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EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E CURRÍCULO ESCOLAR: REFLEXÕES SOBRE
PRÁTICAS DOCENTES DOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL
Carolina Guimarães Rosa – Colégio Murialdo
Fernanda Wanderer – UFRGS
Introdução
O trabalho apresenta resultados de uma pesquisa concebida com o objetivo de analisar
os significados atribuídos por professoras que atuam nos Anos Iniciais do Ensino
Fundamental à educação matemática que praticam. O referencial teórico articula reflexões do
campo do Currículo, em sua vertente associada às perspectivas pós-estruturalistas, e da
Etnomatemática, uma perspectiva da Educação Matemática interessada em discutir a
matemática em suas relações com a cultura.
A parte empírica da investigação foi desenvolvida em uma escola pública da cidade de
Porto Alegre ao longo de 2016. A instituição oferece o Ensino Fundamental. O material de
pesquisa reunido abrangeu um conjunto de narrativas de três educadoras que atuavam em
turmas do 4o Ano do Ensino Fundamental e documentos escolares utilizados por elas em sala
de aula1. As professoras possuem diferentes formações: Maria cursou Magistério, graduação
em Filosofia e pós-graduação em Psicomotricidade. Catarina também tem formação inicial
em Magistério, graduação em História (Licenciatura e Bacharelado) e pós-graduação em
História da África e Educação Infantil, cursando ainda, na época, uma terceira pós-graduação
em Supervisão e Orientação. Já Clarice tem o Magistério seguido da Faculdade de Letras –
Português e Mestrado na área da alfabetização.
As narrativas foram geradas em entrevistas. Considerando o que Lüdke e André
(1986) defendem sobre o constrangimento que alguns entrevistados apresentam ao terem suas
falas gravadas, pedimos permissão às participantes para a possibilidade de utilizar um
aparelho gravador. Como todas elas concederam permissão para tal registro, foi possível nos
1 Seguindo os códigos de ética em pesquisas da área da Educação, a escola e as professoras não terão seus nomes
divulgados. Utilizaremos nomes fictícios para as educadoras: Maria, Clarice e Catarina. Cabe mencionar que
tivemos permissão da instituição e das professoras para a realização da pesquisa por meio da assinatura dos
Termos de Consentimento Livre e Esclarecido e de Concordância da Instituição.
atermos às falas e no assunto, solicitando os esclarecimentos pertinentes para algumas
questões não compreendidas ou pela incompletude de sentindo nos depoimentos.
As narrativas estavam focadas em alguns tópicos referentes à formação e à trajetória
profissional, tempo de atuação na escola, se gosta de ser professora e sobre ensino da
matemática. As falas encaminharam-se de acordo com a sequência que cada participante
julgava oportuno, dispendendo o tempo necessário para seus depoimentos. Contados em
minutos, as entrevistas tiveram durações variáveis; em torno de 45 a 55 minutos.
As transcrições das entrevistas consumiram, no entanto, um tempo consideravelmente
maior. A ação de transcrever gravações implica muitos cuidados, para garantir que as falas
não sejam alteradas ou mesmo cortadas. Registrar no computador tais expressões verbais
exige um movimento repetitivo de ouvir, pausar e digitar as ideias que não fixam na memória
para além de dez segundos de oralidade, portanto, o tempo investido nessas ações acabam
triplicando ou mais o registro temporal das gravações. A minuciosidade da transcrição,
mesmo que capte as marcas de expressões orais e as supressões, jamais alcançará a descrição
dos gestos, dos olhares, dos silêncios que somente podem ser lidos e interpretados no
momento da entrevista.
Assim como as narrativas, foram examinados também materiais utilizados pelas
professoras com seus alunos nas aulas de matemática. Esses materiais foram selecionados
pelas próprias educadores considerando aquilo que elas julgavam como sendo “boas
atividades”. Tais materiais foram examinados com as lentes das teorizações dos campos da
Etnomatemática e do Currículo que serão apresentadas na próxima seção.
Educação Matemática e Currículo escolar
Esta seção apresenta reflexões sobre a Educação Matemática e Currículo, tomando
como referência estudos de D’Ambrosio (1986, 1993, 1998), Knijnik (2010), Walkerdine
(2010) e Silva (2007). Autores como D’Ambrosio e Knijnik problematizam a existência de
ideias matemáticas no cotidiano das pessoas sem que elas, muitas vezes, o consigam perceber
ou mesmo entender que em suas formas de vida não-escolar existem relações que envolvem
diferentes raciocínios matemáticos que, ao frequentar a escola, aprendemos a nomear,
estruturar e representar. Pelo menos é isso que podemos deduzir ao pensarmos sobre a história
da Matemática e ao considerarmos que as sociedades do passado já estabeleciam relações de
trocas, mensuravam espaços, comparavam objetos, estudavam estruturas geométricas e as
utilizavam em suas engenhosidades.
As considerações apontadas por Ubiratan D’Ambrosio (1986) retratam sobre a
complexidade do pensamento matemático ocidental, com especial destaque para os
pensadores gregos, que preconizaram e estruturaram os currículos atuais que envolvem a
temática. Na obra “Etnomatemática – Arte ou técnica de explicar e conhecer” (1993), o autor
destaca que o ensino da Matemática segue uma universalidade que confere à realidade escolar
brasileira inúmeras coleções de insucessos.
É importante pensar nos vários períodos de tempo em que os mesmos conteúdos, as
mesmas metodologias são utilizadas pelas instituições escolares para ensinar Matemática. As
mudanças sociais e culturais, nos diferentes momentos históricos, demonstraram
transformações das formas de pensar, compreender, viver, comportar-se, produzir e interagir
com o conhecimento, entretanto aquilo que se aprendeu e ainda se aprende em matemática
continua perpassando gerações e oportunizando a exclusão social daqueles que não
compartilham as mesmas vivências daquela cultura dominante e eurocêntrica que produziu e
organizou os currículos que estão presentes nas escolas brasileiras do século XXI.
Ainda pensando sobre as contribuições de D’Ambrosio (1993), faz-se importante
refletir sobre o aspecto da intensidade da Matemática presente nos currículos escolares. Para
ele, faz-se necessário analisar o peso que a Matemática tem durante toda a educação básica,
desde os primeiros anos, culminando no Ensino Médio. Basta entrar nas escolas para
conversar com os professores e com a equipe pedagógica, ter a disponibilidade de aprofundar
os estudos sobre os documentos que guiam o currículo das instituições ou mesmo acompanhar
a trajetória de crianças, adolescentes ou adultos para depreender sobre o protagonismo que a
disciplina de Matemática possui nas organizações escolares, dividindo esse espaço, no
contexto brasileiro, apenas com a Língua Portuguesa.
Essa questão pode ser examinada com alguns apontamentos que Tomaz Tadeu da
Silva (2007) constrói sobre currículo na linha dos Estudos Culturais. Seguindo essa
perspectiva:
[...] o currículo é um artefato cultural em pelo menos dois sentidos: 1) a
‘instituição’ do currículo é uma invenção social como qualquer outra; 2) o
‘conteúdo’ do currículo é uma construção social. Como toda construção
social, o currículo não pode ser compreendido sem uma análise das relações
de poder que fizeram e fazem com que tenhamos esta definição determinada
de currículo e não outra, que fizeram e fazem com que o currículo inclua um
tipo determinado de conhecimento e não outro (SILVA, 2007, p.135).
Assim, percebemos o quanto o currículo, especialmente no que se refere aos
conhecimentos matemáticos, torna apenas alguns saberes válidos e impositivos a inúmeros
indivíduos, ficando explícita a questão das relações de poder. Ou seja, seguindo a discussão
de Silva (2007), pode-se dizer que são as relações de poder que fazem com que os saberes
produzidos por uma determinada cultura se imponham como “verdadeiros” e “corretos”
perante outros. Esse modo de estabelecer o que passa a ser a matemática ensinada nas escolas
é, em muitos casos, um fator excludente de outros saberes e culturas.
Uma pesquisadora que tem se dedicado a problematizar essas questões é Gelsa Knijnik
(2010). Em “Etnomatemática e educação no Movimento Sem Terra” (2010), ela discute um
processo pedagógico realizado com agricultores do Movimento Sem Terra que incluiu, no
currículo escolar, os conhecimentos matemáticos produzidos em suas culturas. Conforme
Knijnik (2010), nos processos pedagógicos escolares da área da Matemática podem ser
estabelecidas relações entre os saberes pertencentes às culturas do grupo de alunos com
aqueles científicos e tecnológicos, presentes na contemporaneidade.
Essas relações estão na base de uma perspectiva da Educação Matemática denominada
de Etnomatemática. Na década de 70, ideias começaram a ser estudadas e difundidas pelo
brasileiro Ubiratan D’Ambrósio que elaborou o conceito Etnomatemática:
[...] utilizamos como ponto de partida a sua etimologia: etno é hoje aceito
como algo muito amplo, referente ao contexto cultural, e portanto, inclui
considerações como linguagem, jargão, códigos de comportamento, mitos e
símbolos; matema é uma raiz difícil, que vai na direção de explicar, de
conhecer, de entender; e tica vem sem dúvida de techne, que é a mesma raiz
de arte e de técnica. Assim poderíamos dizer que etnomatemática é a arte ou
técnica de explicar, de conhecer, de entender nos diversos contextos
culturais. Nessa concepção, nos aproximamos de uma teoria de
conhecimento ou, como é modernamente chamada, uma teoria de cognição.
(D’AMBROSIO, 1993, p. 5, 6).
As produções desse autor nos colocam em posição de criticidade quanto à forma como
a Educação Matemática vem sendo compreendida e executada nos ambientes escolares. Essas
produções fazem pensar, por exemplo, na forma como se ensina na escola as quatro operações
fundamentais, muitas vezes descoladas das práticas cotidianas, da utilidade e aplicabilidade
desses saberes no meio de vida dos indivíduos. Esse ensino desvinculado da realidade cultural
e social dos alunos é o que os estudos do campo da Etnomatemática vêm problematizando. Os
conhecimentos matemáticos estão inseridos nas práticas sociais e, portanto, são vivenciados
pelas crianças, pelos jovens e adultos de maneiras múltiplas, e essa constatação permite e
exige que a matemática escolar seja repensada e significada de outra forma para que esse
ensino não seja apenas mecânico e sistemático sobre um conhecimento que é dinâmico e
presente nas vivências extras escolares.
Ao discutir sobre a matemática escolar, mencionamos ainda o estudo de Valerie
Walkerdine (2010). A autora retrata algumas reflexões sobre um ideal de criança e um ideal
sobre a forma de pensar os processos educativos infantis em realidades de terceiro mundo.
Nesse sentido, as dificuldades de sobrevivência produzem significados e marcas no processo
educativo que não se assemelham ao processo educativo descrito por estudiosos das teorias do
desenvolvimento psicológico e epistemológico, feito com crianças de classes sociais
favorecidas economicamente. São focos das análises: eixos que envolvem os problemas
matemáticos vividos versus os problemas matemáticos ficcionais que cumprem um papel de
simulação de situações reais.
Os problemas matemáticos usualmente ensinados nas escolas podem ser descritos
como de “controle simbólico”, como defende a autora, nos quais os usos não passam pela
necessidade da sobrevivência, portanto, as necessidades de solução para tais problemas não
mobilizam as mesmas abstrações de pensamentos matemáticos. Esses são os problemas mais
comuns de encontrar em salas de aula, pois na expectativa de aproximarem-se da realidade de
vida dos indivíduos, eles simulam situações cotidianas, muitas vezes, de forma distorcida. Faz
parte das discussões do campo da Etnomatemática problematizar as construções artificiais que
são enfocadas para dar conta dos conteúdos escolares.
São as ideias brevemente apresentadas nessa seção que sustentaram a análise realizada
sobre os materiais de pesquisa reunidos. Na próxima seção, o resultado desse exercício
analítico será evidenciado.
As marcas da matemática escolar: padronização e formalismo
A análise das narrativas das professoras e dos materiais disponibilizados por elas aos
seus alunos durante as aulas de matemática mostrou que, para as educadoras, é importante
contemplar, no currículo escolar, os saberes (matemáticos) produzidos nas culturas dos
alunos. São recorrentes, em suas narrativas, enunciações como essas: “é preciso trabalhar com
a realidade dos alunos nas aulas de Matemática”; “aqui na escola trabalhamos com o dia-a-dia
dos alunos”. Uma das professoras também expressou que
A questão da matemática é vital, é o dia a dia deles, né? E até nessa questão
do dia a dia eu acho que eles têm mais facilidade... O próprio Matias2... O
Matias... Ele trabalha no estacionamento da Arena. Então ele trabalha com
dinheiro. Ele trabalha cobrando os carros que chegam e vão lá... Então acho
que essa questão da Matemática fluiu para ele antes da alfabetização pelo
próprio contato que ele tem. De ser mais fácil dele se adequar a isso. Mas ele
tem essa preferência pela Matemática, sim.
A entrevistada deu-se conta que, pelas oportunidades de vida, esse menino mantém um
contato mais estreito com os conhecimentos matemáticos. Trabalhar coloca Matias numa
relação direta com o dinheiro, no qual os raciocínios independem de fórmulas, nomenclaturas
e problemas hipotéticos para acontecer. A relação que esse menino tem com o pensamento
matemático é direta, em outras palavras, como se, provavelmente, “sua vida dependesse
disso” (WALKERDINE, 2010, p.110).
Por outro lado, quando as professoras entrevistadas relatam suas práticas docentes e
contam as “melhores” atividades pedagógicas, pode-se perceber uma grande preocupação em
cumprir a lista de conteúdos presente no Projeto Político Pedagógico da escola. A professora
Clarice expressa essa questão:
Entrevistadora: Existe algum projeto nas turmas do 4o Ano que envolva a
Matemática? Ou cada professora faz o seu projeto?
Clarice: A gente procura sentar uma vez na semana e conversar pra não fazer
um trabalho muito diferente. Não existe um projeto assim... em si. [...]
Então... não existe um projeto. Cada um por si, até porque a gente procura
seguir aquela lista de conteúdos, tanto que hoje tá trocando o trimestre, a
gente tem uma lista de conteúdos que, se der pra ser dado, tudo bem. Se não,
não vai morrer por isso também. Só que eu não vou poder dar os mesmos
conteúdos de uma outra turma, porque a minha turma tem as características
diferentes, porque tem que ter aquela flexibilidade do planejamento [...] Mas
a gente só procura seguir os mesmos conteúdos pra no ano que vem, eles
estarem parelho.
O depoimento da docente demonstra dois aspectos importantes. O primeiro recai sobre
o quanto a escola ainda se preocupa em seguir a listagem de conteúdos programados para
2 Os nomes utilizados para os alunos são fictícios.
determinado ano. Percebemos, ainda, que a professora demonstra uma contrariedade na
construção das ideias. Embora ela admita não haver problemas com a falta de seguimento dos
conteúdos programados, traz outros apontamentos que ressaltam a importância de as crianças
terem a mesma instrução, no mesmo período de tempo letivo, em um ano. Inclusive, no início
de sua fala, fica evidente o esforço coletivo das docentes em programarem suas ações para
que não haja grandes distinções em relação aos conhecimentos expostos aos alunos – os
conteúdos matemáticos. Ela ressalta também a ponderação em flexibilizar o planejamento
para o perfil de turma que dedica sua prática.
A professora Clarice encerra, então, sua fala argumentando motivos pelos quais as
turmas devem seguir o mesmo programa: eles precisam “estar parelhos”, ou seja, terem os
mesmos conjuntos de saberes para determinada turma/ano afim de que possam chegar ao
próximo nível prontos para seres instruídos com os conhecimentos referentes a ele.
Depreende-se uma linearidade de conteúdos a serem seguidos. Essa atenção excessiva sobre
os conteúdos não deixa de ser uma forma sobre o qual a escola aceita e impõe um
determinado tipo de currículo.
A investigação que Schmitz (2010) realizou com professoras dos Anos Iniciais do
Ensino Fundamental de uma cidade da serra gaúcha traz algumas reflexões semelhantes às
dessa pesquisa. Tais análises corroboram as críticas sobre os currículos escolares que
conferem à listagem de conteúdos o “poder de determinar o que precisa ser ensinado. [...] de
determinar a ordem ou sequência em que esses conteúdos ‘devem’ ser ensinados”
(SCHMITZ, 2010, p. 404), como evidente na fala da docente acima.
O segundo aspecto presente na fala da professora Clarice refere-se à padronização dos
conhecimentos matemáticos para diferentes grupos e indivíduos. A intenção em promover a
mesma aprendizagem, dada de um mesmo jeito, para indivíduos diferentes parece recair no
equívoco que alguns autores da área da Educação Matemática, principalmente da
Etnomatemática, vêm intentando ressignificar. Tais estudos comprometem-se em adequar o
ensino da Matemática aos conhecimentos culturais e próprios a cada indivíduo ou a um grupo.
Como Knijnik (2010, p.22) refere-se: “os modos de lidar matematicamente com o mundo”
que nada mais são do que as leituras que um grupo de pessoas fazem sobre os fenômenos
matemáticos do cotidiano e a forma como elas compõem e pensam maneiras para interagir,
medir, registrar, calcular e estimar tais conhecimentos. Por isso a ação de problematizar essa
padronização que busca unificar os saberes que nos contextos sociais brasileiros são tão
diversificados, vividos de tantas maneiras diferentes daquela imposta pelo currículo escolar.
Além da busca pela padronização, as falas das professoras entrevistadas e os materiais
por elas disponibilizados nos levaram a pensar sobre outros significados atribuídos à
matemática escolar. O diálogo abaixo nos ajuda a discutir algumas questões:
Professora: Aí eu fui trabalhando a divisão em desenhos com números
pequenos, né? Pra entender a divisão. Só que eles entenderam o que é
dividir... o que é separar, dividir em grupos... E o raio do cálculo...
Entrevistadora: O algoritmo?
Professora: É... essa montagem aqui que é totalmente diferente da montagem
de todas as outras. Demora para achar... onde que tá o resultado? Tem que
deixar bem claro para eles que o resultado é isso aqui (quociente), porque
eles vão para cá (resto) [...] E além de ser montado diferente, ele também
começa do lado diferente. Todos começam pela unidade, eles começam pela
dezena.
Surge na narrativa docente a valorização do cálculo e algoritmo como aprendizado-
foco no ensino da Matemática. Ela defende que os alunos compreendem o raciocínio do
cálculo, no entanto não reconhece isso como importante, pois a finalidade dos estudos
matemáticos encerra-se em saber resolver “as continhas”. Continhas essas que estão presentes
também nos problemas de matemática trabalhados nas aulas. Uma observação mais detalhada
dos materiais disponibilizados aos alunos mostrou que os problemas estão presentes nas
práticas docentes, mas são analisados apenas pelas contas que deles são realizadas.
Figura 1 – Exemplos de problemas matemáticos: divisão
Fonte: Documento disponibilizado pela professora Clarice
Nos questionamos sobre a utilização de problemas que podem servir apenas como
exercício para memorização de nomes e ordens. Da mitologia descrita por Dowling (1998,
apud MOREIRA, 2010, p.104) destacamos o mito da participação, no qual os problemas
matemáticos construídos nos livros didáticos utilizam conhecimentos do cotidiano e os
recontextualizam para que seja explorado algum conhecimento matemático a partir dele. Uma
crítica semelhante recai sobre o exercício acima. A falta de vínculo desse exercício a outros
conhecimentos e aprendizagens de vida dos alunos o torna esvaziado de sentido, podendo ser
esquecido em poucos minutos, dias, semanas. Estes demonstram que a Matemática não
precisa ter sentido dentro de um contexto, mas que ela significa a capacidade de dividir
elementos de forma igualmente justa entre as parcelas. Algo semelhante ao mito da referência,
defendido por Dowling (1998, apud MOREIRA, 2010), no qual há um cenário matemático
elaborado apenas para exercitar o pensamento matemático. Nesses casos, os números e
problemas sugeridos acabam não tendo real utilidade para os alunos, pois sua finalidade
encerra-se na construção de cálculos que indiquem a resposta final correta. E, esses cálculos
são, geralmente, os algoritmos escritos.
Os algoritmos ocupam uma grande importância na matemática escolar. D’Ambrosio
(1986) refere-se ao indivíduo “numericamente analfabeto” como aquele que perdeu as
competências matemáticas nos primeiros anos de escolarização e manteve-se “degradado,
reprimido e esquecido, enquanto o que se aprendeu não foi assimilado ou por causa de uma
aprendizagem bloqueada ou por causa da evasão antecipada, ou mesmo por fracasso [...]”
(D’AMBROSIO, 1986, p.58). O ensino de matemática vem criando dificuldades e
promovendo indivíduos que, analfabetos numericamente, não conseguem estabelecer relações
entre os conteúdos estudados e as demandas de suas vidas, talvez até mesmo porque elas não
existam, em função da escola estar tão distante das suas realidades.
Figura 2 - Exemplo de exercícios matemáticos: algoritmo da multiplicação
Fonte: documento disponibilizado pela docente Clarice.
Nesses exercícios propostos evidencia-se o valor que se confere não só às nomeações
que formam as “continhas”, mas também se preocupa que as crianças façam e refaçam
inúmeras vezes, até compreenderem como funciona esse cálculo que, na verdade, não
representa um modo único de pensar matemática. Como já exposto, os cálculos não fazem
sentindo ao serem oferecidos aos alunos dessa forma como estão estruturados. A matemática
da vida não é composta por números isolados, as situações não são tão simples como a escola
propõe. Um recorte da fala da professora Maria demonstra o quanto o conhecimento escolar
perde a oportunidade de aprimorar outros potenciais por estar muito focado num ensino
tradicional.
Na matemática, alguma coisa ele consegue... a divisão está passando em
branco na vida dele. De vez em quando ele tem um raciocínio ótimo. De vez
em quando eu tenho que elogiar. Nesse jogo aqui dos copos...Ele teve uma
sacada que assim... eu super elogiei... para todo mundo ver assim, bem alto.
Por exemplo assim, ganharam 26 balas, 3 copos e tinham que dividir e ver
quantas balas usaram e quantas balas sobraram. [...] Aí o Eric olhou assim e
disse: “Nós tínhamos 30 balas, se sobrou 3, nós usamos 27. Sabe? Ele fez
um cálculo de subtração sem eu não dizer e ninguém da mesa se deu conta
de fazer...
Com todas essas análises e problematizações sobre o ensino de algoritmos, buscamos
propor uma forma mais crítica para se olhar a Educação Matemática das escolas. Não temos
como objetivo criticar integralmente o uso dessa ferramenta que pode facilitar raciocínios
matemáticos e estruturá-los. No entanto, podemos pensar se essa forma de ensino vale para
todas as realidades de vida dos indivíduos e se insistir numa listagem de conteúdos que
priorize esses conhecimentos não acaba por excluir outras formas de pensar e fazer
matemática, assim como o menino Eric fez.
Assim, pode-se afirmar que mesmo destacando a importância de se contemplar
no currículo (de Matemática) os saberes do cotidiano dos alunos, as práticas das docentes
entrevistadas apoiam-se em alguns princípios da filosofia platônica, na qual a Matemática era
concebida como uma verdade independente de qualquer verificação empírica e os objetos
matemáticos serviriam de modelo ao mundo. Essa discussão é realizada por Quartieri (2016)
quando destaca que para o platonismo, o verdadeiro conhecimento está na ideia, que é a
essência das coisas e dos conceitos. Decorre dessas reflexões que, na época de Platão, “a
Matemática era considerada um elemento fundamental para todos, sendo concebida como um
conhecimento importante não pelo valor prático, mas pela sua capacidade de acessar o
potencial do ser humano” (IBIDEM, p.245).
Considerações finais
A pesquisa apresentada nesse trabalho teve como objetivo analisar os significados
atribuídos por professoras que atuam nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental à matemática
que praticam. As primeiras reflexões são referentes à forma como a escola valoriza os
conteúdos e os torna o centro das práticas docentes. Foram muitos os momentos em que, pelas
narrativas das professoras, podemos perceber o papel protagonista que a listagem de
conteúdos ocupa nos planejamentos e nas práticas docentes.
As orientações propostas pela Etnomatemática ajudam-nos a construir um olhar mais
atento ao currículo e à forma como ele acaba valorizando pouco os saberes dos alunos. A
matemática escolar encerra-se em práticas muito focadas no ensino dos algoritmos sem que os
indivíduos compreendam o significado das contas de divisão, por exemplo. As experiências
de vida desses alunos, muitas vezes, permitem que eles tenham o contato com os
conhecimentos matemáticos antes mesmo do ensino escolar. De acordo com algumas falas
docentes já destacadas, a escola não insere tais saberes no currículo escolar, a fim de trazer
sentido àquilo que é ensinado, a partir das situações vividas nos contextos de vida.
Com esta pesquisa propomos uma discussão sobre como os problemas e as operações
matemáticas são construídas e pensadas para que os alunos aprendam um modo específico de
fazer matemática. Acreditamos que não há sentindo propor resoluções de problemas e contas,
nos quais os elementos que os constroem são fictícios, desconhecidos, não utilizados no
cotidiano dos indivíduos. Além disso, podemos pensar sobre os efeitos que práticas docentes
e atividades como as descritas neste trabalho podem gerar aos alunos. Quando os mesmos não
conseguem ver sentido naquilo que a escola ensina é porque existe uma diferença entre os
conhecimentos valorizados e privilegiados pela instituição e os saberes valorizados e vividos
pelos sujeitos. Essa questão pode ajudar a tencionar o argumento que, proposto por uma das
docentes, coloca a Matemática como a dificuldade da vida escolar dos alunos. Mesmo esses
indivíduos lidando com ela no seu cotidiano, eles não percebem que a escola oferece outras
possibilidades de articular os pensamentos que eles já conhecem.
A Matemática escolar vivida na instituição investigada está pouco próxima ao
contexto de vida e aos saberes da comunidade no qual se insere, pois demonstra a dificuldade
que os alunos têm em compreender para qual finalidade os estudos devem ser aprendidos.
Caberia, então, colocar sobre o currículo vivido pela escola, mais uma vez, aquilo que Silva
(2007) define por cultura dominante. O currículo é construído por relações de poder e define,
mais uma vez, qual conhecimento é válido. O saber Matemático presente no currículo
encerra-se na execução de algoritmos, ‘continhas’, e problemas matemáticos distantes das
práticas culturais dos discentes. Dessa forma, a Educação Matemática vivida pela comunidade
escolar pode ser “um instrumento de reforço dos mecanismos de exclusão social”
(D’AMBROSIO, 2010, p. 43).
Referências
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