View
0
Download
0
Category
Preview:
Citation preview
danilo arnaldo briskievicz
danilo arnaldo briskievicz
MARESIA
tipographia serrana - 2009
Copyright by Danilo Arnaldo Briskievicz
Todos os direitos reservados. Permitida a cópia/citação, reprodução, distribuição, exibição, criação de obras derivadas desde que lhe sejam atribuídos os devidos créditos do autor e da editora por
escrito.
Contato Danilo Arnaldo Briskievicz doserro@hotmail.com
Fotografias
Copyright by Danilo Arnaldo Briskievicz. Proibido uso sem permissão por escrito do autor.
Maria Bethânia, a voz de mar Carmosina, a voz dos orixás
Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu.
Fernando Pessoa, Mar Português
Apresentação
A poesia de mar é um lugar comum. Muitos poetas e poetisas se dedicaram a expressar o mistério e encantamentos do mar em seus versos. Sou mais um a fazê-lo. Sem medo. Sem receio. Sem meias palavras. A viagem proporcionada pelo mar ao interior de si mesmo é sem fim. O caminho da maré dentro da alma não dá na pedra, dá em sentidos, significados, metáforas, palavras. Mas como as palavras são pequenas diante da completude do mar! Acredito que o mistério do marítimo é essa perfeição, esse encanto, essa plenitude. Ou ela se esvazia num olhar menor ou vira poesia para se engrandecer. É assim que vejo hoje o mar pisado tantas vezes mas sem o sentido irrompido depois de uma transmutação na vida. Ao mar novos versos. Ao mar novas letras. Ao mar novos sons da alma. Diante do grande mistério apenas um soluço de mar. Maresia é poesia de mar. Dê-se com ela quem puder suportar.
estado espiritual
eu me vi entre o mar e a terra entre a areia e a era de um tempo vulgar eu me vi pleno mas diante do mar fui apenas simples eu me vi completo pois de frente para o mar era apenas o de antes
eu me vi entre o todo e o vir-a-ser me perdi entre tantas pancadas de onda na cara para acordar o mar fala sempre a verdade
processo
eu peguei o trem na estação eu fui de avião fui eu coloquei o trem no coração eu fui rápido trem bala eu fui para ver para crer para mudar maré alta eu fui para achar me perdi onda boa salta eu fui para sempre de todo feito de pouco mudado abstrato
rio e mar
o rio cururupe entra no mar pela porta da frente sem medo da maré
ele envolve engana difama o sal ele interage flui dilui o doce
quem são os peixes nesse encontro de mar ou de doce de paz ou de guerra do abismo ou da montanha?
tarô
o tarô do mar roda da fortuna gira roda é outro agora cada carta um segredo ciclo repetido vira roda é outro por fora o mar joga as cartas sobre a praia eu leio apenas
purificação
ouvi dizer de baianas na escadaria água-de-cheiro dos orixás eu fui me lavar vida nova ouvi falar de nova sorte em ilhéus água-de-cheiro da mãe-de-santo eu quis lavar toda vida ouvi os tambores repicando na praça água-de-cheiro na cabeça eu me lavei nova trilha
camarão
a cor vermelha pegou fogo bronze miudinho pernas e pernas crocante
camarão sabor de sol
frieza
só entendi o mar na certeza da totalidade sofri o mal do mar na angústia da finitude sofri de maresia na frieza da carência
cabana
a cabana pequena de dona maria vende acarajé abará
a cabana rústica da dona vigia
o casal a maré o mal
a cabana recebe as bênçãos da maré cheia
cheia de palavras produtos preços
a cabana de mar
se abre se fecha manutenção
pedra
pedra corta onda meio pedacinhos
pedra corta maré
feio pontinhos
pedra no meio da praia
lugar para se sentar no fim de tarde ver o mar morrer
relógio marítimo a emoção do mar engolindo o rio sensação de fim de linha de percurso absoluto a emoção de mar tragando rio espinha em frio susto de muito vida passada o relógio do mar é de tempo vário outra dimensão
rota da água
a água nasce na montanha para o leito estreito a água cresce no limite para o mundo fundo a água morre no mar para a nuvem voltar sempre voltar sempre água mar
doce
o doce do mar o movimento o doce do mar eu dentro o doce do mar rio o doce do mar frio o doce do mar fútil o doce do mar inútil
sereia
a sereia meio peixe meiumano ensinou a lição somos muitos a sereia de dois mundos mundúnico decifrou o código somos vários sereia canta muito forte para desvirar o vento daqui de dentro
onda pulsa
a onda se aproxima dos pés mar adentro a onda me causa medo mar tem tempo a onda me expulsa de mim mar me toma a onda me devolve outro além mar
pecador
os pescadores sabem do mar mais que eu
-nada sei os pecadores sabem do mar como eu
-tudo sei
vassoura benta
vassoura na escada da igreja laço branco na cabeça
vassoura para limpar o chão
tirar o velho a doença
eu ouvi um coronel gritando
-não me expulsem eu ouvi um antigo morador
-não me excomunguem a baiana usa fita de senhor do bonfim
na alma invisível aos olhos terrenos
mergulho
eu não sabia de outro mundo sem o som de fora eu me assustei silêncio puro eu não queria outro fundo mais que eu barulho mudo eu vi o peixe a pedra a cor eu pequeno
mergulho
baiana do acarajé
a baiana do acarajé debaixo da árvore espia a fome minha fome de dendê
a baiana vai ao fundo da panela espia o que resta abundância já foi
a baiana de óculos garrafais faz acarajé gigante tempero elementar apimentado
a baiana se mexe se vira e altera panela vazia bolso cheio
som
saudade de la vie en rose piaf me leva me tira a paz saudade de le temps aznavour me pega me tira o sono
olho o olho não vê a água doce dentro do mar salgado eles andam juntos ou separados? o olho não vê quase nada do mar cheio ele é só daqui ou do mundo inteiro? o olho não vê o imenso há outra luz no intenso
rosa a baiana tirou o espinho da rosa não furar o pé-do-santo ela que é tão cuidadosa revelou da rosa o melhor perfume da mão-de-santa
tambor o tambor toca cantiga de além mar onda de orixás invade a praça é hora de iluminar a alma o tambor convoca auxílio do além barco de santos aporta na massa é tempo de renovar com calma
outro ser
a mãe-de-santo convoca o santo para a consulta cabelo solto voz rouca
a dona vira caboclo da mata o terreiro é pura cachoeira bicho solto água outra
saudação presença desce sobe fala
INCORPORAÇÃO
quem somos? somos um no som puro e claro das ondas somos muitos na praia sem silêncio interior estamos em outro planeta por causa da sonda somos quem pisando na areia volúvel da praia?
visto
eu me vi perdido no olhar profundo fundo
do mar eu me vi passageiro temporário
obscuro sisudo
no mar
eu me vi outro diante do mundo aberto discreto
de além mar
caldo
a dona na onda pulo sem calma caldo de onda se faz no fim da tarde (quem deseja pular a onda se torna vítima da força contrária de si mesmo)
farmácia o segundo mais fecundo não na farmácia foi de pé na areia remédio de vida toda
capoeirista
o menino da capoeira pula pula pula vai longe o cabelo encaracolado salta salta salta cai na fronte o menino rouba a cena pulo salto algo próprio de gente forte
água doce
da água doce no mar quem saberá sabor ido da água doce dentro do mar quem contará gotas idas da água doce de todo mar quem encontrará rios idos da água doce do mar salgado eu apenas sei da tarde em areia fina
a areia me diz do tempo
quiosque
na beira da praia o quiosque enroscado no seu eixo disco voador no calçadão o quiosque se arma armação de madeira tenda popular o quiosque move os olhos para o côco dependurado preço barato
recomeço
me leve me amasse me aperte me suporte me desperte que o mar seja sempre tempo de recomeçar
cabana amarela o sol não penetra nas casas amarelas espalhadas pela areia serve-se o prato do dia
não há luz solar debaixo do amarelo o garçom atrapalhado dá seu prato do dia debaixo da sombrinha amarela minha pele se defende do amarelo maior o sol
bem vindo chegar às alturas ver a praia lá em baixo no seu fluxo e refluxo de águas leves pedras pesadas pessoas microscopicamente projetadas na areia chegar de avião sobrevoando rio e mata e mar ferrugem e verde bandeira e verde mar cores na retina cansadas prontas para descansar chegar nas asas de motores possantes pousar os olhos sobre a sua estrutura urbana sobre seu projeto de civilização me trouxe de volta o menino das montanhas eu cheguei ao solo ao chão guardando do sobrevôo uma imagem iluminada do lugar iluminado em todos os seus cantos e recantos
welcome Ilhéus
carmosina o terreiro de carmosina fica no malhado um lugar afastado perto da antiga mata o sagrado precisa de tempo para ser compreendido
carmosina tem 92 anos e veste branco e vermelho a guia azul é charme de baiana mãe-de-santo a vaidade não tem idade vai idade
o terreiro abriga fome na barriga o terreiro assina sultão das matas
céu azul o céu abre-se de um jeito tão puro visto branco para manter o ritual ser puro é sempre a busca nunca final o céu pleno de ar azul vagando na atmosfera o mar é aquarela de azul pintada pelo olhar eu vejo o azul do céu na água cristalina quase etérea da onda
mãe de tantos mãe-de-santo e seus tantos tantos desejos de se libertar
dos tantos tantos pedidos
a mãe tem no santo outros tantos tantos desejos de se escutar
depois de tantos e tantos bocejos
a mãe tem santos e tantos cantos
chamar despedir
prato
os pratos de beira-mar mexem com a imaginação molhos tantos nomes outros moqueca feijão de corda
vatapá os pratos de todo mar celebram uma língua outra tipos tantos formas outras casadinho baião de dois
abará
benta
arrebentação: limite do mar da ação da caminhada da vegetação
arrebentação: saudade de horizonte
de fonte de monte de ponte
dois óculos uma face os óculos escuros escondem o mar interior revolto mentem sobre o que há lá dentro fundo do mar escuro as lentes tampam o sentido do olhar refletem somente onda e mar absurdo
tromba aguardo a trombeta da maré alta soar no ouvido de dentro chamando-me espero o ruído dos tambores da maré tocar nos meus sentido internos convocando-me
vou para o mar arrebentar a tristeza vou para o mar argumentar
comigo mesmo
cacau
cacau amarelo no pé pé vermelho de sol escadaria de fé
cacau escuro no fogo fogo apaga na água chocolate logo
cacau gera coronel coronel gira economia casamento e lua-de-mel
o cacau é fruta bendita adoça a saliva
panela
quanto remelexo das ancas para sair uma cocada
baiana quanto rebolado nas ruas para vender no tabuleiro
quitanda quanto sol na testa para o acarajé
pimenta quanto braço forte para o abará
bananeira
menino
o menino em mergulho ao fundo do mundo no mar a menina com orgulho no olhar distante admirar a dignidade é profunda mundo fundo mar
piscina
o cheiro da água na narina intenso azul o odor de cada produto químico bruto
piscina de hotel
gaivota ausente
no mar de ontem não havia gaivota de cor alguma
no mar de anteontem também não vi
asas sobre a areia
onde a gaivota ? ela se colou à minha imagem de mar
sem ela o mar não tem asas
casual
me deixo quieto para o destino feito onda me levar me deixo pronto para o sensível feito cais me embarcar me deixo pacato para o transcendente feito guia me destinar
frito
quanto tempo da rede até o óleo quente
quanto tempo de liberdade à morte
sempre quanto tempo da carne trêmula à imobilidade
peixe
frito
sururu
dos nomes nada guardei a não ser o cheiro sururu quem é? dos tipos pouco sei a não ser o gosto sururu de onde vem?
anzol
o anzol no seu arco bate na água afunda
o anzol no seu destino carrega a isca morta o anzol na sua intenção rasga a carne viva
o anzol arqueia a linha arco do triunfo pescado
bichinho
os pequenos bichos da areia da praia se escondem de mim há medo
os bichinhos se enterram na areia se defendem de mim receio eu os vejo tão naturais escavando túneis de minuto
eu os tenho em boa conta não preciso deles agora
deixo-os brincando de esconde-esconde meu olhar não consegue ir tão longe meu mundo é outro
bastião na minha terra são sebastião protege
da fome da peste da guerra (da guerra nunca entendi por quê)
na terra de Ilhéus são sebastião prefere baianas lavando a escadaria de sua igreja (da lavagem nunca entendi o quem)
arazul
o bico da arara azul é imenso como volta ao mundo de colombo a arara precisa de bico grande para proteger a cor de dentro o coração o bico é preto e afiado como espada de jorge na lua a arara azul espalha cor no ar para espantar a monocromia repetição
mangustão
uma flor feita enfeitada pronta mangustão uma fruta de rua na rua vendida saborosa mangustinho uma cor de vermelho um cheiro de litoral lambuzar a boca de mar
netuno
no fundo do mar netuno acorda maré alta dispara dardos de furar onda e encher de água o olhar netuno acordou no fundo do mar seus dardos atravessam a tarde profundamente contemplação
soberano
o mar não precisa de mim inteiro como ele só me abandona pequenez o mar não deseja me ouvir completo que dá dó não dele puro de mim sujo
peso
pedra e mar leveza e peso onde está meu interior no fundo ou na superfície? o interior do mar é vivo como eu no fundo sou frio por que será?
livre
os peixinhos presos nas pedras depois da maré vazando que querem da vida
-descanso? eles gostam da água muito quente pedra de calor quase carinho que querem mais que isso
-remanso? os peixinhos brincam de prisão chego a ter dor de seus corpos
encarcerados a maré enche
liberdade
peixe
o peixe não se importa sem pressa vai e vem
a insuportável lerdeza do peixe me desacelera a insustentável leveza da onda me lava o peixe vê longe quando quer vem e vai o peixe não tem pressa deixa a onda levar o mar é limite seguro
pé
o pé remexe na areia cresce o pé ferve na areia sua o pé limpa na areia suja
eu coloco os pés no chão do mar para me edificar por dentro
flexível
a onda dobra sobre seu peso como o bambu na mata a flexibilidade é lição da natureza
motor de tudo
fico pensando no primeiro vento no primeiro sopro no início do mar fico pensando no negócio do tempo a onda inerte no ócio no princípio do mar qual a causa de todas as causas da física do pensamento?
rabisco
de cada mar visto o marisco
de cada onda vista
o rabisco desenho mares na eternidade do olhar nada apaga a marca do mar
dendê
quente na boca dendê
forte ao nariz
me dê acarajé na mão abará na folha eu preciso de dendê eu quero me benzer pelas mãos da baiana
azul açaí
a cor do açaí é forte como eu na provação como maré alta no calçadão a cor do açaí diz de interiores da terra a força da raiz do tronco da copa a força oculta dos seres vivos que habitam as profundezas
açaí me mostra a força da terra da areia juntinha que ergue árvores
frondosas a força da unidade é sabedoria do mar
nau
o equilíbrio do navio onda agitada me leva o perfeito equilíbrio nada abala me pega
eu não sei do navio engenharia de vida eu não sei do vazio cheio de partida
só sei do navio guiando só sei do vazio angustiando não quero navio preciso desgovernar não quero vazio necessito mar
pedra mole
o índio põe nome de pedra pedra mole itacaré
o índio brinca de pedreiro
ele sabe de deuses compondo a praia que hoje dura é
itacaré é pedra mole
casa de litoral
casinha vermelha e branco casinha amarela e tanto casa de litoral alegre por fora por dentro floral casinha verde e branco casinha azul e pronto casa de litoral janela no mar entre e sente tramela não há
tipo de mar
mar de água quente mar de frio tenso mar de naufrágio mar de passatempo o tipo do mar é o tipo de cada um como eu faço tipo para cada situação
pescado matutino
não me tragam notícia de além mar demorada frágil desgastada pelo tempo tragam-me notícia feito peixe pescado de manhã pronto para servir de bom alimento
barco frágil
o barco não se preocupa com o equilíbrio o mestre artesão mediu suas possibilidades antes de lhe dar a vida
o barco não se ocupa com a sua íntima fragilidade o mestre artesão calafetou todo sua estrutura antes de lhe lançar no mar
nau frágil
o navio não chegou ao porto se perdeu morreu na praia
o navio não ficou no porto
não verá navios outros desceu no fundo
o navio morreu na maresia
ou no sal de dentro do mar se conserva intacto mar morto
quem? quem vai secar as pedras depois da maré... -eu não estarei ali para ver a secura chegar
quem vai recolher os presentes de iemanjá... -eu não sei como trocar os presentes que ela rejeitar as baronesas que o mar trará quem poderá tirar... -eu não vou ver a praia verde de ondas a clarear os brincos de pena da morena vão voar para longe... -eu não estarei ali para vê-los plainar o queijo de leite de cabra da vendedora esperta vai se perder... -eu não sei apascentar as cabras para do leite queijo virar
o pôr-do-sol nos óculos escuros refletirá o mar... -não sei se a praia da tiririca ainda estará por lá
elegia de mar
eu não vou despertar iemanjá com meus presentes com meus sabonetes com meus espelhinhos vou deixá-la no fundo do mar
o fundo de mim sou eu agora lembrança de algo que não tenho mais nem nos olhos em frente nem na alma por dentro
eu não vou subir na pedra que dá para a maré alta porque não estarei ali para me lembrar qual passo é mais adequado às pedras do caminho e da vida
estou seco por dentro como mar sem onda sem maré areia plena de corpos mortos cemitério litoral
eu tenho inveja dos peixes aprisionados nos recifes coloridos pois têm a quem voltar a maré subirá e vai salvar seus corpos minha alma está perdida para sempre no mar
estou maresia por dentro ressaca de altas ondas por fora eu não vou ancorar no cais o navio naufragou fundo
eu não verei os golfinhos na praia bailando no ritual de alimentação eu sinto fome desses momentos imortais na sua inconsciência eu volto para o mundo dos sérios
odô miô, iemanjá
cupuaçu
o gosto amargo da fruta de mar eu confundo se de mar ou de mata é tão unificado esse espaço entre
água e terra o gosto amargo do cupuaçu vem me libera do doce o doce puro prefiro um pouco de amargo para aprender o gosto forte do cupuaçu tem me torce o hálito sem doce puro opto pelo amargo do branco para me entender
guia
a guia azul da mãe-de-santo azul branco vermelho tantas cores para tanta fé me guie santo de outro mundo a guia é uma coroa no pescoço veste as armas de santo invisível opera milagres de voz rouca de voz pouca mas sábia a guia beijada por carmosina é azul de um azul sem precedentes
espelho
o mar se sustenta peso estruturas nos ombros de netuno o mar suporta leveza corpos no espelho de iemanjá
hiato
a vida no litoral sobe e desce não as ladeiras do tempo mas as alegrias do dia o dia no litoral é ondulado vai e volta e se dá e se perde como alergia de mulher grávida o dia no litoral é cheio de hiatos
casa
a casa de cor frágil (precisa de veraneio) a igreja de cor violeta (precisa do natal) a esquina fica cheia (precisa de novidade) a vida do litoral em cidade miúda é vida curta dezembro janeiro carnaval (grande parêntesis)
flor o hibisco no jardim belisca a língua do beija-flor a bromélia perfumada morde os lábios do zangão o coqueiro-da-bahia seduz o olhar da formiga a orquídea do litoral fica prenhe de umidade
suor o suor do corpo é muito o cheiro da praia é surto necessidade de coito
o suor no rosto é broto de cada desejo feito saciedade de corpo
meninas de porto
no bataclan meninas de porto abertas como barra enchem o cais as meninas de ilusões compostas e descompostas novas e velhas falam demais as meninas de respeito no quarto trabalham para financiar uma vida fora do bataclan não há realidade
seriedade
acordei são paulo adormeci itacaré isso é ruim ou bom não sei como é
campo quântico
o mar quando imerso nele é meu campo quântico campo quântico do meu magnetismo natural campo quântico da minha emoção
memória
minha alma sabe do mar do impulso de arrebentação do querer invadir novos mundos trazer novidade de outros todos minha alma sabe do mar da lágrima salgada alívio imediato da maresia corroendo como tempo a relação sei da vida e tantos prantos
jeito navio pesado longe da praia navio levado motor e ronco navio de porto não sabe da praia apenas os pequenos resistem ao encalho
eu vi uma chalana tão pequenina na praia
me identifiquei com ela -precisa-se de jeito para navegar
dialética
a corrosão do moinho é semente a revelação da arquitetura é o vazio a redenção da música é o silêncio a negação do mar é gente
poema do mar não o mar é completo não precisa de mim sentidos tato onda visão horizonte paladar sal e doce olfato maresia audição arrebentação o mar é pleno não depende de mim existe antes existirá depois o mar é todo flutua denso medita tenso eu não
fruta
frutas de mar são cheirosas coloridas e vivas energia
frutas de mar são prazerosas cheias de história vitalidade
frutas de mar caem no chão frutas de mar enchem a mão
interior
dos lugares de paz um se torna eficaz dos poentes de luz um se põe para mais dos sonhos que traz ali é sonho demais um lugar especial meu mar um lugar essencial mar interior
vento
há um sopro no coração vento litoral me tira da rota me levanta me joga na pedra me põe no caminho me devolve o sentido de tudo
me revolta me tranqüiliza me confunde tão fundamente não sei se é vento ou apenas eu em redemoinho interior eu me arrebento em cada pedra da vida rio de cada movimento de maré interior
claro/escuro
búzios brancos búzios escuros a sorte dois lados o claro o escuro a vida a morte
os dedos jogam búzios viram e me viam por dentro os dedos jogam búzios caem de tantos lados eu todo
búzios dedos dos deuses na vida eu me perdi no mar no mar de dentro revolto feita brisa mal resolvida
maré baixa
eu me perdi no estar no mar de sempre envolto feito criança prestes a perder o colo
eu me perdi no mar no mar da mente consciente feito alucinado pelo corpo eu me perdi quero me achar maresia se vai
eu me perdi volto eu prometo vou voltar pra mim eu me reencontro no mar de fora completo como eu quando quero ser pleno basta deixar a maré baixar
levemente constantemente
maresia dentro agradeço ao vento litoral a maresia dentro frescor que ultrapassa a tarde a noite a madrugada
agradeço ao vento litoral cada hora de mar na pele nas lentes dos óculos me ensina me educa me obriga olhar para dentro
felicidade
silêncio completo silêncio: ele é completo demais para algo dizer
calem-se as vozes as preces as músicas
silêncio: ele é total para algo pretender
façam reverência olho fixo totalidade
mar completo
o completo é delicado mas inteiro o completo é purificado mas cheio o completo é mar eu sou beirada
cor sem nome
de todas as cores do mar uma delas não sei indefinida permanece aquela: sobressai num estágio
de calmaria aquela: sobrevai num período
de maresia cor revelada fim de tarde meu olho fixo na onda ensolarada o sol rouba a cor do mar me leva junto e fico sem saber a cor da cor pôr-do-sol
eu me ponho no pôr-do-sol não sei colorir
sinuca
o movimento de onda indo onda vindo uma sinuca de bico o taco o taco o taco quem acionou? o movimento começa de um outro movimento qual o outro movimento se somou ao já existido nesse tempo diverso do que eu ali dei por visto?
casa velha a casinha na ladeira tem data de fabricação ou o tempo estampado na sua face denunciando a idade a casinha tem delicado contorno de linha reta ou a retidão da família na sua planta denunciando a moral
moça
a moça brinca de vender frutas de litoral ou um litoral de frutas cada cor cada preço a moça de fé robusta vende sem desconto o preço da feira longa é descanso à noite
retorno voltarei apesar do tempo urgente de retornar ao lugar de onde vim para cá voltarei apesar da vida acontecendo lá num ritmo alucinante de bem estar – será? voltarei apesar do tempo ser dos deuses e eu ser apenas uma onda perdida de mar voltarei apesar das pessoas que o destino dará e eu ser apenas a monotonia de uma onda que não pode parar voltarei apesar de mim
confissão para Manoel Bonfim
confesso: não sei de mim tanto quanto deveria esforço-me para conquistar território meu
em algum lugar confesso: poderia ser melhor maior mais represo-me em água de passado sujo
de tempo parado confesso: eu não deveria estar onde estou liberto-me somente em presença do mar
aqui sou
ruga
a ruga no rosto o rosto no sol o tempo passou a fuga do posto a isca do anzol o tempo matou a velha é livre mostra sua face
mundi
o mundo cabe onde se sabe dele o mundo vale onde se cale ele
sonho de hotel
o sonho no quarto de hotel é cheio colorido e pleno a onda invade a imaginação
o sonho no quarto de hotel é tanto
versátil e sábio a onda penetra a emoção
café de pousada eu quero dizer do café da pousada é tão variado visual
eu quero dizer do hibisco sobre o bolo de chocolate ou da banana assada amarela feito sol de praia como se ela saísse do quintal agora eu quero dizer das fatias cortadas milimetricamente ou do suco de fruta espremida na hora como se o pé fosse bem na janela
eu quero dizer da manhã o alimento casual
nome de praia a praia da concha sem concha alguma a coroa vermelha sem rainha nenhuma o cabo frio de frio eterno praias reais
colonial
o colonial veste a casa o chapéu de século antigo protege do sol o colonial reveste a fachada roupa colorida para ver nosso senhor dita a moda litoral
mariscar
ao mar a palavra ao mar a letra a mim casco de marisco eu me entrego nos braços do mar eu me revelo nos braços do rio eu sou quem sou se me arrisco viva o mar
mariscar me arriscar
farol a luz no fim do mundo o farol eu preciso me orientar luz interior o farol se acende eu me guio volto ao meu colo
azul vesúvio
na praça da cidade o azul de vesúvio se destaca
como se destaca de corpo inteiro Jorge Amado
na praça da cidade do cacau há um monte de mesas na calçada
como se destacam as pessoas se alimentando de palavras soltas no ar
bar vesúvio de cor azul como céu de litoral em janeiro
puro janeiro sonho
colônia
o chão de pedra calça meu pé de calor o chão do tempo informa quem é de valor cidade colonial
mercado o mercado de artesanato caótico prático o mercado de artesanato fabricação própria (cada um contribui com seu papel para que o mercado seja a cara de cidade litoral)
merci
obrigado pela mata obrigado pelo litoral a todos os santos de cada mata a todos os santos de cada onda obrigado pelo pecado obrigado pela absolvição a todos os santos de toda hora a todos os santos de cada praia obrigado
casca
o tempo veste a bromélia de sempre tira a pele troca a cor verde amarelo o tempo despe a velha do nunca fica a obra acabada sentimento sincero
família
a família faz plano depende do ovário são a família quer crescer depende do menino grão a família vai aumentar depende de papai-mamãe chão
viagem
se eu me indispuser no balanço do navio enjoei de mim mesmo não do balanço do mar
se eu não suportar a viagem pelo mundo
cansei desse corpo meu não da alma de amar
cheio estou cheio como vento forte ressaca maré alta maresia tudo em excesso de mar estou cheio eu creio chegou a hora de cais antes de mais e mais tudo em processo de vida
estou cheio o balaio que não encontrou comprador tudo remexe e é dor estou cheio preciso renovar o estoque para todo toque tudo aquece e é furor
cenário a força do quadro a louca de um troço o menino do jambo a menina do jongo
vi a cena puramente janeiro mar e praia
castelo de areia
ela constrói um castelo tão perde a noção do tempo de estar na beira do mar ela edifica uma torre para a eternidade alta que cabe uma rapunzel e um príncipe mas o encanto se acaba castelo de areia
carnaval
amor de mar é para sempre ou até a próxima
onda amor de mar é eterno ou até a outra estação amor de mar é imortal ou até outro batuque CARNAVAL
algema soltei as algemas liberei os pulsos corri mar adentro a criança armou o circo dentro da alma ou se pôs para fora sem amarras a criança livre feito gaivota em vôo idiota tempo perdido é que as gaivotas não voam apenas observam a lerdeza dos peixes e se divertem serrei as algemas da cidade grande sou pequeno como nasci
navegante
o navegante doma a onda cavalo bravo solto do mar o navegante sonha o peixe anônimo alimento a fisgar o navegante rompe a matéria flui sobre a onda mãe o navegante aperta o leme na água o ritmo do mar necessita equilíbrio viva a vida do navegante precisa como barco elegante
cilício
edifico a arquitetura do navio como um arco triunfo mortifico o peixe com cilício como um condenado à fogueira
amarra
o silêncio do pensamento é pleno diante do mar o silêncio do tempo é total perante a maré difícil fugir dessa amarra os tímpanos não funcionam o pensamento não se concatena estou preso no barulho do oceano
mar outro
o mar é um só ou muitos como eu?
o mar é totalmente feliz porque não chora não ama não ora o mar é plenamente feliz porque não envelhece não nasce não diz
poema de mar
consulta a linha falta pouco para o mar virar poema
outro vário meu seu
verão
na cabeça há cérebro noz recheio da alma cabeça é cérebro mente sou eu o movimento do rio foz final de linha inverno é frio verão sou eu
asa aberta
o destino carrega para o mar eu me destino para o chão a asa quer saber de voar eu vôo quando sei amar o destino é intenso comensurável no chão pisado na asa aberta
nome de santo de santo não entendo é poder demais de outro lado de santo não compreendo é saber demais depois de morto de santo não sei nem a data de nascimento eles estão vivos na boca do povo
despedida
preciso ir embora levarei o verso na garganta vou libertá-lo na tela depois sem cela o verso livre voltará em boa hora
DANILO ARNALDO BRISKIEVICZ nasceu em Serro, Minas Gerais. Sua primeira publicação poética foi Identidade (1993), seguida de Tonel da memória (1994), Oratório de versos (2000), 300 (2002), Chão de poemas (2004), De tudo e de amor (2006), O cheiro sem cheiro da rosa sobre a mesa (2008) e Transmutação (2009). Interessado pela história serrana realizou diversas pesquisas e registros, publicando o que
pretende ser uma série histórica com outros temas que se encontram no prelo. Assim, surgiu A arte da tipografia e seus periódicos (2002) e A arte da crônica e suas anotações (2007). Reeditou o clássico serrano Memória sobre o Serro antigo (2008), de Dario Augusto Ferreira da Silva, de 1928, no qual fez, além do ensaio crítico sobre o poder no século XVIII, a adequação lingüística. Publicou no Serro três números da Revista de História do Serro, em 2002-2003.
Procurando novas formas de registro histórico, publicou Serro duas vezes (2008), trazendo uma visão poética e fotográfica da cidade do Serro. No enfoque fotográfico e histórico publicou Rostos 1998(2009). Foi redator do Jornal Livre Pensador e um dos criadores da Bolerata do Serro. Publica, desde 2006, O fóssil, jornal digital distribuído pela Internet. Publicou artigos de Filosofia no Recanto das Letras, entre eles Hannah Arendt e a violência política, Michel Foucault: violência, racismo biopoder, A noção de Gramática em Wittgenstein, Maquiavel: Estado, Política e sociedade civil, entre outros. É formado em Filosofia pela PUC-Minas, pós-graduado em Temas Filosóficos pela UFMG e mestre em Filosofia Social e Política, também pela UFMG. Os livros de poesia, história, fotografia e artigos de filosofia estão disponíveis no site do autor onde podem ser baixados gratuitamente.
Acesse o site do autor: http://recantodasletras.uol.com.br/autores/doserro
Imagens na ordem em que aparecem no livro
Capa: Imagem de Iemanjá em Olivença, Bahia. Contracapa: detalhe do piso do Batuba Beach, de noite,
Olivença, Bahia. Copyright: vitral Catedral de São Sebastião,Ilhéus. Dedicatória: Oxossi, terreiro de Carmosina, lhéus, Bahia. Verso de Fernando Pessoa: Pontal, Ilhéus, Bahia. Imagens de miolo: -Navegante visto na travessia de balsa entre Porto Seguro e Arraial
da Ajuda, Bahia. -Baiana na lavagem da escadaria da Catedral de São Sebastião,
Ilhéus; mãe-de-santo Carmosina, Ilhéus, Bahia. -Itacaré, Bahia. -Itacaré, Bahia. -Capela de Olivença, Bahia.
Recommended