplamente por Jos Geraldo Vinci de Moraes (2000) que constata os preconceitoseasdificuldadesparaosmsicosnegrosconseguiremespaosefinanciamentosnas rdios da cidade e, tambm, as dificuldades de gravao de suas msicas.A memria dos carnavais afro-paulistanos na cidade de So Paulo nas dcadas de 20 e 30 do sculo XX Dilogos (Maring. Online), v. 16, supl. Espec., p. 37-68, dez./2012. 67 Fontes A VOZ DA RAA. So Paulo, 01 abr. 1933; 30 set. 1933; 14 abr. 1934. CHIBATA. So Paulo,fev. 1932. CORREIO PAULISTANO. So Paulo, 08 fev. 1929;05 mar. 1935 . DEPOIMENTO.SebastioEduardoAmaral(PRachado).MIS(Fita112.31-32 Carnaval Paulistano). DEPOIMENTO. Seu Zezinho. MIS (Fita 112.4-5 Carnaval Paulistano). EVOLUO. So Paulo, 13 maio. 1933. OCLARIMDALVORADA.SoPaulo,21mar.1926;17jul.1927;05jan. 1928; 05 fev. 1928. O CLARIM. So Paulo, 02 mar. 1924; 06 abr. 1924. O ESTADO DE S. PAULO. So Paulo, 11 fev. 1937. Referncias ANDREWS,GeorgeReid.NegrosebrancosemSoPaulo(1888-1988).Trad. Magda Lopes. Bauru/SP: Edusc, 1998. BAKHTIN,Mikhail.AculturapopularnaIdadeMdiaenoRenascimento:o contextodeFranoisRabelais.Trad.YaraFrateschiVieira.SoPaulo: Hucitec/UnB, 1987. BASTIDE,Roger.AimprensanegradoestadodeSoPaulo.EstudosAfro-Brasileiros. So Paulo/Perspectiva, p. 129-156, 1973. BRITTO, Ieda Marques. Samba na cidade de So Paulo (1900-1930): um exerccio de resistncia cultural. So Paulo: FFLCH/USP, 1986. CUNHA,MariaClementinaPereira.Ecosdafolia:umahistriasocialdo carnaval carioca entre 1880 e 1920. So Paulo: Companhia das Letras, 2001.FERRARA,MiriamN.Aimprensanegrapaulista(1915-1963).SoPaulo: FFLCH/USP, 1986. MOYA, Fernanda Nunes. ADiscotecaPblicaMunicipaldeSoPaulo: um projeto modernista para a msica nacional. So Paulo: Cultura Acadmica, 2011. MORAES,JosGeraldoVincide.Metrpoleemsinfonia.Histria,culturae msica popular na So Paulo dos anos 30. So Paulo: Estao Liberdade, 2000. Silva Dilogos (Maring. Online), v. 16, supl. Espec., p. 37-68, dez./2012. 68 POLLAK, Michael. Memria, Esquecimento, Silncio. Estudos Histricos. Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989. QUEIROZ,MariaIsauraPereira.Aordemcarnavalesca.TempoSocial.So Paulo, v. 6, n. 1-2, p. 25-45, 1995. SILVA, Alberto Alves; BRAIA, Ana. MemriasdoSeuNendaVilaMatilde. So Paulo: Lemos Editorial, 2000. SILVA,ZliaLopesda.OscarnavaisderuaedosclubesdacidadedeSoPaulo: metamorfoses de uma festa (1923-1938). So Paulo: Edunesp: Londrina: Eduel, 2008. SIMSON,OlgaRodriguesMoraes.Von.Brancosenegrosnocarnavalpopular paulistano.1914-1988.1989,2451f.Tese(DoutoradoemCinciasSociais)- Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras, USP, So Paulo, 1989. SIMSON,OlgaRodriguesdeMoraes.Carnavalempretoebranco.Carnaval popularpaulistano(1914-1988).SoPaulo:Editorada Unicamp/Edusp/Imprensa Oficial, 2007. SIQUEIRA,Uassyr.Clubesrecreativos.Organizaoparaolazer.In: AZEVEDO, Elciene et al. Trabalhadores na cidade. Cotidiano e cultura no Rio de janeiroeemSoPaulo,sculosXIXeXX.Campinas:EditoradaUnicamp, 2009. p. 271-311. THOMPSON, E. P. Costumesemcomum. Trad. Rosaura Eichemberg. So Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Recommended