De Gados e Homens antes de ser degolado. Não sente orgulho do trabalho que executa, mas se alguém...

Preview:

Citation preview

DADOS DECOPYRIGHT

Sobre a obra:

A presente obra é disponibilizadapela equipe Le Livros e seusdiversos parceiros, com oobjetivo de oferecer conteúdopara uso parcial em pesquisas eestudos acadêmicos, bem como osimples teste da qualidade daobra, com o fim exclusivo de

compra futura.

É expressamente proibida etotalmente repudiável a venda,aluguel, ou quaisquer usocomercial do presente conteúdo

Sobre nós:

O Le Livros e seus parceirosdisponibilizam conteúdo dedominio publico e propriedadeintelectual de forma totalmentegratuita, por acreditar que oconhecimento e a educaçãodevem ser acessíveis e livres atoda e qualquer pessoa. Você

pode encontrar mais obras emnosso site: LeLivros.site ou emqualquer um dos sites parceirosapresentados neste link.

"Quando o mundo estiver unidona busca do conhecimento, e

não mais lutando por dinheiro epoder, então nossa sociedade

poderá enfim evoluir a um novonível."

1 edição

2013

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NAPUBLICAÇÃO

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORESDE LIVROS, RJ

M184dMaia, Ana Paula, 1977-

De gados e homens [recursoeletrônico] / Ana Paula Maia. - 1. ed.- Rio de Janeiro : Record, 2013.

recurso digitalFormato: ePubRequisitos do sistema: Adobe

Digital EditionsModo de acesso: World Wide

WebISBN 978-85-01-10110-5 (recurso

eletrônico) 1. Romance brasileiro. 2. Livros

eletrônicos. I. Título.13-06055

CDD: 869.93CDU: 821.134.3(81)-3

Copyright © by Ana Paula Maia, 2013

Capa: Retina 78

Texto revisado segundo o novo AcordoOrtográfico da Língua Portuguesa.

Todos os direitos reservados. Proibida areprodução, no todo ou em parte, através dequaisquer meios. Os direitos morais doautor foram assegurados.

Editoração eletrônica da versão impressa:Abreu’s System

Direitos exclusivos de publicação em línguaportuguesa somente para o Brasiladquiridos pelaEDITORA RECORD LTDA.Rua Argentina, 171 – Rio de Janeiro, RJ –20921-380 – Tel.: 2585-2000,que se reserva a propriedade literária destatradução.Produzido no Brasil

ISBN 978-85-01-10110-5

Seja um leitor preferencial Record.Cadastre-se e receba informações sobrenossos lançamentos e nossas promoções.

Atendimento e venda direta ao leitor:

mdireto@record.com.br ou (21) 2585-2002.

À minha querida avó, MariaMaia

“es ist ja bloß ein Tier... nurein Tier.”

(É apenas um animal... somenteum animal.)

Theodor Adorno

“Porque a vida da carne estáno sangue.”

Levítico 17:11

Capítulo 1

Edgar Wilson está apoiado nobatente da porta do escritório doseu patrão, o fazendeiro Milo,que conclui um telefonema aosberros, já que desde cedoaprendeu a berrar, quando soltono pasto, ainda bem menino,disputava com o bezerro a teta davaca. O escritório não passa deum cômodo espremido ao lado

do setor de bucharia domatadouro.

— O senhor queria falarcomigo?

— Quero sim, Edgar.— Pois não — diz Edgar

Wilson, que tira o boné dacabeça e segura-o contra o peitorespeitosamente ao entrar noescritório.

— Preciso que você vá até afábrica de hambúrguer fazer umacobrança.

— Seu Milo, quem vai abatero gado?

Milo coça a cabeça,enterrando os dedos nos fioscrespos e embaraçados.

— Meu pessoal tá curto,Edgar. E na sua função só tem oLuiz, mas ele agora tásupervisionando a linha de abate.Deixa eu pensar...

Edgar Wilson permanece emsilêncio enquanto aguarda adecisão do patrão. Em sua mente

não passa nenhuma ideia, poisnão é seu costume buscarsoluções, a não ser que sejasolicitado.

— Hoje não tem nenhumacarga grande pra abater —comenta Milo, pensativo.

Também não é costume deEdgar Wilson deixar de cumpriro que pedem. Milo é um homemtrabalhador, que passa quatorzehoras por dia envolvido nasatividades do matadouro. É um

patrão justo aos olhos de Edgar.— O Zeca já abateu algumas

vezes, né? — pergunta Milo.— É, abateu. Mas ele deixa o

bicho acordado ainda. O boisofre muito, Seu Milo. O Zecanão tem uma pegada boa não.

Milo olha a planilha defuncionários e suas respectivasfunções. Pensa um pouco.

— O Zeca tá na triparia agora,mas só tenho ele mesmo —resmunga para si.

— Senhor, ele deixa o boiacordado.

— Você já disse isso, Edgar. Oque eu posso fazer? Na degolaele vai morrer mesmo —responde Milo, alterado.

Edgar permaneceimperturbável, com o olharcinzento sobre o patrão. Otelefone toca. Milo atende e pedeum instante.

— Edgar, aqui está a ordemde cobrança. O endereço tá

escrito aí. Pega as chaves dacaminhonete com o Tonho emanda o Zeca vir até aqui falarcomigo.

Edgar Wilson acena com acabeça e apanha a ordem decobrança. Milo volta ao telefone.Edgar hesita pouco antes de sair,mas atravessa a porta doescritório e fecha-a ao passar.Segue por um corredor fétido emal iluminado e ao virar à direitaentra no boxe de atordoamento,

local em que trabalha muitashoras por dia. A fila de bois evacas é sempre longa. Umfuncionário abre a portinhola e oboi que já passou pela inspeção epelo banho entra devagar,desconfiado, olhando ao redor.Edgar apanha a marreta. O boicaminha até bem perto dele.Edgar olha nos olhos do animal eacaricia a sua fronte. O boi bateuma das patas, abana o rabo ebufa. Edgar cicia e o animal

abranda seus movimentos. Háalgo nesse cicio que deixa o gadosonolento, intimamente ligado aEdgar Wilson, e dessa formaestabelecem confiança mútua.Com o polegar lambuzado de cal,faz o sinal da cruz entre os olhosdo ruminante e se afasta doispassos para trás. É o seu ritualcomo atordoador. Suspende amarreta e acerta a fronte comprecisão, provocando umdesmaio causado por uma

hemorragia cerebral. O boi caídono chão sofre de breves espasmosaté se aquietar. Não haverásofrimento, ele acredita. Agora obicho descansa sereno,inconsciente, enquanto é levadopara a etapa seguinte por outrofuncionário, que o suspenderá decabeça para baixo e o degolará.

Edgar sinaliza para que ofuncionário não deixe o boiseguinte entrar no boxe. Vai atéo setor de triparia e chama por

Zeca, que imediatamente acatasua ordem. É com o coraçãopesaroso que Edgar vê, minutosdepois, o rapaz, sorridente, seguiraté o boxe de atordoamento aosair da sala de Milo. Zeca é umgaroto de dezoito anos,perturbado. Gosta de ver oanimal sofrer. Gosta de matar. Seprepara para a tarefa quandoEdgar entra no boxe e o adverte:

— Zeca, coloca o boi pradormir, entendeu? Não deixa o

bicho sofrer.Zeca apanha a marreta, faz

sinal para que o funcionáriodeixe o boi entrar. Quando oanimal fica frente a frente comele, a marretada propositalmentenão é certeira, e o boi, gemendo,caído no chão, se debate emespasmos agonizantes. Zecasuspende a marreta e arrebenta acabeça do animal com duaspancadas seguidas, fazendo osangue respingar em seu rosto.

— Assim, Edgar? Ele tádormindo agora, não tá? — Zecapisca diversas vezes os olhos comforça e puxa a saliva entre osdentes, ruidosamente.

Edgar Wilson não responde àafronta de Zeca. Vira de costas ecaminha até o banheiro, ondetroca de roupa. Veste uma calçajeans e uma camisa quadriculadade botões. Após apanhar aschaves com Tonho, segue até acaminhonete e lamenta o rádio

quebrado do carro.Desde que abandonou o

trabalho nas minas de carvão,tudo o que conseguiu foitrabalhar com gado, mas quermesmo é lidar com porcos.Sempre apreciou os suínos.Espera em breve conseguir umavaga num grande criadouro deporcos que fica a poucosquilômetros de onde trabalha.

Seu golpe preciso é um talentoraro que carrega em si uma

ciência oculta em lidar com osruminantes. Se a pancada nafronte for muito forte, o animalmorre e a carne endurece. Se oanimal sentir medo, o nível depH no sangue é elevado, o quedeixa a carne com um gostoruim. Alguns abatedores não seimportam. O que Edgar Wilsonfaz é encomendar a alma de cadaanimal que abate e fazê-lodormir antes de ser degolado.Não sente orgulho do trabalho

que executa, mas se alguém devefazê-lo que seja ele, que tempiedade dos irracionais.

Depois de esquartejados, sãoenviados para duas fábricas dehambúrguer e distribuídos paraalguns frigoríficos, que mandamcaminhões buscar os lotes decarne. Edgar Wilson nuncacomeu um hambúrguer, massabe que a carne é moída,prensada e achatada em formatode disco. Depois de frita, é

colocada entre duas fatias de pãoredondo recheado com folhas dealface, tomate e molho. O preçode um hambúrguer equivale adez vacas abatidas por Edgar, jáque recebe centavos por cadaanimal que derruba. Por diaprecisa matar mais de cem vacase bois e trabalha seis dias nasemana, folgando apenas nodomingo. A produção nomatadouro está se intensificandoe será necessário contratar mais

um atordoador.Edgar Wilson tem que dirigir

por quase uma hora por umaestrada que margeia o rio. Énesse rio que todos osmatadouros da região lançam astoneladas de litros de sangue eresíduos de vísceras de gado. Orio corre para o mar, assim comoo sangue das bestas do campo.

À beira da estrada, ErasmoWagner está apoiado numabicicleta, que tem o pneu

dianteiro arriado. Vez ou outrafaz sinal com o dedo polegar,mas ainda não conseguiunenhuma carona. A maioria dosveículos que trafegam pelaestrada é de caminhões pesados ealgumas carroças puxadas porcavalo. Na maior parte do tempoé uma estrada deserta, de curvassinuosas e asfalto irregular.

Edgar Wilson para acaminhonete no acostamento.Erasmo Wagner coloca a bicicleta

na caçamba do veículo, abre aporta do carona e senta-se aolado de Edgar, visivelmenteagradecido.

— Obrigado por parar. Opneu furou.

— Tá indo pra onde?— Trabalho na construção da

nova fábrica de hambúrguer.Edgar Wilson estica a mão

direita em cumprimento. Ohomem responde ao gesto:

— Erasmo Wagner. Às suas

ordens.— Eu trabalho lá no

matadouro do seu Milo — dizEdgar Wilson.

— Sei onde é. Você faz o quêlá?

— Sou o atordoador.Erasmo Wagner arria a outra

metade da janela e apoia o braçopara fora. Mais alguns metros,embalado pelo vento morno eruidoso, ele se lamenta.

— Muita gente já morreu

aqui.A sequência de pequenas

cruzes à beira da estrada éinterminável. A morte tange todoo perímetro percorrido, tanto naestrada quanto no riocontaminado que corta a região.

Edgar Wilson acende umcigarro e oferece outro a ErasmoWagner. As nuvens ajuntam-seencobrindo o céu, e mesmo coma nebulosidade não há indício dechuva.

— Quando a fábrica ficapronta? — pergunta EdgarWilson.

— Se a obra não atrasar mais,acho que em uns dois ou trêsmeses.

— Essa vai ser bem maior quea outra. Você trabalhou naconstrução da outra?

— Não. Naquela época eutava cumprindo pena. Fui soltofaz um ano e pouco.

— Ficou muito tempo preso?

— Mais do que eu pretendia.Mas acertei minha dívida e estoulivre pra morrer até mesmo nestaestrada. O que é bem melhor doque morrer na cadeia.

— Morrer em liberdade émorrer com sorte.

Na estrada há trechos emaclive e a caminhonete perdeforça, exigindo uma troca demarcha num dificultoso engatedo câmbio. Do lado esquerdo dapista um pasto pequeno acomoda

algumas cabeças de gado. Vacasruminam e descansam entremontanhosos e exuberantescupinzeiros edificados sobre agrama em meio ao pasto.

— É bem provável que acriação de gado por esta regiãoaumente — comenta ErasmoWagner.

— É, com mais uma fábrica dehambúrguer, vão precisar demais carne. O trabalho lá nomatadouro vai aumentar

também.— Quantas cabeças você abate

por dia?— Depende do lote. Às vezes

sessenta, noventa. Já cheguei aabater cento e setenta cabeçasnum dia. No fim da noite eu nãosentia mais o meu braço.

— É... a gente sente o cheiroda morte em todo lugar.

Edgar Wilson concorda comum aceno da cabeça.

— Gosta do seu trabalho lá no

matadouro?— Gosto. Às vezes não quero

lidar tanto assim com o sangue,com a morte, mas... é o que eufaço.

Erasmo Wagner tragalongamente o cigarro e expele afumaça pela janela. O ventomorno e cortante a faz dissipar,desmanchando seus rastros.

— Alguém precisa fazer otrabalho sujo. O trabalho sujodos outros. Ninguém quer fazer

esse tipo de coisa. Pra isso Deuscoloca no mundo tipos que nemeu e você.

Edgar Wilson permaneceolhando para a frente o maisdistante que seus olhosenxergam, para a linha fantasmaque divide a estrada do céu.Apenas uma linha, que jamaispoderá ser alcançada.

— O pior na hora de abater ogado é olhar para os olhos dele.

— E o que tem neles?

— Não sei. Não dá pra vernada no fundo do olho do boi.— Edgar Wilson faz uma pausainquietante. — Eu fico olhando,tentando enxergar alguma coisa,mas não dá pra ver nada.

Edgar balança a cabeça e dáde ombros. Joga a ponta docigarro pela janela e expele oresto da fumaça que tem nospulmões.

— Por que você foi preso?— Matei um velho

desgraçado. Foi um desgraçado avida toda.

Edgar Wilson consterna-sepor instantes. O silêncio recobresuas cabeças. São confissões desangue e morte para os que jáestão condenados. Há outrosdeles na beira da mesma estrada,sobre o solo e debaixo dele. Omurmúrio das lamentações dosque jamais regressaram está ali,ecoando nas pedras, porque,quando não há quem rogue, as

pedras clamam.Pelo resto da viagem ficam em

silêncio. Erasmo Wagneragradece pela segunda vez acarona e, empurrando a bicicletacom pneu furado, caminha emdireção à fábrica.

Enquanto segue viagem,Edgar Wilson mantém seupensamento fixo na escuridãodos olhos dos ruminantes,esforçando-se para desenhar umleve traço que o intente a

desvendá-los. Nem todo oesforço da sua imaginação écapaz de lançar luz nas trevas;nem naquelas produzidas porolhos insondáveis, nem naprópria treva que encobre a suamaldade.

***

Ao chegar ao estacionamento dafábrica de hambúrguer, EdgarWilson identifica-se para o

segurança. Após se comunicarcom outro funcionário pelorádio, o segurança abre o portãoe deseja uma boa tarde a Edgar,que responde ao cumprimento.

Entre dois caminhões novos,estaciona a velha caminhonetebege enferrujada. Ajeita a blusapara dentro da calça, passa umpente nos cabelos claros eondulados, apanha a ordem decobrança e entra na fábrica. Umamulher o recepciona com um

sorriso forçado e o leva até umescritório limpo, arejado eiluminado. Edgar acomoda-seem uma poltrona de couro eaguarda ser atendido.

Dez minutos depois, umhomem de terno entra noescritório e senta-se à mesa.Edgar se levanta e, diante dohomem, que parece estar muitoocupado e aborrecido, estende aordem de cobrança.

— O Seu Milo me mandou

aqui.O homem olha para ele por

alguns segundos, de cima abaixo. Aperta seguidamente obotão no topo de uma canetalustrosa, e o barulhinho irritanteparece confortável para ele.

— Seu Milo?— O dono do matadouro

Touro do Milo.— Ah, sim, Seu Milo... nosso

fornecedor. — O homem fazuma pausa. — Então, em que

posso ajudar?— Tenho uma ordem de

cobrança.— Você é o contador dele?— Não senhor, eu sou o

atordoador.Federico é o nome do

homem. Edgar Wilson consegueler no crachá preso no bolso dopaletó, à altura do peito.

— Como? — franze o cenho.— O atordoador.Federico acha melhor

interromper a conversa. Imaginao trabalho que o homem diantedele faz e não gosta de pensarnisso. Olha para o resto do seualmoço sobre a mesa: umhambúrguer com molho demostarda escura levementeapimentada e picles.

— Me dá aqui — diz,acenando para a ordem decobrança na mão de Edgar. Eleverifica o documento. Liga paraoutro setor, fala baixo e somente

algumas palavras soaminteligíveis. Desliga o telefone,ajeita a gravata e diz:

— Vou lhe dar um cheque,tudo bem?

Edgar acena positivamente.— Foi uma falha aqui. Peça

desculpas ao senhor Milo poresse pequeno atraso. E diga a eleque apreciamos muito a carneque manda aqui pra gente. Sigapelo corredor, à esquerda. Vocêvai encontrar uma sala com uma

placa escrita financeiro. É sóentregar essa ordem de cobrançaa uma mocinha que está lheaguardando.

— Sim senhor.Pelo caminho, Edgar Wilson

cruza com homens vestidos emmacacões brancos, em totalassepsia. Nunca esteve num localtão limpo como esse. Muitodiferente do matadouro ondetrabalha e do alojamento ondemora, local em que permanece

confinado com diversostrabalhadores. Ambos osconfinamentos, de gado e dehomens, estão lado a lado, e ocheiro, por vezes, os assemelham.Somente as vozes de um lado eos mugidos do outro é quedistinguem homens eruminantes.

Na sala do financeiro, umamulher baixinha e de óculosentrega a ele um cheque nominale apanha a ordem de cobrança.

Ele enfia o cheque dentro dobolso e caminha para a saída.Um carregamento dehambúrgueres está sendocolocado dentro de um doscaminhões. Acende um cigarro e,apoiado na caminhonete, observaos homens trabalhando. Umadas caixas de papelão cai de umapilha alta e espatifa-se no chão.Edgar agacha-se ao lado da caixae observa o conteúdo. Parecesaboroso. Um dos carregadores

oferece uma caixa dehambúrguer a ele, que agradecee entra na caminhonete.

Ao retornar, já é fim de tarde,o sol está se pondo entre nuvensgranuladas e a tonalidade docrepúsculo assemelha-se a umaromã partida ao meio. As nuvenshaviam se dissipado e o reflexodo pôr do sol acende os olhos deEdgar Wilson, que, mesmo emdias ensolarados, insistem empermanecer cinza.

Estaciona a caminhonete nopátio do matadouro. Oexpediente de trabalho terminoue restam apenas os funcionáriosque concluem a limpeza dolugar. Edgar Wilson entra noescritório de Milo e entrega a eleo cheque. No boxe deatordoamento repara naquantidade excessiva de sangue eem pedaços de crânio esfacelado.

É hora do canto das cigarras.A noite se aproxima, envolvendo

o firmamento e engolindo ocrepúsculo. Algumas estrelas jáapareceram. Edgar Wilson entrano banheiro do alojamento.Espera que reste apenas o Zecano banho. Com a marreta, suaferramenta de trabalho, acertaprecisamente a fronte do rapaz,que cai no chão em espasmosviolentos e geme baixinho. EdgarWilson faz o sinal da cruz antesde suspender o corpo morto deZeca e o enrolar num cobertor.

Nenhuma gota de sangue foiderramada. Seu trabalho é limpo.No fundo do rio, com restos desangue e vísceras de gado, é ondedeixa o corpo de Zeca, que, como fluxo das águas, assim como orio, também seguirá para o mar.

Cumprido seu dever, ele vaipara a cozinha do alojamento efrita os hambúrgueres. Com oscolegas comem toda a caixa,admirados. Assim, redondo etemperado, nem parece ter sido

um boi. Não se pode vislumbraro horror desmedido que há portrás de algo tão saboroso edelicado.

Capítulo 2

O homem prende a respiraçãoe mergulha a cabeça em umtonel de água. Os outros aoredor, em princípio, fazem piada.Riem. Quando passa um minuto,silenciam gradativamente, atéque sobre apenas o zumbido dasmoscas graúdas que sealimentam dos restos do gadomorto. O velho Emetério,

funcionário mais antigo domatadouro, com sua bocamurcha e impregnada peloaroma do fumo de rolo quequeima diariamente, arregala osolhos trêmulos e amareladosquando o cronômetro que segurapassa dos dois minutos.Dezenove segundos depois,Burunga suspende a cabeça, roxopela falta de ar. Solta umagargalhada que chacoalha suabarriga flácida e pesada. Os

homens aplaudem e assobiam.Na véspera, ele tinha conseguidoficar um minuto e trinta e quatrosegundos. Burunga recolhe odinheiro das apostas, algunstrocados que os homens jogaramdentro do seu chapéu de palha, esuspende as calças queconstantemente escorregam pelasnádegas. Confere o total do queconseguiu lucrar com as apostase, sorrindo, enfia o dinheiro nobolso.

— Filho da mãe. Conseguiude novo — murmura o velhoEmetério em seu tom pigarreado,como se sua garganta fossearranhada. — Que patife!

— Eu disse que ele iaconseguir — diz Helmuth, comos braços cruzados, sentado naporta da caçamba de umacaminhonete que não funcionahá mais de 10 anos.

— Mesmo assim apostoucontra — resmunga Emetério.

— Mas um dia, velho, ele nãovai subir. — Helmuth pisca oolho e estala a língua.

Depois da sangria e da remoçãoda pele, o gado, suspenso porcorrentes, é empurrado por umacarretilha até chegar a Helmuth,o desmembrador, que usa umamotosserra para remover acabeça e partir a carcaça ao meio.É o único nesse procedimento, echega a desmanchar por dia duas

centenas de bois e vacas.Costuma usar um capacete pretoe luvas para se proteger. É umaatividade que requer técnica eatenção. Quando trabalha,Helmuth permanece absorto, eseus olhos de peixe mortotornam-se ainda maisapalermados, porém, assim comoos peixes mortos, seus olhosnunca deixam de brilhar. Sãonegros e reluzem como olhos deruminantes. É bom em

desmontar, seja o motor de umcarro, um boi, uma onça ou umacasa, pois é capaz de demolir atéparedes a golpes de martelo empoucas horas.

Quando descobriu que eratraído pela mulher e que o filhoque criava era filho de seu irmão,não se embebedou, não tirousatisfações, não fez ameaças oumesmo intentou matar para lavara honra.

Aproveitou a ausência da

mulher, que havia ido visitar ospais em outra cidade, e passoutoda a madrugada esmurrandoas paredes da casa com umamarreta. A casa em que moravacom Jaqueline estava reformadae com mobília nova. Ela mesma,com o dinheiro que ganhoutrabalhando de empregadadoméstica na casa de umafamília, foi quem investiu nareforma e na compra do novomobiliário. O dinheiro de

Helmuth era para as despesascotidianas. Ao se deparar com acasa dos seus sonhos, que, apesarde simples, era justamente dotamanho que o seu coraçãoalmejava, pediu demissão dotrabalho, para se dedicar aopróprio lar.

Helmuth derrubou todas asparedes da casa, arrebentou comtoda a louça do banheiro, a piade mármore da cozinha,desmontou a televisão, o rádio e

a geladeira. As camas e o jogo desofá rosa-salmão ele incendiouno quintal, juntamente com oguarda-roupa desmontado. Até osecador de cabelos eledesmontou, e ao abri-lo removeutufos de cabelo da mulher queentupiam a saída de ar. Ajuntouseus poucos pertences e foiembora quando amanheceu.

Passou a desmontar motoresde carros numa oficina mecânicaassim que chegou numa outra

cidade, e logo depois começou aabater bois num matadouro, atéque soube da vaga paradesmembrá-los. E foi assim quechegou ao matadouro do SeuMilo, que, impressionado comsua habilidade, o contratouimediatamente e permitiu quehabitasse o alojamento local.

O velho Emetério, aindaintrigado com o feito deBurunga, questiona EdgarWilson:

— Eu não apostei nada, velho— responde Edgar.

Emetério solta uns grunhidos,pigarreia e cospe no chão.

— Patife! É melhor a gentevoltar pro trabalho. O horário dealmoço já terminou. Tem umatonelada de restos me esperandolá na graxaria.

— Velho, você precisa seaposentar — diz Helmuth.

Emetério dá de ombros ecaminha vagaroso em direção à

porta dos fundos, por onde ele etodos os outros homens, comexceção de Edgar Wilson, entrampara retornar ao trabalho. Ovelho segue para o setor degraxaria, local onde seconcentram os produtosprovenientes dos setores deabate, miúdos, bucharia, tripariae desossa, e que não servem parao consumo humano. É onde seprocessam os resíduos e seproduzem farinha de osso e sebo.

Todos os dias agradece a Deuspor permitirem trabalhar em talfunção, pois mesmo velho aindagoza de certo vigor. Restam-lheapenas quatro dentes na boca,mas isso não faz nenhumadiferença quando executa as suasfunções. É tão capaz quanto erahá trinta anos. Porém, paraqualquer pessoa do lado de foradaquele matadouro, ele é tãoimprestável quanto os restos comque lida.

Edgar Wilson acende umcigarro e decide permanecer maiscinco minutos ali, agora sozinhoe em silêncio. De onde estáobserva muitas vacas pastandoem currais abertos, delimitadospor cercas de arame. Caminhaaté um dos currais e constata quealgumas cercas já não possuem atensão que deveriam.

Nos fins de tarde, quando ocrepúsculo abre fendasavermelhadas no céu, como

fissuras em um vulcão, osruminantes afastam-se daspastagens e vão se recolher empequenos grupos debaixo dealguma árvore. Mas hoje o diaestá nublado e o céu, em vez deuma tonalidade sangrenta, teráum cinza escuro margeando suasextremidades.

Edgar gosta de observar osanimais confinados. Sozinhos ouem pequenos grupos, elesmantêm o mesmo ritmo quando

mastigam ou abanam os rabos.Os bovinos, todos eles, quandopastam se orientam para o norte,pois são capazes de sentir ocampo magnético terrestre.Poucos sabem o motivo disso,mas os que lidam com os bovinosdiariamente sabem que elesmantêm um código decomportamento e quepermanecem na mesma direçãoao pastar. Esse equilíbrio não sevê nos homens, em nenhum

deles.Uma vaca aproxima-se de

Edgar. Vagarosa, ela move seusflancos majestosamenteenquanto mastiga um punhadode mato. Ele acaricia a cabeça doanimal. A vaca possui umamancha marrom na testa, emforma de gota. Ele certamente selembrará dela quando estiveremnovamente cara a cara.

Termina seu cigarro e vira-separa retornar ao boxe de

atordoamento. Suspira, pesaroso.É seu trabalho, o único que omantém vivo. Olha para trás. Osruminantes que pastamsossegados, que permanecem emgrupo ou sozinhos, logo estaráfrente a frente com todos eles;ele, que é a própria bestaassassina.

Ao cair da noite, o negrumerecolhe em si todos os vestígiosdo dia. Apenas o cheiro de

sangue e excrementos épercebido. Parte do gadodescansa e a maioria dos homensjá voltou para suas casas. Os quemoram no alojamento costumamreunir-se pelo menos uma vez nasemana no bar que fica a doisquilômetros dali. É onde podemjogar sinuca, carteado, beber eencontrar prostitutas perfumadasque aguardam por eles, oshomens do gado, como sãoconhecidos. Todas aceitam cortes

de carne como pagamento, masnão qualquer pedaço. No bar,uma balança confere o peso. Acada quilo, um serviço éoferecido.

— Edgar, não vem com agente? — pergunta Helmuth.

— Depois, eu vou depois.— Não vá se atrasar. O velho

Emetério tá de fogo alto. Vaitraçar todas as meninas.

O velho Emetério cai narisada e bate na própria coxa,

como quem espanta a poeira.— Não vou deixar nada pra

você, Edgar — diz o velho, comsua boca murcha e muitoanimado.

Suspendendo as calças queinsistem em deslizar, Burungaaproxima-se de Edgar Wilson.

— Faz dias que não vejo oZeca. Sabe dele, Edgar?

Edgar Wilson não respondeimediatamente. Como lhe épeculiar, processa a pergunta e

elabora com cuidado umaresposta.

— Sei.Burunga coça a cabeça, está

apreensivo.— Ele tá onde?— No rio.— Esse desgraçado do Zeca tá

me devendo dinheiro. Vintepratas. Disse que ia me pagar eagora foi pro Rio? Precisomandar o dinheiro pra casa.Minha filha precisa de óculos. —

Com o polegar e o indicador, eleespreme as extremidades datesta, pensando num jeito deresolver a situação. Recompõe-see cumprimenta Edgar erguendoo chapéu de palha. Segue com osoutros companheiros para a noitede diversão. Edgar Wilsonverifica que seus cigarrosacabaram. De braços cruzados,mascando cravos, permanecesozinho, iluminado apenas porum fio de luz de uma lâmpada

acesa num poste.Seu Milo sai do matadouro

carregando algumas pastas.Cumprimenta Edgar, queconsidera um dos seus melhoresfuncionários.

— Edgar, não vai com osoutros homens?

— Tô esperando um amigo.— Escuta, você viu o Zeca

hoje?Edgar Wilson acena

negativamente com a cabeça.

— Faz dias que não vejo ele enem apareceu pra buscar opagamento.

Seu Milo usa uma toalhinhaencardida para secar o suor dopescoço e da testa. O ar depreocupação do homem épermanente. Edgar Wilson tempena do patrão por ser umhomem tão aborrecido, de veiassaltadas e dentes trincados. Àsvezes, Seu Milo respira comdificuldade e suas passadas são

vagarosas.— Espero que esse moleque

não tenha se metido emconfusão — continua Seu Milo.

— Ele não vai fazer falta.Milo cofia a barba e passa a

mão nos cabelos. Olhadesconfiado para Edgar Wilson,que se mantém imperturbável.Por hora, Seu Milo decide nãoprosseguir com mais perguntas ecaminha em direção a suacaminhonete. Detém-se no

caminho e volta o olhar emdireção a Edgar:

— Amanhã chega o novoatordoador. Quero que vocêmostre a ele tudo por aí.

— Sim, senhor.— O nome dele é Santiago. É

filho de um amigo meu. Rapazbem recomendado.

— Ele tem experiência noramo, Seu Milo?

— Ele abatia renas naFinlândia. É do tipo que abate

qualquer coisa, eu acho.Milo entra na caminhonete,

liga o motor, acende os faróis eem poucos instantes arranca dali,deixando Edgar Wilson para trás,com os mugidos intercalados dasvacas e imaginando as renas dosfilmes de natal.

Não demora para o ronco domotor de uma retroescavadeiradespertá-lo do silêncio. Ohomem que a dirige tem ao seulado um rádio que toca músicas

de discoteca. Estaciona ao ladode Edgar, tira o chapéu devaqueiro, pula do veículo,mantendo o motor ligado, egrita:

— Edgar Wilson, seudesgraçado, filho de uma égua!Pensei que tivesse morrido.

— Vladimir, seu miserável,quanto tempo!

Os dois se abraçam e trocamcumprimentos.

— Soube da explosão da mina

de carvão — diz Vladimir.— Eu escapei. Nunca mais me

meto numa mina de novo.— Você é um filho da mãe,

Edgar Wilson. Me contaram quenem o diabo escapava de umaexplosão daquelas.

Edgar arria a cabeça.Consternado.

— Toda semana sonho comaquela explosão. — Seu tom devoz torna-se rasteiro e osemblante petrificado.

Vladimir dá um tapinha noombro de Edgar, mostra-sesolidário e tenta retomar o climade alegria que havia poucossegundos antes.

Edgar olha para o veículo.— Meu tio Piquitito deixou

pra mim de herança. Roda quasevinte quilômetros com um litrode diesel. — Com a barra damanga da camisa, Vladimir lustrasuavemente a lateral do trator,gaba-se do veículo como de um

filho que acabou de entrar nauniversidade. Seus olhosbrilham. — Solta mais fumaçaque uma carvoaria, mas é tudo oque eu tenho. Essaretroescavadeira é tudo o que eutenho de valor nesta vida.

Edgar Wilson contorna oveículo avaliando cadacompartimento, e, mesmo compouca luz, ele consegue perceberos detalhes.

— Semana passada me

ofereceram setenta mil nela. Nãoquis nem saber de negócio.

— É linda mesmo.Vladimir aponta para a parte

traseira do trator, onde fica apeça mais poderosa, aescavadeira.

— Eu troquei o conjuntotodo. O braço, a lança, acaçamba, tudo novinho em folha.Eu me pego olhando e babandonessas peças.

Edgar Wilson apenas observa,

admirado.— Consegui um empréstimo

no banco, agora estou pagando.Trabalhando dobrado. Masgraças a Deus não falta trabalho.Por essas bandas aí o que todomundo quer é cavar um poço,uma mina, fazer um buracoqualquer.

Na lateral do trator estáescrito o nome de Vladimir e umnúmero de telefone.

— Você tá gostando daqui,

Edgar?— Não tenho do que

reclamar. Abato o gado e o meupatrão gosta do meu serviço.Trabalho é que não falta.

— Você sempre foi bom nisso.Desde moleque você abatiaqualquer troço.

Eles ficam em silêncio poralguns instantes. Pensativos.

— Ainda fuma? — perguntaVladimir.

— Feito uma carvoaria.

Vladimir dá uma risada e tirado bolso da camisa xadrez ummaço de cigarros. Edgar Wilsonaceita um.

— O trabalho aqui éinterminável. Amanhã chegaoutro atordoador.

Vladimir traga o cigarro eprende a fumaça por algunssegundos.

— Esse negócio é muitolucrativo — comenta,engasgando com a fumaça.

Retoma o fôlego e continua: —Enquanto tiver uma vaca nestemundo, lá estará um sujeitodisposto a matá-la.

— E outro disposto a comê-la— conclui Edgar Wilson apóstragar longamente. Solta afumaça do cigarro e com ela nãoapenas libera tudo o que está nosseus pulmões, mas todo oembaraço no coração se desfaz.Até as nuvens em seuspensamentos se dissipam.

Vladimir joga a ponta docigarro no chão e apaga-a numapisada. A peça frontal, acarregadeira, está arriada,contendo alguns sacos de batata,laranja, engradados de cerveja,uma caixa de isopor e restos deembalagens. Vladimir curva-sesobre a carregadeira e apanha dacaixa de isopor duas latinhas decerveja resfriadas. Atira uma nadireção de Edgar Wilson. Sobemno trator e seguem para o bar na

noite pouco iluminada,chacoalhando as lembranças deantigamente ao som das músicasde discoteca.

Capítulo 3

O rio está deserto. É um riomorto e raramente se vê alguémpescando nele. Alguns usampequenos barcos rudimentarespara atravessá-lo em dias calmose outros arriscam buscar umpeixe contaminado que ainda sedebata. Os peixes, mesmomortos, brilham, e ainda assimseus olhos espelham a luz do dia.

Os olhos de um ruminanteassemelham-se à noite. Dentrodeles existe apenas escuridão, eela não pode ser perpetrada. Éconstantemente insondável.

Chama-se Rio das Moscas, e,desde que os matadouroscresceram na região conhecidacomo Vale dos Ruminantes, suaságuas limpas encheram-se desangue. No fundo desse rio estádepositado todo tipo de coisa,orgânica e inorgânica. Humana e

animal.O vento que chacoalha os

galhos das árvores e que fazdeitar a relva provoca rugas naságuas embaladas pelo silênciooco entre as montanhas, dandouma dimensão de eternidade àpaisagem do vale.

O sol está encoberto por umacamada fina de nuvens; omormaço causa um leveabafamento entrecortado pelovento. Edgar Wilson olha ao

redor e para o alto, para asmuralhas que o cercam. É atravésde suas brechas que o ventopercorre um caminho sinuoso atéo vale. Ele respiraprofundamente. Respira maisque o ar, respira o vento queanda por todos os lugares, quetem em si o privilégio depertencer a toda parte.Impossível distinguir o caminhodo vento, persegui-lo ou alcançá-lo.

Edgar verifica as horas no seurelógio de pulso. Ainda é muitocedo. Levanta-se do tronco ondeestá sentado e retorna àcaminhonete. Parou ali poralguns minutos, para respirar esentir o vento que corria à suamargem. Novamente precisoulevar uma guia de pagamento atéa fábrica de hambúrguer, aindabem cedo, antes do seuexpediente de trabalho.

Margeando o rio, que reflete

em suas águas turvas o início damanhã, Edgar Wilson prosseguenum ritmo que lhe conferemansidão. Ao atravessar aporteira que dá acesso aoestacionamento do matadouro,constata que a placa de madeiracom o nome do local está soltanum dos lados. Pensa emretornar mais tarde paraendireitá- la. “Matadouro Tourodo Milo” é o que diz a placa, coma cara de um touro marrom

desenhada. Porém, ali de tudo seabate: bois, vacas, ovelhas,porcos, coelhos, búfalos e touros.Qualquer coisa é aceita. Desdeque se pague.

Edgar Wilson dá um brevetoque na porta entreaberta doescritório do patrão e ele rosnaem sinal positivo para a suaentrada. Sem dizer nada, Edgarentrega a ele um documento,mas pouco sabe do que se trata.

— Edgar, agora cedo vai

chegar um carregamento quevem de longe. São umas vacaslibanesas. Viajaram quase ummês e vão chegar aí muitodebilitadas.

Seu Milo faz uma pausa,verificando o documento queacabou de receber das mãos deEdgar, que, por sua vez, imaginacomo são as vacas libanesas e seelas requerem algumprocedimento diferente.

— A boa notícia é que o

Santiago já chegou e começa hojea trabalhar com você. Ele vai ficarno boxe do lado. Vamos otimizaro trabalho. — Ao dizer isso, SeuMilo suspende as mãos para océu. Otimizar deve ser algo daProvidência divina, pensa EdgarWilson.

— Posso contar contigo,Edgar?

— Às ordens, senhor.Milo dá um tapa na mesa, está

mesmo animado com as vacas

libanesas e o abatedor de renas.— Outra coisa... é sobre o

Zeca. Acho que você sabe mesmoonde ele está.

Edgar Wilson não recua ounega. Ele não mente e nuncasoube como fazê-lo. Sempreouviu nas missas que a mentira écoisa do diabo.

— Sei sim senhor.Seu Milo aguarda a conclusão

da resposta, porém Edgar não semanifesta. Milo questiona mais

uma vez:— E então, onde ele está?— No rio.O patrão repousa sobre um

silêncio desconfiado. Baixa acabeça levemente e permaneceolhando para as mãosentrelaçadas sobre a mesa.

— No Rio das Moscas?— É sim senhor.— E como ele foi parar lá,

Edgar Wilson? — pergunta SeuMilo com um olhar inquisidor,

após levantar a cabeça e secar orosto com uma toalhinha.

— Eu mesmo botei ele lá.Abati e depois joguei ele no rio.

— Por que você fez isso,Edgar?

— Ele maltratava o gado. Nãoprestava de jeito nenhum.

— Isso é crime, Edgar. Vocêmatou um homem.

— Não, Seu Milo. Já mateimais de um. Só quem nãoprestava.

Seu Milo decide se calar.Conhece a lealdade de EdgarWilson, conhece seus métodos esabe que Zeca não prestava nemum pouco. Ninguém deu queixade seu sumiço, e se alguém viesseprocurar pelo rapaz diriasimplesmente que nunca maisapareceu no trabalho. Que nãosabe por onde anda. Assim comoninguém questiona a mortedentro do matadouro,certamente Zeca, cuja

racionalidade estava equiparadaà dos ruminantes, teria sua morteignorada. Seu Milo conhece oshomens de gado, pois eletambém faz parte do bando.Ninguém está impune. Todos sãohomens de gado e sangue.

***

O caminhão velho chacoalha àdistância, avançando não maisque cinquenta quilômetros por

hora. As depressões sãoprofundas em algumas partes dotrajeto e fazem a caçamba sedeslocar com força de um ladopara o outro. As nuvens queencobriam o sol se dissiparam. Oclarão no céu garante que cadahomem naquele matadourotenha uma sombra que o persiga,uma sombra mais negra do que amaioria dos trabalhadores. Acaçamba do caminhão éamarrada com cordas desfiadas,

os pneus são carecas e o para-choque enferrujado confere aoveículo uma aparência dedecrepitude. Descem docaminhão aos pulos, os maisvelhos e pesados apoiam-se nagrade da caçamba antes deatingir o chão. Uma garrafa depinga já foi consumida durante aviagem. O odor da bebida fortese mistura ao mau hálito e aocheiro das entranhas que vez ououtra caem no chão e nunca são

completamente removidas.Cada um segue para o seu

posto sob os olhares do capatazdo matadouro, Bronco Gil. Umhomem alto, de pele queimadade sol, cabelos lisos eextremamente forte, que nãodispensa o uso de suspensórios ebotas de couro, mesmo com todoo calor. É um caçador, comoainda se autointitula. Quandoalguma vaca se desprende e foge,ele é capaz de capturá-la

rapidamente. Quando uma onçaou um javali ameaçam asegurança do gado, elepermanece dias e noites na mataaté emboscá-los. Se algumdesentendimento entre osfuncionários excede o limite daboa convivência, ele sabe comoresolver. Bronco Gil é ummediador, um caçador, umcarneador e um dos pioressujeitos que Edgar Wilson jáconheceu.

Apesar da habilidade emmanusear uma espingarda, eleprefere o arco e a flecha paraatingir o que quer que seja. Éfilho de uma índia e de umfazendeiro branco. Até os dozeanos viveu numa tribo em quenão era permitida presença deestranhos, e, isolado do mundo,vivia imerso numa cultura poucoafeita ao carinho. Num ritual deiniciação à vida adulta, perdeuum dos testículos

acidentalmente. Isso o tornoumais calado e mais agressivo.Tempos depois, o pai decidiubuscá-lo para viver com ele nafazenda, pois precisava de umajudante. Em troca de carneenlatada e banha de porco,Bronco Gil foi levado para umaregião muito distante da tribo. Opai, que já era um homem velhoe viúvo, havia perdido todos ostrês filhos, que investiramsemanas numa caçada a duas

onças que andavam rodeando ogado da fazenda. De um dia parao outro, o velho se viu sozinho esem herdeiros, por isso decidiuresgatar Bronco Gil e tentarcivilizá-lo antes que fosse tardedemais. Era assim que pensava ovelho. Porém, a civilização obarbarizou, e a pouca afeição queconhecia tornou-se tãosemelhante ao pó do chão quepisava diariamente. Civilizado,com botas e suspensórios, além

de pentear os cabelos e ensebá-los com seiva de mutamba dejuá, foi ensinado a caçar porprazer e nunca dar as costas aninguém. Viveram juntos, pai efilho, por dez anos, até que ovelho morreu de parada cardíacaenquanto cavalgava entre asplantações de milho.

Sozinho, Bronco Gil perdeu afazenda, os cavalos e duascaminhonetes em mesas dejogos. Outra parte do que tinha

gastou com prostitutas e bebidas.Numa madrugada, voltando paracasa, apoiado em duas mulheres,bêbados pela estrada, foramatropelados e deixados paramorrer. O trecho deserto nãopermitiu que o socorro chegasseantes de oito horas do ocorrido.As mulheres não resistiram; elefoi socorrido a tempo. Mas seuolho esquerdo não tevenenhuma chance. Um abutre ocomeu à vista de seu olho direito.

No lugar do olho vazio, ganhouum feito de vidro; castanho,semelhante ao natural, e que vezou outra descola-se da órbitaocular.

Bronco Gil enrola um cigarroe o coloca atrás da orelha.Provavelmente o acenderá nahora do almoço. Apanha umaprancheta e com uma canetapreta marca a presença doshomens que acabaram de chegar.Conhece todos pelo nome e

apelido. O nome de Zecacontinua na folha, porém fazalguns dias que não recebenenhuma marcação de presença.

O carregamento das vacaslibanesas já está atrasado. Aopassar por Bronco Gil, EdgarWilson o cumprimenta e seguepara o vestiário, onde sepreparará para o trabalho. Vesteas calças jeans sujas de sangue euma camiseta surrada, de corbege. Calça as botas pretas de

borracha cano médio e coloca oavental branco. Na cabeça, umboné desbotado com respingosde sangue.

No boxe de atordoamento,encontra Santiago debruçadonuma mureta esperando por ele.Não é muito alto, mas é forte.Tem algumas tatuagens pelosbraços e pelo pescoço, e oscabelos compridos estãoamarrados com um elástico.

— Você deve ser o Edgar

Wilson — diz Santiago,estendendo a mão paracumprimentá-lo.

Edgar responde aocumprimento. Santiago é um tipoansioso, inquieto. Mexe-se comrapidez e cutuca o nariz todo otempo.

— Eu abatia renas naFinlândia.

— Tem experiência combovinos?

— Sim, eu abatia bovinos

numa fazenda no interior daIrlanda, até que fui parar naFinlândia com as renas.

Santiago sorri todo o tempoem que fala, um riso nervoso, esua agitação não fará bem aogado, pensa Edgar Wilson.

— Lá — continua Santiago —a gente tinha que correr atrás dasrenas. Elas ficam presas numcercado e você precisa ser muitoágil, ágil pra cacete, e agarrar elapelo pescoço, pela pata. —

Enquanto fala, gesticula, pula,gira de um lado para o outro. —E elas têm chifres grandes assimó... eles são cerrados pra ficarmais curtos, mas ainda assim eleste atravessam se você não tivermuito cuidado, é preciso ficaresperto o tempo todo. Sãoanimais muito velozes. — A vozdo rapaz é estridente e acelerada.Edgar Wilson assimila a conversacom curiosidade. — E eu sou umcara muito veloz. E depois que a

gente pega elas, vrau, é sódegolar. É rápido mesmo. Sósossego quando vejo o sangueafundando na neve... aí, sim, eufico calmo.

Edgar Wilson está paralisado.O olhar congelado no rapaz.Imagina a neve branquinha,nunca conheceu alguém quetivesse visto a neve. Pensa nosangue sobre a brancura do gelo.Pela primeira vez desejou ver aneve.

— Aqui você só precisa acertaruma marretada na testa do boi.Só isso. E precisa ser rápido. Nãopode errar, senão o bicho sofremuito.

Santiago começa a pular deum lado para o outro como seestivesse se aquecendo paraentrar num ringue de luta.Alonga os braços para trás e paraos lados. Abre as pernas emovimenta os quadris. EnquantoEdgar Wilson orienta-o, ele

começa a se vestir: um macacãobranco com um imenso zíper nascostas, luvas de borracha, umatouca de borracha e óculos deesqui.

Quando Edgar conclui asinstruções, Santiago vira-se decostas e pede que feche o imensozíper que vai das nádegas até anuca. Com um forte puxão,Edgar o suspende. Santiago ajeitaos óculos de esqui, acomodandoo elástico em torno da cabeça, e

diz enfaticamente estar pronto.Edgar Wilson percebe que

aqueles óculos são muitoeficientes. É justamente o queprecisa para evitar sangue nosolhos.

— Onde eu consigo umdesses? — pergunta Edgarapontando para os óculos.

— Eu trouxe da Finlândia.Usava pra esquiar. São óculos deesqui.

Edgar Wilson se dá conta de

que num lugar como esse jamaisencontrará óculos de esqui, poisaqui só há terra, poeira e lama.Santiago faz alguns elogios àpraticidade de ter esses óculosem seu uniforme de trabalho.

— Eu posso tentar conseguirum pra você.

— De que jeito?— Tenho um amigo que

consertava trenós lá na Finlândiae voltou no mesmo dia que eu.Ele abriu uma oficina mecânica

com os irmãos. É longe daqui,mas sei que ele tinha um montedesses óculos. Eu deixei algumascoisas minhas com ele, e ele vaime mandar tudo, assim que der.

— Será que ele me venderiaum?

— Eu vou falar com ele e tedigo.

Edgar Wilson acena com acabeça em agradecimento e vaiaté o canto do boxe, de onderetorna com duas marretas.

Uma, com uma linha branca nocabo de madeira, tem seu nomeescrito com caneta azul. A outraele entrega a Santiago e pede queele o siga. Edgar posiciona-se noboxe e manda que venha oprimeiro boi. O animal éconduzido por um curto eestreito corredor que dá no boxede atordoamento. Os que sãomais arredios recebem choquesemitidos por um bastão, que osfazem caminhar. Uma janela é

aberta e o boi acondicionado noestreito espaço não consegue sevirar ou recuar. Edgar Wilsoncicia e toca a testa do boi. Oanimal torna-se menos agitado.Os olhos, menos apavorados.Mas o cheiro do sangue deoutros ruminantes mortos nomesmo lugar, o cheiro de morteque emana de Edgar Wilson eseu olhar cheio de complacênciao fazem saber que morrerá.Edgar Wilson mergulha o polegar

direito no pote de cal e faz o sinalda cruz na testa do boi, suspendea marreta e acerta a fronte, ocentro da cruz. Uma únicapancada que faz rachar o osso edeixa o animal desmaiado nochão. Imediatamente, a paredelateral do corredor é suspensa e oboi é puxado por outrofuncionário, que o levará para asala de sangria.

Depois de assistir aoprocedimento por alguns

minutos, Santiago inicia otrabalho no boxe ao lado, e a filainterminável de ruminantes paraa matança aumenta o ritmo deprodutividade, mas parece quenão diminui de tamanho. EdgarWilson pensa nos hambúrgueresenquanto trabalha, enquantoafasta as moscas e limpa osrespingos de sangue do rosto. Lána fábrica de hambúrguer abrancura reflete uma paz quenão existe, um clarão que cega a

morte. Todos são matadores,cada um de uma espécie,executando sua função na linhade abate.

Capítulo 4

Bronco Gil verifica as horas econstata o atraso de quase duashoras do carregamento das vacaslibanesas. Quando avista trêscaminhões enfileirados cruzarema porteira da fazenda, ele atiraseu cigarro no chão e caminhapara recepcioná-los, indicando olocal de carga e descarga, escritocom tinta vermelha numa parede

descascada. Ele acena paraTonho, um dos peõesresponsáveis pela recepção dascargas.

— Já era pra vocês teremdescarregado aqui faz tempo.Duas horas de atraso — dizBronco Gil.

O motorista do caminhão,suado e com visível ar decansaço, desce da cabine.Reclama da estrada ruim e deuma ponte quebrada que

permitia apenas um carro por vezna travessia. O ajudante docaminhoneiro, sob as ordens deBronco Gil, abre as portastraseiras do primeiro caminhão-baú, onde estão as vacas,amontoadas e muito debilitadas.Elas sapateiam sobre as própriasfezes e urina. Algumas estãocaídas, desmaiadas; outras,enfurecidas. O espaço é pequenopara tantas cabeças de gado, eolhando à distância não é

possível distinguir absolutamentenada dentro da escuridão. Só ocheiro e os mugidos é quedeterminam o conteúdo doveículo.

Uma rampa de madeira écolocada na caçamba, e numfrenesi, com os olhos arregalados,cheios de morte e sangue, asvacas saem, uma por uma,debaixo de chutes, gritos epontapés. Logo sãoencaminhadas a um curral aberto

e vazio, preparado para recebê-las. A água já está posta nococho, e, mesmo com fome evivendo os últimos dias de umadieta rigorosa, elas não poderãocomer nada.

Bronco Gil segue para o currale começa a separar o gado bomdo gado debilitado. Quandotodos os caminhões sãodescarregados, constata-se amorte de seis vacas. Porém,ainda há quatro delas sob

observação, devido a sua grandedebilidade.

O gado morto é colocado, uma um, sobre uma empilhadeira edespejado no improvisadocrematório do matadouro, cujafornalha já está acesa e cujocheiro atrairá muitos cães aolongo de todo o dia, pois acremação é sempre demorada.

Isso é tudo o que se podefazer com o gado morto, pois acarne pode estar contaminada e

o animal doente. Mesmo assim, odesperdício é pequeno. Os queestão sob observação terão até odia seguinte para responder aotratamento à base de água, raçãoe banhos de aspersão, casocontrário, serão lançados nafornalha.

Seu Milo, com aspectocarregado e semblanteaborrecido, aproxima-se secandoo suor do rosto. Verifica otrabalho que está sendo

executado e analisa a qualidadeda carga recebida. Acena paraque Bronco Gil se aproxime.

— Recebi um telefonemadizendo que no meio dessa cargatem umas vacas israelenses. —Faz uma pausa e olha para ogado mais uma vez. Contrai orosto, como se desse jeito,fazendo careta, conseguisse obteralgum esclarecimento. Diminui otom de voz e, constrangido,revela: — Eu não estou

conseguindo ver a diferença.Você percebe alguma coisa?

Bronco Gil olha com acuidadepara o gado. Aproxima-se dealgumas vacas que seguemapressadas para o curral, tocauma delas, fareja, observa-lhe osdentes, o rabo e encara seusolhos insondáveis. Volta-se parao patrão e, mostrando-selevemente acanhado, responde:

— Não senhor. Essas vacaslibanesas são muito parecidas

com as nossas.Seu Milo coça a cabeça.— O responsável pelo

carregamento pediu que a genteseparasse as vacas libanesas dasvacas israelenses, porque a carnevai toda pra um frigorífico quefornece diretamente pra umbairro todinho cheio delibaneses. E eles sabemdiferenciar o gosto da carne.

— Como eles conseguem? —questiona Bronco Gil.

— Tem alguma coisa a vercom o capim do solo libanês e aágua que elas bebem de umaçude. Disseram que as vacasisraelenses atravessaram a cerca eestavam pastando ilegalmente nopasto libanês, e os peõesacabaram misturando tudoquando despacharam a leva pracá.

— Mas se elas pastavam noterritório libanês, então a carnedeve ter o mesmo gosto.

— Pensei isso... elas deviamter costume de fazer isso.

— Não vai dar diferença nogosto da carne.

Seu Milo ainda demonstrainsegurança. Sua preocupação écomovente, e teme incitar umaguerra entre dois países inimigos.Manda que um dos peões chamepor Edgar Wilson, que está noboxe de atordoamento.

— Pois não, Seu Milo.Mandou me chamar? — diz

Edgar, limpando as mãosensanguentadas, não se dandoconta dos respingos de sangue norosto.

— Edgar, temos umproblemão aqui.

Edgar Wilson mostra-secondescendente.

— Esse carregamento de vacaslibaneses está com um problema.— Seu Milo toma ar antes decontinuar. — Umas vacasisraelenses vieram misturadas às

vacas libaneses, e essas vacas sãoinimigas. A gente precisa saberquem é quem. — Seu Miloaguarda uma reação de EdgarWilson, que permanece imóvel, àespera de mais detalhes. —Libaneses e israelenses sãoinimigos — continua o patrão. —Um não come a vaca do outro. Eessas vacas vão pra um frigoríficoque só fornece pra libaneses.Você entende o problema quetemos aqui?

Edgar faz que sim com umleve aceno de cabeça.

— Sou eu que vou abateressas vacas?

— Vão mandar ummuçulmano fazer isso —responde Seu Milo. — É atradição deles. Precisam invocara Deus na hora do abate. Elestêm homens especializados paraisso.

Edgar Wilson não responde,mas pensa que é muito parecido

com o que costuma fazer aoabater um desses animais.

— Você é muito bom com ogado e eu quero saber se vocêconsegue saber quem é quem.

— Eu não consegui vernenhuma diferença — atestaBronco Gil.

— Como elas se misturaram?— pergunta Edgar Wilson.

— As vacas israelenses gostamde pastar no território libanês —justifica Bronco Gil.

— Eles precisam aumentar otamanho da cerca — diz EdgarWilson. — Assim as vacas nãopassariam de um lado pro outro.

— Concordo com você, Edgar.O problema deve ser mesmo otamanho da cerca. Se essesmiseráveis tivessem uma cercagrande o suficiente, eu nãoestaria aqui me cagando todocom medo de mandar as vacasisraelenses pro prato doslibaneses. — A alteração de Seu

Milo lhe causa falta de ar. — Nãoquero que venham aquibombardear meu matadouro...não quero briga com essa gente.É gente de morte. Matam otempo todo.

— Eu posso dar uma olhadanelas, se o senhor me permite.

— Por favor, faça isso agoramesmo.

Edgar Wilson entra nomatadouro e retorna com umalatinha de tinta amarela. Segue

cabisbaixo para o curral ondetodas as vacas estão reunidas eainda agitadas. Caminha entreelas e as observa, uma a uma.Santiago haveria de dar conta doabate do gado sozinho pelapróxima hora.

Em princípio, não era possíveldistinguir coisa alguma, nemmesmo as vacas locais das vacasestrangeiras, porém acreditavaque um detalhe ao menoschamaria a sua atenção. Cicia,

enquanto suavemente pisa nosolo, deixando-se tornar parte dorebanho. Observa três vacasrecuadas, num canto, com asfaces muito próximas, como seconfabulassem. Uma quarta vacase aproxima e toma posiçãosemelhante às outras três. EdgarWilson se aproxima e bate asmãos na tentativa de dispersá-las,mas o quarteto se mantéminabalável. Busca outras vacaspara o convívio do quarteto.

Estranha a seletividade do gado.As vacas em maior grupo mugemcom força e se recusam aaproximar-se das outras.

Por alguns segundos, EdgarWilson sucumbe ao entardecerque ainda não envelheceu, masque se precipita para uma noitemorta, sem lua ou estrelas. Elesabe escutar em silêncio, atémesmo quando os outros tãosomente suspiram ou resfolegam.A vida no campo o tornou

parecido com os ruminantes, e,sendo ele um homem de gado,consegue estabelecer perfeitoequilíbrio entre os temores dosirracionais e o devaneioabominável de quem os domina.Afunda dois dedos na lata detinta e marca a testa do quartetode vacas acuadas.

— Ele conseguiu, viu só — dizBronco Gil para o patrão, queapenas sorri.

Edgar Wilson pisa do lado de

fora do curral e caminhavagaroso na direção dos dois. Notrajeto acende um cigarro. Ocheiro da carne bovina que estalano crematório começa a atrair oscães.

— As marcadas de amarelo,senhor.

— Bom trabalho, EdgarWilson — diz Seu Milo,orgulhoso e aliviado.

Edgar empurra a porta domatadouro, mas antes de entrar

olha para a fumaça alta queemana atrás do galpão. Ela sedissipa com o vento antes detocar as nuvens.

Atravessa a porta e retoma suafunção, pois a fila é longa e otrabalho interminável.

Capítulo 5

Bronco Gil finaliza aconferência do gado confinadonum dos currais e autoriza umdos peões a levá-los para o banhode aspersão que é realizado numgalpão em que há irrigadoresinstalados no teto. Assim,coletivamente, eles recebem jatosde água morna, para seremlavados antes da matança.

Aos seus pés há um bezerroabortado cercado de vermes,comido em parte, envolto numapelícula escura proveniente daplacenta ressequida. É a segundavez em três dias que se deparacom um aborto de vaca. Buscauma pá, apanha-o do chão e odeixa no crematório.

— Outra vez? — pergunta opeão responsável pela cremaçãodo gado.

— Não estou entendendo —

comenta Bronco Gil, cheio depreocupação. — Isso é raroacontecer.

— Elas devem estar doentes.— Pode até ser, mas acho que

não é doença. As vacas estão atébem saudáveis.

Bronco Gil por algunsinstantes permanece em silêncio,até ser interrompido pelo peão.

— Faz tempo que não nasceum bezerro por aqui.

Bronco Gil olha para o aborto,

agora jogado sobre um carrinho.Tenta recordar-se há quantotempo não vê bezerros nospastos.

— Pelo menos uns seis meses— murmura Bronco Gil.

— É por aí mesmo —responde o homem, arrastando obezerro para dentro do fornocom a ajuda de outro peão. Eletoma fôlego e continua: —Tenho cremado muitos abortosnos últimos meses.

Tonho acena para Bronco Gil,que, quando sai do crematório,percebe um pequeno grupo depessoas que atravessam aporteira. São esses os miseráveisque moram nas redondezas evivem de comer o gado mortonos transportes. Quando umcarregamento chega, elesatravessam a porteira horasdepois. Sempre há alguém desentinela nas estradas, vigiando otráfego de cargas de gado.

Bronco Gil não os tolera, masno fundo sente pena. Vai aoencontro deles antes que seaproximem demais docarregamento estacionado nopátio.

— Hoje não tem nada aquipra vocês.

— Moço, a gente viu ocaminhão chegar — diz uma dasmulheres do bando. Ela tem umlenço estampado amarrado nacabeça; a pele negra é seca feito

couro curtido e os lábios muitoinchados.

— Mas não tem nada pravocês hoje — insiste Bronco Gil.

— Não tem nenhum morto?— pergunta uma velha corcunda,enrolada num xale amarelo.

— Já despachamos procrematório. Saiam daqui. Opatrão não quer vocês aqui.

— Pelo amor de Deus,senhor. As crianças têm muitafome. A plantação não tem

rendido — insiste uma dasmulheres.

— É verdade, moço, não temnada lá em casa — completa umamenina, de cabelos loiros sarará esardas no rosto.

Bronco Gil olha para os lados.Apanha outro cigarro de palhaatrás da orelha e o acende. Ésempre uma miséria lidar comisso. Com a fome, com asmulheres e as crianças. É uminferno que poucos conhecem. O

inferno com que lidahabitualmente é debaixo do sol echeio de fome e poeira.

Suspira. Olha ao longe.— Fiquem lá fora, depois da

porteira. Se escondam no matoporque o meu patrão não quervocês por aqui. E, se eu perder omeu emprego, eu juro que matotodas vocês. Mato e esfolo ocouro, entenderam?

Elas acenam positivamente.— Eu vou mandar um peão

levar um pedaço do boi mortopra vocês. E, se alguém ficardoente por causa da carne, nempense em voltar aqui prareclamar. Vocês já sabem o quevai acontecer.

— Deus lhe pague, moço.Deus lhe dê em dobro — diz avelha tentando alcançar a mãode Bronco Gil.

— Agora sumam daqui.Com isso, elas andam

apressadas para fora dos limites

do matadouro e ele retoma seutrabalho. Ordena a Tonho quecorte algumas partes de uma dasvacas mortas e leve-as para asmulheres do outro lado daporteira. Quase uma hora depois,Tonho despeja um saco compedaços gordos da vaca aos pésdas mulheres, que precisamdisputar com uma matilha decães famintos que rodeiam omatadouro sempre que o fornodo crematório é aceso. Elas

agradecem e seguem de voltapela estrada repleta de sequidãoe cães raivosos.

Burunga novamente está com acabeça enfiada num tonel deágua e rodeado por homens queaguardam ansiosos o resultadodo cronômetro que o velhoEmetério faz questão de segurar.Quando suspende a cabeça, temmais um recorde e apanha ostrocados em seu chapéu de

palha, logo depois de suspenderas calças. Burunga tem urgênciaem arranjar dinheiro para osolhos deficientes da filha. Esperaque tenha fôlego suficiente paraconseguir.

Falta pouco para terminar ohorário de almoço e EdgarWilson sai do refeitório eaproveita seus últimos minutosde descanso sentado num tocode árvore, protegido pela sombrade uma goiabeira.

Santiago aproxima-seamarrando os cabelos com umelástico. Tira do bolso umchiclete e o joga na boca. Senta-se numa lata de tinta emborcadaao lado de Edgar Wilson.

— O trabalho é pesadomesmo — comenta, sem obterreação de Edgar Wilson, queobserva as vacas no pasto. — Eusentia falta desse calor. Às vezesficava meses sem ver o sol. Era sóo frio, o gelo e uma brancura

desgraçada que não deixava agente ver nada.

— Como é a neve? —pergunta Edgar Wilson.

— É diferente de tudo o que agente tem por aqui. É bonitademais.

— Eles têm porcos por lá?— Não vi porcos não. Mas

tinha alce. Abatia alce também,quando me pagavam pra isso. Eutrouxe até uns enlatados decarne de alce que eu sempre

comia.— Que gosto tem?— De carne defumada. Se

você quiser, tenho algumasainda.

Edgar acena com a cabeça, emagradecimento. Volta a observaras vacas pastando.

— O que tanto você olha praesse pasto? — questionaSantiago, inquieto, colocando-sede pé.

— As vacas... elas estão

diferentes.Santiago olha para o pasto,

mas para ele não há nada alémdo que imagina ser o habitual.

— Você reparou naquilo? —aponta Edgar Wilson. Santiagoestica os olhos e suspende oqueixo demonstrandocuriosidade. — Tem algumasvacas viradas para o oeste e nãopara o norte. Isso não é nadabom.

— Mas por quê, Edgar? O que

tem nisso... tanto faz pra quelado elas pastam.

— Elas só pastam viradas pronorte, e faz dias que algumasdelas estão viradas pro oeste.

— E o que isso quer dizer?— Que tem alguma coisa

muito errada acontecendo.— Você acha que é o quê?— Não sei... nunca vi isso

acontecer... elas perderam onorte. Isso não é nada bom.

O vento norte sopra ruidosoentre as montanhas e carregacom ele o perfume das romãsmaduras. O vestígio do dia seapagou faz alguns minutos. Orastro do crepúsculo foiencoberto pelo tom cinzento doinício da noite.

Quando a noite cai, osmoradores do Vale dosRuminantes costumam fechar asportas e as janelas. Imaginamque as coisas improváveis do dia

podem dominar as trevas. Équando pensamentos, outroraimpraticáveis, tornam-se viáveis;quando os sussurros seintensificam, e principalmentequando essa camada de trevamantém qualquer um insuspeito.Os vultos, os vãos, as sombrascompridas, tudo isso é trazidopela noite, que é imensa, e seuslimites, infinitos.

Durante o dia, é possívelperceber as linhas divisórias do

horizonte, as suas delimitações. Éassim quando se olha para o rio.Porém, olhar para o rio à noite énão ver nenhuma dessas linhasque o definem. Apenas escuridãointerliga as águas doces e o céu.A linha do horizonte, aquelatênue divisão perceptível porcausa da luz do dia, não existedurante a noite. À noite, com osossego do corpo, percebe-semelhor o que vai dentro de si. Asreflexões sem linhas divisórias ou

fronteiras.Todos os homens que não

vivem no alojamento domatadouro já foram embora parasuas casas. Restam apenasaqueles que dividem meia-parede com o gado. A noite caiuhá poucos instantes e hoje nãohaverá diversão. A maioria, apósa janta, irá dormir. Seu Miloainda está em seu pequenoescritório espremendo a ponta dodedo nos botões da calculadora.

Edgar Wilson e Bronco Gildividem uma garrafa de cervejasentados lado a lado no mesmotoco de árvore debaixo dagoiabeira. Edgar costumapermanecer ali sempre que pode,observando o pasto, que estásilencioso, como convém quandoa noite chega.

— Carne de alce? Eu te digoque nunca vi um desses naminha vida de caçador.

— Ele disse que ainda tem

umas latas. Que abatia alcestambém.

— Pelo visto tem trabalho emtudo que é canto.

— Alce parece veado.— Ah, sei... já cacei um monte

de veados. São velozes.Os leves mugidos que

reverberam na fazenda parecemo marulhar de águas tranquilas.O vale é um lugar repleto deárvores, vegetação rasteira,pequenos córregos, cachoeiras, e

que floresce em tomavermelhado devido às rosas e àsromãs, mas principalmente porcausa do sangue. Ao longe não éperceptível, nem o cheiro édetectável, mas as roseiras quemargeiam o Rio das Moscastornaram-se mais escuras aolongo dos anos, pois sealimentam da água sangrenta dorio.

No dia seguinte, um grupo deestudantes universitários visitará

o matadouro e depois seguirápara a fábrica de hambúrguerpara conhecer todo o percurso dacarne. Seu Milo inicialmenterejeitou a ideia, mas voltou atrásdevido aos apelos do professorque acompanhará os alunos. Elesnão sabem o que vão encontrar,pensa Edgar Wilson. Talvez nãovejam todo o processo, poiscertamente ninguém sai impunedepois de entrar nummatadouro. A primeira vez que

abateu uma vaca, Edgar sentiu aagitação do sangue do animal eouviu o estalo do crânio. Nosolhos do ruminante, ainda queconstantemente insondáveis,dissiparam-se toda névoa e todaescuridão. Era a imagem deleque estava diante de si, refletidanos olhos da vaca, pouco antesde morrer. A imagem da besta.Diariamente é a si que enxergaquando mata, pois aprendeu aver sob a neblina que encobre os

olhos do animal.A cerveja está no final, e

Bronco Gil, aquietado, cochilacom a cabeça pendurada para afrente. Edgar Wilson escuta umresfolegar vindo do pasto. Ocasco das patas batendo no chãoecoa nos limites da fazenda. Ummugido longo e áspero é emitido,seguido do trotar de uma vaca,que avança e se choca contra acerca. Bronco Gil suspende acabeça e arregala os olhos. A vaca

força a cerca para que se rompa.Ela se corta nos arames farpados.

— Deus do céu, que diabos éisso! — exclama Bronco Giltirando o chapéu.

Edgar Wilson se levanta epermanece parado. Bronco Gil,de pé, recua sutilmente. A cercabalança e as estacas fincadas nochão começam a se soltar daterra. Os fios de arame farpadoesticam, mas não se rompem.

— Ela está sendo atacada —

diz Bronco Gil, levando a mão aorevólver que está preso ao coldreagarrado às suas costelas.

— Não está não — diz EdgarWilson.

Bronco Gil atira para o alto naintenção de espantar o predadorque estaria atacando a vaca. Coma visão de apenas um olho edevido à escuridão no pasto, nãotem certeza do que vê. EdgarWilson, com os olhos fincados nopasto, observando toda a

movimentação, afirma não ternenhum predador.

A vaca torna-se mais agressivae começa a empurrar com acabeça uma das estacas, que serompe e faz baixar a cerca osuficiente para poder pulá-la.Enfurecida, corre pela fazenda,até parar por uns instantes ebater com o casco da patadianteira contra o chão de terra.Fareja por algo. Bronco Gil aindateme que o predador esteja por

perto, provavelmente uma onçaou um javali. Mas o gado quepermanece no pasto estárecolhido num canto, apenasmugindo.

A vaca vira de um lado para ooutro como se buscasse umadireção. Parece aquietar-se.Bronco Gil faz sinal para queEdgar Wilson o siga, apanha acorda que mantém presa ao cintoe dá um laço no intuito decapturá-la. Os dois dão alguns

passos comedidos e fazem umpercurso por trás de algumasárvores para que a vaca sejasurpreendida, e para issoprecisam se posicionar no pontocego do animal. Bronco Gil, nomovimento brusco de enlaçá-la,perde o olho de vidro, queescorrega da órbita ocular e caino chão.

— Meu olho caiu — ele gritaabaixado no chão, revirando omato. — A porra do olho caiu!

A vaca inicia uma corridadesesperada em direção aomatadouro emitindo um longomugido, que soa desafiador, e sópara quando se lança de cabeçacontra uma parede com tamanhaforça que seu corpo chega a selevantar do solo e cai debatendo-se até não emitir mais nenhummugido.

Edgar Wilson aproxima-sedela, que ainda mexe uma pata.Os olhos dela estão arregalados,

petrificados. Ele abaixa e toca-agentilmente na testa partida,fazendo o sinal da cruz. Nãoencontra o seu reflexo nos olhosdo ruminante. Desta vez, ele nãoestava lá.

Nem a lua consegue fazerdistinguir céu e terra. É como sea imensidão tivesse engolido ovale, é como se Edgar Wilsonestivesse dentro da barriga deDeus, no princípio da criação,quando tudo era treva.

Capítulo 6

Bronco Gil observa o pasto.Sua sombra alonga-se até tocar acerca parcialmente destruída. Éum dia quente e empoeirado.Debaixo do sol, todos os homensjá estão empenhados em suasfunções e implacavelmenteperseguidos por suas sombras.Enquanto caminha, sua sombrainvade o pasto e cobre parte de

uma vaca sonolenta que mastigaum punhado de capim. Ele seabaixa e enche de terra a conchada mão. Em seguida a cheira ejoga para o lado. De pé, buscaencontrar no arame farpado dacerca algum vestígio do animalque atacou a vaca. Além de nãoencontrar nenhum pelo, verificaque a cerca não possui nenhumdano, a não ser o que a própriavaca causou. Espanta algumasdelas que se amontoam e procura

pegadas de onça ou javali. Nãoencontra nada.

Ele está determinado a passara noite em vigília. Por causa doterror provocado na noitepassada, imagina ser um animaldifícil de capturar.Estrategicamente, elaboraalgumas armadilhas e pensa narota de entrada e fuga dopredador.

Agachado, novamentefarejando outro punhado de

terra, é encoberto pela sombra deEdgar Wilson.

— O que você quer?— Os estudantes acabaram de

chegar.Bronco Gil coloca-se de pé.

Tem uma espingarda penduradanas costas. Seu semblante é deconsternação. Deita a vista sobreo prado delimitado tão somentepelo alcance de seu olho, porémsabe que o horizonte é extenso eos limites não são perceptíveis

desse ponto.— Preciso achar esse

desgraçado — comenta BroncoGil. — Não entendo por onde eleentrou. Não tem nenhumvestígio. A cerca tá toda boa aquie ali — conclui, apontando emvárias direções, tão desorientadoquanto a vaca antes de morrer,tão angustiado quanto umanimal na fila do abate.

— Não tinha nenhumpredador aqui — afirma Edgar

Wilson.— E como você explica

aquilo? — questiona Bronco Gil,exaltado.

Edgar Wilson permanececalado por algum tempo. Apenascontempla a relva deitada e o diailuminado.

— Eu vou achar esse animal evou precisar de ajuda.

— Pode contar comigo.— Pode ser que esta noite eles

venham em bando. — Bronco

Gil ajeita o chapéu. — Por isso,vamos ajuntar os piores homensdeste lugar. Sabe usar um desses?— pergunta, mostrando aespingarda.

Edgar Wilson faz que sim coma cabeça.

— Ótimo. Eu prefiro meu arcoe flecha. Não se canse muito,vamos ter bastante trabalho estanoite.

Bronco Gil sai do pasto e vaiao encontro dos estudantes

afoitos, que desejamardentemente conhecer a linhade produção da carne. O grupo écomposto de onze alunos e umprofessor.

— Olá, eu sou o professorAristeu. Esses são os meusalunos. Obrigado por nos receberneste lugartão...tão...interessante. — Ohomem é agitado feito umgarrote selvagem e, ao mesmotempo em que fala, mantém um

sorriso fixo e balança a cabeça emconcordância com o que querque seja. — Estamos muitoanimados para acompanhar o diaa dia dos trabalhadores econhecer as instalações do gado ecomo... — Ele dá uma risadinha.— Enfim, como a carne chegaaos nossos pratos diariamente.Daqui nos vamos para a fábricade hambúrguer que processa acarne de vocês. — Ele interrompee dá um tapa na própria testa,

como quem diz, que tolice aminha. — Quero dizer, a carneque vocês produzem aqui.

Bronco Gil está calado todo otempo. Quando o homemtermina de falar, ele grita porTonho e pede que os levem aocurral do gado já selecionadopara o abate.

— Gostaria de agradecer agentileza do senhor Milo, quenos permitiu visitar este lugartão... tão... curioso — diz o

professor.— Darei o recado a ele. Se os

senhores me permitem. —Bronco Gil suspende o chapéu,demonstrando que tambémpossui boas maneiras, e se retira.

Edgar Wilson suspende amarreta e acerta o primeiro boido segundo lote do dia. Santiagotem desempenhado um bomtrabalho e mantém seu ritmofrenético, aquecendo-se efazendo alongamentos antes de

entrar no boxe. Edgar Wilsonestá satisfeito com o trabalho donovo colega e percebe comoestava certo em ter despachado oZeca para o fundo do rio. Até omomento ninguém apareceupara saber dele. Em lugares ondeo sangue se mistura ao solo e àágua é difícil fazer qualquer tipode distinção entre o humano e oanimal. Edgar sente-se tãoafinado com os ruminantes, comseus olhares insondáveis e a

vibração do sangue em suascorrentes sanguíneas, que àsvezes se perde em suaconsciência ao questionar quem éo homem e quem é o ruminante.

Um par de olhos com aspupilas dilatadas pelas lentes dosóculos observa o trabalho delepor uma fresta na parede demadeira do boxe. Ele volta aatenção para o trabalho e percebeque está diante da vaca que temuma mancha marrom em forma

de gota na testa. Ele a marca comcruz e cal e, após ver-se refletidonos olhos dela, suspende amarreta e a acerta. Um filete desangue esguicha em seu rosto erespinga no olho direito. Ele secaa face com a ponta da camisa epede para o peão não liberar opróximo, pois precisa ir aobanheiro lavar o olho embaçado.

Santiago percebe o queaconteceu e diz para EdgarWilson que conseguiu um par de

óculos de esqui para ele, que jáestá a caminho, enviado comuma leva de seus pertencespessoais que estavam com oamigo da Finlândia. Meus diasde sangue nos olhos estãocontados, pensa Edgar.

Quando sai do banheiro,depara-se com o grupo deestudantes enfileirado,caminhando pelos corredores domatadouro, assemelhando-se aogado consternado que segue para

o atordoamento. A maioria temdificuldade para respirar e porisso eles colocam um lenço sobrea boca e o nariz. Algunsdecidiram recuar quandoavançavam para área de sangria,só em imaginar o que estariamprestes a ver. Estar diante de boise vacas pendurados de cabeçapara baixo pelas patas traseiras ecom os pescoços cortadosjorrando litros de sangue emtonéis fétidos, misturado a

vômito e outros excrementos,não era o que eles tinham emmente. Ninguém sairá impune.Este pensamento deixa EdgarWilson satisfeito. Aumenta oritmo de suas passadas emdireção ao boxe de atordoamentoquando Tonho o chama,apresentando-o para a turma.

— É ele quem coloca o boi pradormir.

Todos se viram para ele. Oprofessor Aristeu, que não abre

mão de um lenço quadriculadosobre o nariz, aproxima-se,estendendo o braço paracumprimentá-lo.

— Como vai? Eu sou oprofessor Aristeu.

— Edgar Wilson.— Então, Edgar Wilson, conta

pra gente um pouco do seutrabalho — diz, entusiasmado,porém com a voz sufocada porbaixo do lenço.

— Eu sou o atordoador.

Professor Aristeu estáimpressionado com o homemdiante dele.

— Ah, sim, fascinante.Acabamos de ver o processo deatordoamento pela fresta naparede. É um trabalho pesado.Demanda muita força física,muita concentração. Nem todosos alunos quiseram olhar. — Oprofessor Aristeu é interrompidopela voz de uma de suas alunas.

— Como é matar boi o dia

inteiro? O senhor não acha queisso é assassinato? O senhor nãoacha que sacrificar esses animaisé crime?

Edgar vira-se na direção davoz. Depara-se com o par deolhos com as pupilas dilatasprotegidos por óculos de arosvermelhos e pesados. A mulherjovem, vestida de saias longas eblusa branca de botão, fazconstantes anotações em umcaderno preto. Edgar observa

seus sapatos de couro em duascores, preto e marrom. Há umafivela prateada na lateral. Sãodelicados e limpos. Pensa na filhade Burunga, que precisa deóculos para seus olhosdeficientes.

— Acho.Todos permanecem em

silêncio, talvez aguardando pelaconclusão da resposta, talvezsurpreendidos por sua brevidade.A mulher gagueja ao intentar

mais uma pergunta, e dessa vezsua voz é mais contida e frágil:

— Então o senhor seconsidera um assassino?

— É.A curta resposta cala a mulher

e garante a quietude dos demais.Professor Aristeu sorri afastandoo lenço do nariz e esforça-se paradesviar a conversa.

— Há quanto tempo trabalhanesta função, Edgar?

— Uns dois anos.

— Ah, sim, que maravilha.Deve ter adquirido muitaexperiência — comenta,sustentando um sorriso fajuto eabanando as moscas graúdas quepovoam todo o ambiente.

— O senhor não seenvergonha disso? — a mulhermanifesta-se outra vez, agoramais incisiva.

Edgar olha para ela. Olha paratodos que estão a sua volta.Respira o perfume do matadouro

e enche o peito. Tira o boné dacabeça e ajeita os cabelos com osdedos. Algumas moscas pousamem seus cabelos curtos eensebados.

— Senhora...Faz uma pausa. Edgar Wilson

conhece o seu lugar e entendebem quais são as suas obrigações.Jamais foi questionado quanto àssuas tarefas. Lida com homensde gado e mulheres miseráveistodo o tempo. Está habituado ao

calor, à poeira, às moscas, aosangue e à morte. É nisto queconsiste um matadouro. Mata-se.Jamais intentou cruzar a cidade eir do outro lado questionar amaneira como preparam os filésque ele jamais comerá. Ele não seimporta com isso. Não se importacom quem comerá o boi queabate, importa-se emencomendar a alma de cadaruminante que cruza o seucaminho. Acredita que eles

possuem uma e que ele daráconta de cada uma delas quandomorrer. De cada quinhentos umaalma.

— A senhora já comeu umhambúrguer?

A mulher responde que simcom a cabeça.

— E como a senhora acha queele foi parar lá?

Todos os alunos seentreolham. O professor Aristeuabre um sorriso nervoso e tenta

emitir algumas palavras, masEdgar Wilson o afasta para o ladoe segue em direção à mulher queestá ao fundo do grupo. Ela seencolhe. Os outros recuam.Edgar encara a mulher,esperando por uma resposta. Elaabaixa a cabeça. Edgar apanhauma marreta caída no chão. Nãoé a sua, mas serve para os seuspropósitos. Ele entrega a marretapara a mulher. Ela não entende.Olha desorientada para ele. Ele

insiste e ela a segura. Ele abre aporta do boxe de atordoamento ea manda entrar.

— A senhora pode descobrirse quiser. Desde o início.Conhecer todo o processo, nãofoi pra isso que vocês vieram? Sequiser fazer o seu própriohambúrguer, o processo começaaqui.

A mulher larga a marreta nochão e começa a chorar. Umrapaz que se manteve todo o

tempo assombrado, ao deparar-se com o sangue no chão do boxee o cheiro da podridão, curva-separa a frente e vomita nas botasde borracha de Edgar Wilson.Este olha para o vômito e oignora completamente. Coloca oboné na cabeça, pede licença eentra no boxe, fechando a portaàs suas costas, sem dizer maisnenhuma palavra.

Capítulo 7

O velho Emetério recolhe comuma pá o estrume do gado deum dos currais vazios. Ele enchebaldes de excrementos e os jogadentro de um galão. Faz algunsdias que ocupa este novo posto,desde que se acidentou com umafaca enquanto a manuseava nosetor de graxaria. Está agradecidopor não ter sido despedido e por

não ter decepado o dedo. Suavisão já não é boa como antes eas mãos tornam-se rígidas a cadadia. As juntas dos ossos parecemenferrujadas. Sente dores nasarticulações, porém o velhojamais permite se abater, poispermanece vigoroso com seusorriso murcho e as costaserguidas.

Ao completar um galão deexcremento, rola-o até o local deestocagem, onde permanecerá

secando. Em poucos dias serávendido para uma empresapreparadora de adubo, que umavez na semana envia umcaminhão para buscar grandeslotes de matéria orgânica.

Ao entrar no galpão deestocagem, o velho encontraSantiago debruçado sobre umdos galões.

— O que você quer aqui? —pergunta o velho.

— Eu só vim pegar uns

cogumelos — responde Santiago,aparando com as mãos algumascabeças brancas de cogumelo.

— De novo? Isso não presta,garoto — diz com sua voz baixa epigarreada.

Santiago volta sua atençãopara o galão e continua catandoos cogumelos que encontra.

— Isso vai te deixar maluco —insiste o velho. — Sai daí.

— Eu só preciso de mais umpouco, velho. Já estou

terminando.Santiago leva a mão cheia de

cogumelos brancos contra o peitoe sai do galpão, animado.

— Patife — resmunga o velhopara si.

Santiago guarda em seuarmário os cogumelos enroladosnum pedaço de pano. Pretendecozinhá-los mais tarde. Puxauma caixa de papelão e verificaos seus pertences mais uma vez.Está tudo em ordem e ele apanha

os óculos de esqui no fundo dacaixa. Confere os elásticos e aarmação. Está perfeito. Tranca oarmário com um cadeado e saido alojamento em direção aoboxe de atordoamento.

Ajeita a touca na cabeça epuxa os óculos sobre os olhos.Entra no boxe e, assim que avistaEdgar Wilson, assobia para ele esuspende os óculos. Edgar apoiaa marreta no chão. Santiago jogaos óculos em sua direção.

— Experimenta! — dizSantiago, sorridente.

Edgar Wilson agarra os óculosno ar e imediatamente passa oelástico pela cabeça. Ajusta-osobre o nariz e olha ao redor. Fazum sinal positivo com o dedo esorri sem mostrar os dentes.

— Nada de sangue no olho —comenta Santiago, aquecendo-seantes de dar sinal para que opróximo da fila entre no boxe.

— Nunca mais — retruca

Edgar Wilson, e acerta com amarreta a fronte de uma vaca.

Quando o último homem sobena caçamba do caminhão, omotorista pisa no acelerador, e apouca velocidade segue emdireção à porteira do matadouro.Falta meia hora para anoitecer eresta apenas o pessoal dalimpeza, que prepara o local parao dia seguinte. Por mais queesfregue, o ambiente continua

sujo e fedido. Edgar Wilson saido banho e veste uma calça jeanse uma camiseta preta. Calça seuúnico par de botas de couro canocurto, que permitem umaaderência maior contra o solo epossibilitam-lhe boa flexibilidadenos movimentos. Permanecerentrincheirado no matodemanda certos cuidados. Colocaum chapéu preto, imitação domodelo australiano caçador, eajusta a corda pendurada pelo

pescoço.Vai se sentar no lugar que lhe

é habitual e com uma faquinhadescasca uma goiaba. ObservaSeu Milo ir embora mais cedo.Todos os sábados ele encontracom os amigos no bar para jogare beber. É seu único momento dediversão. Domingo é o dia dedescanso, tanto para os homensquanto para o gado. Nuncaderramam sangue no domingo,pois é um dia sagrado, segundo

Seu Milo, e o doutrinamentocatólico que recebeu toda a vida.Seu Milo costuma ir à missa coma família logo pela manhã,mesmo tendo bebido, jogado e sedeitado com prostitutas navéspera. Mas considera-se umbom homem e jamais foiconfrontado por suas atitudes.Acredita que a hóstia o limpa detoda impureza e o redime detoda imperfeição. Assim, aocomer a carne de Cristo e beber

do seu sangue, ele se sente partede Cristo. Porém, nunca pensouque ao comer a carne dos bois ebeber do seu sangue também setorna parte do gado quediariamente ele abate. Todas assegundas-feiras Seu Milo vaitrabalhar sentindo-se um homemde Deus que pratica a ordem deno suor do teu rosto comerás opão.

Com a ponta da faca EdgarWilson retira um bicho da

goiaba. Apanha outra no pé e, aoparti-la no meio, verifica aexistência de muitos bichos.Joga-a para o lado e volta a sesentar, imerso na quietude quelhe é peculiar, de olhospetrificados mirando o pasto asua frente, remói pensamentosimperscrutáveis; tão insondáveisquanto os olhos dos ruminantes.

Helmuth espreguiça junto àcerca do pasto, observando oanoitecer e espantando os

pernilongos que se multiplicam aessa hora, assim como as cigarras,que entoam cânticos estridentes.Apanha o terço que carrega sobreo peito e faz uma oraçãomovendo continuamente oslábios, emitindo vez ou outra umsom sibilante que se mistura aoszunidos dos pernilongos e aocanto das cigarras. Edgar Wilsongostaria de saber o que umhomem como Helmuth pede emsuas orações; talvez o mesmo que

ele, talvez o que todo homem alipeça.

Santiago sai do alojamentosegurando uma caneca dealumínio que às vezes,intercalando com suas passadas,ele beberica. Sai a passear pelafazenda, sozinho e com fones deouvido. Esbarra em Bronco Gil eparece não notar. Estala os dedose sacode os ombros. Bronco Gilcarrega um arsenal pessoal e, aochegar até onde Edgar Wilson

está sentado, joga tudo no chão.Helmuth benze a si mesmo, enfiao terço dentro da camisa eaproxima-se dos homens.

— Eu trouxe umas coisas. Fizumas armadilhas por aí, empontos estratégicos — afirmaBronco Gil. — A gente pega ele.

Helmuth escolhe o que querusar. Apanha uma das duasespingardas e experimenta apontaria, sem atirar.

— Vou ficar com esta aqui.

— O ferrolho tá agarrandoum pouco — comenta BroncoGil.

Segurando a armadescarregada, Helmuth tentadescobrir o melhor jeito dedriblar o defeito.

— Edgar, fica com a outra —ordena Bronco Gil.

Edgar Wilson apanha aespingarda do chão e abre o canona junta, conferindo que estádescarregada. Enfia algumas

munições no bolso da calça edeixa para carregá-la mais tarde.

O ronco do motor daretroescavadeira de Vladimir calaos pernilongos e abafa o cânticodas cigarras. Ele estaciona oveículo na área de carga edescarga. Desce segurando umrifle e carrega uma sacola communições pendurada nas costas.Caminha sem pressa fumandoum cigarro que enrolou fazpoucas horas. Cumprimenta a

todos e reclama de uma azia queo queima por dentro faz um dia.

A noite finalmente seacomoda sobre as suas cabeças.Eles se retiram para um outeiroonde montam uma base deobservação, apoiados num troncode árvore deitada. Pelos cálculosde Bronco Gil, o predador possuitrês alternativas de entrada nafazenda até atingir os pastos, e dolocal onde estão será possívelidentificá-lo assim que entrar.

Vladimir usa a luneta do riflepara observar a distância, e doisbinóculos são revezados entre osoutros três. Bronco Gil afia comum pedaço de pedra-pome aponta de uma flecha, tateando-ano escuro. Precisam permanecerno escuro e falar baixo, porém alua cheia e o céu estrelado osguiam. Uma hora de silêncio evigilância depois, Edgar Wilsonapanha a sacola com uma garrafatérmica com café e serve um

pouco para si. Os outros oacompanham. Vladimir selevanta e vai mijar aos pés deuma árvore.

— Espero que esse bicho nãodemore pra dar as caras —comenta Helmuth.

— Era onça ou javali? —questiona Vladimir, retornandode mijar e se acomodando nochão.

— Não deu pra ver direito —diz Bronco Gil.

Os homens caem nagargalhada. Bronco Gil fica sério.

— O Edgar contou que o teuolho caiu — diz Vladimir,debochado.

— Mas o olho bom tava bemaberto — responde Bronco Gil,enfurecido. Ele se levanta ecaminha para longe.

— Esse índio filho da mãe...— murmura Vladimir.

— E você, Edgar, não viunada? — pergunta Helmuth.

— Não tinha nenhumpredador — responde lacônico.

— É claro que tinha — retrucaBronco Gil em tom altoenquanto mija numa árvore.

— Mas você não viu — dizHelmuth para Bronco Gil.

— E então, Edgar, o que foique você viu? — insiste Vladimir.

— A vaca se atirou contra aparede do matadouro —responde Edgar Wilson.

— Assim, sem mais nem

menos? — fala Vladimir.— Edgar, você não sabe o que

fala — contesta Bronco Gil aoretornar.

— Eu sei o que vi. E não tinhanenhum predador lá. Nem nopasto, nem fora. A vaca se matou— conclui Edgar Wilson.

— Uma vez eu tive um cavaloque se recusou a comer edefinhou até morrer — comentaHelmuth. — Nem água ele bebia.Virava o cocho.

Bronco Gil pede silêncio e oshomens se posicionam.

— Ouvi alguma coisa — diz.Eles observam à distância,

procurando por algummovimento nos pastos e aoredor. Não há nada. Passadosalguns instantes de silêncio,Helmuth pergunta:

— É na segunda-feira que vaichegar um carregamento deovelhas?

Edgar Wilson diz que sim e

completa afirmando que nãogosta de abater ovelhas.

— Elas se ajoelham e choramquando vão morrer — justificaEdgar.

— Mas a carne é saborosa —comenta Bronco Gil.

— Verdade — concordaHelmuth.

— Uma vez, lá na tribo, agente precisava capturar porcosselvagens — começa Bronco Gil.— E aí, o jeito foi colocar umas

ovelhinhas pra atrair eles.Rasgavam elas no meio edividiam os pedaços. Todos osdias eles voltavam em maiornúmero e a gente ia colocandocercas no local, dia após dia. Eeles sempre voltavam em maiornúmero. Achavam que caçavama ovelha, mas no quinto dia elesjá estavam cercadoscompletamente, e, quandoenfiamos a última estaca,predemos mais de trinta porcos.

Cinco ovelhas por mais de trintaporcos selvagens...

— É bem vantajoso — analisaVladimir.

— A gente confinava todos deuma vez só — Bronco Gil falacom prazer — e ia abatendo elesbem devagarinho.

— Comida é o que atrai osanimais e deixa eles bem mansos— diz Edgar Wilson.

— Por isso mesmo, Edgar.Como a vaca foi endoidar assim?

Elas ficam aí confinadas,comendo e bebendo... sóesperando morrer — falaVladimir.

— Mas isso elas não sabem —retruca Helmuth.

— Como você tem certeza queelas não sabem? — indaga EdgarWilson.

Eles ficam em silêncio até queum barulho vindo dos pastos éouvido novamente. Bronco Gil,agachado com o binóculo, afirma

haver uma movimentaçãoestranha em um dos pastos.

— Agora você vai ver, EdgarWilson, se existe ou não umpredador.

Apoiado no tronco, Helmuthincita-os dizendo que pode sermais de um. O barulho no pastoaumenta.

— Cuidado pra não atirar emnenhum boi — diz Vladimir.

— Espera — fala Helmtuh,acenando para Bronco Gil baixar

o arco e a flecha. — É o cachorro.É o Feinho passeando no meiodas vacas.

— Tem certeza? — questionaBronco Gil.

— Eu conheço esse vira-latamuito bem. É ele sim... é oFeinho. Ele gosta de perambularpelos pastos.

Decepcionado, Bronco Gilabaixa o arco:

— Vou dar uma olhada poraí, farejar alguma coisa. — E sai a

caminhar.O dia está quase

amanhecendo. Vladimir estácochilando, Helmuth e EdgarWilson estão visivelmentecansados. Bronco Gil passou todaa madrugada sentado numtronco de árvore a cinco metrosdo chão, pois queria expandir oalcance de sua visão.

Uma agitação num dos pastosseguida dos latidos de Feinho.Todos se colocam a postos.

Bronco Gil pula da árvore e vaipara a beirada do outeiro. Osoutros verificam pelos binóculose confirmam que alguma coisaestá acontecendo no pasto.Bronco Gil se anima. Enche opeito de ar.

— Tem chifres — falaVladimir, olhando pela luneta deseu rifle. — Está se mexendo comvelocidade.

As vacas se tornam maisagitadas e alguns grunhidos

ecoam misturados aos mugidos.— Que porra de bicho é esse!

— exclama Helmuth com osolhos pregados no binóculo.

— Não é onça — dizVlamidir.

— Nem javali — completaBronco Gil.

As vacas correm de um ladopara o outro, espremendo-seumas contra as outras. Um levepavor alcança os homens, quenão conseguem identificar o

animal nem pela aparência nempelos grunhidos. Mais algunsminutos e o dia os alcançará etrará uma perfeita visibilidade,mas o desespero crescente nopasto faz com que eles desçam doouteiro, com armas em mira, ecerquem o local. O animal passacorrendo, desafiando oentendimento dos homensdevido à maneira como semovimenta. Nunca viram chifrestão altos nem movimentos tão

velozes. Bronco Gil, com a flechaestendida para trás, aguarda tãosomente uma brecha entre osruminantes e, quando aencontra, dispara.

As vacas estão agitadas, porémnada mais se move de um ladopara o outro.

— Acertou? — grita Helmuth.— Acho que sim — responde

Bronco Gil.— Não tô vendo nada se

mexer — diz Vladimir.

— Tem alguma coisa caída nomeio do pasto — fala EdgarWilson assim que as vacas abremum clarão ao redor do animalcaído, que ainda se mexedevagar.

— Ainda tá vivo — completaEdgar Wilson, pulando a cercado pasto e caminhando compressa até o animal, com aespingarda em riste.

— Eu te disse, Edgar, eu tedisse que tinha um predador —

gaba-se Bronco Gil.Edgar Wilson toca o animal.

Os outros se aproximam emseguida.

— O que é? — perguntaVladimir, afobado.

— É o Santiago, o novoatordoador. Ele acha que é umarena.

Edgar puxa da cabeça dorapaz uma galhada presa porelásticos e o descobre da pele deonça que veste.

— Mas que raio... — balbuciaBronco Gil, atônito.

— É a pele de onça que ficano escritório do Seu Milo — falaHelmuth.

A flecha atravessou o ombrode Santiago e ele geme baixinho.

— Quase atirei nele —constata Vladimir.

Edgar Wilson dá uns tapas norosto de Santiago para o acordar.Ele abre os olhos. Está muitoassustado.

— Leva ele pra dentro —ordena Bronco Gil, e os outroshomens o carregam com cuidadopara a cozinha do alojamento.

O velho Emetério já estáacordado, passando café.Questiona o que houve. Oshomens explicam.

— Eu disse pra ele que tomaraquela porcaria de chá decogumelo de bosta de vaca iadeixar ele maluco. Eu avisei.

Depois de colocarem Santiago

sobre a mesa comprida e estreita,o velho lhe dá uma dose forte decafé para que recobre os sentidos.

— Dá um pouco de pinga praele, velho — fala Bronco Gil.

O velho apanha a garrafaguardada debaixo do seu colchãode palha e destampa a rolha comforça. Edgar Wilson suspende acabeça de Santiago e o velhoEmetério derrama a pinga goela abaixo.

— Patife! — exclama quando

Santiago cospe a bebida no seurosto.

— Segura ele — ordenaBronco Gil a Edgar e a Helmuth.

Com um alicate corta a flechaatravessada no ombro. Santiagoesperneia. Edgar Wilson tampasua boca para que não grite. Ovelho Emetério traz uma trouxade meia suja e enfia na boca dorapaz. Bronco Gil começa a puxara flecha pela ponta, e aos poucosela começa a escorregar.

Vladimir mantém as pernas deSantiago bem firmes. Ele sedebate, e antes mesmo que aflecha saia completamente já estádesmaiado sobre a mesa. Com opedaço da flecha na mão, BroncoGil olha bem de perto o buracoque ficou. Cobre a ferida comum emplastro de ervas e fumoque ele mesmo prepara.

Edgar Wilson sai pela fazendacarregando uma caneca de café

recém-passado pelo velhoEmetério. Decide esticar aspernas e contemplar o céu abertopela luz do dia, que empurraalgumas nuvens escuras para amargem do firmamento. Os raiosdo sol começam a surgir por trásde uma montanha e o vale seenche de paz no início damanhã. Respira profundamenteo cheiro orvalhado damadrugada úmida. Hoje édomingo, e por isso balbucia uma

oração dos tempos de garoto.Edgar Wilson sabe que Deus estános lugares altos e que Ele seergue todos os dias com o sol.Sua fé permanece, mas sabe quesua própria violência nuncapermitirá que um dia veja a facedo Criador. Poderia se redimir,mas nunca se esforçou para isso.Seu livre-arbítrio o faz escolheroutra direção, então EdgarWilson quer preservar a imagemdo sol e de seus raios surgindo na

alvorada, pois compreende que,para onde vai, não verá o sol,nem seus raios; não terá auroranem o surgimento do Criador.Lá, será como estar dentro deuma mina de carvão, soterradonas profundezas, sem jamais vera luz do dia. Mesmo depois dedois anos, Edgar Wilson aindanão se esqueceu da mina ondetrabalhou e de como a escuridãoo afetou para sempre. De certaforma, ele anseia por isso, por

compreender que à luz do sol hájulgamento, porém, às sombras,tudo se encobre.

Volta para o alojamento poroutro caminho, e assim precisacontornar um laguinhoesquecido numa parte dafazenda, onde outrora se criavampatos. Mas desde que chegou alijamais viu um pato. Sentindo-semuito cansado e sonolento,Edgar Wilson esfrega os olhosardidos ao observar a uma

distância de metros algo boiandono laguinho. Mantém acaminhada no mesmo ritmo,temendo o que encontrará.Percebe que ainda há um restode café na caneca e, mesmo frio,ele engole, antes de se abaixar nabeira do laguinho e fazer o sinalda cruz diante da vaca afogada.Apanha um pedaço de galho ecutuca-a em vão. Levanta-se ecaminha para o alojamento empassadas ritmadas,

demonstrando a calma que lhe épeculiar. A vaca morta não podeser salva. Nem mesmo ele, queainda está vivo.

Capítulo 8

Bronco Gil mantém-se firmena ideia de que há um predadorrondando, insuspeito, os limitesda fazenda. Seu Milo gostaria decontratar mais homens paraguardarem o local, porém não hárecursos para mão de obra extra.

Desde que a vaca foiresgatada do laguinho com aajuda da retroescavadeira de

Vlamidir e não foi constatadanenhuma marca de mordida oulacerações de garras, tudo voltouà aparente normalidade habitual,mas os homens andamdesconfiados em relação ao gado.Vacas não se afogam em lagos,elas não invadem a água, amenos que estejam acuadas. Eesta é uma das linhas deraciocínio de Bronco Gil.

Seu Milo levanta a cabeçaquando ouve uma leve batida na

porta entreaberta do escritório eobserva Bronco Gil posicionar-seà sua frente, quase tocando acabeça no teto rebaixado degesso.

— O que foi? — diz o patrão,folheando algumas notas fiscais.

— Seu Milo, faz uma semanaque as vacas têm se comportadobem. Todo dia faço a conferênciae nenhuma se perdeu nemapareceu morta.

Seu Milo expressa um

contentamento sutil devido aoseu semblante constantementepreocupado.

— Ainda não entendo o queaconteceu. Achei que fosse culpadaquele Santiago espantando osbichos, mas depois da vacaafogada acho que ele não teveculpa não.

— Ele tá melhor?— Já pegou no batente de

novo. Ele é meio doido, mas étrabalhador e prestativo.

— Bronco, eu quero que vocêcontinue de olho.

— Algum problema, patrão?Seu Milo deixa sobre a mesa

todas as notas e reclina as costasna cadeira. Ele coça a orelha poralgum tempo, em silêncio, antesde dizer:

— Eu não queria estarpensando nisso, mas acho quepodem ser aqueles ladrões degado que roubaram a fazenda doTapira faz uns dois meses. Nunca

pegaram eles.— Eu não tinha pensando

nisso — murmura Bronco Gil.— Eu acho que eles

assustaram as vacas e causaramtodo aquele alvoroço.

— Por isso não tinha marca depredador nem nada — comentaBronco Gil.

— Se foram eles, vão voltar,não acha?

— Acho sim senhor. E eu vouestar esperando.

— Esses ladrões de gadolevaram à bancarrota algumasfazendas e matadouros proslados do leste. Alguns forampresos, mas nunca deu em nada.Você sabe que essas coisas nuncadão em nada.

Seu Milo se levanta e apanhade trás de uma estante demadeira um rifle.

— Quando comecei o meunegócio, passava a noite devigília, botando pra correr os

ladrões de galinhas. Comecei omeu negócio criando galinhas,até que um dia comprei o meuprimeiro boi.

Seu Milo suspira e em seguidaretorna à realidade.

— Fez a conferência docarregamento de ovelhas?

— Tá tudo em ordem. OEdgar já tá encarregado de abatero lote todo. Não sei se ele sabefazer o serviço direito.

— Eu não posso rejeitar

encomendas — diz Seu Milopensando nos seus compromissoscom os credores. — Se precisar,ajuda ele, mas o Edgar sempre dáum jeito de se virar sozinho —volta a atenção para sua mesa.Bronco Gil pede licença e seretira.

Um lote de sessenta ovelhas seespreme num curral afastado dosdemais aguardando seremlevadas para o abate. Seus balidos

se misturam aos mugidos de boise vacas, porém, ecoam maisdistantes e agudos. Burungarecolhe em seu chapéu de palhauns trocados e está determinadoa mergulhar a cabeça no tonel deágua pela terceira vez estasemana. Ele tem quase todo odinheiro de que precisa para osóculos da filha. Mais algunsdesafios e ele terá conseguido aquantia exata. O velho Emetériosegura o cronômetro.

— Helmuth, tem certeza quenão quer mudar a aposta? —pergunta o velho sorrindo com adentadura frouxa.

— Eu mantenho a minhaaposta, sempre.

— E você, Edgar?— Eu prefiro só ficar olhando.Burunga deixa o chapéu de

palha no chão com todos ostrocados da aposta e suspende ascalças arriadas nas nádegas.Estala os dedos e toma fôlego,

enchendo-se de ar. Segura asbordas do tonel e mergulha acabeçorra. Cinco segundosdepois, começa a se debater e afazer a água borbulhar. Os queestão a sua volta riem da novaperformance e dão gritos deincentivo. Aos poucos, elecomeça a se aquietar e o velhoEmetério confere que o tempo seprolongou demais. Burunga nãomexe nenhum músculo. Um doshomens toca as suas costas e

recua com o impacto de umchoque.

— Ele está dando choque —afirma o homem, sentindo a mãoe o braço latejarem. — Nãotoquem nele.

Bronco Gil, que observa todaa situação, aproxima-se algunspassos e laça-o puxando para forado tonel. Burunga cai morto nochão, com um semblanteimpactado, de olhos abertos e alíngua esticada para fora.

— Tem uma coisa se mexendoaqui dentro — diz Edgar Wilsonolhando para dentro do tonel.Helmuth aproxima-se dele e osdois observam o que parece umacobra debatendo-se nas águas.

— É uma enguia — diz EdgarWilson.

— Quem colocou esse bichoaqui? — questiona Helmuth.

— Acho que sei quem foi —responde Edgar Wilson.

Santiago aproxima-se dos

homens, distraído e com fonesde ouvido. Vê Burunga caído nochão e Edgar Wilson e Helmuthao lado do tonel. Edgar apanha aespingarda sobre os ombros deBronco Gil, retorna ao tonel e,assim que Helmuth vira-o nochão, a enguia corre desesperada.Edgar Wilson dispara um tiroque a parte ao meio. Santiagoestá pálido e com a mão sobre opeito. Edgar Wilson olha para elee caminha em sua direção.

— Nunca traga a morte do riopra dentro da sua casa ou do seutrabalho.

— Ele vai ficar bem? —pergunta Santiago.

— Só Deus sabe. Mas, porhora, ele está morto.

Santiago está desesperado.Bronco Gil aproxima-se dele:

— Eu devia ter acertado o seupescoço quando tive chance —rosna.

— Eu só queria criar a enguia,

era de estimação, eu ia criar elano laguinho abandonado.

— Você levou ela pro lago? —pergunta Bronco Gil.

— Eu ia levar hoje, mas eutava sem tempo, por isso ela tavaainda no tonel. Eu achei que essetonel estivesse abandonado...achei que o Burunga só usava ooutro. — Santiago está quase emprantos.

— Pra que você queria umaenguia elétrica de estimação? —

pergunta Edgar.— Por que eu achei que seria

divertido — murmura.— É um cabeça de bosta —

diz o velho Emetério. — Cometanta bosta de vaca que deunisso. Patife!

Santiago segue transtornadopara o alojamento sem dizer maisnenhuma palavra. Antes passapor Burunga, e, ajoelhado aolado do seu corpo, faz o sinal dacruz e pede desculpas. Junta os

seus pertences e, deitado numcolchonete no chão doalojamento, espera pela decisãodos outros. O trabalho nomatadouro fica parcialmentesuspenso, já que Burunga era oresponsável por conduzir o gadoaté o abate. Somente no fim datarde um carro da políciaatravessa a porteira da fazenda,seguido por um rabecão.

O corpo de Burunga estácoberto com um lençol e velas

foram acesas ao seu redor. SeuMilo está transtornado, pesa-lheo prejuízo de um dia de trabalhoimprodutivo.

Os homens contam aospoliciais o que ocorreu.Embrulham a enguia partida aomeio como prova da arma doincidente e enfiam Burunga natraseira do rabecão. Santiago éconduzido à delegacia para darseu depoimento, assim como SeuMilo, mas antes o rapaz entrega

uma sacola a Edgar Wilson e lhedá um abraço:

— Edgar, eu sinto muito —diz, baixando a cabeça com ocoração quebrantado eenvergonhado.

Santiago entra no carro dapolícia e senta-se no bancotraseiro. Seu Milo os segue nasua caminhonete e pede aoshomens que retornem aotrabalho e que ninguém váembora, que todos devem

trabalhar pela noite e pelamadrugada. O funcionamentodo matadouro não pode serprejudicado por causa da mortede um homem, pois ainda restammuitos bois a serem abatidos. Eas ovelhas devem estar prontasaté o fim do dia seguinte,quando o caminhão-frigoríficovirá buscá-las.

Após todas as ordens, SeuMilo arranca com a caminhonetee as cigarras começam a cantar.

Hoje não haverá fim de tarde nohorizonte nem descanso. Todosfarão hora extra.

No fim da madrugada EdgarWilson está banhado de sangue.Todas as vezes que ia abater amarretadas uma ovelha, elaajoelhava à sua frente e baixava acabeça, em suplício. Em muitasdelas ele via lágrimas escorrerem.Sendo assim, decidiu degolá-las,prendendo-as firme nos braços e

tapando os olhos delas.Apanha um cigarro na cartela

quase vazia e o acende com umfósforo. Não comeu nadadurante o dia e não conseguesentir fome. Apenas toma algunsgoles de café. É tudo o que temsuportado. O dia ainda não dánenhum sinal, mas não importao que houver, ele surgirá emuma hora e meia.

— Edgar. — Helmuth entregaa ele uma caneca de café. Edgar

aceita. — Diazinho desgraçadode longo — diz Helmuth seespreguiçando.

Edgar permanece calado.Saboreia o café frescoprovavelmente feito pelo velhoEmetério.

— Que sujeito mais idiota...quem cria uma enguia elétrica?— murmura Helmuth. — Seráque foi preso? Bem, ele não fezde propósito, é um doido. Deveter sido solto...

Edgar Wilson permanececalado como se não ouvisse nada.Helmuth o chama pelo nome e osacode. Percebe que Edgar estácoberto de fibras, pelos e sangue.

— Elas se ajoelham e choram— diz Edgar com a voz baixa,sonolento.

— Do que você está falando?— As ovelhas. Elas te olham,

se ajoelham e choram antes demorrer.

Edgar Wilson dá uma longa

tragada no cigarro. Enche ospulmões de fumaça e solta pelonariz lentamente.

— Quase não consegui. Tiveque quebrar o pescoço dealgumas primeiro, aí eu cobria osolhos delas e as degolava —conclui Edgar.

— Você precisa de um banho— diz Helmuth.

— Que tipo de homem évocê? — pergunta Edgar Wilson.

— Um homem de gado.

Caem em silêncio. Somente osom delicado do cigarroqueimando ao ser tragado podeser ouvido.

— Edgar, são apenas animais.Estão debaixo da nossaautoridade.

— Pra viver e pra morrer?— Pra nos servir.Edgar Wilson apaga a ponta

do cigarro na cerca de madeiraem que está apoiado e se retiraem silêncio direto para o

banheiro. Ao terminar de selavar, veste-se e vai se deitar umpouco, pois tem duas horas dedescanso antes de voltar aotrabalho. Apanha a sacola queSantiago lhe entregou e conferealguns enlatados de carne derena e de alce, ou assim os julgapelos desenhos nos rótulos, e umcartão-postal com uma paisagemda neve sobre um banco demadeira entre árvores altas.Tudo é encoberto pelo gelo e

resplandece uma luz que jamaisimaginou existir. Sentirá falta deSantiago.

Capítulo 9

Edgar Wilson tornou a ser oúnico atordoador do matadouro.Seu Milo prometeu contrataroutro funcionário para ajudar natarefa, mas não mostrou fazerisso tão cedo. Duas semanasdepois da morte acidental deBurunga, é como se ele nuncativesse estado ali. Em sua função,foi colocado um dos funcionários

do setor de bucharia que já tinhaexperiência nessa atividade, e nabucharia o trabalho foi divididocom os funcionários que jáestavam lá. Assim como o gadoassemelha-se entre si, sendodifícil a distinção entre eles, comos homens parece ocorrer omesmo. A linha do tempo écomo a linha da morte: não podeser interrompida.

Os bezerros continuam sendoabortados, porém nenhuma vaca

ou boi se perdeu ou apareceumorto. Algumas vacas continuampastando em direção ao oeste,enquanto outras se mantêmviradas para o norte, comohabitual. Ninguém parece seimportar com esse detalhe, masEdgar Wilson sabe que algumacoisa ainda está errada e que anormalidade no matadouro éaparente. Ele sabe disso quandoobserva o gado pastando, quandoolha em seus olhos, quando vê o

seu próprio reflexo neles.A ideia de ladrões de gado

permanece como alerta, e BroncoGil perambula todas asmadrugadas nos pastos e nopequeno frigorífico. Os ladrõesroubam tanto o gado quanto ascarnes. Depende da quadrilha ede como está aparelhada. Masseu instinto diz que não háladrões rondando o local. O queocorreu não foi tentativa deroubo. Havia uma espécie de

desordem, um desequilíbrio quenunca havia presenciado e quenão sabe explicar. Pensa no queEdgar Wilson haviatestemunhado quando dizia nãoter visto nenhum predador.Imagina que ele possa estarcorreto e que a vacaenlouqueceu. Que ela correucontra o muro do matadourodepois de arrebentar a cercaporque assim o desejou.

São esses seus pensamentos

enquanto permanece sentadodebaixo da goiabeira, quieto,observando o céu estrelado e alua redonda parcialmentechamuscada de nuvens.Descansa da segunda ronda queacabou de fazer. Os currais e ospastos estão silenciosos. Feinhopermanece de prontidão,entrando e saindo dos pastos,aninhando-se às vacas. BroncoGil decide ir dormir e deixar quea noite o embale como faz com

todos os outros. Levanta-se e vaipara o alojamento. Joga aespingarda, o arco e a flecha nochão. Tira o chapéu, as botas, ascalças, os suspensórios e o olhode vidro, que guarda dentro deum copo. Permanece somentecom a cueca samba-canção euma camiseta branca quecostuma usar por baixo da blusaxadrez. Quando seu corpo toca acama, sente o peso dos diasmaldormidos e relaxa

profundamente, embalado peloronco dos outros homens e doseu próprio rosnado.

Uma mosca pousa na órbitaocular de Bronco Gil. O músculono fundo do buraco se contrai.Abre o olho e ao seu redor nãohá ninguém. Escuta umburburinho vindo de fora.Levanta-se, sabendo que dormiualém do que deveria. Veste suasroupas, calça as botas e enfia oolho, deixando-o torto, virado de

um jeito como se olhasse para asua própria orelha. Mas oburburinho é crescente duranteesse curto período, e resolve sairantes de passar no banheiro, semesquecer de pendurar aespingarda sobre os ombros.

— O que está acontecendo?Por que não estão trabalhando?— pergunta Bronco Gil, aindasonolento.

Três homens discutem entre sina porta do alojamento antes de

responder à pergunta.— Fomos roubados — diz um

deles.Bronco Gil franze o cenho e

dá um passo para fora doalojamento confrontando aclaridade do dia, retraindo oolho.

— Foi num dos currais... tápraticamente vazio — diz outrohomem.

— Acho que umas vintecabeças desapareceram —

constata o terceiro.Bronco Gil sente que precisa

esvaziar a bexiga ao mesmotempo que o pavor lhe percorreas veias. Retorna dez minutosdepois com a cara lavada, o olhoendireitado e os dentesescovados. Emetério serve a eleuma caneca de café e Bronco Gilquebra o topo de um ovo degalinha dando pancadinhas coma unha do dedo indicador,fazendo um buraco do tamanho

suficiente para deixar o conteúdosair e escorregar pela suagarganta.

— O que vai fazer? —questiona Emetério, num tom devoz ainda mais baixo que ohabitual.

Bronco Gil demora pararesponder e pensa enquantosaboreia o vestígio do ovo cru.Seu Milo precisou viajar por doisdias para o enterro de sua sograque morava numa cidade a cerca

de duzentos quilômetros dedistância dali. Na ausência dopatrão, ele é o encarregadoprincipal. Não quer perder seuemprego, muito menos serenvergonhado.

— Vou buscar as vacas.— Como vai fazer isso? —

pigarreia o velho.Ele não responde. Segue até o

curral e constata a cerca rompida.Fiapos de pelo, sangue e peleestão agarrados nos arames.

Exatamente como na noite emque a vaca, sozinha, rompeu acerca. As pegadas do gado estãoespalhadas como se tivessempisoteado por toda parte, masnão levam a lugar nenhum. Naporteira, não há marcas de pneusde caminhão. Para transportarvinte e duas vacas, esse é onúmero exato do desfalque, seriapreciso um caminhão dosgrandes. Não há pegadas nocaminho que leva à porteira. Por

fim, tem a impressão de quedesapareceram. Percebe que amadeira das cercas está úmida, eisso é indício de chuva durante amadrugada.

Pede aos homens queretornem ao trabalho e deixaTonho armado e de vigília. Entrano boxe de atordoamento ondeEdgar Wilson se prepara.

— Vou precisar de você e doHelmuth.

— Quem vai abater o gado?

— Vou deixar por conta do ZéFilho.

— Ele tem pouca experiência.— Mas sabe se virar.Edgar tira o boné e os óculos

de esqui.— Vamos pegar esses

desgraçados, Edgar. Conto comvocê. Ninguém me rouba dessejeito e fica por isso mesmo.

— Sabe quem foi?— Não, mas ficar aqui parado

não dá. Vou até a fazenda do

Régis Leitão pra ver se sabem dealguma coisa.

Bronco Gil hesita por uminstante. Rodeia em curtaspassadas o boxe deatordoamento.

— Soube um tempo atrás queele tava receptando gadoroubado. Quero dar uma olhadano local.

Os três homens se espremem nacaminhonete. Bronco Gil dirige,

Edgar Wilson está sentado aolado da janela, expelindoseguidamente a fumaça de seucigarro, e Helmuth está entre osdois, com seus olhos de peixemorto aguardando por umaordem.

Contornam o Rio das Moscas,e a mortandade de peixes, que seestende por grande parte damargem do rio, chama a atençãodos homens. Edgar pede aBronco Gil para parar o veículo.

Eles descem e se aproximam doaglomerado fétido de algunspeixes que ainda se debatem. Osol brilha intensamente. O céuestá azul e resplandece uma corgloriosa. Edgar distancia-se epermanece olhando para o altopor alguns instantes, enquanto osoutros dois caminham entre ospeixes mortos e moribundostapando os narizes e especulandoo motivo da agressivamortandade.

— Acho que as águas estãoenvenenadas — comentaHelmuth.

— É o sangue, é isso que temcontaminado o rio — diz BroncoGil analisando o cheiro da água eexperimentando com a ponta dalíngua o seu sabor. — Tá salgada— ele fala. Experimentanovamente e certifica-se aogritar: — A água tá salgada.

— Isso é um rio! — debochaHelmuth.

— Experimenta você —Bronco Gil o instiga.

Helmuth se agacha, traz umpunhado de água na mão. Aotocar a ponta da língua napequena poça, amarga osemblante e se levantaapavorado.

— Tá salgada — murmurapara si, antes de repetir em vozalta.

Edgar Wilson desperta de seumomento de contemplação

quando gritam o seu nome.— Eu nunca vi uma coisa

dessas — balbucia Bronco Gil,espantado.

— Acho que nenhum peixevai sobreviver nesse rio salgado— diz Helmuth.

Edgar Wilson não diz umapalavra sequer. Apenas observa,temeroso.

— A morte está assolando orio — diz Bronco Gil, evocandoseus antepassados com pequenas

rezas emitidas entre os lábios. —Parece uma maldição. Umespírito muito ruim anda poressas águas — conclui.

— Será que tem a ver com otanto de sangue jogado no rio?— questiona Helmuth,mostrando-se ainda maisperturbado ao concluir apergunta.

Edgar Wilson suspende seuchapéu modelo caçadoraustraliano e estende o olhar de

tal maneira que parece tocar alinha tênue que liga as águasturvas do rio ao céu.

— O rio está morto — afirmaEdgar Wilson, para em seguidadar as costas e retornar para acaminhonete. Os homens emsilêncio apenas concordamacenando com suas cabeças antesde segui-lo.

Continuam a viagem equarenta quilômetros depoischegam à fazenda e matadouro

do Régis Leitão. A porteira estáaberta. A placa com o nome dafazenda está caída no chão.Passam com a caminhonete porcima dela, se dirigem à área decarga e descarga e estacionam aolado de uma carroça sem rodas.

O local está deserto,constatam isso antes mesmo dedescerem do veículo. Caminhampor dez minutos, cada um paraum lado, e parece que hásemanas ninguém visita o lugar.

Dentro do matadouro, há apenascachorros vira-latas e ratosdisputando restos bovinos. Oscurrais estão vazios. Um tratorquebrado enferruja ao relentocercado de mato. No pequenoalojamento, há apenas algunstrapos pelo chão, guimbas decigarro e garrafas de pinga vazias.Bronco Gil confere que oescritório de Régis Leitão estátrancado quando força amaçaneta.

Os três homens sereencontram no pátio de carga edescarga, mostrando-se maisconfusos do que quandochegaram.

— Deve ter pelo menos ummês que ninguém pisa aqui —comenta Helmuth.

— Mas que raio táacontecendo? — murmuraBronco Gil. — Nunca soube quetivessem fechado o lugar.

— Bem, eles não estão com as

nossas vacas — fala EdgarWilson.

— O escritório tá trancado —diz Bronco Gil. — Acho melhor agente dar uma olhada lá dentro.

Edgar Wilson apanha um péde cabra no matadouro e os trêsseguem até o escritório.Arrombam a porta e a estátua deSão Roque, localizada acima dobatente da porta sobre umapequena prateleira, espatifa-se nochão, passando a poucos

centímetros do nariz de Edgar.Eles entram com cuidado. Ocheiro de mofo é repulsivo,porém não há nada suspeito nolocal ou que indique ofechamento do matadouro.Edgar Wilson recolhe os cacos deSão Roque no chão, o que paraele é um mau presságio. Colocaos cacos sobre a mesa doescritório e os três saem dali,sentindo-se sufocados.

Novamente reunidos no pátio,

eles permanecem em silêncio,pensativos. Apartam-senovamente uns dos outros, embusca de pistas ou restos queapontem para o que aconteceu.Meia hora depois, estão juntos ealquebrados.

O céu faz uma hora tornou-secinzento e as nuvens pesadasestão sobre a região. Apósalgumas trovoadas, eles entramna caminhonete e a chuva grossaos alcança no trajeto de volta.

Apenas o limpador de para-brisa do lado do motorista estáfuncionando. Devido à poucavisibilidade, Edgar Wilsoninsistiu com Bronco Gil paraguiar a caminhonete. A chuva eo vento aumentam ao longo daviagem pela estrada deserta. Aqueda de uma árvore obrigaEdgar Wilson a fazer outropercurso, desviando-se daestrada principal e tomando umcaminho alternativo, mas pouco

recomendado devido àsdepressões no solo, ao barro quese torna escorregadio em contatocom a chuva e ao abismo semnenhuma mureta de proteção.Edgar fez esse caminho diversasvezes e sempre que pode descedo carro para ver o Rio dasMoscas do alto, que para ele éuma visão privilegiada em diasde sol.

— Acho que devemos parar— diz Helmuth. — Tá chovendo

demais.Edgar concorda em parar

assim que encontrar um pontofavorável e recuado da estrada,mas antes que isso aconteça umdos pneus traseiro atola. Elesdescem para empurrar acaminhonete.

— Vamos deixar aqui mesmoe ficar lá embaixo das árvores —fala Helmuth.

— Aqui costumam passaralguns veículos — grita Edgar

Wilson encharcado pela chuva,com sua voz abafada pelostrovões. — Precisamos tirar acaminhonete do caminho.

Bronco Gil apanha um tocode árvore e coloca embaixo dopneu atolado e, enquanto ele eEdgar Wilson empurram acaminhonete, Helmuth acelera oveículo sem conseguir movê-lodo lugar.

A chuva aumenta e o barrotorna-se uma sopa escorregadia

que faz os pés afundarem. Otrecho em que estão é umadescida suave, porém, nessascircunstâncias, não há nenhumatrito do pneu com o solo, acaminhonete ameaça escorregarpara o precipício.

— Não está adiantando —grita Edgar, sujo de lama.

Bronco Gil quer tentar maisuma vez e empurram novamentea caminhonete, que começa a semover lentamente. Edgar Wilson

empurra com o pé o toco deárvore para dar mais estabilidadeao pneu e isso a faz deslizar parao lado, tombando em direção aoprecipício. Eles gritam paraHelmuth sair do veículo e elepula numa poça de lama a tempoe agarra-se ao mato pouco antesde ver a caminhonete cair noprecipício e espatifar-se láembaixo.

Ficam os três paralisados. Umraio cai numa árvore próxima a

eles. Helmuth se levanta e evitaolhar para trás, para o que seria asua queda. Edgar Wilsoncaminha vagaroso até a beira doabismo e apoia os pés numapedra áspera que suporta seupeso. Ele olha para baixo e vê amargem do rio, a que ficacontrária à estrada pela qualcostumam trafegar. Bronco Gilgrita para ele sair e se protegeremsob uma árvore mesmo sendoperigoso, pois a chuva está com

proporções descabidas eincomuns para esta época doano.

Edgar Wilson não respondeaos chamados de Bronco Gil epermanece olhando para oprecipício, tornando-se apenasuma silhueta debaixo daenxurrada. Ele acena paraBronco Gil e Helmuth. Eleshesitam. Edgar insiste.

— O que você quer, Edgar?Saia daí — grita Bronco Gil.

— Eu encontrei — respondeEdgar Wilson.

— O quê? — berra BroncoGil.

Um relâmpago faz Bronco Gile Helmuth recuarem e EdgarWilson leva as mãos na cabeça,protegendo-se.

— Eu encontrei — insisteEdgar Wilson.

— Edgar, você quer que umraio caia na tua cabeça? Saia daíagora! — ordena Bronco Gil.

— Eu encontrei — grita EdgarWilson insistentemente,acenando.

— O que você achou aí,Edgar? — pergunta Helmuth.

— Vem ver — diz EdgarWilson.

Bronco Gil caminha comcuidado, afundando os pés nolamaçal, seguido por Helmuth,que se apoia num galho deárvore usado como cajado.Aproximam-se de Edgar, que

está com os olhos fixos noprecipício.

— O que foi, Edgar? — gritaBronco Gil, irritado.

— Eu encontrei — responde,apontando para baixo.

Bronco Gil e Helmuth olhampara baixo, e no fundo doprecipício estão as vinte e duasvacas e a caminhonete,esborrachadas, à margem do Riodas Moscas.

— Foi um sinal a gente ter

atolado aqui — diz EdgarWilson.

— Vacas não se atiram deprecipícios — diz Bronco Gil.

— Nem rios salgam de um diapro outro — retruca EdgarWilson. — Estamos só a umquilômetro do matadouro. Elasandaram até aqui.

— Ou foram trazidas —comenta Helmuth.

Edgar Wilson assusta-se comum trovão e escorrega. Bronco

Gil o segura pela camisa eHelmuth o ajuda a se prender.Edgar começa a deslizar e BroncoGil apanha a corda que carregapresa à cintura e passa-a porbaixo dos braços de EdgarWilson. Helmuth ajuda BroncoGil a puxar Edgar Wilson. Osdois não encontram sustentaçãopara os pés e sapateiam no barrodiversas vezes, até conseguiremtrazer Edgar para cima.Recobram o fôlego e voltam para

debaixo da copa da árvore, ondeesperam a chuva passar sem daruma palavra uns com os outros.

Capítulo 10

No início da noite umcarregamento de gado chega aomatadouro trazido por umcaminhão-baú. Dessa vez nãodemora para que os miseráveisda região atravessem a porteiraem seguida. Havia sido um diamuito difícil, e por sorte a linhade produção tinha funcionadonormalmente. Poucas cabeças de

gado precisaram ser abatidasnaquele dia, e o trabalho maispesado ficou por conta dossetores de bucharia, triparia edesossa. Ao pisar no matadouro,Helmuth apressou-se paraverificar o estado da motosserra econstatou que a haviam utilizadocorretamente e que o corte dascarcaças estava simétrico. Ficoualiviado.

O carregamento eraaguardado para o fim da

madrugada, mas o motoristaexplicou que precisaram viajarpara mais longe para buscar umacarga que seria levada a outromatadouro. O curral vazio, queoutrora abrigava as vacasdesaparecidas, está com a cercaquebrada em vários pontos. Ojeito foi amontoar o lote de trintae cinco cabeças de gado numgalpão velho nos fundos domatadouro. Tonho faz reparos nacerca com a ajuda do velho

Emetério, mas só poderãoconcluir o serviço pela manhã,com a luz do dia.

Bronco Gil dá dois tiros deespingarda para o alto e assimcoloca para correr mulheres ecrianças famintas por vacaenjeitada. Tranca a porteira,apanha a placa com o nome domatadouro que está caída nochão e a pendura novamente.Verifica que está torta e a ajeita,até que se alinhe com a sua visão.

Retorna para o interior dafazenda arrastando suaespingarda quente devido aosdisparos, e pesaroso com a ideiade espantar cães e pessoas damesma forma. Assim como EdgarWilson, Bronco Gil ainda cultivaalgum sentimento,profundamente escondido, pelosseus semelhantes, mesmo que namaior parte do tempo sinta-seassemelhado às bestas.

— Hoje eu quero vocês dois

de vigília comigo. — Bronco Gilaponta para Edgar Wilson eHelmuth. — Ninguém vai pregaros olhos. Vamos pegar essesdesgraçados.

— Por que alguém derrubariaas vacas no precipício? —questiona Edgar Wilson. — Sesão ladrões eles deveriam venderelas pra algum matadouro.

— Talvez alguma coisa tenhadado errado, eu não sei — dizBronco Gil. — Mas alguém

pastoreou elas até lá. Amanhã nofim da manhã o Seu Milo vaichegar e quero mostrar pra eleque a gente pegou esses ladrões.

***

Passa da meia-noite e os trêshomens estão de vigília noscurrais de gado. Dentro do velhogalpão de madeira algunsmugidos vez ou outra sãoouvidos. As vacas que serão

abatidas pela manhã têm apenaságua à disposição para sealimentarem, é a dieta hídricadestinada a todo gado.

Começa a garoar e atemperatura cai levemente,provocando uma sensaçãoagradável na madrugada do vale.Feinho mantém-se de prontidãocom os três homens e vez ououtra se retira dos currais e segueaté o velho galpão de madeira.

O local onde as vacas caíram é

inacessível a qualquer tipo deveículo. Mesmo de barco éperigoso devido às rochas nofundo do rio, que arrebentariamo casco quando o barco seaproximasse. Aquele lado damargem do rio nada mais é doque a formação de um abismo,um imenso buraco na terra,criado somente para se entrar enão para sair.

Bronco Gil, inquieto de umlado para o outro, fuma seu

cachimbo, calado. Edgar Wilsonestá apoiado na cerca de um doscurrais, bebendo uma caneca decafé para espantar o sono.Helmuth caminha entre o gado eàs vezes se afasta para espiar ospossíveis acessos à fazenda.

Quando a garoa transforma-senuma chuva leve, porémconstante, Edgar Wilson protege-se embaixo da goiabeira eHelmuth o acompanha. BroncoGil permanece com seu cachimbo

acesso, mesmo na chuva, e abrasa não se apaga.

Edgar Wilson havia deixadoembaixo da goiabeira a sacolacom as carnes enlatadas. Senta-seno tronco e com um abridor delatas tira a tampa da carne dealce em conserva. Com doisdedos fisga um punhado e levaaté a boca. O gosto é forte, masele se acostuma rápido. Estala alíngua ao engolir. Helmuthexperimenta, mas não gosta. Tira

o chapéu e o coloca sobre aspernas. Apoia a espingarda notronco em que estão sentados ereclina as costas contra a árvore.

— Esse índio está mesmoobcecado com isso — comentaHelmuth. — Dizem que já matouuns cinquenta homens. Depoisque mata, escalpela. Parece queele guarda todos os escalposdepois de deixar eles curtindo nosol vários dias. Acho que temmais lenda do que verdade na

história de Bronco Gil.— Como ele perdeu o olho?

— pergunta Edgar.— Foi atropelado. Agora acho

que ele tá mais devagar. Táperdendo o vigor, ou coisa assim.

Feinho late seguidamente e osom vem da direção do velhogalpão onde estão as vacasrecém-chegadas. Edgar Wilson eHelmuth levantam-se e corremem direção ao velho galpão logodepois de Bronco Gil, que sai em

disparado em direção os latidosde Feinho. Em princípio não hánada de anormal, mas nosfundos do galpão a porta estreitae mal fechada dá passagem àsvacas, que uma a uma, debaixoda chuva, caminham sem pressaem direção a um dos limites dafazenda. Edgar Wilson eHelmuth param logo atrás deBronco Gil e permanecemobservando.

— Tem alguém guiando elas?

— Helmuth pergunta baixinho.Bronco Gil com o binóculo em

riste diz que não vê ninguém.Helmuth apanha o binóculo.

— Mas pra onde elas estãoindo? — questiona Helmuth aoconstatar que não há ninguémguiando o gado.

— Elas estão indo proprecipício que fica daquele ladolá — diz Edgar Wilson.

— Como você sabe? —questiona Bronco Gil.

— Se eu estivesse no lugardelas é pra onde eu iria.

Os três homens decidemapenas observar o movimentotranquilo do gado e, quandotodas saem do galpão, eles aseguem à distância. A primeiravaca pula e logo depois asegunda. Bronco Gil tenta evitar,mas é impedido por Edgar eHelmuth, que decidem apenasassistir ao espetáculo de horror. Eassim, uma seguida da outra, até

que todas se lancem no abismoapós emitir um longo mugido.

À beira do despenhadeiro elesespiam lá embaixo, mas nãoenxergam nada. Somente pelamanhã, quando o sol se levantar,é que poderão contemplar osuicídio coletivo das vacas.

— Estavam fugindo dopredador — fala Bronco Gil.

— Não havia nenhumpredador — retruca Helmuthrispidamente.

— Você ainda não entendeu,Helmuth? Não entendeu quem éo predador? — diz Bronco Gilolhando Helmuth fixamente.

Ele olha novamente parabaixo, para a escuridão doprecipício, e suspira quando seuentendimento é iluminado pelosilêncio do outros.

— O que você acha disso,Edgar? — questiona Helmuth.

— Um abismo chama outroabismo.

Os olhos de Edgar Wilsonrefletem a insondável escuridãoque sempre há nos olhos dosruminantes.

Dentro do alojamento eles sereviram em suas camas, mas nãoconseguem dormir. Aguardampelo amanhecer e pelo que terãode enfrentar. São os primeiros ase colocar de pé; e diante dosprimeiros raios do dia seguem atéo despenhadeiro. Todo o lote de

vacas está amontoado. Ouvem àdistância o som da caminhonetede Seu Milo e decidem ir falarcom ele; mesmo que hesitemtodo o tempo em contar oocorrido, em acreditar no queviram, eles batem na porta doescritório e entram em fila,segurando seus chapéus.Espremidos os três, na salapequena, é difícil pensar erespirar ao mesmo tempo.

— E então, como foi tudo aí?

— pergunta Seu Milo levementerevigorado.

— Primeiro, senhor,queremos dar os pêsames pelamorte da senhora sua sogra —diz Bronco Gil.

— Que Deus a tenha — dizSeu Milo sorridente. — Minhamulher está abatida, mas pramim foi um alívio. A velha mecustava caro. Eu tinha que arcarcom todas as despesas. Acho queagora até vai dar pra trocar a

caminhonete velha.Seu Milo percebe a própria

animação e pigarreia ao tomarcerta compostura, querendodemonstrar algum pesar.

— Aconteceu uma coisa que...— começa Bronco Gil.

Imediatamente o seu pesar éverdadeiro e seu coração palpita.

— Senhor, não sei como dizerisso...

— Fala logo! — grita SeuMilo.

Bronco Gil gagueja. Respirafundo.

— As vacas do último lotemorreram — diz Edgar Wilson.

— As vacas do Tapira? Comoassim morreram? Morreramonde, de quê? — pergunta SeuMilo, com os olhos arregaladosde pavor.

— Elas se jogaram dodespenhadeiro — completaEdgar Wilson.

— O quê? Do que você tá

falando, Edgar? — grita SeuMilo.

— É verdade, Seu Milo — falaHelmuth. — As vacas do lote doTapira se jogaram de umdespenhadeiro de madrugada.

— Vacas não se matamsozinhas. A gente é que mata elas— conclui Seu Milo aos berros.

Do topo do despenhadeiro, osquatro observam o cenário demorte.

— Foram se jogando uma de

cada vez — diz Helmuth.— Vocês não fizeram nada?

— questiona Seu Milo,alquebrado.

— Não havia o que fazer —diz Edgar Wilson.

— Vocês podiam terimpedido, seus idiotas — insisteo patrão.

— Seu Milo, tem mais umacoisa — diz Bronco Gil.

— Mais? Tem mais? — dizSeu Milo aos berros.

— Ontem durante o dia, agente saiu pra procurar um lotede vinte e duas vacas da nossacriação e elas estavam caídasnum abismo que fica a umquilômetro daqui. Perda total —conclui Bronco Gil.

Seu Milo afasta-se da beiradado despenhadeiro. Caminhavagaroso alguns passos e senteuma forte palpitação no peito.Esfrega os olhos e com atoalhinha encardida seca o

pescoço e o rosto. Passadosalguns minutos de silênciorespeitado pelos seus trêsfuncionários, ele pergunta,alquebrado:

— Será que tem a ver comaquelas vacas libaneses? —questiona Seu Milo.

— Duvido muito, senhor —responde Bronco Gil.

— O prejuízo foi grande. Oque vou dizer pro Tapira? Nuncavi uma coisa dessa acontecer.

Nunca soube de algo parecido.— Acho bom a gente reforçar

as cercas e deixar dois homens devigilância em cada curral — dizHelmuth.

Seu Milo concorda em silêncioe pergunta:

— Vocês têm alguma ideia doque aconteceu?

Os homens acenamnegativamente com a cabeça. SeuMilo os dispensa e pede a BroncoGil que comunique o ocorrido

aos outros peões e que ligue paraVladimir remover as vacas com aretroescavadeira, e queprovavelmente levará diasseguidos de trabalho. Nesteponto é possível chegar a pé oucom um veículo. O lote deve serremovido antes que a carnemorta atraia os abutres e o cheiroseja insuportável.

Edgar Wilson retorna quandoescuta Seu Milo chamar por ele.

— O que você acha que

aconteceu, Edgar?— Elas se mataram.— São apenas animais, Edgar.

Não têm vontade própria. Elasnão pensam em suicídio.

— Acho que se afeiçoaram agente.

Seu Milo olha ao longe, porcima do despenhadeiro. Ohorizonte está avermelhado e osol surge parcialmente por trásdas montanhas e desponta emraios dourados. Esvanece de todo

o peso do semblante de SeuMilo. Respira fundo e sentealguma paz, por um breveperíodo de tempo. Uma pazcurtinha, mas sensível ao seuespírito.

Capítulo 11

No início da tarde Vladimirestá à beira do despenhadeiro,boquiaberto, olhando para baixo.

— Vixe! — Faz o sinal da cruzsobre o peito. — As vacas tedeixaram sem trabalho, Edgar.

— Seu Milo vai reforçar ascercas e até lá não vai aceitarnenhum carregamento.

Vladimir traça uma rota

visualmente, o melhor caminhopara entrar com aretroescavadeira e recolher asvacas. Percebem o movimento dealgumas pessoas circundando ogado morto. Outro grupoaproxima-se numa carroça.

— Chegaram antes dosurubus — comenta Vladimir.

— Vai ser difícil impedir queeles carreguem as vacas — dizEdgar Wilson.

— Melhor a gente se apressar.

Edgar Wilson sobe naretroescavadeira com Vladimir eseguem até o ponto derecolhimento. Cerca de vintepessoas, entre elas homens,mulheres e crianças, esquartejamas vacas com machados. Aretroescavadeira é impedida deavançar quando alguns homensse colocam no meio do caminho.

— Aqui vocês não entram —diz um dos homens.

— Esse gado tem dono — diz

Vladimir. — Eu preciso recolher.— As vacas se jogaram lá de

cima. Nossas preces foramouvidas — fala outro homem dogrupo, segurando um machado.

— Essas vacas estão sobresponsabilidade do Seu Milo —argumenta Vladimir.

— Daqui vocês não passam.Vamos levar todo o gado. — Ohomem suspende o machado.

Vlamidir desliga aretroescavadeira e desce

acompanhado de Edgar Wilson.Eles olham os cadáveres de perto.Uma caminhonete estaciona apoucos metros de distância e umgrupo de homens e mulheresdesce da caçamba correndo emdireção ao gado.

— Não vamos conseguirremover nenhuma delas — dizVladimir.

Seu Milo e Bronco Gilaproximam-se dos dois.Percebem o alvoroço no local.

— Liguei pra polícia — dizSeu Milo. — Eles vão fazer umboletim de ocorrência.

— É bom que cheguem logo,senão não vai ter nenhuma prova— comenta Bronco Gil.

Em pouco tempo há mais decinquenta pessoas esquartejandoo gado morto, juntando suaspartes e empilhando sobrecarroças, caminhonetes ebicicletas. Aqueles desprovidosde aparelhagem arrastam os

pedaços pelo chão em sacos denáilon ou lona.

Não há nada que possa serfeito a não ser sentar e observar.Os abutres aguardam as víscerasque ficarão perdidas no chão, asmigalhas deixadas pelos cães.

É no fim da tarde, quandorestam apenas os urubusciscando por um pedaço de tripaou lasca de pele, mergulhandoem poças de sangue, que chegamdois policiais. Imediatamente

perguntam pelas vacas mortas.— Sem os corpos não

podemos fazer a ocorrência.— Um bando levou tudo,

saqueou os cadáveres — contestaSeu Milo.

Os urubus grasnam enquantosobrevoam a região. O policialresponsável por fazer aocorrência olha para o alto etudo o que consegue dizer é:

— Dia bonito demais pratanto urubu no céu. Tinha

quantas vacas?— Trinta e cinco — responde

Bronco Gil.— Que coincidência! — diz o

policial sorrindo. — Amanhãfaço trinta e cinco anos decasado. Vamos ter um churrasco.— Ao concluir, cospe o pigarropreso na garganta. — Anota issoaí — ordena ao jovem policialque o acompanha.

— Bem, seu guarda, como ficaentão? — questiona Seu Milo.

— Sem as vacas, ou melhor,sem os corpos eu não tenhocomo fazer a ocorrência.

— Eu entendo, senhor, masesse carregamento não era meu.Preciso prestar contas com odono — insiste Seu Milo,tentando argumentar da formamais cordial que conhece.

— Eu vou dar comodesaparecidas — diz o policial.

— Agorinha mesmo umbando de homens e mulheres

saiu daqui com os pedaços dasvacas — fala Seu Milo. — É sóvocês fazerem uma investigação,seu guarda. A casa dessa gentenunca teve tanta carne.

— Não temos homenssuficientes pra fazer uma buscadessas. Alguém viu o queaconteceu? Como elas caíram?

— Elas se jogaram — dizHelmuth.

O policial se mantém caladopor alguns instantes. Olha para o

alto do despenhadeiro. Agachapróximo aos abutres e com umgraveto cutuca restos de víscerase pisa em poças de sangue.

— Elas se jogaram por contaprópria? — pergunta o policial.

— Foi isso mesmo. Elassimplesmente se jogaram —atesta Helmuth.

— Certa vez tive um gato quese jogou num rio. Nunca entendiaquilo. Ele pulou do meu colo ese jogou no rio. Tentei salvar ele,

mas um jacaré foi mais rápidoque eu. Até hoje lamento amorte dele. Nunca mais quissaber de gatos.

Permanecem calados poralgum tempo apenas ouvindo ograsnado dos urubus.

— Bem, é evidente que houveuma tragédia aqui. Digo isso pelaquantidade de sangue. Podemosdizer que o gado escorregou dodespenhadeiro? Acho bempossível.

Os homens se entreolham.Hesitam em concordar com opolicial.

— Olha, dizer que as vacaspularam porque quiseram vaisoar bem esquisito, não acham? Émelhor colocar morte acidentalseguida de roubo dos cadáveres.Uso todo esse sangue comovestígio do acidente e do crimede saque, o que acham? É omelhor que posso fazer.

Seu Milo, cabisbaixo e muito

abatido, concorda com o arranjo.A história é absurda e não desejase tornar alvo de piadas. Dequalquer forma, seu matadouroserá prejudicado, ao menos poralguns meses, até que recupere aconfiança dos seus clientes.Quanto ao gado morto,recolocará do seu próprio lote eespera que Tapira aceite o trato,já que assim não terá prejuízos.

O policial se despede e vaiembora acompanhado do mais

jovem.— Acho que ele não acreditou

na gente — diz Bronco Gil.— Aquela história do gato não

me convenceu — fala Helmuth.— Nem a mim — concorda

Edgar Wilson.— É isso o que vamos dizer

por aí, que as vacas caíramacidentalmente — diz Seu Milo.

— E o outro lote que caiu namargem do Rio das Moscas? —pergunta Edgar Wilson.

— A gente diz a mesma coisa— fala Seu Milo.

— Será que vão acreditar? —questiona Bronco Gil.

— Não sei, Bronco. Mas o quea gente pode dizer? Que o gadotá amaldiçoado? — diz o patrão.— Vamos deixar assim e abafar oassunto.

— A fazenda do Régis Leitãoestá fechada — comentou EdgarWilson. — Tudo foiabandonado.

— Ouvi dizer que foramsaqueados diversas vezes — dizSeu Milo.

— Talvez foram saqueados damesma forma que as vacas quecaíram acidentalmente dessedespenhadeiro — completaEdgar Wilson.

Seu Milo olha para ele com aestranha impressão que opersegue, a de que Edgar Wilsonsabe mais do que diz. Quepressente o centro magnético

terrestre como fazem osruminantes.

— Será que as coisas vãovoltar ao normal? — murmuraBronco Gil.

— Espero que sim — diz SeuMilo, temeroso.

Eles retornam para omatadouro e evitam falar noassunto com os outros peões.Tudo o que dizem é que foi umacidente.

Na manhã seguinte, antes de

abater algumas cabeças de gado,Edgar Wilson percebe que asvacas nos pastos estão todasviradas para o norte, ruminandoo capim, espantando as moscascom o rabo, e que mantêm entresi o ritmo cotidiano própriodelas.

O sangue volta a serderramado diariamente. Empoucos meses, a produçãoaumentará de ritmo devido auma nova fábrica de hambúrguer

e outros derivados de carnebovina que está em construçãonuma área próxima aomatadouro. Dessa forma, SeuMilo finalmente poderá compraruma nova caminhonete e atémesmo reformar o alojamento,que teve o teto parcialmentedanificado durante um temporale por isso os homens dormem aorelento.

Edgar Wilson mantém seuritual de cruz e cal até que um

novo atordoador é contratado.Ele está prestes a partir desdeque uma vaga no criadouro deporcos lhe foi oferecida. Seus diasde ruminante terminaram.

O suicídio coletivo das vacasjamais poderá ser explicado.Talvez tenha sido a ProvidênciaDivina atendendo aos pedidosdos moradores da região queansiavam por comida,especialmente carne. Assim comoos peregrinos do deserto foram

atendidos com uma chuva decodornas, os povos de outrosdesertos receberam uma chuvade vacas: a carne proveniente doscéus; a morte que dá vida.

Logo após ajuntar seuspertences, Edgar passa noescritório de Seu Milo e recebetodo o acerto de suas últimassemanas de trabalho. Aperta amão do patrão e agradece peloemprego e pela confiançadepositada nele todo esse tempo.

Seu Milo sente o peito apertar.Edgar é seu melhor funcionário.Sentirá falta dele.

Edgar Wilson coloca seuchapéu e sobe no caminhão quetrouxe a leva de homens para otrabalho no matadouro.

— Vai pra onde, rapaz? —pergunta o motorista seguindoem direção à porteira da fazenda.

— Vou pro oeste trabalharcom porcos.

O motorista acena

positivamente com a cabeça. Odia recém-amanhecido possuiuma brisa ainda fresca e umcheiro de plantas molhadas.

— Cansou desse trabalho aí?— É, cansei.— Antes de comprar este

caminhão e trabalhar com freteeu também abatia gado.Trabalho miserável. Te pagamuma miséria por isso.

Edgar Wilson pergunta sepode fumar e acende um cigarro.

Oferece um ao motorista, queaceita e o coloca atrás da orelha.

— Eu passava o dia inteirocoberto de sangue. Fedia otempo todo. Minha mulhersentia a minha carniça assim queeu pisava no portão de casa. — Omotorista dá uma risada. Pensaum pouco antes de continuar esuspira: — Era mesmo umanojeira.

À frente deles uma procissãofaz o caminhão diminuir a

velocidade. Passam devagar nomeio de homens, mulheres ecrianças. Edgar Wilson reconhecealguns rostos, alguns dos quecarregaram o gado morto dodespenhadeiro.

— Não sei o que tantoagradecem. Eles não têm nada.Isso aqui é um deserto, meufilho.

— Talvez eles tenham algumacoisa pra agradecer desta vez —diz Edgar Wilson.

Atravessam o meio daprocissão e o motorista acelera ocaminhão até quanto o veículosuporta. Passam ao lado daconstrução da nova fábrica dehambúrguer e outros derivadosde carne bovina.

— Vamos ter outra fábrica —comenta o motorista com a vozestagnada e um semblantelevemente aborrecido. — Essa vaiser das grandes.

— Trabalho não vai faltar por

aqui — diz Edgar Wilson.— Não, filho, não vai faltar.

Como dizem por essas bandas:enquanto tiver uma vaca nessemundo, lá estará um sujeitodisposto a matá-la.

— E outro disposto a comê-la— conclui Edgar Wilson.

O motorista dá um sorrisocurto e puxa o cigarro detrás daorelha. Edgar Wilson risca umfósforo e o acende. O homemagradece.

— Disposto a comê-la sempreterá um monte. Mas pra matar,não. Só gente assim feito eu evocê, rapaz. Só gente assim.

O brilho do sol ofusca vez ououtra a visão do motorista, quemantém os olhos espremidos.Um dia quente, terrivelmentequente. Quando a noite chegar,Edgar Wilson já estará em seunovo emprego, conhecendo osporcos e ouvindo seus grunhidos.Sabe que seus dias de predador

continuarão, e que derramarsangue ainda será seu meio desobrevivência. É o que sabe fazer.Talvez um dia encontre outrotrabalho, um que seja limpo. Porenquanto, seguirá abatendoporcos; impuro e moralmenteaceitável, é assim que ele sesente. Não há ninguém que oimpeça, pois homens como elesão poucos, que são homens paramatar. Os que comem são muitose comem de modo que nunca se

fartam. São todos homens desangue, os que matam e os quecomem. Ninguém está impune.

Nota Final

“Se a civilização não tornou ohomem mais sanguinário,

decerto o fez maisperversamente, mais

covardemente sanguinário queantes... hoje, embora

considerando o derramamentode sangue uma coisa abominável,

entregamo-nos a essaabominação ainda mais

frequentemente que antes.”

Fiodor Dostoievski, em Notasdo subterrâneo

Este e-book foi desenvolvido emformato ePub pela DistribuidoraRecord de Serviços de Imprensa

S. A.

De gados e homens

Wikipédia da autorahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Ana_Paula_Maia

Site da autorahttp://killing-

travis.blogspot.com.br/

Facebook da autorahttps://www.facebook.com/maiatravis

Entrevista com a autorahttp://www.youtube.com/watch?

v=8U4SJkXPHvw

Skoob do livrohttp://www.skoob.com.br/livro/349817-

de_gados_e_homens

Sumário

CapaRosto

CréditosDedicatória

EpígrafeCapítulo 1Capítulo 2Capítulo 3Capítulo 4Capítulo 5Capítulo 6

Capítulo 7Capítulo 8Capítulo 9

Capítulo 10Capítulo 11Nota finalColofon

Saiba mais

Recommended