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Documentários de natureza: um panorama a partir dos Estudos
Culturais
Historicamente, o gênero documentário se tornou uma das principais indústrias
de informação e entretenimento, sendo suas produções facilmente encontradas em
espaços domésticos, escolares e educacionais. Cristina Bruzzo (1998) afirma que,
quando as pessoas se preparam para assistir a um documentário, se preparam para
assistir a um trecho de uma realidade, à “vida como ela é”. Costuma-se separar gêneros
de filme em ficção e não ficção antes de qualquer outra classificação: filmes de ficção
supostamente contam histórias, fábulas, trabalham com criatividade e efeitos especiais
para inventar um mundo à parte; e as obras de não ficção, os documentários, narram e
mostram supostas realidades sobre uma pessoa, um povo, um evento ou algum
acontecimento da natureza. Bruzzo (1998, p.23), na comparação entre filmes de ficção e
não ficção, mostra que se trata de uma visão muito simplista das coisas:
(...) o primeiro conta uma história e o segundo mostra a realidade. A
decorrência desta simplificação é que o filme de ficção serve ao
entretenimento, enquanto atribui-se ao documentário a enunciação da
verdade, portanto a possibilidade de se aprender alguma coisa. Logo
este cabe perfeitamente na escola, enquanto o outro requer cuidado em
seu uso pedagógico, porque, sendo ficção, engana (BRUZZO, 1998,
p.23).
Bruzzo (1998) mostra que nas escolas e faculdades, sempre que se pleiteia a
possibilidade de assistir a algum filme com os alunos, se busca alguma “finalidade
pedagógica”, seja sobre assuntos específicos referentes às disciplinas curriculares ou
sobre o desenvolvimento de determinados tipos de valores junto aos alunos.
Dificilmente enfatizam-se, em sala de aula, as possibilidades artísticas e criativas
abertas por esse ou aquele filme – pelo menos, não nas aulas de Ciências e Biologia –,
mas essa é uma discussão que não pretendo desenvolver neste momento. O que quero,
aqui, é reforçar que inúmeros filmes de ficção passam pelas escolas porque são
“baseados em fatos históricos” (e, portanto, teriam uma “aura” de fidedignidade). Já os
filmes documentários que também povoavam as atividades de muitos professores
carregam (em seu próprio nome) uma espécie de legitimação, pois se trataria de um
“documento” – algo que atesta uma realidade. Mas tais distinções, como veremos, não
são tão simples, pois tanto o cinema de ficção quanto o de não-ficção são plurais – e,
além disso, para os Estudos Culturais, a separação entre “fantasia” e “realidade” perde a
importância, pois filmes de ficção e de não-ficção são, todos eles, constructos culturais.
Quando se trata de documentário de natureza, a realidade supostamente captada
pela câmera é ainda mais difícil de questionar. Podemos pensar que é comum questionar
o que um filme documental mostra, principalmente, em se tratando de documentários
feitos com pessoas ou sobre elas. Neste caso, sempre há margem para questionamentos
tais como: “será que estão falando a verdade? ”, “será que não foram pagos para dizer
isso? ”, “será que não alteraram o lugar filmado? ”, “será que essas pessoas não foram
influenciadas em suas falas porque estão diante de câmeras? ”. Mas como questionar
um filme que mostra a vida de um grupo de elefantes? De insetos? De lobos? Animais
não podem atuar, afinal.
Bill Nicholls (2005), em seu livro “Introdução ao documentário”, classifica os
documentários em subgêneros para mostrar que existem muitos modos e estilos de
produção de documentários. Ele salienta como são organizados e que estratégias são
acionadas para construí-los. O autor elenca seis modos de representação – isto é, seis
“conjuntos de regras que modulam a construção do espaço, do tempo e da enunciação
do relato audiovisual”: o modo poético; o modo expositivo; o modo observacional; o
modo participativo; o modo reflexivo; e o modo performativo. Os modos de narrar não
podem ser assumidos de maneira “pura”, ou seja, um filme pode misturar elementos de
diferentes modos e sistemas expressivos, mas, normalmente, há a predominância de
algum deles. Os documentários de natureza, em sua maioria, são produzidos desde a
lógica do modo expositivo – mas isso, de fato, é cada vez mais variado. Andrea
Molfetta (2008), pensando sobre o conceito de Nicholls de “modo expositivo” de
representação, enfatiza que os filmes da National Geographic, por exemplo,
apresentam, mostram, descrevem e narram histórias supostamente verídicas, e que
“ninguém duvida da janela de aventuras e excentricidades que eles nos trazem sobre o
Mundo Natural. Em síntese, é a estética naturalista, o cinema como janela para o
mundo. Nós cremos no que o filme nos diz e nos ensina” (MOLFETTA, 2008, p. 20)..
O filme documentário tem por característica sustentar-se, supostamente, por
acontecimentos “reais” – isto é, “tratar efetivamente daquilo que ocorreu, antes ou
durante as filmagens, e não daquilo que poderia ter acontecido" (PUCCINI, 2009, p.
101). Um documentário não traduz uma realidade dada e, sim, uma representação dela,
sob o ponto de vista de quem o constrói. Portanto, ver animais, plantas e fenômenos
naturais nos filmes documentais não pode ser equiparado a uma suposta expressão
exata, natural e definitiva.
Derek Bousé relata em seu site que, no final de 1800, Eadweard Muybridge
lançou as bases para o cinema moderno e, também, do gênero documentário de/sobre
natureza, com seus experimentos fotográficos com animais em movimento, como o
famoso The Horse in Motion (1882), no qual diversas câmeras foram dispostas ao longo
de uma pista de corrida de cavalos, e o conjunto das várias fotos gerou o primeiro
registro de imagem em movimento da história.
Os primeiros filmes (curta metragens) gravados entre os anos de 1894 e 1907
capturavam momentos isolados, partes de eventos como o desabrochar de uma flor, a
metamorfose de uma lagarta à borboleta, e o próprio galopar de um cavalo, como o do
filme citado anteriormente. Já Spiders on the Web (1900), produzido por G.A. Smith, é
considerado um dos primeiros exemplos de filme de história natural em close-up1, já
que consistiu no registro visual de aranhas presas em cativeiro. Diferentemente da
tendência contemporânea na qual a megafauna exótica (leões, elefantes, onças) é
protagonista da maioria dos documentários de natureza, os experimentos com as
câmeras no final do século XIX e início do século XX se limitavam a locais próximos,
devido ao enorme aparato de gravação da época e ao (também enorme) tempo de
exposição à câmera para a produção das imagens. Outro exemplo de documentário do
período é Cheese Mites (1903) de Charles Urban2, que mostra ácaros rastejando no
queijo colocado sobre a mesa de café da manhã de Urban, em um close-up considerado
“inovador” para a época. Charles Urban (1867-1942) foi considerado uma das mais
importantes figuras da indústria cinematográfica britânica do período, pois criou seu
próprio projetor, o Bioscope, em 1897, com o qual exibia os filmes que desenvolvia
1 Termo utilizado no campo da Fotografia e do Cinema para se referir a imagens focalizadas bem de
perto, um plano fechado em determinado objeto ou pessoa, gerando destaque e detalhamento da cena. 2 A biografia e os filmes produzidos por Charles Urban estão reunidos em um site comemorativo feito
em homenagem a sua contribuição para a história do cinema. Disponível em:
http://www.charlesurban.com/, acesso em 23 de abril de 2015.
Fonte: http://aambiental1.blogspot.com.br
para o público em uma espécie de cinema ambulante combinado com outras atrações
(The Bioscope Show).
Derek Bousé (2010) considera que as rápidas sucessões de fotos que viravam
filmes que mostravam o mundo animal que o olho humano não podia ver, rapidamente
ganharam status de “Ciência”. Com as muitas possibilidades de se fazer filmes (ainda
que curtos) com esse suposto valor científico, as câmeras, até então enormes, pesadas e
de difícil manuseio, passaram a ser utilizadas em jardins zoológicos para capturar a vida
dos animais. Os filmes Monkey Party (1886) e Pelicans at the Zoo (1887), com imagens
de macacos comendo bananas e pelicanos caminhando, voado e se alimentando entre as
grades, respectivamente, foram filmes curta metragens gravados em zoológicos. A
intenção dos filmes gravados em zoológicos era mostrar o comportamento dito
“natural” dos animais.
Mas é importante notar que, com o passar do tempo, esses filmes foram
perdendo popularidade. Derek Bousé, em seu site3, afirma que, possivelmente, isso
aconteceu porque um registro trivial, pequeno e pontual sobre um animal ou fenômeno
natural – elaborado por meio de técnicas de edição que se limitavam a fazer
interferências no “cenário” (colocar plantas e animais em ambiente controlado, por
exemplo) – deixou de ser uma maneira “eficaz” de contar uma história interessante para
as pessoas
Topsy e Mary, elefantas em cartaz!
A crueldade e a humilhação marcaram sobremaneira o início do cinema
documentário com animais.
Durante as pesquisas,
imagens e relatos
perturbadores de cenas de
maus tratos, de
subjugação, de violências
extremas que
frequentemente levavam à
3http://www.wildfilmhistory.org/, acesso em 4 de março de 2014.
Figura 1- Reportagem sobre Topsy, 1916.
morte os animais protagonistas foram recorrentes. A indústria dos filmes
documentários de natureza possui um histórico de exploração e devastação que não
pode ser negado. Topsy e Mary, duas elefantas sequestradas ainda filhotes de seus
habitats, na Índia, para serem animais de circo4, também foram parar no cinema. Já é
muito assustador pensar em animais sendo treinados para aparecer em picadeiros
fantasiados e rodando em um pé só, mas é muito pior5. Topsy era frequentemente
maltratada pelo seu domador: conta-se que ele bebia muito e enquanto embriagado,
oferecia-lhe de comer cigarros acesos! Em um ataque de fúria, ela o matou pisoteado e,
depois disso, mais dois homens morreram ao tentar domá-la.
Esses acontecimentos revoltaram a opinião pública em 1903 e seus proprietários
decidiram matá-la. Primeiro decidiram que fosse enforcada, porém, a American Society
for the Prevention of Cruelty to Animals protestou, por considerar cruel, e pediu que se
pensasse em outra maneira de sacrificá-la. Naquele período, Thomas Edison e Nikola
Tesla estavam elaborando hipóteses sobre os perigos e danos relacionados à corrente
alternada em relação à corrente contínua, então Thomas Edison sugeriu que Topsy fosse
eletrocutada com corrente alternada (pois assim conseguiria também provar os perigos
desta – e, também, provar que Tesla estava incorreto), e acabou por convencer a
associação protetora de animais. Assim, na execução de Topsy, foi aplicada uma
corrente alternada de 6.600 volts que a matou em menos de um minuto. O evento foi
presenciado por cerca de 1.500 pessoas pagantes (venderam-se ingressos para a
execução), e a gravação em filme6 foi feita por Thomas Edison e visualizada em todo
território americano, como um filme educativo sobre os perigos da corrente elétrica
alternada, passando em escolas e universidades7.
4 Topsy pertencia ao Forepaugh Circus localizado em Coney Island, EUA e Mary ao Sparks World
Famous Shows, em Kingsport, Tenesse, EUA. 5 Os “shows” das elefantas eram performáticos e acrobáticos, os treinamentos eram abusivos, envolvendo
constantes flagelações e, para as apresentações em público, as elefantas usavam roupas e toucas coloridas. 6 Vídeo disponível em: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/transcoded/2/2b/Edison_-
_Electrocuting_an_Elephant.ogv/Edison_-_Electrocuting_an_Elephant.ogv.360p.webm, acesso em 24 de
abril de 2015. 7 Matéria publicada pelo site DailyMail, de onde as informações foram retiradas:
http://www.dailymail.co.uk/news/article-2559840/The-town-hanged-elephant-A-chilling-photo-macabre-
story-murder-revenge.html. Possui uma versão traduzida no site:
http://www.sociedadevegan.com/elefantes-executados-publicamente. Acesso em 24 de abril de 2015.
Fonte: http://sociedadevegan.com
“Kill the elephant!”
Em 1916, a outra elefanta, Mary, também foi sacrificada, filmada e mostrada
para o mundo. A elefanta matou seu treinador e diversas pessoas testemunharam o
ataque, dizendo que ela havia sido ferida com um gancho pontiagudo próximo da região
da orelha e, só então, o atacou de modo defensivo. Um jornal noticiário da época, o
Johnson City Staff, informou sobre o fato em suas páginas da seguinte maneira:
Mary colidiu a sua tromba com força contra o corpo de Eldridge,
elevando-o a uma altura de 10 pés no ar e, então, estilhaçou-o com
fúria contra o chão... e com toda sua força. Comentou-se que ela
perfurou o corpo do homem com as presas. O animal, então,
dilacerou-o e, terminado a chacina, repentinamente, ela balançou
aquele corpo sem vida com as suas gigantes patas e arremessou-o
contra a multidão.
Pelos registros da época, cerca de 2.500
pessoas assistiram o enforcamento público de
Mary – escolas levaram suas crianças, que
gritavam, em coro, “Kill the elephant!”, Kill the
elephant!”. A elefanta foi erguida pelo pescoço
com uma corrente alçada por um guindaste
montado sobre um vagão, que quebrou e ela
caiu ao chão e agonizou até morrer. Fotos e
filmagens foram distribuídas pela cidade, que
logo ficou conhecida como a “Cidade que
enforcou um elefante”8.
Filmes de Safári
8http://www.dailymail.co.uk/news/article-2559840/The-town-hanged-elephant-A-chilling-photomacabre-
story-murder-revenge.html, acesso em 24 de abril de 2015.
Figura 2 - Cartaz (traduzido) do clipe que
mostrou Mary ser enforcada.
Figura 4- A caçadora Osa Johnson entrega uma pele de
zebra para o prefeito de Nova Iorque na inauguração do
Museu de História Natural de Nova York.
Fonte: http://wildfilmhistory.org/
A partir dos anos 1920, teve início um modo de representar a natureza bastante
popular que, de certa forma, perdura até os nossos dias: os filmes documentais sobre
expedições (e, especialmente, os Safáris na África). Esse tipo de filme foi muitas vezes
financiado por grandes instituições, como museus e universidades, com o objetivo duplo
de obter lucros de bilheteria e informações sobre lugares pouco explorados. Antes dos
anos 1950 esses filmes (que ainda não se chamavam “Safári”) mostravam os
exploradores em seus meios de transporte fazendo diversos abates de animais com
armas de fogo.
Os primeiros filmes documentais de
Safári exibidos nos anos 1950 e 1960
mostram animais – e nativos africanos!
– ferozes, raivosos, demonizados, e
homens brancos (eventualmente,
mulheres) empunhando armas para
detê-los. As florestas são consideradas
lugares terríveis, entre outros
predicados pejorativos. David Ingram
(2000) relata que, antes de 1960, o cinema
tende a representar os animais silvestres
como “obstáculos malévolos” para a conquista imperialista da natureza; obstáculos que
foram superados (isto é, mortos) por homens brancos.
Durante o fim do século XIX e início do século XX, a palavra suaíli9 safari (que
significa “viagem”) foi apropriada por
viajantes europeus e americanos na África
e popularizada como um modo de caça e
recreação. Assim, o que antes era
possibilidade apenas de pesquisadores e
cineastas patrocinados por Academias de
9 Idioma Banto, uma das línguas oficiais do Quênia, da Tanzânia e de Uganda.
Figura 3- Expedição de Safári do casal Johnson.
Fonte: http://wildfilmhistory.org/
Ciências e Artes10, poderia ser realizado por qualquer um que tivesse condições de
pagar por isso. Os safaris “particulares” tornaram-se cada vez mais mercantilizados na
década de 1950 e 1960 com o advento da proibição da caça e a independência dos
países africanos. Os Safaris, desde então, foram transformados em símbolo de luxo da
indústria do turismo cultural, que é a principal força motriz da economia de lugares
como a África Oriental (PETERSON, 2014)11.
Conforme Fernão Ramos (2010), “narrativa fílmica” é a maneira que se conta
uma história dentro de uma obra cinematográfica, como são expostos os “fatos” e como
são construídas as sequências de cenas. Há diversas maneiras
pelas quais as linguagens da narrativa se expressam: pelas palavras, oralizadas ou
escritas; pelas imagens; pelos jogos de luz e sombra; pelo zoom; pelos sons, músicas,
falas e efeitos de sonoplastia, etc. Nesse sentido, ressalto que “filmes de Safári” são
considerados um estilo particular de narrativa documentária.
Tais filmes promoviam (e ainda promovem) uma superioridade não apenas da
tecnologia ocidental, como também moral sobre os africanos, os animais e a terra.
Peterson (2014) cita Donna Haraway em seu argumento de que “os africanos tinham o
mesmo status de animais selvagens... a justificativa final para [sua] dominação” por
ocidentais brancos.
Produzindo “histórias reais”
Entre 1867 a 191412, as narrativas documentais de natureza eram gravadas,
principalmente, em circos, zoológicos, jardins e até mesmo em ambientes domésticos
(como no caso dos documentários acerca dos ácaros e das aranhas, mencionados
anteriormente). Por vezes, baseavam-se na exposição de animais ao ridículo (para gerar
10 Por exemplo, a National Geographic Society que, desde a sua fundação, em 1888, nos EUA, patrocina
e realiza viagens de exploração ao redor do mundo e publica mensalmente uma revista, a National
Geographic. Em 1997, a National Geographic Society lançou seu próprio canal televisivo, o National
Geographic Channel (NAT GEO e NAT GEO WILD). 11 Artigo Online disponível em: http://animalcollectivism.com/?portfolio=7th-tea acesso em 22 de junho
de 2015. 12 Informação retirada da linha cronológica (contendo os principais eventos relacionados a filmes com
animais) feita por Bousé e disponível em: http://wildfilmhistory.org/events.php, acesso em 7 de maio de
2015.
Figura 6- Produtor com filhote de raposa no
set de filmagens do filme “Foxes”.
Figura 5- Attenborough preparando filmagens
com um tamanduá.
um efeito cômico nos públicos). E, a partir dos anos 1920, filmagens de Safáris13 e
perseguições seguidas de abate “dão o tom”, por assim dizer, em termos de
documentários de natureza. Investimentos e financiamentos foram feitos para que os
documentaristas pudessem viajar para outros continentes para realizar expedições não
só para produzir filmes com animais exóticos, mas, também, para documentar outros
povos e culturas. Com a exibição desses filmes e fotos, o interesse comercial e científico
aumentou muito sobre os “recursos naturais”, a fauna e a flora internacional. Mas
Bousé, em seu site, ressalta que com o financiamento de instituições interessadas, as
equipes de filmagens traziam muito mais que registros em rolos de filme e fotografias:
traziam, também, espécimes, peles e presas de animais, plantas e relatórios para vender
aos museus e instituições científicas. Os públicos, na maior parte das vezes, não sabiam
que os filmadores não capturavam apenas as belas paisagens, os “inéditos” animais em
filme, mas os capturavam também em camburões e navios. Junto com o
desenvolvimento da indústria do cinema sobre a vida selvagem, a exploração da mesma
também tomou novas proporções.
Estúdios e set de filmagem
Filmar os animais em seus habitats era
13 É importante ressaltar que os primeiros filmes de Safári contavam histórias de aventura, suspense e
perigo. Como o cinema ainda era mudo (ainda não havia a possibilidade de gravar imagem e sons juntos),
as cenas começaram a ser editadas contando com o auxílio de simulações e textos para compor as
narrativas, o que acabou fazendo muito sucesso entre os públicos.
Fonte: http://wildfilmhistory.org/
muito custoso monetária e materialmente; além disso, levava-se muito tempo para
filmá-los em seus ambientes. Assim, tal como já referido anteriormente, as câmeras
passaram a ser levadas para os zoológicos, pois os animais de cativeiro são muito mais
fáceis de filmar. Mas, por volta dos anos 1930, os animais começaram a ser levados
para os estúdios de televisão recém montados. Nesse período, a BBC, até então rádio e
produtora de alguns filmes para cinema, começou a gravar em set de filmagens diversos
tipos de curtas-metragens sobre a vida natural para TV aberta britânica.
Nesse mesmo período, segundo Bousé (2010), instaurou-se uma “preocupação
pública generalizada sobre os maus-tratos de animais em sets de filmagem”.
Informações, fotos, clipes de making off “vazaram” para os públicos, resultando na
revolta de alguns grupos pró-direitos dos animais. Em 1937, foi sancionada uma lei para
regular essas questões na Europa. A Lei 1.937 de Filmes Cinematográficos com
Animais (Cinematograph Films Animals Act, de 1937) foi e ainda é uma lei do
Parlamento do Reino Unido14 voltada especialmente aos filmes com animais. A lei
define que é crime filmar, distribuir ou exibir um filme em que haja a imposição cruel
de dor ou terror em qualquer animal ou, mesmo, suscitar sua ira e fúria para fazer
filmes, fotos ou vídeos. As infrações podem resultar em uma multa e/ou até três meses
de prisão, a ser agravado em caso de morte do animal15.
Com o surgimento da televisão, a bilheteria dos filmes documentários no cinema
começou a declinar. Em 1957, a unidade de História Natural da BBC foi formalmente
criada em Bristol para produzir programas de natureza para a televisão, como resultado
da grande popularidade de exibições aleatórias e independentes na TV. A BBC
comemorou, em 2007, 50 anos atuando com produção, venda e distribuição de
documentários científicos, em especial de vida selvagem, com uma revista
comemorativa16. Com o surgimento da TV por assinatura, a maioria dos canais com
programação documentária agora precisa ser paga para ser assistida e, na medida em
que diversos canais foram surgindo, o ramo dos documentários tornou-se organizado
como uma “indústria” (CHRIS, 2009). Assim, nos anos 1980, surgiram empresas como
a Discovery Communications nos Estados Unidos e a BBC no Reino Unido.
15 Até o momento, não encontrei qualquer legislação brasileira sobre a utilização de animais em filmes.
O Discovery Channel é um canal de televisão por assinatura destinado,
basicamente, à apresentação de documentários, séries e programas educativos sobre
ciência, tecnologia, história, meio ambiente e geografia. É o canal principal da
Discovery Communications17. Outros canais também possuem programação com
documentários de natureza, e um canal em específico, o Animal Planet18, é exclusivo
para programações envolvendo o mundo animal. Documentários produzidos pela
Discovery, BBC e National Geographic possuem um reconhecimento popular bastante
sólido, como ressalta Bill Nichols: “Se o Discovery Channel chama um programa de
‘documentário’, então ele pode ser rotulado como documentário antes mesmo que
qualquer comentário por parte do público ou da crítica comece” (NICHOLS, 2001).
Tal como já mencionado anteriormente, a National Geographic Society, surgiu
em 1888 em Washington, idealizada por um grupo de 33 homens da elite americana,
interessados em “organizar uma sociedade para o incremento e a difusão do
conhecimento geográfico”19. O grupo reunia geógrafos, exploradores, oficiais do
exército, advogados, meteorologistas, cartógrafos, naturalistas, biólogos, inventores e
engenheiros. Essa sociedade também se utilizou da televisão como um meio para levar
as viagens de seus correspondentes e seus programas educacionais, culturais e
científicos até os lares americanos. Em 1973, começou a comercializar apenas para TV
por assinatura e, em 1997, a sociedade lançou seu próprio canal televisivo, o National
Geographic Channel. O NatGeo Wild é o canal em HD do grupo, também dedicado
somente a filmes e programas sobre natureza.
Após o fim da Segunda Guerra Mundial, Walt Disney inaugurou uma série de
enorme sucesso composta por documentários de longa e curta-metragem, chamada de
True Life Adventures (Aventuras da Vida Real, em tradução literal), na qual a natureza
estadunidense é retratada em forma de filme e apresentada nos cinemas daquele país. A
série estreou com On Seal Island (1948) e Beaver Valley (1950), curtas dirigidos por
James Algar. Seguiram-se os documentários de longa-metragem The Living Desert
17 Canais disponíveis no Brasil: Discovery Channel, Discovery Kids, Animal Planet, TLC (Originalmente
Discovery Travel & Living), Discovery Home & Health, Discovery Civilization, Discovery Science,
Discovery Turbo, Discovery Theater (originalmente, Discovery HD Theater), Discovery World
(originalmente, TLC HD) e Investigação Discovery (originalmente, People + Arts). Fonte: wikipedia.com 18 Canal produzido em conjunto com a BBC. 19 Informações retiradas do site oficial da National Geographic Brasil:
http://www.nationalgeographic.pt/index.php/inicio/missao, acesso em 22 de junho de 2015.
(1953), The Vanishing Prairie (1954) e White Wilderness (1958) – que, segundo Derek
Bousé (2000), estabeleceram um “estilo Disney” para o gênero documentário. Tal
“estilo Disney” pode ser entendido como uma produção mais “romantizada”, quase
“novelizada”, com enredos que enaltecem a natureza, já que nas produções anteriores, a
Disney – bem como outras produtoras e documentaristas independentes – tendia a
mostrar os animais como seres ferozes, raivosos e demonizados, e as florestas como
lugares terríveis e hostis.
Bousé (2000) afirma que os documentários da Disney praticamente
monopolizaram o mercado de filmes de natureza nos anos 1950 na América do Norte e
na Europa. Os filmes ganharam vários Academy Awards, incluindo cinco prêmios de
Melhor Documentário de Curta e Longa-Metragem. A partir da década de 1980, todas
as produções documentárias da Disney passaram a ser reunidas sob o rótulo de
Disneynature – que se tornou um ramo independente da Disney dedicado apenas às
produções dos documentários de natureza ao estilo de sua franquia anterior, True Life
Adventures. A distribuição dos documentários Disneynature, já naquela época, ficou ao
encargo de outra empresa da Disney, a Buena Vista Home Entertainment.
Em 1999, a BBC lança um dos mais aclamados documentários feitos
basicamente de forma digital, em computação gráfica: “Walking with Dinossaurs”
supostamente recriava “o retrato mais preciso dos animais pré-históricos já visto na
tela20” segundo as maiores descobertas arqueológicas do período, e inovava em termos
de formato (com muitos gráficos, tabelas informativas e efeitos animatrônicos).
Outra interessante tendência dos anos 2000 foi a realização e distribuição
cinematográfica e em séries televisivas de diversas produções documentais feitas por
produtoras sem tradição na área documentária. Tais produções adquirem visibilidade e
legitimidade ao circular pelas grandes corporações midiáticas e, também, por trazerem
cientistas e celebridades para apresentar e embasar seu conteúdo. Empresas
multimidiáticas como Sony, Warner Bros., HBO, Universal Movies e Disney, com
tradição em serem distribuidoras e produtoras de filmes “ficcionais” e animações,
passaram a ter o gênero “documentário de natureza” dentre suas produções mais
recentes.
20 Comentário presente no site da BBC. Fonte:
http://www.bbc.co.uk/sn/prehistoric_life/tv_radio/wwdinosaurs/ acesso em 21 de junho de 2015.
Essas produções utilizando-se de inúmeras estratégias representacionais para
isso. Diversas tecnologias de imagem e de comunicação têm sido utilizadas cada vez
mais para popularizar conteúdos científicos – torná-los atraentes, acessíveis para serem
utilizados em espaços escolares, universitários e domésticos. Tais produções adquirem
visibilidade e legitimidade ao circular pelas grandes corporações midiáticas e por trazer
cientistas e celebridades para apresentar e embasar seu conteúdo. Como todas as
histórias contadas, não há neutralidades, pois carregam consigo textos morais e
ideológico de quem as produziu, os significados são sempre constituídos no contexto
em que são vistos e/ou produzidos.
REFERÊNCIAS
BOUSÉ, Derek. Wildlife films. University of Pennsylvania Press, 2000.
BRUZZO, Cristina. O cinema na escola: o professor, um espectador. São Paulo:
Unicamp, 1995. (Tese de doutorado)
_____. O documentário em sala de aula. Ciência & Ensino, v. 3, n. 1, 1998.
BRUZZO, Cristina; GUIDO, Lúcia Estevinho. Apontamentos sobre o cinema
ambiental: a invenção de um Gênero e a educação ambiental. Revista Eletrônica do
Mestrado em Educação Ambiental. V.27, n.2, Universidade Federal do Rio Grande,
2011.
CHRIS, Cynthia. All documentary, all the time? Discovery Communications Inc. and
trends in cable television. Television & New Media, v. 3, 2002.
CHRIS, Cynthia. Watching wildlife. Univ Of Minnesota Press, 2006. HORAK, Jan-
Christopher. Watching Wildlife (review). The Moving Image, 2007.
DUARTE, Rosália. Cinema & Educação. Autêntica Editora, 2002.
NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. 3ª edição. Tradução Mônica Saddy
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PETERSON, Hannah. Safari: A mediated representation. In:
www.animalcolectivism.com . Animal Collectivism: non-human representation in
Media. New York: School of Media Studies, 2014.
PUCCINI, Sérgio. Roteiro de documentário. Col.: Campo Imagético. 2. ed. São Paulo:
Papirus, 2009.
RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal, o que é mesmo documentário? Editora Senac,
2008.
RIPOLL, Daniela; MARCELLO, Fabiana de Amorim. Notas sobre cinema-
documentário: educação para o desenvolvimento sustentável. Ciência & Educação [no
prelo].
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