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DA LITERATURA ÀS REDES DIGITAIS: NARRATIVAS E CONFISSÕES DO EU EM CIBERRAIZES
OLIVEIRA,Ocinei Trindade1, MARTINS,Analice Oiveira2
Foz do Iguaçu PR: UNIOESTE, 8 a 11 de dezembro de 2015, ISSN 2316-266X, n.4
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DA LITERATURA ÀS REDES DIGITAIS: NARRATIVAS E
CONFISSÕES DO EU EM CIBERRAÍZES
TRINDADE DE OLIVEIRA, Ocinei
Estudante de Mestrando no Programa de Cognição e Linguagem (PGCL) da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF)
ocinei@gmail.com
DE OLIVEIRA MARTINS, Analice
Doutora em Estudos de Literatura (PUC-RJ), Professora colaboradora do Programa de
Pós-Graduação em Cognição e Linguagem da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF)
analice.martins@terra.com.br
RESUMO Este ensaio reflete sobre narrativas confessionais, biográficas, autobiográficas e fictícias na literatura e
na web que despertam interesse de público em tempos de “reality shows”. A partir de Phillipe Lejeune,
Denise Schittine, Walter Benjamin e Paula Sibília, observam-se algumas possibilidades de “escritas do eu e ficções de autoria” que se manifestam desde o texto oral e impresso ao texto virtual incessante na
Internet. O rizoma “livro-raiz”, exemplificado por Gilles Deleuze e Félix Guattari para conceituar
ramificações de palavras, fonte de informações, ideias e hipertextos, inspirou o termo “ciberraiz”. Em rede, textos se espalham velozes e desnorteados, independentemente de serem verdadeiros, falsos ou
ficcionalizados por seus autores. Escritores de livros respondem sobre prováveis transferências e
disfarces de si em suas obras
Palavras-chave: autobiografia, ficções do eu, ciberraiz
ABSTRACT:
This essay reflects about confessional, biographical, autobiographical and fictional narratives in
literature and web literature, when arouse public interest in times of "reality shows". From Phillipe Lejeune, Denise Schittine, Walter Benjamin and Paula Sibilia, we can observe some possibilities of
"writings by self and fictions authored" from the oral and printed text to incessant virtual text on the
Internet. The rhizome "book-root", exemplified by Gilles Deleuze and Felix Guattari to conceptualize ramifications of words, source information, ideas and hypertext, inspired the term "cyber-root". In
networking, texts spread fast and bewildered, regardless if true, false or fictionalized by its authors.
Book writers respond on likely transfers and disguises themselves in his works.
Key-words: autobiography, fictions of self, cyber-root
INTRODUÇÃO
Um dos objetivos desta pesquisa é analisar algumas narrativas confessionais,
biográficas, autobiográficas e fictícias na literatura escrita e na web, em que o “eu-autor” se
destaca em publicações impressas ou em postagens nas redes sociais digitais, seja de modo
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explícito ou sob “disfarces literários”. No início do Século XX, a “cultura do eu” já despertara
muitos interesses na literatura, filosofia, antropologia e em outras ciências. O eu emblemático
segue presente em diversas manifestações artísticas e literárias no Século XXI, assumindo
muitas faces e formas. Surge, então, a possibilidade de contextualizar algumas obras, autores
conhecidos e desconhecidos do grande público, que recorrem ao formato tradicional do livro e
às mídias digitais para exibirem suas vidas e intimidades em histórias reais ou fictícias.
Foram escolhidos para análise alguns escritores que, de algum modo, exercem a ficção
com vestígios de realidade (ou vice-versa) em suas produções. Destacamos, ainda, por meio de
entrevistas e depoimentos, três autores de ficção da cidade fluminense de Campos dos
Goytacazes. Além de livros publicados, estes interagem com seus leitores em sítios eletrônicos,
redes sociais e blogues, eventual ou constantemente a respeito de suas obras. O pacto sobre
prováveis verdades, mentiras e ficção entre autor e leitor não fica de fora. A respeito deste
pacto, contamos com a colaboração do francês Philippe Lejeune. A figura do narrador ou do
contador de histórias é refletida por meio das considerações do pensador e ensaísta alemão
Walter Benjamin. Já a escrita íntima na Internet e a necessidade de revelar intimidades e
extimidades na rede mundial de computadores são temas pesquisados pelas estudiosas
brasileiras Denise Schittine e Paula Sibília.
A pesquisa busca investigar sobre prováveis práticas de ficção de autoria, a influência
do eu na literatura e nas redes sociais digitais em exercícios de escritas. O eu se insere assumido
ou camuflado em ligações ou conexões de escrituras multiplicáveis e divisíveis que passam e
passeiam pela literatura tradicional e pelo ciberespaço. Não há como desconsiderar jamais a
hipertextualidade e intertextualidade quando se escreve, se publica e se lê uma obra,
especialmente em suportes digitais.
Depois que Deleuze e Guattari se apropriaram do conceito do rizoma para se aprofundar
sobre a existência do livro e do texto que se ramificam em reescritas e releituras, o que esperar
de um texto ou narrativa postados e espalhados na Internet? As rotas de fuga aparecem em
situações, lugares e não-lugares mais distintos e surpreendentes. Se é possível, segundo
Deleuze e Guattari, fazer rizoma de tudo, incluindo o livro-mundo ou o livro-raiz, entre outros,
com o advento da conexão em rede, podemos sugerir o rizoma da cibernética/ciberespaço e da
raiz imaginária de uma árvore vital, literária e cheia de conhecimentos que se alastra sem
cronologia, começo, meio e fim definidos: o texto e o eu se potencializam e se atualizam em
ciberraízes.
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I - NARRATIVAS INVENTADAS OU FICTÍCIAS: CÓDIGOS DECIFRÁVEIS
Há de existir um narrador. Para Walter Benjamin, contar histórias sempre foi a arte de
contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são conservadas. Quanto mais o
ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido
(BENJAMIN, 1987, p.205). O ensaísta alemão que cogitou um dia a extinção da figura do
narrador, sinalizava algum pessimismo quanto ao futuro de algumas narrativas já consagradas
até então.
Apesar de tanta informação que nos cerca neste século, em plena era tecnológica de
notícias velozmente descartadas, ainda há alguém em busca de fábulas contadas ou recontadas,
testemunhos ou sagas, seja pela oralidade, pelo livrinho ilustrado, pela encenação teatral, pelo
formato cinematográfico ou teledramatúrgico. Benjamin estava certo quanto ao interesse que é
capaz de despertar um bom narrador e uma boa história. Porém, caberia ainda, ao bom leitor
“sair à caça" do sabedor-narrador de experiências vividas ou inventadas.
Além da literatura, do cinema e da dramaturgia, Benjamin não alcançou em seu curto
tempo de existência, outra fonte informativa que não cessa de alimentar a imaginação e a
imagem em ação: a Internet. Atualmente, escritores, escreventes e digitadores vorazes se
mesclam com artesãos de palavras que tecem, fiam, comungam, comunicam-se, fundem-se.
Com tanta oferta, eleger histórias ou escolher quem contá-las ficou mais simples e fácil. Resta
saber se tantos enredos e narradores são capazes de satisfazer e convencer seus leitores.
Conscientemente ou não, narrador e leitor firmam um tipo de acordo durante a
exposição de textos em deciframentos. Um pacto forjado em moldes inspirados pela sedução
de quem escreve e de quem lê. Sofre-se para alcançar e atingir o cume das revelações, os
penhascos das dúvidas que estão contidas ou descontidas em uma obra. Se o leitor sai em busca
de respostas de identidade para seus anseios em uma determinada narrativa, o desencontro é
uma possibilidade frequente, mas também o contrário. Seriam o livro e outro tipo de suporte
tecnológico uma espécie de esfinge ambulante? Uma busca do eu ou pelo eu se reflete em
muitos personagens reais e fictícios? Leia-me ou te devoro? Leio-te ou me devoro? Benjamin
dá uma pista a respeito dessa relação entre ouvinte e narrador, considerada por ele como
“ingênua”, sobre o que de fato interessa a ambos:
Não se percebeu devidamente até agora que a relação ingênua entre o ouvinte
e o narrador é dominada pelo interesse em conservar o que foi narrado. Para o
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ouvinte imparcial, o importante é assegurar a possibilidade da reprodução. A memória é a mais épica de todas as faculdades. Somente uma memória
abrangente permite à poesia épica, apropriar-se do curso das coisas, por um
lado, e resignar-se, por outro lado, com o desparecimento dessas coisas, com o poder da morte. (BENJAMIN, 1987, p.210)
Entre fábulas e epopéias, atualmente consumimos postagens virtuais, além de
biografias (des)autorizadas e autobiografias, todas, de algum modo, questionáveis em
relevância se devem ser preservadas na memória. Quando a vida do outro é bem mais
interessante que a minha? E quando é possível transformar a própria realidade em algo mais
espetacular ou fascinante, mais glorioso ou comovente, menos banal e menos comum? A
literatura ficional poderia oferecer alguma resposta?
O ensaísta francês Phillipe Lejeune (2008) em O pacto autobiográfico se questiona ao
apresentar o tema logo no início de seu livro, sobre a complexidade de definição quanto ao
gênero autobiografia. Há os que escarafuncham, diários íntimos, biografias e autobiografias
por razões banais ou complexas. O interesse pessoal pode surgir desde a bisbilhotice
corriqueira à necessidade de estudos comportamentais realizados por experts. Quanto à
problemática do gênero, Lejeune afirma que, quando se busca a clareza, correm-se dois riscos:
de um lado, dar a impressão de estar repisando em evidências (já que é preciso retomar tudo a
partir da base), de outro, complicar as coisas estabelecendo diferenças demasiadamente sutis
(LEJEUNE, 2008 p.13).
Por meio de memórias, biografias, romances pessoais, poemas, diários, autorretratos ou
ensaios, gêneros vizinhos da autobiografia, é possível um escritor/narrador apresentar-se ou
disfarçar-se em personagens em um espetáculo literário? Com ou sem sutilezas, com ou sem
complicações, o leitor pode desejar consumir todo o tipo de exibição de intimidades alheias
(sem cortes, de preferência). E a sanha mercadológica comprova tal atitude. No capítulo
intitulado Eu real e os abalos da ficção, a pesquisadora Paula Sibília faz referência às raízes
desse gosto pelo real já no século XIX (SIBILIA, 2008 p.196). Ela considera a Internet um
palco privilegiado para proliferação e midiatização de confissões do eu cada vez mais realistas
ou próximas disto:
“Espetacularizar o eu consiste precisamente nisso: transformar nossas
personalidades e vidas já nem tão) privadas em realidades ficcionalizadas com recursos midiáticos...Com uma frequência inédita,
o eu protagonista — que costuma coincidir com as figuras do autor e do
narrador — se torna uma instância capaz de avalizar o que se mostra e o
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que se diz. A autenticidade e inclusive o valor dessas obras — e, sobretudo, das experiências que elas reportam — apoia-se fortemente
na biografia do autor-narrador-personagem. Em vez da imaginação, da
inspiração, da perícia ou da experimentação que nutriam as peças de ficção mais tradicionais, nestes casos é a trajetória vital de quem fala —
e em nome de quem se fala — que constitui a figura do autor e o
legitima como tal. Tanto essas vivências pessoais como a própria personalidade do eu autoral, porém, também são ficionalizadas com a
ajuda da aparelhagem midiática. (SIBÍLIA, 2008, p.197, p.198)
O "tudo" quando não cabe na rotina diária ou pessoal, pode-se construí-lo e escrevê-lo
dentro daquilo sugerido como ficcional. Quando a vida não bastar (assim de um modo
gullariano), a arte de reinventá-la poderá ser uma saída, escape e salvação para quem escreve e
para quem lê. A exibição e a inibição dos “eus” por meio de escritos e escrituras, anotações e
rabiscos podem tornar o espetáculo mais caloroso. Para cada eu existirá um tu ou todos nós?
De acordo com a pesquisadora Denise Schittine, a escrita íntima na Internet está associada a
uma tentativa de alimentar e preservar a memória de si mesmo. (SCHITTINE, 2004, p.21):
(...) O escrito íntimo vai garantir também a memória do diarista sobre sua
trajetória, os fatos que aconteceram na sua vida e as ideias que desenvolveu em uma determinada época. Ele dará o apoio para que, pelo menos através da
escrita, o autor se sinta próximo da imortalidade (daí a importância da ficção
de Borges, em particular do conto “O Imortal”, como um parâmetro para entender por que uma das vias para a imortalidade do homem se faz através
da escrita). (SCHITTINE, 2004, p.21,p.22).
Quando a “vida íntima ou vida alheia” ganha relatos escritos impressos ou virtuais,
afirmar sobre conteúdos reais ou autoficcionais não é tarefa simples. Antes de publicar o livro
Uma vida inventada: memórias trocadas e outras histórias, a atriz e escritora Maitê Proença
foi surpreendida em um programa de televisão transmitido ao vivo, por revelações de sua vida
privada. Tragédias pessoais vieram a público sem o conhecimento e o consentimento prévios
da famosa atriz brasileira. Sua mãe foi assassinada pelo marido em circunstâncias que
envolveram ciúme e adultério. O pai de Maitê cumpriu pena de prisão e, depois de algum
tempo, suicidou-se. Anos depois dessa revelação em rede nacional, as intimidades dolorosas
foram romanceadas e transformadas em confissões literárias.
O livro de Maitê Proença foi classificado como romance, mas reúne características
típicas de uma autobiografia como as apontadas por Phillipe Lejeune: traços de perspectiva e
retrospectiva, a vida individual, gênese da personalidade, sem desmerecer a crônica social e
política durante a narrativa. Em quase toda a narrativa, é usada a primeira pessoa para contar
memórias mescladas com outras tramas. Não se sabe até ao certo onde estão verdades ou
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ficções de seus eus. Maitê Proença conta duas histórias ao mesmo, ora revelando, ora
confundindo, ora despistando. Oferece ao leitor oportunidade para que este chegue às suas
próprias conclusões. Lejeune afirma que para existir uma autobiografia com teor de literatura
íntima, é preciso que haja relação de identidade entre o autor, o narrador e o personagem.
Apesar de tais semelhanças na obra de Maitê, preferiu-se intencionalmente, é provável, adotar
o estilo de romance pessoal a fim de conservar, quem sabe, um pouco mais do que sobrou da
intimidade e da subjetividade da autora. O pacto autobiográfico pode ter sido quebrado por ela,
quem sabe, ao decidir escrever parte de suas memórias sem o "tudo ou nada" condicionados
por Lejeune para definir uma autobiografia:
"Mas fui tomando prazer no negócio, e hoje, agradecida ao destino que me
colocou aqui, reconheço que foi a atriz que me salvou de uma vida na aridez
sentimental. Como tinha a desculpa da personagem, podia sofrer, sentir saudade, euforia, inveja, dor, porque não era eu, mas ela quem se permitia
essas bobagens. E, assim enganando-me, deixei de ser uma pessoa assustada
e defendida, para aprender que não se morre de intensidade. Morre-se, ao contrário, pelo embrutecimento" (PROENÇA, 2008, p.13)
Se a autora Maitê Proença romanceou sua autobiografia, se construiu uma narrativa
ficcional, o mesmo ocorreria entre não famosos que nem sempre separam realidade da
fantasia? Para Paula Sibília, "é sempre frágil o estatuto do eu" (SIBÍLIA, 2008, p.31). Ela
considera ainda a complexidade da entidade do eu entre nós e sua vacilação peculiar quando o
narrador se propõe relatar a vida em texto autobiográfico. O caos e a multiplicidade da
experiência individual aliada à necessidade do outro, e ainda, de uma alteridade indispensável
aos que convivem, reforçam a ideia de um eu ficcionalizado de modo especial ou bem
subjetivo. Aliás, a subjetividade faz do eu e dos eus algo ainda mais complexo, delicado e
desafiador em se tratando de revelações de intimidades de vida, sejam de modo testemunhal,
narrações ou relatos biográficos e autobiográficos. Estamos sempre de alguma forma
procurando pistas e rastros daqueles que estão vivos ou dos que já morreram através de seus
escritos. Gostaríamos de nos refletir neles?
Para Phillipe Lejeune, o "eu" não se concebe sem o "tu". E este "tu-leitor", deve ser a
principal razão para a revelação do "eu-narrador", do "eu-autor", do "eu-personagem", do "eu
-pessoa". Ainda de acordo com Lejeune, a autobiografia como gênero literário carrega a
melhor marca da confusão entre autor e pessoa, confusão esta que atinge o leitor desde o
século XVIII. Quando o autor utiliza seu próprio nome justificando sua existência, seja por
vaidade ou por uma outra razão, haverá a possibilidade de se narrar utilizando outros estilos
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como a poesia, prosa, pseudônimos, heterônimos, ficções, romances, notas. ensaios e afins?
Sim, segundo o próprio Lejeune que recorreu ao Dicionário universal das literaturas, de 1876.
Na publicação, autobiografia é considerada uma obra literária, romance, poema ou tratado
filosófico, cujo autor teve a intenção secreta ou confessa de contar sua vida, expor
pensamentos ou expressar sentimentos. Depois de passados vinte e cinco anos da publicação
de O pacto autobiográfico, Lejeune reflete sobre a releitura de si mesmo, revendo conceitos
sobre a suposta distinção da autobiografia do romance autobiográfico, da ficção e narrativa
produzidas em condições particulares, constatando que, transformar a vida em narrativa é
simplesmente viver. "Somos homens-narrativas", concluiu.
II – OS MUITOS EUS ESPETACULARES
“Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, não há
nada mais simples. Tem só duas datas — a da minha nascença e a da
minha morte. Entre uma e outra todos os dias são meus” (Fernando Pessoa/Alberto Caiero, 1925)
Quando o reverenciado poeta português Fernando Pessoa se transforma em outros
poetas e escritores para refletir sobre o mundo, sobre si, sobre tu, sobre eles, quem de fato
seriam Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caiero e Bernardo Soares, seus
heterônimos conhecidos? Todos são mesmo o homem Fernando Pessoa? Em O eu
profundo e outros eus (PESSOA, 1980), há um conto ou poema dramático chamado O
Marinheiro. A narrativa revela que, durante o velório de uma jovem, três donzelas
desejam que a arrastada noite não demore passar, a fim de quê, o quanto antes, sepultem a
falecida. Para ocupar o tempo, iniciam uma sessão de histórias e memórias. Espantam-se
com o que recordam, com o que não se lembravam mais ou fingiam ter esquecido. De
onde vem as vozes das personagens? Todas elas pertencem ao próprio Fernando Pessoa,
dono de tantos “eus” fingidos, nomes fictícios e identidades imaginárias? "Falemos do
passado - isso deve ser belo, porque é inútil e faz tanta pena... falemos, se quiserdes, de
um passado que não tivéssemos tido. Não. Talvez o tivéssemos tido" (PESSOA, 1980,
p.113). Em O show do eu, Paula Sibília cita o escritor britânico John Keats que ousou
dizer: "o poeta não tem personalidade, e essa é justamente a sua glória" (SIBÍLIA, 2008,
p.227). Houve um tempo em que pouco importava “quem” dizia, mas sim “o que” era
dito. Na contemporaneidade, o “culto ao ego” em redes ciberespaciais ou em pretensas
ciberraizes, assume desejos e posturas cada vez mais destacadas e consumidas.
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Há outros escritores que poderiam ter simulado perfis pessoais ou experiências
íntimas que se tornaram depois obras literárias, romances, poemas, teatros, filmes,
ensaios. Quem pode negar ou afirmar que o piloto de avião em apuros no deserto do
Saara após sofrer uma pane no livro clássico O pequeno príncipe seja o seu autor, o
escritor, piloto e ilustrador francês Antoine de Saint-Exupéry? E o principezinho
protagonista poderia ser sua memória infantil dialogando com o adulto em crise?
Saint-Exupéry morreu em um desastre aéreo em 1944, durante a Segunda Guerra
Mundial em missão inspecionária no Mar Mediterrâneo. O pequeno príncipe (1943)
tornou-se um referência na literatura mundial com reflexões a respeito da vida e de
valores humanos. "Quando a gente quer fazer graça, às vezes mente um pouco"
(SAINT-EXUPÉRY, 2010, p.57). Mentir e ficcionalizar podem não significar a mesma
coisa, provavelmente.
Philippe Leujeune, entre tantos questionamentos sobre autobiografia, argumenta:
"O autor não seria ele próprio um texto?" (LEJEUNE, 2008, p.77). Sabe-se que o célebre
Memórias de Adriano, livro publicado pela primeira vez em 1951, levou quase trinta anos
para ser concluído por sua autora, a francesa Marguerite Yourcenar. A obra recupera
vestígios de manuscritos do próprio imperador romano, além de testemunhos de quem
viveu no período de dezoito séculos atrás. Trata-se de uma pesquisa quase arqueológica
para dar voz a um personagem real da História, com narrativa depurada em primeira
pessoa.
Marguerite Yourcenar revela um Adriano no mais cristalino atributo do
Humanismo antigo. Dramas pessoais, enfermidade, preocupações políticas, intrigas e
traições, as orientações ao seu sucessor, Marco Aurélio, o amor homossexual pelo jovem
Antínoo, as confissões de Adriano interpretadas por Yourcenar podem causar certezas e
dúvidas em se tratando de constituição da memória. No prefácio, a tradutora de Memórias
de Adriano no Brasil, Martha Calderaro, disse que antes de se dedicar à versão do francês
para o português, debruçou-se em dezenas de textos, enciclopédias e documentos a fim de
pesquisar sobre o personagem biografado, para ter certeza de estar sendo fiel à obra da
autora e ao biografado. Para alguns críticos literários à época, Adriano seria a própria
Marguerite Yourcenar, cuja especulação Calderaro discorda. Para esta, a obra transcende
e a História transforma-se em sentimento, alma, amor, paz, vida e morte através da
trajetória de Adriano.
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Que sentido há escrever apenas para nós mesmos? As correspondências, as
escritas íntimas, as memórias, o diário que ganhou versão digital na internet também são
regidos por "um pacto", pois todo texto tem um destinatário. Mesmo que as
correspondências e as mensagens não sejam enviadas ou não cheguem a tempo aos seus
destinatários e interlocutores, escreve-se para ser lido cedo ou tarde. Entre os dias 10 e 20
de novembro de 1919, o autor tcheco Franz Kafka escreveu uma carta de cinquenta
páginas destinada ao seu pai, Hermann Kafka, mas nunca a enviou. O conteúdo da
correspondência se tornou livro em 1985, sessenta e um anos depois da morte do autor.
Carta ao Pai revela intimidades, memórias biográficas, ressentimentos, vingança e uma
espécie de acerto de contas entre um filho humilhado por toda vida pelo pai tirano. O
texto em primeira pessoa exibe um pouco do que o escritor imprimiu em seus livros de
ficção, um emaranhado de contradições, ambivalências e dor. A carta íntima de Kafka
não chegou ao seu pai, mas aos seus leitores ávidos por segredos e confissões em mais
uma publicação sobre o eu espetacularizado.
Se vivos falam e escrevem, os mortos também podem se manifestar de alguma
forma. Gavetas, baús, sótãos e porões de algum escritor famoso ou anônimo podem ser
vasculhados na tentativa de se alcançar a novidade de um texto inédito. Em 1987, foi
anunciada a morte da escritora Marguerite Yourcenar. Ela deixou a obra então inédita e
inacabada, A eternidade o que é?, publicada em 1988; a coletânea de ensaios Peregrina e
estrangeira, publicada em 1989; e um testemunho sobre viagens, A volta da prisão,
publicado em 1991.
Insatisfeitos, admiradores da obra de Yourcenar continuaram a busca em “caçadas
e expedições arqueológicas” atrás de vestígios da escritora. Em 1993, seus leitores
tiveram a chance de trazê-la de "volta à vida" por meio de uma obra que nunca fora
publicada, Conto azul. Este e outros dois textos, A primeira noite e Malefício, foram
escritos entre 1927 e 1930. Apenas Conto azul era inédito, já que os outros dois tinham
sido publicados em jornal e revista de circulação francesa da época. Os três textos
olvidados em fundos de gaveta foram reunidos em Conto Azul e outros contos (1995). A
necessidade de perpetuar e eternizar obras e autores se manifesta entre editores e leitores.
Na literatura, de algum modo, o eu se mostra até postumamente.
III – EUS LITERÁRIOS E CIBERESPACIAIS
DA LITERATURA ÀS REDES DIGITAIS: NARRATIVAS E CONFISSÕES DO EU EM CIBERRAIZES
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O livro Chicletes e Prazer (2010), do autor campista Márcio de Aquino, conta a
história de um adolescente chamado Alex, apaixonado por rock and roll, música popular
brasileira e outros estilos em voga nos anos 1970, durante o governo militar no Brasil. O
protagonista tímido está encantado por uma jovem rebelde filha de um coronel do
exército. A história é narrada em primeira pessoa. Coincidência ou não, os gostos
musicais e o temperamento do personagem se assemelham aos de seu autor. Aquino e
Alex seriam a mesma pessoa? Chicletes e Prazer seria uma autobiografia romanceada ou
um romance com insinuações autobiográficas? Em diversos trechos, o
narrador-personagem (autor?) faz revelações do que pensa e sente:
A transformação repentina em uma imagem que melhor me conviesse
naquele momento, e que não refletisse minhas inseguranças, meus
receios, minhas dúvidas existenciais, e que naquela hora não mostrasse diante do espelho aquela cara de idiota com um enorme esparadrapo
acima do olho, com três pontos costurados, como um Frankenstein
juvenil... o texto me ajudou a enxergar que eu teria que definitivamente seguir meu rumo, distante de qualquer desejo de retomar uma fase de
minha vida, ainda bem próxima, mas para sempre destinada a virar
apenas uma lembrança. (AQUINO, 2010, p..34, p.126 )
Julguemos um pouco mais os eus pessoais e literários. ."Eu em pessoa não, eu em
demônio é mais apropriado. Mas vamos aos fatos" (MOURA, 2013, p.23). Nem Deus,
nem o Diabo escapariam de especulações na montagem teatral em Campos, Rio de
Janeiro, no ano de 2009. A peça O Julgamento de Lúcifer, de Adriano Moura, em 2013
ganhou versão literária, e em 2014, uma remontagem no teatro. A história se conecentra
em um julgamento midiático inspirado em talk shows e reality shows consumidos por
telespectadores mundo afora. O texto é carregado de humor, ironia e crítica aos padrões
sociais, religiosos e históricos. Até que ponto o eu autoral aparece em textos ficcionais?
Na obra de Moura, suas opiniões pessoais ligadas à fé ou à crítica aos veículos de
comunicação estariam em O Julgamento de Lúcifer? Já no prólogo, o autor é
provocativo: "Deus é uma metáfora. O homem, a metonímia", escreve.
O jornalista e escritor Vitor Menezes publicou uma coleção de quarenta textos
divididos entre crônicas e contos em Eu transaria com mortos (2014). Na crônica de
abertura, Oração para São José Cândido, Menezes revela sem rodeios duas afeições. A
primeira, pelo escritor da cidade de Campos mais conhecido nacionalmente, o imortal
José Cândido de Carvalho, e a segunda, pela literatura. Muitos textos narrados em
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primeira pessoa possibilitam especular se prováveis experiências pessoais foram
transformadas em literatura. Um exemplo é o texto Resposta Comercial, onde o escritor
relata uma carta endereçada a uma companhia de aviação: "Não sei se vocês estão
preparados para a notícia que eu vou dar. Ainda assim, embora seja dolorosa, vou ser
direto. O fato é que meu pai morreu. E isso aconteceu em 1989" (MENEZES, 2014,
p.25). Além das publicações realizadas em livros, Menezes, Moura e Aquino também já
escreveram textos em redes sociais ou blogues. Seus perfis e postagens em sítios
eletrônicos de relacionamento auxiliam a traçar impressões quanto aos seus gostos e
interesses pessoais, preferências políticas, estilos de arte e cultura, por exemplo.
Em Blog: comunicação e escrita íntima na internet, a autora Denise Schittine
analisa escritores diaristas que se expõem na web por meio de postagens confessionais.
Ela cita a relação de confiança entre o diarista e o leitor que passaram a se juntar em
"redes de segredos" (SCHITTINE, 2004, p.20). Algo que a escrita tradicional pré-internet
já propunha. Ela reforça a necessidade do autor contar com a ajuda e a lembrança do
Outro para propagar a memória de si mesmo (p.21). "Para enxergar a vida de forma
diferente, o diarista é capaz de tudo, até mesmo de misturá-la com a ficção e fazer de si
mesmo um personagem" (p.16). A espetacularização de intimidades combina com
literatura? Para saber o que pensam os ficcionistas a respeito de intimidades, biografia,
autobiografias e relacionamento virtual com leitores, elaborei dez perguntas aos autores
de Chicletes e Prazer, O julgamento de Lúcifer e Eu transaria com mortos. Foram
realizados os seguintes questionamentos:
I. Quando escreve ficção, o que tem de real ou baseado em fatos reais em tua
obra?
II. Como autor, é possível afirmar se esconder ou se revelar por meio da obra?
III. No caso de Chicletes e Prazer, O julgamento de Lúcifer, Eu transaria com
mortos há algum personagem que seja o autor/narrador em disfarce?
IV. Com o (s) livro (s) que já publicou, seria possível um leitor traçar um perfil
biográfico ou característico do autor?
V. A tua obra de ficção serve para revelar alguma intimidade que não
revelaria de outra maneira?
VI. O leitor de seus livros se difere do leitor de seu blog ou postagens nas redes
sociais?
DA LITERATURA ÀS REDES DIGITAIS: NARRATIVAS E CONFISSÕES DO EU EM CIBERRAIZES
OLIVEIRA,Ocinei Trindade1, MARTINS,Analice Oiveira2
Foz do Iguaçu PR: UNIOESTE, 8 a 11 de dezembro de 2015, ISSN 2316-266X, n.4
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VII. Qual a importância do comentário de algum leitor quanto a livros, blogs ou
posts?
VIII. Você lê biografias? Gosta? Por quê?
IX. Gostaria de ser biografado?
X. De modo geral, o que caberia ou o que não caberia em sua suposta
biografia se publicada?
As perguntas e respostas foram enviadas aos entrevistados por meio de chats do
Facebook e por correio eletrônico. As entrevistas foram publicadas no blog pessoal
Ocinei Trindade Escreve, e receberam o título de postagem “Três escritores, intimidades
e autobiografia: ficções do eu”. O escritor Adriano Moura relata:
Toda ficção nasce da realidade, seja ela objetiva ou subjetiva. A criação não está na elaboração dos fatos, pois eles pré-existem à preparação da
obra. A criação está na transformação da realidade em ficção. Posso
transformar um acidente de trânsito numa comédia surrealista, por exemplo. O autor é agente de um certo tipo de discurso contaminado
por sua história de vida e visão de mundo. Mas o que aparece na obra é
um simulacro. A obra não esconde nem revela o autor. A obra é um ser independente de quem a escreveu. Depois de publicada só pertence ao
autor por vias legais (direitos autorais). A obra revelará ou esconderá o
autor assim como revelará ou esconderá o leitor, co-autor do que lê. Toda escrita é “autobiográfica” no sentido de apresentar as marcas
discursivas de seu autor, não a vida dele. Prefiro “simulacro” a disfarce.
Ficção é fingimento, não disfarce. Disfarce é mascaramento, mentira. Ficção não é mentira, finge-se por hora ser o que não é, sentir o que não
sente, enxergar o que não vê. Mas o autor está ali o tempo todo. O
personagem é criado para dizer e viver coisas que o autor não viveria nem diria. Por isso não é o autor disfarçado. É o autor desdobrado, é o
duplo do autor fingindo, não mentindo, mas fingindo tão bem que
parece o autor real, apenas em disfarce. É possível saber como vejo e entendo o mundo, não minha biografia. A ficção existe justamente para
criar um mundo paralelo por meio da linguagem. Mesmo os autores que escrevem autobiografias fingem o tempo todo. Não confie em
nenhuma delas. Em todas há apenas simulacros. Ninguém se revela
totalmente. É muito perigoso. A ficção, mesmo disfarçada de autobiografia é sempre mais segura. Não revelo minha intimidade na
ficção, pois escrevo para leitores e a eles minha vida íntima não
interessa. Pode acontecer de coisas que vivi intimamente servirem de material para composição de algum personagem. Mas já não serei eu
mais, e sim ele. Apenas com finalidade acadêmica. A vida “real” do
outro me entendia, pois não me interessa, mesma que sido figura de grandes feitos. Biografia como todo texto escrito é ficção disfarçada, e
por não se assumir como tal fica no meio do caminho na maioria das
vezes. Prefiro a autobiografia que está bem próxima do ficcional. Não. Não há nada em minha vida que valha uma biografia: não perdi uma
perna como Roberto Carlos, não fui (ainda pelo menos) ao fundo do
poço como Garrincha, não sou genial como Nelson Rodrigues, não tive
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câncer como Gianechini. Se é para biografar que conte tudo. Não tem essa de “pode isso, mas não pode aquilo”. Biografia não pode ser
hipócrita. Ou conta tudo ou não conta nada (MOURA, 30.set.2014).
O escritor e jornalista Vitor Menezes discorreu sobre produções de escritas
biográficas, autobiográficas, e como a ficção se manifesta em suas obras:
Há muito (de pessoal ou real em sua obra), mas sempre como ponto de
partida ou aspecto acessório em uma narrativa completamente ficcional. Pode ser uma sensação, uma atmosfera, uma característica de
um personagem, uma situação, tudo isso pode ter sido captado no dito
mundo real (seja lá o que isso signifique), mas depois de incorporado à história ganha um destino inteiramente na ficção. É como se a
imaginação tomasse emprestado da realidade alguns elementos, mas ela
continuasse senhora da condução da história. Eu sei que acontece, mas não me preocupo com isso. Tenho que destravar os dedos quando
escrevo, sem me preocupar se estou me expondo ou não. O que desejo é
que o resultado tenha vida literária própria, independentemente de ter ou não relação com a minha existência real. Em alguns momentos até
sim, uma vez que há coincidência entre as visões de mundo da voz que
narra com a do autor, especialmente na parte das crônicas, quando o autor, pela própria natureza do gênero, se coloca mais mesmo. Nos
contos, a autonomia do universo diegético é maior, e então creio que o
descolamento do autor também pode ser maior. Difícil responder. Publiquei bem pouco. Embora "Eu transaria com mortos" seja o meu
terceiro livro, ele é o primeiro inteiramente de ficção e inteiramente de
minha completa autoria. O primeiro foi uma organização minha e de Jorge Rocha com vários autores ("Contos da Terra Plana") e o segundo
teve mais caráter jornalístico, com artigos meus publicados em vários
veículos ("Daqui desse Lugar"). Talvez fosse possível sim extrair algum perfil dessas obras, mas creio que não seria muito revelador. Não
a uso para isso, com essa intenção de revelar. O que de eventualmente
íntimo pode haver está dentro do mesmo espírito de captar qualquer aspecto da realidade para alimentar a imaginação. Não é para fazer o
leitor brincar de descobrir meus segredos. Para mim, o ideal é que ele
nem pense nisso, e que a história flua sem que ele se lembre quem é o autor. Me interesso muito por jornalismo literário, e a biografia é um
tipo de jornalismo literário. Não tenho predileção específica por elas,
mas as leio com alguma frequencia. Recentemente, li duas do cineasta Billy Wilder, para uma pesquisa sobre jornalistas no cinema. E alguns
dos livros que me impactaram bastante são biografias, como a de Che
Guevara, de Jon Lee Anderson, e a de Assis Chateubriand, do Fernando Morais. Nunca pensei nisso! Minha vida não é tão interessante assim
(ser biografado). Se algum dia ela fosse existir, gostaria que fosse não
autorizada. Não gostaria de ter que aprová-la. Acho que nem gostaria de lê-la. (MENEZES, 30.set.2014).
O autor Márcio de Aquino considerou:
Muitos fatos reais são contados em meu livro, porém às vezes
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modificados pela ficção, para dar mais sabor. Sim, dependendo da proposta da obra o autor pode se revelar em muitos aspectos, trazendo
dados autobiográficos, ou colocar ideias totalmente antagônicas às
suas. Como livro é narrado em primeira pessoa, o personagem principal (Alex) traz muitas características pessoais, embora a obra não seja
autobiográfica. No livro alguns aspectos pessoais são mostrados através
do personagem narrador, como gostos pessoais, visão política, opiniões, etc. As questões mais íntimas do personagem principal são
meramente ficcionais, portanto não existe nenhum aspecto revelador.
Leio muitas biografias. É o gênero literário que mais tenho consumido ultimamente. Gosto de conhecer aspectos da vida de personalidades
biografadas. Não gostaria de ser biografado, não porque tenha algo a
esconder, mas simplesmente porque não me sentiria bem em ver minha vida pessoal exposta. Além do mais, não considero que minha vida seja
tão interessante a ponto de interessar a um público que consome
biografias. O que caberia ser publicado seriam aspectos pessoais, formação cultural, vivências, pessoas com as quais me relacionei e
foram importantes em minha vida, as coisas que criei, etc. O que não
caberia seriam aspectos pessoais mais íntimos, fatos que não teriam relevância em ser expostos. Como falei na resposta anterior, de uma
forma geral não me agradaria ver minha vida exposta. (DE AQUINO,
1.out.,2014)
Para o escritor Adriano Moura, blogues e redes sociais servem mais como
divulgação do que meio de circulação de textos. O que falam sobre seus escritos lhe
interessa como autor. Para Vitor Menezes, os leitores de seus livros e de suas postagens se
distinguem. “Em blogue e redes sociais, a relação com o leitor é mais superficial. Já quem
comenta um livro meu se comporta de modo quase confidente”, diz. Já Márcio de
Aquino, acredita que seus seguidores nas redes sociais são leitores em potencial de seu
livro, sem diferenciação de público. Críticas e elogios sobre sua obra são bem-vindos.
De acordo com Paula Sibília, o autor de Em busca do tempo perdido, Marcel
Proust, afirmara que de nada serve conhecer a biografia do escritor para compreender os
sentidos de sua obra literária. “Por isso, forçar as conexões entre o eu narrador e o eu
autor seria uma banalidade sem sentido algum, já que os personagens de toda obra
literparia são inventados” (SIBÍLIA, 2008, p.226). Será que Proust diria o mesmo se
vivesse em plena era tecnológica que agrega a literatura virtual?
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa ainda pretende ser concluída, pois há outros questionamentos sobre
a prática das escritas confessionais reveladas por autores, romancistas e internautas a
serem feitos, além da necessidade de maior aprofundamento teórico e histórico a respeito
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do eu na literatura, e sua utilização em textos virtuais. Há que se aprimorar ainda o
suposto conceito rizomático de ciberraiz e seus efeitos na leitura e na escrita em rede e em
publicações impressas de ficção, autoficção, biografia e autobiografia. Contar ao mundo
sobre si mesmo ainda parece estimulante, assim como ler e narrar boas histórias parecem
causar algum impacto nesta época.
No livro Grandes vidas, grandes obras (1980) há sessenta e duas breves
biografias de personalidades marcantes da História. O biógrafoThomas Carlyle diz que
"nenhum grande homem vive em vão. A história da Humanidade não é mais do que a
biografia dos grandes Homens". Constata-se que, ao narrar sobre si e também sobre os
outros, isto auxiliaria na tentativa de preservar parte da vida e da memória, sem desprezar
selfs e posts em experiências e experimentações de tantos eus. Viver é narrativa.
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história
da cultura. 3.ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
DE AQUINO, Márcio. Chicletes e Prazer. Campos dos Goytacazes: Edição FCJOL,
2010.
DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. Mil Platôs, Volume I. São Paulo: Ed.34, 1995
KAFKA, Franz. Carta ao pai. Belo Horizonte: Boa Viagem, 2010.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Belo Horizonte:
UFMG, 2008.
MENEZES, Vítor. Eu transaria com mortos. Rio de Janeiro: E-papers, 2014.
MOURA, Adriano. O julgamento de Lúcfer. São Paulo: Novo Século, 2013.
PESSOA, Fernando. O eu profundo e os outros eus. São Paulo: Nova Fronteira, 1980.
PROENÇA, Maitê. Uma vida inventada: memórias trocadas e outras histórias. Rio de
Janeiro: Agir, 2008
SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. O pequeno príncipe. Rio de Janeiro: PocketOuro, 2008.
SCHITTINE, Denise. Blog: comunicação e escrita íntima na internet. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2004.
SELEÇÕES / READER´S DIGEST. Grandes vidas, grandes obras. Lisboa:
Ambar-Porto, 1980.
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SIBÍLIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2008
TRINDADE DE OLIVEIRA, Ocinei. Três escritores, intimidades e autobiografia:
ficções de autoria. Em: Ocinei Trindade Escreve, disponível em
<http://ocineitrindade.blogspot.com.br/2014/10/tres-escritores-intimidades-e.html>,
acessado em 7 de outubro de 2014
YOURCENAR, Marguerite. Conto azul e outros contos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1995; Memórias de Adriano. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
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