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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA SOCIAL MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL CHINAIRA RAIAZAC FARIA SANTANA Inserção laboral de travestis e transexuais na cidade de São Paulo: o Programa TransCidadania São Paulo 2017

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...Eu me vi mulher naturalmente, como se sempre houvesse sido, eu experimentei minhas formas como se apenas tivesse tido a paciência

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA SOCIAL

MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

CHINAIRA RAIAZAC FARIA SANTANA

Inserção laboral de travestis e transexuais na cidade de São Paulo:

o Programa TransCidadania

São Paulo

2017

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CHINAIRA RAIAZAC FARIA SANTANA

Inserção laboral de travestis e transexuais na cidade de São Paulo:

o Programa TransCidadania

Dissertação apresentada à Banca Examinadora

da Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, como exigência parcial para obtenção

do título de Mestre em Psicologia Social.

Pesquisa financiada através das bolsas Capes e

CNPq, sob a orientação da Profª. Drª. Carla

Cristina Garcia do Núcleo INANNA de

Pesquisa (NIP).

Área de concentração: Mestrado em Psicologia

Social.

São Paulo

2017

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Raiazac, Chinaira Santana Faria.

Inserção laboral de travestis e transexuais na cidade de São Paulo: o Programa

TransCidadania

Dissertação apresentada à Banca Examinadora

da Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, como exigência parcial para obtenção

do título de Mestre em Psicologia Social.

Pesquisa financiada através das bolsas Capes e

CNPq, sob a orientação da Profª. Drª. Carla

Cristina Garcia do Núcleo INANNA de

Pesquisa (NIP).

Área de concentração: Mestrado em Psicologia

Social.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________

Profª. Drª. Carla Cristina Garcia

__________________________________________________

Profª. Drª. Bader Burihan Sawaia

__________________________________________________

Profª. Drª. Elisete Suely Marques

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Esta pesquisa

é dedicada

à vida,

ao amor

e à inquietação

frente às naturalizações

das questões sociais.

A qualquer humanidade

que volte seu labor prático

em prol da inserção e ocupação social.

A todos – e todas –

as militantes e ativistas

das diversidades sexuais,

e em especial

à comunidade trans

ao redor do mundo.

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AGRADECIMENTOS

Ao Amor e ao Cosmo por guiar minhas ativas passividades frente à efêmera e intensa

relação entre tempo e espaço chamada vida.

Com amor, a minha mãe Selene Faria de Souza, mulher, baiana, migrante,

trabalhadora, balconista e super-heroína, por me ensinar desde a infância os significados

práticos das lutas sociais. Por lutar dia e noite para me encaminhar num voo mais alto do que

lhe foi possível.

Ao grande homem Caio Augusto Garcia Carvalho, por significar flama para além das

expressões das palavras e por compor os apetites de minha vida. Pelo companheirismo na

sofreguidão e paciência ao ressignificar meu hermético Kairós num Chronos tão cruel.

Agradeço imensamente ao professor Antônio da Costa Ciampa, por me ter recebido

nas reuniões de seu núcleo, configurando minha porta de entrada no Mestrado desta

universidade.

Agradeço com grande amor à minha madrinha acadêmica Cristiane Maria da Silva,

por mostrar os caminhos de minha trilha e estar verdadeiramente presente como alicerce nos

bastidores da pesquisa e de minha vida como um todo.

A Fabio Mariano e Mariana Serafim Xavier Antunes, por guiarem com esmero meu

processo de migração entre os núcleos, readequando a linha de minha pesquisa.

Minha eterna gratidão à professora Carla Cristina Garcia, fonte de admiração,

(ins)piração e aprendizado, pelos paradoxos inerentes à caminhada, por possibilitar a

realização desta pesquisa, bem como seu próprio tema, e por me receber como integrante da

primeira turma inaugural do NIP-PUCSP, quando o Núcleo INANNA de Pesquisa iniciava

sua jornada pelos caminhos da Psicologia Social nesta universidade.

A todas e todos os colegas Nipienses! Pelo suporte nos momentos mais frágeis e por

regarem a pesquisa quando esta era ainda uma semente de meus intentos, num espaço de

apoio, trocas e reflexão sobre diferenças humanas.

A Daniel Françoli Yago, pelos espontâneos cafés e bons papos.

A Marcelo Hailler, pelo pluralismo de sua participação.

Com grande carinho, agradeço imensamente a minha querida Natália Yukari, por

mostrar os sentidos reais do bom afeto e da amizade em momentos de grandes apuros.

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Às grandessíssimas amigas Suellen Miranda e Débora Laís, por confortarem meu

coração do começo ao fim deste processo e por estarem cotidianamente brindando meus

sabores e dissabores.

Agradeço imensamente à querida professora Maria da Graça Marchina Gonçalves,

pelo apoio e companheirismo que foram fundamentais.

Sou grata à grande amiga de longa data, Simone Manzaro, por ter acompanhado de

perto esta empreitada acadêmica, pelo apoio simbólico e prático.

Agradeço especialmente à professora Elisete Suely Marques e à professora e

coordenadora Bader Burihan Sawaia, por fazerem parte deste significativo processo de

maneira tão gentil e atenta.

Agradeço ao afeto e companheirismo da amiga Cristiane Prudenciano, por andar lado

a lado enquanto pesquisadora do tema.

À amiga Maria Alessandra, assistente social no Centro de Referência e Defesa da

Diversidade, por possibilitar uma maior aproximação de minha militância social.

Agradeço a todas e todos os meus estudantes das Escolas Estaduais Dr. Raul Briquet e

Dr. José Neyde César Lessa, em especial àqueles e àquelas que se tornaram grandes amigas e

amigos. Dentre tais, Jeysiane Mateus Corrêa, pelo lilás da vida; Micael Pereira, pelas

cumplicidades, Celso Muza e as irmãs Evelyn e Emilyn Fernandes, pelos bons

companheirismos.

Às docências de toda a minha trajetória acadêmica! Em especial, à Tatiana Bichara,

Nathalia Vidigal Furtado, Alexandre Nicolau Luccas, Cibele Pejan Barbieri, Daniela Uga,

Daniel Matos, Elaine Lange, José Rogério, Marcos Medeiros, Monalisa Fogaça, Nabil

Sleiman, Raquel Cassoli, Ricardo Gomides, Rosalice Lopes, Mariana Aron, Carla Andréa,

Rosana Sigler, Mary Jane Spink e Maria do Carmo Guedes. E que a expressão “Em especial”

não anule a totalidade do contexto de agradecimento a essas grandes humanidades de

profissionais que tive a oportunidade de admirar no decorrer das construções acadêmicas,

com grande carinho expresso em nossas relações.

A todos e todas os participantes do grandioso “Livre Temas Internúcleos”, por tornar

esta jornada mais divertida. Minha gratidão em especial à Bruna Agna, Sulamita Assunção,

Elisa Harumi Musha, Cinara Brito, Graziele Campos, Leandro Lucato Moretti, Nathalí

Estevez, Roger Itokazu, Simone Borgese Magna Damasceno, pelos significativos vínculos.

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À toda a maravilhosa equipe técnica do Programa TransCidadania. Agradeço em

especial às cordialidades de Simmy Larrat, Milena Wanzeller, Paola Alves, e Maurice

Florence, pelos bons trajetos de nossos caminhos.

Minha colossal gratidão e respeito pelas transcidadãs Safira, Fênix e Amanda Marfree,

pela militância de compartilhar seus íntimos sabores e dissabores em prol da busca da justiça

social.

À querida Secretária do PEPG em Psicologia Social, Marlene Camargo, pela paciência

e companheirismo nos momentos mais burocráticos desta jornada.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e ao

Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), cujas modalidades

de bolsas possibilitaram a realização desta pesquisa.

Ao amigo de infância Anderson Alves Roberto, pelos encontros e desencontros do

amor.

A Luciana Antonini Schoeps, pela simpatia e pelo trabalho de revisão textual.

A você que se dedica a ler o produto final de uma efêmera, militante e limitante

trajetória de pesquisa!

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“Traves em ti, o teu Preconceito” – por Rafael de Menezes, Cabo Frio/RJ

“O azul cálido da parede contrastava com o azul de fora da esquadria, e era aquele azul que eu

sempre quis tocar. Eu olhei minha face no espelho… eu, num holograma minucioso com detalhes

agudos, eu me enxergava nítida como numa poça de chuva, depois do turbilhão que se passava dentro

da minha cabeça. E sim, eu conseguia sorrir mesmo desfigurada.

Eu me vi mulher naturalmente, como se sempre houvesse sido, eu experimentei minhas

formas como se apenas tivesse tido a paciência de esperá-las desabrochar, feito uma menina boba que

anseia por seios ainda aos 12 anos.

Eu me vi completa e absorvi cada dia como se fosse o último, porque a dádiva de estar viva

sendo uma travesti é quase um milagre divino. Nós somos a mutação natural do que a natureza falhou

em esculpir.

Eu observei amigas sendo massacradas e homenageadas depois de mortas como se o mérito de

ter existido bastasse. Não! A vida não se trata somente de existir ou não, é preciso sobressair, edificar,

pisar na terra e sentir-se viva mesmo aos prantos, mesmo que a tal terra seja ao lado da cova de uma

amiga que morreu por motivo torpe.

Somos travestis, mulheres ceifadas do direito de parir por um erro de DNA, como se já não

bastasse isso, somos privadas de termos o nome que bem quisermos, e temos travado na linha fria da

vida o direito também de caminhar como qualquer mulher: seja ela feliz ou não.

Não, não são os seios e cabelos compridos que me faz plena, porque o que adquiri com o

tempo não me fez travesti, eu sempre fui travesti. Eu turbinei meu corpo, fiz o alinhamento dos

quadris, a calibragem do meu eixo, e na busca incessante de felicidade eu talvez tenha me esquecido

de trocar as velas do coração, mas aí eu me indago: de que serve o coração em certos momentos, para

uma travesti? A não ser para acomodar balas ou facas de transfóbicos, ou ainda, o desamor do

inaceitável?

Troquemos então, troquemos nossos corações por discos rígidos, onde guardaremos os

arquivos, os processos, as lembranças a família que não se vê mais, a agressão de ontem, e num

cantinho com poucos bytes, quem sabe, os planos de amanhã? Absolutamente não. Numa era onde

transexuais são expostas a 190 milhões de expectadores que decidem se ela é digna ou não para andar

de biquíni e ficar rica dentro de um circo de horrores, onde se mostra o que há de pior no ser humano,

eu pergunto?

Você se orgulha de que? O que tem valido a pena na tua luta diária, travesti? No que você se

apega quando está com medo? Em quem morta você pensa quando comete um erro? De quem morta

você se lembra quando quer ser apenas você mesma? Mas o mais importante, em quem viva, e essa

pode ser você, você pensa para seguir adiante?

Somos travestis e transexuais, as milhares guardadas dentro de containers lacrados, soltos à

deriva esperando uma liberação federal para que possamos ser distribuídas nas prateleiras da vida.

Somos as tais bonecas de mau gosto que as mães não comprariam, que os pais esconderiam, e que os

filhos teriam curiosidade, mas pasmariam em descobrir que além de falar também somos dotadas do

poder insano de amar.

Sim minhas caras e meus caros, somos as humanas pré-históricas, objetos de pesquisas e

estudos científicos para que não se descubra nada além de incompreensão. Bicho mulher com extinto

maternal, que abraça a criança desesperada que a família expulsou de casa, mais uma cria da vida

exposta ao genocídio constante de almas. Somos nossas próprias mães, pais, aconchego e polícia,

somos das ruas, das casas, dos hospitais, das delegacias… somos fruto da falta de entendimento entre

o civil e o parlamentar talvez; mas creio eu que somos totais vítimas da falta de educação de um país

onde não se respeita o que vai além do seu entendimento, e é assim com tudo desde a religião ao

próprio amor.”1

1 Disponível em:<http://www.cartapotiguar.com.br/2012/01/12/traves-em-ti-o-teu-preconceito/>. Acesso em: 07

jun. 2017.

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RAIAZAC, C. F. S.. Inserção laboral de travestis e transexuais na cidade de São

Paulo: o Programa TransCidadania. 2017. 185 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia

Social) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2017.

RESUMO

O presente estudo compõe a linha de pesquisa “Políticas do Corpo” do Núcleo INANNA de

Pesquisa (NIP) do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Seu objetivo geral tem como ponto de partida

uma discussão acerca do cenário trabalhista de travestis e transexuais para, especificamente,

problematizar o Programa TransCidadania da cidade de São Paulo, implementado pela

prefeitura em 2015, na gestão de Fernando Haddad (2013-2016). O projeto político do

Programa TransCidadania rompe com óticas limitadas à capacitação no eixo trabalhista, ao se

propor uma formação humanista pensada a partir da educação, da emancipação e do acesso à

cidadania a fim de combater a vulnerabilidade social a que estão expostas essas pessoas.

Trata-se de uma vitrine internacional que é aqui apresentada desde seu projeto piloto: o

Programa Operação Trabalho LGBT (POTLGBT). Como a presente pesquisa é de base

qualitativa, para subsidiar sua realização, buscou-se apresentar um levantamento bibliográfico

e uma análise pertinentes a temas como a cidadania, o mercado de trabalho, a constituição

social de travestis e transexuais, sua inserção no mercado de trabalho e os entraves e

retrocessos expressos por representantes religiosos nos setores da política partidária brasileira,

além de apresentar a estrutura do Programa TransCidadania. O campo da pesquisa apresenta

seis sujeitos e sujeitas de pesquisas que se dividem em duas modalidades de entrevista. Na

primeira modalidade, três (3) pessoas entrevistadas correspondem ao pessoal operacional e de

gestão do Programa, sendo: (1) da Memória do Projeto Político POTLGBT, (1) da Assistência

de Coordenação do Programa TransCidadania e (1) da Pedagogia do Programa

TransCidadania. Na segunda modalidade, apresenta-se uma análise dos itinerários de vida de

três (3) usuárias do Programa TransCidadania. Assim, busca-se compreender quais os

impactos desse programa na vida dessas usuárias. O acesso às usuárias deu-se por meio de

palestras e bate-papos voluntários coordenados pela pesquisadora diretamente no Programa

TransCidadania, no ano de 2016, como parte do processo de investigação. Nesta pesquisa

apresentam-se algumas dessas produções artísticas de expressão sobre trajetórias trabalhistas

que foram concebidas nesses encontros por mulheres travestis, transexuais e homens

transusuários e usuárias do Programa TransCidadania. O interesse pelo tema justifica-se dada

a importância de suas demandas sociais, além de alinhar-se ao compromisso social de uma

Psicologia que visa atuar na transformação social, junto aos movimentos e articulações que

lutam para a promoção e garantia dos direitos sociais. Problematizar as configurações do

exercício de cidadania dessa população no setor empregatício, tendo como base a educação e

a emancipação, confere à pesquisa uma relevância correlacionada à promoção de cidadania e

direitos humanos da população de travestis e transexuais.

Palavras-chave: Cidadania. Travestis. Transexuais. Inserção Trabalhista. Programa

TransCidadania.

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RAIAZAC, C. F. S.. Work placement of transvestites and transsexuals in the city of

São Paulo: o Programa TransCidadania [the TransCitizenship Program]. 2017. 185

sheets. Masters dissertation (Social Phychology) – Pontifícia Universidade Católica, São

Paulo, 2017.

ABSTRACT

The present study composes the "Policies of the Body" research line of the NIP - INANNA

Research Center of the Social Psychology Program of the Pontifical Catholic University of

São Paulo (PUCSP). Its general objective has as its starting point a discussion about the labor

scene of transvestites and transsexuals, specifically to problematize the 'Transpassion

Program' of the city of São Paulo, implemented by its municipality in 2015, in the

management of Fernando Haddad (2013-2016). The political project of the Transpassion

Program that breaks with limited optics to the training in the labor axis, when being proposed

to a humanistic formation thought of education, emancipation and access to citizenship to

combat the social vulnerability to which these people are exposed. It is an international

showcase that has been presented here since its pilot project: the Operation LGBT Work

Program - POTLGBT. This research is qualitative based. In order to subsidize their

performance, we sought to present a bibliographical survey and analysis relevant to

citizenship, labor market, social constitution of transvestites and transsexuals, their insertion

in the labor market, and the obstacles and setbacks expressed by religious representatives in

the sectors of Brazilian party policy, besides presenting the structure of the TransCitizenhip

Program. The field of research presents six of research that are divided in two modalities of

interview: In the first modality three (3) people interviewed correspond to the operational and

management personnel of the Program, being: (1) Political Project Memory – POTLGBT, (1)

The Coordination Assistance of the TransCitizenship Program and (1) Pedagogy of the

TransCitizenship Program. The second modality presents an analysis of the life itineraries of

three (3) users of the TransCitizenhip Program. It seeks to understand the impact of this

Program on the lives of these users. Users' access was provided through lectures and

voluntary chats coordinated by the researcher directly in the TransCitizenship Program in the

year 2016 as part of the research process. In this research we present some of these artistic

productions of expression on labor trajectories that were conceived in these meetings by

transvestite women, transsexuals and trans men and users of the TransCitizenship Program.

The interest in the theme is justified by the importance of its social demands besides aligning

itself with the social commitment of a Psychology that aims to act in the social

transformation, along with the social movements and articulations that fight for the promotion

and guarantee of the social rights. To problematize the configurations of the exercise of

citizenship of this population in the employment sector based on education and emancipation

confers to the research a relevance correlated to the promotion of citizenship and human

rights of the population of transvestites and transsexuals.

Key-words: Citizenship. Transvestites. Transsexuals. Labor insertion. TransCitizenship

Program.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES E ANEXOS

Figura 1, 2

e 3-

Inauguração do Programa TransCidadania com o Prefeito

Fernando Haddad no dia da Visibilidade Trans, em 29 de janeiro

de 2015.

Pg. 90 e

91

Figura 4- Atividade de participante do Programa sobre temática trabalhista. Pg. 119

Figura 5- Atividade de participante do Programa sobre temática trabalhista. Pg. 120

Figura 6- Atividade de participante do Programa sobre temática trabalhista. Pg. 121

Figura 7- Atividade de participante do Programa sobre temática trabalhista. Pg. 122

Figura 8- Atividade de participante do Programa sobre temática trabalhista. Pg. 123

Figura 9- Atividade de participante do Programa sobre temática trabalhista. Pg. 124

Figura 10- Atividade de participante do Programa sobre temática trabalhista. Pg. 125

Figura 11- Atividade de participante do Programa sobre temática trabalhista. Pg. 126

Figura 12- Atividade de participante do Programa sobre temática trabalhista. Pg. 127

Figura 13- Atividade de participante do Programa sobre temática trabalhista. Pg. 128

Figura 14- Atividade de participante do Programa sobre temática trabalhista. Pg. 129

Figura 15- Atividade de participante do Programa sobre temática trabalhista. Pg. 130

Figura 16- Atividade de participante do Programa sobre temática trabalhista. Pg. 131

Figura 17- Anexo A. Termo de Consentimento para a realização da pesquisa

e das entrevistas com travestis e transexuais.

Pg. 177

Figura 18- Anexo B. Primeira parte da Proposta de Plano de Aula-Seminário-

Atividade.

Pg. 178

Figura 19- Anexo C. Segunda parte da Proposta de Plano de Aula-Seminário-

Atividade.

Pg. 179

Figura 20- Anexo D. Primeira parte do Parecer Consubstanciado do Comitê

de Ética da PUCSP.

Pg. 180

Figura 21- Anexo E. Segunda parte do Parecer Consubstanciado do Comitê Pg. 181

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de Ética da PUCSP.

Figura 22- Anexo F. Terceira parte do Parecer Consubstanciado do Comitê de

Ética da PUCSP.

Pg. 182

Figura 23- Anexo G. Quarta parte do Parecer Consubstanciado do Comitê de

Ética da PUCSP.

Pg. 183

Figura 24- Anexo H. Bandeira representativa do Movimento Social Trans. Pg. 184

Figura 25- Anexo I. Símbolo específico do movimento Trans. Pg. 184

Figura 26- Anexo J. Outros símbolos relativos a gêneros. Pg. 185

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LISTA DE ABREVIAÇÕES E SIGLAS

ABRAPSO Associação Brasileira de Psicologia Social.

ABGLT Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e

Transexuais.

ANTRA Articulação Nacional de Travestis e Transexuais.

ASTRAL Associação das Travestis e Liberados.

BSH Programa Brasil sem Homofobia.

CADS Antiga Coordenação de Políticas de Atenção à Diversidade Sexual.

CAE Centro de Acolhida Especial para Mulheres Travestis e Transexuais.

CCA Centro de Criança e Adolescente.

CCH Centro de Combate à Homofobia.

CDHM Comissão de Direitos Humanos e Minorias do Senado Federal.

CEE/SP Conselho Estadual de Educação.

CFM Conselho Federal de Medicina.

CFP Conselho Federal de Psicologia.

CIEJA Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos.

CLT Consolidação das Leis Trabalhistas.

CNCD Conselho Nacional de Combate à Discriminação.

CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

COGEAE/PUCSP Coordenadoria Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

CPLGBT Comissão de Políticas para LGBT*.

CRAS Centro de Referência da Assistência Social.

CRD Centro de Referência à Diversidade.

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CROPH Coordenação Regional de Obras de Promoção Humana.

CRP Conselho Regional de Psicologia.

CRT/SP Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Transexuais do Centro

de Referência e Treinamento de São Paulo.

DOT/EJA Diretoria de Orientação Técnico Pedagógica em Educação de Jovens e

Adultos.

EBGL Encontro Brasileiro de Gays e Lésbicas.

ENEM Exame Nacional do Ensino Médio.

ENTLAIDS Encontro Nacional de Travestis e Liberados.

EPM Escola Paulista de Medicina.

FGTS Fundo de Garantia por Tempo de Serviço.

GGB Grupo Gay da Bahia.

GLBT Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros.

IBGE Índice Brasileiro de Geografia e Estatística.

LGBT* Sigla usual do movimento social de Lésbicas, Gays, Bissexuais,

Travestis, Transexuais e Transgêneros. É utilizada pelo movimento

social brasileiro e por entidades governamentais, como conselhos e

secretarias, nos três âmbitos da federação. O uso do asterisco denomina

o múltiplo significado do T.

LGBTQQIAPS Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros,

Queers, Questionings, Intersexos, Assexuais, Pansexuais e

Simpatizantes.

MEC Ministério da Educação.

NIP Núcleo INANNA de Pesquisa.

OMS Organização Mundial da Saúde.

ONG Organização Não Governamental.

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OT Operação Trabalho.

PCN Parâmetros Curriculares Nacionais.

PCNP Grupo de Professores Coordenadores do Núcleo Pedagógico.

PDC Projeto de Decreto Legislativo.

PEC Proposta de Emenda Constitucional.

PEPG Programa de Estudos Pós-Graduados.

PISA Programme for International Student Assessment – Programa

Internacional de Avaliação de Estudantes.

PL Projeto de Lei.

PNDH Programa Nacional de Direitos Humanos.

POT Programa Operação Trabalho.

POT LGBT Programa Operação Trabalho destinado às especificidades de Lésbicas,

Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros.

PSC Partido Social Cristão.

PT Partido dos Trabalhadores.

PTB Partido Trabalhista Brasileiro.

PUCSP Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

RedeTrans Rede Nacional de pessoas Trans no Brasil.

RENATA Sigla Usual da Rede Nacional de Travestis e Liberados.

RENTRAL Primeira sigla para Rede Nacional de Travestis e Liberados.

SDTE Secretaria Municipal do Desenvolvimento, Trabalho e

Empreendedorismo.

SEE/SP Secretaria de Educação do Estado de São Paulo.

SESC Serviço Social do Comércio.

SESI Serviço Social da Indústria.

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SMAD Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social.

SMDHC Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania.

SUS Sistema Único de Saúde.

TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

TGEU Transgender Europe.

TMM Observatório de Pessoas Trans Assassinadas - Trans Murder

Monitoring.

UBS Unidade Básica de Saúde.

UNIFESP Universidade Federal de São Paulo.

USCS Universidade Municipal de São Caetano do Sul.

USP Universidade de São Paulo.

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO: A pesquisadora e a pesquisa ............................................................... 18

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 20

1. EDUCAÇÃO E TRABALHO: AS BASES DA CIDADANIA ....................................... 29

1.1. Cidadania para quê? E para quem? .......................................................................... 29

1.2. Educação, trabalho e emprego.................................................................................... 31

1.2.1. Educação ................................................................................................................ 32

1.2.2. Trabalho ................................................................................................................. 36

1.2.3. Emprego ................................................................................................................. 38

1.3. Direitos sociais e políticas públicas ............................................................................. 40

1.4. Travestis no mercado de trabalho .............................................................................. 42

2. O LUGAR SOCIAL DAS PESSOAS TRANS ................................................................. 46

2.1. Do sexismo embrionário em identidades pressupostas aos processos de

socialização .......................................................................................................................... 50

2.2. Entre igualdades e diferenças: “O Paradoxo Trans”. ............................................ 566

2.3. População trans: um lugar social, uma categoria política ....................................... 58

2.4. Militância para não “limitância”: as mobilizações históricas de travestis e

transexuais no cenário sociopolítico brasileiro ................................................................ 66

3.A CIDADANIA COM T DE TRANSCIDADANIA: O PROGRAMA

TRANSCIDADANIA COMO FRUTO DE LUTAS E RESISTÊNCIAS ......................... 85

3.1. As origens políticas do Programa TransCidadania .................................................. 86

3.2 As origens práticas do Programa TransCidadania ................................................... 92

3.3. O Programa Operação Trabalho: POT LGBT e POT TransCidadania .............. 966

3.3.1 Memórias da construção de um Projeto Piloto. .................................................. 98

3.4. A legislação base do Programa. ................................................................................ 107

3.5. Apresentação dos serviços de assistência social, pedagogia e psicologia .............. 109

3.6. O público atendido pelo Programa .......................................................................... 114

3.7. A entrada das(os) usuárias(os) no Programa .......................................................... 132

3.8. As potencialidades e os desafios do Programa TransCidadania. .......................... 133

4. MARFREE, FÊNIX E SAFIRA: HISTÓRIAS DE VIDA DE MULHERES TRANS

MATRICULADAS NO PROGRAMA TRANSCIDADANIA ......................................... 139

4.1. A “transcidadã” Marfree, a primeira de cem: uma apresentação. ....................... 139

4.2. A “transcidadã” Fênix: uma apresentação. ............................................................ 143

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4.3. A “transcidadã” Safira: uma apresentação. ............................................................ 148

4.4. Itinerários de vida ...................................................................................................... 155

4.4.1. Antes do Programa TransCidadania ................................................................ 159

4.4.2. Durante o Programa TransCidadania .............................................................. 160

4.4.3. Depois do Programa TransCidadania ............................................................... 162

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 164

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 168

ANEXOS ............................................................................................................................... 176

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APRESENTAÇÃO: A pesquisadora e a pesquisa

Neste espaço, intenciono realizar um registro sutil de minha aproximação com a

temática trans, adiantando à leitora e ao leitor que se trata aqui de uma espécie de continuação

de minha monografia da graduação em Psicologia.

No primeiro semestre de 2013, eu estava às voltas com a escolha temática de minha

monografia. Era o último ano da faculdade e senti-me certa de que minhas aspirações

acadêmicas se revelariam na Psicologia Social. Essa sensação justificava-se por escolhas

temáticas de estágios e iniciações científicas, no decorrer da graduação, que se relacionaram à

vulnerabilidade social. Desenvolver oficinas de literatura com crianças de um Centro de

Criança e Adolescente (CCA) ou de arte-terapia com pessoas em situação de rua no Centro de

Acolhida Nova Vida ou mesmo vivenciar o cotidiano da maternidade em cárcere, em duas das

penitenciárias femininas paulistas, foram alguns desses caminhos nos quais, por vezes, me

deparei com as problemáticas LGBT2.

A essa altura da vida, muito provavelmente eu refletia sobre a teoria da

interseccionalidade sem saber nomeá-la ou dispor de qualquer apropriação teórica. Isto é, de

modo simplório, punha-me a notar a relevância de um grande fator relativo aos aglomerados

de vulnerabilidades. No Centro de Acolhida Nova Vida, por exemplo, era nítido no desenrolar

das oficinas que as vivências eram completamente distintas e que os pesares também o eram,

por condições étnico-raciais ou de orientação sexual. Dentre meus aprendizados, minha

vivência foi marcada pelo sofrimento de uma mulher travesti que precisara cortar seus

compridos cabelos, aniquilar sua feminilidade e trajar-se masculinamente para conseguir

emprego num supermercado. A partir daí, comecei a refletir acerca dessa população e de seu

mercado de trabalho. Questionei-me a princípio: em que segmento do mercado ela estaria?

Ela estaria, de fato, em algum segmento?

Na mesma época, aproximava-se o tempo de decidir a temática de minha monografia.

Certo dia, caminhava pela estação República do metrô em São Paulo, onde se alocava uma

exposição do Museu da Diversidade. Fui recebida por Xande, um homem transmilitante do

movimento. Ele acolheu-me de maneira simpática e tratou de alimentar meu notável interesse

com muitas informações a respeito das demandas LGBT, com ênfase sobretudo nos “TT”,

2 Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros. Existe uma série de siglas classificadoras

dessas diversidades, tais como LGBTQIAP, que inclui Queers, Intersexos, Assexuais e Pansexuais. A construção

textual aqui se dá através da sigla entendida como a mais usual, além de se apropriar da denominação acordada

pela segunda Conferência Nacional LGBT (2011) enquanto movimento social. Discussão mais aprofundada

sobre as siglas está disponível em: <http://blog.educahelp.com/LGBTq-para-que-tanta-sigla/>. Acesso em: 15

maio 2017.

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uma vez que era a centralidade temática do evento. As dores e mazelas expostas em cartazes

lembraram-me da convivente trans do Centro de Acolhida que fora aniquilada em prol de um

emprego. Ali nascia a escolha do tema de pesquisa da graduação.

É difícil dizer o momento exato em que optamos por nossas aspirações, pois elas são

resultantes de um complexo multilinear. Mas se eu tivesse que escolher tal exatidão decisiva,

diria que algo em minha essência foi fisgado quando das lágrimas de uma mulher trans num

vídeo dessa exposição. Sua fala apresentava sua vida, suas vulnerabilidades e negligências; no

entanto, no momento em que a entrevistadora questionava sobre aspectos empregatícios, o

choro sofrido não foi contido: as palavras deram lugar ao silêncio, com o zoom

sensacionalista da câmera em sua face tendo sido notado por mim. Talvez more naquele dia e

instante meu insight não somente enquanto pesquisadora, mas como militante preocupada em

compreender como são estabelecidas as relações entre o mercado de trabalho e as pessoas

trans.

A monografia seguiu, então, seu curso. Burlei parcialmente burocracias que me diziam

que eu não poderia ir a campo e, como não fazia sentido falar “do sujeito” ou “da sujeita”,

mas sim “dialogar com” ou “através de”, busquei a voz da militância em blogues e outras

redes sociais de pessoas trans e de grupos de ativistas do movimento social trans. Enfim, a

central do aluno acusou a nota “10” para a pesquisa, embora não tenha havido sensação de

dever cumprido. Foi ali que percebi que não se tratava simplesmente de uma pesquisa com a

mera finalidade de conclusão de curso, mas sim de uma espécie de ativismo. Eu poderia

guardar meu diploma e contentar-me apenas com aquilo. Mas pessoas trans continuariam

morrendo gratuitamente, sem acesso à educação e ao trabalho, sendo amplamente

negligenciadas por uma sociedade excludente. Na empreitada de pesquisadora e entrando em

contato com a população a partir da modalidade virtual, deparei-me com sofrimentos,

violências e com uma série de mazelas e vulnerabilidades sociais. Tive de guardar para o

mestrado minha sede de acessar essas pessoas pela modalidade não virtual, para que eu

finalmente pudesse “dialogar com o sujeito e a sujeita” “de verdade”.

Incentivada pelas professoras Nathalia Vidigal Furtado e Tatiana Bichara, fui

continuar esse mesmo tema nos caminhos da Pós-Graduação. Na Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo encontrei a professora Carla Cristina Garcia e, então, a modalidade

prática do Programa TransCidadania. Assim sendo, esta dissertação é a culminância dessas

trilhas. Boa leitura!

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INTRODUÇÃO

O presente estudo problematiza a experiência política que se materializa no Programa

TransCidadania, através da vivência ativa de pessoas trans, atendendo ao objetivo de discutir

o cenário trabalhista de travestis e transexuais residentes da cidade de São Paulo, tendo como

foco a cidadania. É partindo de um cenário multifacetado que corrobora diversas

complexidades e evidencia a latência de uma polêmica questão social, que se pontua a

importância de pautas contextualizadas relativas à comunidade trans nos setores de políticas

públicas, a fim de se exercitar as configurações de cidadania da população de travestis,

transexuais e transgêneros. Estudos realizados pela Articulação Nacional de Travestis e

Transexuais (ANTRA) apontam o número de 90% das travestis e transexuais do cenário

nacional ocupando os espaços de prostituição por falta de oportunidades de trabalho. Bastante

difundido entre os estudos do tema, o dado é fruto da evasão escolar devido à transfobia e à

exclusão do mercado de trabalho formal. A alteração deste cenário demanda uma série de

mobilizações do setor público envolvendo a criação de estruturas sólidas que promovam

direitos humanos no combate às vulnerabilidades sociais.

Esta pesquisa compõe a linha de pesquisa “Políticas do Corpo” do Núcleo INANNA

de Pesquisa (NIP) do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). O Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa sobre

Sexualidades, Feminismos, Gênero e Diferenças sustenta uma postura epistêmica geradora de

itinerários formativos que enfatizem os saberes produzidos às margens da academia: saberes

menores, rebeldes, insubmissos. É a partir desse posicionamento que se experimenta discutir a

inserção trabalhista de travestis e transexuais para além de reducionismos pautados em lógicas

assistencialistas e de capacitações. Isto é, buscou-se gestar uma construção complexa, com

base no paradoxo de pontuar e reconhecer vulnerabilidades, evidenciando potencialidades.

Nesse sentido, buscando afastar-se da aparente lógica de “causa-efeito”, este estudo visa

compreender as configurações das relações estabelecidas em tais cenários.

Entendendo que o maior dos pilares para o acesso ao mercado de trabalho consiste em

uma educação pensada a partir da emancipação, da humanização e, portanto, da cidadania,

apresenta-se aqui um programa identificado com esse formato ideológico, justificando-se,

assim, a escolha do Programa TransCidadania como objeto deste estudo. A constituição do

Programa é marxista e freireana, por entender a educação como espaço de emancipação

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efetuada a partir de direitos e de escolhas. Sua proposta tornou-se uma vitrine internacional3

ao arquitetar e gerir um projeto político com viés emancipatório no combate à vulnerabilidade

social de travestis e transexuais da cidade de São Paulo. Para discutir acerca de tal programa,

devem ser levados em consideração segmentos populacionais e estruturas de vulnerabilidades

sociais, bem como as temáticas das Políticas Públicas que correspondem a uma discussão

relativamente recente. Nos Estados Unidos, por exemplo, o debate nesse setor começa no

início anos de 1950. Já na Europa, especialmente na Alemanha, os movimentos datam de a

partir de 1970. No caso do Brasil, as análises são ainda mais recentes, tendo seu boom na

década de 1980, sendo que a dispersão dos estudos reverberou em ações cuja ênfase se deu na

análise de estruturas institucionais ou na “caracterização dos processos de negociação das

políticas setoriais específicas” (TREVISAN; BELLEN, 2008, p. 531).

A década de 1990 é marcada em toda a América Latina por proferir um

questionamento crescente sobre a proporção e efetividade do setor público. No caso do

cenário nacional, Trevisan e Bellen (2008), ao discutirem sobre a avaliação de políticas

públicas, concluíram que “[...] esse novo fôlego deve-se em grande parte às alterações

históricas, políticas e econômicas vivenciada pela sociedade, e encaradas pelos governos

como desafios [...]”, de modo que as configurações oriundas desses contextos “[...] se

traduziram em modificações sobre a forma de compreender, formular e avaliar as próprias

políticas” (TREVISAN; BELLEN, 2008, p. 548). Nesse sentido, também é preciso

caracterizar e conceituar políticas públicas e sociais. De acordo com Aragusuku e Lopes

(2015), elas consistem em “são ações do Estado que visam a gerência das relações sociais e

econômicas que se estabelecem no capitalismo. E neste sentido, é fundamental também

apontarmos uma diferenciação entre políticas públicas (ações de gerência do Estado) e

políticas sociais” (ARAGUSUKU; LOPES, 2015, p. 5). Na concepção de Höfling (2001), as

políticas sociais têm suas raízes intimamente ligadas aos movimentos populares do século

XIX, vindos à tona no bojo dos conflitos entre o capital e o trabalho. A autora define-as

como “ações que determinam o padrão de proteção social implementado pelo Estado,

voltadas, em princípio, para a redistribuição dos benefícios sociais visando a diminuição das

desigualdades estruturais produzidas pelo desenvolvimento socioeconômico” (HÖFLING,

2001, p. 31).

3 Disponível em: <http://www.pt.org.br/transcidadania-ja-e-referencia-internacional-afirma-suplicy/>;

<http://saopaulosao.com.br/nossas-pessoas/632-na-imprensa-australiana-elogios-ao-programa-transcidadania-da-

sdhc.html.>. Acesso em: 15 jun. 2017.

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No século XXI, ao discutir as interfaces de gênero nos setores de políticas públicas,

evidencia-se uma complexidade que resgata representações histórico-culturais. Mello et al.

(2013) realizaram uma massiva pesquisa em que mapearam ações e programas

governamentais voltados à população brasileira LGBT*4 nos eixos de políticas públicas de

trabalho, assistência social e previdência social em nove Estados da federação e suas

respectivas capitais, envolvendo os governos dos distritos federais e da federação. Os autores

pontuaram a escassez de referências normativas concernentes a esses eixos e, embora se

ressalte a existência de documentos do governo federal voltados ao combate à homofobia e à

promoção de cidadania da comunidade LGBT*, tais como o Programa Brasil sem

Homofobia (BSH), de 2004; os Anais da I Conferência Nacional de Políticas Públicas para

LGBT*, de 2008 e 2011; o Plano Nacional de Promoção dos Direitos Humanos LGBT*, de

2009, e o Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH 3), de 2009, a pesquisa revelou

a existência de uma distância entre a formulação e a implementação dessas políticas, além do

fato de que o eixo trabalhista fica limitado aos programas de capacitações:

[...] Entre as/os gestoras/es e representantes da sociedade civil entrevistadas/os,

quando tratam dos problemas enfrentados pela população LGBT* no âmbito

trabalho, prevalece a percepção da urgência de incluir as travestis, que em sua

maioria atuam como profissionais do sexo, em ações e programas voltados para a

inserção no mercado de trabalho, levando-se em consideração que a maior parte

delas também possui baixo nível de escolaridade formal [...]. Os raros programas da

política de trabalho indicados pelas/os gestoras/es entrevistadas/os para a população

LGBT*, especialmente travestis e transexuais, são para capacitação, de maneira a

promover posterior inserção no mercado de trabalho e geração de renda. Dois

questionamentos quanto aos programas neste formato aparecem nas entrevistas com

ativistas. O primeiro refere-se ao entendimento de que a inserção no mercado de

trabalho só possa ser feita a partir de capacitação em algum ofício, enquanto o outro

diz respeito às críticas quanto à forma das “capacitações”. (MELLO et al., 2013, p.

138).

No tocante especificamente à população trans, grande parte dos estudos apresentados

no item 1.4 desta pesquisa discute a insuficiência da lógica de capacitação e propõe

estratégias para sanar esses débitos sociais. Partindo da distância entre a formulação e a

implementação de políticas brasileiras que atendam às demandas sociais da população trans,

a presente pesquisa compreende tal dinâmica como diretamente correlacionada aos

4 No Brasil, o movimento organizado de acordo com a segunda Conferência Nacional LGBT (2011) define o uso

da sigla LGBT* – com apenas um T – por entender este identifica a população de travestis, transexuais e

transgêneros. Conforme registrado na lista de siglas e abreviações desta tese, trata-se da sigla usual do

movimento social de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros. O uso do asterisco no

decorrer desta pesquisa inspira-se no movimento social contemporâneo que denomina o múltiplo significado do

T*, incluindo travestis, transexuais e toda a comunidade trans. Também disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=Kn3OMDcSS7I>. Acesso em: 05 jun. 2017.

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dispositivos sociais, tal como as dimensões do processo da educação brasileira e os poderes

de Estado.

Em muitas sociedades contemporâneas, assim como em algumas modalidades da

academia, discutem-se identidades LGBT*, sob o prisma de estereótipos, estigmas, abjeção,

negligência, opressão, dentre outros aspectos de marginalização e correlacionados às

representações sociais, que acabam por considerar essa população como constituinte das

chamadas “minorias sexuais”.

No que se refere à população de travestis, transexuais e transgêneros, se, do ponto de

vista acadêmico, os temas da transgeneridade e travestilidade vêm sendo exaustivamente

tratados “[...] das mais variadas formas e sob os mais diversos enfoques, dentro da trilha dos

estudos relacionados a gênero, inaugurada pelo Movimento Feminista” por outro lado, do

ponto de vista prático, há que se destacar que, ainda assim, “[...] os estudos transgêneros

constituem uma área de pesquisa e ensino acadêmico praticamente desconhecida e muito

pouco difundida no Brasil” (LANZ, 2015, p. 12, 36). Nesse sentido, em contraponto com os

prismas apresentados, a presente pesquisa problematiza seus achados de modo a buscar

outras maneiras de conceber e dialogar com seu “objetivo de estudo”. Partindo da concepção

de que travestis e transexuais aparecem frequentemente como objetos de estudo, o presente

trabalho almeja, em alguma medida, romper com essa lógica ao transcender a condição de

objeto de estudo para a de sujeito produtor de conhecimento. Parte do posicionamento

epistêmico desta pesquisa concebe travestis e transexuais não como lacônicos objetos

científicos, mas sim como sujeitos ativos na participação e construção do presente saber, isto

é, numa configuração de sujeitos de conhecimento, cuja postura teórico-epistêmica se

sustenta também por intermédio da autoria5.

O objetivo geral deste estudo tem como ponto de partida uma análise do cenário de

cidadania pertinente à educação e ao trabalho de travestis, transexuais e transgêneros para

especificamente problematizar o Programa TransCidadania da cidade de São Paulo,

implementado pela prefeitura em 2015 a partir de ações anteriores, como o Programa

Operação Trabalho(POT). O decreto nº 55.874, de 29 de janeiro de 2015 instituiu o programa

e o destinou à promoção da cidadania de travestis e transexuais em situação de

vulnerabilidade social, além de alterar as disposições dos decretos nº 44.484, de 10 de março

de 2004, e nº 40.232, de 2 de janeiro de 2001.

5 Travestis e Transexuais não são aqui apenas objetos de estudo, mas também sujeitas da construção do

conhecimento desta pesquisa, uma vez que este trabalho se utiliza de saberes científicos produzidos

academicamente por pessoas trans, como é o caso da Doutora em Psicologia Social Jaqueline Gomes de Jesus e

da Psicanalista, Mestre em Sociologia e Especialista em Gênero e Sexualidade, Letícia Lanz.

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Na intenção de aprofundar essas discussões e alcançar os objetivos propostos, a

pesquisa parte da hipótese de que não há cidadania sem o acesso à educação e ao trabalho. O

primeiro passo na metodologia deste estudo referiu-se ao levantamento bibliográfico. Dentre a

maioria dos estudos realizados pelo meio acadêmico, a temática trabalhista apareceu de modo

frágil. Moura e Lopes (2014), ao discutirem o eixo trabalhista da população trans,

consideraram que

[...] No meio acadêmico existem muitos artigos e obras publicadas com a temática

voltada as travestis, porém abordam as questões relacionadas a saúde e prostituição.

Tal ausência de bibliografia [outros eixos] pode estar atrelada a transfobia que

permeia o mundo acadêmico e social sendo, pois, essa uma questão complexa,

difícil e delicada, pois até mesmo dentro da academia, nas universidades, a

discussão do gênero é vista como secundária pelos próprios colegas de trabalho,

professores e universitários (MOURA; LOPES, 2014, p. 12).

O levantamento bibliográfico evidenciou ainda que, quando observadas de uma

perspectiva macro, as tendências generalistas associam a população de travestis, transexuais e

transgênero à prostituição e, em poucos casos, à prestação de serviços voltados à indústria da

moda, beleza e cosméticos. Diante do questionamento dessas associações, há que se percorrer

as reflexões que envolvem a formação individual e cidadã que, em grande maioria, rejeitam a

população trans por imposições culturais predeterminantes e preestabelecidas socialmente. Na

perspectiva micro, há uma carência muito grande de visibilidade e de incentivo destinados a

essa população. Muitas são as mulheres trans que enfrentam a aniquilação de sua feminilidade

a fim de ingressar no mercado de trabalho, isto é, enfrentam o dilema entre vestir-se

masculinamente para conseguir uma entrevista de emprego e a prostituição. Ainda quando o

assunto seja os direitos sociais e a visibilidade, não se pode deixar de notar que existem

desigualdade e preconceito dentro do próprio movimento da comunidade LGBT, onde há

maior visibilidade e aceitação do G, L, ou B, (Lésbicas, Gays e Bissexuais), com a exclusão

do T.

Grande parte da academia discute questões relacionadas às construções sexuais, à

ausência de representatividade, à violência, à discriminação, ao preconceito e a outras

negligências. Dentre essas perspectivas, pouco se discutiu acerca de questões relacionadas à

falta e até à negação de oportunidades de trabalho, estudo e realização profissional. Dessa

forma, a pesquisa em questão foi submetida ao comitê de ética e as problemáticas aqui serão

abordadas a partir dos pressupostos teórico-metodológicos da Psicologia Sócio-Histórica, cuja

categoria fundamental da compreensão dos fenômenos sociais se dá- pela historicidade. Bock

et al., por meio do materialismo histórico dialético, concebeu “[...] a história como um

processo contraditório, produto da ação dos homens, em sociedade, para a construção de sua

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própria existência” (BOCK et al., 2015, p. 48). Assim, partimos do pressuposto de que a

realidade objetiva, carregada da história humana, se subjetiva pelo sujeito que, ao mesmo

tempo, ao agir no meio, pode reproduzir ou transformar a realidade. O sujeito é, então,

produto e produtor da história: produto do conhecimento humano acumulado e produtor de

novos conhecimentos.

Outro grande pressuposto metodológico desta pesquisa reside na teoria da

interseccionalidade, nascida a partir do black feminism representada pela jurista afro-

americana Kimberle Crenshaw (1989), cujo trabalho influenciou fortemente a elaboração da

cláusula de igualdade da Constituição da África do Sul. Essa teoria serve aqui de base para a

compreensão das estruturas sociais de civilização, balizadas por classe, etnia e raça, gênero,

identidade sexual, condição geográfica, dentre outros norteadores. É partindo dessas óticas

que se pretende analisar quem são as pessoas trans no cenário socioeconômico

contemporâneo e que lugar social elas ocupam nas dimensões do mundo do trabalho.

O método de análise aqui usado corresponde à pesquisa qualitativa, por meio de

entrevistas que buscaram compreender como são estabelecidas as relações entre as pessoas

trans e o mercado de trabalho, refletindo mais especificamente acercados sentidos do trabalho

em seus itinerários de vida e dos efeitos simbólicos de ingressar no Programa TransCidadania.

Esse é um método de investigação científica cujo foco se dá na construção da subjetividade e

nas experiências das pessoas entrevistadas, sempre realizadas com uma amostra pequena.

O campo desta pesquisa apresenta, assim, três estágios. O primeiro deles relaciona-se

ao acesso às usuárias e aos usuários do Programa TransCidadania. Este se deu por meio de

palestras e bate-papos voluntários coordenados pela pesquisadora no ano de 20166 como parte

do processo de investigação. No eixo 3.6 desta pesquisa apresentam-se algumas das

produções artísticas, a respeito de suas trajetórias trabalhistas, que foram concebidas nesses

encontros por mulheres travestis, transexuais e homens trans.

Os segundo e terceiro estágios são relativos às pessoas entrevistadas nesta pesquisa.

Trata-se de seis sujeitos e sujeitas de pesquisas que se dividem em duas modalidades de

entrevista. Na primeira modalidade, três (3) pessoas entrevistadas correspondem ao pessoal

operacional e de gestão do Programa, sendo: (1) da Memória do Projeto Político POTLGBT,

(1) da Assistência de Coordenação do Programa TransCidadania e (1) da Pedagogia do

Programa TransCidadania. Na segunda modalidade, apresenta-se uma análise dos itinerários

de vida de três (3) usuárias do Programa TransCidadania: as transcidadãs Marfree, Fênix e

6 Uma dessas propostas de atividades desenvolvidas encontra-se disponível na sessão dos Anexos.

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Safira. As análises das usuárias ocorreram de forma psicossocial, sendo que, por essa razão,

se buscou efetivar entrevistas em profundidade de acordo com as possibilidades. No total,

foram realizadas seis entrevistas, além de encontros de investimento de vínculo, de modo que

a transcidadã Marfree foi entrevista uma vez, Fênix duas e Safira três. Tanto os encontros

como as entrevistas foram realizados em locais de escolha da pessoa participante. A

participação das pessoas envolvidas implicou o esclarecimento dos propósitos de pesquisa,

bem como na assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

A primeira modalidade de entrevistas operou-se pela coleta de falas acadêmicas,

operacionais e profissionais relativas ao Programa TransCidadania, a exemplo de Marcelo

Hailler, Maurice Florence e Milena Wanzeller. Tais falas buscam, na literatura crítica da

Psicologia Social, na epistemologia feminista e em saberes construídos em prol da defesa de

direitos e da cidadania da comunidade LGBT*, uma articulação de debate que evidencie as

demandas da população trans, bem como problematize suas políticas públicas.

O trajeto aqui percorrido se divide em quatro capítulos. O primeiro capítulo,

“Educação e trabalho: as bases da cidadania”, fomenta o contexto de articulação dos nichos de

trabalho, emprego e cidadania, a partir de questionamentos balizadores tais como as questões

seguintes: O que, de fato, é cidadania? Quem tem acesso a ela? O que educação tem a ver

com trabalho? O que, de fato, significa trabalho? Quais suas relevâncias sociopolíticas? Por

que sua centralidade continua caracterizada pelo capital? Quem é a população trans nesse

cenário? Como são estabelecidas as relações entre travestis, transexuais, transgêneros e o

mercado de trabalho? Dizendo de outro modo, evidenciando que esse constitui um recorte

específico dentre as diversas categorias políticas afetadas pelas configurações do mundo do

trabalho e pela falta de acesso à educação, tal capítulo intenta contextualizar o cenário

político-econômico e de mercado, além de servir como introdução para problematizações

acerca do lugar social de travestis e transexuais em contexto de vulnerabilidade.

Nesse sentido, o segundo capítulo, “O lugar social das pessoas trans”, dedica-se a

denunciar as múltiplas exclusões a que estão submetidas as pessoas trans. Procura-se traçar

uma linha desde o sexismo embrionário em identidades pressupostas aos processos de

socialização dessa população, além de discutir o paradoxo trans na busca de igualdade por

meio do reconhecimento das diferenças. O capítulo discute do que se trata um lugar social,

evidenciando travestis e transexuais como categorias políticas, uma vez que traz as

mobilizações históricas da população militante no cenário sociopolítico brasileiro. Um

sofrimento incalculável revela-se na negligência de seus direitos mais básicos, tais como

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estudar, trabalhar, ter um documento, comprar roupas ou até mesmo ir ao banheiro, que lhes

são constantemente negados.

[...] Mulheres transexuais e travestis e homens trans são historicamente excluídas

(os) de espaços de direitos, principalmente do direito à educação. Essa realidade se

expressa nos números apresentados pelo Centro de Combate à Homofobia (Atual

Centro de Cidadania LGBT*) de São Paulo, onde a maioria dos atendimentos é à

população T. Tal realidade coloca em pauta a urgência de uma política pública

específica para mulheres transexuais e travestis e homens trans (CONCILIO et al.,

2016, p. 21).

O capítulo traz, ainda, considerações sobre os posicionamentos científicos, sobretudo

da Psicologia, e estende as problematizações de acesso à cidadania para as dimensões de uma

perspectiva histórica e de movimento social.

É no terceiro capítulo deste trabalho que consta o objeto de estudo macro da presente

pesquisa: o Programa TransCidadania. Sua experiência, que acaba por se tornar uma vitrine

nacional e internacional, é apresentada como fruto de lutas e resistências de movimentos

sociais. Aqui se busca esmiuçar sua história, seu projeto político, seus embasamentos e sua

práxis, a partir de literatura específica do programa e de parte do trabalho de campo, que

conta com entrevistas de profissionais atuantes e colaboradores dessa empreitada

sociopolítica. Apresentam-se, assim, as diversas origens do Programa TransCidadania, desde

seu projeto piloto, o POT LGBT. O capítulo também conta com atividades desenvolvidas em

campo, ao apresentar o público atendido pelo programa.

No capítulo final concentra-se a segunda parte do trabalho de campo, com a

apresentação da história de vida de travestis e transexuais, na intenção de efetivar a análise, a

problematização e a compreensão dos significados dessa experiência política que

transcendente os ideais de mera capacitação mercadológica, dedicando-se à formação

humanista nos processos de cidadania e emancipação. Aqui é apresentado o termo

“Transcidadã”, ao se registrar as histórias de mulheres trans, destacando seus itinerários de

vida como categoria de análise, além de estruturá-los antes, durante e depois do ingresso no

Programa TransCidadania

É possível compreender que a pertinência deste trabalho se justifica pontuando as

falhas práticas das políticas públicas de inserção laboral, bem como a ausência de foco nessa

especificidade, além de constituir-se como relevante a averiguação das demandas sociais de

uma população vulnerável. Esta pesquisa se alinha, portanto, ao compromisso social de uma

Psicologia que visa atuar na transformação social, junto aos movimentos e às articulações

sociais que lutam para a promoção e garantia dos direitos sociais. Problematizar as

configurações do exercício de cidadania dessa população no setor empregatício, tendo como

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base a educação e a emancipação, confere à pesquisa uma relevância correlacionada à

promoção de cidadania e direitos humanos da população de travestis e transexuais. Nas

palavras de Oliveira, “estudar os modos de subjetivação e os meios de incorporação das

travestis no mercado de trabalho é contribuir para que sejam assegurados os direitos humanos

e o pleno exercício da cidadania” (OLIVEIRA, 2015, p. 2).

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1. EDUCAÇÃO E TRABALHO: AS BASES DA CIDADANIA

No presente capítulo, busca-se evidenciar a relação entre educação e trabalho com

base na compreensão da cidadania, sendo esta um conjunto complexo de ações que engloba

direitos – civis, sociais, políticos, humanos – e deveres. Contudo, o recorte desta seção se

refere exclusivamente ao acesso à educação e trabalho, entendendo-se aqui que uma

sociedade verdadeiramente democrática caminha para o exercício da cidadania e para que os

direitos previstos pela Constituição sejam efetivamente garantidos.

1.1. Cidadania para quê? E para quem?

“Essas pessoas [trans] estão marginalizadas, alijadas dos bancos das escolas e

universidades, preteridas no mercado de trabalho, sendo forçadas a se prostituírem,

tendo o gênero deslegitimado diuturnamente, sendo agredidas por uma sociedade

que não nos considera gente, que não vê humanidade em nós.”

Daniela Andrade, militante transfeminista e diretora do Fórum da Juventude LGBT

Paulista7

No âmbito da presente discussão, considerando a divisão de classes, vale registrar os

segmentos populacionais que têm o acesso à educação negado ou extremamente dificultado

pelo sistema. Trata-se de segmentos socialmente vulneráveis, tais como crianças negras,

quilombolas, nordestinas, dentre outros. A lógica da capacitação legitima um discurso

reduzido de educação, pensada puramente a partir do eixo tecnicista de inserção no trabalho,

isto é, concebida a partir de técnica e mão-de-obra, aspecto que, por sua vez, compactua com

o discurso meritocrático num mundo reestruturado pelo capital depois do sistema neoliberal.

Assim, faz-se relevante refletir sobre as identidades na operação desse sistema, uma vez que

a construção do trabalho a partir do neoliberalismo individualiza categorias e intensifica

diferenças de raça, classe, gênero e outras. A meritocracia torna-se a base lógica de um

sistema mantenedor de ações afirmativas, de políticas públicas e sociais pensadas em

inserção educacional e trabalhista. O debate de cotas, por exemplo, faz parte desse cenário.

Ainda nessa lógica de capacitação e qualificação no mundo do trabalho, fazem-se

relevantes os questionamentos acerca dos efeitos desse sistema para segmentos que se

tornaram vulnerabilizados. Não se trata somente da análise marxista que vai considerar as

diferenças interseccionais dos grupos de trabalhadores pobres, mulheres e outros, mas

também do prejuízo social causado pela reestruturação produtiva que, a partir do cenário

7 Disponível em: <http://www.geledes.org.br/a-invisibilidade-das-pessoas-transgeneros-no-

brasil/#gs.dh6_oLQ>. Acesso em: 05 jun. 2017.

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neoliberal, culpabiliza o desemprego a partir do discurso de que falta técnica e qualificação.

Travestis e transexuais configuram um recorte nessa gama de pessoas vulneráveis perante o

atual cenário sociopolítico e econômico. Assim, há que se considerar a necessidade de uma

educação pensada para além dos processos de qualificação, de um projeto político pensado na

concomitância emancipatória e de preparo para o mundo do trabalho, isto é, pensado a partir

da cidadania.

O conceito contemporâneo de cidadania é fruto de um longo processo de

desenvolvimento histórico, permeado por constantes lutas políticas e conquistas sociais

consolidadas por diferentes grupos na busca da defesa de seus direitos. A concepção de

cidadania não traduz um conceito puramente estático, mas sim uma noção em constante

construção, uma vez que, embora a noção de cidadania se encontre formulada na Constituição

brasileira e em diversos outros documentos como a Declaração Universal dos Direitos

Humanos, promulgada em 1948pela Organização das Nações Unidas (ONU), ela ainda não

constitui um direito efetivo para todos os segmentos populacionais.

A origem da palavra cidadania deriva do latim civitas, cujo significado é cidade. No

formato clássico de organização social, ela remonta à Antiguidade Clássica que se difundiu no

Mediterrâneo a partir do século IX a.C.: as cidades-Estado. Na Grécia antiga, considerava-se

cidadão aquele que era nascido em terras gregas, além das elites e patronos. Em Roma, a

palavra cidadania era usada para indicar a situação política de uma pessoa e os direitos que ela

tinha ou podia exercer. Desde a era antiga, a noção clássica de cidadania excluía segmentos

populacionais. Dentre essa gama de pessoas, eram desprovidos do gozo à cidadania os

estrangeiros residentes que, embora participassem da vida econômica da cidade, não tinham

direito à propriedade privada e não podiam participar das decisões políticas, as mulheres; as

populações submetidas ao controle militar da cidade-Estado e os escravos, que realizavam

todo e qualquer tipo de ofício, desde as atividades agrícolas até as artesanais e os serviços

domésticos, não tendo acesso à esfera pública nem a quaisquer direitos. Na noção

contemporânea e jurídica, cidadão é o indivíduo no gozo dos direitos civis e políticos de um

Estado. Em um conceito mais amplo, cidadania quer dizer a qualidade de ser cidadão e,

consequentemente, sujeito de direitos e deveres (COVRE, 2005).

Marshall define cidadania como sendo “um status concedido àqueles que são membros

integrais de uma comunidade” (1967, p. 76), estando relacionada à garantia de direitos civis,

políticos, sociais e humanos. Enquanto entendemos um cidadão ou cidadã como um indivíduo

que possui direitos e deveres, partimos do pressuposto de que a relação do cidadão com o

Estado é dúplice: de um lado, os(as) cidadãos(ãs) participam da fundação do Estado e de suas

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respectivas políticas, e o Estado, de outro lado, deve zelar por eles, pelo bem público e por

todos(as) considerados(as) cidadãos(ãs). Mas, na prática, há um ruído quanto às obrigações do

Estado para com seus(uas) cidadãos(ãs).

Na perspectiva de Dowbor, a desigualdade é o principal drama da sociedade brasileira,

gerando tensões cada vez mais insuportáveis. O autor destaca, ainda, a modernização social e

econômica a partir de avanços via medidas emergenciais, com um esforço muito significativo

de redistribuição de renda: “Conseguimos avanços muito significativos em termos de leis de

proteção do trabalho, de controle do trabalho infantil. No entanto, apenas um terço dos

trabalhadores, no Brasil, tem um emprego formal no setor privado, com carteira assinada e

direitos assegurados” (DOWBOR, 2006, p. 5).

Partindo dessas considerações, o presente eixo serve como pano de fundo para se

problematizar a condição trans na esfera acadêmica e trabalhista. Isto é, antes de se pensar nas

especificidades dessas identidades, cabe problematizar o cenário macrossocial em seus eixos

econômicos e de desigualdade social. Tal trajeto se pretende a partir de tônicas balizadoras

como: as dimensões e configurações do mundo do trabalho, as ações e reflexos de sua

centralidade, o formato neoliberal e o próprio capitalismo, afim de se compreender quem

acessa o trabalho, como acessa, porque acessa, e, em contrapartida, os significados do não

acesso, tendo em vista que, além das problematizações de emprego e desemprego, os

movimentos sociais servem de parâmetro para a compreensão do papel de ações afirmativas e,

finalmente, das políticas brasileiras de inserção laboral.

1.2. Educação, trabalho e emprego

“Antes eu não sabia juntar letrinhas, nem escrever meu nome, tinha que perguntar

para as pessoas que estavam no ponto de ônibus qual ônibus estava vindo. Depois do

TransCidadania, sei escrever meu nome e não preciso perguntar que ônibus está

vindo porque já sei ler, com dificuldade, mas já sei.”

Discurso de uma beneficiária do Programa TransCidadania (CONCÍLIO et al., 2016,

p. 54).

Conforme vem sendo discutido no decorrer deste capítulo, socialmente é estabelecida

uma correlação entre educação e trabalho. No entanto, a esfera coletiva, através do setor

público, fomenta um modelo de educação que reforça a lógica privatista em prejuízo dos

ideais emancipatórios. Trata-se de legitimar a ordem vertical do sistema em detrimento de

projetos pensados horizontalmente, isto é, de adquirir “informação” técnica mais

propriamente dita que, de fato, acessar e construir uma “formação” emancipatória, pautada

nos preceitos de cidadania.

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1.2.1. Educação

Inúmeros efeitos dessas lógicas são registrados em diversos setores sociais do cenário

brasileiro. As culminâncias dessas configurações se reverberam desde as mais concretas

vulnerabilidades sociais negligenciadas em sua formação cidadã, até os aspectos apedeutas

expressos nas redes sociais. Fica registrada, a partir dessas considerações, a necessidade do

investimento em educação pensada a partir da cidadania, para além das lógicas tecnicistas.

Em nosso país, em última instância, é possível concluir que há um crescente e escancarado

descaso com a educação, uma vez que ela não se desenvolve plenamente, nem mesmo na

limitada ótica tecnicista.

No cenário internacional, enquanto países de primeiro mundo incluem em suas

agendas a educação num formato prioritário, no caso do Brasil, a título de exemplo, houve

mais quedas no ranking mundial de educação em ciências, leitura e matemática, no último

ano. Dados do Programme for International Student Assessment – Programa Internacional de

Avaliação de Estudantes (PISA)8 envolvendo 70 países registram as colocações brasileiras na

63ª posição em ciências, na 59ª em leitura e na 66ª colocação em matemática. No que se

refere ao formato da educação pensada a partir da concepção da cidadania,

[...] nos países em que a cidadania se desenvolveu com mais rapidez, inclusive na

Inglaterra, por uma razão ou outra, a educação popular foi introduzida. Foi ela que

permitiu às pessoas tomarem conhecimento de seus direitos e se organizarem para

lutar por eles. A ausência de uma população educada tem sido sempre um dos

principais obstáculos à construção da cidadania civil e política. (CARVALHO,

2008. p. 11)

É notório que a educação constitui os pilares de diversas sociedades ocidentais. No

Brasil, embora tenhamos representantes de uma pedagogia compromissada socialmente, o

cenário ainda é gerido por discursos e óticas mecanicistas e tecnicistas em prol de

configurações de interesse do cenário econômico do país. Como exemplo disso, pode-se

mencionar a atual reforma do ensino médio sancionada pelo então ocupante da presidência,

Michel Temer, em 16 de fevereiro deste ano, que teve sua medida provisória elaborada pelo

Ministério da Educação e defendida pelo ministro Mendonça Filho. Resultado da tramitação

do Projeto de Lei nº 6.840/2013 do deputado Reginaldo Lopes (PT-MG), a proposta altera as

disposições das disciplinas de Artes, Educação Física, Filosofia e Sociologia, priorizando a

carga horária dos ensinos técnicos. Outro exemplo dessa lógica, dentro do atual cenário de

8 Informação disponível em: <http://g1.globo.com/educacao/noticia/brasil-cai-em-ranking-mundial-de-educacao-

em-ciencias-leitura-e-matematica.ghtml>. Acesso em: 25 jun. 2017.

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reformas macrossociais e de paradigmas econômicos do país, refere-se às ondas privatistas

que atingem fortemente os setores públicos, impactando em maior escala a educação. Em

2017, a esfera pública do setor de pós-graduação enfrenta os trâmites de liberação da já

aprovada, em 2015, Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 395/14, do deputado Alex

Canziani (PTB-PR), que autoriza a cobrança por cursos de pós-graduação lato sensu nas

universidades públicas. Esses recortes dizem respeito ao cenário nacional contemporâneo.

A educação brasileira constitui um campo plural de estudo, podendo ser

problematizada desde sua estrutura curricular, financiamento da educação, avaliação de

desempenho, fluxo escolar, formação docente, até aspectos específicos concernentes aos

gêneros, raça ou direitos humanos. Todos esses aspectos devem ser pensados a partir de um

cenário macrossocial com influências sociopolíticas. Conforme o discutido no eixo 1.1, existe

um sistema estrategicamente elaborado para delimitar quais seguimentos populacionais

acessam o modelo de educação ofertado pelo país. Dentre essas considerações, e pensando no

recorte da vulnerabilidade trans, a temática de gênero, embora amplamente discutida no setor

acadêmico, ainda se encontra repleta de barreiras no sentido mais prático das relações.

Daniliauskas, ao discutir as políticas públicas de educação, destacou a margem à qual

estão expostas as pessoas LGBT* e suas perspectivas ausentes nos processos educacionais, “o

que caracterizaria um privilégio para pessoas heterossexuais, ou seja, as escolas discutem a

heterossexualidade e seus direitos, mas não fazem o mesmo em relação a outras

possibilidades de sexualidade” (DANILIAUSKAS, 2011, p. 27). A escola acaba, então, por

resultar num ambiente hostil, cujas consequências prejudicam o desenvolvimento físico e

emocional de pessoas LGBT*. Nesse sentido, para Zambrano,

[...] a primeira vivência de discriminação de transexuais costuma ser semelhante à

das outras identidades LGBT*. Acontece quando começam a frequentar a escola e

são agredidos pelos colegas em decorrência do visual e/ou comportamento, levando

a um primeiro reconhecimento de si como alguém “diferente”. (ZAMBRANO,

2011, p. 103, aspas da autora)

Utilizando como exemplo os processos de bullying, injúrias e assédios, Daniliauskas

discute o abandono escolar, em virtude de problemas de sociabilidade, além de destacar que

essas consequências podem culminar numa vulnerabilidade às drogas e até mesmo em

suicídio: “Além disso, o heterossexismo reforça o sexismo por promover padrões rígidos de

gênero” (DANILIAUSKAS, 2011, p. 27).

Ribeiro (2013), ao dissertar acerca das relações de gênero e de idade em discursos

sobre sexualidade veiculados em livros didáticos brasileiros de ciências naturais dos anos

2000 a 2010, levanta dados de relevantes significados nos campos da infância, adolescência e

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socialização na referência educacional. Dentre seus achados, a autora denuncia o uso da

linguagem exclusivamente no padrão masculino, ainda que em territórios temáticos

femininos, e aponta em suas análises a predominância do tema da reprodução como eixo

central de abordagem da sexualidade na maioria dos livros:

O que prevalece são conteúdos “tradicionais” do ensino de Ciências Naturais,

focado nas funções do corpo humano, cujos discursos ressaltam os cuidados com a

saúde e a reprodução humana, sendo que o eixo “Relações de Gênero”, proposto

pelos PCN, não foi abordado na maioria deles. Isto implica dizer que discussões

sobre gênero estão fora da maioria dos livros didáticos e das salas de aula. [...]

Alusões à família, categoria estreitamente ligada às relações de dominação, são uma

constante. No entanto, os livros não estabelecem correlação com a sociedade atual, a

não ser sob o aspecto do planejamento familiar, em que predomina o formato da

tríade (pai, mãe, filhos). O modelo hegemônico é a norma, tido como universal,

comum e inalterável, também reforçado nas imagens cujo contexto é de relações

afetivas entre casais. (RIBEIRO, 2013, p. 146-148)

Nesse sentido, e sem grandes pretensões de aprofundamento, cabe lembrar que os anos

de 2015 e 2016 foram marcados na esfera política pelas discussões no Senado acerca do

chamado “estatuto da família”, que a essa altura ainda se ocupa de definir o conceito de

família perante a legislação. Por outro lado, no tocante aos livros didáticos e à especificidade

do currículo estadual, vale destacar algumas situações de aprendizagem presentes nos

cadernos de Ciências Humanas, mais especificamente da disciplina de Sociologia, que

contemplaram, em alguma medida, nas três séries do ensino médio, a inclusão desses debates

na vigência de 2014-2017, por iniciativas da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo

(SEE-SP) em parceria com os Grupos de Professores Coordenadores do Núcleo Pedagógico

(PCNP). O Caderno do Aluno de Sociologia do 1º Ano Ensino do Médio, Volume 2, traz em

sua Situação de Aprendizagem 6 o tema “Gênero e Desigualdade”. O Caderno do Aluno de

Sociologia do 2º Ano do Ensino Médio, Volume 2, traz em sua Situação de Aprendizagem 6 o

tema “Violência Contra a Mulher”, e o Caderno do Aluno de Sociologia do 3º Ano do Ensino

Médio, Volume 1, traz na Situação de Aprendizagem 7 o tema “O movimento feminista” e na

Situação de Aprendizagem 9 o tema “Novos movimentos sociais: negro, LGBT* (Lésbicas,

Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) e ambientalista”.

No entanto, como mostra Daniliauskas (2011), as agendas têm suas potencialidades e

restrições intimamente correlacionadas a planos e trajetórias de governantes. Prova disso, no

campo das políticas educacionais, traduz-se pelos movimentos contemporâneos, como o

Projeto de Lei nº 6.840/2013, que altera a condição das disciplinas de Arte, Educação Física,

Filosofia e Sociologia. Nesse sentido, vale considerar que

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A abordagem da sexualidade no currículo das escolas brasileiras é uma discussão

antiga que vem se intensificando desde a década de 1970, impulsionada por

mudanças comportamentais de adolescentes e jovens e intensificada pelos

movimentos sociais, particularmente, o movimento feminista. A retomada

contemporânea dessa questão se deu a partir de meados dos anos 1980, em virtude

da preocupação social com o anunciado crescimento de incidência de gravidez na

adolescência e com o risco de infecção pelo Human immunodeficiency vírus (HIV)

entre adolescentes e jovens. (RIBEIRO, 2013, p. 1)

A autora destaca que a inclusão da temática de sexualidade na agenda de prioridades

do poder público, assim como as demais questões sociais, é dada somente quando

governantes e grupos sociais a consideram como um problema, isto é, essas questões não são

determinadas a partir de um viés técnico, mas sim por um viés de demanda, uma vez que “os

problemas sociais passam a existir na agenda de políticas públicas, a partir do momento que

grupos sociais encaram determinadas situações como merecedoras de atenção pública”

(RIBEIRO, 2013, p. 1). No que se refere à estrutura escolar, a atual conjuntura mantém séria

resistência a todo e qualquer tipo de segmento da diversidade e, sobretudo, à categoria

LGBT*.

Toda essa configuração a respeito do cenário nacional de educação serve de parâmetro

para o interesse de discutir a empregabilidade de travestis, transexuais e transgêneros, haja

vista que a escolaridade é fator primordial para o acesso ao mercado de trabalho. Para Souza

et al.,

Existe uma íntima relação entre o trabalho e a educação na atualidade. [...] O

período escolar tem um impacto direto e decisivo nas possibilidades de inserção do

indivíduo no mundo do trabalho. Ou seja, o nível de escolaridade poderá, por

conseguinte, definir o acesso às oportunidades e a inserção mais ou menos precárias

no mundo do trabalho. (SOUZA et al., 2016, p. 6)

Travestis e transexuais são negligenciadas em vários espaços sociais. Repelidas das

escolas, são vítimas do machismo, racismo, transfobia e uma série de violências perpetradas

por colegas e pelos próprios educadores. A escola brasileira reproduz valores hegemônicos

encarcerados em lógicas homogêneas, sexistas e classistas, estando ainda muito aquém dos

ideais inclusivos e emancipatórios. E grande parte dessas estruturas se deve às concepções

retrógradas e conservadoras de partes da política partidária brasileira. Para Louro,

A escola é, sem dúvida, um dos espaços mais difíceis para que alguém “assuma” sua

condição de homossexual ou bissexual. Com a suposição de que só pode haver um

tipo de desejo sexual e que esse tipo – inato a todos – deve ter como alvo um

indivíduo do sexo oposto, a escola nega e ignora a homossexualidade

(provavelmente nega porque ignora) e, desta forma, oferece muito poucas

oportunidades para que adolescentes ou adultos assumam, sem culpa ou vergonha,

seus desejos. O lugar do conhecimento mantém-se, com relação à sexualidade, como

lugar do desconhecimento e da ignorância [...]. Os discursos sobre a sexualidade

evidentemente continuam se modificando e se multiplicando. Outras respostas e

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resistências, novos tipos de intervenção social e política são inventados. Atualmente,

renovam-se os apelos conservadores, buscando formas novas, sedutoras e eficientes

de interpelar os sujeitos (especialmente a juventude) e engajá-los ativamente na

recuperação de valores e de práticas tradicionais. [...] agora mais do que antes,

outros discursos emergem e buscam se impor; estabelecem-se controvérsias e

contestações, afirmam-se política e publicamente, identidades silenciadas e

sexualmente marginalizadas. (LOURO, 2010, p. 18 e 32, aspas da autora)

Exemplo disso são as ideações manipuladas e subjacentes ao estratégico Projeto

Escola Sem Partido. É possível compreender que, como instituição reprodutora das violências

e de valores hegemônicos, a escola “carece de capacidade de abarcar a diversidade e a

diferença”, pois sua atual estrutura torna a vivência escolar “uma experiência de exposição a

traumas para as crianças e jovens transexuais e travestis” (SOUZA et al., 2016, p. 7). Todo

esse panorama dificultará o ingresso no cenário empregatício. O trabalho é mais uma das

diretrizes da cidadania investigadas por esta pesquisa.

1.2.2. Trabalho

As transformações no mundo do trabalho são de ordem estrutural. Caracterizam-se por

processos que se modificam lentamente; no entanto, ainda assim, eles acabam gerando

impactos profundos sobre a sociedade enquanto conjunto. Nesse sentido, o assunto não se

atualiza por inteiro diante de problematizações contemporâneas e não exige, portanto, grandes

modificações, de modo que as principais tendências como, por exemplo, a informalidade no

trabalho, a precarização através da terceirização e o papel crescente dos arranjos territoriais

ainda se confirmem diante dos novos cenários sociopolíticos (DOWBOR, 2006).

O trabalho – considerado em suas dimensões dialéticas e seus reflexos nas dimensões

subjetivas – constitui atividade central na maior parte das relações humanas. Nesta pesquisa,

ele incorpora o paradoxo emancipatório e alienante. Se, por um lado, constitui atividade de

vital importância na configuração humana, por outro, estabelece-se como fonte de exploração,

afinal, sua própria origem deriva da palavra tripalium que, por sua vez, se associa a um

instrumento de tortura.

O trabalho na Antiguidade estava associado a esforço físico, cansaço e penalização.

A origem da palavra, no latim vulgar, associa trabalho/tripalium a um instrumento

de tortura feito de três varas cruzadas ao qual os réus eram presos. O trabalho

representava uma atividade indigna, reservada aos escravos. Aos que viviam

livremente, a subsistência vinha da coleta de frutos, da caça e outras atividades; o

tempo do trabalho era o da natureza – dia ou noite, com sol ou chuva. [...] Na era

moderna, o trabalho teve o seu significado transformado, passou de atividade

desprezada à condição de expressão da própria humanidade, fonte de produtividade

e riqueza. Com as mudanças sociais, econômicas, políticas e culturais, no século

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XX, a ideia do trabalho firmou-se como uma atividade valorizada. (ARAÚJO et al.,

2011, p. 51-52)

Como o destacado na introdução, busca-se os pressupostos teórico-metodológicos da

Psicologia sócio-histórica para a compreensão dessas transformações. Nesse sentido, Vigotski

e Luria (1996), tomando como base Marx e Engels, consideraram que a confecção e utilização

do instrumento com intenção de modificar a natureza para a sobrevivência do homem, ou

seja, a dominação da natureza através do trabalho, é a principal diferença entre homens e

animais. Em outras palavras, o processo de humanização só se tornou possível com o

aparecimento do trabalho:

A transformação do instrumento de trabalho significou o seu reconhecimento e a sua

conceituação (consciência). A partir dessa condição, o instrumento de trabalho

ganha condição simbólica e o trabalho instaura uma nova relação do ser com a

natureza: a consciência da transformação da natureza em seu próprio benefício.

(FURTADO, 2011, p. 43)

Desde então, o ser humano modifica a natureza, a fim de satisfazer suas necessidades e

de sobreviver. É a partir dessas transformações do meio, numa relação dialética, que ele

modifica a si mesmo e suas necessidades básicas. Como se trata, a partir de então, de

intervenção consciente na natureza, os homens e as mulheres desenvolvem entre si relações

sociais de forma a manter a sobrevivência coletiva, compreendendo a natureza e a si mesmos

e possibilitando o surgimento da cultura. Assim, tornam-se seres sociais e históricos

(FURTADO, 2011).

Kahhale e Rosa (2009) destacam que o trabalho, como atividade/práxis humana, é a

base do processo de objetivação-subjetivação. Com o desenvolvimento da consciência,

através do trabalho, possibilitou-se também o desenvolvimento do pensamento e da

subjetividade. Dessa forma, Furtado (2011) explica como se deu e se dá esse processo:

A base material é fundamental e dela deriva a base dos determinantes de produção

da própria humanidade [...]. Mas o jogo entre tais condições materiais e sua

subjetivação como forma de compreensão do mundo e condição para sua

transformação também é fundamental para a produção humana. De tal forma,

podemos afirmar que a partir da ação concreta do mundo (atividade), o ser humano

passa a constituir aspectos subjetivos de registro e significação que lhe permitem a

produção de sentidos que acompanham (sem ser reflexo) sua ação no mundo. Neste

processo de construção subjetiva aparece também o novo, ou seja, aquilo que ainda

não estava pensado ou significado. (FURTADO, 2011, p. 68)

Ou seja, num processo dialético, o sujeito interioriza a realidade material objetivada e

a interpreta; então, tal conteúdo passa a compor sua subjetividade, sua forma de compreensão

do mundo, ao mesmo tempo em que esse mesmo sujeito age também na realidade,

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transformando o que está subjetivado em produto, em objetividade. Ele é produto e produtor

de si e da história:

A organização social do trabalho materializa não apenas produtos para o consumo e

sobrevivência, mas também materializa e estabiliza formas de compreensão de si

mesmo e do mundo, sustenta o desenvolvimento concreto de projetos e

potencialidades especificamente humanas. O mundo resultante do trabalho humano

já não é um mundo meramente natural, mas um mundo social e histórico, repleto de

sentidos e significados construídos nos atos coletivos de produção. (FURTADO;

SVARTMAN, 2009, p. 84)

O trabalho é caracterizado primariamente como atividade vital humana, por meio da

qual o sujeito se relaciona com a natureza e com os outros sujeitos, produzindo e

reproduzindo suas condições humanas de existência. E isso só se torna possível em sociedade:

“Nesse processo, o homem estabelece relações com a natureza e com outros homens,

determinando-se mutuamente” (AGUIAR, 2015, p. 121).

1.2.3. Emprego

A significação do trabalho como emprego/ocupação só foi constituída com o

desenvolvimento das civilizações, a partir da Idade Antiga, com conotações de exploração,

fadiga e sofrimento. Antes disso, nas sociedades primitivas, o trabalho é coletivo e não

explorado (FURTADO, 2011). Com o advento do capitalismo, o trabalho ganha ainda novos

contornos, interferindo, assim, nos aspectos do processo de subjetivação. Aqui, interessa-nos

pensar como as transformações estruturais na esfera macrossocial, com a consolidação do

capitalismo, afetaram também as relações sociais – baseadas nas relações de produção – e

seus consequentes reflexos na subjetividade. Partimos, portanto, do pressuposto de que “as

relações de produção e o momento histórico interferem diretamente sobre o processo de

construção do repertório da consciência” (FURTADO; SVARTMAN, 2009, p. 79). Nesse

processo, o capital torna-se central e as necessidades mais básicas passam a ser referentes ao

poder de acumulação desse capital. Desse modo, como colocam Furtado e Svartman (2009),

“o trabalho perde seu caráter concreto, ele se torna meio de sobrevivência, de aquisição de

dinheiro, para que, então, necessidades humanas possam ser desenvolvidas e satisfeitas”

(FURTADO; SVARTMAN, 2009, p. 91).

Quando falamos das relações de produção, referimo-nos aos valores e normas sociais

que são construídos a partir dessas relações e reproduzidos no cotidiano. Nesse sentido,

Martins (2008) afirma que

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São as mudanças nos modos de produção que provocam as transformações dos

modelos organizativos da sociedade, ou seja, do sistema político e econômico que

lhe dá sustentação. Por isso, o elemento central na caracterização de uma sociedade

não reside nas ideias que os homens tecem sobre ela, mas no tipo de relação de

produção que nela se pratica. (MARTINS, 2008, p. 47)

O sistema capitalista de produção tem como principal objetivo a acumulação de

riqueza pela classe burguesa que, para isso, explora a mão de obra da classe trabalhadora. Por

isso, a divisão da sociedade em classes – classe trabalhadora e classe burguesa – torna-se

característica principal desse modelo.

A constituição de sociedades complexas organizadas através de classes sociais

produz um tipo de relação entre as bases materiais concretas de reprodução da vida e

a produção da compreensão dessa vida que descola uma da outra. A submissão de

um grupo humano, em geral numericamente superior, a outro grupo que disso tirará

proveito material, exige a constituição de um código de conduta que justifique a

submissão. (FURTADO, 2011, p. 82)

Enfatizando isso, trazemos a pesquisa realizada em 2015 pela ONG britânica Oxfan,

que concluiu que 1% da população mundial possui uma proporção de riqueza equivalente à

totalidade dos 99% restantes, demonstrando a descomunal desigualdade social (REUBEN,

2016)9. Faz-se importante destacar o fato de que, mesmo que a maioria da população seja de

classe mais pobre, esse quadro não está perto de se reverter pelo poder popular.

Entendemos esse código de conduta que justifica a submissão dos indivíduos

explorados pelo modo de produção capitalista como normas, valores morais, processos

ideológicos – como a naturalização da pobreza, a meritocracia, a diferenciação de raça, de

gênero, etc. – que fragmentam a consciência e que ocultam essas relações de dominação

(FURTADO; SVARTMAN, 2009; FURTADO, 2011). Tal processo é denominado de

alienação. De acordo com Furtado (2011), “a alienação é uma condição objetiva/subjetiva,

produzida através de uma base material concreta ocultada ideologicamente na divisão das

classes sociais e suas formas de dominação” (FURTADO, 2011, p. 88). Desse modo,

ideologia e alienação são partes de um mesmo processo que age na manutenção do statu quo.

“O homem está alienado de sua capacidade de agir livre e conscientemente, de apropriar-se de

sua história, podendo coletivamente construir e reconhecer-se no mundo constituído”

(FURTADO; SVARTMAN, 2009, p. 92). Assim, não há mais sentido no trabalho realizado.

Nesse contexto, destacam-se as ideologias liberais e neoliberais do sistema, cujos

pressupostos são baseados no livre funcionamento do mercado, no “Estado mínimo”,

estimulando, assim, a concorrência (tanto da venda fora de trabalho como de consumo). Dessa

9 Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160118_riqueza_estudo_oxfam_fn>.

Acesso em: 03 abr. 2017.

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forma, coloca-se que o mercado deve regular-se por si mesmo, sem a intervenção estatal. Para

isso, o indivíduo que prospera o fez pelo merecimento através do seu trabalho,

desconsiderando todo o contexto histórico e social em que ele está inserido. Como esse é o

modo de pensar da classe dominante, ele é colocado como referência a todos os demais

grupos, naturalizando os fenômenos sociais: “O tempo se encarrega de esconder o ardil oculto

do argumento central que justifica o privilégio” (FURTADO, 2011, p. 83).

Reflexos dessas políticas são traduzidos no aumento do desemprego e na diminuição

das políticas públicas sociais, já que não caberia mais ao Estado a manutenção dos direitos

sociais e o mercado se regularia pela livre concorrência (GONÇALVES, 2010). Porém, possui

um papel primordial uma parcela da população que resiste e luta para que os mecanismos

contraditórios e perversos do capitalismo sejam desvelados, pressionando o Estado no que

tange à regulação das relações de trabalho e aos direitos sociais, conforme a abordagem

seguinte.

1.3. Direitos sociais e políticas públicas

Anteriormente, discutiu-se sobre o processo de produção capitalista como o principal

aspecto constitutivo de uma sociedade desigual e dividida em classes sociais econômicas.

Porém, a exploração da classe trabalhadora, com vistas ao acúmulo de capital de apenas uma

parcela da população, nem sempre foi – ou/e é – vivida passivamente pelos que estão sendo

explorados. Como explica Gonçalves (2010), as condições desumanas de trabalho passaram a

ser denunciadas e combatidas pelos trabalhadores, principalmente de duas maneiras: pela ação

direta contra os patrões, por meio de destruição de máquinas, organização em sindicatos e

greves; e pelas lutas contra o Estado e as leis que favoreciam os proprietários, por meio de

reconhecimento de direitos humanos e sociais e, a partir disso, reivindicações por reformas

políticas. Cada vez mais, reivindica-se a garantia dos direitos sociais por lei.

Na questão do trabalho, no Brasil, em 1943, no governo de Getúlio Vargas, é

sancionado o Decreto de Lei nº 5.452, amplamente conhecido como CLT (Consolidação das

Leis Trabalhistas), considerado um grande avanço para a regulamentação das condições de

trabalho no Brasil. Em 1988, é promulgada a Constituição Federativa do Brasil, que traz em

seu bojo o reconhecimento dos direitos reivindicados pela população nos anos de 1970 e 1980

e o dever do Estado em garanti-los.

Assim, os direitos sociais e a construção de políticas públicas estão intimamente

relacionados com o trabalho e com os trabalhadores, que foram os primeiros a se organizar e

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exigir a intervenção do Estado por melhores condições de vida, pelo reconhecimento e pela

garantia de seus direitos. Mas as políticas públicas também são realizadas de maneira

contraditória. De acordo com Gradella Júnior (2008) e Gonçalves (2010), como forma de

abafar as contradições inerentes ao capitalismo, o Estado realiza intervenções que, apesar de

atender a algumas reivindicações sociais, também é uma forma encontrada para a manutenção

da produção e reprodução do capital.

Em uma sociedade de caráter aberto como a capitalista teremos inúmeros jogos de

interesse e incontáveis possibilidades de formulação e interpretação dos interesses

de classes que muitas vezes aparecem como contraditórios entre si. No entanto, em

última instância, obedecem a um único senhor: o capital [...]. (FURTADO;

SVARTMAN, 2009, p. 82)

O cenário de maior ou menor intervenção do Estado acompanha a situação econômica

do país. Assim, com a crise do capital em 1970 e o advento das políticas neoliberais como

tentativa de superar as crises econômicas, compôs-se um cenário de aumento de desemprego,

de privatizações, de crescimento dos monopólios e de diminuição do papel do Estado nas

esferas da proteção social (GONÇALVES, 2010). Como forte exemplo disso, vale registrar

um dos fatores impactantes e recentes no cenário nacional. Seguindo a agenda do

neoliberalismo com a justificativa da manutenção da economia frente à crise brasileira, o país

coloca em pauta a temática da flexibilização do trabalho para a adequação do trabalhador às

novas formas impostas de organização trabalhista para a acumulação de capital. Em março de

2017, é sancionada a “lei da terceirização” (Lei nº 13.429/2017), restringindo as regras e leis

de proteção ao trabalhador contidas na CLT e abrindo-se espaço, novamente, para a

precarização do trabalhador. Temos, aqui, exemplo claro do papel do Estado como regulador

e mantenedor do sistema capitalista.

Nesse sentido, há que se concordar com Gonçalves, no tocante ao fato de que as

medidas tomadas vêm acompanhadas de um discurso de uma nova concepção de direitos e

cidadania, camuflando o real interesse: a manutenção do sistema capitalista.

O que se observa em todo esse processo é que as mudanças na concepção de Estado

e nas políticas sociais, que expressam novas tentativas capitalistas de superar as

crises econômicas, afetam a concepção de direitos e de cidadania construídas ao

longo dos dois últimos anos. Não se trata apenas de cortar direitos, mas de redefinir

a própria noção de direitos e cidadania, em uma dinâmica de avanços e recuos

relacionados a diversos fatores econômicos, políticos e sociais, os quais, em última

instância, falam das contradições estruturais do capitalismo e suas classes.

(GONÇALVES, 2010, p. 57-58)

Cabe, então, à Psicologia, firmando seu compromisso social, atuar na transformação

social, junto aos movimentos e articulações que lutam para a promoção e garantia dos direitos

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sociais: “Trata-se de criar o espaço social necessário para o desenvolvimento de todos os

indivíduos, para que alcancem as mais avançadas conquistas humanas presentes neste

momento histórico” (GONÇALVES, 2010, p. 64).

No tocante às políticas públicas e à dimensão subjetiva, a subjetividade é aqui “[...]

apreendida como um complexo e plurideterminado sistema, afetado pelo próprio curso da

sociedade e das pessoas que constituem dentro do contínuo movimento das complexas redes e

relações que caracterizam o desenvolvimento social”. Portanto, podem ser compreendidas

“[...] como mediações que devem concretizar direitos sociais e condições de vida dignas para

a classe trabalhadora [...]” devendo “[...] contar com a participação dos próprios sujeitos a

quem se destinam” em prol “[...] de forças que apostam no coletivo, na transformação e

construção de outras relações políticas [...]” (MANCEBO, 2010, p. 12, 13 e 15).

Essas construções históricas servem de parâmetros para se pensar as configurações

trabalhistas de diversos segmentos populacionais em situação de vulnerabilidade social. O

levantamento bibliográfico acerca da diversidade sexual ainda é bastante escasso. No que se

refere especificamente ao recorte da população LGBT*, encontram-se obras como Dantas e

Freitas (2012), que problematizam questões de gênero, sexualidade, diversidade sexual e

relações culturais no mercado de trabalho, ou Sanches (2009), que a partir da interface

jurídica do direito problematizou a discriminação por orientação sexual no contrato de

trabalho. Partindo desses pressupostos, o próximo eixo traz dados acerca da

representatividade trans no mundo do trabalho.

1.4. Travestis no mercado de trabalho

“Tenho um livro chamado ‘Por Um Lugar ao Sol — Travestis e Transexuais no

Mercado Formal de Trabalho’, em que trago cinco histórias de vida de trans que

estão trabalhando em profissões como enfermeira, professora e policial. Mas que

não consegui publicar porque a maioria das editoras que levei disse: ‘As pessoas não

querem saber de travestis trabalhando, mas se você escrever um livro sobre a vida

das que fazem programa, a gente vai achar ótimo’.” (Neto Lucon)10

A frase ilustrativa desse subcapítulo serve como provocação à academia. Os recursos

midiáticos e acadêmicos são abarrotados de informações sobre a comunidade trans e os

espaços de prostituição. Conforme o discutido no eixo 1.1, a inserção trabalhista torna-se um

paradoxo quando são necessárias ações e políticas afirmativas no âmbito social para o acesso

de populações vulneráveis. Nesse sentido, Souza et al. (2016), ao pontuarem as dificuldades

10 Disponível em: <http://www.revistaforum.com.br/digital/132/sem-emprego-para-trans/>. Acesso em: 02 jan.

2017.

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de inserção laboral de travestis e transexuais, atentaram para o fato de haver um não intuito

determinista quanto à positivação da vida profissional. Nessa mesma perspectiva, não se

abrilhanta aqui ingenuamente a inserção ou a competitividade num sistema socioeconômico

capitalista;no entanto, há que se atentar às múltiplas exclusões que estrategicamente barram

essa população antes mesmo da largada. Embora existam projetos e iniciativas11 que buscam a

inserção da população trans nos cenários escolar e trabalhista, grupos ativistas registram as

grandes dificuldades de seus cotidianos.

Estudos realizados pela ANTRA apontam o número de 90%12 das travestis e

transexuais ocupando os espaços de prostituição no cenário nacional. Bastante difundido entre

os estudos da área, o dado aponta a prostituição como a única possibilidade de subsistência,

além de ser fruto da evasão escolar – devido à transfobia – e consequência da exclusão do

mercado de trabalho formal. Oliveira concebe que “estudar os modos de subjetivação e os

meios de incorporação das travestis no mercado de trabalho é contribuir para que sejam

assegurados os direitos humanos e o pleno exercício da cidadania” (OLIVEIRA, 2015, p. 2).

Conforme o evidenciado anteriormente, o acesso à educação e o ingresso no mercado de

trabalho formal apresentam uma íntima correlação. Dadas as importâncias de seus acessos,

Souza et al. (2016) consideram que o período escolar tem um impacto direto e decisivo na

inserção do indivíduo no mundo do trabalho, sendo a escolaridade o grande implicador no

acesso às oportunidades e na inserção trabalhista.

No que se refere especificamente ao mercado de trabalho, “[...] em razão dos

problemas relacionados à sua aceitação pela sociedade, as travestis desenvolvem estratégias

de inserção profissional, que podem ser mais defensivas ou mais ofensivas” (RONDAS;

MACHADO, 2015, p. 194). De acordo com 12 entrevistadas em exercício profissional, os

autores coletaram os dados das funções de cozinheira, faxineira, profissional do sexo,

massagista, fotógrafa freelancer, guarda-patrimonial, operadora de telemarketing, manicure,

depiladora, cabeleireira, processadora de alimentos e proprietária de salão de beleza, sendo

possível que ocupassem até três funções concomitantes, de modo que grande parte delas

exerce a função de profissional do sexo. “As formas usadas pelas travestis entrevistadas para a

obtenção de emprego ou construir um empreendimento têm sido os contatos pessoais, as

influências de amigos, as referências de antigos empregadores e as associações entre amigas”

(RONDAS; MACHADO, 2015, p. 197). Oliveira relatou como raras as travestis que

11 Damas, Prepara, Nem, Trans Empregos e o próprio Programa Transcidadania são exemplos desses projetos. 12 Disponível em <http://www.ebc.com.br/cidadania/2015/11/preconceito-afasta-transexuais-do-ambiente-

escolar-e-do-mercado-de-trabalho>. Acesso em: 12 dez. 2016.

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concluem seus estudos e/ou ingressam no mercado de trabalho. A autora destacou que, “De

fato, maior parte das travestis já se prostituiu, ou ainda estão em prostituição. Quando aceitas

no mercado de trabalho formal, ocupam posições subalternas e, majoritariamente,

operacionais em indústrias específicas, a saber: entretenimento, lazer e beleza” (OLIVEIRA,

2015, p. 14).

Para Ramos e Andrade, o difícil acesso ao mercado de trabalho é o fator motriz do

ingresso de travestis e transexuais no mercado da prostituição. As autoras salientam a

importância do Estado “[...] como agente transformador dessa realidade brasileira, pois como

mantenedor do poder deve promover e inserir políticas que permitam a essas categorias se

sentirem representadas e assistidas por um direito constitucional [...]”, para que se possa “[...]

validar como possível a entrada de transgêneros no mercado de trabalho formal [...]”

(RAMOS; ANDRADE, 2017, p. 214).

Além dos índices de prostituição, Vasconcelos atenta para a informalidade do trabalho

à qual está submetida a população trans. A autora toca, ainda, em outro fator de crucial

empecilho para o ingresso no mercado de trabalho, a dificuldade de obter o nome social,

sobretudo para as travestis:

Há a questão do nome civil que só os/as transexuais conseguem mudança, apenas o

diagnóstico de transtorno de identidade de gênero e através de ação na justiça. A

partir de leituras jornalísticas, observei que nem sempre os juízes concedem a

alteração do nome civil, mesmo após a mudança de sexo. Em contrapartida, há

juízes que concedem o novo nome civil sem a necessidade de cirurgias. Com isso,

constatei que há casos pontuais e não uma garantia plena dos direitos das travestis e

dos/das transexuais. (VASCONCELOS, 2014, p. 6)

Souza et al. denunciaram que, para além dos processos de capacitação,“[...] a inserção

de travestis e pessoas transexuais no mercado de trabalho formal, requer [...] a criação de uma

estrutura sólida para que os estigmas e os preconceitos não preponderem nem na sua

contratação nem no ambiente de trabalho” (SOUZA et al., 2016, p. 9). Na mesma perspectiva

transcendente à qualificação, Oliveira concebe como evidente a “[...] necessidade de

implementação nas organizações empresariais de políticas que viabilizem a inclusão das

travestis em seus quadros funcionais” (OLIVEIRA, 2015, p. 12). Já para Moura e Lopes

(2014), “Mesmo existindo políticas públicas que visam reduzir os impactos sociais e

profissionais para as travestis, o mercado de trabalho ainda é permeado de preconceito,

acarretando assim na discriminação” (MOURA; LOPES, 2014, p. 11). Uma vertente adicional

a essas lógicas refere-se aos compromissos das empresas com os direitos humanos. Nesse

sentido, “A discriminação que as travestis e os/as transexuais sofrem no mercado de trabalho

deve ser revertida em responsabilidade social para as empresas”, uma vez que “Incluir

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pessoas diferentes num mesmo ambiente promove inclusão, criatividade, maior produção de

ideias e opiniões sobre um determinado assunto, integração, sentimento de pertencimento e

aceitação social, retenção de talentos, entre outros benefícios” (VASCONCELOS, 2014, p.

10).

O presente capítulo buscou desnaturalizar os fenômenos sociais, revelando o caráter

histórico de processos tomados como naturais e universais, para que, assim, se possibilite a

conscientização social dos mecanismos perversos e contraditórios que permeiam o modo de

produção capitalista. A partir daí, evidenciou-se a necessidade de construção de novas formas

de relações sociais pensadas a partir do acesso à cidadania e de um formato de educação

pensado a partir desta. Assim, foi possível evidenciar o atual cenário nacional de educação

como o combustível que paradoxalmente resulta na mazela e na conquista que é o Programa

TransCidadania.

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2. O LUGAR SOCIAL DAS PESSOAS TRANS

“Eu saí de casa com 17 anos a ponto de explodir e o único lugar que foi me receber

de portas abertas foi uma ‘zona’. Quando o meu pai foi me buscar, eu estava me

prostituindo com 17 anos. E não porque eu tivesse vocação para isso, mas eu queria

encontrar um lugar no mundo que acolhesse o meu direito a ser o que eu queria ser.”

(Tânia Granussi, em Questão de Gênero)13

O objetivo do presente capítulo é problematizar a transgeneridade e a travestilidade

brasileira, a partir de seu lugar social, de modo a evidenciar suas demandas, bem como a

relevância de programas sociais voltados à população trans(T)14. Trata-se de uma introdução

que visa ilustrar e justificar a importância do Programa TransCidadania e seus projetos

políticos, a serem traçados no capítulo seguinte. Dentre as problematizações propostas, o

presente capítulo busca, ainda, posicionar-se frente à construção de saberes científicos

imbricados nesses campos, ao discutir a construção sociopolítica trans que é, em grande

escala, denunciada estatisticamente a partir de lugares negligenciados por diversas esferas

sociais.

Nesse percalço, cabe ainda considerar que a relação com os achados, sobretudo com

os números, é uma construção capciosa, se olhada a partir de uma única essência. Por outro

lado, é a legitimação numérica que garante que o Estado cumpra o papel de garantir direitos

através da criação de políticas públicas. Assim, se este trabalho parte de uma lógica

declaradamente paradoxal, conforme se denotará adiante, entende-se que as estatísticas de

morte, assassinatos, margem de empregabilidade e muitas outras, implícitas na existência

trans de baixa classe, devem transcender o viés sensacionalista e servir a uma lógica efetiva

na garantia de direitos e na promoção da cidadania nos setores públicos da sociedade. Busca-

se, nesse ponto, portanto, estabelecer outras relações com os achados teóricos, estatísticos,

quantitativos e qualitativos, considerando a dimensão subjetiva dentro do sistema

socioeconômico e de capital no Brasil. Isto é, ainda que sejam instrumentos brutos, o que

querem dizer tais achados numéricos? Por que querem? Como podem ser traduzidos

eticamente, considerando-se o fator da individualidade humana, longe de generalizações?

Quem são as travestis, mulheres transexuais, homens trans e pessoas transgêneros no cenário

contemporâneo macrossocial e que lugares ocupam? Por que ocupam? Essas e muitas outras

13 Documentário com direção, roteiro e produção de Rodrigo Najar em 2008. 14 O termo “População T” mostra-se uma corrente conceitual em algumas abordagens populares do movimento

de Homens Trans, Mulheres Trans, Travestis, Transexuais e outras Transgeneridades, além de ser utilizado numa

modalidade exclusiva da bibliografia do Programa Transcidadania. Disponível em: <http://koinonia.org.br/wp-

content/uploads/2017/05/koinonia.org.br-transcidadania-praticas-e-trajetorias-de-um-programa-transformador-2-

online_transcidadania_praticas_e_trajetorias_de_um_programa_transformador-1.pdf>. Acesso em: 05 jun. 2017.

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indagações são delineadas a partir de trajetos de movimentos sociais, de militâncias e também

de “limitâncias”.

Embora se busque a perspectiva de empoderamento trans no processo de produção

desta pesquisa, este trabalho traz em seus achados os lugares e as violências interpostas nas

existências e culminâncias da população trans, a partir de uma série de reflexões teóricas. As

violências experienciadas pela população trans, além dos assassinatos e espancamentos,

encontram também concentração no âmbito moral e simbólico. São apresentadas na forma de

negligências e preconceitos, quando não são caracterizadas como violência “palpável”

socialmente. Além das violências experimentadas nesses discursos verbais e no cenário moral,

ainda na contemporaneidade, uma série de registros denunciam a condição de precariedade,

de violência e de vulnerabilidade social.

Relatórios, registros e dados organizados por comunidades militantes15 denunciam que

mais de 2.000 pessoas trans foram assassinadas nos últimos 8 anos no cenário mundial. O

projeto Observatório de Pessoas Trans Assassinadas (TMM) iniciou-se em abril de 2009 e,

desde então, tem feito sistematicamente o monitoramento, a compilação, e a análise das

denúncias de homicídios de pessoas trans e de gênero diverso no cenário mundial. No período

de 1º de janeiro de 2008 a 31 de dezembro de 2015, foram reportados cerca de 2.016

homicídios de pessoas trans e de gênero diverso em 65 países, sendo mais de 1.500 da

América do Sul e Central. Especificamente, registram-se 1.573 assassinatos em 23 países na

América Central e do Sul, o que representa 78% dos homicídios reportados em todo o mundo,

179 assassinatos em 16 países asiáticos, 137 assassinatos na América do Norte, 112

assassinatos em 16 países europeus, 10 assassinatos em 4 países africanos e 5 assassinatos em

4 países na Oceania.

O Brasil ainda lidera o ranking de país que mais mata travestis e transexuais. No

entanto, pesquisas apontam que o país lidera também o ranking de consumo de pornografia

envolvendo as pessoas trans16, fato que denota, no mínimo, uma perversão e fetichização

social. Ainda no cenário nacional, o último relatório (2016) do Grupo Gay da Bahia (GGB)

apontou o número de 343 assassinatos de pessoas LGBT* no país por atos de crueldade,

enforcamentos, pauladas, apedrejamentos, tortura e queima do corpo. Desse número, a

especificidade trans representou 42%, sendo os estados de São Paulo, Bahia, Rio de Janeiro e

15 Disponível em: <http://transrespect.org/wp-content/uploads/2016/03/TvT_TMM_TDoV2016_PR_PT.pdf>;

<https://homofobiamata.wordpress.com/estatisticas/relatorios/>; <http://transrespect.org/es/trans-murder-

monitoring/tmm-resources/>; <http://tgeu.org/transgender-day-of-visibility-2016-trans-murder-monitoring-

update/>. Acesso em: 07 jun. 2017. 16 Disponível em: <http://www.revistaforum.com.br/2017/01/28/brasil-e-o-pais-em-que-mais-se-procura-

pornografia-trans-e-que-mais-se-mata-pessoas-trans/>. Acesso em: 07 jun. 2017.

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Amazonas os líderes desses rankings. Numa perspectiva geral, o relatório destacou que “Tais

mortes crescem assustadoramente: de 130 homicídios em 2000, saltou para 260 em 2010 e

para 343 em 2016. Durante o governo FHC mataram-se em média 127 LGBT* por ano; no

governo Lula 163 e no governo Dilma/Temer, 325” (GGB, 2016)17. Na especificidade trans, a

Rede Nacional de pessoas Trans no Brasil (RedeTrans), liderada pelos militantes Sayonara

Naider Bonfim Nogueira18, Tathiane Araújo Aquino19 e Euclides Afonso Cabral20,

disponibiliza um monitoramento anual online21 dos atos e tentativas de homicídios, suicídios

e violação dos direitos humanos espalhados pelo país. Na publicação do dossiê do último ano

(2016)22, o levantamento da rede identificou 144 assassinatos de pessoas trans, cujas causas

de morte se dividiram entre afogamento, arma branca, arma de fogo, asfixia, atropelamento,

carbonização, casos de corpos mortos encontrados em estado de putrefação, espancamento,

esquartejamento, pauladas, pedradas, tortura e casos sem identificação.

Os registros numéricos são alarmantes e de extrema relevância. Essas articulações

denotam um importante aspecto do movimento social contemporâneo, que se organiza

também nos espaços virtuais. Conforme destacou o dossiê numa cartografia dos corpos trans,

“[...] casos estes [são] notificados pela imprensa, redes sociais e repassados também através

de grupos de WhatsApp. Alguns grupos do Facebook ainda foram de suma importância para

este trabalho, como o Mundo T-Girl, e as páginas do jornalista Neto Lucon e Travestis e

Transexuais brasileiras” (NOGUEIRA et al., 2017, p. 47).

No cenário acadêmico, a título de exemplo, o estudo descritivo de homofobia e

vulnerabilidade ao HIV/Aids entre 110 travestis da região metropolitana do Recife, realizado

por Sousa et al. (2013), traz dados concretos acerca do lugar social trans. Dentre os diversos

números acerca da vulnerabilidade ao HIV/Aids, a pesquisa também mostrou que “[...] as

situações de violência mais vivenciadas pelas travestis foram as agressões verbais (81,8%) e

físicas (68,2%)”. No que se refere ao tratamento policial, observou-se ainda que 56,4% das

17 Disponível em: <https://homofobiamata.files.wordpress.com/2017/01/relatc3b3rio-2016-ps.pdf>. Acesso em:

07 jun. 2017. 18 Pesquisadora principal da rede, é licenciada em Geografia pela Universidade Federal de Uberlândia,

especialista em Atendimento Educacional Especializado e Coordenação Pedagógica, técnica em Políticas

Públicas de Gênero e Raça. Atua como professora da Rede Pública Estadual de Minas Gerais, como consultora

acadêmica e secretária de comunicação da RedeTrans Brasil. 19 Presidenta da RedeTrans Brasil, presidente da ONG Astra – Aracaju (SE), conselheira do Conselho Nacional

de Combate à Discriminação LGBT* (CNCD/LGBT*). 20 Graduando em Pedagogia pela Universidade Federal de Uberlândia, é estudante de Gênero, atuando como

professor/educador e como secretário do Grupo União LGB. 21 Disponível em: <http://redetransbrasil.org/index.html>. Acesso em: 07 jun. 2017. Nesse acesso à rede, foram

contabilizados 69 casos de homicídio e 33 tentativas de homicídio. 22 Disponível em: <http://redetransbrasil.org/uploads/7/9/8/9/79897862/redetransbrasil_dossier.pdf>. Acesso em:

07 jun. 2017.

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travestis já tinham sido maltratadas por policiais ou mal atendidas em delegacias, e também

deixado de ser selecionadas para emprego ou haviam sido demitidas alguma vez na vida . No

ambiente escolar, 48,2% informaram que já tinham sido maltratadas por colegas ou

professores e, dentre as travestis que abandonaram os estudos, 32,2% referiram que o motivo

se deveu ao fato de ser travesti. O estudo também traz dados a respeito dos espaços de

convivência e da esfera pública. No ambiente religioso, 50,9% referiram discriminação nesses

locais. No comércio e em locais de lazer, o mesmo percentual de entrevistadas referiu que já

havia recebido tratamento diferenciado ou sido impedidas de frequentar algum desses locais.

Quase metade (47,3%) das entrevistadas sofreu discriminação em ambiente familiar e também

em grupos de amigos e vizinhos, sendo que o menor percentual de discriminação, 31,8%, foi

observado nos serviços ou por profissionais de saúde.

O estudo também destacou que os homens apresentaram mais reação de hostilidade

contra as travestis. Verificou-se que, “[...] das 84 travestis que saíram de casa alguma vez na

vida, 53, isto é, 63,1%, relatou que o fato se deu a partir de preconceitos por condição sexual.

Dessas 53 travestis, 79,2% tinham menos de 18 anos de idade, quando deixaram suas famílias

pela primeira vez. Observou-se também que dessas 53 travestis, 75,5% assumiram identidade

sexual de travesti com menos de 18 anos. O estudo também concebeu a baixa escolaridade

das travestis como um fator contribuinte para o aumento da vulnerabilidade ao HIV/Aids e

outras DST”, além de evidenciar o predomínio de travestis nas classes sociais mais baixas, E

(14,7%) e D (34,9%), o que denota uma condição socioeconômica precária; outra categoria

colhida refere-se ao componente ‘raça/cor’, 78,2% das travestis pertencem à condição negra e

parda e 32,7% responderam que já tinham sido presas alguma vez na vida. Discutindo o

cenário educacional das travestis, o estudo mostra que a população está abaixo da média

nacional e, inclusive, da média regional do Nordeste, uma vez que 44,9% não conseguiram

completar o ensino fundamental completo. Também devem ser considerados esses achados

acerca das formas e sistemas de violências sociais como fatores diretamente correlacionados à

longevidade da população T, uma vez que apenas 5,4% possuíam idade superior a 40 anos

(SOUSA et al., 2013).

A relação que este trabalho estabelece com as estatísticas busca encontrar brechas nas

dimensões subjetivas, a fim de atingir interpretações compromissadas eticamente referentes às

configurações do eixo trabalhista da população trans. No entanto, ao evitar “objetificar” a

condição trans, sob perspectivas generalistas e causais do processo de fazer ciência, há que se

concordar com Carvalho que, na perspectiva da Psicologia Social, constatou que “Há

inúmeras situações problemáticas enfrentadas pelas transgêneros dentro do contexto social: o

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preconceito familiar, escolar, afetivo, profissional”, que acabam por configurar uma série de

marginalizações. “Um tipo de marginalização resultante do preconceito aos diferentes é a

exclusão no mundo do trabalho. Aqueles/as que vão contra os ditames sociais são colocados

como transgressores” (CARVALHO, 2006, p. 2 e 6). Para Peres e Toledo, “[...] eles e elas

denunciam a crise dos paradigmas e das referências sobre as identidades sexuais e dos

gêneros que se processa dentro de um registro binário, sedentário e universalista, abalando

todas as certezas que insistem na efetuação de verdades absolutas e acabadas” e, como

contrapartida, “[...] essa experiência de estigmatização no seio da família dá início a um

processo de enfraquecimento da autoestima e da crença em si mesmo(as)” (PERES;

TOLEDO, 2011, p. 266 e 274).

Desse modo, busca-se aqui uma compreensão acerca dos sistemas mantenedores

desses cenários de negligências, preconceitos e múltiplas discriminações, traçados na

construção política e sócio-histórica da existência trans. Para tanto, percorrer-se-á um trajeto

de linear discussão que abarque reflexões acerca dos paradoxos entre igualdades e diferenças,

a fim de evidenciar não somente o lugar social, mas, sobretudo, a categoria política na qual se

culmina a existência trans, desde sua socialização até suas mobilizações no cenário

sociopolítico brasileiro.

2.1. Do sexismo embrionário em identidades pressupostas aos processos de

socialização

“Que vai ser quando crescer?

Vivem perguntando em redor. Que é ser?

É ter um corpo, um jeito, um nome?

Tenho os três. E sou?

Tenho de mudar quando crescer? Usar outro nome, corpo e jeito?

Ou a gente só principia a ser quando cresce?

É terrível, ser? Dói? É bom? É triste?

Ser; pronunciado tão depressa, e cabe tantas coisas?

Repito: Ser, Ser, Ser. Er. R.

Que vou ser quando crescer?

Sou obrigado a? Posso escolher?

Não dá para entender. Não vou ser.

Vou crescer assim mesmo.

Sem ser Esquecer.”

(Carlos Drummond de Andrade – Verbo Ser)

Compreender, ainda que brevemente, os processos relacionados à produção de

identidades trans configura-se como o ponto de partida de um trajeto que se pretende

articulado à dimensão subjetiva. No atual cenário social brasileiro, as questões de gênero e

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sexualidade ainda ocupam o lugar de questionamentos, mobilizações pró e contra, além de

ceticismos enraizados em óticas biologizantes e naturalistas.

Discussões, ações e resistências estão inscritas na iniciativa popular, nas políticas

públicas e nas mais diversas modalidades religiosas, conforme veremos no tópico seguinte.

Padrões hegemônicos, essencialistas, naturalistas e fundamentalistas imperam sob uma lógica

binária dos gêneros, presente nas relações sociais e na constituição de subjetividades

humanas. Ainda se confundem sexo e gênero, tidos como categorias uníssonas, numa

abordagem essencialista, de modo que as configurações educacionais, desde a infância, são

instauradas por óticas binárias e sexistas a determinar seus papéis sociais, sendo que, além

desses pressupostos, tal ótica carrega em seu bojo uma série de expectativas sedentas por suas

correspondências. Tais expectativas são depositadas muito antes do evento de nascer. O nome

atribuído ao bebê é uma delas: “[...] a criança ao nascer tem um nome escolhido pela família,

pelo qual será reconhecida e com ele viverá durante toda a sua existência [...], se esse nome é

completamente diferente daquilo com que a pessoa se identifica, torna-se um problema por

quase toda vida” (SIMPSON, 2011, p. 110).

Outra expectativa precoce e pressuposta é a preocupação com o status do código de

vestuário que, por exemplo, “[...] começa quando a gente ainda é bebê, hoje em dia mais

precisamente ainda no útero de nossas mães, quando elas decidem, com uma simples olhada

no resultado do ultrassom, se o nosso enxovalzinho vai ser rosa ou azul” (LANZ, 2015, p.

176). Através dessa norma sociopolítico-cultural, há um rito a ser traçado, papéis a serem

desenvolvidos e construções a serem moldadas, tudo isso com base em configurações

dicotômicas e até genitais. Como consequência desse cenário, o excedente de tais padrões e

expectativas acaba por ser incorporado e rotulado como marginal ou até mesmo anormal. Na

perspectiva de Lanz,

O que caracteriza a pessoa transgênera é a transgressão de normas do dispositivo

binário de gênero – homem/mulher ou masculino/feminino. Tal desvio, não importa

em que grau ou de que forma ocorra, é sempre duramente rechaçado, reprimido, e

castigado por atingir frontalmente o principal pilar da organização sociopolítica do

mundo em que vivemos: a divisão dos seres humanos em dois e somente dois grupos

de pessoas, homens e mulheres. Essa divisão [...] é antes de tudo um sistema de

controle [...], quem escapa da sua órbita coercitiva será “gentilmente convidado” a

voltar para a “normalidade” [...]. (LANZ, 2015, p. 19, aspas da autora)

Já Peres e Toledo conceberam que esses “[...] outros modos de existências não

identitários – da lógica binária – embaralham os códigos de inteligibilidade e apavoram os

viciados em identidades e desejosos de normas” (PERES; TOLEDO, 2011, p. 263). No que se

refere à existência humana, essa “normalidade” se configura um processo que se inicia de fora

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para dentro, isto é, todo esse ritual, depositado antes mesmo de o sujeito nascer, traz consigo

uma identidade pressuposta (CIAMPA, 2002).

Trabalhando a identidade como categoria analítica que considera um conjunto de

elementos contextuais – tais como os aspectos imbricados na esfera biológica, sociológica e

psicológica –, Ciampa (2002) explicita o quão investido é um nascituro, seja pelas

expectativas dos pais e familiares na esfera microssocial, seja pela própria sociedade

representada na esfera macrossocial. Há um investimento prévio como depósito de papéis: a

escolha do nome, a relação filial, que só é possível a partir dos genitores que se apropriaram

de seus papéis como tais, dentre outros depósitos. Esse processo de investimento, a posteriori,

culmina na internalização representativa pelo sujeito, incorporada pela objetividade social

posta. Se o sujeito não rompe com essa lógica, estará repondo esses papéis impostos e

culminando no mecanismo de cristalização. Assim, nessa lógica, uma identidade pressuposta

que é reposta “é vista como dada e não como se dando, num contínuo processo de

identificação” (CIAMPA, 2005 p. 66). Nesse sentido, compreendemos que a identidade não é

um dispositivo imutável, pois está em constante metamorfose (CIAMPA, 2005). Dessa forma,

a existência trans rompe com tal lógica em prol do reconhecimento de seu gênero transposto

numa “identidade política” (CIAMPA, 2002).

No tocante à identidade pressuposta, os exames de ultrassonografia podem caracterizar

o passo inicial de uma cadeia de investimentos e idealizações direcionadas ao nascituro,

dentro desses processos de constituição identitária. Disso decorre que o aspecto embriológico,

a verdade biológica instaurada no feto e sua interpretação, seja, talvez, o embrião da questão

social do gênero e, sobretudo, do sexismo, visto que, a partir daí, ela traz consigo uma

representação de papéis dicotomizados entre masculino e feminino, decorrente de uma

verdade genital ou, como refere Lanz, trata-se da “velha e surrada tarefa de classificar bebês

como homens ou mulheres, valendo-se unicamente de um pênis ou uma vagina presente nos

recém-nascidos (ainda que, de vez em quando, esbarrem na difícil tarefa de como classificar

bebês intersexuados...)” (LANZ, 2015, p. 28).

Nesse sentido, o momento do nascimento, e mesmo antes disso, na maioria das vezes,

concebe o sexo do sujeito como sendo determinante de seu gênero. Isso implica a lógica

médica e social de que um pênis e aparatos biológicos masculinos predispõem à ideia de

gênero pautada na masculinidade, tal como uma vagina e aparatos biológicos femininos

predispõem à ideia de gênero pautada na feminilidade. Ou seja, atribui-se exclusivamente à

configuração biológica da genitália a pretensão de definir o que é ser homem e o que é ser

mulher, desconsiderando-se, portanto, as subjacências do processo de constituição identitária

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do gênero, de modo que o aparato biológico impere na lógica biopsicossocial da constituição

humana. A esse respeito, Lanz refletiu que

Assim é que, por preguiça, ultrassimplificação e excesso de conservadorismo a

sociedade continua praticando o exagero de colocar em dois únicos órgãos – a

vagina e o pênis – a responsabilidade pela origem e a manutenção de um vasto

arsenal de diferenças existentes entre o homem e a mulher, a maioria delas

totalmente irreais e sem fundamento. Diferenças que incluem desde coisas ingênuas

e prosaicas, como cores e tipos de roupa “próprios” e “impróprios” para cada

categoria de gênero, até complexos e refinados atributos físicos, comportamentos,

atitudes, estilos de vida e papéis e funções na família e na sociedade. [...] ser mulher

ou ser homem está longe de ser um dado inexorável da natureza, como a ordem

(ainda) vigente prefere acreditar, tendo em vista a manutenção das estruturas sociais

construídas sobre essa divisão arbitrária e espúria dos seres humanos em dois

grupos, radicalmente opostos e totalmente irreconciliáveis, com base exclusivamente

no pênis e na vagina. (LANZ, 2015, p. 25-26, grifos da autora)

Gênero é, pois, uma categoria socialmente construída a partir das inter-relações e

independe dos aparatos biológicos como um fator determinante. Numa abordagem

construtivista, “[...] se compete à natureza definir o sexo, cabe ao meio social construir o

gênero” (DINIZ, 2014, p. 13). Nesse sentido, cabe mencionar os processos de socialização,

cuja função se refere a humanizar o sujeito e introduzi-lo nos moldes de sua sociedade e

cultura.

Berger e Luckman definem esse processo como uma “ampla e consistente introdução

de um indivíduo no mundo objetivo de uma sociedade ou de um setor dela” (BERGER;

LUCKMAN, 2014, p. 175), de modo que o trajeto percorre dois eixos de socialização. A

socialização primária é vivenciada na infância, sendo o primeiro processo de socialização

estruturante do sujeito. Já a socialização secundária é caracterizada pelos demais tipos

posteriores de socialização, que ocorrem no decorrer das relações sociais do sujeito, tais como

a educação formal, o trabalho, entre outros grupos performáticos. Ainda de acordo com

Berger e Luckman (2014), o processo de socialização primária é estruturante no sentido de

acarretar alta carga emocional que determinará e influenciará o curso dos demais processos de

socialização. Esse processo incumbe moldes e regras de sua cultura de origem e não se refere

propriamente à esfera macrossocial na qual está inserido o sujeito, mas, sobretudo, se espelha

nas idiossincrasias dos agentes socializadores, como, por exemplo, os pais da criança, que se

encarregarão de inscrever a própria ética e moral de acordo com valores instaurados

individualmente em suas biografias, tais como a identidade pressuposta. Nessa perspectiva,

assim assinala Louro:

[...] práticas e linguagens constituíam e constituem sujeitos femininos e masculinos;

foram – e são – produtoras de “marcas”. Homens e mulheres adultos contam como

determinados comportamentos ou modos de ser parecem ter sido “gravados” em

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suas histórias pessoais. Para que se efetivem essas marcas, um investimento

significativo é posto em ação: família, escola, mídia, igreja, lei participam dessa

produção. (LOURO, 2010, p. 25)

Na mesma perspectiva, assinala Lanz que, “através do processo de socialização, as

pessoas vão gradualmente internalizando as normas de conduta de gênero e as expectativas

sociais de desempenho correspondentes ao seu sexo genital” (LANZ, 2015, p. 55). Nesse

sentido, pode-se compreender que a identidade pressuposta discutida por Ciampa (2002), na

maioria das vezes, é investida na expectativa de que o sexo e o gênero do nascituro estejam de

acordo com uma lógica equivalente comumente associada à concepção essencialista da díade

sexo-gênero.

Os conceitos de gênero e de sexo carregam em sua articulação diversas estruturas e

concepções, sendo possível dividi-las em três abordagens estruturais. Com base em Lanz

(2015), a abordagem essencialista traduz-se na concepção que universaliza essas condições,

atribuindo ao sexo e ao gênero a condição de sinônimos dados a partir de essências naturais,

cujos fatores externos, históricos, políticos, culturais, geográficos ou ambientais não teriam

qualquer influência nas variedades de ser homem ou mulher, já que “partindo do pressuposto

de que gênero é resultado de um inexorável determinismo biológico, o essencialismo nega

categoricamente a função fundamental da interação social na modelagem do comportamento

humano”. Trata-se de uma abordagem firmemente ancorada em fatores biológicos, seguida da

aceitação implícita da homogeneização dos indivíduos e de seus grupos como “absolutamente

iguais, em todas as culturas e épocas, desprezando-se inteiramente as condições socioculturais

e políticas e as interações entre os indivíduos como fatores” (LANZ, 2015, p. 50).

Nesse segmento, a autora menciona em sua obra concepções, argumentos e estudos

antropológicos que contestam e invalidam a lógica do determinismo em sua essência

biológica. A abordagem construtivista da articulação entre sexo e gênero diferencia esses

atributos categóricos e defende vigorosamente as dimensões sociais, políticas e históricas do

gênero enquanto construção social. Além de compreender que não há nada de exclusivamente

natural na concepção de gênero, aqui se admite esse conceito como “[...] uma construção

social composta de normas de conduta e práticas políticas e culturais historicamente

localizadas no tempo e no espaço”, de modo que sua construção social não deve ser concebida

como “um processo linear, homogêneo e uniforme” (LANZ, 2015, p. 54 e 56).

Já a abordagem pós-estruturalista, de acordo com a autora, é marcada pela concepção

puramente sociológica dessa díade. Grande parte das ideias pós-estruturalistas, baseadas nos

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Estudos Queer, “defendem que sexo e gênero não têm qualquer base biológica, sendo

conceitos política e culturalmente construídos na sua totalidade”. Desse modo,

[...] em vez de considerar o sexo como biologicamente determinado e o gênero como

culturalmente aprendido, a corrente pós-estruturalista sugere [...] ver o gênero – e

também o sexo – como meros discursos, social, cultural e politicamente construídos.

Para o pós-estruturalismo, não apenas o gênero é um discurso normatizador sem

nenhuma base ou essência material, mas também o sexo e até o próprio corpo. Todas

estas entidades não têm nenhuma existência em si próprias, estando sujeitas a forças

sociais [...]. Nem sexo, nem corpo, nem a própria biologia existem ou funcionam

fora dos seus significados culturais. (LANZ, 2015, p. 59)

A partir disso e dado que o gênero é uma categoria complexa construída em múltiplas

interseccionalidades, entende-se que a microgênese e a macrogênese dessa discussão

corroboram os discursos de ordem social e que “[...] não aceitar que a espécie humana é capaz

de assumir diversos gêneros é negar a própria condição intrínseca do ser humano de espécie

em constante desenvolvimento” (DINIZ, 2014, p. 16). Assim, partindo das teorizações acerca

das concepções de identidades, talvez seja sensato conceber que a transgeneridade e a

travestilidade rompem com a lógica binária de sexo e gênero ao reconhecer em seu gênero

uma série de elementos que não lhe foram depositados a partir da genitália, isto é, homens e

mulheres trans e travestis não repõem identidades pressupostas pela moral binária instaurada

em genitálias. Eles rompem com as formas sexistas e essencialistas fundadas desde sua

existência embrionária, a fim de construir seus processos de socialização a partir da

metamorfose de quem são e de uma identidade não dada, mas “se dando”, “a partir de um

contínuo processo de identificação”, uma vez que

A produção dos sujeitos é um processo plural e também permanente. Esse não é, no

entanto, um processo do qual os sujeitos participem como meros receptores,

atingidos por instâncias externas e manipulados por estratégias alheias. Em vez

disso, os sujeitos estão implicados e são participantes ativos na construção de suas

identidades. (LOURO, 2010, p. 25)

E qual é o preço de participar ativamente da construção da própria identidade? Que

reflexos se dão na esfera pública? Como são estabelecidas as relações sobre as diferenças?

Que tipo de lugar social é corroborado a partir desse circuito? Ou, de acordo com o

questionamento de Keila Simpson, “[...] haverá um lugar” social a partir desse circuito?

(SIMPSON, 2011, p. 111).

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2.2. Entre igualdades e diferenças: “O Paradoxo Trans”.

“Não são nossas diferenças que nos dividem. É nossa inabilidade para reconhecê-

las, aceitá-las e celebrá-las.”

(Audrey Geraldine Lorde)

Partindo de um lugar social carregado de especificidades simbólicas, políticas e

históricas, justifica-se a demanda de uma leitura paradoxal relativa à comunidade trans, isto é,

de um paradoxo numa perspectiva complexa e dialógica e não reduzida à contradição. Trata-

se de reconhecer as transcendências daquilo que se reivindica e, concomitantemente,

reconhecer suas implicações. Os paradoxos trans são muito descritos no decorrer desta

pesquisa. Neste eixo, especificamente, entre igualdades e diferenças, evidencia-se a busca da

igualdade a partir do reconhecimento das diferenças. Aqui se objetiva destacar que é nesse

mesmo paradoxo que se discute a visibilidade, a invisibilidade, as igualdades, as diferenças,

as possibilidades e as impossibilidades imbricadas no contexto trans. Ou seja, o paradoxo

ganha lugar nesta pesquisa, estando presente desde a discussão trabalhista até a própria

constituição trans. A título de exemplo, um dos paradoxos é apontado por Peres e Toledo

(2011), a partir de uma leitura foucaultiana:

Por um lado, a análise dos processos de estigmatização vividos por essa população

pode evidenciar as diversas linhas do dispositivo que promovem a disciplinarização

e regulação de seus corpos, desejos e expressões sexuais, de gêneros e de

existências, sob ação do biopoder, produzindo sofrimentos de toda ordem. Por outro

lado, podemos mapear as diversas linhas emancipatórias que permitem a reversão

conceitual negativa que é atribuída a essas pessoas, o que possibilita promover o

sentimento de orgulho e de realização pessoal [...]. (PERES; TOLEDO, 2011, p.

266)

Assim sendo, o papel da academia nesse cenário é minucioso diante dos paradoxos

intrínsecos a esta jornada. Se, por um lado, se adota necessariamente a postura de denúncia

social ao evidenciar o lugar da população trans, por outro, é preciso cautela e certa perspicácia

para não reproduzir no processo de fazer ciência uma legitimação da margem. Dito de outro

modo, não se constitui como simples a tarefa de apontar a produção da subjetividade de

travestis, transexuais e transgêneros como constituída a partir de uma gama de adversidades

sinalizadas por fragmentos de emancipação23 e de, ao mesmo tempo, engajar o

empoderamento implicado nesses processos. Sinalizar o cenário de configurações sociais e de

supremacia, cuja manutenção se dá a partir de padrões essencialistas, fundamentalistas e

23 Fragmentos de emancipação é um termo cunhado por Ciampa (2002), ícone dos estudos de identidades em

Psicologia Social, que a partir de Habermas, ao discutir “Políticas de Identidade e Identidades Políticas”, pontua

o processo de afirmação de identidade entre os grupos, discorrendo sobre as esferas individuais e coletivas da

identidade.

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naturalistas, constitui, portanto, parte desse trajeto, aos quais se pretende aqui contrapor a

partir de caminhos que denotem os protagonismos assentes nos movimentos sociais.

Busca-se aqui, então, a apropriação política dos paradoxos implicados nesse grande

desafio de busca da igualdade a partir do reconhecimento das diferenças. Afinal, “[...] é no

respeito para com as diferenças dentro de uma sociedade que podemos constatar se esta

realmente está no caminho da realização igualitária”, uma vez que “a diversidade é fruto do

desenvolvimento humano, e não há, no seio social, a possibilidade de criarmos uma única

realidade a fim de abarcar toda a pluralidade existencial humana” (DINIZ, 2014, p. 11).

Assim, faz-se importante superar a exclusividade usual do conceito de “diferença”

como ferramenta de problematização de segregações instauradas em essências raciais e

sexuais para, de outra forma, concebê-lo também como uma ferramenta de criatividade a

questionar as múltiplas formas de repressão. O cenário contemporâneo da população de

travestis, transexuais e transgêneros conta justamente com a atitude política de defesa e

reivindicação de ideais de igualdade através do reconhecimento da diferença. Nesse sentido,

cabe mencionar a construção multicultural da igualdade e da diferença, problematizada24 por

Santos (1999):

Temos o direito de ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o

direito de ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a

necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que

não produza, alimente ou reproduza as desigualdades. (SANTOS, 1999, p. 61)

De acordo com a Constituição da República Federativa do Brasil (1988), precisamente

em seu artigo 5º, “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,

garantindo-se aos residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à

igualdade, à segurança e à propriedade”. De acordo com o artigo 6°, “são direitos sociais, a

educação, a saúde, o trabalho e o lazer” e, como dispõe o artigo 3º, inciso IV, constitui-se

como objetivo fundamental dessa legislação mor “promover o bem de todos, sem

preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”

(BRASIL, 1988).

É partindo desses apontamentos de ideais igualitários e democráticos que se

problematiza aqui o lugar social da população trans. Na intenção de evitar perspectivas

reducionistas e dicotômicas, limita-se a pontuar a população trans como sendo uma das

muitas categorias populacionais brasileiras negligenciadas perante a lei, num lugar social que

24 O professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Boaventura de Sousa Santos,

problematizou diferença e igualdade em uma palestra no VII Congresso Brasileiro de Sociologia do Instituto de

Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1999.

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se contrapõe aos ideais legislativos. Dessa forma, certamente não constitui objetivo deste

trabalho teorizar em escala massiva as lacunas entre igualdade e diferença no campo

legislativo referido às vertentes macrossociais, mas sim suscitar reflexões sobre igualdade e

diferença a partir da especificidade de um recorte populacional que experimenta

discriminações depreciativas, ainda que o princípio da igualdade se encontre representado em

diversos eixos25 da Constituição Federal de 1988.

Numa breve reflexão, Diniz (2014) assinala as dificuldades de se conceituar a

compreensão jurídica do termo igualdade. A autora pontua que a maioria dos estudos do tema

divide a compreensão jurídica do termo igualdade em duas dimensões, sendo a primeira a

dimensão formal do conteúdo da igualdade, na qual se afirma a igualdade perante a

legislação, a partir de um reconhecimento puramente conceitual, e a segunda a dimensão da

materialidade do conteúdo de igualdade, “[...] no sentido de tratar igualmente os iguais e

desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade”. Nessa dimensão, “[...] não basta

uma abstenção estatal, mas sim um compromisso com a garantia do direito das minorias

através de políticas públicas que reconheçam e preservem a diversidade humana” (DINIZ,

2014, p. 12).

2.3. População trans: um lugar social, uma categoria política

“Todo mundo sabe que travestis são ultrajadas no ambiente escolar e sofrem diárias

agressões sejam elas de ordem física, psicológica ou verbal – vindas inclusive de

professores e gestores que simplesmente não respeitam nome social e gênero. Esse é um

ponto, outro ponto é o apoio familiar. Muitas travestis são expulsas de suas casas ao se

assumirem travestis, ou então, sofrem também diárias agressões que visam minar as

estruturas psicológicas e que poucos seres humanos aguentariam. Isso sem contar quando

são abusadas sexualmente e o quanto são difamadas, caluniadas e agredidas pela

comunidade em que moram. Dado esse cenário, é fato que sem escolaridade fica mais

difícil procurar emprego, some também a isso que uma vez que travestis são consideradas

escória na sociedade, poucos empresários gostariam de ter uma travesti em seus quadros de

funcionários.”

(Daniela Andrade, em rede social pública, 2012).

Uma vez apontados esses contrassensos, cabe à presente pesquisa questionar: Quem

são as pessoas trans – travestis, mulheres transexuais, homens trans e outras transgeneridades

– brasileiras diante das dinâmicas políticas de diferenças e igualdades do país? A priori, são

categorias políticas. Conceber a população trans como categoria política traduz-se num

25 “[...] exemplificativamente, no artigo 4º, inciso VIII, que dispõe sobre a igualdade racial; do artigo 5º, I, que

trata da igualdade entre os sexos; do artigo 5º, inciso VIII, que versa sobre a igualdade de credo religioso; do

artigo 5º, inciso XXXVIII, que trata da igualdade jurisdicional; do artigo 7º, inciso XXXII, que versa sobre a

igualdade trabalhista; do artigo 14, que dispõe sobre a igualdade política ou ainda do artigo 150, inciso III, que

disciplina a igualdade tributária” (JUSBRASIL, 2010).

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posicionamento de considerar o cenário brasileiro sociopolítico e evidenciar as lutas e

resistências políticas impressas em seus movimentos, isto é, considerar a política em seu

sentido lato. Portanto, conceber essa população como categoria política significa evidenciar a

especificidade de sua socialização e, sobretudo, considerar a resistência que constitui seu

cenário social e político, contrariando ideais superficiais inclinados a estruturas fetichistas,

sexuadas e sensacionalistas de abordagem. Posicionamento compatível, por exemplo, com a

concepção de Weeks, que nos sinaliza que

[...] a preocupação que as pessoas sexualmente marginalizadas têm como identidade

não pode ser explicada como um efeito de uma peculiar obsessão pessoal com sexo.

Ela pode ser vista, em vez disso, mais apropriadamente, como uma forte resistência

ao princípio organizador de atitudes sexuais tradicionais. (WEEKS, 2010, p. 71)

Vale também considerar que,“apesar do movimento LGBT* se pautar na questão da

sexualidade, ela não é suficiente para dar conta de todas as suas questões e demandas

políticas” (DANILIAUSKAS, 2011, p. 31), afinal, não se fala aqui exclusivamente de

sexualidades em si, uma vez que elas devem deixar de serem vistas como questões pessoais e

privadas para serem problematizadas como questão social e política, considerando-se as

relações de poder que as atravessam e seu lugar social enquanto categoria política. E, quando

se fala especificamente de homens e mulheres trans, travestis, transexuais e outras

transgeneridades, que lugar ocupam essas categorias políticas?

Abarca-se aqui a perspectiva de lugar social como conceito aplicado a um contexto

marcado pelas interfaces perversas das relações humanas. Para Spink (2000), o conceito de

lugar implica a ocupação de tempo e espaço, na dialética do processo sócio-histórico de

ações, sentidos, ligações e significados individuais e coletivos, na mutualidade do cotidiano.

Desse modo, com uma propriedade simbólica, excede-se a esfera física e transporta-se o

conceito de lugar a um contexto que remete a um local de ação, contemplando, assim, as

relações sociais nos mais distintos âmbitos e formas. Na especificidade da população T, e

recorrendo à escala periférica e majoritária, trata-se de um lugar calçado em vulnerabilidades

sociais de diversas ordens. Partindo desse lugar, a construção de suas relações é marcada por

violências e adversidades, estando, portanto, à margem no processo de busca do que Peres

(2005) denominou de o “direito a ter direito”.

Nas palavras de Rosa (2012), não há a existência de um lugar oficial para as travestis.

A autora concebe que a expulsão do seio familiar corrobora a legitimação de suas

identidades. Já Pelúcio (2005) defende que os espaços de prostituição culminam na

visibilidade social das transgeneridades. A esse respeito, Peres e Toledo (2011) também

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destacaram que “[...] a necessidade de um sentimento de pertença os(as) leva à aproximação

de pessoas que coadunam de mesmos gostos, desejos, sonhos; pessoas que de certa forma

compartilham de suas experiências, necessidades, desejos e projetos”, de modo que “[...]

esses contatos iniciais com indivíduos que se identificam com seus estilos de vida são

imprescindíveis para que possam se fortalecer para os enfrentamentos das forças

discriminatórias e excludentes, tanto no âmbito pessoal como em engajamentos políticos”

(PERES; TOLEDO, 2011, p. 266). Nesse sentido, Rosa (2012) discutiu que esse circuito

excludente prejudica a socialização, a relação com a escola, fragilizando, portanto, a

convivência, limitando o espaço social e inviabilizando o enfrentamento de estigmas e

discriminações impostos por intensa segregação e preconceito. A culminância desse ciclo se

dá de modo que a falta de perspectiva profissional constitui para o cenário travesti, como

única forma de subsistência, a prostituição:

[...] o que sobra para as travestis como lugar “oficial” é o de profissional do sexo

pela “dupla moral ocidental” [...]. Considera-se como fundamental pensar se existe

outro lugar para as travestis que não a prostituição em nossa sociedade

heteronormativa. A heteronormatividade26 compulsória lhes dá oportunidade e

acesso à educação? (ROSA, 2012, p. 105, aspas da autora)

No que se refere aos preceitos das dimensões de lugar corroborados teoricamente por

Spink (2000), denota-se que os estereótipos e estigmas experimentados pela população trans,

nos âmbitos simbólicos e morais, evidenciam um lugar de extrema violência social. Em suas

discussões sobre o conceito de estigma, Goffman (2012) pontua que a realidade social

sustentada pela categoria estigmatizada e pela categoria de normalidade polida tem uma

história própria. Pensando na proposta de Spink (2000), falamos de um lugar social que

reverbera configurações num processo mútuo. Nessa perspectiva, Peres (2005) aponta a

necessidade de mobilizações quanto ao acesso da categoria militante à cidadania e, mais

precisamente, ao “direito a ter direito”. Para tanto, discute os dispositivos de enfrentamentos

de que dispõe a militância nas adversidades relacionais. Ainda na perspectiva do estigma, e

especificamente em se tratando da população trans, Antunes também se ocupa de discutir os

rótulos da categoria:

Travestis são estigmatizadas e rotuladas como pessoas abjetas, inteligíveis,

invisíveis, não humanas e desviantes das normas de gênero que regulam as relações

sociais. O conceito de desviante está relacionado ao patológico. [...] Radicado no

campo das ciências sociais, especialmente na Sociologia, o conceito de “minorias”

refere-se, basicamente, a grupos e/ou categorias sociais, sendo objeto de estigmas,

preconceitos. Ocupam, via de regra, uma posição social frente a grupos

26 Referente ao padrão heterossexual como norma.

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hegemônicos e socialmente reconhecidos como legítimos. (ANTUNES, 2010, p.

137, aspas do autor)

É essa legitimidade hegemônica, estabelecida a partir de estruturas estéticas, racistas,

heteronormativas, etnocêntricas, classistas, eurocentradas, deterministas e afins, que corrobora

o lugar social trans como marcado por uma emancipação fragmentada e atravessado pela

abjeção27, como pontuou Antunes (2010). Nesse mesmo segmento, Goffman (2012), ao

discutir as dimensões do conceito de estigma, percebe que os padrões normativos interpostos

no regulamento das relações sociais interferem nas expectativas sociais, cujos atributos dos

sujeitos apresentam uma divergência: “assim, deixamos de considerá-lo criatura comum e

total, reduzindo-o a uma pessoa estragada e diminuída” (GOFFMAN, 2012, p. 12). A

integridade psíquica, nesse sentido, constitui uma importante discussão implicada nesse

contexto carregado de concepções patológicas, pois

[...] Nem sempre a travesti, o/a transexual e o/a transgênero têm a oportunidade de

serem preparados(as) para confrontar os processos de normatização e reivindicar

seus direitos. Muitas vezes, perdendo a crença em si mesmos(as), gerando

adoecimentos físicos e psíquicos, passam a acreditar que só podem viver como

corpos abjetos, pré-sujeitos, sem direitos de ir e vir e circular pelo mundo como

qualquer outra pessoa de direito [...]. (PERES; TOLEDO, 2011, p. 266-267)

No tocante à concepção patologizante das identidades e considerando a especificidade

trans, Rosa sinaliza que “[...] se formos pensar na temporalidade das ações, projetos e

pesquisas para este segmento da população tudo é muito recente diante do sofrimento

psíquico, abandono e exclusão”, já que, ao falarmos da comunidade LGBT*, se trata de “um

grupo patologizado e estigmatizado desde o século XVIII” (ROSA, 2012, p. 89). No que se

refere especificamente ao sofrimento trans e entendendo essa população como uma categoria

política de organização social, com base em Sawaia, é possível referir suas

interseccionalidades como culminância de um sofrimento ético-político:

Em síntese o sofrimento ético-político abrange as múltiplas afecções do corpo e da

alma que mutilam a vida de diferentes formas. Qualifica-se pela maneira como sou

tratada e trato o outro na intersubjetividade, face a face ou anônima, cuja dinâmica,

conteúdo e qualidade são determinados pela organização social. Portanto, o

sofrimento ético-político retrata a vivência cotidiana das questões sociais

dominantes em cada época histórica, especialmente a dor que surge da situação

social de ser tratado como inferior, subalterno, sem valor, apêndice inútil da

sociedade. Ele revela a tonalidade ética da vivência cotidiana da desigualdade social,

27 A palavra “abjeta”, utilizada por esse teórico, remete-nos ao livro da doutora Larissa Pelúcio. Publicado em

2009 como resultado de sua tese de doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos

(UFSCar), o livro intitulado Abjeção e Desejo compõe uma etnografia travesti acerca do modelo preventivo da

AIDS. Essa observação é válida na medida em que a palavra “abjeção” se faz presente acadêmica e

rotineiramente no cotidiano de problematizações sobre pessoas trans. Daí o alerta para representações sociais

relativas à população T. O dicionário Houaiss (2008) define “abjeção” como baixeza, infâmia, e a palavra

“abjeto” como moralmente baixo, desprezível, infame, definições que atravessam o lugar social trans.

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da negação imposta socialmente às possibilidades da maioria apropriar-se da

produção material, cultural e social de sua época, de se movimentar no espaço

público e de expressar desejo e afeto. (SAWAIA, 1995 apud SAWAIA, 2014 p.

104-105)

Os efeitos dessas configurações na produção da identidade trans reverberam em

importantes problematizações no campo político. Se a travestilidade e as transgeneridades são

aqui entendidas como categorias políticas, também o são como identidades políticas. A

discussão acerca de identidades políticas e políticas de identidade de Ciampa (2002) é cabível

aqui na medida em que as identidades são dialeticamente problematizadas e em que se faz

relevante discutir as políticas identitárias dominantes e não dominantes – como a população

trans – e as consequências desses cenários na formação de identidades e seus processos de

atravessamento entre autonomia e heteronomia que constituem uma identidade política e

coletiva. De modo que “uma identidade coletiva é quase sempre referida a uma personagem:

nos exemplos, fala-se no singular de ‘negro’, ‘trabalhador’, ‘mulher’, ‘sem-terra’, ‘gay’ etc., a

cada um correspondendo um ou mais movimentos” (CIAMPA, 2002, p. 6, aspas do autor).

Assim “a personagem”, representada pelo singular de “travesti”, “transexual” ou

“transgênero”, configura em seus movimentos a construção de uma identidade coletiva

atravessada pelo apontamento de Antunes (2010) relativo ao termo de “minorias sexuais”

enquanto identidades políticas.

Diante de tais configurações, faz-se importante registrar que o feminismo – calçado

nas diferenças – tem contribuído para se pensar a temática aqui apresentada num sentido

cético com os termos “minorias” e “diversidades”. Por que essas categorias políticas seriam

caracterizadas como minoria ou diversidade social? Ao problematizar as equações que

culminam em padrões universalizados e hegemonicamente engendrados, é possível concluir

que esses termos estão a favor de uma percepção dicotômica que legitima que o não

eurocentrado deve ser adjetivado e, portanto, compreendido como “alternativo”28; logo, as

diversas formas de saber e existência humana – como negros, negras, quilombolas, indígenas,

mulheres, idosos, idosas, deficientes, gays, lésbicas, transgêneros, bissexuais, por exemplo, –

classificam-se como “diversidade”, por serem diversos em relação a um único exemplar

humano, um mainstream29 arquitetado em estruturas hegemonizadas em configurações

estéticas, religiosas, racistas, heteronormativas, etnocêntricas, classistas, androcentradas,

eurocentradas, deterministas e afins. Exemplo disso são as diversas siglas – brancas e

28 No caso das formas de saber, isso ocorre, por exemplo, com a ciência, a arte e a medicina. 29 Termo inglês usado para designar a corrente dominante.

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ocidentais – que se ocupam de engavetar as sexualidades exorbitantes à heteronormatividade

de modo a legitimar um único e centralizado padrão.

Nesse sentido, Freitas, ao discutir as contribuições da Psicologia Social como espaço

subdisciplinar e como instrumento de reflexão crítica referente aos aspectos históricos e

sociais, explana imbricações relativas à comunidade LGBT*, no que se refere à articulação

das contribuições provenientes dos estudos subalternos, e concebe os estudos de gênero como

promissores “[...] para pensar as violências e exclusões que grande parte da população latino-

americana e mundial vive por fatores relacionados à etnia, à cultura, ao gênero e/ou

orientação sexual” (FREITAS, 2012, p. 136). Já Ribeiro considera que esses estudos

[...] têm contribuído para o questionamento de padrões sociais rígidos vigentes em

nossa sociedade correspondem às interpretações dos saberes e das formas de

organização social que constroem e produzem os conceitos e as identidades de

masculino e de feminino em cada conjuntura histórica particular. (RIBEIRO, 2013,

p. 3)

A autora concebe gênero e sexualidade como construções históricas, sociais e

culturais e assinala que gênero, enquanto categoria de análise, passa a ser objeto de estudo

somente no final do século XX, quando há uma busca da compreensão do sistema de relações

sociais entre os sexos (RIBEIRO, 2013). Assim, a partir das constatações teóricas advindas

das contribuições dos estudos de gênero e também das considerações a respeito da díade

padrão-diversidade, vale ilustrar esse debate, também, através das palavras de Louro:

É fácil concluir que nesses processos de reconhecimentos de identidades inscreve-

se, ao mesmo tempo, a atribuição de diferenças. Tudo isso implica a instituição de

desigualdades, de ordenamentos, de hierarquias, e está, sem dúvida, estreitamente

imbricado com as redes de poder que circulam numa sociedade. O reconhecimento

do “outro”, daquele ou daquela que não partilha dos atributos que possuímos, é feito

a partir do lugar social que ocupamos. De modo mais amplo, as sociedades realizam

esses processos e, então, constroem os contornos demarcadores das fronteiras entre

aqueles que representam a norma (que estão em consonância com seus padrões

culturais) e aqueles que ficam fora dela, às suas margens. Em nossa sociedade, a

norma que se estabelece, historicamente, remete ao homem branco, heterossexual,

de classe média urbana e cristão, e essa passa a ser a referência que não precisa mais

ser nomeada. Serão os “outros” sujeitos sociais que se tornarão “marcados”, que se

definirão e serão denominados a partir dessa referência. Desta forma, a mulher é

representada como “o segundo sexo”, e gays e lésbicas são descritos como

desviantes da norma heterossexual. (LOURO, 2010, p. 15-16, aspas da autora)

Por outro lado, afirma a autora que as instituições e indivíduos da configuração

dominante precisam desse “outro”, enquanto identidade subjugada, para se afirmarem e se

definirem. Essa é mais uma das inúmeras razões que legitimam os paradoxos impressos nessa

discussão que, por sua vez, não deve ser polarizada. Isto é, embora falemos de igualdade e

diferença, de diversidade e hegemonia, de lugar social, identidades e também legitimações e

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espaços sociopolíticos, deve-se considerar a dimensão subjetiva numa dialética do lugar

social. A esse respeito, Peres e Toledo (2011) destacaram que “Todas essas expressões não

normativas, não hegemônicas, com ou sem nome ou identidade pré-definida, podem ser

incluídas na expressão queer [...]” que, no campo de gênero, de identidades sexuais e de

diversidades por orientação sexual

[...] surgiu enquanto movimento político e teórico nos anos 1990 como políticas de

ação de grupos de pessoas que divergiam das normativas da heterossexualidade, que

iam contra as políticas de identidade e suas demandas de integração à sociedade

heterossexual dominante. [...] O uso do termo queer veio como estratégia

performativa fazendo uso do insulto sexual (do inglês: esquisito, estranho, anormal)

como um lugar de ação política. [...] Escapa da lógica formal, tendo mais a ver com

trânsito, fluxo e performatividade, propondo que a categoria humano esteja sempre

em aberto, ou seja, que nenhuma sexualidade ou expressão de gênero torne-se

polícia de outra. (PERES; TOLEDO, 2011, p. 263 e 275)

Esse lugar de ação política ou lugar social da comunidade trans é, também, marcado

por explorações de diversas ordens, seja a exploração à travesti de baixa renda sem acesso ao

mercado de trabalho formal ou, numa perspectiva generalizante, às “diversidades sexuais” de

alta classe financeira que, num circuito capitalista, são exploradas pelo comércio de uma

“cultura gay” que lança moda, estilos e acessórios para tribos que detêm o pink money, como

clubbers ou barbies (PERES, 2005).

Como aponta Costa (1994), as mulheres travestis são extremamente marginalizadas,

sobretudo quando estão inseridas nas camadas mais pobres da população, onde sofrem muitos

preconceitos. Peres (2005), em sua tese, discutiu a marginalização da população travesti – e

com isso entende-se esta população à margem da sociedade – e buscou amplificar, a partir daí,

o processo histórico-cultural que culminaria no caráter de exclusão, destacando seus

principais pilares de ordem social nos aspectos precários de moradia, alimentação, miséria e

desemprego. Para Garcia (2009), essas violências são tidas como agentes produtores da

evasão escolar e do abandono à família, donde o ingresso no cenário de prostituição e miséria

social. Nesse mesmo sentido, Peres e Toledo (2011) conceberam que a desigualdade, a

discriminação, a estigmatização e outras violências podem ser cartografadas logo nas

primeiras experiências de vida de pessoas trans, sendo que, “[...] em geral, essas experiências

ocorrem inicialmente no espaço familiar pela rejeição, humilhação, ridicularização e violência

sobre qualquer tipo de expressão [...]” (PERES; TOLEDO, 2011, p. 266).

Na mesma linha de reflexão, Peres (2005) abordou o conceito de “sinergia das

vulnerabilidades”, no qual discutiu um “aglomerado” de “desvios às expectativas” dos

padrões sociais. O autor considerou que quanto maior o afastamento dos padrões socialmente

engendrados, maior será a sinergia de vulnerabilidades como consequência, o que, por sua

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vez, gera múltiplas exclusões. Há a exclusão por orientação sexual, a exclusão por classe

social, a exclusão por raça e etnia e a exclusão por gêneros, sendo que essas diversas formas

de exclusão promovem subjetividades empobrecidas que “naturalizam a exclusão e levam as

pessoas a aceitarem migalhas de cidadania” (PERES, 2005, p. 41). Na evolução dessa lógica,

destaca-se uma somatória de estigmatizações: “[...] Dentro do mapeamento de estigmatização,

entendemos que quanto mais atributos negativos e de desqualificação um corpo receber, mais

processos de estigmatização se abaterão sobre este corpo” (PERES; TOLEDO; 2011, p. 269).

Neste sentido vale registrar o pressuposto do caráter interseccional, apontado pela

jurista afro-americana Kimberlé Crenshaw (1989), entre as estruturas sociais de civilização

balizadas por classe, etnia e raça, gênero, identidade sexual, condição geográfica, dentre

outros norteadores. Ao se pensar em travestis e transexuais, há que se atentar para o circuito

de como se operam essas estruturas nas relações sociais. Conforme o pontuado na introdução

deste trabalho, a teoria da interseccionalidade compõe os pressupostos metodológicos desta

pesquisa e deve-se aqui considerar que a

[...] interseccionalidade pode servir de ponte entre diversas instituições e eventos e

entre questões de gênero e de raça nos discursos acerca dos direitos humanos – uma

vez que parte do projeto da interseccionalidade visa incluir questões raciais nos

debates sobre gênero e direitos humanos e incluir questões de gênero nos debates

sobre raça e direitos humanos. Ele procura também desenvolver uma maior

proximidade entre diversas instituições. (CRENSHAW, 1989, p. 8)

As interseccionalidades estão, desse modo, a serviço de uma ótica complexa,

paradoxal, dialética e holográfica, cujo posicionamento se opõe às perspectivas cartesianas,

monoteístas e positivistas, além de se constituir como uma das formas de combater as

opressões múltiplas. A esse respeito Weeks (2010) considera que

[...] a classe e o gênero não são as únicas diferenças que modelam a sexualidade.

Categorizações por classe e gênero fazem intersecção com as de etnia e raça. Esse

aspecto da sexualidade geralmente fora ignorado por historiadores/as e cientistas

sociais até recentemente, mas ele é, todavia, um elemento vital da história da

sexualidade. (WEEKS, 2010, p. 59)

A comunidade trans, portanto, dispensa leituras universalizantes, individualizadas e

deslocadas:ela deve ser analisada em suas especificidades culturais e estruturais. Dentre os

autores que se ocupam de tais problemáticas, Peres (2005) pontua a impossibilidade de

homogeneização ou classificação universal dessas configurações. Como afirma Louro, “[...]

nossas identidades de raça, gênero, classe, geração ou nacionalidade estão imbricadas com

nossa identidade sexual, e esses vários marcadores sociais interferem na forma de viver a

identidade sexual [...]”, de modo que tais marcadores estão intimamente relacionados às

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vivências das identidades sexuais (LOURO, 2010, p. 31). Assim, parte-se da leitura de que

cada um desses processos, além desses apontamentos, tem sua constituição intimamente

imbricada à cultura regional, considerando sua configuração social, histórica e política. Dito

isso, a fase seguinte deste capítulo busca discutir as mobilizações históricas dessa população.

2.4. Militância para não “limitância”: as mobilizações históricas de travestis e

transexuais no cenário sociopolítico brasileiro

“Bichas são vermes ou parasitas intestinais, que habitam o interior de algumas

pessoas, deixando-as pálidas e magrinhas. Veados são animais de grande porte – os

maiores dos cervídeos da nossa fauna – fortes, mas ágeis e prudentes, cujas

dimensões são muito variáveis. Independentemente de sabermos as razões que

levaram a população a nos chamar deste ou daquele nome, sem dúvida, o critério

levado em conta foi o de nos tratar como coisa. Isto mesmo, nos ‘coisificar’, tirando

da gente a capacidade de ser gente. Assim ficou mais fácil nos tratar como doença.”

(Maitê Schneider, rede social pública, 2013)

No presente eixo, por “militância” entende-se toda e qualquer resistência relativa ao

movimento social e ativista de travestis, transexuais e transgêneros frente às “limitâncias”

socioinstitucionais. A criação do termo “limitância” é aqui desenvolvida a partir do estudo e

da reflexão das questões que se apresentam a seguir. Trata-se de uma estratégia desenvolvida

para dar conta dos inúmeros impasses, tropeços e retrocessos dessa jornada. Ou seja, o termo

traduz-se como uma generalidade de limitações dedicadas a tornarem-se empecilhos ao

progresso e ascensão social relativos à comunidade trans.

Para uma compreensão articulada das mobilizações políticas imbricadas no cenário

trans, faz-se necessário colocar sob investigação as nuances interpeladas nos circuitos de

exclusão, cujos mecanismos se relacionam diretamente a estigmas, estereótipos,

humilhações, cristalizações, preconceitos e discriminações. No entanto, pretende-se aqui

fazê-lo de modo a destacar os dispositivos de enfrentamento assentes na luta e na resistência

do empoderamento trans em seu lugar social. Para tanto, há que se considerar como raízes

desse trajeto o cenário sociopolítico LGBT*. No cenário internacional, os países divergem

quanto ao ritmo dessa caminhada. A realidade brasileira, por exemplo, embora seja uma das

mais liberais, está ainda despertando para esses campos. Numa perspectiva histórica,

Aragusuku e Lopes constataram que,

No Brasil, o movimento LGBT* se organizava enquanto em diversos países já se

mostrava consolidado. Tivemos, em 1978, a criação do jornal “O Lampião de

Esquina”, no Rio de Janeiro, destinado à população LGBT*, e do primeiro coletivo

organizado, o Grupo Somos, em São Paulo. No ano seguinte, no Rio de Janeiro,

ocorreu o I Encontro de Homossexuais Militantes. E em abril de 1980, tivemos o I

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Encontro Brasileiro de Grupos Homossexuais Organizados (EBHO).

(ARAGUSUKU; LOPES, 2015, p. 6)

De acordo com os autores, “a consolidação do movimento LGBT* no Brasil é um

fator essencial para as mudanças que ocorreram nos últimos anos e na possibilidade de

ampliação de direitos e políticas destinadas a população LGBT*” (ARAGUSUKU; LOPES,

2015, p. 7). Entender tal cenário numa perspectiva histórica faz-se crucial para uma

problematização articulada das considerações sobre as especificidades da população trans.

Referenciando especificamente o Brasil e numa leitura generalista, pode-se dizer que

as questões das desigualdades sociais e das múltiplas faces das exclusões atreladas à

identidade política trans implicam uma impossibilidade do exercício democrático. Portanto, o

“direito a ter direito” configura-se numa luta que versa o difícil acesso à cidadania e perpassa

pelo trajeto da margem e da exclusão social. O termo exclusão, saturado nas ciências

humanas, é aqui concebido a partir da perspectiva de Sawaia (2014) que, ao dialogar sobre

questões de exclusão, adverte para o uso hegemônico, dúbio e impreciso do termo nas mais

diversas áreas do saber. Desse modo, esse termo é mais um dos grandes escopos do prisma

interseccional, sobretudo no que se refere à articulação da população trans com suas relações

sociais. Para Sawaia, a díade inclusão/exclusão gesta subjetividades específicas, de onde

advém a necessidade de conceber a exclusão como um “processo complexo e multifacetado,

uma configuração de dimensões materiais, políticas, relacionais e subjetivas” (SAWAIA,

2014, p. 9).

Assim, pensar as relações trans a partir disso é considerá-las como fenômenos

multifacetados, embora ainda sejam frequentemente e exclusivamente discutidos sob o prisma

sexual numa lógica pessoal. Ainda no século XXI, toda e qualquer questão que perpasse os

terrenos da sexualidade parece realizar um trajeto sobre os solos de tabus, sensacionalismos,

discriminações, concepções fetichistas e preconceituosas, eventualmente, podendo tratar-se do

reflexo de eras puritanas e vitorianas das relações sociais. Nesse sentido, vale lembrar que

uma extensa bibliografia discute os preceitos teológicos, éticos e morais que se dedicavam a

patrulhar, criminalizar e reprimir as diversas dimensões da sexualidade humana. Brown

(1987), a título de exemplo, ao discutir a condição lésbica na Itália renascentista, apontou uma

série de atos punitivos e proibicionistas acerca da sexualidade humana. É partindo dessas

observações que se faz válido reafirmar, como sendo o nicho principal dessa pesquisa, o

recorte da cidadania, mais especificamente em seu eixo empregatício. Embora o trajeto por

dispositivos sexuais se faça imprescindível, eles são aqui entendidos como secundários,

classificando-se aqui, ainda, como imprescindíveis, por corroborarem, em última instância,

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com configurações que afetam diretamente o acesso à cidadania e, consequentemente, às

dimensões de empregabilidades problematizadas por esta pesquisa.

Jacques et al. (2002) pontuam que toda sociedade possui um sistema de gênero, sendo

um conjunto de arranjos através dos quais a sociedade transforma a biologia sexual em

produtos da atividade humana e nos quais essas necessidades transformadas são satisfeitas.

Dada a nossa condição animal que interage pelo registro do simbólico, explorando os

recursos naturais para além das determinações biológicas, os autores concebem que o sexo

biológico não é determinante para estabelecer o comportamento e os papéis a desempenhar

do ser homem ou mulher; portanto, isso se restringe ao conceito de gênero, sendo ele

socialmente construído, conforme o anteriormente discutido. Consequentemente, e rompendo

com a ideia naturalista da sexualidade que parte de uma ótica reducionista de seu dispositivo,

vale ressaltar que esse fenômeno implica uma produção histórica e cultural que está atrelada

às relações de poder e saber de inúmeras instituições, cujo interesse aqui não se desdobra em

dispositivos sexuados, mas sim institucionais.

Assim, partindo dessa ótica e colocando em pauta a repercussão trans na

contemporaneidade social e acadêmica, parte-se do entendimento desse fato social como um

convite a ser pensado e refletido criticamente de modo articulado. É esse, justamente, o

posicionamento atual da Psicologia enquanto saber ético e compromissado frente ao lugar

social da população LGBT*, quando ela vem pensando suas práxis a partir da

respeitabilidade das diferenças em contraste com os padrões heteronormativos de

sexualidade.

No que se refere à especificidade trans, vale o registro de que o Conselho Regional de

Psicologia de São Paulo (CRP-06), desde 2011, mobiliza resoluções para a atuação de

profissionais transgêneros, como é o caso da resolução30 que dispõe a respeito do nome social

de profissionais da Psicologia. Em 2013, o mesmo Conselho promoveu a realização de um

seminário31 objetivando intervir na construção social de um novo olhar no tocante às

identidades trans e à fomentação das políticas públicas, buscando desconstruir o caráter

patológico da travestilidade e transgeneridade, a partir do convite à militância na construção

de práxis psicológicas mais atentas, baseadas numa escuta política. Outras mobilizações dão

continuidade à ação em 2014, 2015 e 2016.

30 Resolução CFP nº 014/11 (BRASIL, 2011). 31 A iniciativa foi uma parceria entre o Conselho Federal de Psicologia (CFP), o Conselho Regional de

Psicologia de São Paulo (CRP-06) e do Espírito Santo (CRP-16), a partir de uma deliberação de reunião

realizada em dezembro de 2012 (CRP-06, Identidades Trans E Políticas Públicas De Saúde: Contribuições Da

Psicologia, 2013).

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A população trans é alvo de extrema violência social. As diversidades sexuais, na

condição de exceder o binarismo hegemônico de masculino e feminino, carregam em sua

conjuntura um cenário social multifacetado que demanda análises complexas acerca das

dinâmicas sociais. No que concerne ao saber da Psicologia, evidentemente não constitui

pretensão deste trabalho partir de um recorte psicológico clinicista para investigar e mensurar

a travestilidade e demais transgeneridades, tampouco seu objetivo se constitui em alavancar

uma discussão acerca das reverberações da prática psicológica, cujo posicionamento

institucionaliza sexualidades através de laudos. No entanto, sendo o lugar social da identidade

trans um dos eixos a ser sondado por esta pesquisa, cabe mencionar suas transições

conceituais e suas reverberações filosóficas. Nesse sentido, “a partir da visão de gênero como

construção social, o foco do fenômeno transgênero pôde ser deslocado da área médica para a

área sociopolítico-cultural”, assim, “[...] a pessoa transgênera deixa de ser ‘doente’ para ser

‘delinquente’ das normas de conduta de gênero” (LANZ, 2015, p. 57). Desse modo, busca-se

aqui transitar também por considerações epistemológicas pautadas na Psicologia Social

Crítica, por entender que é preciso romper com padrões biologizantes e patologizantes a fim

de enxergar as singularidades da comunidade trans e, sobretudo, pensá-la em seus lugares

sociais.

No sentido de desconstrução do caráter patológico, Rey (2011), ao discutir

subjetividade e saúde, sinaliza uma espécie de retrocesso nesta última, ao mostrar que o

discurso biomédico se afastou do princípio hipocrático da natureza humana para aderir a uma

visão patologista e, assim, os aspectos subjetivos são atropelados pelos padrões

classificatórios. Em consonância com essa perspectiva e considerando a origem da Psicologia,

escreve-nos Siqueira que,

Desde a sua origem enquanto ciência, a Psicologia não fugiu aos ditames do

positivismo teórico-metodológico que promove a cisão sujeito-objeto, a oposição

entre sujeito e objeto do conhecimento. Ao longo do século XX, desdobrado em

várias vertentes a ponto de hoje prestar-se à referência das Psicologias, este vasto

campo do saber ainda guarda resquícios do caráter a-histórico característico do

positivismo. Mesmo a Psicologia Social, quando surgiu no final do século passado,

não se colocava o problema da História. [...] Trata-se, em outras palavras, de uma

psicologia sem sujeito, embora, com muita frequência, trabalhe com a noção de

subjetividade. (SIQUEIRA, 2008, p. 251)

Em conformidade com essa reflexão, escreve Santos que “A ciência moderna

consagrou o homem enquanto sujeito epistêmico mas expulsou-o, tal como a Deus, enquanto

sujeito empírico” (SANTOS, 1987, p. 50). A polarização sujeito-objeto/mundo real-mundo

psicológico é uma das grandes discussões enraizadas na formação da ciência psicológica

desde o século XIX. Pontuar essas desconstruções se traduz num posicionamento político do

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fazer ciência e do demarcar de onde se concebe seu objetivo de estudo. Assim, faz-se

importante reafirmar a máxima de que a identidade trans é considerada, aqui, também em suas

dimensões subjetivas, mas sobretudo no interesse de suas dimensões políticas, a partir da

ótica da interseccionalidade e, portanto, a partir dos preceitos dialéticos postulados pela

perspectiva crítica da Psicologia Sócio-Histórica, uma vez que a dialética propõe a análise da

relação entre os elementos, contrapondo-se às interpretações isoladas desses, pois

[...] já não poderemos mais pensar a realidade social, econômica e cultural como

algo exterior ao Homem, estranho ao mundo psicológico, que aparece como algo

que o impede, o anula ou o desvirtua. O mundo social e o mundo psicológico

caminham juntos em seu movimento. Para compreender o mundo psicológico, a

Psicologia terá obrigatoriamente de trazer para seu âmbito a realidade social na qual

o fenômeno psicológico se constrói; e, por outro lado, ao estudar o mundo

psicológico, estará contribuindo para a compreensão do mundo social [...]. (BOCK,

2015, p. 34)

É partindo dessas considerações da construção de saberes e, sobretudo, do

entendimento de que sujeito e mundo não devem ser vistos isoladamente, que se constitui

como interesse aqui a dimensão subjetiva dos fenômenos sociais, a ser considerada em sua

historicidade, buscando-se conceber as mobilizações sociais no contexto trans a partir de

“uma Psicologia Social que aponte para a constituição dialética e complexa de indivíduos

inseridos em sociedades por eles constituídas” (GONÇALVES; BOCK, 2009, p. 138), a fim

de ressaltar a relevância política de seus movimentos sociais.

Problematizar a temática trans por meio de um recorte histórico implica a dificultosa

tarefa e tentativa de compreensão das configurações estruturais de gêneros e,

consequentemente, dos preceitos de heteronormatividade – enquanto política identitária

dominante. Tentativa essa que parte de considerações a respeito das construções atravessadas

pelos discursos científicos, em suas diversas dimensões. Nesse sentido é possível afirmar que

historicizar uma pesquisa se faz tão importante quanto criticar seus achados e evidências e,

em última instância, que desconsiderar a historicidade do pensamento que se intenta lograr

culmina em visões essencialistas, deterministas, etnocêntricas e fundamentalistas. Se as

relações humanas e institucionais, construídas e estabelecidas através da comunidade trans

são aqui problematizadas a partir de óticas interseccionais e dialéticas, vale, então, uma busca

pelo entendimento ocidental das bases de seu lugar social, considerando-se, portanto, os

entendimentos do que se denominam de construções masculinas e/ou femininas.

Desde o século XVIII, a transição de um único sexo para a concepção dicotômica dá-

se por razões mais complexas que simplórias descobertas. Pode ser denominada como

fatigante e capciosa a pretensão de compreender em que momento histórico se polarizou a

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classificação e definição de configurações masculinas versus femininas, isto é, compreender

as raízes do sexismo, uma vez que uma imensidão de literaturas feministas denuncia os

preceitos de caráter androcêntrico no processo de narrar a história. Nesse sentido, vale

lembrar que muitos filósofos iluministas – como é o caso de Rousseau e Jaucourt – dedicaram

seu labor às dicotomias polarizadas de masculino e feminino, denotando a condição feminina

como submissa, inferior, servente e incapaz (TAMIZARI, 2014), sendo a partir desse cenário

que o pensamento materialista se constituirá no século das luzes pelo enciclopedista Denis

Diderot (1713-1784), institucionalizando a polarização do que deve ser entendido como

masculino e como feminino, de modo a universalizar o humano como padronização

masculina. Dito isso, o século XVIII foi extremamente importante para a consolidação de

conceitos.

Como nos pontua Leite Jr (2008), o efeito dos séculos XVII à XIX suscita a busca pela

verdade humana escondida entre os genitais ou representações psíquicas, numa versão laica e

psicologizada de uma busca da “verdade platônica”, cuja transcendência agora se refere a uma

verdade humana interiorizada que, dessa vez, é procurada incessantemente na origem e

formação da consciência individual. Nesse ponto e considerando a Psicologia, Gonçalves e

Bock (2009), ao problematizarem dialética e historicamente as relações e suas dimensões

objetivas e subjetivas da realidade, pontuam que o fosso de separação entre o sujeito e seu

mundo levou o passado da Psicologia, enquanto ciência e profissão, a uma relação de

cumplicidade com visões naturalizadoras e a-históricas. Talvez resida aqui, nas postulações

dessas autorias, as raízes da problemática do lugar social da comunidade trans quando, a partir

de um legado histórico, ela é percebida única e exclusivamente numa perspectiva individual

que gesta uma “busca da verdade humana escondida entre os genitais”.

Esse cenário traz como resultante uma gama de imbricações culturais, sexuais,

religiosas, políticas, filosóficas e científicas. Pensando historicamente na categoria política

trans, é possível constatar que desde os primórdios póstumos às classificações dicotomizadas,

a humanidade traça em seu percurso dificuldades em lidar com aspectos exorbitantes às

estruturas do modelo binário de gêneros. Nesse sentido, fazendo um apanhado no discurso

científico, Leite Jr (2008) mostra que as bases oferecidas tanto para a transexualidade como

para a travestilidade foram encontradas a partir do hermafroditismo e do pseudo-

hermafroditismo, sendo o médico e sexólogo alemão Magnus Hirschfeld um dos pioneiros na

distinção de travestilidade e homossexualidade, tendo, de acordo com Peres (2005), cunhado

o termo travesti no início do século XX, entre 1905 e 1910.

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Ainda de acordo com Leite Jr (2008), as roupas, desde sempre em nossa cultura,

sinalizaram um importante signo de referência de gênero e status social que se mantém ainda

hoje como um dispositivo de regulagem e sondagem das fronteiras criadas entre sexos,

gêneros e grupos sociais. Nas palavras de Santos, “A indumentária é um elemento simbólico

fundamental na definição das nossas identidades, não só de classe, mas também de gênero”

(SANTOS, 1997, p. 147).

Trazendo referências históricas sobre travestis no Brasil, a pesquisa do autor mostra

que os registros policiais oitocentistas baianos apontavam o ato de travestir-se como sendo

crime, daí um número alto de prisões por essas e outras ações oriundas de escravos. O autor

defende que tais ações certamente fugiam aos bons costumes e convenções hegemônicas

instauradas naquele momento da sociedade baiana. Os jornais da época, preocupados em

descrever esse fenômeno, concebiam a identidade travesti como sendo um sujeito “homem-

mulher” na tentativa de enquadrar essa população em suas diretrizes morais e binariamente

conceituais. O argumento desse estudo é que o percurso da travestilidade brasileira, no século

XIX, perpassa as inter-relações da diferenciação indumentária e a normatização dos papéis

sexuais.

Avançando no século XX e pensando a categoria da historicidade de forma articulada

aos movimentos sociais, Rosa (2012) destaca que a década de 60 foi um marco para se pensar

os avanços relacionados à despatologização de identidades LGBT*, “[...] a partir dos

movimentos sociais de minorias como o movimento feminista que tomou força com o

advento da pílula anticoncepcional favorecendo a separação entre sexualidade e reprodução,

e, posteriormente, com a consciência política dos movimentos Gays” (ROSA, 2012, p. 89).

Na concepção de Lanz, é justamente na esteira das conquistas feministas, no final do século

XX, que “[...] pessoas transgêneras começaram a sair do armário em maior número,

desafiando abertamente a dicotomia homem-mulher que caracteriza o sistema binário de

gênero em vigor na sociedade” (LANZ, 2015, p. 11).

No que se refere ao movimento de travestis e transexuais no Brasil e antes das

conceituações de sexo e gênero, essas identidades eram articuladas frequentemente à

homossexualidade. Carvalho e Carrara (2013) fazem um apanhado do trânsito de palavras que

circulavam nos espaços sociais, mostrando as raízes da visibilidade trans a partir dos

movimentos sexuais masculinos. Nessa ocasião, “bichas”, “bofes”, “bichas enrustidas”,

“falsos bofes”, “bichas pintosas”, “bichas exageradas” são algumas das categorias

problematizadas e analisadas pelos autores a partir dos anos 60, até que se chegasse, ao final

dos anos 1990 e início dos anos 2000, ao reconhecimento das categorias “trans”. Esses

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registros são relevantes por calçar a construção dos eixos sexo, gênero e orientação sexual ao

longo dos anos, trajetória de suma importância para a compreensão da dimensão subjetiva dos

fenômenos aqui discutidos.

Referenciando a década de 1970, ainda numa perspectiva macropolítica desses

movimentos, cabe lembrar ações higienistas e ostensivas das autoridades brasileiras. Trazendo

dados históricos, Peres (2005) lembra-nos numa propriedade mais contemporânea que a

repressão policial se mantinha em alta escala nas esferas públicas e privadas. Nessa década,

em São Paulo, sob o comando do delegado José Wilson Richetti, o século XX pregava a

“limpeza” das ruas e da sociedade com a premissa de humilhação, espancamento e violência

às prostitutas, gays e travestis. Por outro lado, vale lembrar as ações de enfrentamento

desenvolvidas pela comunidade trans. Fazendo referência à prefeitura do Rio de Janeiro, entre

1997 e 2000, representada por Luiz Paulo Conde, a travesti Jovanna Baby, fundadora da

primeira ONG de travestis no Brasil, assim declarou numa entrevista concedida em 18 de

junho de 2010:

O prefeito Conde, quando assumiu, determinou que a Guarda Municipal prendesse

as travestis nas ruas do Rio. E a gente foi para lá, enfrentar ele e dizer que a guarda

não tinha poder de polícia, e [...] mandamos uma reclamação diretamente ao

Comandante da Polícia e quem acabou sendo presa foi a Guarda Municipal que

estava fazendo um serviço que não era deles... prender as pessoas. Aí a gente saiu na

imprensa, saiu em um monte de lugares. (CARVALHO; CARRARA, 2013, p. 326-

327)

Já nos dias atuais, a higienização social e as convicções fundamentalistas e

heteronormativas apresentam uma violência tanto em modalidades ainda explícitas – nos

assassinatos e agressões de diversas ordens – como em modalidades canalizadas em diversas

dimensões sociais a partir de discursos religiosos e políticos, calçadas em premissas

conservadoras e fundamentalistas. Para Lanz, “[...] em pleno século XXI o território

transgênero continua sendo, em praticamente todos os sentidos, a mesma região-tabu dos

tempos bíblicos, amplamente repudiada pelo dispositivo binário de gênero [...]” (LANZ,

2015, p. 21). Panasiewicz, ao discutir com propriedade histórica o contexto religioso, atentou

para a imprescindibilidade do plural do termo fundamentalismo, uma vez que os

fundamentalismos se diferem entre si e, no geral, são usados como justificativa de atitudes

religiosas fanáticas, como um retorno à sociedade pré-moderna ou mesmo a práticas

violentas, de modo que “[...] sua abrangência na sociedade atual ultrapassa esse universo e

ocupa o espaço da política e da economia, carregando consigo um traço claramente

ideológico” (PANASIEWICZ, 2008, p. 1). Nos setores de políticas públicas, nas

configurações educacionais, nos espaços da esfera pública e em outras vertentes, como as

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redes sociais e os diversos dispositivos midiáticos, o conservadorismo e o fundamentalismo

da bancada evangélica têm servido não só como base para a inércia do setor legislativo,

quando da busca pela garantia e promoção da cidadania e dos direitos humanos da

comunidade LGBT*, como também têm significado um extremo retrocesso político, quando

da moção de diversos projetos de lei que contrariam os direitos humanos e ferem o princípio

de inclusão da comunidade LGBT*.

É o caso, a título de exemplo, do Projeto de Decreto Legislativo (PDC) nº 234/11,

protocolado pelo Deputado João Campos, que reascende em pleno 2013 uma discussão sobre

a chamada “cura gay”32 num país que, ainda que tardiamente, já se havia posicionado

anteriormente em ação do judiciário, quando, “[...] em maio de 2011, o Supremo Tribunal

Federal reconheceu a união estável para casais do mesmo sexo” (ARAGUSUKU; LOPES,

2015, p. 11). Aragusuku e Lopes relembram o contexto de 2013 como sendo um ano que se

inicia com uma grande polêmica advinda do Legislativo, quando da eleição do Deputado

Federal Marco Feliciano (PSC) para a presidência da Comissão de Direitos Humanos da

Câmara dos Deputados:“O pastor Marco Feliciano já era conhecido por seus posicionamentos

reacionários e suas falas abertamente anti-LGBT*, ganhando a presidência da comissão na

divisão política em que o governo priorizou outras comissões” (ARAGUSUKU; LOPES,

2015, p. 11).

Nesse sentido, vale a afirmativa da atitude ética e política de resistência do Conselho

Federal de Psicologia que, além de travar lutas contemporâneas contra o conservadorismo

religioso, desde 1999 proíbe os profissionais da categoria de práticas implicadas na alteração

de orientações sexuais. Conduta consonante com a Organização Mundial da Saúde (OMS)

que, desde os anos de 1990, descarta qualquer possibilidade de atribuição do termo “doença”

relativo às orientações sexuais. Aragusuku e Lopes destacam que a face conservadora do

Brasil, dentre muitos fatos, é visível e atrelada aos

[...] recentes e constantes recuos dos governos na implementação de políticas

LGBT*; nos discursos de ódio proclamados por muitos líderes religiosos; nas

agressões e mortes diárias de vítimas da LGBT*fobia; em um Congresso Nacional

que ainda não aprovou uma única lei destinada a esse segmento da população.

(ARAGUSUKU; LOPES, 2015, p. 1)

Panasiewicz define o conceito de fundamentalismo religioso como sendo “[...] um

movimento crítico às inovações trazidas pela modernidade a partir de uma narrativa sagrada e

32 Mobilizada em 2011 e resgatada em 2013 pela gestão do então presidente da Comissão de Direitos Humanos e

Minorias do Senado Federal (CDHM), Marco Feliciano, ela enfrentou séria resistência da classe profissional de

Psicologia (Seminário Identidades Trans e Políticas Públicas de Saúde: Contribuições da Psicologia, CRP 06,

2013).

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de um monopólio de interpretação balizado pela religião” e a pessoa fundamentalista como

aquela que “[...] se fecha em sua própria concepção da verdade, não se abrindo para o diálogo

e nem para novas construções de identidade. Quer impor sua maneira de compreender ‘a

verdade’ aos seus interlocutores” (PANASIEWICZ, 2008, p. 2 e 4, aspas do autor). O autor

ainda nos lembra que

A divulgação pública do fundamentalismo se deu, sobretudo, com o debate sobre a

proibição dos professores de biologia de ensinarem, nas escolas, as teorias

evolucionistas de Charles Darwin. Foi um debate acirrado, pois os fundamentalistas

defendiam o ensino da teoria criacionista bíblica e não que os seres humanos são

evoluções do homo sapiens, como acredita a teoria evolucionista. E todas as

disciplinas deveriam fazer referência a essa maneira de tratar a criação. Outra

batalha fundamentalista foi pela implantação da oração nas escolas públicas. Eles

estão convictos de que a palavra de Deus é verdade, portanto ela deve reinar onde

for possível. [...] A criação de escolas dirigidas pela igreja e por fundamentalistas

possibilita um estreito laço entre religião, família e escola. (PANASIEWICZ, 2008,

p. 6-7)

Também numa perspectiva histórico-cultural, Silva et al. (2014), ao discutirem a

extrema direita na atualidade, evidenciam seus achados sobre expressões da barbárie,

fanatismos e fundamentalismos religiosos e de mercado, problematizando-os a partir de

imbricações instauradas em segregação, intolerância e violência:

Perseguições, pilhagens, práticas segregadoras de extrema violência, de extermínio e

suicídios coletivos marcam as várias formas de fanatismos e fundamentalismos no

interior da luta de classes, ou seja, na história da humanidade. O fundamento comum

desses fenômenos, consideradas as particularidades históricas, sintetiza a articulação

material de crises de dominação e formas de consciência irracionais. O

fundamentalismo religioso, por exemplo, comumente associado ao islamismo pelas

elites dominantes, especialmente após 11 de setembro de 2001, [...] pode ser

identificado em vários episódios históricos amplamente conhecidos, tanto na Idade

Média como na contemporaneidade. As cruzadas cristãs, “expedições militares-

religiosas medievais”, desde sua primeira edição, em 1095, foram convocadas por

papas e sempre conjugaram motivações religiosas e interesses econômicos e

políticos visando a dominação. Foram consideradas como guerras justas, inclusive

na teologia de Santo Agostinho. As guerras santas, tanto cristãs como muçulmanas,

encontraram na crise de dominação seu fundamento material e no irracionalismo sua

forma de consciência. Religião e irracionalismo partem do solo comum da

transcendência como princípio regulador da vida. Ou seja, um princípio

incognoscível que, portanto, escapa aos domínios da razão. [...] Ainda no plano

religioso, podemos lembrar outras faces do fanatismo: a caça às bruxas durante o

período inquisidor da Igreja Católica na Idade Média, que fez da mulher sua

principal vítima, mas também voltou-se contra práticas, tradições e conhecimentos

divergentes das “verdades” religiosas professadas pelo cristianismo, atingindo

minorias étnicas, alquimistas, cientistas e artistas. Seitas contemporâneas no mundo

ocidental também revelam a face do fanatismo. (SILVA et al., 2014, p. 417-418,

aspas das autoras)

Voltando ao cenário nacional contemporâneo, Senger buscou revelar de que forma o

discurso religioso contribui para a construção de violência contra homossexuais, destacando

que se trata de premissas ligadas à hostilidade, relegando a essa comunidade a “estampa de

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inferioridade, anormalidade e indignidade” (SENGER, 2014, p. 1315). Nesse trajeto, a autora

faz um levantamento estatístico sobre casos de homofobia e traz discussões a respeito dos

argumentos dos representantes evangélicos e católicos que vetaram as iniciativas em prol da

comunidade LGBT*, constatando que as considerações sobre a família ou a “família bíblica”

se revelam como “[...] o mais comum argumento dos parlamentares evangélicos quanto a

qualquer assunto que envolva a homossexualidade [...]” (SENGER, 2014, p. 1322).

Assim, cabe lembrar que o Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos

Humanos LGBT* é um importante marco enquanto um contraponto e resistência a esses

ideais. Apresentado em 2009 pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência

da República, o plano é resultado da 1ª Conferência Nacional GLBT, ocorrida em Brasília em

junho de 2008, e se apóia nos princípios de igualdade da Constituição e de laicidade do

Estado, na busca de garantia pelos direitos de gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros. A

laicidade do Estado é, portanto, um importante eixo de discussão dentre esses debates.

Embora não seja objetivada aqui uma problematização em peso, cabem provocações breves

no sentido de lembrar as dificuldades de exercê-la quando vivemos num país que

historicamente gesta a díade religião-política, fomentando uma hegemonia cristã. Isto é, mais

correto que falar em “onda conservadora” seria admitir o próprio histórico do país como

sendo conservador. Cabe lembrar que todas33 as constituições do Brasil foram promulgadas

em nome de Deus e que, embora desde 1890 seja proibido associar Estado e Igreja no país, a

moeda corrente oficial de nossa República, o real, acompanha desde 1986 os ditos “Deus seja

louvado”. Também se constitui como prática, quase que naturalizada, a presença de crucifixos

no Congresso, no Senado e no Supremo Tribunal Federal.

Zylbersztajn pontua que a constituição federal de 1988 não declara expressamente que

o Brasil seja laico, mas consolida todos os elementos desse entendimento, como, por

exemplo, a caracterização do Estado democrático garantidor da igualdade e da liberdade de

seus cidadãos, somadas à determinação constitucional de separação institucional entre o

Estado e a religião. E conclui a autora: “Inobstante o reconhecimento da previsão

constitucional da laicidade, não é possível afirmar de forma absoluta que o Brasil seja laico.

Outros elementos precisam ser levados em conta para chegarmos a este status”

(ZYLBERSZTAJN, 2012, p. 193).

33 Constituição Política do Império do Brasil de 1824, Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil

de 1891, Constituições Brasileiras de 1934, 1937, 1946, e 1967 e Constituições da República Federativa do

Brasil de 1969 e de 1988.

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Partindo desse cenário, nosso interesse desbrava-se a compreender quais implicações

esse histórico de conservadorismo reflete nas configurações sociais da travestilidade e outras

transgeneridades brasileiras. Se o embate antagônico entre esses movimentos ressalta, por um

lado, a luta e a resistência impressas no movimento LGBT*, ele denota, por outro, que ainda

no século XXI, a despeito de grandes avanços, vivemos também um grande retrocesso

político no campo da militância pelos direitos humanos e cidadania dentre as diversidades,

atualizando-se, portanto, formas de reprodução de machismo, racismo, homofobia – e

transfobia34 – nas relações sociais e também nas instituições. Peres e Toledo (2011)

compreenderam que é preciso levar a população trans ao enfrentamento político das “[...]

desigualdades sociais e sexuais, as iniquidades de gêneros, as violências estruturais, as

transfobias (medo, nojo, aversão pelas expressões de TTT), os machismos e os racismos”,

para que possam “[...] se inserir nos movimentos sociais e [...] intensificar forças que lhes

deem garantias de poder exercitar o direito de ‘ser’ e de ‘viver’” (PERES; TOLEDO, 2011, p.

271, aspas dos autores).

Portanto, há que se pontuar as ações e dispositivos de fortalecimento da militância. O

movimento LGBT* brasileiro é calçado numa política de visibilidade que luta pela defesa dos

direitos sexuais e humanos. A população trans apresenta especificidades de demandas dentro

desse movimento social, justamente pela especificidade de seu lugar social e também pela

crescente constatação de violação de seus direitos humanos, denotando, assim, a emergência

de pautas implicadas em políticas inclusivas, bem como a necessidade da construção de uma

ponte entre a população trans e o acesso à cidadania, cenário que corrobora a abertura de um

espaço para a articulação política da comunidade trans.

O percurso pelos movimentos sociopolíticos do início deste século constitui o

chamado empowerment de atores da sociedade civil organizada, à medida que criam sujeitos

sociais para a atuação em rede, de modo que o nicho de redes pode ser definido como “[...]

estruturas da sociedade contemporânea globalizada e informatizada. [...]” e que, ainda, “[...]

se referem a um tipo de relação social. Atuam segundo objetivos estratégicos e produzem

articulações com resultados relevantes para os movimentos sociais e para a sociedade civil em

geral” (GOHN, 2015, p. 15). Assim, a década de 1990 foi um importante cenário no marco de

34 Se um dos propósitos deste capítulo implica o posicionamento frente à construção de saberes, sobretudo no

discurso científico, cabe aqui uma das problematizações pensadas nas reuniões do grupo de estudo e pesquisa

INANNA. O termo “fobia”, cujo significado denota “medo”, não é de todo adequado para designar o ódio

assente na intolerância à comunidade LGBT*. No entanto, a presente dissertação não apresenta nenhum

neologismo a esse respeito e limita-se a concordar com os apontamentos de Mello et al. 2012, quando

destacaram que “[...] a adoção do sufixo ‘fobia’ para caracterizar qualquer modalidade de preconceito e

discriminação sexual e de gênero parece-nos limitada, já que reforça um discurso biológico e patologizante

(MELLO et al., 2012, p. 405).

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movimentos sociais. Sobre isso, Rosa refletiu que “o movimento LGBT* vem consolidando

no Brasil e no mundo ampla visibilidade enfatizando a denúncia da violência e da violação

aos direitos humanos [...] reivindicando igualdade de direitos” (ROSA, 2012, p. 92).

A especificidade dos movimentos brasileiros de travestis e transexuais é marcada por

mobilizações nos setores de saúde e pelo ativismo trans a partir de políticas de enfrentamento

à epidemia da AIDS e à violência policial. Esse histórico carrega problematizações até os dias

atuais, num cenário em que a origem das mobilizações políticas, a partir de organizações e

associações dessa população, é dada também a partir da luta pela inclusão de travestis no

emergente movimento homossexual dos anos 1980-1990. Ao discutir a luta pelo T no

movimento LGBT* brasileiro, Carvalho e Carrara (2013) assim pontuam: “Foi em 1995 que,

pela primeira vez, organizações de travestis participaram formalmente de um espaço do

movimento, no VIII Encontro Brasileiro de Gays e Lésbicas” (EBGL)

(CARVALHO;CARRARA, 2013, p. 330).

Nessa ocasião, os autores pontuam ainda o cenário da criação da Associação Brasileira

de Gays, Lésbicas e Travestis (ABGLT), denotando a representação da categoria “travesti”

nos encontros dessas organizações, como é o caso do Encontro de Gays, Lésbicas e Travestis

(EBGLT), de modo que a categoria “transexual” tem sua inclusão mais tardia no movimento,

a partir dos anos 2000, razão pela qual as siglas sofrem transformações, ao longo dos anos,

abarcando a necessidade de duplicação ou triplicação do T em algumas compreensões

literárias: LGBT*, LGBTT e LGBTTT, quando abarca as travestis, mulheres transexuais,

homens trans e transgêneros. Nesse sentido, Peres e Toledo (2011) atentam para o trânsito

teórico em permanente construção e destacam que as expressões “[...] devem ser aprovadas e

reconhecidas pelas pessoas que experimentam situar-se nestas conformidades” (PERES;

TOLEDO, 2011, p. 264). A esse respeito, vale o registro de uma passagem da história em que

as travestis e mulheres transexuais não se sentiam representadas única e exclusivamente pelo

termo transgênero:

Em 2004, por exemplo, no II Encontro Paulista GLBT, realizado entre 6 e 8 de

agosto em São Paulo, todas as vezes que se usava a palavra “transgênero” para se

referir a travestis e transexuais, as mesmas simulavam um espirro em coro como

protesto. Argumentava-se que “transgênero” era um conceito e não uma identidade

e, uma vez que a sigla do movimento era composta por identidades, ele deveria ser

removido. Nesta ocasião se configura, no estado de São Paulo, a sigla GLBTT

(Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais). (CARVALHO; CARRARA,

2013, p. 337)

Nesse sentido, cabe lembrar brevemente que a diferenciação entre os movimentos de

travestis e transexuais, em alguma medida, é também de ordem política, uma vez que suas

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demandas sociopolíticas partem de lugares sociais distintos, gerando concepções científicas e

de políticas públicas diferenciadas, como é o caso do chamado “processo transexualizador”

instituído pelas portarias nº 1.707 e nº 457, de agosto de 2008, e ampliado pela portaria nº

2.803, de 19 de novembro de 2013, que atende em maior escala a comunidade transexual.

Ainda que com dificuldades burocráticas de diversas ordens e sob o carimbo de

transtorno mental, atualmente é possível que transexuais – e travestis – efetuem

transformações corporais, seja com o aval da medicina legal, seja na clandestinidade, o que,

muitas vezes, pode levar a óbito, conforme denunciou o documentário Bombadeiras (2007).

No segmento de saúde, Peres e Toledo (2011, p. 269) também problematizam o uso do

silicone industrial. Sendo a substância estética fundamental na construção do reconhecimento

identitário, destaca-se uma série de problemáticas advindas do uso inadequado do silicone

industrial, emergindo aí uma questão de saúde pública, já que o cenário remete a uma

problematização a respeito dos cuidados de si frente aos processos de construção de seus

corpos: “[...] é muito frequente informações de travestis que tiveram ou estão tendo problemas

graves decorridos do silicone, em muitos casos chegando a óbito”. A respeito das chamadas

bombadeiras,

[...] Apesar de estarmos na era das próteses de silicone, ainda é muito caro para as

travestis poderem lançar mão desses recursos. Enquanto para fazer um par de seios

por meio de cirurgias de colocação de próteses mamárias se gastaria em torno de

seis mil reais (2.800 dólares), com o auxílio das “bombadeiras”, seus seios nas

mesmas proporções custariam em torno de quinhentos reais (270 dólares); mesmo

com facilidades para pagamentos em prestações, ainda assim é muito oneroso para

as travestis pagarem por esses valores. (PERES; TOLEDO, 2011, p. 269-270)

Rocon et al. lembram que “O CFM partiu da medicalização das identidades de gênero

Trans, tornando a patologização requisito ao acesso para normatizar os procedimentos

transgenitalizadores” (ROCON et al., 2016, p. 262). Nesse sentido, vale registrar mais uma

das inúmeras violências experienciadas por essa população, cujos processos de alterações

corporais duram em média dez anos, sendo que “a espera por uma cirurgia no sistema público

é tormentosa para muitas pessoas transexuais”. Essa longa espera acaba por desmotivar as

pessoas trans, “[...] que muitas vezes contraem um quadro de depressão capaz de desencadear

em suicídio, ou, ainda, se amoldam à realidade posta de que terão que conviver com o seu

órgão sexual diante da frustração [...]”. Ainda a esse respeito se faz importante registrar que

tais cirurgias e demais procedimentos para a população trans “[...] devem ser custeados pelo

serviço público de saúde não porque são ‘doenças’ e devem ser ‘tratadas’, mas sim porque

todo cidadão tem direito à saúde integral de acordo com as suas peculiaridades, devendo o

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Estado assegurar o exercício deste direito” (DINIZ, 2014, p. 21, 23 e 29). Rocon et al., ao

analisarem esse processo de alteração corporal enquanto política pública, concluíram que:

[...] o processo transexualizador tem servido de dispositivo disciplinador sobre a

população usuária, e equipamento para administração da vida trans na massa

populacional. Assim, a seletividade pode ser compreendida como resultado da ação

do Estado que, no início do biopoder, realiza um corte entre quem viverá ou

morrerá. (ROCON et al., 2016, p. 260)

Rosa concebe que as facetas da saúde negligenciam a vivência trans, sendo essa

população a parcela mais estigmatizada, exposta a preconceitos e discriminações dentre a

comunidade LGBT*: “[...] a herança heteronormativa [...] em nome do cuidado acaba por

patologizar e excluir as travestis do acesso aos serviços públicos, bens e consumo” (ROSA,

2012, p. 88). De acordo com tal reflexão, assim pontua Zambrano: “Se a vida dos indivíduos

que pertencem a grupos LGBT* costuma ser muito difícil quando se trata de direitos,

preconceito e discriminação, para travestis e transexuais a vida é, certamente, pior”

(ZAMBRANO, 2011, p. 103). Distante da intenção de “hierarquizar” as intensidades dos

sofrimentos humanos, tais achados acerca das dores exacerbadas no lugar social dessa

população devem ser analisados numa perspectiva crítica e cautelosa, tal como eles nos

remete aos preceitos da intersecção de sexo, gênero, orientação sexual, classe, etnia e demais

categorias ou, como constatou Peres (2005), das “sinergias das vulnerabilidades sociais”, ao

discutir sobre as múltiplas exclusões.

Para ilustrar essa discussão, cabe o registro das palavras da militância. Keila Simpson,

na condição de coordenadora geral da Associação de Travestis de Salvador, vice-presidente

trans da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais

(ABGLT), ex-presidente da ANTRA, presidente do Conselho Nacional de Combate à

Discriminação (CNCD), do Conselho Nacional LGBT* da Secretaria de Direitos Humanos da

Presidência da República e integrante titular do Comitê Técnico da Saúde LGBT* do

Ministério da Saúde, em 2013, declarou no Seminário de Identidades Trans, promovido pelo

CRP-06:

A gente sabe desde muito cedo, que somos nós que temos de dar a cara a tapa. São

travestis e transexuais que sentem na pele a discriminação que muitos gays e

lésbicas não sentem. Porque não são tão visíveis como nós. Eles podem se ocultar

dentro de uma identidade heterossexual e passar despercebidos. Mas uma travesti,

uma transexual, dificilmente passa. (CRP-06, Identidades Trans e Políticas Públicas

de Saúde: Contribuições da Psicologia, 2013)

Ainda no tocante à Psicologia, a psicóloga e gestora do Ambulatório de Saúde Integral

para Travestis e Transexuais do Centro de Referência e Treinamento de São Paulo (CRT/SP),

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Judit Lia Busanello35, ao pontuar a prática psicológica pautada nas diretrizes médicas e

referenciando a psicoterapia compulsória, declara no mesmo seminário:

Será que os 2 anos garantem que a pessoa não vai pirar? (risos) Será que eu tenho

que garantir isso enquanto psicóloga? Sinceramente, eu não me sinto confortável.

Será que é legítimo? Nossa, eu estou dizendo que é. E que ela não vai se arrepender.

Que garantia é essa que eu posso dar? Não está claro o papel da psicologia. Então,

assim, diferentes lugares fazem diferentes coisas com as pessoas transexuais e

travestis. Um acompanha de 15 em 15 dias, um acompanha de mês em mês, outro

acompanha semanalmente, um faz sessões de 15 minutos, outros fazem de 2 horas,

então assim, precisamos de realmente discutir. Não existe orientação clara quanto ao

psicólogo no processo transexualizador. Tem lá só a obrigatoriedade de 2 anos. [...]

nós temos 120 prontos, 2 anos já de terapia, prontos para ir para cirurgia. [...] O que

é que estas pessoas vão fazer depois destes 2 anos de psicoterapia? E nós, vamos

fazer o que com elas? A gente mobiliza e depois manda embora; ah, você espera

agora a cirurgia em casa! Se a gente sabe que o período inicial da cirurgia, o período

que antecede a cirurgia é o período que mais dá ansiedade? Então, assim, a gente

tem muita coisa para pensar. (CRP-06, Identidades Trans e Políticas Públicas de

Saúde: Contribuições da Psicologia, 2013)

De modo geral, a vulnerabilidade das relações sociais e de cidadania dessa população,

desde os primórdios, tem uma íntima relação com os setores de saúde. Uma das primeiras

ações ativistas na cidade de São Paulo pode ser denominada através da travesti Brenda Lee,

assassinada em 1996, que, a partir de 1984, passou a acolher em sua casa os chamados

pacientes sociais. Eram pessoas que não tinham condições de exercer ocupação profissional e

que precisavam de cuidados médicos diários, sendo em sua maioria travestis soropositivas

e/ou vítimas de violência. Ainda em São Paulo, o Palácio das Princesas passa a se chamar

Casa de Apoio Brenda Lee, em 1986, e funciona até os dias atuais36 (CARVALHO;

CARRARA, 2013). No entanto, as organizações propriamente ditas aparecem na década de

1990. A ONG Associação das Travestis e Liberados (ASTRAL) é pontuada como a primeira

organização política de travestis da América Latina. A associação é criada a partir de ações de

um grupo ativista, cuja principal demanda foi o combate de prisões indiscriminadas da

população trans no Rio de Janeiro. A partir disso, surge o primeiro Encontro Nacional de

Travestis e Liberados (ENTLAIDS), em 1993, sob a iniciativa da ativista trans Jovanna Baby.

(CARVALHO; CARRARA, 2013). O movimento nacional de travestis começava então a se

formar através da criação da Rede Nacional de Travestis e Liberados (RENTRAL), que

posteriormente se denominaria RENATA.

35 Numa entrevista a mim concedida, em 17 de setembro de 2013, ao falar de sua prática profissional, Judit

relatou os impasses referentes ao serviço de psicologia oferecido ao público do CRT de Santa Cruz. De acordo

com ela, o concurso realizado para a seleção de psicólogos refere-se a cargos no SUS (Sistema Único de Saúde),

sem especificações de áreas de execução de trabalho. Desse modo, os e as profissionais de psicologia

selecionados e selecionadas para trabalhar no ambulatório podem não desejar assumir o cargo designado, em

decorrência de muitos fatores, entre eles a formação despreparada e a não familiaridade com o público alvo,

assumindo o cargo, muitas vezes, para não perderem a vaga do concurso feito. 36 Mencionado pelos autores no ano de 2013 e confirmado por mim em março de 2017.

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Assim, articulações pensadas na década de 1990 começavam a se concretizar. No ano

de 2000, a ANTRA é juridicamente estabelecida no âmbito nacional. A organização

impulsiona a participação das travestis e transexuais nas instâncias de diálogo e interlocução

com agências públicas, atuando como propositora de políticas públicas (CARVALHO;

CARRARA, 2013). A ANTRA configura-se como um dos maiores marcos no movimento

trans brasileiro, sendo a maior rede de travestis e transexuais da América Latina. À época da

pesquisa realizada pelos autores, ela contava com mais de 80 organizações afiliadas, sendo

esse número aproximado a 105 nos dias atuais. A ANTRA também aceita afiliações de

ONG’s mistas, isto é, ela acolhe ao movimento LGBT* como um todo, desde que elas sejam

representadas por uma pessoa trans. Essas e muitas outras redes e organizações servem de

parâmetro para se evidenciar de onde parte a categoria trans no cenário sociopolítico

brasileiro e como os movimentos sociais travam lutas e resistências na busca da garantia de

acesso à cidadania. Exemplos dessas ações são as conquistas contemporâneas na interface

pública e jurídica.

No ano de 2010, a Portaria Federal nº 233/2010 em conjunto com o Decreto Estadual

nº 55.588/2010 e Decreto Municipal nº 51.180/2010-SP asseguraram o direito ao nome social

em âmbito federal, estadual e municipal. A recusa desse direito configura conduta

discriminatória pela Lei Estadual 10.948/01 que, em seu 1º artigo, declara punição a “toda

manifestação atentatória ou discriminatória praticada contra cidadão homossexual, bissexual

ou transgênero” (SÃO PAULO, 2001).

Ainda sobre a garantia de direito ao uso do nome social, em 2014, as instituições de

ensino públicas e particulares têm a ação regida pela Deliberação do Conselho Estadual de

Educação (CEE-SP) nº 125/14, que dispõe o uso do nome civil exclusivamente apenas em

documentos externos, como transferências e históricos escolares. No mesmo ano, a Resolução

SAP 11/14 dispõe sobre a atenção a travestis e transexuais no âmbito do sistema

penitenciário, quando da preservação do direito a sua orientação sexual e identidade de

gênero. No ano de 2016, o decreto nº 8.727 dispõe sobre o uso do nome social e o

reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis ou transexuais no âmbito da

administração pública federal direta, autárquica e fundacional. No entanto, a seguridade da

ação de retificação de prenome e de gênero ainda configura discussão contemporânea no

campo legislativo. Embora travestis e transexuais possam ingressar com o pedido judicial para

a alteração de prenome e gênero, mesmo sem intervenção cirúrgica, a partir da PL nº

5.002/2013 (Lei João Nery – Lei de Identidade de Gênero), que dispõe sobre o direito à

identidade de gênero, seus processos ainda são burocráticos e pouco acessíveis. Nesse sentido,

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é importante destacar a relevância desse serviço como sendo uma das práxis ofertadas pelo

Programa TransCidadania, já que, como nos registra Milena Wanzeller, “110 pessoas já

mobilizam processos de retificação de seus nomes”, prezando pela busca da cidadania, uma

vez que se torna inviável a dignidade da vida e a condição livre de preconceitos “[...] sem o

respeito a sua identidade de gênero. Não há como uma pessoa trans buscar a sua felicidade,

tendo que, a todo momento, conviver com uma identidade civil que não corresponde à

realidade de sua vida” (DINIZ, 2014, p. 41).

Outro marco no campo das conquistas que integram as políticas de atenção à

população de travestis e transexuais em situação de vulnerabilidade social na cidade de São

Paulo se refere à criação do CAE, um “Centro de Acolhida Especial para Mulheres Travestis

e Transexuais” em situação de rua. Inaugurado em abril de 2016 pela Prefeitura de São Paulo

e administrada pela Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMAD),

em parceria com a Coordenação Regional de Obras de Promoção Humana (CROPH), a casa

tem capacidade para o abrigo de 30 mulheres trans e conta com equipe multidisciplinar de 18

profissionais37 no objetivo de promover a reinserção social com atendimento humanizado.

Ação inovadora no Brasil e na América Latina, a demanda foi inicialmente pensada através de

articulação com o Programa TransCidadania, na intenção de solucionar a demanda de

travestis e transexuais que ainda estivessem em situação de rua. No entanto, atualmente,

dedica 60% das vagas à parceria com o Programa.

Já no ano de 2017, a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) demarca um

importante passo nesse cenário. O ambulatório do Núcleo de Estudos, Pesquisa, Extensão e

Assistência à Pessoa Trans – Professor Roberto Farina38 foi inaugurado em 24 de março deste

ano, com o objetivo de oferecer assistência multiprofissional de saúde, além da promoção do

bem-estar da população trans, possibilitando e fortalecendo os laços acadêmicos, políticos,

científicos e sociais dessa comunidade. As áreas de antropologia, cirurgia plástica,

enfermagem, fonoaudiologia, ginecologia, endocrinologia, psicologia, psiquiatria e serviço

social integram o serviço de iniciativa da universidade.

O movimento social também conta com a conquista de datas estratégicas. São elas: em

29 de janeiro, Dia da Visibilidade Trans; em 8 de março, Dia Internacional da Mulher, o

movimento registra o enfoque nas mulheres transexuais e travestis; em 24 de junho, Dia de

37 Silva (2017) descreve-me a equipe como composta por 01 psicólogo, 02 cozinheiros, 04 profissionais

operacionais, 08 orientadores socioeducativos, 01 assistente social e 01 gerente. 38 O professor Roberto Farina, cirurgião da Escola Paulista de Medicina (EPM) e pioneiro na cirurgia plástica

urogenital para transexuais no Brasil (1971), protagonizou um marco para travestis e transexuais, no campo da

medicina. Foi o médico a realizar a primeira cirurgia de transgenitalização no país, em 1971, na cidade de São

Paulo,fato que lhe conferiu uma interpelação judicial sob o crime de lesão corporal (ROCON et al., 2016).

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Ação Trans por Justiça Social e Econômica; o movimento trans também é representado no dia

28 de junho, Dia do Orgulho LGBT; a data de 23 de outubro simboliza o Dia Mundial de Luta

Contra a Patologização da Transexualidade; em 19 de novembro, Dia Internacional do

Homem, o movimento registra enfoque nos homens trans; em 20 de novembro celebra-se o

Dia da Memória Transgênero39 (JESUS, 2012).

Por fim, no que se refere às políticas públicas direcionadas à população LGBT*, faz-se

importante destacar que as conquistas são recentes, tanto no âmbito internacional como no

nacional. Desse modo, este tópico buscou introduzir algumas considerações sobre as

militâncias e “limitâncias” relativas aos cenários sociopolíticos da população trans brasileira,

além de historicizar seu objetivo de estudo a partir do paradoxo da díade denúncia-

empoderamento. Nesse sentido, dentre as militâncias e “limitâncias”, cabe citar a ativista trans

Keila Simpson que, ao discutir sobre as travestis brasileiras, sintetiza a intenção deste tópico

ao nos escrever academicamente:

[...] podemos dizer que por parte das lutadoras muito se tem feito e pouco tem se

reconhecido. Mas as travestis não se renderão jamais, pois sobreviveram à violência

e a torturas policiais, quando presas sem terem cometido nenhum crime; enfrentaram

uma sociedade machista e preconceituosa; resistem à vida nas ruas após ser expulsas

de casa, apenas por não parecer com os irmãos do sexo masculino; aprendem na

escola da vida, porque a escola convencional não está preparada para recebê-las;

batalham todos os dias para estar e permanecer em uma sociedade transfóbica.

Enfim, resistem a todos os percalços e por isso são pessoas vencedoras e especiais.

(SIMPSON, 2011, p. 116-117)

39 Disponível em:

<https://www.sertao.ufg.br/up/16/o/ORIENTA%C3%87%C3%95ES_POPULA%C3%87%C3%83O_TRANS.p

df?1334065989>. Acesso em: 08 jun. 2017.

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3. A CIDADANIA COM T DE TRANSCIDADANIA: O PROGRAMA

TRANSCIDADANIA COMO FRUTO DE LUTAS E RESISTÊNCIAS

“O TransCidadania é uma vitória e uma conquista, pois me reinseriu na sociedade.

Isso não aconteceu só comigo, mas com todas nós. Agora temos uma moradia para

voltar à noite, temos acesso aos estudos e estamos buscando na justiça a retificação

do nome. Finalmente vamos chegar a uma loja e não vão ficar nos olhando com

aquela cara de ‘Como assim? No documento está João, mas ali é Maria’. Essa

conquista vou levar para o resto da vida, vou levar o Programa TransCidadania

comigo para sempre, pois ele abriu meus horizontes, me levou a lugares que eu

jamais imaginaria chegar.”40

(Daniele Cavalcante. In: CONCÍLIO et al., 2016, p. 24)

O principal objetivo do presente capítulo é problematizar genealogicamente a

conjuntura do programa TransCidadania, bem como seus percalços, impasses, desafios e

potencialidades, perpassando por sua trajetória, projeto político, práxis, público atendido e

relevância social – nacional e internacional – que embasam sua existência enquanto

experiência inédita na cidade de São Paulo e na América Latina. O emprego da palavra

“TransCidadania” nessa intitulação se traduz num jogo político, ao usar o nome do programa,

na intenção de ressaltar as particularidades do cenário de cidadania da população trans,

pensando principalmente o acesso à educação e ao mercado de trabalho.

Certamente a concretização de programas sociais com o teor de complexidade à qual

se aplica o Programa TransCidadania, além de demandar uma agenda judiciosamente

elaborada, envolve em seu processo uma série de parcerias e órgãos sociais cujos

equipamentos se mobilizam em prol de práticas a partir de um dado cenário sócio-histórico.

No caso do histórico do programa, é possível afirmar que o cenário de engendramento e

arquitetura de políticas públicas voltadas à população LGBT* e seus movimentos sociais se

transfiguram como bases motrizes para sua concretização. Isso implica conceber o Programa

TransCidadania como culminância de lutas e resistências sociais diretamente assentes no

movimento social LGBT*. Nesse sentido, traçar a trajetória da origem e culminância do

Programa TransCidadania é considerar sua gênese histórica. Portanto, cabe aqui uma breve

discussão de seus cenários e sistemas precedentes, bem como os formatos das agendas

relativas à comunidade LGBT* que marcaram esse trajeto sócio-histórico.

40 Extraído de material público do Programa TransCidadania.

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3.1. As origens políticas do Programa TransCidadania

“Tenho certeza que se tivesse programas como o TransCidadania espalhados pelo

Brasil, muitas vidas seriam poupadas. O Programa não oferece ‘apenas’ uma bolsa,

mas alimenta a esperança da conquista do direito a uma vida cidadã. Ter um

programa voltado, principalmente, para inserção de mulheres transexuais e travestis

e homens trans na escola, não é importante apenas para estas populações. Antes de

tudo, nos faz acreditar que podemos transformar a escola em um espaço que tenha

como fundamento ético estruturante do seu funcionamento o respeito às diferenças.”

(Berenice Bento – Doutora em Sociologia da UFRN. In: CONCÍLIO et al., 2016).

De acordo com o ex-coordenador de políticas para LGBT* da Secretaria Municipal de

Direitos Humanos e Cidadania, Alessandro Melchior, é possível compreender que as agendas

de políticas públicas, estruturadas no processo humanista e de cidadania no contexto LGBT*,

são inéditas e se diferenciam por exceder as agendas proponentes de inclusão e lutas por

criminalização da discriminação decorrente de orientação sexual e identidade de gênero. No

caso do Programa TransCidadania, a proposta visa pensar as diversas capacidades e

alternativas disponíveis, sobretudo do poder executivo, em prol do combate aos danos

provocados pelas discriminações sociais e institucionais no cotidiano dessa população. Ao

apresentar o Programa TransCidadania, assim contextualizou o ex-coordenador:

[...] Essa agenda iniciou em 2004, com o lançamento, no primeiro governo do ex-

presidente Lula, do Programa Brasil Sem Homofobia. Elaborado por um conjunto

significativo de ativistas, pesquisadores e gestores, foi uma primeira experiência de

reflexão sobre a concepção dessas políticas. Com pouco resultado concreto, trata-se

da primeira consolidação de demandas direcionadas ao Poder Executivo Federal que

foi, ao longo do tempo, discutida e utilizada como referência em diversos espaços de

formulação e disputa por políticas públicas, em especial as conferências LGBT*, nas

três esferas. (CONCÍLIO et al., 2016, p. 19)

Dentre os estudos LGBT* que denotam consonância ao discurso de Alessandro

Melchior, Rosa (2012), por exemplo, concebeu o Programa BSH como um importante eixo na

formalização da construção de políticas públicas para a população LGBT*, a partir de 2004.

O Programa de Combate à Violência e Promoção da Cidadania LGBT* (BSH), lançado pela

Secretaria Especial dos Direitos Humanos, é amplamente reconhecido como um marco no

quadro brasileiro de políticas públicas direcionadas à população LGBT*, ao colocar em pauta

a luta que vinha sendo fortalecida e abrangida por movimentos sociais categóricos desde a

década de 1980.

Aragusuku e Lopes (2015) também consideraram que o BSH marca um novo ciclo de

políticas LGBT* junto ao Estado brasileiro, por ser o “primeiro documento do Governo

Federal a sistematizar um conjunto amplo de direitos sociais e ao combate à violência e

discriminação contra a população LGBT*” (ARAGUSUKU; LOPES, 2015, p. 1). Os autores

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pontuam que as políticas públicas voltadas para a população LGBT* possuíam uma

abrangência muito mais regional, em contraponto com as alterações efetuadas nos últimos dez

anos, quando “presenciamos a expansão e interiorização das políticas LGBT* no país,

passando inicialmente por um impulso pelas políticas do Governo Federal e posteriormente

pela descentralização e quebra da dependência de iniciativas do Governo Federal”

(ARAGUSUKU; LOPES, 2015, p. 2).

Ainda no tocante às agendas de políticas públicas, Daniliauskas pontuou precedentes

mais antigos. Ao se ocupar de recuperar os antecedentes do BSH, o autor apontou que essas

agendas “contam com uma série de fatores que potencializam ou restringem reformas

políticas” (DANILIAUSKAS, 2011, p. 39). Isto é, o cenário sociopolítico dessas agendas

implica uma trajetória, cujos progressos e retrocessos se colocam a depender de ideais

políticos e jogos de poder entre governos, já que:

[...] Quando um governo assume, ele não recomeça do zero simplesmente. Há uma

série de agências, instituições, gestores/as, técnicos/as que perpassam governos e

fazem parte do [...] chamado Estado. [...] há acordos e programas assumidos no nível

nacional e internacional, planos orçamentários de longo-prazo, assim como políticas

em execução de gestões anteriores. (DANILIAUSKAS, 2011, p. 39).

Nesse sentido, no que se refere à avaliação de políticas públicas, Trevisan e Bellen

consideraram que o processo traz implicações públicas para governantes, executores e

gerentes de projetos, uma vez que suas informações e resultados “podem ser usados pelo

público e pela imprensa para criticar governos, da mesma forma que, em caso de boas

notícias, os governos podem usá-las para legitimar as próprias políticas, como ganho político”

(TREVISAN; BELLEN, 2008, p. 536, aspas dos autores).

Através do levantamento de Daniliauskas, é possível conceber que as agendas

antecedentes ao BSH remetem ao governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), no qual se

destaca O Programa Nacional DST/AIDS, o primeiro Programa Nacional em Direitos

Humanos (1996), os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN, 1997) e a Conferência

Mundial das Nações Unidas contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e outras

formas de intolerância correlatas, ocorrida em 2001, em Durban:

[...] Em síntese, pode-se constatar que no período em questão houve um

fortalecimento da agenda de direitos humanos, na qual se encontram as demandas

LGBT*. Estas foram institucionalizadas no governo FHC por meio dos Programas

Nacionais de Direitos Humanos, das políticas do Programa Nacional de DST/AIDS,

pelo processo e acordo da Conferência de Durban e em alguma medida pela

elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais sobre Orientação Sexual. As

questões LGBT* passaram de uma abordagem que enfatizava vulnerabilidades e

tabus para iniciar um lento processo de reconhecimento de sujeitos de direitos, de

cidadãos/as. (DANILIAUSKAS, 2011, p. 72)

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O memorial brasileiro da luta por conquista de reconhecimentos e direitos LGBT*

enfrenta resistências desde seus primórdios. A tardia criação do Conselho Nacional de

Combate à Discriminação (CNCD), em 2001, foi uma das primeiras medidas adotadas pelo

governo brasileiro com vistas ao combate à discriminação com base na orientação sexual

(CONSELHO, 2004): “O CNDC foi estruturado no âmbito do Ministério da Justiça, durante o

governo Fernando Henrique Cardoso. Foi neste conselho que se deu a aprovação da resolução

que dá início ao processo de criação do Programa Brasil Sem Homofobia”

(DANILIAUSKAS, 2011, p. 70).

Se essas políticas públicas denotam um ritmo negligente, é certo que um dos fatores

relevantes implicados nessa discussão concerne aos poderes estatais. Diante de um

Legislativo inerte frente a tais problemáticas sociais, o poder Executivo brasileiro tem se

inclinado à função de assegurar a cidadania das chamadas “diversidades sexuais”, uma vez

que “o Legislativo brasileiro tem estado paralisado no que tange à regulamentação de

qualquer lei que combata preconceitos de natureza homofóbica e que tipifique e criminalize a

homofobia” (VENTURI; BOKANY, 2011, p. 11-12). A esse respeito, cabe mencionar que

somente em 2013 é aprovado o Projeto de Lei da Deputada Estadual Leci Brandão PL nº 727,

de 2011, que alterou a Lei 10.948 de 2001, dispondo sobre as penalidades a serem aplicadas à

prática de discriminação em razão da orientação sexual. Ainda assim, trata-se de um ritmo

bastante sedentário no Legislativo brasileiro acerca de qualquer questão que discuta, promova

ou garanta a cidadania LGBT*.

Em contrapartida, o poder judiciário tem se posicionado favorável às causas LGBT*

em seus julgamentos no que se refere ao avanço dos direitos sexuais no Brasil, criando

jurisprudência (DANILIAUSKAS, 2011). Jurisprudência essa que discute seus empecilhos

“de uma forma ampla a fim de demonstrar que são superáveis quando deixamos de lado

dogmas enraizados que se fundamentam muitas vezes em conceitos que não são abarcados

pelo direito, em razão da laicidade do nosso Estado” (DINIZ, 2014, p. 10). Ao problematizar

a seguridade do direito à identidade no viés jurídico, Diniz discute

[...] a construção de um conceito jurídico do Direito Fundamental à Identidade,

dentro de uma perspectiva de respeito à identidade de gênero, e da ideia de que os

direitos à liberdade, à igualdade e à intimidade abarcam também o direito à

identidade, posto que fazem parte da personalidade jurídica do cidadão [...], as

influências cristãs, por exemplo, religiosa e moral de uma sociedade brasileira que

foi historicamente fincada nestes valores não resistem a uma Carta Magna que prega

a laicidade e o respeito às minorias [...]. A Constituição Federal de 1988 [...] ao

proibir expressamente a discriminação em razão do sexo, o texto constitucional traz

um arcabouço que visa proteger as relações de gênero dentro da sociedade brasileira.

(DINIZ, 2014, p. 9, 36 e 39)

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No capítulo anterior, discutimos brevemente as implicações do conservadorismo

político e religioso nesses setores. Para além de reverberações mais intensas problematizando

o fundamentalismo dessa equação, o importante é ressaltar que isso está posto principalmente

nas agendas de políticas públicas e em todo e qualquer nicho relativo à seguridade de

cidadania da população LGBT*, fato que torna o Poder Executivo o principal motor dos

Direitos Humanos dessa população. Portanto, o apontamento relativo às agendas antecedentes

ilustra os agentes impulsores no histórico de políticas públicas direcionadas ao cumprimento

do papel de cidadania entre as pessoas LGBT*, bem como os desafios e percalços. Agendas

proponentes de inclusão e lutas por criminalização da discriminação no contexto LGBT*, por

exemplo, sinalizaram o pioneirismo nas ações provindas de debates do movimento. Como

evolução, os ideais contemporâneos miram além do reconhecimento, como prova justamente

a existência do Programa TransCidadania.

Nesse âmbito é possível afirmar que, mais de 10 anos depois, o prefeito Fernando

Haddad – Gestão de Prefeitura de janeiro de 2013 a dezembro de 2016 –, ao dar continuidade

e transcendência a tais estratégias sociais, foi o principal ator sociopolítico a gestar e

mobilizar a idealização e viabilização do Programa TransCidadania.

Esse salto, além de transcender o eixo de reconhecimento para acesso à cidadania e

considerar a especificidade de demanda da população trans brasileira, suscitando o debate da

área, é de extrema importância no combate à violência de Estado, no que se refere à

assistência aos grupos socialmente vulnerabilizados. Em suas próprias palavras, assim

sintetizou Fernando Haddad:

Destinado a olhar para pessoas que foram excluídas de casa, da escola, do mercado

de trabalho, muitas excluídas de tudo isso simultaneamente, o Programa nos ensinou

que, quando se abre uma oportunidade para as pessoas concluírem sua educação

formal, retomarem o seu lugar na sociedade, nos espaços públicos, elevando a

consciência cidadã, as pessoas agarram essa oportunidade. Tal iniciativa nos ensinou

que é possível mudar a vida das pessoas com um investimento tão pequeno,

comparado com a dimensão da cidade de São Paulo, frente ao preço, humano e

financeiro, que é o descaso de deixá-las à própria sorte. (Fernando Haddad. In:

CONCÍLIO et al., 2016, p. 5).

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Figura 1.

Inauguração do Programa TransCidadania com o prefeito Fernando Haddad, em 29 de janeiro de

2015. Disponível em: <http://igay.ig.com.br/2015-01-29/nao-e-nada-do-outro-mundo-o-que-estamos-pedindo-

para-as-trans-diz-haddad.html>. Acesso em: 21 jun. 2017.

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Figura 2.

Inauguração do Programa TransCidadania com o prefeito Fernando Haddad, em 29 de janeiro de 2015.

Disponível em: <https://fotospublicas.s3.amazonaws.com/files/2015/01/Prefeitura-de-Sao-Paulo-lanca-o-

programa-TransCidadania-foto-Fernando-Pereira-Secom-PMSP_201501290001.jpg>. Acesso em: 21 jun. 2017.

Figura 3.

Inauguração do Programa TransCidadania com o prefeito Fernando Haddad, em 29 de janeiro de 2015.

Disponível em: <http://fotospublicas.s3.amazonaws.com/files/2015/01/Prefeitura-de-Sao-Paulo-lanca-o-

programa-TransCidadania-foto-Fernando-Pereira-Secom-PMSP_201501290002.jpg>. Acesso em: 21 jun. 2017.

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3.2 As origens práticas do Programa TransCidadania

“Sozinho, o TransCidadania representa o maior investimento em política pública

LGBT* do país”. (Alessandro Melchior. In: CONCÍLIO et al., 2016, p. 191).

A proposta corresponde à meta 061, apresentada em 2012, pelo prefeito em seu plano

de governo, nos moldes do artigo 69-A, da emenda 30 da lei orgânica do município de São

Paulo que, desde 2008, regula a apresentação de metas da gestão da prefeitura. Dentre os

engajamentos propostos pelo prefeito, o Plano de Metas 2013-2016 previu o desenvolvimento

de ações permanentes de combate à homofobia e de respeito à diversidade sexual. Como

resposta à meta 061 de seu plano, Fernando Haddad já encomendava a criação de um

programa específico para mulheres travestis, transexuais e homens trans. Como explicitado

pelo Secretário de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de São Paulo, Felipe de Paula,

“A gestão do prefeito Fernando Haddad [...] defendeu pública e reiteradamente que uma

cidade deve ser de todas e de todos, sem exclusão” (CONCÍLIO et al., 2016, p. 16).

Lançado pela prefeitura de São Paulo e coordenado pela Secretaria Municipal de

Direitos Humanos e Cidadania, sua experiência simboliza o papel do Estado na promoção de

defesa de direitos de populações vulneráveis. Mobilizar o acesso à cidadania, levando em

conta a especificidade da população T, demanda uma construção articulada ao conjunto social

militante por ideais igualitários. Nesse sentido, é relevante registrar que a meta 061, dentro do

plano de desenvolver ações permanentes de combate à homofobia e promover o respeito à

diversidade sexual,

[...] reúne iniciativas de formação de servidores e qualificação de serviços públicos,

criação de equipamentos e serviços fixos e itinerantes de atendimento às pessoas

LGBT* em situação de vulnerabilidade, apoio a eventos de visibilidade positiva e o

Programa TransCidadania. (CONCÍLIO et al., 2016, p. 20)

Tais estratégias buscam um atendimento qualificado e humanizado, considerando as

múltiplas violências sociais a que está exposto esse grupo social. Portanto, representam a base

de ações efetivas que atendam à especificidade do Programa, haja vista que sua existência e

funcionalidade estariam prejudicadas – e até mesmo inviabilizadas – caso a formação de

servidores envolvidos incorporasse em suas atuações a reprodução de violências cotidianas

sofridas pela população atendida.

Dentro desse contexto, a realização do Programa contou com o convênio de parcerias.

No processo de viabilização do Programa, “[...] a Coordenação de Políticas para LGBT* da

Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania da cidade de São Paulo, celebrou um convênio

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com uma entidade da sociedade civil, KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço41”,

(CONCÍLIO et al., 2016, p. 21-22) e, a fim de pensar seu formato de atuação frente às

peculiaridades imbricadas nesse projeto, a coordenação de Políticas para LGBT* – na então

gestão de Julian Rodrigues (de fevereiro de 2013 a fevereiro de 2014) –, vinculada à

Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania, começa a se apropriar das principais demandas

da população trans na cidade de São Paulo, através de oficinas e rodas de conversa com

militantes, gestores, mulheres transexuais, travestis e homens trans.

A partir das pesquisas e apropriações contextuais, foi possível constatar a exclusão

social à qual estão expostas essas pessoas, bem como a proporção de negligências do acesso à

cidadania e espaços de direitos, sobretudo no que tange ao direito à educação. A estimativa do

governo municipal em 2015 era de que pelo menos 4 mil pessoas transgêneros residiam na

cidade de São Paulo. Constatou-se ainda que a maioria da população atendida no Centro de

Combate à Homofobia42 (CCH) era formada pela população T, cenário que, por si só, já

justificaria a emergência de uma política pública que atendesse à especificidade desse grupo

(CONCÍLIO et al., 2016).

Partindo desses contextos, gesta-se a existência do programa TransCidadania da

cidade de São Paulo através de uma nota43 redigida pela Coordenação de Políticas LGBT*,

sob a condução de Alessandro Melchior, que subsidia a operacionalização do programa, a

partir de ações intersetoriais envolvendo as seguintes Secretarias: Municipal de Direitos

Humanos e Cidadania, de Desenvolvimento, do Trabalho e Empreendedorismo, da Saúde, da

Educação, de Assistência e Desenvolvimento Social e de Políticas para as Mulheres. Diante

da necessidade de uma coordenação independente, Symmy Larrat, a convite de Alessandro

Melchior, assume o cargo e inicia em 2014 o processo de contato com as secretarias e

serviços mencionados a fim de, a partir da construção de fluxos de trabalho, lançar o

Programa TransCidadania, na previsão de janeiro de 2015.

41 Em maio de 2015, a organização assume o posto de responsabilidade pela execução e monitoramento das

ações do Programa TransCidadania. O convênio é, em primazia, efetivado com a sociedade civil de modo que a

organização da sociedade civil KOINONIA foi a selecionada pela Coordenação Municipal de Políticas LGBT*,

a partir do entendimento de que a instituição cabe ao perfil do Programa na medida em que seus três alicerces

norteadores de princípios se traduzem em Direitos Humanos, Ética da Solidariedade e Ecumenismo, sendo este

último compreendido como a convivência plural e respeito a todas as formas de manifestação do ser. Também se

considerou o fato de que a instituição possui experiência na área e capacidade de gestão (CONCÍLIO et al.,

2016). 42 Atual centro de Cidadania LGBT*, cujos eixos de atuação focalizam a Defesa dos Direitos Humanos e

Promoção da Cidadania LGBT*. São equipamentos da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania,

geridos pela coordenação de políticas para LGBT* (CONCÍLIO et al., 2016). 43 A nota conceitual da coordenação de políticas para LGBT* previu três principais eixos para o embasamento

das práticas: 1. mais autonomia; 2. mais oportunidades; e 3. mais cidadania (CONCÍLIO et al., 2016).

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Na ocasião, a gestora do Programa propôs um modelo de atuação que focalizasse uma

rede efetiva de atendimentos intersetoriais e que, portanto, contemplasse uma construção

pautada no diálogo e na transparência.

[...] A gente fez uma opção, a opção era de começar por baixo, convencer as

diretorias. A gente avaliou que se chegasse para o secretário com um monte de

tarefas, não seria um programa em que as pessoas estariam envolvidas, ia ser uma

ordem. Então nós começamos por baixo, fomos na diretoria que a gente ia trabalhar.

Por exemplo, na educação a gente foi no DOT-EJA e no Conselho Municipal de

Educação [...], pactuamos, vimos as potencialidades e elencamos as possíveis

dificuldades na educação. (CONCÍLIO et al., 2016, p. 32)

A construção conjunta denota responsabilidade coletiva e promove o sentimento de

pertença nos atores de setores institucionais. Como consequência desse formato dialogado, o

corpo profissional dispõe de articulação efetiva e apropriação das demandas de trabalho,

garantindo, portanto, maior possibilidade de práxis éticas e compromissadas. É a partir daí

que o programa segue em atividade desde 29 de janeiro de 2015, quando disponibiliza em sua

fase inicial 100 vagas com o objetivo de promover a reintegração social e de cidadania da

população trans. De acordo com as informações expostas no portal da Prefeitura de São

Paulo,

[...] Em 2016, o número de vagas foi ampliado, de 100 para 200, e também houve o

reajuste da bolsa de R$ 827,40 para R$ 924,00. Em 2017, o valor será novamente

reajustado, para R$ 1.056. Utilizando o desenvolvimento da educação como

principal ferramenta, os beneficiários recebem a oportunidade de concluir o ensino

fundamental e médio, ganham qualificação profissional e desenvolvem a prática da

cidadania. Outro diferencial do programa, que já virou destaque mundial por ser

inovador, é a transferência de renda, que possibilita a disponibilidade das

beneficiárias em concluírem a carga obrigatória de atividades. Cada beneficiária(o)

recebe acompanhamento psicológico, jurídico, social e pedagógico durante os dois

anos de permanência no programa. O TransCidadania é norteado por três principais

eixos de atuação: autonomia, cidadania e oportunidades. (PREFEITURA DE SÃO

PAULO, 2017)44

Elencar os objetivos desse programa, por si só, já denota o caráter extraordinário e os

avanços inéditos nos setores de políticas públicas direcionadas à população LGBT* e, em

especificidade, à população trans. No entanto, é válido registrar que essa tarefa demanda uma

discussão implicada em outros vértices sociais, como é o caso, por exemplo, da sociedade

civil ou do plano nacional de educação, já que, conforme se discutiu no capítulo anterior,

esses sistemas estão diretamente correlacionados com a história existencial desse programa.

Assim, outra pontuação implícita no gerenciamento do Programa TransCidadania,

tendo em vista que a dimensão estruturante do Programa se traduz principalmente na elevação

44 Disponível em: <http://www.capital.sp.gov.br/noticia/transcidadania-forma-2a-turma-e-comemora-avancos-

nas-politicas-lgbt>. Acesso em: 06 jun. 2017.

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de escolaridade e na autonomia financeira por meio da atribuição de renda e das atividades

relativas ao Programa, refere-se ao fato de que, em dois anos de trabalho, mais de 200 pessoas

beneficiárias elevaram sua escolaridade. Inclusão que não era possível antes “por não

conseguirem responder a uma chamada que não considerava seu nome social, ou por não

conseguirem usar um banheiro de acordo com sua identidade de gênero” (CONCÍLIO et al.,

2016, p. 17). Assim, de acordo com os dados do Programa, em 2016, quase 170 pessoas

usuárias prestaram ENEM. Segundo Maurice Florence, pedagogo do Programa, as

estratégicas básicas são oficinas de escrita e leitura, pensadas a partir da cidadania.

[...]. Tem gente lá de 18 a 60 anos, ou até mais de 60 anos, que não sabe ler

direito, não sabe escrever direito. [A linguagem destas pessoas] não é o suficiente

para a exceção para o mercado de trabalho, não o suficiente para a socialização da

sociedade, não é o suficiente para estar em outros espaços públicos ou privados e

esse programa veio principalmente para preencher essa lacuna. [...] a escola não dá

conta de alfabetizar direito, então a gente tenta ter esse curso de formação de leitura

e escrita que a galera chama de curso de redação, e que era ótimo. Como tinha o

Enem, pensamos “Ah, é bom, você aprender para a redação...” E no fundo é isto, é

tentar mostrar que é importante saber ler e escrever, porque vai assinar um

contrato... “Olha você não pode se enganar, você tem que saber ler, para ter mais

informação, mais conhecimento”, então eu acho que é isso! Esta questão de pegar as

lacunas que as escolas não preenchem e montar uma grade de pedagogia.45

A assistente de coordenação Milena Wanzeller fala sobre a evolução desses projetos:

[…] é muito bom ver que elas evoluíram. Muitas saíram de um

analfabetismo do qual não sabiam escrever seus nomes, que assinava com sua digital

e hoje em dia elas conseguem, além de escrever seu nome, escrever textos

maravilhosos, contar histórias e tudo mais, a história da sua vida e é muito

importante isso. A mudança nelas é o mais importante. Ver essa evolução delas é

dizer que o programa foi sucesso.46

Tais apontamentos referem essa política pública como um instrumento implicado nos

processos de cidadania referente não só à formação profissional, mas, sobretudo, à formação

cidadã das travestis, mulheres e homens trans do Programa. Nas palavras do ex-secretário

Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo, Eduardo Suplicy,

[...] Trata-se de um modelo de política pública de transferência de renda que permite

o retorno à escola e, a partir disso, a outros espaços de socialização e, junto disso, à

sociedade, por pessoas que a própria sociedade foi rejeitando, a partir da família, do

mercado de trabalho e de outras instituições. O Programa TransCidadania é,

certamente, uma das principais e mais bem-sucedidas políticas desenvolvidas pela

Prefeitura de São Paulo entre 2013 e 2016. Resta claro que, não o fosse, não seriam

tantos os países, órgãos de imprensa, universidades que procuram conhecer e

entender melhor essa experiência. (CONCÍLIO et al., 2016, p. 15).

45 Trecho de entrevista de campo. 46 Trecho de entrevista de campo.

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3.3. O Programa Operação Trabalho: POT LGBT e POT TransCidadania

“Corajoso e inovador, o TransCidadania impactou a dinâmica de São Paulo. Fez

diferença no cotidiano das(os) beneficiárias(os), que tiveram melhora concreta de

condições de vida e garantia de direitos básicos.” (Felipe de Paula, Secretário de

Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de São Paulo In: CONCÍLIO et al.,

2016, p 190).

Este tópico busca pontuar as diretrizes do POT LGBT e do POT TransCidadania,

estabelecendo uma relação entre eles, além de trazer aspectos de suas construções.

A diretriz de lei do Programa TransCidadania da cidade de São Paulo, implementada

pela prefeitura em 2015 a partir de ações anteriores, como é o caso do POT, é instituída pelo

Decreto nº 55.874, de 29 de janeiro de 2015, destinando-o à promoção da cidadania de

travestis e transexuais em situação de vulnerabilidade social, além de alterar as disposições

dos Decretos nº 44.484, de 10 de março de 2004, e nº 40.232, de 2 de janeiro de 2001.

O POT é um Programa Operação Trabalho, que foi instituído com qual

objetivo? Reinserir pessoas no mercado de trabalho. Só que o POT, o POT mesmo,

no programa TransCidadania, antes mesmo de o programa ser o TransCidadania, ele

era o chamado POT LGBT, que se transformou no TransCidadania. Todos os

programas do POT tinham a mesma intenção. Nenhuma era de elevação de

escolaridade, eram todas de reinserção no mercado de trabalho através de estágio. O

POT encaminhava as pessoas a estagiarem em algum equipamento da prefeitura até

que essa pessoa conseguisse se reinserir no mercado de trabalho. Só que o que foi

feito? Foi feita uma pesquisa dentro do POT LGBT e foi visto que as pessoas, que

gay, lésbica, geralmente tinham o ensino médio completo ou já estavam no ensino

superior cursando alguma coisa assim. E as transexuais geralmente não tinham nem

o fundamental ou o médio completo. Foi por isso que foi pensando o programa

TransCidadania, que continua vinculado ao POT, mas não tem mais o mesmo

objetivo do POT, que é apenas estagiando em um uniforme da prefeitura. (Milena

Wanzeller).47

Tratando-se de um programa cujo projeto consiste em uma parceria com a Secretaria

Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) e com a Secretaria Municipal do

Desenvolvimento, Trabalho e Empreendedorismo (SDTE), sua origem e canal econômico

estabelecem-se através do POT – TransCidadania. O POT, instituído pela Lei nº 13.178, de 17

de setembro de 2001, e atualizado através da Lei 13.689, de 19de dezembro de 2003, é o

programa que viabiliza a bolsa financeira ofertada pelo Programa TransCidadania. Trata-se de

um sistema autônomo com propostas estruturais. Seu objetivo é “conceder atenção especial ao

trabalhador desempregado, visando estimulá-lo à busca de ocupação, bem como à sua

reinserção no mercado de trabalho”, sendo que uma das ações de seu escopo se propõe “a

incidir nas trajetórias de vida de populações excluídas do processo de desenvolvimento

47 Trecho de entrevista de campo.

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econômico” (CONCÍLIO et al., 2016, p. 34). Nesse eixo, destaca-se que os casos de maior

vulnerabilidade são intermediados pela proteção social.

São requisitos legais para participar POT: ser maior de 18 anos de idade; residir na

cidade de São Paulo; estar isento de benefícios tais como o seguro desemprego ou o FGTS;

apresentar uma renda familiar de até meio salário mínimo por pessoa da família; não dispor de

registro em carteira por três meses consecutivos no ano vigente; disponibilizar seis horas

diárias – 30 horas semanais – às atividades propostas pelo Programa de matrícula, uma vez

que, dentro de seu enfoque, o POT também consiste, de acordo com o artigo 2º, inciso II, “no

desenvolvimento de atividades de capacitação ocupacional e de cidadania, ministradas pelos

órgãos municipais ou por entidades conveniadas ou parceiras” (CONCÍLIO et al., 2016, p.

35).

O POT LGBT foi criado em 2009 como uma modalidade do POT. Na ocasião, desde

2009, havia atendido 92 pessoas. No que concerne ao período de 2009 a 2011, ele manteve

vinculação ao CADS, a antiga Coordenação de Políticas de Atenção à Diversidade Sexual. As

atividades desenvolvidas nesse contexto denotavam caráter de inserção por meio de oficinas

de arte e cultura desenvolvidas no Centro de Referência à Diversidade (CRD). Já no período

que parte do ano de 2012, “as atividades foram desdobradas em estágios com o

desenvolvimento de atividades laborais, de expediente e rotina administrativa em órgãos da

administração pública municipal e estadual”. Além dessas atividades, em alguns casos, a

realização das atividades contou com a parceria – livre de acordos – de organizações sem fins

lucrativos, isto é, “sem qualquer tipo de acordo ou termo de cooperação, envolvendo as

responsabilidades entre a Prefeitura de São Paulo e a instituição onde as atividades eram

realizadas” (CONCÍLIO et al., 2016, p. 35-36).

Sendo o POT LGBT criado para atender a vulnerabilidade social de pessoas LGBT* e

tendo-se constatado a emergência e demanda da especificidade da população T, cria-se o POT

TransCidadania:

[...] Assinado em março de 2014, o Termo Cooperação entre a Secretaria Municipal

do Desenvolvimento, Trabalho e Empreendedorismo e a Secretaria Municipal de

Direitos Humanos e Cidadania, prevê como critérios adicionais aos previstos na

legislação do programa, os critérios a serem definidos pelo Programa

TransCidadania, já prevendo a sua incorporação como eixo desse programa maior.

Entre as ações imediatas, reduziu-se a carga horária do estágio, destinando-se um dia

da semana para a realização do curso Cidadania, Direitos Humanos e Democracia e

foi realizada a realocação das participantes do programa que desenvolviam

atividades em órgãos da administração estadual e em organizações da sociedade

civil sem fins lucrativos para órgãos da Administração Pública Municipal. [...]

Levantamento realizado pela Coordenação de Políticas LGBT* da Secretaria

Municipal de Direitos Humanos e Cidadania com as beneficiárias em julho de 2014

mostra que todas as beneficiárias do programa têm como única fonte fixa de renda o

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auxílio pecuniário do programa. Outras fontes pontuais somam-se como

complementação de renda, mas trata-se de um dado importante a consideração de

que 100% das participantes desse programa social têm como fonte fixa de renda

apenas o valor oriundo dessa política. (CONCÍLIO et al., 2016, p. 36-37)

Partindo desses achados, é possível compreender que o POT, tanto em sua modalidade

LGBT* como em especificidade no Programa TransCidadania, constitui o eixo pioneiro da

concretização de uma política voltada à população trans. É a partir das experiências

materializadas, construídas, problematizadas e experimentadas pelo POT que nascem

sementes que se fecundam numa maior lucidez das demandas específicas contextuais. Assim,

o próximo eixo brinda o público leitor da pesquisa com as raízes e bastidores do POT, a partir

de uma entrevista com atores sociopolíticos e operacionais.

3.3.1 Memórias da construção de um Projeto Piloto.

“O TransCidadania é importante; é revolucionário; é vitrine; perfeito. Mas se a gente

não alterar a estrutura da educação, da escola, da sala de aula, da relação de poder

que tem dentro da sala de aula, não vai adiantar nada, a gente vai ter que ter um

programa desse por 50 anos.” (Marcelo Hailler)48

Na intenção de preservar as memórias do projeto piloto do Programa TransCidadania,

aqui entendido como POTLGBT, este eixo busca apresentá-las de forma mais ampla possível,

a partir da participação do INANNA. O doutorando em Ciências Sociais da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), Marcelo Hailler Sanchez, de 34 anos, conta

como se deu sua história com o POT.

Marcelo, em conjunto com o NIP (Núcleo INANNA de Pesquisa), compõe parte da

autoria sociopolítica do projeto piloto do POT LGBT*. Sua participação nesta pesquisa serve

a dois eixos. Se, por um lado, enquanto professor conveniado desta frutífera empreitada, nos

fornece as raízes contribuintes ao cenário desta pesquisa, por outro, enquanto doutorando do

Programa de Ciências Sociais da PUCSP, nos traz uma perspectiva crítica do Programa

TransCidadania, ao discutir sobre as potencialidades e desafios, enquanto participante e

militante das questões sociais contemporâneas implícitas ao movimento LGBT* brasileiro.

O núcleo, coordenado pela prof.ª Dr.ª Carla Cristina,49 estuda Sexualidades,

Feminismos, Diferenças e Gênero, conforme explicitado na introdução deste trabalho. Nessa

ocasião, o NIP firma convênio com a prefeitura e sua atuação serve academicamente ao

público atendido pelo POT LGBT* em seu projeto piloto. Além de Marcelo Hailler e Carla

48 Trecho de entrevista de campo. 49 Mestre e Doutora em Ciências Sociais pela PUCSP e Pós-Doutorada pelo Instituto José Maria Mora (México,

DF), é professora da PUCSP e exerce atividade acadêmica há 30 anos.

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Cristina Garcia, também participaram dessa trajetória os professores e membros do NIP,

Daniel Fraçoli Yago50 e Fábio Mariano da Silva51. Dentre as atribuições do POT, Marcelo

contou a respeito da construção e elaboração de um curso que fugisse aos ditames tecnicistas.

Segundo ele, inicialmente, o programa consistia em um convênio, cujo corpo docente era

formado por ele, Carla, Fábio e Daniel, através da Universidade Municipal de São Caetano do

Sul (USCS) e da Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria de Direitos Humanos,

durante um ano. Com a mudança de gestão da coordenação LGBT*, as novas diretrizes

quanto ao programa eram de uma proposta de algo mais pedagógico, educacional, técnico,

trabalhista e laboral.

A meta deles era fazer um programa que pensasse trabalho, direitos

humanos e saúde, essas três questões. Então como ele começa? Começa com essa

ideia de pensar um curso, com noções básicas, como Política, Estado, Direito...

Nesse momento ele (Alessandro) fazia parte do POT, que era o Programa Operação

Trabalho, que é onde tudo se inicia. Então nós montamos um curso formal mesmo,

com matérias. Eu cuidava da parte de história, o Fábio cuidava da parte de

legislação.52

Ao destacar exclusivamente sua experiência no POT LGBT, Marcelo fala da

construção de um projeto piloto, cujo público atendido, naquele momento, era

majoritariamente trans. Ele afirma que, ao montarem o curso, separou os textos e livros, sendo

que essa foi uma das partes mais importantes. A turma inicial era composta por cerca de 40 a

50 alunos e alunas, dos(as) quais 85% eram travestis e transexuais. Seu relato registra que a

turma continha algumas meninas lésbicas, dois rapazes gays e, segundo ele, algumas pessoas

que vieram do programa de amparo ao imigrante, sendo elas também LGBT*. “Nesse

momento, ainda não existia o TransCidadania”, as pessoas faziam parte do POT e recebiam

curso técnico e certa ajuda de custo. Com a chegada do programa, elas podiam escolher entre

“trabalhar em alguma repartição pública” ou estudar, por exemplo. Mas era necessário que se

cumprisse o mesmo total de horas que, segundo ele, era em torno de 20 a 30 horas semanais.

As pessoas escolheram fazer esse curso conosco e esse era o modelo piloto.

Ele era meio que um plano secreto, a gente não poderia divulgar na época. Só a

gente que sabia, porque tinha essa idealização de montar esse programa, que depois

se chamaria TransCidadania. Então montamos esse curso conjuntamente e depois

separado.53

50 Graduado e Mestre em Psicologia Social pela PUCSP, lecionou nesta universidade em de cursos da

Coordenadoria Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão (COGEAE PUCSP). Atualmente, é

professor do curso de Psicologia da USCS. 51 Graduado e Mestre em Direito pela PUCSP, atualmente atua junto ao Gabinete da Reitoria desta universidade

na função de Oficial de Gabinete. É professor pelo PEPG em Direito e também pela COGEAE PUCSP, além de

professor da Universidade Cruzeiro do Sul (Unicsul). 52 Trecho de entrevista de campo. 53 Trecho de entrevista de campo.

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O relato de sua experiência enquanto professor do POT LGBT* traz dados simbólicos

acerca do público atendido naquela ocasião. A fala de Marcelo, além de nos brindar com a

transparência de transformação da sua prática experimental e em construção enquanto

professor, ilustra parte do escopo teórico das configurações educacionais discutidas no

primeiro capítulo desta pesquisa:

Quando fui lecionar minha primeira aula, foi uma experiência muito legal.

Primeiro por serem pessoas que foram expulsas muito cedo de casa, da escola e da

sociedade; eram pessoas muito dispersas, não tinham essa disciplina a que

estávamos acostumados da sala de aula, por conta dessa transfobia social e cultural

que elas vivenciam desde muito cedo. Eram pessoas muito dispersas, tanto que no

primeiro momento foi algo que me chamou muito a atenção. Assim que entrei,

percebi aquelas pessoas conversando entre si e já senti que não poderia começar essa

aula formalmente; então comecei conversando, me apresentando, pedindo para que

cada uma se apresentasse, falasse um pouco de si e porque estava lá. Basicamente,

todas estavam lá porque queriam enriquecer o seu conteúdo, queriam melhorar a sua

autoestima. Isso é uma coisa muito presente lá: baixa autoestima. Então basicamente

essa era a meta delas, que dali elas pudessem alçar para um nível melhor, ganhar

mais dinheiro, morar sozinhas, conquistar seu espaço e seu reconhecimento.54

Marcelo relata o próprio aprendizado obtido ao exercer a função de professor dessas

pessoas, a partir da readequação de sua prática. Ele conta que, inicialmente preparou uma

“aula clássica”, com autores, textos e atividades, mas que, no primeiro contato com aquele

público, precisou repensar todo o método que usaria para trabalhar. Apresentou-se, iniciou a

aula conversando e conhecendo as individualidades e particularidades de cada uma delas, e

naquela conversa percebeu diversos aspectos interessantes, que posteriormente seriam balizas

de seu novo foco. Marcelo notou que alguns tópicos de assuntos despertavam interesse e um

posicionamento delas que revelava muito de suas construções sociais, como ao falar sobre

política, por exemplo. Ele notou que elas tinham uma visão muito negativa e “de fato, elas

têm todos os motivos para ter essa visão da política”.

Outro ponto importante, levantado por Marcelo, foi perceber que elas não possuíam

dinheiro para xerox e que o curso não possuía essa infraestrutura necessária. Muitas vezes, ele

mesmo fazia isso e levava os textos para que pudesse haver um debate entre elas conforme os

temas que ele havia separado. Um dos mais polêmicos, segundo ele, foi o tema das drogas.

Marcelo conta que achou interessante o fato de algumas assumirem que consumiam drogas e

bebidas alcoólicas, mas que tinham um posicionamento muito conservador em relação a isso.

Nesse sentido, ele percebeu que o diálogo e a promoção de livres discussões sobre diversos

temas faziam com que a experiência se tornasse engrandecedora, sendo que, ao fim do curso,

ele afirma ter sido uma experiência muito valiosa. Ele menciona que uma delas se emocionou

54 Trecho de entrevista de campo.

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no último dia do curso, dizendo que a conversa entre ela e o companheiro era completamente

outra depois de levar os temas discutidos nas aulas para casa e conversar sobre eles com a

mãe e amigos. Isso lhe proporcionou uma nova percepção, um incentivo.

Marcelo conta que ficaram muito felizes com o resultado do modelo piloto e que, dali,

as configurações evoluíram o POT LGBT para o programa TransCidadania, que inclui a parte

pedagógica, trabalhista e de saúde. Nesse eixo da entrevista, ele traz reflexões acerca do

Programa TransCidadania, pensado a partir das configurações sociais:

Em termos nacionais é um programa pioneiro, você não tem modelo

semelhante, no que diz respeito ao Estado promover isso. É a primeira Prefeitura e é

muito importante que seja uma proposta que vem do executivo. Isso é inédito no

Brasil e em governos estaduais. O que nós tínhamos até então eram ONG’s que

faziam parcerias com os governos, independente da esfera que fosse.55

Marcelo justifica a estabilidade do programa afirmando que mesmo a nova gestão não

possui pretensões de desmanche do programa, mas sim pretende mantê-lo. Em sua opinião, a

secretaria cuidará dele, por reconhecer que o programa é pioneiro, tendo se tornado uma

“vitrine nacional”:

Em termos internacionais, na América Latina ou mesmo em outros países, é

a iniciativa privada com o estado que fez isso. Foi isso que tornou esse programa tão

famoso, tão premiado, e houve governos estrangeiros que vieram para conhecer esse

programa. Acredito que é uma coisa muito nova e tem que ser estudada mesmo. [...]

Acho que o TransCidadania é um ponto de partida [...] Você tem um problema que

existe fora. Apesar de ele ser um programa muito importante e que eu apoio muito,

ele acontece fora do espaço educacional. Nós temos algumas iniciativas que tem

mostrado eficiência, por exemplo, o nome social no ENEM. Cada ano que passa só

cresce56.

Marcelo afirma que o sucesso e ascensão do programa não bastam, pois, assim como a

secretaria afirma que pretende mantê-lo, também pode encerrá-lo. O problema, segundo ele, é

não provocar mudanças na estrutura educacional: “Não aprendemos nada ainda, em termos de

sexualidade, de gênero, sobre transgeneridade; não sabemos sobre essas coisas. O que

aprendemos é machismo, homofobia. Então a escola tem sim que ser esse espaço que quebre

essa reprodução de preconceitos e ódio”. Segundo ele, o ideal é concretizar como parte do

plano escolar e provocar mudanças na estrutura educacional no âmbito estadual, como

obrigação, pois a diferença do plano escolar é que ele obriga as escolas a seguirem as

diretrizes. Portanto, considerou que, enquanto não houver as pautas de gênero e sexualidade,

ninguém se importará com essas questões. Para Marcelo, somente quando um pedagogo

55 Trecho de entrevista de campo. 56 Trecho de entrevista de campo.

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altruísta pautar atividades relacionadas é que serão abordadas essas questões e, ainda assim,

isso continuará sendo algo especial, como uma atividade que poucos alunos vão cursar por

não ser algo obrigatório. Ao falar sobre essas mudanças, Marcelo afirma que, enquanto

sociedade, não temos ainda uma maturidade crítica para que essas questões sejam cabíveis nas

escolhas, como uma disciplina optativa, por exemplo. Segundo ele, devemos ser realistas,

pois os dados criminais relacionados ao machismo e ao ódio contra os LGBT* mostram isso,

diariamente.

Ao abordar o assunto sexualidade, Marcelo diz que regredimos desde que

fundamentalistas derrubaram o programa Escola Sem Homofobia, em 2011. Segundo ele, o

projeto era o único que possuía esse propósito, pois era um programa pedagógico não voltado

ao estudante, mas à formação de professores, diretores e pedagogos quanto à questão LGBT*,

visando estratégias de como evitar o ódio e o preconceito na sala de aula, já que não há

preparo dos mesmos quanto a essas especificidades, o que se torna prejudicial de ambos os

lados.

Após sintetizar com clareza a discussão intrincada nos capítulos anteriores, sobre

desafios, demandas, problemáticas e até “limitâncias” do cenário sociopolítico relativo ao

nicho de diferenças, gênero e sistema político e educacional, Marcelo registra sua perspectiva

acerca das potencialidades do Programa TransCidadania:

A potencialidade é tornar essa vitrine, que já é. Foi muito bom ver o

Haddad na campanha, em todas as entrevistas, em todos os pronunciamentos

públicos, falar sobre o programa. Agora a gente tem que lutar para que ele não caia

no esquecimento, porque assim como ele é uma potência agora, pode virar somente

uma memória.57

O grande temor, segundo Marcelo é que o programa caia no esquecimento e que se

leve muito tempo para que algo semelhante surja, deixando a população trans abandonada:

Esse também é o desafio do programa, porque não se pode afirmar ainda

que ele se tornou uma porta de saída, se as beneficiadas estão conseguindo melhorar

de vida. Isso era um temor que alunas falavam para mim, era uma ansiedade delas.

Quando aquilo terminasse, aquele foi um semestre que demos o curso, mas o que

será depois? Drogas? Prostituição? Elas não sabiam, porque tem uma questão de

classe muito forte e elas não têm mais laços com a família, essa também as

abandonou, expulsou.58

Ainda sobre a relevância social da iniciativa do programa, Marcelo interpretou que

É uma função social, política e pedagógica muito forte. É uma marca, um

dos programas do qual o governo Haddad será sempre lembrado. Foi corajoso de o

57 Trecho de entrevista de campo. 58 Trecho de entrevista de campo.

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governo aceitar, pois no começo, enquanto fazíamos o piloto, nos questionávamos se

ele montaria um programa assim e no ano seguinte deu muito certo. A relevância

para mim foi uma das maiores iniciativas do governo como um todo, altamente

revolucionário e muito corajoso, porque não foi um “programa escondido”, foi um

programa com verba e que depois foi defendido na campanha. Devemos trabalhar

para que isso não volte atrás; então essa é a grande relevância política e pedagógica,

de ter jogado luz para a questão do trans.59

Ao considerar o decreto do Programa e o cenário de Ações Afirmativas e Políticas

Públicas, o doutorando declarou que o programa teve suas dificuldades, até porque não foi

aprovado pela câmara municipal. Ele afirma que, por projeto de lei, o programa nunca teria

sido aprovado e ressalta a importância dos decretos e ações afirmativas:

Só conseguiremos superar a política afirmativa quando amadurecermos

enquanto sociedade, porque o debate LGBT* é público. Não havia esse debate antes,

éramos nós que tínhamos que fazê-lo à margem da política, dos partidos, dos

governos e do parlamento, e atualmente esse debate está em novela, no jornal, na

internet, no governo, no decreto do executivo. Isso são ações afirmativas: dar

atenção especial para uma camada da sociedade que precisa, porque estas sofrem

uma violência que as outras não sofrem? Isso gera um debate na sociedade.60

Marcelo destaca que, em certa medida, ainda se fazem necessárias ações punitivas

para quem pratica o crime de ódio. Existem muitas críticas à questão da punição e o

doutorando afirma que não podemos ser uma sociedade apenas punitiva, mas temos “números

horrorosos” de crimes contra mulheres, crimes de racismo e crime de ódio contra LGBT*,

então nesse momento ainda é necessária uma punição, mesmo que seja socioeducativa, mas

ela tem que existir. Segundo ele, a lei estadual nº 10.948, sancionada em 2011, Lei de

Homofobia Estadual, teve resultados muito bons e as pessoas conscientizaram-se que, em São

Paulo, ao praticar homofobia pode-se ir para a cadeia, pagar multa ou ter que participar de

ações socioeducativas: “É um grande avanço”.

Marcelo explica que ações afirmativas não podem estar sozinhas, mas sim

entrelaçadas com uma série de outras políticas. Ao mesmo tempo que elas se voltam para

pessoas LGBT*, mulheres e pessoas negras, se faz necessário também um trabalho na questão

de saúde, de educação, por meio de campanhas públicas, o que, em sua concepção, configura

um problema, pois eles são impedidos de fazer campanhas públicas para LGBT*, exceto na

época da parada. Porém, Marcelo pontuou a necessidade de que essas campanhas sejam

realizadas fora da parada, porque se faz necessária uma conscientização que é insuficiente se

abordada em apenas um dia: “É preciso mais visibilidade, trazer os holofotes para questões

59 Trecho de entrevista de campo. 60 Trecho de entrevista de campo.

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sérias, em períodos além da parada. O ideal é que seja algo permanente, que vire uma política

de estado e não de governo. É necessário um primeiro passo e o que fizemos é histórico”.

Ele também fala sobre as ações afirmativas de modo a comparar o TransCidadania

com o PROUNI, explicando que “O PROUNI é uma ação afirmativa temporária, criado com a

intenção de chegar a um nível de ofertas de vagas nas faculdades públicas onde ele já não seja

mais necessário, se torne obsoleto. O TransCidadania possui o mesmo propósito”. Já ao falar

sobre ofertas de trabalho, Marcelo reforça que existe um problema na pré-formação da

população trans, destinada ao ramo da costura, da beleza ou do telemarketing. Segundo ele,

não se trata de uma crítica a esses setores, mas à falta de iniciativa às demais áreas de atuação.

Muitas das meninas com quem conversei querem ser técnicas de mecânica,

de computação, comunicadoras, atrizes, atores, chefes de cozinha. Elas querem

participar do mundo que nós participamos; é essa a questão. 61

A esse respeito, a partir de um levantamento feito pelo TransCidadania, em 2016, a

assistente de coordenação do Programa Milena Wanzeller também destacou os desejos das

matriculadas e matriculados, além de pontuar os impasses contextuais:

[...] O SENAI fechou uma parceria com a gente [em alimentação] e foi o

único profissionalizante prestado. As demais que não tinham interesse nesse curso

ficaram sem curso. A intenção era que tivesse pelo menos mais três opções do que a

maioria. Do que foi desejado pela maioria, teve muitas opções de cursos que elas

falaram, mas a maioria delas [...] citaram outras coisas que já nem são mais

profissionalizantes e sim graduação, que são pedagogia e outras. Uma área que não

compete mais à gente oferecer isso. Elas correrem atrás, tanto que uma das propostas

do programa as prepara para o ENEM, para que elas possam ingressar em uma

faculdade.62

Marcelo sugere ainda um debate sobre parcerias com serviços sociais, como o SESI ou

o SESC, quanto à inclusão de vagas específicas a essa população. Segundo ele, tais parcerias

podem auxiliar quebrando o círculo vicioso que dificulta muito a inserção de travestis e

transexuais no mercado de trabalho. Ele também falou do impacto sociopolítico, considerando

o pioneirismo do programa TransCidadania:

Vale ressaltar o impacto que o programa TransCidadania teve no meio

social e político, porque foi um programa polêmico no bom sentido, de gerar o

debate. De início, ainda quando piloto, a sala que nos deram era dentro de uma

associação ligada a um sindicalismo do direito e havia muitos motoboys por lá. O

interessante é que, como política e princípio do nosso programa, a porta ficava

sempre aberta a quem quisesse entrar e muitos desses motoboys se interessaram,

participavam e conviviam com as meninas. Quando fazia debate, eles davam

opinião. Foram experiências muito valiosas, pois o cotidiano desses motoboys era

cercado de machismo e houve uma ótima interação entre eles e as meninas. Dali

surgiu até mesmo um casal. O programa é revolucionário justamente por isso: ele

61 Trecho de entrevista de campo. 62 Trecho de entrevista de campo.

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transcendeu o espaço destinado e é isso o que acontece com políticas

revolucionárias.63

O discurso de Marcelo parte de uma ótica militante politicamente pautada em

preceitos de um ativismo ético-político. Como pesquisador e professor, além de trazer dados

de sua passagem do convênio entre a prefeitura e o NIP, na atuação no projeto piloto do POT

LGBT*, o entrevistado traz relevantes provocações acerca do cenário econômico e político no

país. A riqueza dessa entrevista carrega um importante e simbólico poder de síntese das

discussões pontuadas teoricamente nesta pesquisa. Bastante pontual, as colocações atingem

diretamente nos cernes das questões imbricadas no debate acadêmico desses movimentos

sociais. Assim, evitando o reducionismo de reescrever as diretas palavras do entrevistado,

cabem breves reflexões e reafirmações.

Certamente, o impacto inicial do Programa TransCidadania é inquestionável. Se o

secretário de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de São Paulo, Felipe de Paula, o

concebeu como corajoso e inovador, ao falar das alterações do Programa na dinâmica

paulista, o jornalista Nelson S. Coutinho Neto, enquanto coordenador de comunicação da

Coordenadoria de Políticas Públicas para LGBT* da Prefeitura de São Paulo, ao discorrer

sobre a importância da imprensa, nos recorda o jargão “bolsa-travesti”:

[...] Pouco antes do lançamento do TransCidadania, 20 de janeiro de 2015, o prefeito

Fernando Haddad concebeu uma entrevista para Radio Jovem Pan. Durante a

conversa com os radialistas lhe foi perguntado sobre seu programa chamado “bolsa

travesti”. O apelido pejorativo logo caiu no jargão da imprensa conservadora do

país. [...] A jocosa descrição “bolsa travesti”, dada pela imprensa, não refletia a

importância e magnitude histórica e política do próprio Programa. O prefeito

Fernando Haddad enfrentava neste momento o mesmo que passou com o material

didático de orientação pedagógica em Diversidade Sexual que tentou implementar

no Ministério da Educação, quando ainda ministro da Educação, e seu programa foi

taxado como “kit gay” pela imprensa. (NETO, 2016, p. 132-133)

O jargão é elaborado a partir das representações de prostituição e lógicas transfóbicas.

Ao relembrar esse mesmo fator, Milena Wanzeller destaca o posicionamento do Programa,

cujas diretrizes, pensadas a partir da cidadania e da emancipação, não apresentam uma

política higienista. Isto é, o grande desfecho das práxis envolve possibilitar relações

acolhedoras e, principalmente, de escolha, não configurando ação do programa a imposição

um discurso moralista e proibitivo a respeito de condutas sobre drogas, prostituição e outras.

[...] Já existe um grande preconceito contra travestis e transexuais. À época

do lançamento do programa as pessoas falavam muito em “bolsa travesti”. “O

prefeito está dando dinheiro para as travestis se drogarem, para as travestis

continuarem a serem prostitutas”. Não há mal nenhum em travestis serem

63 Trecho de entrevista de campo.

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prostitutas, cada um faz do seu corpo o que bem entende. E essa também nunca foi a

proposta do programa, a de tirar da prostituição. A proposta do programa sempre foi

o aumento de escolaridade para que a pessoa tenha outras opções além da

prostituição. Fica na prostituição quem quer, mas tem pessoas que estão na

prostituição não porque querem, mas porque são obrigadas, não têm outra opção na

vida. E a função do programa é exatamente essa: dar outras opções para as

meninas.64

Neto (2016) discute o papel da imprensa ao trilhar a trajetória de desafios e

transformações do Programa TransCidadania. Se a mídia nacional, representada pela Jovem

Pan, em sua abordagem pejorativa, concebeu “Bolsa Travesti”, a mídia internacional,

representada pela Business Insider, postulou que o “TransCidadania could change the lives of

trans” [O TransCidadania pode mudar a vida das trans]65.

Na matéria intitulada “De ‘Bolsa Travesti’ para ‘O Programa que Transforma Vidas’:

as experiências e desafios comunicacionais do Programa TransCidadania”, o jornalista e

coordenador de comunicação de políticas públicas LGBT* registrou que o evento midiático

dos jargões mobilizou a comunicação estabelecida na Comissão de Políticas para LGBT*

(CPLGBT*), que, a partir de ações pedagógicas, atuou coma imprensa de modo a construir

junto aos profissionais e repórteres um entendimento mais amplo acerca das temáticas de

gênero e sexualidade, garantindo uma reportagem mais qualificada, mostrando que os

progressos não vêm livres de resistências.

Considerando o contexto LGBT* ao longo dos anos, entre militâncias e “limitâncias”,

progressos e retrocessos, é possível compreender que as políticas públicas e afirmativas

carregam em seu bojo uma dívida histórica para com a população LGBT*. Se, por um lado,

muito se discute sobre o acesso à cidadania (PERES, 2005; ZAMBRANO, 2011; VENTURI;

BOKANY, 2011; DINIZ, 2014), por outro, há que se considerar uma série de empecilhos

sociológicos que caminham na contramão dos direitos humanos. A laicidade do Estado e as

questões do fundamentalismo religioso (ZYLBERSZTAJN, 2012; SENGER, 2014; DINIZ,

2014) transfiguram-se como parcelas desses empecilhos a serem superados na prevenção e

promoção da cidadania LGBT*. Como concebeu Panasiewicz, “A televisão e as novas

tecnologias da informação passam a ser espaços privilegiados para, em nome de Deus, tornar

públicas as críticas sociais e fazer apologia de valores morais conservadores”

(PANASIEWICZ, 2008, p. 7). A inércia do Legislativo brasileiro (DINIZ, 2014; VENTURI;

BOKANY, 2011) está a serviço de uma lógica retrógrada, cuja problemática é de ordem

estrutural. Isto é, as estruturas como o patriarcado, o machismo e o próprio capitalismo

64 Trecho de entrevista de campo. 65 Disponível em: <http://www.businessinsider.com/TransCidadania-could-change-the-lives-of-trans-people-

everywhere-2015-9>. Acesso em: 26 jun. 2017.

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repõem estruturas racistas, homo e transfóbicas, classistas e afins. Se a macrogênese é de

ordem estrutural e se o pilar educacional é uma estrutura, esta pesquisa concorda com

Marcelo Hailler no tocante às políticas educacionais.

Enquanto a questão de gênero for tabu num Estado que se propõe laico e cuja política

partidária, em formato de bancada evangélica, faz uma leitura essencialista de gênero,

(LANZ, 2015), a comunidade trans caminhará como transgressora de uma lógica que, por

essência, não encontra sentido nos próprios preceitos filosóficos de fraternidade religiosa. Em

vez do reconhecimento e respeito às chamadas diversidades, teremos a evolução de

estatísticas como as pontuadas ao início do capítulo 2, disparando fervorosamente num

cenário que, em nome de Deus, incita ódio, intolerância e discriminações no país que mais

mata a população trans.

Nesse sentido, as políticas que se criam para dar conta de falhas e lacunas estatais são

quase que de uma ambivalência sociológica. Se, por um lado, a necessidade de uma política

estatal no reconhecimento existencial e de garantia de direitos enquanto pessoa humana é um

aparato perverso, por outro, ela serve à busca da emancipação. Assim é o Programa

TransCidadania que, em meio às mazelas sociológicas, se dedica a devolver o direito que foi

tirado dessa população pela família, pela igreja, pela escola e por grande parte da sociedade.

3.4. A legislação base do Programa.

Objetiva-se neste eixo trazer uma leitura do decreto66 do Programa. Nesse sentido, em

primeira instância registra-se que o Programa TransCidadania se apóia nos preceitos da

Constituição e na carta Magna. Sua experiência “[...] simboliza uma política pública que

materializa um papel do Estado, que é de oferecer às pessoas mais vulnerabilizadas condições

de construírem sua autonomia, sua cidadania e poderem retribuir à sociedade uma sociedade

melhor e mais humana” (CONCÍLIO et al., 2016, p. 13).

De acordo com os dados publicados na Secretaria do Governo Municipal, em 29 de

janeiro de 2015, o Decreto nº 55.874, da mesma data, “Institui o Programa TransCidadania,

destinado à promoção da cidadania de travestis e transexuais em situação de vulnerabilidade

social; altera disposições dos Decretos nº 44.484, de 10 de março de 2004, e nº 40.232, de 2

de janeiro de 2001” (PREFEITURA DE SÃO PAULO, 2014). Nessa ocasião, o prefeito do

66 Disponível em:

<http://www3.prefeitura.sp.gov.br/cadlem/secretarias/negocios_juridicos/cadlem/integra.asp?alt=30012015D%2

0558740000>. Acesso em: 21 dez. 2016.

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município de São Paulo, no uso das atribuições que lhe foram conferidas por lei, decretou, no

artigo primeiro: “Art. 1º - Fica instituído o Programa TransCidadania, destinado a promover

os direitos humanos, o acesso à cidadania e à qualificação e humanização do atendimento

prestado a travestis e transexuais em situação de vulnerabilidade social” (PREFEITURA DE

SÃO PAULO, 2014).

No artigo segundo, são dispostas as diretrizes do Programa TransCidadania de ofertar

“condições de autonomia financeira e de enfrentamento à pobreza, por meio de programas

redistributivos, de elevação de escolaridade, qualificação profissional e intermediação de mão

de obra”, além de desenvolver “ações de enfrentamento ao preconceito e à discriminação

contra travestis e transexuais e de respeito à expressão de sua identidade de gênero e ao uso

do nome social, nos termos do Decreto nº 51.180, de 14 de janeiro de 2010” e, nesse

processo, ofertar ainda a “capacitação e sensibilização permanentes dos servidores públicos

municipais para a oferta de atendimento qualificado e humanizado a pessoas travestis e

transexuais, observados os princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da não

revitimização”, com base na “formação cidadã em direitos humanos para o exercício da

cidadania, participação popular e controle social” (PREFEITURADE SÃO PAULO, 2014).

A estrutura do artigo terceiro delega à Secretaria Municipal de Direitos Humanos e

Cidadania as funções de acompanhamento e avaliação da implementação do programa, nas

disposições de que tais feitos devem ser realizados em articulação com as demais Secretarias

Municipais. No que tange à população beneficiária do programa, o mesmo artigo decreta o

encaminhamento e auxílio nos processos de adesão a outros programas “e ações públicas e na

obtenção de outros benefícios a que possam fazer jus”. Também dispõe a referência de

“equipamentos municipais, em especial das redes de saúde, assistência social e de apoio à

mulher, para atendimento e acolhimento de pessoas travestis e transexuais67”, além da

prestação de apoio técnico e financeiro referente “à execução das atividades previstas no

Programa” (PREFEITURA DE SÃO PAULO, 2014).

No artigo quarto, institui-se a oferta na rede municipal de saúde, nos equipamentos

municipais, de “terapia hormonal, no âmbito do Processo Transexualizador e pelo Sistema

Único de Saúde (SUS), conforme Portaria nº 2.803, de 19 de novembro de 2013, do

Ministério da Saúde”. Já o artigo quinto altera disposições do artigo segundo e décimo sétimo,

acrescentando:

67 Na disposição de parágrafo único, é instituído que o referido inciso (III) não impede nem exclui o atendimento

de pessoas travestis e transexuais nos demais equipamentos públicos.

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[...] Art. 5º - Os artigos 2º e 17 do Decreto nº 44.484, de 10 de março de 2004,

passam a vigorar com as seguintes alterações: Art. 2º: Parágrafo único. A Secretaria

Municipal de Direitos Humanos e Cidadania poderá celebrar convênios, parcerias ou

termos de cooperação específicos para o desenvolvimento de atividades pelos

beneficiários provenientes do Programa TransCidadania, respeitadas as normas e

diretrizes do POT. Art. 17: VII - Secretaria Municipal de Direitos Humanos e

Cidadania. (PREFEITURA DE SÃO PAULO, 2014)

Os artigos sexto e oitavo do Decreto nº 40.232, de 2 de janeiro de 2001, passam a

vigorar acrescidos do § 3º, com a seguinte redação:

[...] Art. 8º§ 3º Na realização de censos de caráter qualitativo, deverão constar as

classificações quanto à orientação sexual e à identidade de gênero, destinadas a

subsidiar a elaboração de políticas públicas voltadas aos respectivos segmentos de

lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. (PREFEITURA DE SÃO PAULO,

2014)

O artigo sétimo da Constituição do Programa TransCidadania institui que:

[...] Todas as unidades da Administração Municipal Direta e Indireta que prestam

atendimento ao público deverão afixar, em local visível, placa contendo a seguinte

mensagem: “De acordo com o Decreto nº 51.180, de 14 de janeiro de 2010, os

órgãos e entidades da Administração Municipal Direta e Indireta devem respeitar e

usar o nome social das pessoas travestis e transexuais”. (PREFEITURADE SÃO

PAULO, 2014, aspas da Instituição)

O artigo oitavo ordenou que o decreto entrasse em vigor na data de sua publicação,

isto é, aos 29 de janeiro de 2015, 462º ano da fundação de São Paulo, partindo dos atores

Fernando Haddad, enquanto prefeito, Rogério Sottili, enquanto secretário Municipal de

Direitos Humanos e Cidadania, Artur Henrique da Silva Santos, enquanto secretário

Municipal do Desenvolvimento, Trabalho e Empreendedorismo, e Francisco Macena da Silva,

enquanto secretário do Governo Municipal.

3.5. Apresentação dos serviços de assistência social, pedagogia e psicologia

“Quando eu entrei aqui, eu percebi melhor como era o programa, porque de longe,

parecia que era só essa questão, uma Bolsa e o estudo e acabou. Então quando eu

entrei aqui eu percebi que, realmente, não; você tem um acompanhamento. Eu acho

que é isso que falta nas outras redes, um acompanhamento adequado e um

acompanhamento adequado multidisciplinar.”

(Maurice Florence, pedagogo do Programa)68.

No presente eixo, apresentam-se as práticas do Programa TransCidadania, ilustradas

em maior escala pela bibliografia base do Programa e também pelas entrevistas de campo que

contaram com a participação da assistente de coordenação Milena Wanzeller e do pedagogo

Maurice Florence. Como pontuação inicial, vale o registro do diferencial da própria equipe do

68 Trecho de entrevista de campo.

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Programa TransCidadania. No caso de Milena, a assistente de coordenação, trata-se de seu

primeiro emprego. Ela, além de assistente de coordenação do Programa TransCidadania, é

estudante de jornalismo. Aos 33 anos, sua atuação junto ao programa data de abril de 2015,

como assistente administrativa, e de setembro de 2016, como assistente de coordenação.

[...] Eu nunca consegui nem o estágio de jornalismo, da informação, porque

[...] meus trabalhos sempre eram aprovados no estágio, mas quando viam que a

pessoa que escreveu [...], o estágio já estava preenchido. Então nem estágio eu

consegui fazer. [Seu emprego no Programa TransCidadania] você se sente

reconhecida pelo trabalho que você fez. Acho que é gratificante para qualquer

pessoa, principalmente para uma trans que nunca teve um trabalho na vida, primeiro

trabalho que eu consegui, no meu caso. Nunca tive um trabalho na vida. E [...] no

meu primeiro trabalho eu já consegui uma promoção já é muito. É bem gratificante

mesmo69.

Pensar a equipe técnica a partir da própria comunidade constitui mais um dos

diferenciais de grande relevância sociopolítica do Programa TransCidadania. Ao possibilitar a

geração de emprego e renda para dentro da comunidade trans, traduz-se não somente uma

inteligente estratégia institucional, mas também um ato político de possibilitar e mobilizar, a

partir do próprio corpus do Programa, a ação transformadora quando da composição de uma

equipe técnica.

O caso de Milena é emblemático, especificamente por dois motivos. Se, por um lado,

ela transcende a esfera da vulnerabilidade à qual está exposta a maioria das pessoas trans, por

outro, seu discurso registra que isso não foi o suficiente para gozar plenamente da cidadania,

quando das dificuldades empregatícias enfrentadas, embora ela estivesse gabaritada frente às

possibilidades de contratação. Se uma das intenções desta pesquisa é sondar as configurações

trabalhistas de travestis e transexuais considerando a teoria da intersecção, amplamente

discutida anteriormente, vale problematizar a configuração da negligência empregatícia de

Milena, trans, branca, que antes de conseguir registro em carteira já havia ingressado em

curso de ensino superior, fugindo, portanto, do setor de vulnerabilidade. Ainda assim, seu

primeiro emprego só foi possível em uma política pública que está montada em seção.

Ainda sobre uma composição de equipe baseada nos preceitos da diversidade, assim

nos relata o pedagogo e mestrando em educação, Maurice Florence, gay, 33 anos:

Este programa é bem estruturado. A equipe eu tenho vontade de chorar

[expressão positiva] com a equipe que eu tenho. Eu lembro que a primeira reunião

que eu tive, pensei: “olha nossa equipe: o psicossocial social são quatro mulheres

negras, a minha chefe é uma travesti, a pedagoga é uma mulher trans, a Maria é uma

indígena baiana, tem eu e o [nome] que é veado, e tem a ‘cota hétera’ que é o

[nome]” – que nós até brincamos que é a cota hétera (risos). Aceitamos ele no vale

dos homossexuais (risos). É uma equipe muito boa. Fico imaginando se eu estivesse

69 Trecho de entrevista de campo.

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111

em outros aparelhos públicos, se eu teria uma equipe tão boa e engajada quanto essa

nossa rede, enfim, se todo aparato que cuida das habilidades sociais, não funcionaria

melhor se tivesse uma equipe tão engajada como aqui70.

Apresentar brevemente os serviços ofertados pelo Programa TransCidadania

identifica-se com a apresentação de sua estrutura, que é descrita como

[...] transversal, multidisciplinar e intersetorial em sua concepção e execução –

conjuga educação para jovens e adultos, qualificação profissional, renda, assistência

jurídica, psicossocial e cuidados de saúde, com o auxílio de diferentes áreas da

prefeitura. Ainda é focalizado em seu público alvo – cidadãos e cidadãs T, com

altíssimo grau de vulnerabilização. Finalmente, ao almejar a ampliação da

autonomia e de oportunidades, é totalmente voltado à promoção e à garantia de

direitos. (CONCÍLIO et al., 2016, p. 17)

O Programa é composto por uma equipe multidisciplinar: Coordenação (1), Assistente

de Coordenação (1), Psicólogas(os) (3), Assistentes Sociais (3), Pedagogas(os) (3), auxiliar

administrativa (1) e recepcionista (1) constituem uma rede de atendimento às 200

beneficiárias(os). Cada usuária(o) do Programa dispõe de um prontuário e é acompanhada(o)

por uma equipe referencial composta por pedagogia, psicologia e serviço social. Como

explica Milena,

[...] a assistente social e psicologia cuidam de coisas mais da vida dessas

pessoas. A gente recebe meninas com demandas diversas, como o uso de drogas,

como o uso de álcool, situação de rua, fora outros problemas que surgem no decorrer

desse caminho. E a pedagogia cuida da parte escolar dessas pessoas. O programa

não tem um advogado, mas utiliza o advogado do centro de cidadania, que é para o

caso de, como já tivemos, meninas que foram presas, meninas que foram agredidas e

além da retificação do registro civil, que o centro de cidadania hoje em dia está

oferecendo para essas pessoas. [...]. As meninas que estão em situação de rua são

encaminhadas para abrigo, vaga fixa ou vaga temporária e outros serviços como o

bolsa família, bolsa aluguel e outros serviços que a assistência social oferece para

essas meninas. [...] E a psicologia cuida desses outros tipos de demandas. Demanda

psicológica a gente recebe bastante, sobre as pessoas usuárias de álcool e outras

drogas. Isso atinge muito essa população de travestis e transexuais. Não é 100% das

nossas beneficiarias, mas é uma grande parcela. [...] nossa equipe está muito

preparada para isso, para acolher e encaminhar essas meninas para o serviço do qual

elas precisam para se tratarem desses problemas. A gente [...] não faz terapia, mas a

gente faz um grupo psicossocial, que a psicologia e a assistência social, que

trabalham juntas. A psicologia não tem a função clínica aqui dentro, mas de

acompanhamento e encaminhamento. E a gente tem dois tipos de atendimento, o em

grupo e o individual. Quando o caso é mais crítico, a equipe chama para

atendimento individual, mas só que geralmente é um atendimento psicossocial e não

só psicologia ou só assistência social, e sim o da multidisciplinar.71

Dentre quatro modalidades de atividades pretendidas pela gestão, são oferecidas às

beneficiárias(os) do Programa duas delas. Elas se dividem em cursos extracurriculares,

pensados a partir de atividades com base em direitos humanos e cidadania, e em

70 Trecho de entrevista de campo. 71 Trecho de entrevista de campo.

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acompanhamento escolar (CIEJA/EJA), que é intermediado pelo programa. A essa grade,

inicialmente pretendia-se somar atividades profissionalizantes e de estágio. No entanto, a

curta duração do Programa acaba por inviabilizar a efetividade desse formato. A partir da

coleta de dados a respeito do programa, é possível afirmar que, embora a duração de dois anos

de matrícula possibilite o acesso à cidadania e alfabetização, ele não se constitui como

suficiente para a demanda dessas vulnerabilidades, isto é, não é possível sanar plenamente

altos graus de analfabetismo no curto período de dois anos. Portanto, além da insuficiência de

parcerias, um dos motivos pelos quais as modalidades de estágio e de cursos

profissionalizantes não operam é a curta duração da matrícula, que se mostra incapaz de

profissionalizar e estagiar essas pessoas.

Sobre isso, Milena explicou que

Existe uma grade do programa fixa, que é a elevação de escolaridade

através da EJA e o curso de direitos humanos. Esses são os obrigatórios da grade

extracurricular, preparação para o mundo do trabalho, profissionalizante e estágio.

[...] essa grade já veio preparada, não foi a equipe do TransCidadania que montou,

foi desde quando o TransCidadania foi pensado lá na Secretaria de Direitos

Humanos, a coordenação de políticas LGBTT e o secretário de direitos humanos.

Foram eles que a montaram lá, em 2014. A gente, enquanto equipe, só coloca em

prática o que já veio montado. [....] Essa é a grade curricular do programa, é fixa.

Infelizmente essas duas últimas aqui não foram feitas ainda, quer dizer, o

profissionalizante não foi feio com todas, apenas uma parcela foi feita no SENAI e

as outras a gente está aguardando que essas outras duas últimas etapas a prefeitura

consiga cumprir agora. [...] As principais [modalidades de atividades] são EJA e

curso de direitos humanos. Então o EJA é elevação de escolaridade. Curso de

direitos humanos foi pensado justamente por conta de que muitas dessas meninas

viveram em um mundo onde não tinham acesso a isso, onde elas sempre acham que

elas não têm direito a nada. [...] Aí tem esse curso de direitos humanos [com a

finalidade de] mostrar para elas direitos e deveres que elas têm; como cobrar esses

direitos; como exercer esses direitos; sua cidadania plena; [...] essa é a intenção do

curso de direitos humanos. A preparação para o mundo do trabalho é, como o

próprio nome já diz, curso profissionalizante; é o que ainda está faltando, é

justamente o que vai deixar ela apta a exercer alguma atividade no mercado de

trabalho e esse estágio também tinha essa finalidade, mas que não foi cumprido

ainda.72

As atividades internas contemplam grupos psicossociais, com atendimentos

individuais e coletivos, além de cursos nas modalidades de Cidadania e Direitos Humanos,

dentre outros que se constroem a partir de especificidades contextuais de demanda. Há ainda

as atividades externas que se articulam ao projeto político do programa, como as “Escolas em

rede intersetorial do município de São Paulo: Escolas Municipais e Estaduais, Centro

Integrado de Educação de Jovens e Adultos (CIEJA), Sistema Único de Saúde e o Sistema

Único de Assistência Social” (CONCÍLIO et al., 2016, p. 40-41).

72 Trecho de entrevista de campo.

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113

À Assistência Social compete a interface com os serviços e práticas que objetivem a

garantia dos direitos da população atendida pelo programa. Nesse trajeto, cabem práticas de

sensibilização e orientação acerca dos serviços que compõem a rede de articulação como, por

exemplo, o respeito ao uso do nome social, a articulação de vaga em Centros de Acolhida

específicos para pessoas trans em situação de rua e o cadastramento no Centro de Referência

da Assistência Social (CRAS) no CAD único, além de atendimentos individuais para questões

pontuais ou de demanda espontânea. À Psicologia cabem também essas interfaces, além da

elaboração de pareceres psicológicos que servem ao processo de retificação do registro civil,

bem como o acompanhamento nos processos de hormonioterapia, realizados nas Unidades

Básicas de Saúde e de Referência do Município de São Paulo em nove unidades básicas de

Saúde (UBS’s da Região Central). Também cabem ao setor de Psicologia a elaboração e

acompanhamento de grupos que são, no entanto, psicossociais, o que implica a atuação

conjunta entre os serviços de Psicologia e de Serviço Social. A esse respeito,

[...] A nota conceitual do Programa não diferencia as atribuições desenvolvidas pela

Psicologia e Serviço Social, porém na prática profissional identificamos fazeres

diferentes, que se complementam. Os atendimentos psicossociais, individuais e/ou

em grupo, são mediados por assistentes sociais e psicólogas(os) com o objetivo de

possibilitar olhar o indivíduo em sua totalidade, contrapondo-se à fragmentação da

pessoa, validando suas condições sociais e condições afetivas. Os atendimentos

individuais são realizados a partir de demandas pontuais, identificadas pela equipe

ou por demanda espontânea. Podemos destacar questões relacionadas ao uso de

drogas, transfobia institucional – principalmente não respeito ao nome social –,

encaminhamentos para centros de acolhida, serviços de saúde mental e física.

(CONCÍLIO et al., 2016, p. 54)

As principais atribuições da Pedagogia dizem respeito ao acompanhamento do

desenvolvimento escolar das(os) beneficiárias(os) e das instituições educacionais que se

articulam ao Programa, além da promoção de oficinas de desenvolvimento pedagógico. Aos

pedagogos(as) também cabe a coordenação do banco de horas das beneficiárias(os). Milena

relata detalhadamente o cotidiano nessa descrição:

A pedagogia faz o acompanhamento de cursos. Quando são feitos cursos

aqui, são contratados profissionais ou parceiros e voluntários que vêm prestar algum

tipo de curso, palestra, seminário, assim como você fez, e a pedagogia faz o

acompanhamento desse trabalho. Os cursos geralmente são aqui, mas em algumas

ocasiões já foram feitos em outros lugares, como no SENAI, na incubadora de

projetos, na ação educativa, na faculdade de sociologia, no centro de referência da

dança [...]. Então geralmente a gente tenta tirar daqui mesmo, para que não fique só

aqui. [...] A pedagogia também faz todo o acompanhamento de escola e cursos aqui

dentro e fora, porque a gente sabe que as meninas não estudam aqui. Elas não têm

uma turma específica para elas. Elas estudam em escolas normais como qualquer

outra, com turmas normais como qualquer outra, não tem turma exclusiva. No início

do programa, eram apenas três escolas referenciadas, duas de ensino fundamental e

uma de médio. Hoje em dia a gente já trabalha com doze do fundamental e oito de

médio, e a tendência desse ano [2017] é isso aumentar mais ainda por conta de que,

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no início de programa, foram referenciadas essas escolas pelo fato de elas estarem

aqui na região central e a gente ter um acompanhamento mais incisivo. Hoje em dia

a gente trabalha com a política de as meninas saírem do centro, principalmente as

que moram em regiões mais distantes e ficarem ali, perto da casa delas. Elas

escolhem em qual escola querem estudar e a gente só vai fazer o acompanhamento e

não mais a escola que a gente manda elas irem. A gente já prepara essas meninas

para que elas escolham a escola que elas querem estudar e a partir do momento que

elas escolhem a escola, a gente capacita a escola para receber essas meninas, para a

escola saber como tratar essas meninas. A pedagogia entra em contato com a escola

dependendo da escola, porque tem muitas escolas que hoje em dia estão capacitadas

para isso. Mas quando não existe essa capacitação, a pedagogia ou outros

profissionais que forem preciso vão até essa escola. Seja para falar sobre como

tratar, tratar no feminino, se é para usar banheiro, usar o banheiro feminino, para que

não haja um conflito, sobre principalmente a respeito do nome. [...] então são essas

orientações que a pedagogia e também algumas outras vezes a equipe

multidisciplinar faz nas escolas. E se precisar fazer capacitação com a escola, fazer

palestra com a escola, com os alunos, tudo para que essas meninas se sintam à

vontade nas escolas para integrar mesmo. E não para segregar ou para criar algo

novo para elas. Elas estão apenas entrando em lugares que já existem, apenas vão

frequentar. [...] fazemos um acompanhamento mensal nas escolas, visitamos a

escola para saber como está o andamento dessa menina na escola, se ela está

apresentando dificuldade em alguma disciplina, se está tendo dificuldade com os

alunos, dificuldades de convívio e tudo mais. Aparece, não com frequência, mas a

gente já teve casos de pessoas que não conseguiam entrar no ritmo da escola ou

então que alguma coisa acontecia. Sabe como é escola, alguém mexe e a reação da

travesti é sempre pior (risada). Então acaba que muitas vezes a pedagogia tem que

incidir e vai frequentemente pessoalmente nas escolas, mas são poucas as vezes que

acontecem esses casos. Geralmente, dá tudo certo. [...]. Então a pedagogia serve para

mediar essa situação junto com a coordenação da escola, porque às vezes também

não tira a autonomia da escola, entende? A gente faz um acompanhamento mesmo e

acata tudo que a escola achar que é melhor para esses casos. A não ser que a escola

peça, a gente não mete o nosso dedo no que a escola decidir. A escola tem total

autonomia para fazer o que achar melhor. Se achar que tem que suspender,

suspende, se achar que tem que afastar, afasta, se achar que tem que transferir,

transfere [...]; a gente acompanha mesmo e tenta mediar essa situação.73

3.6. O público atendido pelo Programa

O presente eixo ilustra os dados demográficos74 coletados pelo Programa

TransCidadania no período de sua criação até o final de 2016. Os gráficos aqui reproduzidos

foram recriados a partir do material do programa e se referem às tabulações de 221

beneficiários e beneficiárias, observação que denota, portanto, o cuidado do Programa em

identificar seu público, a fim de compreender quem são e de onde vêm as pessoas que

passaram e passam pelo TransCidadania. Nesse trajeto, foram consideradas como

determinantes as variáveis de raça, território e faixa etária. Também na intenção de ilustrar o

cotidiano e a demanda da população atendida pelo Programa, registra-se neste eixo uma das

73 Trecho de entrevista de campo. 74 Disponível em: <http://koinonia.org.br/wp-content/uploads/2017/05/koinonia.org.br-TransCidadania-

paraticas-e-trajetorias-de-um-programa-transformador-2-

online_TransCidadania_paraticas_e_trajetorias_de_um_programa_transformador-1.pdf>. Acesso em: 13 jun.

2017.

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atividades desenvolvidas por mulheres travestis, transexuais e homens trans acerca de suas

trajetórias trabalhistas. Esses registros são relativos à atuação voluntária enquanto

pesquisadora do Programa, já que, conforme o descrito anteriormente, o acesso às usuárias se

deu por meio de palestras e bate-papos voluntários coordenados diretamente no Programa

TransCidadania, no ano de 2016, como parte do processo de investigação.

Gráfico 1: Idades das(os) beneficiárias(os)

Legenda: 1% das(os) beneficiárias(os) têm 60 anos de idade, 9% das(os)

beneficiárias(os) têm de 50 a 59 anos de idade, 19% das(os) beneficiárias(os) têm de 18

a 29 anos de idade e 71% das(os) beneficiárias(os) têm de 30 a 49 anos. FONTE:

Adaptado de CONCÍLIO et al. (2016, p. 34).

Gráfico 2: Cor e etnia das(os) beneficiárias(os)

Legenda: 61% das(os) beneficiárias(os) consideram-se pretas(os) ou

pardas(os) e 39% das(os) beneficiárias(os) consideram-se brancas(os).

FONTE: Adaptado de CONCÍLIO et al. (2016, p. 35).

1%

19%

71%

9%

Idade

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116

Gráfico 3: Região de moradia das(os) beneficiárias(os) na Cidade de São Paulo

Legenda: 24% das(os) beneficiárias(os) residem na região da Zona Oeste, 11%

das(os) beneficiárias(os) residem na região da Zona Leste, 18% das(os)

beneficiárias(os) residem na região da Zona Sul, 8% das(os) beneficiárias(os)

residem na região da Zona Norte e 39% das(os) beneficiárias(os) residem na

região Central. FONTE: Adaptado de CONCÍLIO et al. (2016, p. 36).

Gráfico 4: Região de nascimento das(os) beneficiárias(os)

Legenda: 2% das(os) beneficiárias(os) nasceram nas regiões Sul e Centro-Oeste, 7%

das(os) beneficiárias(os) nasceram na região Norte, 48% das(os) beneficiárias(os)

nasceram na região Sudeste e 41% das(os) beneficiárias(os) nasceram na região

Nordeste. FONTE: Adaptado de CONCÍLIO et al. (2016, p. 35).

39%

8%18%

11%

24%

Região de Moradia

Cidade de São Paulo

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117

Gráfico 5: Escolaridade das(os) beneficiárias(os)

Legenda: Dados Demográficos sobre escolaridade.

Nos dados demográficos sobre escolaridade, não se apresenta distinção de séries ou

modalidade de ensinos. O gráfico dividiu-se em 6 módulos, de modo que o módulo 1 (da

primeira à segunda série) abrangeu 8% das(os) beneficiárias(os); o módulo 2 (da terceira à

quarta série) abrangeu 13% das(os) beneficiárias(os); 10%, das(os) beneficiárias(os)

corresponderam ao módulo 3 (da quinta à sexta série) e 33% das(os) beneficiárias(os)

corresponderam ao módulo 4 (da sétima à oitava série). Os outros dois módulos

correspondem as(os) beneficiárias(os) concluintes e cursando o ensino médio: 18 %; 18%.

(FONTE: Adaptado de CONCÍLIO et al., 2016, p. 36). Conforme o observado no gráfico,

existe uma carência do ensino médio e superior. O processo deficitário de escolarização

justifica-se em grande parte pelas dificuldades enfrentadas pelas(os) beneficiárias(os) durante

a fase escolar, sendo as principais causas a transfobia expressa desde os preconceitos verbais

até as agressões físicas. Uma vez fora da escola, a busca de emprego e independência

financeira é burocratizada. Sem a possibilidade de retomar os estudos ou buscar melhores

qualificações, as oportunidades tornam-se cada vez mais escassas.

De todo modo, posterior às análises das amostras, de forma conclusiva, pode-se

afirmar o seguinte acerca do Programa:

[...] No geral, as(os) beneficiárias(os) são mulheres transexuais e travestis. Estão na

faixa etária de 30 a 49 anos e se consideram negras (pretas e/ou pardas). Grande

parte emigrou para o Município de São Paulo, oriundas da região Nordeste e Sudeste

do país. No município, a maioria mora na região Central e as demais estão

8%

13%

18%

33%

18%

10%

Escolaridade

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distribuídas pelas outras zonas da cidade. Em relação à escolaridade, a maioria está

cursando, pelo Programa TransCidadania, o Ensino Médio e o Ensino Fundamental

II. (CONCÍLIO et al., p. 37).

Além de grande parte da população atendida encontrar-se entre os 30 e 49 anos de

idade, sendo mais da metade negras, pretas e pardas, os gráficos demonstram que a maior

parte das(os) beneficiárias(os) nasceu na região Sudeste e Nordeste, porém residindo

atualmente na região Centro ou na Zona Oeste. É possível entender essa migração como um

fator constante, associado à maior concentração de ofertas de trabalho no centro, bem como

maior movimentação e fluxo de transporte, aglomeração de pessoas e centros de acolhida

localizados nas regiões Centro e Oeste, o que mostra uma carência dos mesmos nas demais

regiões da cidade.

Outro aspecto que serve como caracterização da população atendida pelo Programa

TransCidadania é o relato das(os) usuárias(os) quando das atividades desenvolvidas no

decorrer desta pesquisa. São reproduzidos aqui os registros artísticos que foram autorizados

pelas mulheres e homens trans do Programa. Eles dizem respeito a seus itinerários, sonhos e

angústias. Seus nomes são preservados, constituindo edição das imagens. A proposta da

atividade em questão encontra-se apresentada na sessão de anexos desta pesquisa. Nessas

atividades, foi possível coletar expressões e registros de experiências de abusos, desrespeito,

discriminação, violência e dificuldade em aceitação social. Essas coletas também nos servem

como ilustrações da estrutura teorizada no capítulo 2, “O lugar social das pessoas trans”.

Ainda como análise, é possível notar que as(os) beneficiárias(os) do Programa

TransCidadania procuram alternativas para o desenvolvimento profissional e para uma melhor

qualificação para o mercado de trabalho, muitas(os) delas(es) se deparando com a prostituição

como única fonte de renda disponível.

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119

Figura 4.

A participante revela seus sonhos no setor de trabalho e relata que lhe foram oferecidas atividades direcionadas

ao telemarketing, faxina e ajudante de cozinha.

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120

Figura 5.

Nesta expressão relata-se a ausência de representatividade de pessoas trans no mercado de trabalho, bem como o

desejo de um ambiente de trabalho confortável para essa população, isto é, um ambiente sem transfobia.

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121

Figura 6.

Por conta do preconceito sofrido, a participante não frequentou a escola, não tendo podido, portanto, qualificar-

se. A oportunidade de trabalho encontrada por ela foi trabalhar como manicure. Também se visualiza o ideal de

um mercado de trabalho sem discriminações.

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Figura 7.

Após árduos períodos cortando cana, comendo feijão com farinha e bebendo água com açúcar, a participante

projeta “um futuro feliz” e almeja a profissão de Agente de Turismo.

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Figura 8.

A imagem demonstra que a participante é ciente de que o Brasil é o país que mais mata travestis em todo o

mundo. A foto de uma pessoa recolhida à posição fetal acompanha um pedido de socorro: “Nos deixem viver”.

Arte da transcidadã Safira. O relato de sua história inicia-se na página133.

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Figura 9.

Durante a atividade, ao falar sobre sua trajetória, a participante revelou que continua na prostituição, contra sua

vontade. Mesmo estudando, matriculada no Programa e com curso de enfermagem, devido aos preconceitos, a

prostituição constitui sua única renda.

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Figura 10.

Devido à ausência de oportunidades e de trabalhos fixos, a participante desde sempre se deparou com a

prostituição. Ela mostra o desejo de ter trabalhado e evoluído mais, além de seu interesse pela cozinha.

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126

Figura 11.

Ao descrever sua trajetória, a participante mencionou já ter trabalhado em feira, bordel, casa de família,

balconista em bar noturno, relatando ter sofrido abusos sexuais e espancamento do próprio tio, com quem

também trabalhou. A imagem escolhida por ela mostra diversas peças de carne de porco suspensas no teto sobre

o balcão.

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Figura 12.

Esta produção expressa um dos pontos mais relatados pelas participantes: a ausência de oportunidades de

trabalho fixo e a ótica resumida à violência, ao tráfico e à prostituição.

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Figura 13.

A imagem acima representa o cotidiano de muitas mulheres trans. A participante citou nunca ter sido aprovada

em entrevistas de emprego (porta fechada), revelando que para conseguir trabalho teve que se vestir como gay

(porta aberta), aniquilando sua feminilidade e identidade. Cansada de aniquilar-se mencionou o ingresso na

prostituição.

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129

Figura 14.

Uma das participantes relata sua trajetória como “muito péssima”, motivo pelo qual tem dificuldades de

principiar a atividade. Demonstra sua vontade de trabalhar num lugar onde seja respeitada por ser “ela mesma”,

dizendo-se esforçada, observadora, educada e paciente. Também é nitidamente expresso o medo de sempre ver

“portas fechadas”.

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130

Figura 15.

Arte de um homem trans. Este relatou o desejo de aceitação e de um ambiente de trabalho mais inclusivo e

respeitoso, expressão que se fez presente na maioria dos depoimentos durante a atividade.

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Figura 16.

A imagem demandou um tratamento de photoshop diferenciado devido à grafia de traços lenes. Verifica-se o

depoimento de uma cidadã que possui desejos de trabalhar como vendedora de frutas ou de tapioca. Sua

expertise empreendedora concebe a rua como um lugar de comércio fértil. Durante a atividade, ela relatou

impasses burocráticos em ser vendedora ambulante, além de não dispor de meios para pagar taxas ao governo.

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3.7. A entrada das(os) usuárias(os) no Programa

A porta de entrada para o Programa TransCidadania são os Centros de Cidadania

LGBT*. Os centros estão divididos pelas regiões da Zona Norte, Zona Leste, Zona Sul e pelo

Centro de São Paulo. Suas práticas atuam a partir de dois eixos específicos: a defesa dos

Direitos Humanos e a promoção da cidadania LGBT*. São os centros que, através de uma

escuta social viabilizada pelo profissional do Serviço Social e de uma análise à habilitação

dos critérios estabelecidos para a candidatura no programa, encaminham mulheres transexuais

e travestis e homens trans para uma longa lista de espera. A partir daí, o surgimento de uma

vaga mobiliza a discussão e a avaliação do caso entre as assistentes sociais do Centro de

Cidadania LGBT* e do Programa TransCidadania. A esse respeito, vale considerar uma

transformação ocorrida na prática:

[...] No início do Programa, seguíamos uma lista de espera e a inserção ocorria

conforme data de cadastramento. No entanto, percebeu-se que seria importante ir

para além da data de cadastramento e considerar os processos de vulnerabilização,

considerando alguns marcadores para respaldar a conduta profissional: faixa etária;

condições habitacionais e saúde. (CONCÍLIO et al., 2016, p. 49)

Em seguida a esse processo, a pessoa candidata é novamente avaliada, dessa vez, pela

equipe do Programa TransCidadania, a fim de coletar novos dados e conferir o atendimento

aos critérios do Programa, que são: ser mulher transexual ou mulher travesti ou homem trans;

ter ensino médio ou fundamental incompleto; disponibilizar uma carga horária de no mínimo

2h15m a 4h diárias, de acordo com a escolaridade, além de compor as demais horas com

outras atividades do Programa, totalizando 6h diárias; participar do curso de Direitos

Humanos; participar dos cursos profissionalizantes; participar do curso preparatório para o

mercado de trabalho; ser atendido individualmente; participar de grupos psicossociais;

envolver-se na participação popular e de controle social e realizar estágio. Nessa sequência,

[...] a(o) participante é acompanhada(o) pelo setor administrativo do Programa

TransCidadania à Secretaria Municipal do Desenvolvimento, Trabalho e

Empreendedorismo (SDTE) para assinatura do contrato do Programa Operação

Trabalho (POT). De acordo com as regras do POT, a duração do contrato é de dois

anos, ou seja, 24 meses, sendo consecutivos ou não. Este contrato pode ser

interrompido por ambas as partes se houver o descumprimento dos acordos

firmados. (CONCÍLIO et al., 2016, p. 50)

Concomitante a esse processo, a equipe elabora e estuda o Plano Individual de

Atendimento (PIA), bem como o acompanhamento às atividades dessa pessoa no Programa,

uma vez que “cabe aos profissionais compreender seus limites e criar estratégias para a

construção do protagonismo das(os) usuárias(os)” e que considerar essas dimensões

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contribuem “para a ruptura do ciclo da reprodução da violência do Estado e da sociedade”

(CONCÍLIO et al., 2016, p. 51-52).

3.8. As potencialidades e os desafios do Programa TransCidadania.

“Eu acho que um dos desafios é que o decreto deveria virar uma lei, centros LGBTs

deveriam virar lei, o Trans Cidadania precisa virar uma lei e a gente precisa dessa

força de lei para garantir que uma gestão não perca o trabalho e a autonomia.”

(Milena Wanzeller)75.

Certamente, a curta duração do Programa traduz-se em uma de suas grandes críticas.

O período de apenas dois anos é, inquestionavelmente, insuficiente para tratar as múltiplas

demandas das vulnerabilidades trans. Estamos falando de, majoritariamente, mulheres,

travestis e transexuais, e, em pequena parcela, de homens trans que, sem o programa, não têm

acesso à saúde, à segurança, à educação e, muitas vezes, sequer à moradia.

Estar em situação de rua, não sabendo escrever o próprio nome, e receber acolhimento

de um Programa desse porte é um grande impacto no cenário sociopolítico. No entanto, há

que se considerar que tipo de reverberações acompanha esse curto abraço. Se, por um lado,

ele pode estimular a continuidade de busca da emancipação, por outro, voltar para as ruas

contra a própria vontade, por não ter outro lugar social de acolhimento, faz com que ele caia

numa lógica meramente assistencialista. E essa não é a intenção do Programa TransCidadania,

uma vez que se pensa a elevação da escolaridade com preceitos pautados em cidadania e

autonomia. No entanto, a curta duração é uma problemática a ser considerada e discutida.

Eu acho que a base estrutural é a educação, o programa nasceu na questão

da educação, eu acho que uma coisa que poderia mudar inclusive, responder outra

pergunta mas tem a ver com isso, é que a bolsa quem dá, a bolsa é a Secretaria do

Trabalho, essa bolsa se chama “POT” e esse POT ele tem um..., número de tempos

que você pode ficar, no máximo dois anos. A gente está entendendo que com

programa de dois anos não é o suficiente ainda, para grau de vulnerabilidade que é

muito grande. Eu trabalho com a ideia que é a ponta da ponta, é o lucro e o

proletariado, para o usar um termo marxista que a galera adora, mas, assim, a gente

acredita que, dois anos não é muito o suficiente; acho que isso é uma crítica ao

programa, dois anos é um ano bom, é bom, é melhor que um ano, muito melhor,

mais o ideal é que fosse mais tempo para você realmente estruturar. Que a gente

pode ver que está com curso, com informação, mas não está com toda a estrutura,

porque a estrutura, ela é educacional, mas ela também é afetiva, é de sociabilidade, é

de empregabilidade, ele é muito forte, porque a galera não tem acolhido a família,

muita gente deve acreditar que sozinho é explorada sexualmente, é explorada pelo

tráfico de drogas, tem a exclusão social, teria a Transfobia, tem o racismo que não

tem como pensar em travestilidade sem pensar em questão de raça no Brasil, não

tem. Se você olhar, vai aparecer abstração negra, quando você vê mulheres Trans, as

75 Trecho de entrevista de campo.

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mulheres Trans são brancas, tem uma questão de classe, raça muito forte com isso76.

Então são coisas muito difíceis, são barreiras muito fortes, então dá para perceber

que dois anos não é o suficiente, que talvez é uma crítica que deveria ser uma piada,

só que o POT só pode ser em dois anos, então a gente poderia até continuar o

programa por mais de dois anos, só que a gente não consegue mais a bolsa, então o

ideal seria desvincular. (Maurice Florence, pedagogo do Programa)

[...] Infelizmente o programa só tem a duração de dois anos para cada participante. A

primeira turma, que é a de 2015, está saindo agora em janeiro e é muito triste para a

gente ter que se despedir dessas pessoas, principalmente por saber que muitas delas

ainda não concluíram os estudos porque tinham a escolaridade muito baixa [...]. Não

tem como uma pessoa, por exemplo, analfabeta, terminar o ensino médio em dois

anos. (Milena Wanzeller, assistente de coordenação do Programa)77

Referindo-se às estratégias do Programa frente a esse rompimento, Milena destaca as

ações e iniciativas que estão ao alcance do Programa nesse cenário:

[...] a estratégia que a gente está pensando em fazer é parar de assisti-las, no

fato da bolsa em si, mas o programa continua aqui de braços abertos para recebê-las

a hora que elas quiserem para conversar, para tirar dúvidas, para tudo mais. Não

mais na demanda de uma ajuda financeira, como era a bolsa do programa, por conta

dessa limitação da lei do POT, infelizmente; a gente queria mais. A intenção era...

uma proposta de lei para o TransCidadania se desvincular do POT, o programa

TransCidadania se desvinculando do POT não teria mais este prazo e a gente

poderia acompanhar essas pessoas por mais tempo, pelo menos que elas

finalizassem o ensino médio, por exemplo, mas na política é tudo diferente, as coisas

não andam na velocidade que gostaríamos que elas andassem e o projeto de lei

continua parado na câmara. Agora, a gente tem também histórias de meninas que

hoje estão no ensino superior. Eu acho que a preocupação maior mesmo é com essas

que ainda estão com a escolaridade muito baixa, a gente tem mais medo que essas se

percam no caminho; as outras estão bem engatilhadas. Já sabem bem o que querem,

mas essas que ainda estão com a escolaridade muito baixa são essas que nós temos

maior preocupação, de que se percam no caminho. [...] A gente tem medo dessa

chama se apagar.78

Tanto o discurso de Milena como o de Maurice Florence estabelecem uma

consonância com o discurso de Marcello Hailler. Sendo o Programa TransCidadania uma

importante vitrine nacional e internacional, repleto de potencialidades, a questão da

durabilidade do acompanhamento oferecido merece destaque, não somente no viés da

efetividade social, mas no sentido de evitar o que o entrevistado Marcelo chamou de

memória. Essas políticas de atenção são baseadas em constructos sociais e, nesse sentido, a

curta durabilidade configurada no acompanhamento do Programa deve ser considerada como

uma implicação de extrema relevância, a fim de evitar discursos meritocráticos que reduzam a

grandeza sociopolítica do programa às falhas deslocadas, atribuindo à dimensão subjetiva o

fracasso de voltar às ruas, como destacou Milena. Portanto, trava-se aqui uma das grandes

lutas do Programa TransCidadania contra o reduto do aspecto memorial.

76 Trecho de entrevista de campo. 77 Trechos de entrevista de campo. 78 Trecho de entrevista de campo.

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Ainda no âmbito dos desafios, registram-se aqui dois dos aspectos levantados no

decorrer desta pesquisa, que se referem ao espaço físico do programa, bem como às

configurações a que estão submetidas a equipe de trabalho. O pedagogo Maurice Florence

registrou esses cotidianos de trabalho:

Olha, eu acho que a primeira falha é o local! Porque se você... e esse

pensamento eu posso lhe dizer que muita gente disse isso, não é uma coisa só da

minha cabeça; porque, assim, se a ideia, se a gente está em um espaço que é um

centro de cidadania LGBT*, ele tinha que ser um espaço convidativo, ele tinha que

ser um espaço onde as pessoas que passam ali percebam que esse espaço é delas e

deles, e queiram entrar, e saibam que esse espaço existe. Então nesse lugar que a

gente está tem muita invisibilidade e tem milhões de outros órgãos aqui dentro dos

prédios, que tem que passar pelo segurança, passar pelo elevador e a gente está

falando de uma população que não se sente acolhida pela sociedade; que tem medo

ou vergonha ou repulsa de entrar em lugares, que sabem que as pessoas olham mal,

as pessoas fazem piadinhas, as pessoas as agridem como já houve agressão com o

segurança daqui [...]. E eu acho que isso não é um problema de eu dizer, porque é

uma questão pública, não é um segredo. Então, assim, eu acho que a primeira falha é

nós estarmos aqui, eu acho que nós estarmos no centro, e daqui expandir para outros

bairros.79

Sobre as limitações e configurações trabalhistas e empregatícias da equipe, assim ele

disserta:

A gente recebe dinheiro integral em um desconto, por nossa conta. Eu

venho andando, quem mora longe paga o transporte, paga o transporte do próprio

bolso. Então tem isso de pagar o seu transporte para ir nessa escola, também que é

longe, para você pegar essa coisa, e você tem que ir, sei lá, umas 5 da tarde, porque a

galera estuda à noite, então você vai pegar trânsito para ir, isso se você tivesse um

carro! Você chegaria menos estressado [...]. Enfim, esse ano a gente não tem um

governo... Que já disse que vai cotar esses carros dirigíveis por UBER e não sei se a

gente vai acessar a isso ou não, então está muito complicado.80

Também como desafio, a assistente de coordenação destaca aspectos importantes

relativos ao cenário educacional e financeiro de travestis e transexuais beneficiários(as) do

programa:

[...] a gente sabe que estudo demanda tempo! E uma pessoa que não tem um

estudo muito avançado, que tempo ela vai arrumar... – para se prostituir, porque não

vamos negar que essas pessoas vai ser a única forma delas ganharem dinheiro

porque não tem emprego – e estudar ao mesmo tempo? A bolsa supria essa

necessidade? Não! Não supria, mas ajudava a elas não terem que, pelo menos... não

ter que ir todo dia para a rua, ia uma vez ou outra ou como muita, dizem aqui

falavam.81

79 Trecho de entrevista de campo. 80 Trecho de entrevista de campo. 81 Trecho de entrevista de campo.

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Dentro de seus limites éticos, sobre as atuais bases estruturais, desafios e

potencialidades concentrados na existência do Programa TransCidadania, a assistente de

coordenação concebeu que:

Eu acho que a base do programa é o estudo. Tanto que só entra no

programa quem não concluiu o estudo. Então, só que [...], em se tratando de travesti

e transexual, tem muitas outras demandas além da falta de estudo, por isso que a

gente tem equipe multidisciplinar de pedagogos que acompanham a vida escolar

dessas meninas, psicólogos e assistentes sociais que vão cuidar de outras coisas,

mais da vida particular dessas pessoas. A gente tem pessoas que saíram da escola há

20, 30 anos; esse é o maior desafio: fazer com que essas pessoas, além de não só

voltarem à escola, mas a se acostumarem de novo com a rotina escolar. A gente sabe

que é complicado para qualquer pessoa.82

Ao considerar os impactos, desafios e potencialidades do Programa na esfera coletiva

da sociedade, outro aspecto de relevância constitui a demanda do Programa e sua lista de

espera. Um levantamento feito pela prefeitura, em 2015, registrou que pelo menos quatro mil

travestis e transexuais residiam em São Paulo em situação de vulnerabilidade social

(CONCÍLIO et al., 2015). O programa ampliou, então, sua proposta para 200 vagas, ainda na

gestão de Fernando Haddad; no entanto, em janeiro de 2017, a fila de travestis e transexuais

em situação de vulnerabilidade social à espera de uma vaga do Programa TransCidadania

contabilizava o número 500. Em consonância com as práticas do Programa, assim relata

Maurice Florence:

[...] a gente tem uma fila de espera que não tem fim. Tinha que ampliar isso

aqui e muito. Por isso eu acho que ampliar, não é só aqui, mas nos outros centros

também. Tinha que ter o TransCidadania lá porque aqui é o único que tem

pedagogia. Os outros têm psicólogo, assistente social, advogado, mas pedagogo só

tem aqui; então todo mundo vem para cá nessa questão [...]. A fila de espera é

gigantesca, por isso que eu acho que tinha que ter nesses outros lugares. Teria um na

Zona Norte, na Zona Sul e ficava cada um no seu território, sem precisar se deslocar

tanto, apesar que eu acho que ser LGBT* e estar no centro é muito poderoso. Então

a gente atende nem a ponta do iceberg da demanda e, dentro das demandas que elas

trazem, a gente consegue atender tudo parcialmente.83

Sobre o dado de que pelo menos quatro mil travestis e transexuais residemem situação

de vulnerabilidade social em São Paulo, Milena levanta, ainda, outras questões:

Eu não sei te dizer se esse dado é real, até porque a população de travestis e

transexuais é muito grande. Então uma hora ela está aqui e depois ela não está mais,

já está em outro lugar. É muito difícil acompanhar essa quantidade. Acho que é bem

complicado, né? dizer que existem... eu acho que é muito baixo. E outra que o IBGE

não sabe contar pinto, o IBGE faz uma contagem de homens e mulheres, mas ele

não diz se a pessoa é travesti, transexual, homem trans, mulher trans. Não existe

uma pesquisa, é... nem na saúde. A saúde está fazendo atualmente, nesse ano,

começou ano passado, mas agora que eles estão fazendo a primeira pesquisa para

82 Trecho de entrevista de campo. 83 Trecho de entrevista de campo.

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identificar o número de pessoas travestis e transexuais que foram contaminadas pelo

HIV. A contagem anterior, até antes disso, é homens e mulheres, e travestis estavam

dentro de homens. Como identificar dentro de homens onde estão os travestis? Se

não dá, adivinha? Se numa população de cem homens, cinquenta tem HIV, mas que

são? Se as travestis estão lá dentro.84

A necessidade de se ter uma nova contagem que considere o número de pessoas trans

com HIV se traduz numa nova realidade, cujo destaque precisa ser evidenciado. Afinal, é a

partir desses números que emergem as construções das políticas públicas para essa população.

Nas palavras de Peres e Toledo, “É especialmente no cotidiano dessas pessoas que os

enfrentamentos e resistências se iniciam e criam força para chegar à reivindicação de política

pública” e, ainda, “é por meio das relações interpessoais e da visibilidade dessas formas de

existências que se estabelecem mudanças” (PERES; TOLEDO, 2011, p. 274). Nesse sentido,

a necessidade de caminhar para múltiplas mudanças gesta outras perspectivas contextuais que,

por sua vez, gesta pesquisas que não estejam apenas vinculadas ao espaço sexual e de saúde.

Assim, para Milena,

é uma população muito vulnerável que precisa de mais espaço, maior

atendimento, precisa de um olhar de... fica difícil falar, um olhar diferenciado,

porque parece que a gente está querendo uma coisa diferente das outras pessoas, ao

que elas têm direitos ou não. Na verdade, eu acho que essas pessoas precisam ser

atendidas e ser vistas como pessoas normais, como outras qualquer e não como uma

pessoa diferente das outras, porque nós não somos diferentes. Que é o direito à

cidadania básica que toda e qualquer pessoa deveria pelo menos ter direito, mas que,

para esse seguimento, a gente sabe que ele é negado.85

A esse respeito, cabe registrar que Peres e Toledo problematizaram a saúde mental de

travestis e transexuais. Dentre os diversos segmentos de atenção à saúde, os autores

destacaram que, embora não se disponha de dados oficiais de pesquisas referentes à saúde

mental de travestis, transexuais e transgêneros, “[...] o convívio com sua comunidade permite

algumas inferências preocupantes”. Dentre as pontuações das reclamações e o acometimento

por graus elevados de ansiedade e desânimo ou mesmo pelo próprio estado de depressão de

travestis, transexuais e transgêneros, eles consideraram que, “[...] em casos mais extremos,

vemos altos índices de morbidade e mortalidade por overdose de drogas, ou ainda, de

incidências sobre práticas de suicídio, quando não são assassinados(as) com requintes de

crueldade”, sendo um dos cenários motivadores desses quadros a precarização e o despreparo

dos atendimentos realizados por profissionais dos setores de saúde, pois, “[...] Devido à

estigmatização frequente, temos conhecimento de travestis que preferem se contorcer de dores

em suas casas, do que ter que suportar as discriminações feitas pelos operadores da saúde e de

84 Trecho de entrevista de campo. 85 Trecho de entrevista de campo.

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outras categorias profissionais nos estabelecimentos de saúde” (PERES; TOLEDO, 2011, p.

267-268).

Embora não deva ser naturalizada, a questão da prostituição é quase inerente à

literatura acadêmica destinada a problematizar a população trans socialmente vulnerável,

conforme se notou no eixo 1.4 e durante todo o capítulo 2. Nesse sentido e a esse respeito,

cabe registrar aqui a concepção de Peres e Toledo, ao discutirem as resistências e

enfrentamentos ao biopoder entre os dissentes das normas de gênero: “no caso das travestis,

muitas são empurradas para a marginalidade, recorrendo à prostituição para sobreviver,

compondo um imaginário que naturaliza a associação das travestis com a prostituição”. Seus

cenários são acometidos por riscos de diversas ordens, além de múltiplas negligências e

violências: “Na rua, as travestis têm que lidar com profissionais da segurança pública que não

só, muitas vezes, abusam sexualmente delas, como as extorquem, assim como a seus

clientes”. Todo esse cenário corrobora as nuances de suas múltiplas exclusões: “Com a

ausência de políticas públicas e programas inclusivos, a entrada das travestis no mundo da

prostituição se torna pura negligência do Estado” (PERES; TOLEDO, 2011, p. 267). Assim,

vale destacar que essa prerrogativa é válida quando da imersão à prostituição por falta de

escolhas, haja vista que o próprio Programa TransCidadania não mobiliza uma política

higienista, como já se registrou neste capítulo.

Dessa forma, o presente capítulo como um todo registrou a potencialidade e os

impactos do Programa TransCidadania. Discutiram-se os ângulos pelos quais ele se configura

como uma relevante potência das bases de cidadania. Num sentido amplo, ele busca devolver

aquilo que foi negado a uma população extremamente vulnerabilizada. De forma

relativamente recente, em última instância, é possível considerar suas falhas como sendo mais

de origem social propriamente dita, que estruturais. Isto é, por ser um projeto novo, que

atende a uma população completamente marginalizada socialmente, é possível compreender

que o Programa, enquanto potência, encontra em suas falhas os próprios caminhos de sua

maior potencialidade.

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4. MARFREE, FÊNIX E SAFIRA: HISTÓRIAS DE VIDA DE MULHERES TRANS

MATRICULADAS NO PROGRAMA TRANSCIDADANIA

O presente capítulo tem por objetivo contextualizar os itinerários de vida das sujeitas

desta pesquisa. Além de averiguar as configurações e os efeitos antecessores, vigentes e

posteriores ao ingresso no Programa TransCidadania, conhecer suas histórias de vida faz-se

de fundamental importância para que possam ser traçados os pontos comuns de suas

trajetórias sociais (Critelli, 2012). Esses processos são aqui problematizados em

concomitância, haja vista que suas histórias antecedentes ao ingresso no Programa são

intrínsecas às suas constituições sociosubjetivas, além de significar a própria culminância de

serem abraçadas pelo Programa TransCidadania. Motivo pelo qual o termo “transcidadã” –

colhido em entrevista como “trans cidadã” – se transforma em um conceito teórico deste

trabalho, ao carregar um efeito simbólico e político no ato de possibilitar a cidadania dessas

mulheres trans.

4.1. A “transcidadã” Marfree, a primeira de cem: uma apresentação.

“Eu fui a primeira de cem, é isso que falam. Porque o programa começou com cem

meninas... e meninos, porque tem homem trans também. Aí, dessas cem pessoas, eu

fui a primeira a me formar [...]. Dali eu fui chamada para trabalhar no centro de

cidadania. Eu trabalhava lá, fui a primeira a arranjar oportunidades e a primeira a

trabalhar, a primeira a tirar uma nota melhor no Enem [...]. É só você colocar

‘Amanda Marfree’ no Google que vai sair várias entrevistas, várias matérias e o

vídeo que eu saí com a revista ‘Fórum’. Aí eu fui a primeira de cem; então o pessoal

sempre me chama ‘a primeira de cem’.”86

Marfree tem 31 anos e, com grande esforço, concluiu o ensino médio ao ingressar no

Programa TransCidadania. Naquele momento de sua vida, ela havia se formado pelo

programa e ocupava o cargo de recepcionista no Centro LGBT da Zona Leste. Nascida no Rio

de Janeiro, atualmente reside sozinha na cidade de São Paulo. Popularmente chamada por

Marfree, é também conhecida como “A primeira de cem”, devido ao seu destaque na primeira

turma do Programa. Sua história demanda um olhar perspicaz no tocante à metodologia ética

desta pesquisa, uma vez que ela faz questão de participar deste estudo com seu nome real:

Amanda Marfree, já que, como militante do movimento trans, defende a importância das

políticas de visibilidade a essa população, marcando presença em todos os espaços sociais

destinados à inserção.

86 Trecho de entrevista de campo.

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Um dos sonhos de Marfree é tornar-se Assistente Social. Essa aspiração nasceu a

partir do Programa TransCidadania, quando ela se deparou com a atuação do Serviço Social e,

a partir daí, foi possível a tomada de consciência e reflexões sobre as oportunidades e

vulnerabilidades de alguns segmentos populacionais.

Eu quero ser assistente social. [...] Eu não tinha essa ideia de ser assistente

social, depois que eu comecei a ser introduzida no Programa e vi a função do

assistente social... Tem uma assistente social ótima que eu conheci no curso [...] e eu

me espelhei nela, porque eu vi que ela ajudava as pessoas vulneráveis e eu queria ter

a oportunidade de ajudar as pessoas vulneráveis porque eu vivo naquela realidade

também. [...] A palavra-chave é “oportunidade” por que, tipo assim, vamos pensar

na sociedade. A sociedade quando vê, quando falam “travesti, transexual”, eles não

querem. Independente se você tenha faculdade ou se você não tenha, eles não

querem saber disso. Eles querem saber o que você é, se você é homem ou se você é

mulher. Se você é travesti é eliminada, sabe? Pode ter até mestrado, doutorado, mas

se você falar que você é uma travesti, eles vão te eliminar. Então a palavra disso

tudo é “oportunidade” [...]. O mínimo no mercado de trabalho é o ensino médio, que

se não tem o ensino médio você não consegue nada, é bem complicado [...]87.

O aspecto familiar foi pouco explorado em nossas entrevistas. No entanto, faz-se

importante registrar que, em sua trajetória de vida, Marfree desde sempre contou com o apoio,

a preocupação e a compreensão por parte de sua mãe. Sobre suas passagens no mundo da

prostituição, o posicionamento materno contrariou-se com zelo, além de positivar sua estadia

no Programa TransCidadania:

Minha mãe sempre falava – minha família é mais minha mãe, tenho meus

parentes, mas eu nem falo muito, nem converso muito. Minha mãe é minha vida,

meu chão, meu tudo – então ela sempre falava “olha você vai ficar velha, pare de

fazer isso, pensa no teu futuro, guarda o teu dinheiro; e quando eu não estiver mais

viva, e aí?” Eu fico com um aperto no coração quando eu penso nisso. Isso era

quando eu estava na prostituição. Depois que eu comecei a trabalhar foi a melhor

coisa. Ela falava que ela dormia melhor, que ficava mais satisfeita [...]. Era aquela

coisa que quando eu não estava trabalhando ela ficava com o coração partido, não

sabia se eu ia voltar ou se não ia. Ela falava que [o Programa TransCidadania] era a

melhor coisa que poderia ter acontecido na minha vida, para me dar oportunidade.

[...] Quando eu falava que eu passava por momentos ruins, ela falava para eu

aguentar, que em qualquer lugar eu ia passar por isso88.

Como na maior parte dos casos das pessoas matriculadas no Programa, o cenário de

prostituição constitui-se como uma das únicas saídas enquanto subsídio de vida. Na trajetória

trabalhista de Marfree, o primeiro emprego formal só foi possível posteriormente ao ingresso

no Programa TransCidadania. Os efeitos subjacentes e simbólicos de ter uma carteira assinada

como recepcionista foram-lhe de grande significado subjetivo:

No dia 03 de novembro de 2015, comecei a trabalhar no centro de

cidadania e, gente, eu nunca trabalhei, foi uma emoção para mim tão grande, pensei

87 Trecho de entrevista de campo. 88 Trecho de entrevista de campo.

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“gente, não acredito”. [...] Foi a maior sensação, tipo assim, acordar cedo, ter uma

vida normal. Acordar cedo, pegar ônibus lotado, pegar metrô, ser introduzida e

começar a mexer com computador, porque eu não tinha muito acesso à computação,

daí eu não tinha computador, era só WhatsApp, Facebook. Isso de Excel, Word,

Power Point, eu não tinha esses acessos assim. Foi um aprendizado aos poucos. [...]

A coisa mais marcante da minha trajetória trabalhista [...] foi meu primeiro dia de

trabalho, que eu tenho uma foto até hoje e todo ano comemoro [...] o primeiro dia de

trabalho formal. Eu nunca trabalhei nisso, então aquilo para mim era uma coisa que

eu não estava acreditando, eu comecei a tremer, sentei na cadeira lá da recepção de

lá, aí pediram para eu tirar uma foto. Eu tirei e coloquei no Face, eu lembro como se

fosse até hoje: Eu estava toda receosa, com medo, tentando falar com o povo e

vendo aquelas meninas que estavam no projeto comigo me verem dentro, sabe.

Aquilo foi igual aquele comercial “não tem preço”. Eu me senti tão importante, me

senti gente, eu comecei a sentir que eu tinha capacidade igual a qualquer pessoa,

porque a sociedade impõe tanto, que “a gente é marginalizada”, “que a gente não

tem capacidade” e a gente começa a viver no mundo pensando que não tem mesmo,

porque quando você está em um mundo desse jeito, tão sub-humano, você começa a

ver gente de terno e gravata e você pensa “nossa, eu nunca vou ter capacidade para

isso”. Eu também pensava isso. Daí eu comecei a pensar “gente, eu consigo uma

vida assim”, “eu tenho potencial independente de eu ser uma travesti ou não”. [...]

Outra coisa marcante também foi [...] quando eu vi o Haddad lá no trabalho. Um

homem que era heterossexual, branco, que podia fazer inúmeras coisas, para várias

pessoas, mas ele foi lá na ferida da sociedade, mexeu e trouxe essa possibilidade de

a gente ser humanas como qualquer uma89.

Antes de um emprego formal, seus itinerários percorreram muitas violências e portas

fechadas. No que se refere à prostituição, Marfree ingressou nesse cenário já aos 16 anos de

idade, em virtude de conseguir dinheiro para construir a feminilidade de sua identidade e

realizar as alterações corporais necessárias a esse processo. Nessa época, relatou ter oscilado

entre os programas das esquinas da cidade do Rio de Janeiro e os programas de anúncios de

jornais da época.

Como grande parte da população trans, a migração também marcou sua trajetória.

Mais especificamente, a emigração do país para o continente Europeu é que caracterizou a

geração de Marfree. Em seu caso, foi deportada da Itália em meados de 2008. Nesse percurso,

sua estadia foi curta e relatou que, ao chegar a São Paulo, sua expectativa na época era

retornar para a Itália, devido às promessas específicas de ascensão social da população trans.

Muitas travestis emigram para a Europa, hoje não está tanto igual

antigamente, isso foi há onze anos atrás e na década de oitenta, na década de

noventa, [...] era na Europa, lá, que você conseguia suas coisas, conseguia sua

estabilidade; era emigrar para a Europa, principalmente para a Itália, o continente

europeu, né? O continente da zona do Euro, que é a comunidade Europeia. Eu fui

para a Itália em 2005 e fiquei dois anos e meio e fui para uma cafetina. Essa cafetina

me cobrou o dinheiro e eu não paguei porque estava ruim; tinha que correr de

polícia e eu fui deportada de Perugia e vim para São Paulo. [...] Na época, pegaram

meu passaporte e me deportaram para São Paulo e eu tinha uma cafetina e não podia

voltar para o Rio, aí fiquei em São Paulo até hoje [...]. Na Itália, eu sofri muitas

coisas, apanhei de polícia, morei em casa de cafetina, não sabia falar a língua deles,

fiquei presa, aí de lá eu voltei para minha cidade lá da Itália, que era Perugia; fui

89 Trecho de entrevista de campo.

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para Milão, fiquei presa em Milão, Nápoles, que fica no sul da Itália, que é mais

pobre [...], lá na Itália é mais pobre. O norte que é mais rico, que faz fronteira com a

Suíça. Aí de lá com 20, 21 anos, eu voltei para o Brasil, porque eu fui deportada. Aí

fiquei em São Paulo, não tinha como sobreviver90.

Nessa ocasião, durante mais sete anos de sua vida, ela depara-se novamente com a

prostituição, no bairro da Penha, Zona Leste de São Paulo. Marfree relata que se prostituía

diariamente das madrugadas até o raiar do sol. Nessa trajetória, buscou fazer um curso de

cabeleireira, na tentativa de romper com o cenário da prostituição. A escolha do curso não se

deu por um desejo autônomo, mas sim por oportunidade e empreendedorismo, isto é, foi a

possibilidade ofertada no mundo do trabalho. No entanto, não durou muito. Marfree diz que

“não tinha dom, a concorrência era demais e não sabia fazer”, além de que, nos salões, “eles

aceitam mais gays, não travestis. Até nisso a gente tem problema, eles preferem gay, não

travesti”. Além de seu relato romper com os naturalismos de um senso comum que associa a

categoria LGBT aos setores de moda, beleza e estética, fica expresso o reforço de um

machismo que se faz presente em mais um dos segmentos populacionais.

Nessa ocasião, ao deixar de exercer a função de cabeleireira, ela acabou voltando para

a prostituição das ruas. Houve uma breve passagem pela cozinha, por oportunidade. Em

seguida, Marfree retorna às ruas e prostitui-se até os 27 anos. Aos 30, ingressa no Programa

TransCidadania. Em São Paulo, o Programa marcou seu itinerário de vida de maneira bastante

significativa. Marfree soube do Programa através de uma colega que era próxima ao

planejamento do projeto. Sua inscrição foi feita no dia 8 de janeiro de 2015. Nessa ocasião,

tratava-se da primeira fase do programa, quando havia 100 vagas. Seu relato revela ter havido

uma evolução na atuação pedagógica do Programa, no sentido de atualmente estabelecer as

mesmas diretrizes inclusivas para o Estado e para a Prefeitura, o que divergia das condições

de sua matrícula em 2015. De modo que sua perseverante autonomia mediante os grupos

favorecidos foi de suma importância para concretizar a conclusão do ensino médio.

Eu fui fazer a inscrição, tinham cem vagas e fui chamada; aí eu já estava no

ensino médio e tudo. Normalmente no TransCidadania as meninas que estavam no

ensino fundamental estão em um colégio mais adequado, os professores já têm mais

sensibilidade, a diretora também, então é mais provável sofrer menos preconceito.

Como no caso era ensino médio e esse projeto era da Prefeitura, não tinha como, à

época, a Prefeitura chegar no colégio do Estado querendo me introduzir [...]. Tive

que ir sozinha me matricular. Eu agarrei aquilo com unhas e dentes, por isso também

que é “primeira de cem”, eu tentei fazer muita coisa. [...] Quando eu estava no

colégio, aqueles meninos e meninas não queriam saber disso, porque eles sempre

foram introduzidos na sociedade, eles não sabem o que é ser tirado da sociedade,

não ter uma família, não ter uma mãe, não ter um namorado. [...] Um hétero sabe

que ele vai ter uma família, vai ter uma estrutura e vai arrumar um empréstimo mais

para frente; e nós, como vivemos em uma realidade dura, agarramos aquilo com

90 Trecho de entrevista de campo.

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143

tanta vontade. Ah, gente! Melhor coisa que podia acontecer. Eu não tinha essa

possibilidade porque de que adiantava eu me formar para ficar com meu diploma na

esquina? Eu ia ficar com o diploma na esquina, não adiantava nada, se não tivesse

políticas igual teve agora, assim inseridas, se não tivesse uma luz, se não tivesse um

apoio, não ia adiantar nada. Então tem que ter um apoio, sim. E, olha, vou te falar,

TransCidadania para mim foi a melhor coisa, me tirou do meio da merda, da lama e

me levou para a luz. Meu maior medo é ter que voltar para aquilo [...], porque nós

somos a parte mais fraca da sociedade em geral e do LGBT, além da sociedade,

dentro do LGBT também, porque tem muito gay transfóbico, muita lésbica

transfóbica, está entendendo? Esse programa foi a melhor coisa que poderia ter

existido, porque a base do mercado de trabalho é o estudo e muitas de nós somos

excluídas do colégio por sofrer transfobia na época e fomos eliminadas91.

Os relatos de Marfree evidenciaram uma trajetória negligenciada e violentada em

múltiplos acessos. Sua evasão escolar teve como base os preconceitos sofridos nesse

ambiente. No entanto, Marfree é um destaque dentre as pessoas expostas à vulnerabilidade

nesse segmento populacional: trata-se de uma mulher trans, branca, que conseguiu concluir o

ensino médio, embora ser a primeira de cem lhe tenha demandado uma árdua resistência às

inúmeras violências e negligências. Provavelmente, o discurso meritocrático reduziria sua

história, positivando e abrilhantando sua luta estapafúrdia com um bonito vaso de flores,

quando, na verdade, não se deve perder de vista o sofrimento que enfrentou na fotossíntese de

seu existir:

Eu tentei dar o máximo, sempre tentei dar o máximo de mim, porque eu

sabia que eu era uma cota e eu queria mostrar que eu era mais do que uma cota, que

eu tinha capacidade. Então eu sempre tentei dar o máximo de mim e mostrar que eu

era além de uma cota, além de um vaso bonito ali, porque um vaso bonito quando

ele tem flor, ele faz a fotossíntese com o sol e dá oxigênio. Eu queria mostrar isso,

que eu ia fazer a fotossíntese e eu não era um par de enfeites, está entendendo? 92

4.2. A “transcidadã” Fênix: uma apresentação.

“A vontade de sair daquela vida errada, daquela vida de prostituição, daquela vida

de noite, foi o que me motivou para entrar nesse programa. No começo, eu

estranhei! Já há trinta anos sem estar dentro de uma sala de aula, sentada, olhando a

lousa; mas depois foi ficando tudo bem, fui começando a criar prazer por estudar.”93

Fênix tem 31 anos e, neste momento, concluiu o ensino fundamental a partir do

ingresso no Programa TransCidadania. Nascida no Amazonas, em Manaus, atualmente reside

em São Paulo. O cenário de evasão escolar, migração, prostituição e situação de rua constituiu

sua história de vida desde cedo. Fênix veio para São Paulo tentar uma vida melhor, já que a

condição de pobreza à qual estava exposta no Amazonas e a não aceitação da mãe acerca de

sua identidade trans foram grandes impulsores de sua migração. Aos 13 anos, Fênix foi

91 Trecho de entrevista de campo. 92 Trecho de entrevista de campo. 93 Trecho de entrevista de campo.

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expulsa de casa por conta do preconceito das configurações familiares, começando, nessa

ocasião, a se prostituir em Manaus para sobreviver. Suas despesas foram pagas em casas de

cafetinas e incluíam refeição, moradia e a proteção das ruas.

Naquela época – eu acho que até hoje existe, mas não como era naquela

época –, as travestis eram muito perseguidas pelas próprias amigas de trabalho. As

próprias travestis queriam que elas pagassem pelo fato de elas estarem há mais

tempo. Então você era obrigada a pagar, senão você apanhava. Você se não ficava.

Então o correto, naquela época, era pagar para poder ficar. E eu me prostituía todo

dia, fizesse chuva, ou sol, ou estava frio, ou não, a cafetina não queria saber! Eu

tinha que sair para trabalhar e trazer o dinheiro que era dela. [...] Não era bom

porque [...], como eu era muito nova, muito inocente, já usuária de drogas [...], meu

dinheiro nunca rendia, meu dinheiro era para a cafetina e para vícios de drogas e

roupas94.

Aos 16 anos, ela viaja a São Paulo, imersa no mesmo cenário. Depois de três anos de

prostituição nas ruas de São Paulo, ela retornou à sua cidade natal, onde permaneceu por

também três anos antes de voltar para São Paulo. No entanto, dessa vez, aos 21 anos de idade,

foi acometida pela vulnerabilidade em situação de rua, seus maiores dissabores tendo sido ter

de pedir dinheiro para ter o que comer. Quase uma década depois, Fênix se matricula no

Programa TransCidadania e consegue deixar as ruas.

[...] Eu vim [para São Paulo] com a esperança que muitas que estão lá no

Norte e em outros lugares do Brasil têm. Elas têm uma visão de que São Paulo é um

glamour para as trans, que aqui elas ficam ricas, elas ficam poderosas, fazem

cirurgias plásticas. [...] Essa já é a segunda vez que eu venho para cá. A primeira vez

eu vim e fui prostituta. Fiquei três anos. Eu tinha uns dezesseis anos de idade

naquela época e fiquei aqui até os dezenove, me prostituindo. Resolvi voltar para lá.

Voltei e fiquei lá até os meus vinte e um. Voltei para cá ano passado com a mesma

intenção de me prostituir. Foi coisa que não deu mais certo. A rua sem movimento,

pouca clientela, muito enjoada, já cansada também de ficar em beira de esquina, já

não estava mais com a mesma paciência e aí foi quando aconteceu esse projeto do

TransCidadania [...]. Antes do TransCidadania veio a situação de rua também, pelo

fato de ter vindo para a prostituição e não ter conseguido mais fazer programa. Eu

estava em um hotel pagando muito caro a diária. Então não tinha mais como. Eu

recorri ali mesmo no CRD! Alguém me falou de lá e lá eles me indicaram para um

lugar que eu poderia dormir, que eu teria onde dormir para que eu não ficasse na rua.

[...] Aí eu fui para albergue. Fiquei em albergue e ainda estou em um albergue, no

centro de acolhida. Comecei a trabalhar em uma empresa de reciclagem. Aí eu

comecei a ver uma luz, uma esperança. Pensei “Ai, que legal, vou parar de fazer

programa”. E parei95.

O contexto familiar de Fênix estruturou-se a partir de um pai ausente e de uma

infância violenta ao lado da mãe e de seu padrasto à época. Hoje, Fênix tem uma relação mais

saudável com a mãe e seu atual marido. Entretanto, a pré-adolescência foi o ápice de sua

resistência, culminando numa expulsão e na quebra de relação aos 13 anos de idade.

94 Trecho de entrevista de campo. 95 Trecho de entrevista de campo.

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145

[...] eu acho que minha mãe foi provocada [pelo padrasto] a achar que

aquilo não era natural, porque na verdade isso partia não só dela, mas de um

padrasto que sempre tirava chacotinha da minha cara, dizendo que eu ia ser bicha,

que eu era bicha, que eu tinha que tomar jeito e virar homem. Eu acho que ele foi

entrando na mente da minha mãe. Então os dois se uniram e começaram a querer

controlar até minha voz, meu jeito, se eu fizesse uma coisa afeminada levava uma

palmada, uma palmatória na mão. Quando eu comecei o processo de transição, foi

quando ela [mãe] me convidou a sair de casa. Porque para ela não era normal aquilo.

Todo santo dia [durante três meses] tinha aquela sabatina que eu tinha que falar os

nomes das frutas, engrossar a voz; se eu falasse de uma forma afeminada, com uma

voz meio fanhosa, eu apanhava, eu levava palmatória na mão. Fui expulsa aos 13.

[...] Daqui de São Paulo eu me comunicava com minha mãe. Eu acho que era a

saudade dela de mim, também fez com que ela amolecesse o coração. Viu que ela

tinha que mudar aquilo... E pedia para eu voltar sempre [...]. Quando eu voltei, ficou

tudo normal, até calcinha minha mãe dava, comprava para mim, sabe? [Riso].

Roupas femininas... Só meu nome social que para ela ainda hoje é mais difícil

respeitar. Mas eu até entendo [...]. Hoje em dia minha mãe é maravilhosa, é

esperançosíssima! Escuta minhas histórias, me acompanha pelo facebook, fala

comigo quase todos os dias pelo telefone e fica muito feliz de como eu falo dos

meus sonhos, da minha proposta, de tudo que eu estou fazendo. Ela fica contente

com tudo isso e me apóia em tudo. Fica muito feliz que eu tenha deixado aquela

vida errada, de prostituição, de drogas. [o pai biológico] ele nunca me registrou.

Desde o começo, quando eu fui me entender como gente, já não tinha o meu pai do

meu lado. Eu fui conhecer meu pai acho que com uns sete a seis anos, mas ele não

morava com a gente. Já era um padrasto que estava dentro de casa. Mas, assim, meu

pai, logo no começo foi vendo meu jeito e nunca me criticou. Eu estranhei. Só que

depois que eu virei trans ele parou de falar comigo, parou de me ajudar [...]. Eu até

hoje também nem procurei saber por que. Para mim, tanto faz, não faço questão. [...]

Não teve aquela coisa afetiva, porque ele sempre foi muito ausente. [...] Eu tenho

laços familiares muito mesmo só com a minha mãe96.

Ao falar de sua trajetória escolar, Fênix relata uma série de violências. Suas memórias

mais marcantes ocorreram na terceira série. Segundo ela, seus trejeitos, sobretudo a voz fina,

foram motivos de bullying e transfobia. Dentre essas memórias, ela relata dois dos eventos de

bastante peso e sofrimento para si. O primeiro deles foi com seus colegas de infância

simulando uma cena de estupro com seu corpo por volta dos 11 anos de idade, dentro da

escola. No segundo, em determinada atividade aleatória, uma educadora a expôs para a turma

durante a explicação na aula. A professora disse que “ânus trazia doença, que aquilo ali não

era coisa de Deus [...], uma coisa do capeta e essa história me marcou muito”. Fênix relata

não ter compreendido aquilo à época, uma vez que, àquela altura, não dispunha de domínios

sobre sua sexualidade. O mesmo evento repetiu-se em particular quando a educadora a

chamou no corredor da escola durante a aula:

Certo dia ela me chamou no corredor, me tirou da sala de aula e ficou

conversando no corredor comigo, falando meu nome de batismo. E dizendo que

aquilo eu que estava fazendo, aquilo que eu estava arrumando para minha vida, não

era coisa de Deus, que era um pecado muito grande, que a parte íntima chamada

ânus era uma coisa que tinha muita doença, que eu poderia futuramente virar uma

portadora de HIV. Foi um absurdo. [...] Eu me senti muito mal, por ser muito nova,

96 Trecho de entrevista de campo.

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146

não ter muita atitude de falar. Eu guardei aquilo para mim, nunca partilhei nem com

minha mãe, nunca falei isso97.

Teve certa vez que eles [colegas de escola] tentaram simular uma cena de

estupro comigo. Eles me jogaram em cima da mesa, fizeram só menção de que iriam

me estuprar, puxaram meus sapatos para um lado, meia para o outro, sabe? Fazendo

chacota da minha cara e eu jogada no chão e aquele monte de garoto em volta de

mim fazendo menção que era uma cena de estupro, foi muito triste esta cena [...].

Eram muitos homens, muitos garotos, meninos até mais velhos que eu. [...] Ninguém

fez nada, esse boato correu a escola inteira e eu com medo de falar com a diretora ou

para professores, de reclamar, com medo de represália; preferi me calar. Mas eu

acredito que isso deve ter chegado ao ouvido deles, sim, porque toda a escola ficou

sabendo; porém, nenhuma atitude foi tomada98.

Mais tarde e já adulta, esse cenário de violências do ambiente escolar se repete quando

Fênix volta a Manaus e tenta reinserir-se na escola. No entanto, não obtém êxito e é

acometida pela segunda evasão escolar. Ela relata que a discriminação de professores e alunos

a tirou da escola e que, a partir disso, voltou a se prostituir. Nessa ocasião, vale atentar para o

fato de um ambiente escolar dever ser acolhedor e estar pensado a partir do preparo no que

concerne às diferenças e diversidades.

Tentei também voltar para a escola lá [em Manaus] e havia discriminação

por conta de professores, de alunos e muita chacota na escola. Isso não me fez ficar,

continuar na escola. Isso fez com que eu a abandonasse. Então, eu optei por me

prostituir de novo. Era a única opção que eu tinha! E aí já tive encontro com drogas.

E nessa mesma vida eu continuei me prostituindo, usando drogas, baladas... [O

Programa TransCidadania] foi assim uma estrela, foi uma luz que eu nunca esperava

que ia acontecer. Eu comecei a estudar. Fui muito bem recebida na escola por

professores e alunos. Todo mundo preparado para me receber, respeitar meu nome

social. [...] A vontade de sair daquela vida errada, daquela vida de prostituição,

daquela vida de noite, foi o que me motivou para entrar nesse programa. No

começo, eu estranhei! Já há trinta anos sem estar dentro de uma sala de aula,

sentada, olhando a lousa; mas depois foi ficando tudo bem, fui começando a criar

prazer por estudar, sabe? Foi muito bacana. [...]. Eu estranhei porque já fazia muitos

anos que eu não sentava em uma cadeira de escola! Há muitos anos eu não via um

professor na minha frente, há muitos anos eu não respondia uma chamada, há muitos

anos eu não tinha um horário para entrar na escola, para sair; há muitos anos não

tinha obrigação de fazer trabalhos escolares. Então foi tudo sendo novidade

novamente. [...]. Porque, para mim, antes era uma perda de tempo estar na escola,

porque eu pensava: “Para quê? Para que vai servir uma mulher transexual querer

estudar ou estar trabalhando?” Era assim que eu pensava99.

No quesito relacionamento, Fênix conheceu seu atual parceiro na época do centro de

acolhida. Ela relata que ele se diferencia por ser carinhoso. Ela se considera esposa dele: “eu

já me considero mulher dele e ele meu homem”. Estão juntos há cerca de dois anos. Fênix

relata ter conhecido a família do parceiro, mas numa modalidade diferenciada, já que “ele não

tem mãe e nem pai, conheci a tia pelo WhatsApp, a gente se comunica até hoje”. Há cerca de

97 Trecho de entrevista de campo. 98 Trecho de entrevista de campo. 99 Trecho de entrevista de campo.

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oito meses, seu parceiro foi preso pela polícia em São Paulo. Sendo Fênix nosso foco nesse

cenário, há que atentar para os impactos desse evento em sua história, mais uma vez, a

violência marcando presença em sua vida:

Muito triste, viu?! Eu vou, visito, fico muito triste e choro quando saio de

lá. É muito triste vê-lo naquela situação. Eu queria poder fazer tudo, mas eu não

posso fazer quase nada. Então para mim é uma fase muito ruim que eu estou

passando, mas eu tenho fé em Deus que a vitória está certa [...]. Foi um baque essa

história de presídio, de estar passando por humilhações de um presídio, de estar

atravessando aquelas grades tenebrosas, sabe? Para pegar as coisinhas que eu

compro para ele e ter que abrir tudo, ver o agente revirar, sabe? Para mim foi muito

chato, sempre é humilhante, né?! Ver aquela gente me olhando com cara fechada,

mandando eu ir para a fila dos homens. [...] Eu me sinto humilhada. Porque tenho

formas físicas. [...] Mas desse mesmo jeito eles me põem com as figuras masculinas,

tenho que esperar as mulheres entrarem, fico olhando... Aí só depois vai eu, naquele

meio de monte de homem. Ter que assinar como homem100, sabe? É humilhação na

entrada e humilhação na saída, esse é resumo total do que acontece ali dentro101.

A história de vida de Fênix é marcada pela pobreza, pela situação de rua, pelas drogas,

pela prostituição, pela violência policial, institucional, pela transfobia, pelo bullying escolar,

dentre muitas outras coisas. São múltiplos os formatos de violência. Seus relatos registram

que as violências sofridas em São Paulo e Manaus foram desde perigosos eventos com

clientes que tentaram homicídio, que a ameaçaram ou que não lhe pagaram até ex-

companheiros extremamente violentos. No cenário de prostituição, Fênix declarou que, em

sua vida, era uma rotina correr de policiais e apanhar de cassetete. Um dos casos que a

marcou foi os ataques violentos e de apedrejamentos naturalizados em seu cotidiano:

O apedrejamento era contínuo. Era assim, todo final de semana eu estava

parada na esquina e sempre passavam carros cheios de meninos. Jogavam pedras, ou

jogavam ovos, ou jogavam extintor. Era uma coisa espontânea, eles passavam no

carro e jogavam. Era muito natural. [Sentia-se] humilhada! Às vezes borrava toda a

maquiagem, acabava com o cabelo, aí tinha que voltar em casa, tomar um banho,

secar o cabelo e voltar de novo, porque era por obrigação estar lá para conseguir o

dinheiro da cafetina [...], porém não tinha noção do perigo que eu estava correndo.

Achava que aquilo era completamente natural e que eu teria que enfrentar porque era

a única coisa que eu tinha de fazer. Hoje em dia quando eu olho para aquela cena

muito triste, [...] eu fico perguntando: “Como que eu tive coragem, como que eu fiz

tudo aquilo?” [...] Eu não tinha ninguém que abria minha visão, para me dar uma

oportunidade, ninguém segurava na minha mão ou me falava que eu poderia fazer

outra coisa e que não era só aquilo102.

Ao falar de seus sonhos, Fênix conta que alimentou no passado um desejo muito

grande de ir para a Europa, chegando a sonhar com desfiles e moradias luxuosas no exterior.

100 Como pesquisadora ativista, orientei Fênix a conversar com sua assistente social sobre o caso. Nota para

portaria Federal nº 233/2010; Decreto Estadual nº 55.588/2010; Decreto Municipal nº 51.180/2010-SP e

Resolução SAP 11/14. 101 Trecho de entrevista de campo. 102 Trecho de entrevista de campo.

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Em seus relatos, diz que o Programa TransCidadania a ajudou amadurecer seus ideais. Esses

antigos sonhos foram deixados para trás: “eu abri mão dele porque é uma vida arriscada,

aquela vida de prostituição na Europa. Vivem correndo de polícia, vivem lá sem documento,

não compensa”. Atualmente, seus sonhos são outros: sua pretensão é investir em sua ascensão

social para retornar a Manaus, estar mais próxima da mãe, a quem deseja poder ajudar

financeiramente, ter uma casa e um carro junto ao marido. Fênix também mencionou o desejo

futuro da possibilidade de adoção. Seus sonhos e itinerários de vida foram radicalmente

alterados em função de seu ingresso no Programa TransCidadania. Em sua perspectiva,

Eles estão sendo muito ousados! Estão colocando as mulheres trans, assim,

tipo como as “tops”! Estudando, propondo cursos, né, dando a oportunidade,

mostrando para elas que elas têm o espaço, que elas podem conseguir aquele espaço,

basta elas quererem. Eles estão sendo muito ousados com tudo isso e isso é muito

bacana. Vai ser um baque na sociedade, você imagina que daqui uns dois anos

aquele monte de trans ocupando cargos, assim, que ninguém imaginava?! Isso vai

ser satisfatório com a sociedade e a sociedade tem que engolir porque isso está

prestes a acontecer [...]. Nós, trans, ainda somos muito rotuladas, parece que o

pessoal não quer entender que trans não é um bicho de sete cabeças! Que trans não é

aquela que faz mal, não é aquela que fica de calcinha na beira da esquina. Trans é

uma pessoa normal. Então a sociedade ainda está com aquela mente fechada e é

bacana ter pessoas que tocam nesses assuntos para poder ampliar essa mente e ver a

gente como ser humano, não como uma coisa qualquer [...]. A sociedade tem muito

medo! Discrimina muito as trans103.

4.3. A “transcidadã” Safira: uma apresentação.

“Posso até aceitar o de fato ser conhecida como uma bailarina trans que lutou,

porque não foi fácil conseguir ser bailarina e hoje eu sei que eu sou a bailarina que

sempre sonhei. Eu sou a profissional que eu sempre sonhei, porque eu lutei muito

por isso, mas não para estar em um palco GLS. Acho que palco para mim é para

lavar a minha alma e levar alegria para as pessoas [...]. Antes de uma trans, há uma

bailarina [...]. A trans, ela é muito vista como um fetiche, soa algo como uma

fantasia sexual. E eu não sou sexo, eu sou Safira! Uma pessoa de alma, coração e

muito sentimento. Quero ser apenas eu.”104

Safira tem 28 anos. Transcidadã, negra, cursa o ensino fundamental por intermédio do

Programa TransCidadania. Sua trajetória de vida é “cheia de superações”. A arte corporal,

especialmente a dança (balé e jazz), é o centro de sua vida. As passarelas constituem o

principal motivo de sua migração para São Paulo. Ela veio de Mato Grosso, especificamente

do município de Sorriso, com a intenção de se tornar uma modelo e, a partir daí, ela encontrou

os caminhos da dança.

Uma das principais superações de sua vida refere-se à humilhação pública de um

administrador de academia de dança. Em meio a um processo avaliativo antiético, Safira

103 Trecho de entrevista de campo. 104 Trecho de entrevista de campo.

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sofreu racismo e transfobia. Ela conta que seu choro não se conteve quando o avaliador

concluiu, com o pior tom de voz, que ela jamais seria uma bailarina, mas que talvez pudesse

ser um bailarino.

Minha mãe pediu para eu nunca mais chorar na frente das pessoas. Talvez

ela tenha me visto tão frágil naquele momento que, por defesa, me pediu para eu não

chorar na frente de ninguém, porque as pessoas não mereciam as minhas lágrimas.

Mas eu fiquei bem magoada [...]. Segundo a minha mãe, ela acha que ele falou isso

pelo fato de eu ser trans, que eu não seria uma bailarina e talvez um bailarino, mas

graças a Deus hoje eu sou bailarina, sim, e trabalho em uma companhia de jazz

contemporâneo105.

Em São Paulo, o Programa TransCidadania tem permeado seu itinerário de vida. No

entanto, pode-se observar que o valor ofertado pela bolsa ainda não é o suficiente para manter

os custos de vida no centro de São Paulo, motivo pelo qual muitas das transcidadãs continuam

nas pistas, integral ou parcialmente. Não é mais o caso de Safira; no entanto, a lógica desse

sistema a obriga a trabalhar em várias funções para sobreviver longe das esquinas. O

Programa constitui sua maior renda. Safira tem se dedicado com esmero à oportunidade de

voltar a estudar e mantém uma rotina trabalhista bem variada, que se justifica para que ela

possa

[...] sobreviver, até porque eu pago um aluguel que não é barato, eu tenho

um custo de vida, eu me garanto sozinha e nada é fácil. E também eu faço muito

freelancer, eu trabalho com eventos e atualmente eu sou integrante da comissão de

[escola de samba] [...]. E aí nos meus trabalhos eu sempre estou abrindo uma porta,

eu acabo fazendo um contato e nisso vou ligando uma coisa com a outra, quando

vejo já estou fazendo um outro trabalho. Eu fotografo bastante, por eu dançar e ser

essa mulher alta e tudo mais, graças a Deus, eu tenho uma desenvoltura muito legal

com passarela e eventos [...]. Sou professora de jazz e sapateado, mas não é carteira

assinada, eu dou aula, eu consigo espaços para eu poder dar aula, mas não é nada

registrado [...]. E venho dando curso de maquiagem também [...]. Tudo o que posso

fazer para agregar minha situação financeira, eu faço [...]. Mas praticamente vai tudo

para o meu aluguel, minha comida; [coisas difíceis acontecem] até mesmo de passar

o ano inteiro com a mesma malha, então existe certas coisas que são difíceis [...].

Atualmente eu sobrevivo e estudo graças a um benefício que é um programa

chamado TransCidadania, que eu recebo um salário de R$920,00 por mês para eu

estudar e dar continuidade nos meus objetivos [...]. Preciso terminar meus estudos,

porque o meu objetivo é fazer uma ETEC em dança, sabe?! Eu quero tentar na dança

e mostrar que é possível vencer na dança, por mais difícil que seja. Porque, assim, se

eu quiser ir para um salão de beleza trabalhar, eu vou trabalhar em um salão de

beleza por ser maquiadora. Gosto de trabalhar com maquiagem, mas não presa. Eu

não sei se eu conseguiria ficar presa dentro de um estabelecimento comercial como

um salão e, mesmo sendo formada, não, não é isso que eu quero; quero vencer como

bailarina, me permitir estar em novos lugares e, quem sabe, um dia ter a minha

própria companhia de dança?! Porque eu sei que eu tenho potencial para isso [...].

Não é fácil, mas que vale a pena tentar, porque eu já ouvi muitas vezes [...] pessoas

me questionando, porque que uma pessoa tão linda como eu não foi para a Europa...

[...] eu não vou para a Europa fazer programa. Eu sei que a educação deles é

diferente, mas eu prefiro tentar ser uma cidadã brasileira, que vai lutar pelo meu

105 Trecho de entrevista de campo.

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espaço. É muito difícil [...], eu não tenho nada registrado, não tenho um emprego

fixo. Se eu ficar doente, eu não vou ter quem vai no meu lugar e eu não vou ter

quem vai me repor esse dinheiro [...], eu não tenho nenhuma formação concreta que

me dê um currículo, “olha, vai na empresa x, que você vai conseguir um emprego,

porque você está preparada para esse emprego” [...]. Eu faço o que eu amo, eu faço o

que eu gosto, eu só quero melhorar essa situação financeira106.

Antes de alcançar essa carreira frenética em São Paulo, a trajetória de sua migração

inicia-se na cidade de Nova Ubiratã, onde morava com a mãe. Naquela ocasião, surge na

cidade um concurso de modelo e manequim agenciado. Safira relata que a intenção dos

gestores do projeto seria recrutar e selecionar meninas para a cidade de São Paulo. Aos 20

anos, já fazia parte de sua rotina participar de concursos locais, tendo sido selecionada para

viajar para São Paulo, quando suas configurações de vida demandaram uma série de

mobilizações.

A família de Safira era de origem pobre. Custear a viagem implicava preparos para as

despesas de condução (ida e volta), diárias de hotel, confecção de book, entre outros. Nessa

ocasião, Safira chora ao falar de como a mãe se desdobrou para ajudá-la. Um dos atos da mãe

também contou com a mobilização da comunidade local: “Ela fez um risoto para vender na

cidade para a gente arrecadar dinheiro. Ela foi fazendo isso e todo mundo da cidade se

mobilizou em comprar e [...] a gente conseguiu juntar o dinheiro para eu vir”.

Em São Paulo, ela relata ter sido uma das preteridas do concurso, uma vez que suas

condições estéticas não a favoreceram o suficiente naquela época: “Lá no Mato Grosso eu

tinha uma pele bem judiada pelo sol”. Não tendo sido aprovada no concurso Safira, recusou-

se a voltar para o Mato Grosso, dado que sua meta era estabelecer a carreira artística na

cidade de São Paulo. Nessa ocasião, envolveu-se afetivamente com V., que a ajudou e a levou

para sua casa. Safira relata que as configurações dos relacionamentos são difíceis em virtude

da aceitação de seus parceiros. No entanto, com V. as coisas eram diferentes e logo se engatou

um namoro. Esse relacionamento também lhe possibilitou “descobrir esse mundo GLS e,

descobrindo o mundo GLS, as pessoas me elogiavam muito”. Tais relações a incentivaram a

participar de concursos especificamente GLS. Na primeira participação, Safira venceu e usou

o dinheiro para construir sua identidade feminina.

[...] eu fui e participei de um concurso GLS. Foi quando eu ganhei e ganhei

minha cirurgia plástica. Eu consegui pôr os meus seios nesse concurso. Ganhei

também um dinheiro que foi quando eu comecei a fazer show no mundo gay, falei

“poxa, vou tentar” e nisso eu me envolvi. [...] Não foi só esse, outros concursos que

eu participei eu ganhava e, tipo assim, eu nunca fui bem produzida. Eu ganhava

pelas pessoas gostarem de mim, por achar que eu merecia ganhar aquilo. Foi quando

eu consegui juntar uma grana e V. e eu estávamos apaixonados e ele me ajudava

106 Trecho de entrevista de campo.

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151

[...]. Uma referência para mim era Léo Áquila, que eu achava maravilhosa, linda,

achava show incrível, porque ela dança, ela faz tudo [...]. Comecei a fazer aula, meio

que com medo, meio que com o pé atrás, porque era tudo muito justo, era

“colãzinho”, aquelas malhas e tudo mais. [...] [a partir das aulas de dança pôde

perceber] o que me fazia bem na realidade não era o mundo GLS, o que me faz bem

hoje é eu estar no palco, estar no palco e mostrar a minha arte; só que o palco que eu

tinha oportunidade de mostrar a minha arte era um palco GLS e eu abracei isso.

Entrando no mundo da dança, da arte, eu comecei a ver que estar dentro daquela sala

de aula já me lavava muito a alma, eu não precisava estar no palco GLS. E aquilo foi

me alimentando de um jeito que eu fui vendo que o mundo GLS não era o que de

fato queria, mas que foi uma forma de eu encontrar a dança107.

O “rompimento com o mundo ‘GLS’” deu-se pelos conflitos intragrupais e de

competitividade, além da descoberta de sua realização na dança. Nessa ocasião, Safira

também rompe com V. e começa a dedicar-se com esmero às aulas de dança. Desejou entrar

para o grupo, mas jamais tomou partido por medo de que se repetisse o evento traumático que

enfrentara antes.

Eu nunca cheguei neles para falar “eu quero entrar no [grupo da companhia

de dança]”, porque eu tinha um medo da rejeição, devido ao que eu ouvi do E.. Mas

eu lutava, fazia de tudo, eu chegava primeiro, ensaiava, me matava porque não era

fácil decorar tudo aquilo, tudo muito difícil. E eu conversei com um diretor artístico,

o W. A., que é diretor do balé clássico e ele, por ironia do destino, [...] veio fazer a

formatura das clássicas que era a formatura das clássicas [...] para você se formar no

balé clássico, você demora uns 9 anos [...] e eu me aproximei muito, ele sentiu que

era de se aproximar de mim e eu me aproximei dele e ele por vir de fora veio

diferente. Ele falou assim “Safira, e aí? Você quer ser bailarina do [grupo da

companhia de dança]? Você tem tudo para ser bailarina do [grupo da companhia de

dança], como que eles não te colocam”. E ele mesmo respondeu [...] “eu acho que

você ia destoar muito Safira, você é alta demais... você já viu o tamanho dessas

meninas? Elas são todas pequenininhas, elas são umas plumas, elas [...] voam, elas

vão para um lado, vão para o outro, e o [grupo da companhia de dança] é um

paredão de igualdades, porque é uma companhia bem homogênea, e se você coloca

uma bailarina de 1,84 metros, ela vai gritar ali no meio. E nem figurino para isso

eles têm, porque eles reaproveitam os figurinos”108.

As passagens pela dança em sua vida demandaram resistência desde o início. Safira

relatou diversos casos de negligência em eventos avaliativos envolvendo racismo e transfobia.

No entanto, tendo a dança se tornado seu sonho central de vida, dedicou-se laboriosamente à

disciplina de ensaios em sua rotina. Ainda que notasse seu destaque, o reconhecimento de seu

trabalho era fragmentado, uma vez que as admirações não se reverberavam em concretudes. A

teoria feminista contribui nesse eixo ao metaforicamente reconhecer como labirinto de cristal,

teto de vidro ou chão pegajoso essas configurações e instâncias que, veladamente, não

possibilitam o desenvolvimento pleno, ainda que o esforço seja exaustivo. O fenômeno

denominado teto de vidro, por exemplo, consiste na dificuldade de acesso aos cargos mais

elevados nas empresas, limitando a participação das mulheres até determinado nível. A

107 Trecho de entrevista de campo. 108 Trecho de entrevista de campo.

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expressão vidro, nesse contexto, significaria que a limitação não é imediatamente aparente,

sendo normalmente uma política não escrita nem oficial (GARCIA, 2011).

No caso de Safira, interseccionar sua etnia, gênero e atributos físicos é de suma

importância para compreender o operar dessas instâncias. No caso do balé, sua carreira só foi

possível iniciar formalmente quando, em meados de 2010, uma das funcionárias deixa o

grupo para montar sua própria academia de dança e a chama com o propósito de fazer dela

sua primeira bailarina. Nessa ocasião,

[...] as coisas mudam completamente, porque eu já era bolsista no [grupo da

companhia de dança], na situação eu estava sobrevivendo basicamente com a ajuda

da minha família, mas a mensalidade do [grupo da companhia de dança] era R$

400,00 [...]. Minha mãe me ajudava porque, se não fosse pela ajuda da minha mãe,

não ia dar, não ia dar mesmo, eu ia ter que fazer (choro) (silêncio). Aí a minha mãe

me ajudava. “Minha filha, está difícil aqui, eu não sei mais o que fazer para te ajudar

aí” (chorando). Eu tinha alternativa de talvez até me prostituir, mas eu não aceito

isso, sabe? Mas graças a Deus... Deus preparou tudo [...], eu não pensei duas vezes,

eu fui para a companhia dela, conhecer a escola dela. [...] A A. me colocou na

companhia dela e comecei a trabalhar com ela, a ser assistente dela de aula. Ela me

deixou estar do lado dela, como professora, me ensinou, me formou, ela é uma das

minhas formadoras. Sou muito grata a ela, que me preparou de fato, para poder

encarar e me permitir viver novas experiências. [Participamos] de campeonatos,

fomos selecionados para ir para Los Angeles e a situação aí mudou,

financeiramente, porque a minha mãe já estava super... coitada. [...] Ela me ajudava,

porque ela via minha luta, ela está acompanhando na verdade até hoje [...]109.

Atualmente, Safira ainda se encontra em parceria com A., a quem dedica extrema

gratidão. No entanto, pretende romper suas relações profissionais, em virtude da necessidade

de renovar suas aspirações de vida.

De fato, eu quero me permitir a estar em novos lugares. Quero fazer aula

com outras pessoas [...]. Ela é tão querida, tão maravilhosa [...]. Esse ano agora

completou 7 anos que estamos juntas. [...] E esse ano eu fui três vezes lá para dizer

que eu não ia mais participar da companhia, que eu quero me permitir ainda, que eu

tenho muitos sonhos e eu não quero ficar presa a uma coisa. Eu acho que eu não

nasci para ser presa. [...] Mas não consegui ainda falar com ela110.

Safira divide apartamento com um colega em São Paulo. No entanto, essa relação

constitui uma das múltiplas violências sofridas por ela. Ela relata que, a partir do Programa

TransCidadania, teve diversas tomadas de consciência a respeito de violências naturalizadas.

Uma delas envolve sua percepção de que a relação com o colega de apartamento configura

uma violência, uma vez que, embora as despesas sejam dividas, ele a solicita para ter o

cuidado de sempre esconder sua identidade perante as visitas e, sobretudo, frente à namorada

dele.

109 Trecho de entrevista de campo. 110 Trecho de entrevista de campo.

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Nessa ocasião, Safira relata não saber lidar com seus relacionamentos afetivos e com

as relações humanas no geral. Ela relata o abandono pelos parceiros na hora da descoberta de

sua identidade e o sofrimento advindo dessas relações: “Eu nunca imaginava que eu precisava

tocar nesse assunto ‘Eu sou trans, tá? Você sabe que eu sou trans?’”.

Safira relatou vivenciar o dilema entre o empoderamento e a exposição, refletindo

consigo mesma sobre o paradoxo da aceitação, da visibilidade e da necessidade de existir sem

rótulos.

[...] eu acho que, antes de qualquer coisa, a pessoa tem que conhecer eu

como Safira, não por esses rótulos que foram impostos pela sociedade. Eu vim saber

o que é o mundo GLS e essas coisas agora [...]; eu não gosto desses rótulos, sabe?!

Dessas situações... E atualmente eu moro nessa situação, em que eu não posso nem

falar para a namorada do meu amigo que eu sou trans [...]. Aí o TransCidadania

mexeu muito comigo. [...] O programa está superando minhas expectativas, indo

além do que eu esperava. Em primeiro lugar, foi eu comigo mesma. Ele me ajudou

muito comigo mesma, no sentido de tirar a máscara e ver como as coisas acontecem.

E eu estou nesse processo ainda. Eu não sei se eu quero me colocar diante da

sociedade como uma mulher trans, sabe?! Não sei se eu tenho suporte para isso,

acho que eu não aguento. Mas eu já estou mais por dentro, estou aceitando [...]. Por

exemplo, quando eu passo e vejo uma menina na rua passando por situação difícil

[...], corta o meu coração. Me dá vontade de chegar na menina e falar “porque você

não vai no TransCidadania?” Porque o programa me traz cidadania, conhecimento, e

me deixou por dentro do que existe, que existem leis, de que existem pessoas que

estão comigo, que eu posso ir atrás; inclusive estão me ajudando muito a tomar

decisões [...]. Trouxe essa cidadania de me permitir estar em lugares, por mais que

eu sinta um frio na barriga [...], eu sou cidadã, uma trans cidadã, eu vou conseguir.

Porque você se colocar no mundo da dança, não é fácil, por mais talentoso que você

seja [...], eu sinto que também estão me cobrando mais, sabe? Por ser mulher trans.

[...] O Programa TransCidadania está me ajudando e eu sei que ainda tem muito que

me ajudar [...] e eu vou procurar esse apoio deles, de me autoafirmar, porque eu

preciso me autoafirmar e eu preciso ter orgulho de ser quem eu sou e eu tenho. Eu

não posso deixar que a maldade das pessoas faça eu me camuflar111.

Safira é mais uma das transcidadãs que conseguiram, com alto preço, resistir aos

sistemas excludentes. Evasão escolar, prostituição como única alternativa e outras violências

também marcaram seus itinerários de vida. Durante nossos encontros, ela contou sua história

bastante emocionada e chorosa por diversas vezes. Seus sofrimentos são de diversas ordens.

Aos 28 anos de idade, trabalha em excesso na tentativa de manter-se longe das esquinas,

cenário que já fez parte de sua trajetória na adolescência quando, no processo de transição de

gênero, precisou de dinheiro para custear seus hormônios. A questão de sua adolescência

havia permanecido como uma neblina até nosso último encontro. A despeito do ritmo e ordem

na qual ela narra os fatos, adentraremos agora superficialmente em sua adolescência.

Antes da transição de gênero, suas configurações empregatícias envolveram atividades

em açougues, supermercados, entre outras atividades, por volta dos 14 anos de idade. Durante

111 Trecho de entrevista de campo.

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sua transição e no cenário de prostituição, sua história de vida cruzou os caminhos das

múltiplas violências, tendo tido sua vida em perigo por diversas vezes, durante os programas

de esquina, sendo ameaçada com armas, abusada sexualmente pelo “perverso machismo

transfóbico” das ruas, apanhado de cafetina e “exorcizada” por tias evangélicas. Seus pais

separaram-se na infância e viveram em cidades diferentes, o que a obrigou a viajar muito nos

revezamentos. Durante a adolescência, sua mãe adquiriu moradia devido a um programa

governamental destinado às populações vulneráveis e seu pai também se matriculara em um

desses programas, a fim de alfabetizar-se. Ele trabalhava numa orla, vendendo coco

diariamente pelas manhãs e tardes e estudando pela noite.

De minha infância até a minha adolescência, como eles são separados,

ficava aquela pulação, fica um ano com um, um ano com o outro, e isso também me

atrapalhou muito nos estudos, [...] fez com que eu não concluísse meus estudos e

desse tanto essa atrasada. Hoje eu tenho duas irmãs formadas, uma pedagoga e uma

analista de sistema. E eu sou a mais velha das filhas da minha mãe e eu não tenho

nem o ensino fundamental. Aí nessa confusão e como eu era uma coisa indefinida,

era um menino que não sabia se era gay, se era homo, o que que era aquilo, e na

escola me perguntavam “você é menino ou é menina?” [...] eu lembro que eu

apanhava na escola e levava pedrada quando era criança, sabe? “Você é menino ou é

menina?” E no final da aula ajuntava aquela maloca de moleque para me bater

porque eu era, acho que um andrógeno, ali naquela situação. E minha mãe raspava

minha cabeça. Eu lembro que eu tinha 15 para 16 anos e minha mãe tinha arrumado

um marido novo, o meu padrasto teoricamente naquela época, e ela me mandou para

o meu pai, ficava sempre isso, sabe? Falava “vai morar com o seu pai (chorando),

vai ficar com a sua mãe, vai morar com o seu pai, vai ficar com a sua mãe”

(chorando). Talvez por isso ela seja tão próxima de mim hoje, sabe? Ficava essa

jogação, joga para um, joga para outro, joga para um, joga para outro. E eles

também precisavam trabalhar para conseguir dinheiro. Estavam sempre atrás de

dinheiro, igual a cigano: “apareceu emprego lá, vamos lá”, aí ficava essa coisa. [...]

[Durante a transição] quando chegava no meu bairro – lá eles são muito

preconceituosos –, falavam “Ih, olha essa bicha aí... bicha feia do caralho”. Eu ouvia

cada coisa, sabe? Porque eu já estava muito afeminada, eu me escondia e eu usava

boné, escondendo meu rosto [...]. Entrei em conflito com o meu pai, porque meu pai

queria cortar o meu cabelo e eu não queria cortar, eu escondia meu cabelo, ficava

com boné 24 horas quando estava na frente dele, para ele não ver o meu cabelo [...].

As minhas tias eram evangélicas e o meu pai era muito ruim. Ele me batia muito,

sabe? [...] Ele me pegava de vara, me batia, quebrava minhas costas, então, eu sofri

bastante também com isso. Minha mãe também não foi muito boazinha, não. Ela

deixava. [...] [Certa vez recorda-se] minha mãe foi reclamar de mim para o meu

padrasto, que ela não aguentava mais o meu jeito. Não sei o que ela falou para o

meu padrasto. Só sei que um certo dia ele veio para cima de mim com tanto soco,

tanto soco, que ele desfigurou meu rosto inteiro de soco (chorando). Não tinha

ninguém que segurava aquele homem (pausa). Só sei que eu fiquei uma semana de

cama, com o rosto desfigurado. [Muitos dias difíceis] Num desses dias, uma das

minhas tias que morava lá no sítio apareceu à noite lá [...], não sei porque raio eu

faltei na escola [supletivo] e ela cismou comigo. E ela veio querer me exorcizar,

porque lá tem umas lendas de pessoas que “viraram homem”, sabe? [...] E eu tinha a

minha avó, que era uma anciã, já não estava mais no juízo dela aos 78 anos, então

ela também vivia pegando no meu pé. Eu lembro que ela me acordava com banhos

de água fria... Ela era bem ruinzinha, era uma senhora bem ruim mesmo – que Deus

a tenha. Juntou-se à minha tia que veio com pimenta e com a minha outra tia e

minha avó. Me seguraram e vieram com pimenta em mim, querendo colocar

pimenta lá naquele lugar para eu virar homem, “hoje você vai virar homem de tudo

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155

quanto é jeito”. Me amarraram e colocaram pimenta no meu ânus para eu virar

homem (chorando), porque elas achavam que o fogo era lá (chorando), me deram

aquele banho de pimenta e meu olho... já estava todo mundo sem sentidos, sem ação

e foi pimenta no olho, foi pimenta para tudo quanto é lado e eu me debati e consegui

fugir112.

E é a partir dessas ocasiões que ela se assume como Safira e se depara com o mundo

da prostituição para custear seus hormônios aos 16 anos. Em determinado momento e já

instalada no bordel, sua cafetina decide rejeitá-la por conta da idade. Ela consegue ser

emancipada pela mãe, a fim de manter a vida que levava, afinal, “eu estava vivendo o meu

sonho, estava sendo quem eu queria ser. Eu era Safira, por mais difícil que fosse”. No entanto,

muda de cidade e estabelece relações com outras cafetinas. Assim ela narra um dos eventos

mais marcantes em sua história de prostituição:

[...] pela primeira vez na minha vida, colocaram uma arma na minha cara.

Eu estava parada na rua quando parou um cara em um carro preto. Veio para fazer

maldade. Falou assim “entra no carro ou eu te mato aqui agora” (choro). Ai meu

Deus! (Pausa). Eu perdi o meu chão ali (chorando), aí eu entrei naquele carro. Foi

horrível! Ele portava um soco inglês e um punhal (choro). Foi livramento de Deus

mesmo aquele homem não ter me matado. Só sei que ele me deixou em um lugar.

Não sei nem como, mas ele deixou, abandonada. [...] Teve tortura, sim, teve abuso,

foi horrível, mas ele não me matou [...]. Eu tive, sim, essa passagem pelo mundo da

prostituição, mas eu sobrevivi e consegui sair dele. Eu não entrei por interesse

financeiro, por interesse de me dar bem. Eu só entrei porque eu queria comprar o

meu hormônio (chorando)113.

Safira chora ao dizer que participa dessa entrevista na expectativa que, de alguma

forma, “isso venha a ajudar outras meninas e mostrar que é possível a gente conseguir os

nossos objetivos”. Dessa forma, ela busca um dia servir de inspiração para a comunidade de

mulheres trans:

Eu me coloquei, sim, em situações difíceis por consequência de outras

situações. Meu sonho de ser a mulher que eu queria, era tão grande que eu cheguei a

quase me suicidar. Me coloquei numa situação de vida ou morte e eu poderia não

estar aqui hoje... (choro). Tudo isso para ser quem eu sempre sonhei em ser. [...] As

pessoas me veem e não fazem a mínima ideia... 114

4.4. Itinerários de vida

É possível definir como sendo itinerários os eventos, rotinas e caminhos percorridos

pelas transcidadãs. Busca-se aqui evidenciar as similaridades dos caminhos percorridos para

112 Trecho de entrevista de campo. 113 Trecho de entrevista de campo. 114 Trecho de entrevista de campo.

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156

compreender como o Programa TransCidadania atravessa as histórias dessas mulheres. Desse

modo, há que se concordar com as observações de Souza et al. de que,

[...] no tocante às travestis e às pessoas transexuais há a configuração de um ciclo

vicioso, no qual as hostilidades sofridas no período escolar ocasionaram o

afastamento da escola, impactando diretamente na falta de capacitação que,

juntamente com o preconceito pela sua identidade de gênero, acabam por diminuir

de maneira drástica as possibilidades de inserção no mercado formal de trabalho.

(SOUZA et al., 2016, p. 7)

Marfree, Fênix e Safira são marcadas por essa configuração perversa que estrutura

seus itinerários de vida. É no período escolar que elas começam a se defrontar com as diversas

violências que atravessam suas vidas. Essas podem ser expressas na fala de professores que

condenam condutas quando identificam questões que permeiam a sexualidade alheia, quando

elas começam a ter consciência de um corpo e de uma sexualidade que, constituída

socialmente, não abarca quem elas são, já que não corresponde ao binarismo pênis/homem,

vagina/mulher. Há a “transgressão” da norma, daquilo que deveria ser esperado para escolares

pré-adolescentes e adolescentes.

Diante dos diversos confrontos, das chacotas e de serem colocadas em um lugar que

lhes restitua aquilo que foi perdido, a masculinidade, elas são postas à prova, servem de

objeto para forjar cenas de estupro, para serem apontadas como desviantes em exemplos em

sala de aula. Fatos que acabam por culminar com a saída precoce dos bancos escolares, que

nada tem a lhes oferecer senão serem colocadas à margem em mais um aspecto, já que todas

se encontram na margem da pobreza e, algumas vezes, na margem racial. Desse modo,

acabam por compor uma intersecção de vulnerabilidades.

Na intenção de terem algum tipo de autonomia, acabam por sair da residência familiar,

saída que, na maioria das vezes, não é voluntária, vindo na forma de expulsão. Pois, já que

não se consegue “corrigir”, é melhor que aquilo que compromete a “ordem social” nessa

microesfera institucionalizada seja apartado. Conclui-se, portanto, mais uma parte dessa

trajetória, tão comum a esse universo e que vai culminar em outra violência, marcada pela

necessidade de sobrevivência: a prostituição, que chega para algumas ainda na adolescência,

pois é nessa fase que elas são expulsas de casa. Dessa forma, lidam com um corpo que acaba

por concretizar os desejos do outro e que, tanto relacionado ao prazer como à exploração de

seu trabalho, se acostuma com essa vivência, pois se torna um lugar de solidão: um corpo, até

então esvaziado de sentido, que serve como objeto para o outro, de lucro ou de prazer.

Em última instância, temos então uma tríade perversa: o abandono das salas de aula, a

expulsão de casa, em boa parte dos casos, e a prostituição como única alternativa de trabalho,

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esta última marcada pela hipocrisia de seus clientes, donos da perversão e do machismo, que

muitas vezes violentam, apedrejam e assassinam durante o dia corpos que desejam e compram

na clandestinidade da noite. Com isso tudo, instaura-se uma vivência caótica e, nesses casos,

só o que resta é a recusa a esse estado de caos, que nos casos citados se concretiza, segundo

um dos relatos, no uso de drogas, na ânsia por entorpecer um corpo marcado por uma

trajetória alheia a sua vontade.

Muitas bebem, fumam cigarro para sair da realidade e começam a se viciar.

Eu fui para a bebida, então eu sabia que meu destino era o que? Morrer velha na

esquina, ou virar cafetina, ou tentar fazer alguma coisa, mas não tinha muita escolha.

Aí essa oportunidade me apareceu, eu fui uma das melhores alunas de um colégio

que não tinha preparação para travesti. Tirei as melhores notas, o pessoal me

chamava de CDF. Ali para mim além do que eu ganhava, aquilo era um sonho. Ser

inserida de novo na sociedade foi tão bom para mim. Uma das melhores coisas que

me aconteceu, juro. (Marfree)115

Marfree, Fênix e Safira são transcidadãs que compartilham de experiências hostis,

afastamento da escola e outras rotinas sociais cercadas de sofrimento, violência e múltiplas

agressões, recorrendo à prostituição como única possibilidade de subsídio e criação de

identidade, enfrentando diversas dificuldades e desilusões em sua trajetória em busca de

reinserção na sociedade. Além das entrevistadas, grande parte da população de travestis e

transexuais envolveu-se com a prostituição após o desligamento da escola; porém, como é

ressaltado nas entrevistas, essa não foi uma escolha como desejo, mas sim como necessidade

para a sobrevivência.

Como a maioria das meninas, eu comecei como garota de programa, fazendo

prostituição. Eu era muito iludida com aquela vida, sem oportunidade nenhuma,

como nenhuma das meninas têm. Meu único meio de sobrevivência era me

prostituir, então fiquei muitos anos da minha vida na prostituição e achava que

aquilo era correto, muitas vezes sendo obrigada a fazer para que não me faltasse

alimento, vestimentas e outras coisas que travesti precisa. (Fênix)116

A partir do momento em que se envolveram com a prostituição, encontraram nesse

cenário uma maior aceitação de suas identidades e gêneros, porém foram expostas a um

público e uma rotina marcada por agressões, abusos, violência, tentativas de homicídio,

envolvimento com drogas e perversões. Embora as entrevistadas relatem que conseguiram

deixar a prostituição, foi exposta anteriormente a dificuldade de desvincularem-se

completamente, seja pelo fator financeiro primordial, seja pelas ameaças recebidas. Fato é que

a prostituição é considerada por elas muito mais uma imposição do que uma opção.

115 Trecho de entrevista de campo. 116 Trecho de entrevista de campo.

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O sofrimento foi um dos tópicos discutidos no decorrer dos capítulos anteriores. A

partir da perspectiva de Sawaia (2014), é possível notar que ele atravessa as relações trans a

partir de um contrassenso: velado na clandestinidade da perversão e escancarado nas

estatísticas das múltiplas violências.

A nossa realidade é essa, você vai para a rua, sai com esses homens

nojentos que de manhã falam que é machão, pegam mulher, que é homem e dá o cu

para você. Têm muitos que procuram uma travesti para ser parceira [...]. Homem

nenhum quer o peso de ficar com uma travesti, porque o homem que sai comigo

gosta de mulher, ele me vê como uma mulher... mas ele não quer ficar comigo

porque ele se considera homem e, se ficar comigo, a sociedade ataca ele, então é

tudo escondido [...]. Eles querem uma mulher com peito e pau, querem ser mulher

de outra mulher. Eu via toda aquela podridão, aquela escória da sociedade... e no dia

seguinte se levantam e riem de nós, vivem a vida deles de pai de família normal.

Essa era minha realidade, era o que eu tinha por escolher ser travesti. (Marfree)117

A projeção de uma melhor condição de vida para pessoas que deixaram os estudos no

ensino médio ou fundamental tornou-se difícil enquanto automotivação. A alteração de seus

itinerários pode ser representada a partir do Programa. Um dos dilemas enfrentado foi a

questão da necessidade de uma melhor capacitação profissional, concomitante a uma

educação reflexiva, para qualificar-se a outras opções de trabalho e o tempo necessário que o

estudo demanda para tal, devido à rotina das entrevistadas.

O mercado de trabalho, ele pede formação profissional para você conseguir

sobreviver e conseguir espaço, no meio da dança, por exemplo, eu tenho muitas

amigas que são formadas em educação física, em dança pela Anhembi Morumbi ou

pela UNICAMP, que é uma faculdade pública. Só que para você fazer uma

faculdade dessas vem outra questão; como se faz uma faculdade se você precisa

trabalhar, precisa sobreviver? Eu ainda estou buscando concluir meus estudos, mas

acredito que, quando concluir, vou atrás disso, sim, só não fui, por essa necessidade.

Aí que entra o TransCidadania, que é esse grande auxílio que me permitir continuar

estudando para dar continuidade na minha carreira profissional, que é uma formação

concreta, sólida e que vai me permitir ter uma carteira assinada e que, se eu me

machucar, me lesionar, eu terei os meus direitos. (Safira)118

Observa-se que o espaço social foi limitado devido à segregação e imposição de uma

imagem que não necessariamente retrata a população, tampouco suas particularidades

individuais, imagem essa muitas vezes associada a segmentos da beleza, cosméticos, cozinha

e prostituição. Essa estrutura acaba por naturalizar as vivências sociais com o sentimento

cristalizado de não-pertença à esfera pública.

É aquela marginalização, aquela coisa que te jogaram, que te introduziram

naquilo, a sua vida toda. Você começa a se adequar e falar “eu sou assim, a vida me

deixa assim e eu não vou correr atrás”, então muitas estão com um chip,

117 Trecho de entrevista de campo. 118 Trecho de entrevista de campo.

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programadas para isso. Agora, como tem uma socialização, muda... é difícil de se

adequar, tem que ver tudo aos poucos. (Marfree)119

Essa configuração dada de sofrimento naturalizado e cristalizado rouba a possibilidade

de cidadania, uma vez que internalizam o sentido infernal de um destino posto e fadado à

programação de um chip. Ao serem inseridas nesses locais públicos, escolas e trabalhos, por

exemplo, e locais privados, evidenciam-se diversas reações e choques, uma vez que as

estruturas e modelos socioculturais preestabelecidos não possuem preparo para o convívio

direto com essa população. Ao ignorar as questões e os debates relacionados a essa parcela da

população, cria-se uma ignorância preconceituosa devido à não compreensão de suas

especificidades, onde, mais uma vez, opera o machismo da sociedade, bem como a transfobia

e outras estruturas interseccionais.

Eu estou acostumada, nós que somos travestis temos que ser sozinhas na

vida. Ser travesti é ser uma mulher em um corpo de homem, você vai enfrentar

muita coisa na vida por que você levanta a bandeira feminina, então somos atacadas

por levantar essa bandeira, por representar uma mulher em um corpo e com uma

força de um homem. Tendem a te atacar por isso, porque o mundo é feito com

machismo e muitos pensam “como que uma pessoa que nasceu homem larga isso

tudo e vai procurar ser a coisa mais fraca da sociedade?”. Na cabeça deles, é bem

por aí, e por isso temos que tomar muita coragem na vida. (Marfree)120

A relação com a prostituição reflete-se numa constância de rejeições e segregações,

em que o ambiente acata em vez de rejeitar especificidades quanto à identidade e ao gênero,

permitindo a construção das subjetividades individuais. Porém, a relação com a prostituição

como dependência financeira dificulta outras possibilidades, considerando ainda que parte da

população se afastou dos estudos antes de concluir o ensino médio ou fundamental, o que

diminui ainda mais seu leque de opções.

4.4.1. Antes do Programa TransCidadania

Antes de serem inseridas no programa TransCidadania, as entrevistadas relatam

períodos em que recorreram à prostituição, principalmente na adolescência, em decorrência da

carência de estudo, da expulsão de casa e da ausência de outras opções financeiras. Entre

outros aspectos, o ambiente escolar proporcionou eventos traumáticos devido à falta de

preparo para as questões relacionadas à identidade e ao gênero, acabando por criar um

afastamento e uma aversão hostilizada. Além das entrevistadas, grande parte da população de

travestis e transexuais envolveu-se com a prostituição após o desligamento da escola; porém,

119 Trecho de entrevista de campo. 120 Trecho de entrevista de campo.

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160

como é ressaltado nas entrevistas, não foi uma escolha do desejo, mas sim da necessidade

para a sobrevivência. Diante da falta de capacitação profissional e formação necessária para o

mercado de trabalho, além da inerente aversão às escolas ocasionada por traumas passados e

pela falta de estruturas, o estudo foi desestimulado e deixou de ser cogitado como alternativa

em decorrência das rotinas e suas demandas.

O destino estava posto: não fazer parte da vida social que envolve a esfera pública da

sociedade. Não dispor de sonhos e aspirações de vida é rotina. Viver resume-se às esquinas e

à escuridão da noite. Prostituir-se é a única possibilidade de mantimento e de construção de

uma identidade feminina.

Antes do programa eu achava que a prostituição era a única coisa. Que

aquilo era para mim, que eu tinha que ficar na rua me prostituindo, que eu tinha que

viajar para a Europa para conseguir muito dinheiro, conseguir comprar uma casa.

Isso antes do programa, mas depois do programa eu vi que não é preciso isso, que eu

posso fazer minhas plásticas, que eu posso trabalhar, sabe? Ter um trabalho digno,

ter uma casa sem precisar me prostituir. [...] Como no programa TransCidadania

trabalham muitas travestis – lá, tem lá uma recepcionista, tem uma pedagoga...

Então o estudo foi abrindo minha visão que eu poderia também. [...] Me trouxe uma

coisa maravilhosa. Me deu aquela coisa de cumprir horários, de cumprir regras, de

ter trabalho, de afazeres. Ele me ajudou muito a organizar isso que era muito longe

de mim. (Fênix)121.

4.4.2. Durante o Programa TransCidadania

As narrativas vão se construindo, dando sentido às suas histórias de vida,

rememorando os fatos que fizeram com que chegassem até determinado momento, o de

inserção no TransCidadania, visto pelas entrevistadas como um local que as ajuda,

inicialmente, em sua condição financeira precária, mas que vai favorecer o retorno aos

estudos, possibilitando uma realidade até então inalcançável para muitas, a da

profissionalização, de inserção cidadã e de reconhecimento de alteridades.

Esse momento, portanto, marca as suas vidas como o momento em que, de fato, elas

podem projetar um futuro melhor, mais promissor diante de tudo aquilo que já viveram em

sua história. Torna-se palpável a esperança em uma profissionalização e a entrada no mercado

de trabalho formal, representando para muitas a saída das esquinas, a possibilidade de vida,

que é a marca social de boa parte dessas mulheres. Outro aspecto a ser considerado é um fator

organizador quando participam da vida diurna: elas reorganizam seus horários a partir de

outros lugares, mobilizando uma participação da esfera coletiva da sociedade, uma

participação de dia.

121 Trecho de entrevista de campo.

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161

São as vivências de um passado marcado pelas incertezas que fazem com que essas

mulheres duvidem da proposta do trabalho do TransCidadania.

Aí aparece o TransCidadania! Eu fiquei com o pé atrás, assim, mas estava

numa situação financeira difícil, essa situação financeira me persegue (risos). Aí

apareceu essa chance e, a princípio, eu fui pelo benefício! Que eu achei bem

interessante: “nossa, como assim, uma ajuda de custo, meu Deus, vai me ajudar até

eu dar continuidade?!” Como eu dei continuidade em muitas coisas nesse ano,

graças ao TransCidadania, eu comecei a ver que a causa trans não tem que ser

escondida, precisa ser aceita [...]. Eu já me vi em muitas situações de preconceitos,

inclusive essa na qual que eu vivo, que é estar morando com um amigo meu que

prefere que eu não fale para a namorada dele que eu sou trans. (Safira)122

Se não fosse o TransCidadania eu não teria voltado a estudar, de fato,

porque eu ia ter que estar me desdobrando para dar aula e eu amo dar aula, mas dar

aula e ser bailarina de uma companhia, cansa muito, porque você tem que estar com

a energia sempre para cima. Você tem que estar sempre sorrindo e você não pode

ter.… você é uma artista! É como o palhaço que usa a máscara e tem que estar ali

com aquela máscara e manter aquela máscara o tempo todo [...]. (Safira)123

O mais importante que o programa TransCidadania trouxe para minha vida

foi me permitir voltar a estudar, porque, se não fosse o programa TransCidadania, eu

não ia conseguir voltar a estudar, [ter a possibilidade] de continuar estudando e de

ter essa consciência de que eu sou uma mulher trans e que eu tenho pessoas que

estão comigo, para qualquer situação difícil que eu venha passar, e que fazem eu

acreditar que posso estar em qualquer lugar. E que, independente de rótulos, se eu

tenho capacidade para estar lá, eu vou querer estar lá, sim. Então o TransCidadania

me trouxe essa segurança [...]. Acho que o curso de direitos humanos me ajudou

tanto que, no último momento, na última reunião do grupo psicossocial, eu participei

e eu estive dentre tantos que aconteceram esse ano [...], ajudou para que a gente se

aproximasse. Todos os que fizeram parte desse curso, como você, a [nome], fez com

que as coisas acontecessem e a gente se enxergasse bem, sabe? (Safira)124

O programa veio me trazendo a escola. E veio me propondo também a fazer

um curso de direitos humanos, que é semanal, e eu achei muito legal porque

preenchia meu tempo. Me fazer cumprir horas, cumprir horários e foi me ensinando

coisas que eu não sabia que pode acontecer comigo, por exemplo, em uma entrevista

de emprego, como se vestir, como conversar, as dinâmicas que pode acontecer em

uma entrevista de emprego. [...] Eles me acolheram bem, sabe? Graças a Deus, eles

me entenderam, eles perguntavam se era aquilo porque eles sabem que você está

acostumada a estar naquela vida noturna. Sabem que é difícil se adequar aos dons do

dia, horários, regras. Então isso foi uma coisa bem conversada comigo, que eu me

propus e estou fazendo bem correto. (Fênix)125

No começo eu achava muito estranho! Por quê? Porque eu tinha que me

deparar com regras, eu, acostumado com uma vida noturna, né?! Então para mim era

muito estranho ter que dormir nove horas da noite, dez horas da noite, ter que

acordar oito horas da manhã! E ter que viver durante o dia; eu estranhei isso muito,

no começo! Mas hoje em dia para mim já é muito tranquilo, já é muito prazeroso

essas normas de acordar cedo, de dormir cedo, de ter uma vida na parte do dia, né?!

Para mim já está bem tranquilo. (Fênix)126

122 Trecho de entrevista de campo. 123 Trecho de entrevista de campo. 124 Trecho de entrevista de campo. 125 Trecho de entrevista de campo. 126 Trecho de entrevista de campo.

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162

O TransCidadania é um projeto maravilhoso! Está me dando essa

oportunidade de estudo e espero que, assim, que eu venha a concluir meu ensino,

consiga minha diplominha, consiga uma profissão, ou de recepcionista, ou de

pedagoga, assistente social, alguma coisa que eu possa ajudar a alguém. O

TransCidadania me deu essa esperança de que eu posso. Que eu vou conseguir meus

estudos, vou conseguir meu emprego. Eu tenho essa esperança. É uma força, uma

razão para eu continuar a lutar pelos meus objetivos. O estudo virou a minha

prioridade. [...] O programa está me ajudando, é meu mimo. Não tenho outra coisa

na qual me apegar, para mim está sendo maravilhoso. (Fênix)127

Além da perspectiva empática, outro eixo que se torna possível, a partir do Programa,

é a consciência cidadã que envolve o empoderamento dos direitos e deveres e, mais uma vez,

de pertença da sociedade e de uma ocupação da esfera pública.

Eu tinha que comparecer terças e quintas no curso de direitos humanos e de

noite ou de manhã ou de tarde você fazia o colégio. E a gente tinha evento na

câmara, eu não sabia nem que eu podia entrar na câmara municipal. Teve lá uma

manifestação sobre aquela... Qual era o nome daquele projeto, de ideologia de

gênero, que ia influenciar as crianças... esqueci agora. Foi bem legal na época, eu

comecei a me socializar, ter horário, minha vida era só de noite e, de manhã, um

tempinho, né; então comecei a me socializar, ter horário, comecei a ver os direitos

que eram julgados, porque perante a lei são todos iguais, mas na prática é bem

diferente, não é? Mas na constituição fala isso, que o respeito é igual, o que eu sou,

se eu sou travesti, se eu sou gay, se eu sou sapatão, isso não vai mudar, você pode

ser um travesti podre, ou um homem podre, ou uma mulher podre, não é pela sua

sexualidade e sim pelo seu caráter. (Marfree)128

Sobre as atividades desempenhadas. A gente já foi em cinema, para ver algum filme,

no teatro, a gente ia em musical também, a gente em coisas sociais, assim, tinha a

parte didática e depois era a social, para ir em algum canto, para sermos introduzidas

mesmo, para verem que existimos e que somos uma população, que não tem como

negar. (Marfree)129

4.4.3. Depois do Programa TransCidadania

O ingresso no Programa TransCidadania possibilitou itinerários de vida pautados em

cidadania, devolvendo a possibilidade de escolha, desejos, planejamentos e aspirações, isto é,

dando lugar a uma vida passível de ser arquitetada pensando em futuro, a partir da

autoconsciência de humanidade.

[...] Mudou minha vida da água pro vinho, eu era uma pessoa sem futuro,

ficava na rua até de manhã, para ganhar vinte, às vezes trinta, cem reais, e era aquele

sofrimento, briga de esquina com cliente, sem futuro nenhum, sem nada. Depois que

eu entrei no TransCidadania, eu comecei a me sentir gente, comecei a me sentir

viva, recuperei o que tinham me tirado. (Marfree)130

127 Trecho de entrevista de campo. 128 Trecho de entrevista de campo. 129 Trecho de entrevista de campo. 130 Trecho de entrevista de campo.

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163

[...] Me deu estrutura também, porque [...] eu fiquei sabendo de várias

coisas [...] que a sociedade impõe, que eu tenho o direito na constituição, somos

todos iguais perante a lei, então tudo que foi tirado da gente; me ensinou que eu sou

uma cidadã como qualquer um. Foi minha vida, foi meu mundo, foi minha trajetória.

Imagina você entrar no projeto e, do nada, já estar trabalhando dentro dele? Gente,

era um sonho, aquilo era um sonho para mim que você não tem noção! Tanto que

brigavam comigo porque eu ficava doze horas. Porque lá abria das nove às nove,

mas eu ficava porque aquilo era tudo novidade, aquilo era tudo maravilhoso, para

mim era o que eu queria, era o que eu amava. Era uma nova vida, eu sempre

trabalhar, ter mais possibilidades. Por eu ser uma travesti, isso foi tudo tirado de

mim e, se não tivesse uma oportunidade, uma política que me ajudasse a ser

introduzida nisso, eu estaria em uma esquina. Então depois que eu tive uma

possibilidade, eu queria mostrar, não só que eu tenho cotas, mas também mostrar

para quem não teve essa oportunidade, porque tem várias que tem capacidade, mas

não tem oportunidade. (Marfree)131

A consciência crítica e cidadã reverbera-se amplamente. A partir de uma consciência

cidadã, é possível reconhecer que o Programa, que lhes devolve a cidadania anteriormente

repelida, não se configura suficiente diante das mazelas sociais.

[...] Eu esperava assim, eu esperei mais, sendo franca, esperei mais, mas,

assim, fizeram o que puderam, não é? [...] Tem um período para ficar, é de dois anos

e, quando acabar esses dois anos, as meninas de 2015 que começaram comigo vão

acabar em 2017 agora, em janeiro; o período de dois anos acaba e você entra no

mercado de trabalho, ou não, e aí? Tá entendendo? Mas, assim, o que eu esperei do

TransCidadania eu consegui, eu Amanda consegui. E eu me dediquei e não tenho o

que falar. Mas, se olhar como um todo, faltam coisas. Mas isso é, tipo assim, eu

esperava tentarem conseguir o mercado de trabalho para essas meninas e meninos.

[...] Eu achava que tinham que tentar ver uma solução, porque ficou tudo bonito,

mas daqui a pouco, e aí? E quem não está inserida no mercado de trabalho? Eu estou

e tal, mas e aí? [...] Que pensar na comunidade em geral, eu sei que elas não vão

conseguir trabalho, é complicado. [...] Não tem o que falar do programa, a única

coisa que eu estou falando em si é para tentarem introduzir essas meninas no

mercado de trabalho, é isso que eu falo, porque, tipo assim, “ah, acabou os dois

anos”, e aí? Está entendendo? Ou, tipo assim, você dá uma oportunidade, se a pessoa

também não quer, aí me desculpa, mas você deu uma oportunidade. [...] Tem que

tentar alguma coisa. (Marfree)132

Também se nota, a partir dos itinerários de Safira, uma consciência das subjacências e

concretudes imbricadas no mundo trans. Sua expressão: “Nos deixe viver”, apresentada no

item 3.6 desta pesquisa, ilustra seu discurso como um pedido de socorro.

[...] eu consigo passar bem despercebida diante do olhar crítico da

sociedade, ainda, que é um olhar bem crítico mesmo, que dentro do TransCidadania

eu percebi a barbaridade das coisas. Eu percebi que transexual é assassinado, percebi

muitas coisas, sabe?! (chorando) E eu pude me colocar diante dessa situação e ver

que eu estou vivendo maquiada, não sei se é bem maquiada para a sociedade, mas eu

tenho, assim, esse lado que me protege ainda de muitas coisas cruéis que acontecem

por aí, porque... eu acho que eu não aguentaria essa barra, sabe?! De ser cuspida,

apedrejada, é bem complicado. (Safira)133

131 Trecho de entrevista de campo. 132 Trecho de entrevista de campo. 133 Trecho de entrevista de campo.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

“O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de

dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos

apoderar.”

Michel Foucault.

O Programa TransCidadania constitui um avanço sociopolítico no cenário nacional.

Sua proposta inovadora tornou-se uma vitrine nacional e internacional ao pensar a educação

de um ângulo emancipador, isto é, rompendo com concepções monoteístas que fazem do

discurso de capacitação uma doutrina de domesticação do colonizador, num cenário onde o

neoliberalismo naturaliza o discurso microempresário e torna a luta individualizada. Sua

filosofia não se reduz às políticas afirmativas que ressaltam a prerrogativa naturalizada da

condição de selvageria e subalternidade de grupos socialmente desfavorecidos. Ao contrário,

o Programa pensa a cidadania como o ponto de partida de uma sociedade mais justa e

igualitária ao possibilitar – a partir da educação humanitária – a consciência cidadã e,

portanto, de escolha de travestis, transexuais e transgêneros paulistas em situação de

vulnerabilidade social.

Considero ter demonstrado, ao longo dos capítulos, que o Programa aparece como o

possibilitador de reconhecimento junto à humanidade dessa população. Num cenário onde ela

é concebida pela medicina como doença, pela interface jurídica como erro social de pessoa,

pela escola e sociedade como transgressora, o Programa mostra-se como resgatador da

cidadania da qual ela foi repelida por inúmeros paradoxos que cabem dentre os nichos da

educação e do trabalho. Minha postura, enquanto pesquisadora frente ao paradoxo trans, o

reconhece como a defesa pela igualdade através das diferenças. Diferenças aqui não são de

ordem ontológica, mas sim um crivo positivo à diversidade sociocultural. Desse modo, o

paradoxo constituiu uma das estruturas centrais desta pesquisa. Não se tratou aqui

simplesmente de contradições. Mas de reconhecer o entrelugar de diálogo suscetível às

ciências humanas. O paradoxo fez-se presente ao reivindicar a igualdade através da diferença,

bem como na estrutura sistêmica do cenário laboral. Reivindicou-se o acesso ao trabalho,

reconhecendo-o como atividade central da sociedade, no entanto, sem perder de vista que,

embora o trabalho seja fonte de reconhecimento e realização, ele também constitui fonte de

exploração.

A invisibilidade dessa população constituiu outro grande paradoxo. Se, por um lado,

não se nota sua existência e representatividade nos setores de políticas públicas, por outro, ela

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165

é bastante visível nas estatísticas de violência. Ela é visivelmente invisível e, no entanto,

resistente.

O paradoxo se fez presente, ainda, no papel da academia. Dentre os desafios desta

jornada, busquei assumir a postura da denúncia social ao evidenciar o lugar da população

trans, acompanhada do zelo de não reproduzir, no processo de fazer ciência, uma legitimação

da margem, afirmando mais uma vez essa população como subalterna. Por essas e outras

razões, busquei, enquanto pesquisadora, a atitude ética e política de caracterizar minhas

sujeitas de pesquisa a partir de um Programa que busca engajar o empoderamento e a

emancipação implicados nesses processos. Essa atitude ética e política também pode ser

expressa no fato de que a leitura desta pesquisa não acompanhou uma descrição identitária e

estrutural das transgeneridades, travestilidades e sexualidades trans. O fato foi

estrategicamente pensado para possibilitar a consciência da heteronormatividade naturalizada,

a partir do desconforto de um silêncio no que tange àquilo do que se compõe a identidade

trans. Já que a academia tem desempenhado massivamente esse papel, busquei apresentar a

população trans e caracterizá-la enquanto movimento social e enquanto resistência, isto é,

enquanto lugar social, negando-me a escrever sobre uma cosmogonia das configurações

estruturais e biologizantes de gêneros e genitálias que acompanham o discurso sensacionalista

do que é ser travesti ou transexual.

Em última análise, considero que a esta pesquisa se resguarda o papel cidadão de

registro dessa importante iniciativa no setor público. As divergências ideológicas da política

partidária brasileira explicitam-se eminentemente quando há quem defenda e quem precarize

os direitos e acessos à cidadania de populações vulneráveis. O atual cenário sociopolítico

registra um retrocesso em série. É possível observar um efeito dominó no cenário econômico

do país, quando grandes gestores assumem o papel de colonizadores pespegos e buscam a

precarização em massa e o roubo à cidadania da população geral. Do ponto de vista cidadão,

cuja perspectiva educacional e humanitária traduz-se num sentido lato, seria incabível um

prefeito ser rechaçado por se atentar às demandas da população trans. Em contrapartida, as

atuais configurações sociais mostram que defender os direitos humanos, em nosso país,

reduziu-se à psicopatologização de ideais de esquerda. Esquece-se dos princípios

constitucionais e alimenta-se a fragmentação do setor público a partir de conflitos motrizes de

concepções partidárias.

Os grandes desmontes relativos à reforma trabalhista e à previdência social, bem como

a especulação imobiliária, são eventos intrínsecos a essa discussão. A lógica privatista e de

desmonte às políticas de inserção já atingiu o Programa TransCidadania no segundo semestre

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deste ano. A atual gestão política investe num desmanche, reduzindo pela metade o número

de vagas e o valor da bolsa. Sobre esse desmanche, pronuncia-se uma das usuárias: “A gente

sempre deixou claro que não adiantava ter programas por um período de dois anos e depois

colocar as pessoas nas ruas de novo”134. A esse respeito, deve ser considerada a

irresponsabilidade social que investe na violência de Estado. A responsabilidade de qualquer

insucesso do Programa TransCidadania, daí em diante, deve ser atribuída tão somente à

gestão interferente na estrutura de sua política pública, o que nesse caso configura uma

violência multiplicada. Primeiro porque se fala de uma população multiplamente violentada,

segundo porque se reverbera em grande crueldade administrativa possibilitar expectativas

cidadãs e castrá-las logo em seguida em detrimento de elites políticas.

Outro fator de relevância, apontado por esta pesquisa, diz respeito ao cenário

educacional do país. Nesse sentido, conforme o discutido neste estudo, a ideologia do

Programa destaca-se por sua constituição marxista e freireana. Seu projeto político é pensado

a partir dos ideais de mais-valia, de consciência emancipatória e, portanto, de escolha. Assim

sendo, os preceitos de cidadania são previamente valorizados num Programa que se baseia na

legislação mor. A Carta Magna e a Constituição Federal de 1988 configuram os combustíveis

motrizes de uma luta travada contra as vulnerabilidades, injustiças e desigualdades sociais.

Em última instância, esta pesquisa denuncia a emergência da reconstrução dos modelos

socioeducativos nacionais. É urgente repensar a escola e a educação brasileira. Nesse sentido,

a própria existência do Programa TransCidadania é um paradoxo:é um brinde e uma mazela.

Se, por um lado, ele se dedica a possibilitar e devolver a cidadania de um grupo

“invisibilizado”, por outro, sua necessidade aponta com veemência para as falhas do sistema

educacional. Trata-se de um sistema que reproduz estruturas hegemônicas e inviabiliza

qualquer vértice diverso.

As próprias cotas encaixam-se na mesma lógica paradoxal. Se, por um lado, devem ser

defendidas em prol da tentativa de garantir que haja a adimplência de um estrondoso ônus

social, por outro, reafirmam o manquetear das políticas inclusivas, uma vez que esse ciclo

vicioso nunca se atém à lógica de prevenção, mas sempre de promoção. É preciso modificar a

estrutura para que não se trate pontual e simplesmente as demandas isoladas. Desse modo, a

pesquisa evidenciou que é necessário repensar a estrutura educacional brasileira a fim de que

não haja a necessidade de Programas como o TransCidadania numa função emergencial de

dar conta de uma demanda falha.

134 Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2017/06/28/ativistas-denunciam-corte-em-programas-

destinados-a-pessoas-trans-na-gestao-doria/>. Acesso em: 30 jun. 2017.

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167

Esta pesquisa alinha-se, portanto, ao compromisso da construção de uma Psicologia

Social que contribua com o processo de transformação do país, buscando por uma sociedade

mais justa e menos desigual. É ainda consonante com o manifesto à PEC 55, mobilizado pela

Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO): “A pobreza e a ausência de direitos

e garantias fundamentais fere a dignidade humana, e reduzir políticas públicas essenciais é um

ato criminoso, pois aumenta o abismo histórico entre a elite e a população em geral”135.

Desse modo, esta pesquisa assim evidencia sua hipótese: não há cidadania sem

trabalho. Cidadania que, aqui, ganha o recorte trabalhista, mas que se aponta como ameaçada

por diversas negligências sociopolíticas. Lutar pelos direitos da comunidade trans requer um

cenário social isento de pautas autoritárias e lógicas privatistas que engessam e retrocedem os

direitos humanos. Esta pesquisa adota, portanto, uma posição ética e política em relação a

esses retrocessos que privilegiam elites econômicas ao promover explorações com base em

violência de Estado, transfobia, precarização e desmonte de políticas públicas. Parafraseando

a professora e filósofa socialista estadunidense Angela Yvonne Davis, “o racismo não pode

ser separado do capitalismo”, do mesmo modo que também não o pode a transfobia e diversas

outras estruturas hegemônicas segregacionistas.

Considero a população trans de grande resistência. Em função de existir, há que se

resistir! Há que se resistir ao sexismo embrionário; há que se resistir aos binarismos; há que se

resistir – muitas vezes – à expulsão familiar; há que se resistir ao repelão escolar; há que se

resistir à violência verbal, física, moral, simbólica, política e de Estado; há que se resistir ao

machismo que a compra de noite e a assola de dia; há que se resistir aos retrocessos expressos

pelos setores públicos; há que se resistir aos que lutam contra os direitos humanos; há que se

resistir ao fundamentalismo religioso que se ocupa em ser representado massivamente num

país teoricamente laico; há que se resistir a todas as vozes que gritam sua subalternidade; há

que se resistir à academia fetichista; há que se resistir ao labirinto da prostituição escrava; há

que se resistir a todas as mazelas estrategicamente geridas em contrapartida de sua existência

e resistência. Há que se resistir! Resistamos!

135 Manifesto do XIII Encontro da ABRAPSO.

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ANEXOS

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Figura 17.

Termo de Consentimento para a realização da pesquisa e das entrevistas com travestis e transexuais.

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Figura 18.

Primeira parte da Proposta de Plano de Aula-Seminário-Atividade, com cronograma, objetivos a serem

trabalhados e compartilhamento das ideias entre as participantes.

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Figura 19.

Segunda parte da Proposta de Plano de Aula-Seminário-Atividade, com cronograma, objetivos a serem

trabalhados e compartilhamento das ideias entre as participantes.

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180

Figura 20.

Primeira parte do Parecer Consubstanciado do Comitê de Ética da PUCSP.

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Figura 21.

Segunda parte do Parecer Consubstanciado do Comitê de Ética da PUCSP.

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182

Figura 22.

Terceira parte do Parecer Consubstanciado do Comitê de Ética da PUCSP.

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183

Figura 23.

Quarta parte do Parecer Consubstanciado do Comitê de Ética da PUCSP.

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184

Figura 24.

Bandeira representativa do Movimento Social Trans. De acordo com ativistas, a bandeira foi criada em

agosto de 1999, por Monica Helms, e tem cinco listras horizontais. São duas listras azuis, duas listras cor-

de-rosa e uma faixa central branca. Sua história está disponível em:

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jun. 2017.

Figura 25.

Símbolo específico do movimento Trans. Disponível em:

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visibilidade-trans.html#.WUrEKiPR_IU>. Acesso em: 21 jun. 2017.

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Figura 26.

Outros símbolos relativos a gêneros. Disponível em:

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generos-e-um-no-na.html>. Acesso em: 21 jun. 2017.