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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
Desenho como Dasein
(por uma Ontologia)
Rio de Janeiro
2010
Livros Grátis
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2
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – UFRJ
CENTRO DE LETRAS E ARTES – CLA
ESCOLA DE BELAS-ARTES – EBA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS – MESTRADO
ÁREA: TEORIA E EXPERIMENTAÇÃO EM ARTE
LINHA DE PESQUISA: POÉTICAS INTERDISCIPLINARES
ORIENTADOR: PROF. DR. CELSO PEREIRA GUIMARÃES
ALUNO: Leandro Moreira Furtado
Desenho como Dasein
(Por uma Ontologia)
Rio de Janeiro
2010
3
4
Agradeço a todos que, diretamente ou indiretamente fizeram parte deste
Caminho.
5
“Mas, somente se nos voltarmos pensando para o já pensado, seremos
convocados para o que ainda está para ser pensado”
(HEIDEGGER, Martin)
6
Resumo
A proposta deste presente Projeto de Dissertação de Mestrado traz uma
nova problematização para um dos fundamentos das linguagens artísticas: o
desenho. Partimos de um revisitamento do mesmo a realizar um
desocultamento à gerar uma questão dialética: origem-sentido. Para isto
algumas leituras originárias sobre e da arte se fariam necessárias a ponto de
reestruturar e construir por fim esta linha, ponte capaz de justificar esta poética
do desenho. Conquistar a possibilidade de um pensar-e-fazer o desenho como
forma de ser-no-mundo, poética, mais do que um simples trazê-lo como
matéria dos sentidos é também questionar e expandir seu potencial como
construtor de Sentido.
Palavras-chave: Arte; Origem-Sentido; Desenho.
7
Abstract
The proposal of this Project Dissertation brings a new problem to one of
the foundations of artistic languages: the draw. We start with a revisiting to
realize an unveiling, and generate the dialectic question: source-meaning. For
this, some originating on art readings would be necessary to begin a restructure
and eventually build this line, bridge to justify this draw’s poetic. Winning the
possibility of a think-and-make the draw as a way of being-in-the-world, poetic,
more than just bring it as a matter of the senses is also to question and expand
its potential as a builder of meaning.
Keywords: Art; Source-Meaning; Draw.
8
Sumário
1. I n t r o d u ç ã o …................................................................ 9
1.1. Significantes/Significados de Desenho ....................................... 9
1.2. Significantes/Significados de Dasein …..................................... 10
1.3. Pre-textos, Pre-tensões …................................... ............. 12
2. D e s e n v o l v i m e n t o s ............................................... 16
2.1. Discussão Conceitual – Da Prosa .............................................. 16
2.2. História e Ontologia em Desenho ............................................... 19
2.3. Da Captura – Fenomenologia ...................................................... 24
2.4. Discussão Imagética – Do Verso ................................................ 29
2.4.1. Possível Origem: “Registro de Ausências” ................. 31 2.4.2. Possível Destino: “Desenho como Da-sein” ............... 34 2.4.3. Antropografias ................................................................ 36
Capillugrafias, Dermatografias, Desenhoníricos, Das Monografias, Dos Desdobramentos.
2.4.4. Geografias ....................................................................... 51
Sulcografias, Novelos de Mar, Termitografias, Flipbooks: Poesias e p.c.n., Desdobramentos, Caminhos: Riss.
3. C o n s i d e r a ç õ e s F i n a i s ....................................... 65
4. B i b l i o g r a f i a ................................................................ 70
9
1. I n t r o d u ç ã o
1.1. Significantes/Significados de Desenho
1. Representação de formas sobre uma superfície, por meio de linhas,
pontos e manchas, com objetivo lúdico, artístico, cientifico ou técnico;
2. A arte e a técnica de representar, com lápis, pincel, pena, etc., um
tema real ou imaginário, expressando a forma e geralmente abandonando a
cor. O desenho tende a representar o tema racionalmente, configurando ou
sugerindo seus limites, enquanto a cor tende a transmitir valores de ordem
emotiva;
3. Versão preparatória de um quadro; esboço, estudo, traçado, risco,
projeto, plano, forma, feitio, configuração, delineamento, esboço, elaboração;
4. Do latim Designiu: intento, intenção, plano, projeto, propósito.
Desidérium: desejo, requerimento, necessidade; Designátio: designação,
indicação, arranjo, planta (de edifício); Desígnio: designar, desenhar, aludir,
indicar, fazer ver, arranjar; Disegnare: dar relevo a, delinear;
5. Descrever, apresentar, caracterizando oralmente ou por escrito.
Tornar perceptível, representar, acusar. Conceber, projetar, imaginar, idear.
Aparecer, representar ou reproduzir na mente, na imaginação, afigurar, figurar.
(FERREIRA, Aurélio B. de Holanda. Dicionário Aurélio. Curitiba: Positivo, 2001)
10
1.2. Significantes/Significados de Dasein
Mark Twain queixou-se do fato de que certas palavras alemães
parecem significar tudo. Uma destas palavras é “da”. Ela significa " lá" ("lá
vão eles") e "aí" (“aí vêm eles" ), assim como "então", "desde" etc. Como
prefixo de “sein”, "ser", ela forma “dasein”, "ser aí, presente, disponível,
existir". No século XVII, o infinitivo era substantivado como (das) Dasein,
originalmente no sentido de "presença". No século XVIII, Dasein passou a
ser usada pelos filósofos como uma alternativa para a palavra derivada do
latim Existenz (a existência de Deus), e os poetas a utilizavam no sentido
de "vida".
Coloquialmente, é utilizada para o ser ou a vida das pessoas.
Dasein em Heidegger é bastante distinto de “Das-sein” (ser-isto).
Em “Ser e Tempo”, Heidegger usa Dasein para:
1. O ser dos humanos;
2. O ente ou pessoa que possui este ser. Nas preleções, ele muitas
vezes fala de “Das menschliche Da-sein” (o Dasein humano), e isto
também pode significar tanto o ser dos humanos quanto o ser humano.
Como infinitivo substantivado, Dasein não tem plural. Refere-se a todo e
qualquer ser humano, de modo semelhante àquele pelo qual “Das Seiende”
(aquele que é), refere-se a qualquer e todo ser. Quando mais de uma
pessoa está em cena, Heidegger fala de (os) outro(s) ou Dasein-com (com-
presença, “Mitdasein”).
Dasein está essencialmente no mundo e ilumina a si mesmo e ao
mundo. O "aí (das Da)" é o espaço que abre e ilumina.
Dasein unifica o homem, evitando a tradicional tripartição em corpo,
alma (“Seele”, o princípio da vida) e espírito (“Geist”, o princípio
intelectual). O significado de mundo é sustentado pelas necessidades e
pelos propósitos de Dasein.
11
- É o Dasein, portanto, um indivíduo isolado, egotista?
- Ontologicamente sim, onticamente não: a neutralidade de
Dasein significa um peculiar isolamento do homem, mas não no sentido
factual, existenciário, como se o filósofo fosse o centro do mundo, ela é o
isolamento metafísico do homem.
(INWOOD, Michael. Dicionário Heidegger. S.P.: Jorge Zahar, 2002).
Poderíamos então, inicialmente perceber que parte-se aí
semelhantemente da diferença sutil - porém profunda -, entre solidão e
solitude. A segunda, geradora de aberturas no mundo, produtora de
poéticas, é quase uma condição inerente ao Ser-poeta, o artista.
Porém, para se chegar à segunda, tem-se que passar pela primeira.
12
1.3. Pre-textos, Pre-tensões “O primeiro desenho nas paredes das cavernas fundava uma “O primeiro desenho nas paredes das cavernas fundava uma tradição porque recolhia outra: a da percepção. A quase eternidade da arte confunde-se com a quase eternidade da existência humana encarnada e por isto temos, no exercício de nosso corpo e de nossos sentidos, com que compreender nossa gesticulação cultural, que nos insere no tempo.” (MERLEAU-PONTY, Maurice)
Aqui, um convite:
Imaginamos sentados, frente à uma pequena mesa.
Nesta repousam dois livros, um ao lado do outro.
À nossa esquerda, um livro da escrita.
Escrita linear, que se lê seguidamente à cada nova página virada.
Um continuum.
Uma lógica em razão (racional) de uma prosa.
Um livro como uma coisa, dada à uma reflexão.
Ao lado, um livro da grafia. Ainda em uma disposição linear,
aqui pode-se ler da primeira página e seguir diretamente
para a última; começar do meio, e voltar à terceira;
enfim, permitir caminhos diversos, divergentes.
Aparentemente, serão os dois um mesmo tipo de livro.
Porém descritos sob lógicas diferenciais.
...Que se complementam.
13
Segundo Benedito Nunes (2007), em páginas iniciais de seu livro “Hermenêutica e Poesia”:
“Se pensamento (filosofia) e poesia podem dizer o mesmo, apesar e por causa do abismo que os separa, essa confrontação, que é uma proximidade-na-distância, só pode ser elucidada no âmbito do próprio pensamento: em sua não-identidade, onde é possível que pensador e poeta possam habitar nessa vizinhança essencial.”
E é deste modo que iniciaremos um risco abrindo este convite para este
trabalho, assim como a disposição dos livros na mesa imaginada: uma
linguagem em prosa e outra em verso, porém lado a lado. Talvez porque
simplesmente acreditamos na dialética como uma verdade entre o pensar
como já um fazer, mas também no fazer como uma forma-outra de
pensamento.
É no buscar contribuir para um avanço das discussões teórico-práticas
que em nossa proposta “Desenho como Dasein” tentaremos nos atentar a
manter neste duplo de pensamento e poesia, repercussão e ressonância,
lógicas da reflexão e da produção do imaginal.
Percorreremos um caminho que criará um trama, uma tecitura capaz de
gerar um enlace, sempre por uma interdisciplinaridade. Mas para que este
caminho não se sujeite em tendenciosos desvios onde uma apresentação não
se sobreponha à outra, i. e., prosa sobre verso, verso sobre prosa, pensar
sobre fazer ou vice-versa, tentaremos nos manter não em uma imparcialidade
mas no fundamento do que aqui se expressa. A este fundamento, origem que
dá o sentido qual acreditamos encontrar uma verdade que se apreende na
idéia do duplo heideggeriano.
14
E este mesmo fundamento do que aqui expressamos - a Arte -, o duplo
se desvela não somente no saber-fazer, mas sim, em um saber-e-fazer.
Acreditamos que ainda se deve muito à arte quando a tratamos
simplesmente como a um conhecimento de técnicas, ou do saber-fazer (know
how). Esta prevalência ainda muito constante e marcada em nossa história
pôde ter sido desencadeada em fator que se apoiaria em uma ontologia débil,
onde outras formas de conhecimento se deixaram esvair por uma sobreposição
de um racionalismo moderno.
Pensemos, assim como anuncia Martin Heidegger (2002) no seu
pequeno trecho aqui antes citado, que para podermos avançar e nos lançar a
ambi(enta)ções ainda pouco desveladas, precisamos requestionar, revisitar e
problematizar as origens.
Imaginamos que assim um grande arco - à imagem do duplo origem-
sentido ligados por uma linha - poderá se formar por um desocultamento
(questões da verdade). A pretensão é dis-por do tempo da dimensão (coisas
medidas) a com-por no espaço da imensidão de um saber-e-fazer.
Ao desenho em sua potencialidade, será o tempo/espaço qual nos
permitiremos entrar. Este trabalho parte de uma investigação e desencadeia
em propostas e realizações poéticas de uma esfera-outra do que por muito se
estabeleceu na historiografia linear do saber sobre o desenho.
Portanto buscaremos nesta outra esfera do conhecimento um pensar
junto aos poetas e pensadores (vivenciar o dia-noite), do desenho.
E no desenho.
“Mas já que o sentido não é nunca apenas um dos dois termos de uma dualidade que opõe as coisas e as proposições, os substantivos
e os verbos, as designações e as expressões, já que é também a fronteira, o corte ou a articulação da diferença entre os dois, já que
dispõe de uma impenetrabilidade que lhe é própria e na qual se reflete, ele deve se desenvolver numa nova série de paradoxos desta
vez interiores” (DELEUZE, Gilles)
15
E mais do que precisar em um acerto ou fim, o que nos interessa é o
percurso , o “como” do Ser, o movimento do qual se abre o Ser-do-desenho.
Ao risco do caminho traçado no mundo.
16
2. D e s e n v o l v i m e n t o s
2.1. Discussão Conceitual – Da Prosa
Iniciaremos apresentando aqui algumas citações de artistas e
pensadores quais podem tomar como referências diretas em aberturas para
discussões de nosso trabalho.
“Richard Serra: Drawing is a concentration on an essential activity of the statement is totally within your hands. It’s the most direct, conscious space in wich I work. I can observe my process from beginning to end, and the times sustain a continuous concentrations. - Are you suggesting that drawing is like thinking? Richard Serra: I don’t know. It’s not formal operation thought. Thought and language are interdependent but drawing comes from another source (experience and intuition)
….To draw a line is to have an idea.”1
Neste pequeno trecho de uma entrevista com o artista Richard Serra
(EUA, 1939) podemos perceber já as aberturas que o desenho vinha tomando.
Obviamente pensamos que, devido às formas de aberturas que a própria
linguagem artística já caminhava na segunda metade do século XX, o desenho
não poderia passar-se despercebido. Apesar ainda da incerteza do lugar, fonte
de conhecimento do qual teria surgido o desenho, R. Serra apontaria o mesmo,
ao final da conversa, para um lugar onde sua forma se apresentaria
“ampliada”2.
1BORDEN, Lizzen (org.) Richard Serra, Drawings. Amsterdam: Sterdelijk Museum, 1977.
2 Tomamos este termo empregado por Rosalind Krauss às novas formas de apresentação da escultura no
texto “A Escultura No Campo Ampliado”. (Arte & Ensaios - Número 13. Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da EBA/UFRJ. Rio de Janeiro, RJ: UFRJ, 2008
17
Desenho aqui para o artista pode ser algo do original - no sentido de
originar já antes de tudo a formar alguma coisa -, aproximando como que um
idear, um pensar poético (criacional).
“Agora irrompem não-coisas por todos os lados, e invadem nosso espaço suplantando as coisas.”3
Em seu capítulo “A Não-Coisa [1]”, o filósofo Vilém FLUSSER (2007)
inicia remontando a um breve passado onde o todo qual vivíamos era
composto por “coisas”. Aproximando o conceito de “informação” com o de “não-
coisa”, V. Flusser vai além do questionamento de que não haveria algo novo e
que tudo seria uma repetição quase linear, pois a informação – tudo o que se
“forma em” - sempre existiu. E a invasão destas não-coisas é tão óbvia e visível
que poderíamos dizer quase táteis, soando como uma contradição de uma
razão lógica.
E assim temos como grande exemplo do que vem acontecendo nos
nossos dias atuais o valor superestimado de um software em detrimento do
subestimado valor decrescente de um hardware. Flusser, em sua sensibilidade,
perceberá que vivemos em um mundo envolto de Undingliche (imatérias), um
cotidiano científico-tecnológico cercados de hologramas, dados armazenados
no computador, imagens eletrônicas na televisão, processos cibernéticos,
enfim, coisas impalpáveis e da ordem do inapreensível.
Dentro desta nova configuração, possibilidade de mundo, o pensador
ainda refletiria sobre o comportamento deste novo homem, que vive entre estas
não-coisas ao seu redor.
Ele reafirmaria a teoria da transição do Homo Faber para Homo Ludens,
onde nesta nova configuração humana não somos mais uma pessoa de ações
concretas, mas nos compara a um “performer” (Spieler):
3FLUSSER, Vilém. O Mundo Codificado – Por Uma Filosofia do Design e da Comunicação. São Paulo:
COSACNAIFY, 2007.
18
“Não se trata mais de ações, e sim de sensações.
O novo homem não quer ter ou fazer, ele quer vivenciar”4. Se repensarmos o habitat natural destas coisas imateriais (die
Undingliche), ou das “in-formações” segundo o pensador, constatamos que
nesta mesma habitação comportaria as questões da produção de idéias e
sentidos.
Podemos dizer que este novo apontamento persegue não tão somente
um ponto de vista antropológico (dentro de uma esfera historiográfica), mas
também, co-pertencem às problematizações geradas de uma ontologia, do
Ser-no-mundo.
4 Idem.
19
2.2. História e Ontologia em Desenho
Não se trata aqui de aprofundarmos para como objetivo chegarmos a
conclusões em tese mas, sim, propor algumas aberturas nestes dois casos -
ontologia e história - diante da arte, e mais especificamente, ao desenho.
A linguagem do desenho de certa forma e, por muito tempo, foi
apresentado na nossa História da Arte como um acondicionante para uma
obra-de-arte, um a priori, como um simples esboço de arte para as demais
subseqüentes linguagens artísticas, enfim, uma pré-concepção de arte.
Percebemos então que desenho se dá em muito tempo como uma pré-
concepção - e em pré-conceito - do que seja obra-de-arte.
Mais tarde, verificando as transformações surgidas na arte moderna
diante das categorias acadêmicas, com a consolidação da disciplina da história
da arte trouxeram consigo um novo interesse pelo desenho, mesmo aquele
ainda incipiente e determinado pela pintura e escultura: até os esboços mais
sumários passaram a ser vistos como fonte para o estudo e a avaliação das
obras e dos artistas.
Segundo o crítico de arte Paulo Venâncio (FILHO, 1996), era como se o
desenho, em sua incompletude de obra para não ser mostrada, como que um
paradoxo, realmente mostrava ali uma pista para a compreensão completa da
obra acabada a que ele dera origem. E logo, com o aparecimento da
psicanálise, seriam transformados mesmos em pistas para revelar o verdadeiro
Ser do artista, onde fundamentavam suas práticas na emergência da
subjetividade do artista: a urgência do desenho e os contrastes que ele permitia
estavam em perfeita consonância com a urgência de transmissão dos
sentimentos buscada igualmente por artistas e público. Tudo isso está na raiz
mesmo de outro fenômeno paralelo, a popularização do desenho como
atividade a ser praticada por amadores.
20
Por isto, mais do que uma condição da História - esta que constrói o
plano teórico a delimitar as possibilidades da linguagem -, aqui nosso objeto de
estudo será pensado em uma possibilidade outra. Talvez não sigamos o fluxo
historiográfico em uma perspectiva já traçada, em um “mais do mesmo” ou
“variações sobre o mesmo tema”, podendo assim cair nas armadilhas de
algumas das projeções da atualidade. Que nos atentamos e tomemos o risco
do lançar e de se permitir ser lançado em aberturas que tangenciam campos
da experiência própria da arte, e não somente sobre a arte.
Diante do que chegamos até agora, percebemos que às vezes é preciso
sair da imagem de um corredor linear para que se criem novas consciências,
como mesmo reacender algo que pressentimos existir fora desta suposta
segurança construída por uma historiografia. E é justa esta passagem que
poderá nos tornar mais preciso no que aqui se atenta ao que insistimos como
uma ontologia do desenho.
Ao tempo então, podemos assim dizer, seria aqui um atentar a uma
possibilidade em um momento especial que se passaria fora do que há de
costume e de um interesse do lugar-comum.
Ao estudo do desenho e suas problematizações qual asseguramos o
lugar e o limiar de uma experienciação poética, uma abertura onde se combina
a deposição do Tempo com as linhas que atravessam e configuram o Espaço.
Mas sempre atentos se considerados à questão de uma autenticidade.
Será um risco natural, pois e portanto, pertinente ao que origina e tanto
se propõe no ambi(val)ente artístico contemporâneo.
Tratemos de uma questão em um reconhecimento da presença múltipla
do desenho - do cotidiano às fruições poéticas, do devaneio, do risco e da
necessidade aos enigmas de nossos desejos e volições no mundo.
21
Importante atentarmos que este trabalho de pesquisa não pretende dar
conta de todos os contornos vigorosos e porosos que a linha - estrutura óssea
do desenho - capta, delineia, designa, traceja, lança, planeja e projeta como
vetores de ação que se extendem dos traços do pensamento. Também não
disporemos dar conta do total mapa e do território absoluto que o desenho
capta e projeta com possibilidades da presença humana num mundo a ser
decifrado - até mesmo porque estes mapas e territórios não existem a priori,
são extensivos aos caminhos da existência humana, se dando em processos,
movimentos incessantes e latentes a uma busca.
Pretendemos, sim, radiografar, trazer-à-luz (um fotografar ontológico?) a
transitividade do desenho que percorre os territórios da arte, costurando
percepções com reflexo(e)s, engatando linhas ativas que se lançam no espaço
do imaginal, no espaço do mundo, que provocam tessituras de significantes,
estes sempre emergentes e em trânsito, instaurando novos modos de Ser-no-
mundo.
A questão que tratamos no início ao se tentar manter no duplo momento
entre verso e prosa pode-se relacionar claramente se observarmos que é o
desenho, este risco que gera o traço, o mesmo que dá a abertura de uma
imagem e que a contorna. O risco não é aquele criador de uma cisão, mas sim
o que nos revela (desvela) o duplo. Heidegger (1977) novamente nos atenta
para o cuidado de que é o conflito entre Mundo e a Terra e que a coisa-de-arte
é capaz de se dar (eregir) a partir de um traço, que ele denomina Riss (fissura,
em Alemão).
Sobre embate entre artista e obra – relação que gera a linguagem Arte -,
o pensador nos deixa a pensar em uma frase do artista Albrecht Dürer:
“Bem da verdade a Arte está ali, na natureza a espera sempre-aberta
daquele com um traço a arrancar, possuindo-a”.
22
Segundo Ernildo Stein (BEAINI, 1986), filósofo brasileiro estudioso de
Martin Heidegger, podem se considerar três modos fundamentais do ser-no-
mundo, a saber: a representação do ente puramente subsistente, o lidar com o
ente disponível e o compreender-se em vista da existência. Mas é em favor do
segundo modo que Heidegger inicia como proposta da dimensão prática.
O dizer ente disponível subentende-se o “estar aberto” e, mais
especificamente se tratando da Arte, “estar-à-mão”.
Sabe-se que o que está em jogo aqui é a compreensão de mundo, e
melhor, de uma propriedade de mundo – mundo autêntico –, partido da relação
entre o artista e da coisa-de-arte. E por mais, o que damos relevância é que
nesta especificidade qual estudamos (desenho) pode estar oculta uma potência
enquanto desocultamento.
Oculta porque de muito foi-nos velado na História da Arte aquele que
acreditamos em potência - por se dar à uma originalidade (como origem, que
gera o desencadeamento) – porque é dele mesmo que se desvela: do risco,
traço, linha que abre, rasga, um Riss: Desenho.
É importante destacar que o desenho, como reflexão visual, não está
limitado à imagem figurativa, mas abarca formas de representação visual de
um pensamento, isto é, estamos falando de diagramas, em termos bastante
amplos, como um pensamento esboçado. Não é um mapa do que foi
encontrado, mas um mapa em tecitura para encontrar alguma coisa, e mais,
sempre aberto aos encontros. E os encontros, normalmente, acontecem em
meio a buscas intensas. Os desenhos, desse modo, são formas de
visualização de uma possível organicidade de idéias (brainstorms), pois
guardam conexões, como por exemplo, deslocamentos eações mútuas e
múltiplas. Tudo é feito, na maioria dos casos, por meio de grafismos íntimos
23
Desenho podem ser estes riscos lógicos quais traçamos agora – da
escrita –, mas também estas anteriores linhas que se encontram à formar mais
tarde a escrita – a grafia.
- Por que à construção e elaboração de um pensamento (ou poesia) já
não seria um ato do desenho?
É possível que este momento – da reflexão - corresponda muitas vezes
a uma crise de trabalho, a uma ruptura definitiva dos processos e produtos da
linguagem aqui estudada. Mas por outro lado, possa ser também a busca
incessante do seu fundamento e uma conseqüente reconquista.
Um novo risco se instaura.
24
2.3. Da Captura - Fenomenologia
“Long presents his work primarily trough photography. 'I just step back,' he explained in a interview, ' and point the camera and try and get in focus. Even though it is necessary to get a good photograph should be as simple as possible so that when people look at the photography they are not dazzled by wide-angled lenses or special effects. Because my art is very simple and straight-forward, I think the photographs have go to be fairly simple and straighforward' “
5
“Os caminhos tortuosos do fotógrafo visam as intenções escondidas nos objetos. Ao fotografar, avança contra as intenções da sua cultura. Por isto, fotografar é gesto diferente, conforme ocorra em selva de cidade ocidental ou cidade desenvolvida, em sala de estar ou campo cultivado. Decifrar fotografias implicaria, entre outras coisas, o deciframento das condições culturais dribladas.”
6
Trataremos neste capítulo de um momento qual não poderíamos deixar
de lado, já que muita de nossa apresentação poética passaria por um filtro
desta captura.
Falemos agora de uma questão da fotografia.
Na pretensão de não cairmos em uma morosa proposta qual de nada
acrescente aos extensos e já muito conhecidos estudos sobre as questões
fotográficas, devemos nos centrar ao que condiz justamente o trabalho artístico
que aqui está sendo apresentado. Portanto, como que em uma análise do que
virá no capítulo seguinte, tentaremos trazer de alguns atuais estudos de
teóricos do olhar, breves recortes a compor com nossas práticas em visão.
Philippe Dubois (2003) nos coloca claramente como a arte
contemporânea é marcada em seus fundamentos pela fotografia, e mais, como
os artistas seguem trabalhando fotograficamente.
5LONG, Richrad. A line in the Himalayas 1975. In: LAILACH, Michael. Land Art. Köln, Deutschland:
Taschen, 2007. 6 FLUSSER, Vilem. Filosofia da Caixa Preta (Por uma Filosofia da Fotografia). SP: Hucitec, 1985
25
Como exemplar ele nos dispõe:
“A arte de Duchamp e a fotografia têm em comum funcionarem, em seu
princípio constitutivo, não tanto com uma imagem mimética, analógica, mas,
em primeiro lugar como simples impressão de uma presença, como marca,
sinal, sintoma, como traço físico de um estar-aí (ou de um ter-estado-aí)”7
Este traço que a fotografia permite pode nos justificar um pouco a
escolha em muito de nossas apresentações por esta suposta tecnologia.
Suposta tecnologia em exato porque esta questão de que a fotografia
poder ser também um registro (memória, captura), que mais permite a
proximidade do registro do olho humano pode levar a um outro questionamento
de que senão seria a forma mais existencial e essencialmente artística, o que
talvez não somente a disponha de uma condição (lugar) de “tecnologia
moderna” , e sim, a compõe em um sistema primário e primordial
coincidentemente dos estudos da Ontologia.
É como mesmo citou anteriormente P. Dubois: “(...)de um estar-aí(...)”,
...o que para nós de nada se diferenciaria do que pretendemos artisticamente
enquanto Dasein.
7DUBOIS, Philippe. A Arte é (tornou-se) fotográfica? In:O Ato Fotográfico (e Outros Ensaios) . São Paulo:
Papirus, 2003.
26
Tratamos então do olhar em momento especial.
Neste importante momento, percebemos haver uma captura e ao
mesmo tempo um recolhimento. Se capturarmos o que re-conhecemos, aquilo
que nos traz proximidades, isto nos torna pares. Talvez seja por isto que nos
achamos – em captura - parado pelo menos em alguns segundos quando
capturamos algo:
- Aquilo nos perturba como que um aviso sonoro interior. E se
atentos estamos, nos permitimos entrar neste risco, nesta fissura, neste canal
do entre sem dúvida. E com certeza. É mesmo como em outro exemplo quando
lemos um livro e uma pequena frase daquele nos faz sair do ritmo automatista
da leitura, fazendo gerar ali uma literatura por reconhecimento. Ou mesmo
quando nos deparamos com uma obra de arte e vimos algo como se fosse
nosso ali. Percepção; ou antes, quando olhamos algo qualquer que não
chamamos mais de “um qualquer algo”.
A captura também se desvela como um reflexo:
- Mais que um simples olhar, é um rebatimento da paisagem sobre
nós, trazendo à luz nossa própria imagem em ressonância. É este rebatimento,
este reflexo que gera algo da reflexão (por conseguinte), algo da poética – que
cria algo, por fim.
Ao poder da captura, enfim, é dada uma importância tal que nos leva
servir tanto para teorias quanto para uma prática artística.
27
Abriremos aqui uma breve problematização do imediato (concepção de
arte) e da coisa mediada (e de sua imediatez). Tanto em prosa quanto em
verso é inerente que o problema da interpretação é um problema antes da pré-
concepção:
- Ora, passamos os olhos por palavras que seu contexto literário
nos propõe ora em desvios que podem ou não nos levar a lugar algum. Ora,
passamos os olhos por paisagens outras que, em seu contexto imagético
podem ou não nos levar à nenhuma imaginação, um nada além.
Nesta passagem da sensação para a percepção um problema aqui pode
cessar se acreditarmos que dentro desta imediatez – que não leva em lugar
algum – possa ainda haver algo da memória. É na memória que justificamos
ainda haver algo de concreto dentro deste abstrato que chamamos de
memorial. Portanto a pré-concepção possa ser algo dentro da interpretação
que nada gere em verdade, mas que salvaguarde nossas verdades interiores.
Toda coisa, inclusive a obra de arte, nos é dada duas vezes:
- Em uma primeira vez lá, diante de nós, no horizonte do mundo,
como objeto de uma visão. A coisa em si, o ente, somente se apresenta a nós
na sua condição objetiva que é a dele mesma em sua distância. Mas a
essência do que pensamos por distanciamento pode ter um outro desvio que
nada tem a ver com a maior ou menor proximidade do objeto em relação ao
olho que a vê. Podemos estar bem próximos de algo fisicamente, porém
afetivamente ou em questões de proximidade (ser-ente), estaríamos a milhares
de kilômetros, talvez mesmo sem nenhuma ou quaisquer dimensão - em
possibilidade de medir -, ou melhor, em uma imensidão de distanciamento
daquilo que fisicamente quase nos tocamos.
É assim que o olhar não se vê vendo, o ouvido não se percebe a si
mesmo ouvindo e extensivo aos demais sentidos. E é assim que a obra de arte
nos é dada em sua segunda vez, na relação com o olhante, com o ser que está
28
aberto à este segundo olhar. E somente a este ser aberto que acreditamos lhe
ser dada a capacidade de retirar das coisas os “blocos de afectos e
perceptos”.8
Falamos da Captura.
Esta seria uma partida para podermos dar início a uma pequena
justificativa para os momentos seguintes quais apresentaremos as poéticas da
do fazer artístico. Trabalhos que indubitavelmente passarão pela questão da
captura. Não somente do olhar daquele que faz a obra – o artista -, mas
daquilo que passa, oferece a idéia esboçada pelo próprio artista em forma de
coisa, imagem.
Esta passagem - da idéia poética para a coisa-de-arte -, é a que
tentaremos demonstrar no capítulo seguinte.
8 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Percepto, Afecto e Conceito. In: O que é a Filosofia ? São Paulo:
34, 2005.
29
2.4. Discussão Imagética – Do Verso (o outro lado)
“Vencendo a opacidade do papel, o desenho faz um lugar. Faz teatro. E o lugar da visão apurada. E um lugar em que o olhar vê a si mesmo. Neste teatro, o desenho anuncia um mundo. O desenho possibilita ver o outro lado do mundo. Ver o que já esteve lá desde o começo. Ver o que não se mostra. Ver o que se oculta no opaco das superfícies. Desenhar é de alguma forma vencer a opacidade. O desenho é artifício de que o mundo dispõe para
saber de si.” 9
"Desenho é a primeira forma visível em meus trabalhos, a primeira forma visível do pensamento, o ponto de
mudança das forças invisíveis para a coisa visível É realmente um tipo especial de pensamento,
colocado sobre uma superfície. Não é apenas uma descrição do pensamento,
você incorpora também os sentidos. O sentido de equilíbrio,
o sentido da visão, o sentido da audição
o sentido do tato” 10
Nesta parte do trabalho - o ideográfico - colocaremos em
problematização a prática artística.
Partiremos então, da captura das imagens, e a partir de registros do
ambiente fotográfico (e do videográfico) do “o olhar lançado”11 do artista e o
“olhar que caça”12 -, trazer novas problematizações a serem trabalhadas aqui
em seus processos poéticos de construção, em segunda tomada. Faríamos,
portanto, um complexo destes registros poéticos do olhar.
9 FINGERMANN, Sérgio. Desenho e Opacidade. In: DERDYK, Edith. Disegno. Desenho.
Desígnio. São Paulo, SP: SENAC, 2007. 10
TEMKIN, Ann. Thinking is Form: the Drawing of Joseph Beuys. London: Thames & Hudson, 1993. 11 SMITHSON, Robert. The Spiral Jetty. (HOLT, Nancy: Writings of Robert Smithson, NewYork:
University Press) In: COTRIN, Cecília e FERREIRA, Glória (orgs.), Escritos de Artistas. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar, 2006 12 FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta (Ensaios Para uma Futura Filosofia da Fotografia)
São Paulo, SP: Hucitec, 1985
30
Por um cuidado à informação dada, dividiremos esta exposição em dois
lugares da Grafia:
Um olhar que captura as poéticas da natura - registros da/na natureza
sobre o tempo/espaço – qual classificamos de “Geografias” e o olhar lançado
sobre a cultura (produções de uma artificialidade, do homem), “Antropografias”.
Obviamente, que em alguns momentos ficaria difícil esta secção exata,
pois a questão aqui é maior do que demarcar territórios ou criar
engavetamentos e, sim abrir para novas questões, convergentes da imagem
para a poesia.
31
2.4.1. Possível Origem: “Registro de Ausências”
Este foi talvez um “desenho-primeiro”, um trabalho de nome “registro de
ausências” (data de 2002). Talvez um dos desencadeadores deste pensamento
teórico-prático que desenvolvemos agora.
Neste trabalho, um ambiente novo era sugestionado dentro de uma sala
de aula, onde a sistemática e ordinária disposição de mesas de dentro de uma
sala de aula era problematizada e redistribuída para a uma nova construção, à
realização do trabalho.
Desta nova disposição, agora irregular e informal das mesas, um
labirinto era construído, onde folhas de papel em branco de grandes dimensões
velavam o chão e as mesas, onde mais tarde eram recobertas com pó-de-
gesso.
Com a cena criada, abria-se a porta da sala onde pessoas entravam,
uma a cada vez, vendadas por um pano branco e dali construíam o seu
caminho/labirinto, registrado pelos pés e pelas mãos do gesso até acharem
uma linha de saída ou entrada (pois o labirinto não possuía uma só saída, que
poderia ser também uma outra entrada).
32
Fotografias do trabalho da série intitulada: “registro de ausências”
33
Ao tempo, um processo imagético ia se construindo qual poderia ser
representativo do que, mais tarde, poderíamos pensar como uma ilustração ao
titular deste trabalho atual: “Desenho como Dasein”.
34
2.4.2. Possível Destino: “Desenho como Da-sein”
Um diagrama então ia se fazendo, modulador e oriente das poéticas
seguintes. Neste diagrama, um quadrante se entrecruzava pelos seus
elementos, a saber:
1. O homem – representante da cultura e um dos pontos que
constituem a linha (risco, desenho), o Ser que constrói e, somente
em sua autenticidade cria poéticas;
2. A natureza – a cena, a representação do todo-outro que não-homem
- mas também o homem, pois “trata-se de uma distinção não de
exclusão, mas de inclusão. Ora, physis não é só o natural - mineral,
vegetal, animal - e, sim, também, o sobrenatural - a história, o saber,
símbolo, a cultura , o mito" 13. A physis que cartografa, mapeia, a
construção imagética e poetiza o “lance de dados”;
3. (e 4) e o tempo e o espaço – os próprios dados lançados.
13
LEÃO, Emmanuel Carneiro. “X Seminário Arte e Filosofia: Arte e Filosofia Clássica”. In: Arte no Pensamento. Editora da UFRJ: 2006.
35
Diagrama/Desenho representativo do contexto: “Desenho como Da-sein”
Então, o jogo, a cena, se dava desta forma:
Ao Ser, estava aberto um à sua frente. Neste mundo estava contido o
Sentido, que se fazia por uma Busca (autêntica).
Ao iniciar do movimento no Mundo (à esta inicial ação do Ser), dá-se o
lance de dados – o do Espaço e o do Tempo -, cada um de cada outro extremo
do quadrante (céu e terra?), que se intercambiavam. Nesta dupla relação
homem/natureza e tempo/espaço ia se montando uma linha (Dasein).
De um desenho.
36
2.4.3. Antropografias
Colocamos a poiésis humana em primeiro discurso por considerar o
trabalho “registro de ausências” já descrito, como um possível originário de
todos estes trabalhos que se seguiam. Serão aqui desenhos onde os
elementos da quadratura (Mundo, Terra, Tempo e Espaço) se interferem,
intercruzam.
Capillugrafias
Um segundo trabalho, renomeado Capillugrafias, antes sob nome de
Tra(n)cejados, viria da composição de fios de cabelos (negros) sobre os planos
de folhas de papel (brancas).
A cena se dava ao momento em que os cabelos eram cortados e
capturados no plano das folhas brancas.
Seguem abaixo as imagens.
“composição #17” Fotografia Digital, 2007
37
“composição #33” Fotografia Digital, 2007 “composição #39” Fotografia Digital, 2007
38
“composição #56” Fotografia Digital, 2007
“composição #82” Fotografia Digital, 2007
39
“composição #91” Fotografia Digital, 2007
40
Dermatografias
Ao passo destas produções se seguiriam outras, desenhos do tempo
sobre o homem, quando as diversas linhas se entrelaçam... das rugas (do
tempo) no corpo humano. Aqui veremos diversas fotomontagens digitais
compondo espaços humanos degradados pelo tempo, a criar novos desenhos:
“dermatografias”
Seguem na outra página os trabalhos:
“composição #32” Fotografia Digital, 2007
41
“composição #18” Fotografia Digital, 2007 “composição #24” Fotografia Digital, 2007
42
Das Monografias
“Foi numa roda de fogueira na dobra de uma montanha mineira. Na roda compareceu o senhor Tião Ferreira, pessoa respeitada na comunidade de Matutu, aparência de 60 e tantos anos, lá nascido e lá permanecido. No decorrer da noite, seu Tião Ferreira inicia uma performance recitando versos que ele mesmo inventa e, não sabemos como, guarda vivamente na memória. Sendo analfabeto, não registra no papel as imagens poéticas que lhe surgem em forma de palavras, não fixa suas idéias de maneira visível por meio da escrita. Da necessidade de transmitir imagens e da incapacidade de seu registro pela palavra escrita, seu Tião desenvolveu a extrema habilidade da transmissão oral, que tem, em si, uma natureza flutuante, impalpável, interminável, fluida e, ao mesmo tempo, guarda uma repetição, exaltando a qualidade da memória. Dois jovens paulistanos que se encantaram com a força da tradição oral personificada por aquele homem tão singular, e iletrado, se dispuseram a editar um livro de poesias, gravando e transcrevendo seus versos (Sebastião Rodrigues - Tião Ferreira, “Desenho” - Airuoca, edição independente, 2002). Um livro de poesias que nasce da fala e, sendo livro, torna-se objeto de permanência. Os versos, agora escritos, atualizam e retém a experiência da tradição oral que se desdobra no tempo e no espaço: ponto nevrálgico da transição da efemeridade da fala para a permanência do registro. Perguntei ao seu Tião, naquela mesma noite, qual o título que ele daria ao seu futuro livro de poesias, querendo detectar que vibrações e sentimentos aquela experiência inédita estava provocando naquele homem. E ele respondeu com naturalidade, fluência e rapidez: - „Desenho, no singular‟. Não me contive e perguntei a razão deste título, tão inesperado e sofisticado, tratando-se de um livro de poesias vindo de um senhor tão simples. Prontamente seu Tião Ferreira respondeu, de maneira clara e direta, sem nenhuma dúvida a respeito: - „É porque fico imaginando os versos na cabeça, fico desenhando na cabeça para não esquecer!‟”14
Alguns trabalhos começariam a se relacionar, como uma retroatividade
entre intenções de mesmos conceitos. Os trabalhos intitulados “Monografia”
sugerem esta idéia quando o seu processo se constrói sobre o, do tempo e no
registro do homem com o tempo.
Registros, rabisco-grifos a lápis (grafite) em um suporte de papel (sêda).
Do que mais tarde viria a se tomar como o próprio trabalho monográfico, onde
14
DERDYK, Edith (org.). Disegno.Desenho.Desígnio. S.P.: SENAC, 2007
43
o tempo seria significante e significado para a sua própria construção. Os
escritos seriam registrados com o tempo no papel, e a cada novo tempo, o
papel seria (re)dobrado a permitir novos e novos registros...
“Escrever, para mim, é desenhar, entrelaçar as linhas de
que se façam escritura, ou desentrelaçá-las de um jeito que a escritura vire desenho” (Jean Cocteau)
Destes primeiros desenhos, a primeira “monografia #1: 210207 –
100907” partiram novos desdobramentos.
Quando ao registro fotográfico deste processo criava-se uma série de
imagens-tempo a construir por fim as páginas de um livro-objeto, onde 7
metros desfilavam o “diário de artista”.
Seguem à frente, em seqüência, os “registros fotográficos”, as
“monografias” e o “diário de artista” (livro-objeto).
44
45
“monografia #1: 210207 – 100907” coisa-de-arte (sandwiche de vidro, lápis sobre papel de seda), 2007
“monografia #2: 060108 – 230508” coisa-de-arte (sandwiche de vidro, lápis sobre papel de seda), 2008
46
Das Monografias – Dos Desdobramentos
“diário: 210207 – 100907” - livro de artista coisa-de-arte (objeto, fotografias. digitais),2007
47
Desenhoníricos
Do imaginal para a composição expressiva, “Desenhoníricos” surge do desejo da disposição das linhas que compõem o todo imaginário humano. Sonhando, o homem se propõe a um mundo aberto e estritamente dentro de uma poética do sonho. À liberdade de seu inconsciente, delírios e desejos se interligam a criar tecituras que se configuram no extenso do corpo, imenso do tempo e dimensão do lugar. Aqui, o corpo, a mente e o inconsciente (o ser unificado, Dasein) são parte do imediato/mediado a grafar momentos únicos gerados pelo complexo ambiente pré-matéria, pré-forma. Pequenos videos onde são arquivados desenhos dos sonhos dos dias alternados. Seguem abaixo frames do vídeo “desenhonírico”, 2009.
48
“ 03’45” ” Fotografia digital, 2009
“ 04’15” “ Fotografia digital, 2009
49
“ 02’30” “ Fotografia digital, 2009 “ 04’45” “ Fotografia digital, 2009
50
“ 05’10” ” Fotografia digital, 2009 “06’45”” Fotografia digital, 2009
51
2.4.4. Geografias
“Quando uma coisa é vista através da consciência da temporalidade, ela é transformada em algo que não é nada. Esse senso que tudo engolfa fornece o solo mental para o objeto, de modo que ele cessa de ser um mero objeto e se torna arte. O objeto passa a ser cada vez menos, mas existe como algo mais claro.
Todo objeto, se é arte, é carregado com o correr do tempo, mesmo que seja estático, mas tudo isto de pende do observador.
Um artista pode fazer arte simplesmente ao lançar um olhar. Uma série de olhares poderia ser tão sólida quanto qualquer coisa ou lugar, mas a sociedade continua a privar o artista da sua „arte de ver‟, ao valorizar apenas „objetos de arte‟ "
15.
Das Sulcografias
Assim como o tempo deixa rugas na pele do homem – as
dermatografias -, o mesmo aconteceria com a natureza. Visto desta forma,
algumas árvores iriam aos poucos apresentar suas linhas e traços, aspectos
de uma rugosidade (temporalidade).
Seriam os casos das “sulcografias”.
“composição #21” Fotografia Digital, 2008
15
SMITHSON, Robert. Uma sedimentação da mente: projetos de terra. in: COTRIN, Cecília e FERREIRA, Glória (orgs.), Escritos de artistas, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
52
“composição #27” Fotografia Digital, 2008
“composição #71” Fotografia Digital, 2009
53
Novelos de Mar
Assim se fazem desenhos como que a construindo tecituras, tecidos a
gerar Novelos. Novelos estes, dados ao lance do Tempo co-operando no
Espaço do mar. “Novelos de mar”.
“composição #17” Fotografia Digital, 2008 “composição #21” Fotografia Digital, 2008
54
composição #33” Fotografia Digital, 2008 composição #54” Fotografia Digital, 2009
55
“composição #81” Fotografia Digital, 2009 “composição #109” Fotografia Digital, 2009
56
Das Termitografias
“Termito: esas grupala insekto precipua tropikala qua nutrivas de ligno”.
Aqui, traças e cupins costróem seu Tempo no Espaço e nas páginas de
livros. São as “termitografias”.
Seguem nas páginas
“contra-capa (verso)” Fotografia digital s/ livro, 2007
57
“pg 3” Fotografia digital s/ livro, 2007
“pg 81” Fotografia digital s/ livro, 2007
58
“pg 80” Fotografia digital s/ livro, 2007
“pg 74” Fotografia digital s/ livro, 2007
59
Termitografias Fotografia digital, 2007 (detalhes)
60
Termitografias Fotografia digital, 2007 (detalhes)
61
Flipbooks: “poesias” e “p.c.n.”
Novos desdobramentos poéticos surgiam à medida que atentamos para
que, não somente as páginas continham este potencial imagético, mas caberia
aos livros mesmos tornarem novos motivos de especulação artística:
A se pensar na origem processual da construção formal e plástica do
cinema, é gerado pequenas apresentações que se chamaram “flip-books”.
Desta imagem gerada cinemática a partir da movimentação seqüencial
de várias fotos, geramos pequenos filmes.
“flipbook: poesias” (detalhe de alguns fotogramas – stills) - video, 2008
62
“flipbook pcn (poesia contemporânea norteamericana)” (detalhe de alguns fotogramas – still – iniciais) - video, 2008
Observação:
Todo o material composto em video aqui anunciado e ilustrado como fotogramas se dispõe em cd-roms apresentado em anexos à este material.
63
Desdobramentos
Novas formas de apresentação dos “flipbooks” foram sendo produzidas
à partir de registros de objetos em exposição, seguem abaixo fotografias dos
trabalhos.
64
Dos Caminhos: Riss
“Riss” Fotomontagem digital, 2009 Tamanho original: 120 X 90 cm
“Aceitar o desenho ampliado é correr este risco paradoxal. Não ter limites definidos.
Estancar a linha, sem achar a outra ponta. Perder os sentidos.
A força dos paradoxos reside em que eles não são contraditórios, mas nos fazem assistir à gênese da contradição.”(DELEUZE, Gilles)
65
3. C o n s i d e r a ç õ e s F i n a i s
Acreditamos, aqui, que uma arte poética cessa quando o vazio essencial
para que pudesse continuar, é preenchido pelo virtuosismo da técnica, não
restando da singularidade e da verdade, isto é, da idéia, senão seus efeitos. A
idéia é o turbilhão que desencadeia a infinitude de novos processos e imagens.
Ao analisarmos o percurso do homem no mundo, verificamos que este
desde sempre teve necessidade de exteriorizar e comunicar o que sente e
pensa. o percurso de vida e evolução dos indivíduos e das culturas projeta-se
em fatos, obras, objetos, marcas que são registradas e permanecem
materializadas sob diversas formas/ações ou até mesmo por fim de
pensamentos. Se a arte existe, no pensamento do artista, ela supõe que existe
sob condições reais, colocadas ao seu próprio fazer. A relação do pensamento
com a arte coloca a questão da sua existência e da sua realização na relação
com o fazer.
Desenho é essencialmente um risco: risco porque inicia toda uma cadeia
de (em) linguagens à frente. Risco pois configura uma fissura, um corte no
espaço a dividí-lo, a poder desvelar algo através e que atravessa, desocultando
a opacidade do branco e da superfície do simples papel. É a primeira abertura,
tanto no imaginal quanto ao traçado. Um Caminho. Porém, um traçado único.
66
Poderemos, então, tirar uma importância sobre esta determinada e
específica linguagem:
- Seria o desenho o iniciar de um pensar-e-fazer uma coisa-de-arte, um
movimento talvez, primeiro e primário (no sentido de originar) dentre os todos
outros da arte, ou seja, uma real fundamentação qual vivemos a questionar
como concepção: Arte?
- E mais, se desenho constitui ser este momento de partida como que
um preparo, um cuidado somente ao cargo de trazer o sentido de obra para a
pintura, escultura, ...enfim, o que paradoxalmente de tão onipresente hoje em
dia faz, este antes, tão invisível artifício da arte: o desenho?
Insistimos para que os elementos da imaginação do artista, o todo
imaginal seja possível de elevação sobre os planos dos elementos (ir)racionais.
Atender esta necessidade com os desdobramentos subseqüentes da arte –
seja ela em qual tempo/espaço - é mesmo levar a situações por vezes de uma
radicalidade, ainda que sugeridos, permitidos pelos limites da arte.
Pretendemos mesmo um retirar o desenho de sua historiografia de
“esboço para obra-de-arte”, revisitando seu estágio original, para poder
(re)lançá-lo ao seu Lugar, como estatuto de obra-de-arte.
O fascínio que sentimos perante obras artísticas como um desenho
rupestre, gótico, renascentista ou mesmo contemporâneo, faz-nos pensar
acerca do que estará no cerne destas obras para provocarem tal efeito.
Este enigma que nos instiga, pode ali conter o desencobrimento de uma
verdade. Um reconhecimento e a clareira do ser.
67
Desenho aqui é o traçar de um mundo próprio, gerar autenticidade
através de novas possibilidades. E acreditamos que na busca de uma origem
enquanto fundamento haverá a possibilidade de lançá-lo em aberturas a fazer
com que o Movimento nunca cesse, justificando por fim à idéia do que seja
uma poética do original e, especificamente, da autenticidade do Ser.
Desenho pode ser tudo contido entre dois pontos, talvez menos estes
exatos dois pontos e, sim, o movimento gerado pela linha.
Importante atentarmos que o desenho também é aquele momento capaz
de gerar, fazer brotar um duplo, pois é somente no risco que damos início ou
percebemos o rasgo. E é neste simbólico rasgo que deixamos à marca, uma
primeira forma no mundo.
Mas todo caminho percorrido, se se autêntico, é possível de uma marca
que vai além da forma.
Vai além, pois a forma é algo que se dá. e dá-se ao tempo.
“Dificilmente o que habita perto da origem abandona o Lugar”.(Hölderlin)16
16
Heidegger, Martin. A Origem da Obra de Arte. Lisboa, PORTUGAL: Edições 70, 2005.
68
O rasgo gerado pela linha do desenho, antes que se configure e traga
uma com-formação, sempre se mantém na idéia da possibilidade, ou seja, no
desenho como caminho há uma permissividade onde aquele que (se) (a)risca
se coloca aberto ao jogo do mundo.
Retomemos agora a questão que introduzimos como que um convite
inicial de nossa conversa, para justificarmos com a proposta da introdução.
A atenção aqui direcionada é para que haja uma permanência do nosso
objeto de estudo na linha tênue entre estes dois segmentos do conhecimento:
a prosa e o verso. Mas mais do que demorarmos a manter nos siginificados
destes dois, pensemos que levá-los como siginificantes - como aberturas para
novos caminhos – nos seria mais ideal. Aos dois temos elementos quase que
autônomos que, conjugados, se potencializam em uma completude (fidelidade)
de pensamentos, ou seja, o caminhar aqui em prosa-verso não nos coloca em
situação imparcial, mas pode nos compor em momento único que de nada
exclui um à originalidade do outro.
Ora, nesta proposta de tentarmos nos manter aos pés destes dois
momentos fundamentais – prosa e verso – o que teríamos a dizer, aproximado
ao que aqui, chamamos de: Desenho?
O Desenho ainda se mantém na lucidez de uma prescrição em momento
de pré-escrita. Desenho pode estar/ser (n)aquele exato tempo/espaço qual
media em disposição de um lado o verso e, de outro, a prosa. Assim, desenho
pode se dar em uma potência porque se expõe para nós como um duplo entre
grafia e escrita, sem antes excluir um dos casos.
O que também tentamos desvelar aqui, é esta extensa e intensa carga
que o desenho possui, que poderá dispô-lo naquele mesmo duplo origem-
sentido do que possa ser um significante-significado para o Ser.
69
Desenho pode ser o entre qual possa gerar tanto uma idéia, quanto uma
concepção de mundo ou de uma coisa.
E é neste plano que acreditamos um débito do real valor do Desenho,
não somente historiográfico mas ontológico, não somente como uma posição
acondicionante (subseqüente para as demais classes artísticas) , mas em uma
complexa e completa proposição poética do ser. Um eterno latente que
sustenta o duplo, o possível de algo original (em origem) a fazer gerar uma
grande e autêntica relação do ser-no-mundo.
Aqui, sem nenhuma pretensão revelada, este trabalho nos serviria como
mais um caso - no sentido de em si mesmo a fechar -, mas sim, um
revisitamento à uma abertura para projetar e apontar novas linhas para uma
autenticidade. De certo Desenho não é um risco que, gerando uma fissura no
Lugar, é sim aquele que toma partido dos caminhos artísticos capaz de gerar a
abertura para permitir o devir autêntico da relação artista-coisa de arte.
Permitir(-se) (n)o risco é um estar-aberto às possibilidades da linha.
Por isto aqui tratamos de um momento-outro que transversa das
questões historiográficas, técnicas e estéticas do que se pode chamar:
desenho.
Desenhos são como os Caminhos que sempre permitiram e permitirão a
condição poética do Ser-no-mundo:
“Desenho como Da-Sein”
“...E eis que me tornei um desenho de ornamento Volutas sentimentais.Volta das espirais
Superfícies organizadas em preto e branco E no entanto acabo de ouvir-me respirar
É isso um desenho? Isso sou eu?”
(Albert-Birot, Poèmes à l'autre-moi)
70
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