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Narrativas da cidade: uma aproximação entre memória coletiva, cidade e literatura. City Narratives: an approach between collective memory, city and literature Rodrigo Vitorino Assumpção 1 , Aluno Bolsista CAPES do Doutorado Puc Campinas, [email protected]. Jane Victal Ferreira 2 , Professora Doutora do Programa de Pós Graduação Doutorado Puc Campinas, janevictal@puc- campinas.edu.br. 1 Rodrigo Vitorino Assumpção é Professor Mestre em História do Urbanismo. Leciona na Universidade Cidade de São Paulo Unicid, Fiam Faam Centro Universitário e Universidade Guarulhos UnG. 2 Jane Victal Ferreira é Professsora Doutora em História do Urbanismo. Leciona na Puc Campinas nos cursos de graduação e stricto senso da mesma universidade.

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Narrativasdacidade:umaaproximaçãoentrememóriacoletiva,cidadeeliteratura.

CityNarratives:anapproachbetweencollectivememory,cityandliterature

RodrigoVitorinoAssumpção1,AlunoBolsistaCAPESdoDoutoradoPucCampinas,[email protected].

JaneVictalFerreira2,ProfessoraDoutoradoProgramadePósGraduaçãoDoutoradoPucCampinas,[email protected].

1RodrigoVitorinoAssumpçãoéProfessorMestreemHistóriadoUrbanismo.LecionanaUniversidadeCidadedeSãoPauloUnicid,FiamFaamCentroUniversitárioeUniversidadeGuarulhosUnG.2JaneVictalFerreiraéProfesssoraDoutoraemHistóriadoUrbanismo.LecionanaPucCampinasnoscursosdegraduaçãoestrictosensodamesmauniversidade.

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RESUMO

EsseartigoelaboraumareflexãosobreamemóriacoletivaeaformaçãodasidentidadesurbanasnacidadedeSãoPaulo,utilizandoaobraliteráriadeAlcântaraMachadocomofonteprimáriadepesquisa.Paratanto,dividimos o trabalho em duas partes. Em primeiro lugar apresentaremos uma discussão sobre narrativasliterárias e narrativas urbanas, conforme aspectos tratados em obras de Paul Ricouer,Walter Benjamin eBernardoSecchi.PosteriormentefaremosumareflexãosobreamemóriacoletivadeMauricieHalbwachseoresgatedasnarrativasapresentadasnaobradeAlcântaraMachadoparaoestudodacidadedeSãoPaulo.

PalavrasChave:MemóriaColetiva,Cidade,Literatura.

ABSTRACT/RESUMEN

ThisarticlepresentsareflectiononthecollectivememoryandtheformationofurbanidentitiesinthecityofSãoPaulo,usingthe literaryworkofAlcântaraMachadoasaprimarysourceresearch.Forthat,wedividedthework into twoparts. Firstwepresent adiscussionof literarynarratives andurbannarratives as issuesdiscussedintheworksofPaulRicoeur,WalterBenjaminandBernardoSecchi.Thenwewillmakeareflectionon the collectivememory ofMauriceHalbwachs and the redemption of narratives treated in thework ofAlcântaraMachadoforthestudyofthecityofSãoPaulo.

Keywords/PalabrasClave:ColectiveMemory,City,Literature

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INTRODUÇÃO

Acidadecomosedimentaçãodesignosaolongodotempoeespaçoconstituioregistroindelévelnoterritório,conformesugereBernardoSecchi (2006).Oespaçourbanoéoresultadodiretodaaçãodohomem,sejapormeiode leisqueordenamosusosdacidade,ouporumaconstituiçãoarquitetônicamaisinformaldetécnicasvernáculas,quemoldamamorfologiaurbana.Osregistrospodem ser associados como parte de um todo ou em pequenos fragmentos, que auxiliam nainterpretaçãodeumdeterminadofatomarcanteparaaHistóriaUrbanadaquelelocal.Nessecaso,essesregistros-pautadospordocumentosoficiais - reconstroemuma“HistóriaOficial”,ouseja,uma historiografia associada aos fatos que produzemuma identidade nacional, ou regional. Nocaso da cidade de São Paulo, muitos desses documentos são encontrados na AssembléiaLegislativaouemarquivoshistóricospúblicos.

Sãodocumentosque,porpossuíremumcaráterpolíticoesocialsignificativoparaacompreensãodaHistóriaUrbana,muitasvezessesobrepõemaoutrosregistrosque,aprincípio,podemparecerdemenorvalorhistórico.Entretanto,quandoesses registros sãoobservadosmaisatentamente,elesapresentamfatosqueosdocumentosoficiaisnãoconseguemtransparecer.Issonãosignificaque,naessênciadofato, temosduasoumaisHistóriasconflitantessobreamesmacidade,nemtão pouco há uma importância maior entre elas. Na realidade são metodologias narrativasdistintas e por consequência possuem fontes de pesquisa distintas, bem como resultados eanálises distintos. Nesta dualidade epistemológica destacamos duas análises pertinentes aotrabalhodohistoriador:amemóriacoletivaeamemória individual,ambasdescritasnaobradeMauriceHalbwachs.

A História enquanto ciência é, na sua essência, uma narrativa.Mas o que nos interessa, nesseartigo,éumareflexãosobrehistóriasdocotidianopaulistadoiníciodoséculoXX.Nessesentido,encontramos na obra de Antônio AlcântaraMachado ummeio de resgate damemória coletivarelativaà formaçãodosbairrosoperáriosdeSãoPaulo:Brás,BexigaeBarraFunda.A leituradoespaçourbanoeaconstruçãodasnarrativasfazempartedaformaçãodasIdentidadesUrbanas.Aculturaqueemergenasruasestabelecerelaçõesdiretasentreotempoeoespaço,assimcomoasrelaçõesentrememóriaelugarsãoconstituídaspordiversosfatoressociais,políticos,econômicose culturais. A literatura se encarrega de estabelecer uma outra narrativa, onde reafirma aconsciênciadeidentidadeememóriacoletivaapresentadosporgrupossociaisqueconstituíramacidade. Diferentemente do historiador das cidades, que baseia sua narrativa nos documentoshistóricos,oudocronistahistóricoqueconstróisuanarrativaapartirdatopologiadasruasedoshomensefatosimportantesqueconstituiramacidade3,aobradeAlcantaraMachadoapresentasua narrativa por meio das vivencia do espaço urbano de um grupo social de imigrantes queocupamumanovaporçãoterritorialeconcebemnovosbairrosnacidade.Avidacotidianadessesimigrantessãonarrativasurbanas,quetrabalhamemumplano individual,aomesmotempoemque abrangem o aspecto coletivo da sociedade, possibilitando a constante elaboração da suaidentidadelocal.

Nesse trabalho exploramos justamente a importância da literatura para uma rafiticação daidentidadeurbana.Anarrativaliteráriaseentrelaçaànarrativadaprópriacidadeafimdesalientarasquestõesdememóriacoletivae identidades.Paratanto,abordamosnesseartigoasquestões

3UmexemplodehistoriadordecidadesquepodemosdestacaréBeneditoLimadeToledocomseu livroSãoPaulo:trêscidadesemumséculo;enquantoumcrostistahistóricoquemereceatençãoéPauloCursinodeMouracomaobraSãoPaulodeoutrora:evocaçõesdametrópole.

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sobre narrativas e posteriormente a narrativa literária de Antônio Alcantara Machado comométodoparadiscussãosobreaidentidadeurbana.

ASNARRATIVASEAEXPERIÊNCIA

ParaBenjamin a arte denarrar um fato está emvias de extinção, pois poucos são aqueles quesabem fazê-lo devidamente (Benjamim,1987). A narrativa está vinculada diretamente com aexperiência vivida, isto é, com o conhecimento vivenciado em sua plenitude, e para o autor,vivemos emum tempo semexperiência. Essa afirmaçãodeBenjamindecorre do conhecimentosobreaessênciadanarrativaquetemcomofunçãotransmitirumamensagem,codificadaatravésda linguagem e compreensível a um determinado grupo cultural. Coloca-se como uma ligaçãocomunicativa entre um sujeito emissor e um sujeito receptor. Entretanto, diferentemente dainformação,anarrativapossibilitadiversasinterpretaçõesdofatonarrado.Étambémumarelaçãoentreohomem,o tempoeas imagens,namedidaemqueaquelequeemiteamensagem - talqualoquerecebe-criadiversas imagensemtemposdistintos.Aoseestabeleceranarrativadeumfato-sejaaquelequeemiteouorecebe-criaimagensdistintasdoeventonarrado.

Ricouer (1994) aponta que o mundo apresentado pela obra narrativa é sempre um mundotemporal,eressaltaqueotempotorna-setempohumanovistoquesearticulademodonarrativo,assim como a narrativa esboça traços da experiência temporal. O tempo humano é oposto aotempo cronológico na medida em que o primeiro carrega na sua essência o tempo comoexperiência de vida, enquanto o segundo é um passar do tempo sem relação direta com aexperiência.Anarrativapossui apremissade transmitir a experiência vividae, portanto, éumaqualificaçãodaexistênciatemporaloque,paraaRicouer,remeteadiscussãosobreotempocomo“ruminaçãoinconclusiva”eréplicadaatividadenarrativa.

Diferentemente da construção da poesia, onde a sublimação da palavra tem a função derepresentaro instantedo tempo, tornando-o instantepoético,anarrativaseconstróino tempoexistencialdonarrador,quesófindacomasuaausência.Portanto,háumcampohomogêneodotempoentrenarradore fatonarrado,ondeo tempodonarradoré simultâneoao fatonarrado,sendoqueumcomplementaooutro.Assim,oprópriofatonarradoépartedonarrador,ouseja,éasuarepresentatividadenaexperiênciaexistencial.

AcríticasobreotemposemexperiênciaemBenjaminéretomadaporOlgáriaMatos4.Emambososautoresodeclíniodeexperiênciaprovémdosurgimentodacidadeindustrial,quandoocorreasubstituiçãodosmodosdeserdohomemtradicional–àquelesvinculadosasatividadesdaterra–poraquelesdohomemmoderno.AsnarrativasdeBenjaminacontecemnapassagemdacidadetradicional para a industrial europeia, semelhantemente a obra de Alcântara Machado que éescrita no início da industrialização paulista. Nestes dois contextos, a cidade se transforma,tornando-semetrópole,masnaobraliteráriaoautorexpõeaformaçãodasidentidadesurbanasdos bairros paulistas, pautada pela relação com a memória coletiva do grupo de imigrantesitalianos.

Anarrativapresentificaopassadocomimagensanteriormentevividaseassimcoloca-senocampoda memória. Para Ricouer, a narrativa implica em memória enquanto o futuro é uma esperacontidanopresenteporcoisasqueestãoporvir(Ricouer,1994).

4VertambémvídeodaCPFLsobreoassunto.

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Aesperaéassimanálogaàmemória.Consistenumaimagemquejáexistenosentido que precede o evento que ainda não é(...);mas essa imagemnão éumaimpressãodeixadapelascoisaspassadas,masumsinaleumacausadascoisas futuras que assim são antecipadas, pre-percebidas, anunciadas,preditas,proclamadasantecipadamente(...)(Ricouer,1994)

Aesperadofuturoéosilencio,apausanotemponarrativo.Étambémoinstantequeinauguraofuturo, mas que faz da memória um fator recorrente na espera. Só é possível medir o tempoquandonopassadoouno futuro,enquantoopresenteé incomensurávele indivisível.Masseépossível mensurar a passagem do tempo, é certo que o tempo possui um espaço, isto é, umamedida do tempo. Isso porque Ricouer considera o “passar do tempo” no sentido de transitar(transitare),oquesuscitaumaquaseespacialidade,masasrelaçõesentreintervalosdetemposãotambémespaçosdetempo5(Ricouer,1994).Oinstantedesuspensãoéaprópriaapresentaçãodotempo presente. A síntese do tempo está contida no fato narrado. É ela que contrai diversosacontecimentos ocorridos anterior e posteriormente à narrativa, como causas, efeitos ouconsequências subentendidas a ela. É nesse sentido que dois objetos do nosso estudo seapresentamesecorrelacionamdeformamaisclara:aliteraturaeacidade.

Pensamos a cidade de São Paulo na dualidade de ser narrada por um literato onde seuspersonagensvivenciamosfatoseotemponarrados;eoespaçourbanocriadopelosurbanistas.Ofatonarradopelaliteraturaétambémumdocumento,umregistroqueoliteratoexplora,afimdeapresentar um tempo vivido. Esse tempo vivido e explorado como registro histórico só seconstituiunacontemporaneidadedoliterato,poiselepercebe,pormeiodossentidos,oespaçoeapassagemdotempo,portantoestaexperiênciasensívelépassíveldeumaanálisehistórica.

Da mesma forma, a cidade é a síntese de tempos, tanto do passado, com seus traços sócioculturais, representados por patrimônios – como expectativa 6 do futuro - apresentado porpossíveis planos urbanísticos, visando à constituição urbana futura. Esses traços são elementosvisíveisemqualquersociedade,eseapresentamnaprópriacidadeatravésdosespaçosurbanosedaarquitetura.Ostraçossociaiseculturaisdacidadepodemsercompreendidoscomovestígioseoufragmentos.Nessesentidoliteraturaecidadesãoacúmulosdeconhecimento,depositáriosdosaber cultural e possuem o caráter de transmissão de experiências vividas se partirmos doprincípiodequeambossãoartefatoshumanosconstruídoseinterpretadosemtemposeespaçosdistintos.

Porsuavez,acidadeéoresultadodotrabalhocoletivoemdiferentes instancias,osquaisserãovivenciadospelasociedadecomoumtodo.Produzircidadesé tambémoofíciodourbanista,namedidaemqueelecriaespaçosurbano.Otrabalhocoletivodasociedade,bemcomodourbanistatêmcomoresultadofinalaconstituiçãodapaisagem.Alémdeserfisicamenteproduzida,acidadeéumconjuntodemanifestaçõessócioculturaisconstituídasnaduraçãodotempo,seapresentaem imagens de tempos distintos, simultaneamente construída por meio da sobreposição designificados.Entretanto,háuma transformaçãocontínuado território,dadapela reconstruçãoemodificaçãode signosqueocorremdevidoàpluralidadedos sujeitosquevivenciamoespaçoenessesentidoacidadetambéménarrativa.Discorrendosobreisso,BernardoSecchielaboraumareflexãosobreaimportânciadanarrativanaciênciamoderna,comoumaestruturadiscursivaparaconstituirumconjuntodeenunciadosrelacionadosafatos.Essencialmente,éaidéiadeprogressoque supera o obscuro e a ignorância. Nesse contexto, pormuito tempo a ação do urbanista é

5EssaéumadiscussãoapresentadaporRicouerquandoquestionaotemposoboolhardeSantoAgostinho,quesegundooautoréumgrandeenigma(aenigma)investigadopeloreligioso.6Nosentidoetimológicode“spectare”,olharouesperaofuturo

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apresentadacomoafinitudedoprocessodeagravamentodascondiçõesdacidadeedoterritórioporeleanalisadoalémuminíciovirtuosodeumprocessodemelhoria.(Secchi,2006).

Na narrativa, as Figuras 7 sempre estão presentes como parte da estrutura discursiva.Frequentemente,asfigurasnãopossuemapenasumsentidodescritivo,mastambém“umpapelconstrutivo, de organização do nosso pensamento”(Secchi, 2006). É uma concepção metafísicaqueunifica e orientaopensamento, relacionandoaspectosdiferentesdapercepçãodo real. Asfiguras, enquanto parte das narrativas urbanas referem-se aomodo de observar, interpretar econstruiracidade,nãoapenasnodiscursosobreacidade,mastambémnasuaconstituiçãofísica,istoé,naconfiguraçãodoespaçourbano.

Enquantonarrativa, a cidadecoloca-se comouma recomposição intencionalde fatos, espaçosetempos que merecem ser explorados para transmitir experiências construídas no decorrer daHistória.Olharanarrativa literáriaesobreporaumanarrativaurbanatemosentidodeexplorarduas possibilidades de transmissão concomitantes de experiência. Nesse contexto, a memóriacoletiva que estabelece relações afetivas com um determinado fato, um tempo e um espaço,representadasoranaliteratura,oranaprópriacidade,tornam-seambas,narrativas.

Literatura:ViésdaMemóriaColetivadeSãoPaulo

É possível uma aproximação entre as idéias de Halbawchs (2006) sobre memória coletiva eindividualcomaspremissassobreasnarrativasdeBenjamin(1987).SeparaHalbawchsohomemseapoiaemmemóriasindividuaisparapromoveramemóriacoletivadeumgruposocial;porsuavez, Benjamim afirma que as melhores narrativas escritas são as quemenos se distinguem danarrativa oral contada por narradores anônimos. É exatamente no anonimato dos personagensqueAlcântaraMachado tece suasnarrativas.Emsuaobra, sãoasmemórias individuaisde cadapersonagemquereconstroemamemóriacoletivadessegrupode imigrantes,emseusprimeirosanosnacidadedeSãoPaulo.NãoépossívelafirmarcategoricamenteaexistêncialiteraldecadapersonagemdotextodeAlcântaraMachado,mas issonãotemsevera importânciananarrativa.Entretanto, se o livro surge a partir de escritos como notícias extraídas de jornais, a prioripodemossuporqueosfatospossivelmenteocorreram.Omaissignificativoparanossocontextoéqueasvivênciasdesseshabitantesconstituíramvaloresculturaisquemereceramsernarradosesuaimportânciaestánofatodemanifestaremcertaidentidadeurbanacriadaentreogruposocialeoespaçodacidade.

A cidade é construída em tempos e espaços distintos. Muitas vezes, vemos nas cidades assobreposiçõesdetemposeespaços.Oespaçourbanoconstruídonopassadoaindaévivenciadonacontemporaneidade.Éaprópriacidadequenarrasuahistóriacommarcasindeléveisnoespaçourbano. As memórias do passado estão presas, imóveis em um tempo que não existe mais,entretantoaorememorá-laselasreconstroemumespaçovivenciado.

Oquearticulaotemponarrativoliterárioeacidadeéjustamenteamemóriacoletiva.Halbwachsdeixa claro em sua obra que o homem vivencia a memória coletiva e a memória individual,concomitantemente.Entretanto,muitasvezesamemóriaindividualseapoianamemóriacoletivaparaapresentarumfatocommaiorclareza.Oautoresclarecequeareconstruçãodasimagensde

7AsfigurasdescritasporSecchiindicam,emumnívelabstrato,formasdepensamento,formasdecidades,suaspartesouatémesmoaarquitetura.Comodissemos,éumapercepçãodoreal.Portanto,éumaimagemqueseconstituiapartirdoreal.Oautorreservaumcapítulointeiroparaesmiuçaressaquestão.Videcapítulo“Figuras”

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um acontecimento é a aproximação dos fragmentos de memórias individuais, só possível nainstânciacoletivaeenquantoaquelesmembrosdomesmogruposocialcontinuaremafazerpartedaquela coletividade. A memória individual depende do lugar que o indivíduo ocupa no gruposocialeassuasrelaçõescomoambiente.(Halbwachs,2006).Elaépassíveldemudança,poiséumponto de vista sobre a memória coletiva. A percepção dos fatos e dos espaços são atosindividuais. Cada vez que essas percepções individuais do espaço e tempo emergem comoimagens através de narrativas, elas passam a fazer parte damemória coletiva. Quantomais seouveoulêsobredeterminadosfatos,melhorapercepçãosobreosfatoseessamemóriaindividualse torna mais a memória dos outros membros do grupo, ou uma “memória tomada deempréstimo,quenãoéminha”(Halbwachs,2006).Portanto,épossívelqueobrasliterárias,nasuaexperiência narrativa que reúne narrador e temporalidade, possam recompormodos de vida epaisagemurbanadetempospassados,tornando-senessesentidofontesdepesquisahistórica.

AoregistraravidacotidianadessegrupodeimigrantesitalianosnacidadedeSãoPaulo,AlcântaraMachadosimulaumaexperiênciadamemóriacoletiva,pormeiodepersonagensindividuais,quea priori, não possuem características próprias de protagonistas ou coadjuvantes. Todos ospersonagensfazempartedeumanarrativasocial.Comofiguradelinguagem,ospersonagenssãometonímias, ou seja, partes de um todo, inseridos em uma História Urbana. Mas tambémrepresentamaconcentraçãodosimigrantesitalianosemumaporçãodoterritóriopaulista:Brás,BexigaeBarraFunda.Éinteressantepensarnarelaçãoqueessanarrativasocial,compostapelasfigurasdametonímiananarrativa literária, temcomanarrativaurbanaeos registrosde signosindeléveis no território descritos por Secchi.Há entre estas duas experiências de narrativa umadiferença na produção: o literato é único autor, enquanto a cidade é obra da ação de váriosagentes.Esteaspectotornaaobraaindamaisrelevanteparaonossoestudo.Namedidaemqueoliterato vai buscar em jornais seu material de trabalho, sua intenção é expor contar com ainterferência de vários autores, diminuindo a relevância da visão centradano autor, tal comoadiversidadedeatoressociaisqueconstroemacidade.

A obra de Antônio de Alcântara Machado apresenta a vida cotidiana, a experiência da rua, ohomemtradicionalquemigradeseupaísparaumanovacidadeesefixaembairroscomoBrás,Bexiga e Barra Funda. É umaobra totalmente distinta daquela que constituemas narrativas dahistóriaurbana,históriasocial,ouhistóriaeconômica.Aobraliteráriaemquestãoémaisdoqueumanarrativa,éumsimulacroemescalareduzidadaexperiênciavividanacidade.

Defendemosque,nocasodeestudarbairros tão tradicionais comoBrás,Bexiga,BarraFunda,épossíveldetectaramemóriacoletivaatravésderelatoscomodaobradeAlcântaraMachado.Masnamedidaemqueesseautornarraumtempoliterário,eletambémrecriapaisagensurbanasqueemergemdamemóriacoletivadecadaumadascomunidadesdessesbairros.Halbwachstemumaexplicação para isso. Segundo ele, a consciência individual cria imagens e pensamentos queresultamdediversosambientesvivenciados,quesesucedemsobreumaordem,eporassimdizerumahistóriaindividualdecadaumquevivenciouessestemposeespaços(Halbwachs,2006).

Consideraçõesfinais

Amemóriacoletivacontémmemóriasindividuaisondeambassãolimitadasnoespaçoenotempo(Halbwachs,2006).Nesseartigodemonstramosqueessasmemóriasseapresentamcomopartedaconstituição da identidade urbana. O tempo e o espaço vividos, seja na rua ou nos comérciosdesses bairros em formação, também fazem parte dessamemória coletiva. Como a cidade fazpartedanarrativa,elaéporvezes,asíntesedoespaçoondeasmemóriassãoconstituídas.Nãose

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trataaquida cidadeenquantoPatrimônio, atéporquemuitosdosespaçosdescritosnaobradoliteratojánãoexistemmais.Temos,portanto,acidadecomopartedamemóriadaquelesquealiviveram,mas tambémdaquelesquepuderam,atravésdanarrativa, vivenciara imagemdeumacidadequejánãoexiste.

Sendoassim,amemóriacoletivasobrevivepormeiodasimagenscriadasdasnarrativas,tantodeAlcântaraMachado, como das famílias que transformaram o espaço urbano em lugar, ou seja,estabeleceramumarelaçãosimbólicacomoespaçourbanoreconhecendo-secomopartedeumgruposocial.Valelembrarqueessasrelaçõessimbólicascomoespaçourbanoaindapersistemembairros mais tradicionais da cidade de São Paulo contemporânea. A memória reconstrói naimaginaçãoosespaçosqueforamfundamentaisnanossaexperiênciaurbana,durantetodanossavida.

TÍTULOREFERÊNCIAS

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