Ensaio sobre o cisne - baudelaire

Preview:

DESCRIPTION

Ensaio sobre o cisne - baudelaire

Citation preview

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    LETRAS DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERRIA ELITERATURA COMPARADA

    Imagens de exlio e melancolia: Algumas leituras do poema Le Cygne

    Clarissa Xavier Pereira

    So Paulo2015

  • I. Introduo a uma leitura

    O poema Le Cygne, publicado na parte Tableaux Parisiens do livro Fleurs

    du Mal, um dos mais evidentes exemplos quando se pensa na escrita

    fundadoramente moderna de Baudelaire. Pensaremos, no estudo que se segue, o

    poema a partir do seu vis inaugural, considerando os aspectos que marcam a

    obra do autor e a prpria literatura que surge desde ento. Sendo um poema de

    leitura to densa, para contempl-lo nos utilizaremos da crtica feita por grandes

    autores, comentando as relaes e dilogos que se estabelecem sobre eles, e os

    momentos nos quais escolheremos um vis mais amplamente abarcador.

    Talvez o mais recorrente efeito estilstico da obra de Baudelaire seja

    sempre partir do princpio da juno de contrastes, elemento que alguns crticos,

    como Octavio Paz, j estabeleceram como princpio fundamentalmente potico. A

    capacidade de unir termos que funcionam muitas vezes como opostos, gerando

    uma nica imagem profunda que os contempla algo to recriador do mundo

    quanto a prpria poesia na qual o efeito se insere, e em Baudelaire tal princpio

    dita mesmo o ttulo do livro: Flores do mal. Ora, so as flores, tema at clich da

    poesia, que podemos pensar at como os floreios de linguagem, nos oferecem

    algo que tambm algo doentio: so flores reunidas sob o signo do mal. Neste

    buqu doente temos alguns temas recorrentes: queda, morte, tdio, a cidade

    moderna, viagem, fuga, evaso.

    Baudelaire introduz muitas coisas que eram at ento incomuns na

    literatura e a partir dele tornaram-se marcas da modernidade. Ter como tema a

    cidade e o coletivo, falando da condio do sujeito que vive em meio a outros

    uma marca que se observa de imediato. Se consolida com ele a mistura de

    gneros, poema em prosa. E o poeta maldito, que figura da prpria poesia

    baudelairiana, reaparece no mais em primeira pessoa, tratando dos seus

    sentimentos, mas em sua condio de poeta-criador, metaforizado por figuras,

    como no poema L'albatros. O crtico Hugo Friedrich afirma sua posio de que a

    lrica de Baudelaire em si uma construo, no h mais a identificao entre o

    poeta emprico e o eu-emprico. Essa dissociao representada por ele

    atravs do termo despersonalizao da lrica potica (FRIEDRICH, 1978), e pelo

    prprio Baudelaire quando diz lgrimas sim, mas no as que vm do corao.

  • Temos ento uma noo nova de poeta lrico e da experincia que sua lrica

    entrev; um lrico racional, que se refere, no mais a amada, mas a

    Andrmaca por exemplo, traando relaes de manejo literrio em vez das

    narrativas de suas prprias aventuras. Pensemos que a prpria ideia da emoo

    lrica num contexto urbano provoca renovao no estilo, o encontro do objeto

    cidade enquanto matria potica funda uma base importante da literatura

    moderna.

    comum ao longo do livro a poesia de interpelao, que se dirige a

    algum, como o teatro com seus interlocutores. O poema O Cisne se dirige

    diretamente a Andrmaca: Andromaque, je pense vous!, diz ele, o que muito

    importante se pensarmos nesse efeito de interlocuo como uma chave de leitura

    que aponta na verdade para outro texto. Em Baudelaire a interlocuo e a

    intertextualidade caminham juntas, fazendo com que referir-se a algum no

    poema tome consigo a condio de reverberar outro texto. No caso de

    Andrmaca a referncia , na verdade, uma tripla referncia: a Homero, a Racine

    e a Virglio. Ainda sobre as relaes intertextuais n'O cisne, podemos pensar a

    referncia literatura clssica unida ao registro elevado, da tragdia, que

    dialogam diretamente com o tema da memria: uma memria individual, do

    sujeito que caminha pelas ruas e reflete sobre a prpria experincia, e uma

    memria que em muitos momentos a crtica chamar de coletiva, mas aqui a

    pensaremos diante do termo memria da literatura, que aquela que se constri

    pela intertextualidade, e cujos ganchos mnemnicos puxam a experincia de

    sujeitos oriundos da leitura. A memria nesse poema sobretudo frtil, como

    quando diz Ce Simos menteur qui par vos plers grandit/A fecond soudain ma

    mmoire fertile, o rio que perpassa Andrmaca atravessa a memria do flneur

    parisiense no sculo XIX: tudo recordado, revivido, recriado, a memria

    substancialmente criadora.

    O flneur citado outro personagem muito comum ao longo das Flores do

    mal, o artista que vaga pelo mundo, bomio, e que na literatura baudelairiana

    aparece como aquele que registra frames da vida na cidade enquanto faz seus

    passeios a esmo, colhendo matria para sua criao, e recolhe a experincia do

    mundo fazendo-a recombinar-se, ressoando sua percepo atravs da juno de

    elementos colhidos que ele promove em seu recorte moldural, com isso forma os

  • quadros parisienses.

    A ideia de lugar ideal expressa ao longo do livro de diversas formas, ele

    o locus amoenus, como no poema Convite viagem, ou as vezes

    simplesmente o local da ausncia, o local destrudo e substitudo por algo que

    intensifica o fato irrefrevel daquele lugar que se mostra para o poeta caminhante

    ser o no-lugar. Em Le Cygne o poeta pensa em Andrmaca e num cisne que

    foge da gaiola, ambos personagens capturados e levados para um no-lugar no

    qual sua existncia desconexa e, consequentemente, ridcula.

    Nos Quadros Parisienses h a valorizao do artifcio, daquilo que

    construdo em relao ao que natural: valorizado o universo da mulher assim

    como a prpria mulher; o autor faz o elogio da maquiagem como se o construto

    do universo feminino em seu artifcio de enfeites, roupas e maquiagem,

    representasse a mulher tanto quanto ela prpria. O efeito expresso de que

    aquilo que faz parte da cultura e do construto assimila a prpria natureza, como

    se a metonimizasse. A oposio entre natural e artificial um tema do romantismo

    que Baudelaire retoma em alguns momentos numa chave em que valoriza o

    natural, e em outras o recusa. Em Correspondncia encontramos a exaltao da

    natureza, oposto do que ocorre no Elogio da maquiagem. Diz ele que o poeta

    o tradutor da linguagem da natureza, e em outros momentos, encontramos a

    completa recusa do natural. possvel ver o elogio do artifcio relacionado ao

    prprio trabalho do poeta, que cria imagens e narrativas a partir da fico ou do

    rearranjo daquilo que colhe no mundo; a poesia, nesta perspectiva, um paraso

    artificial, criadora e recriadora de mundos.

    A partir de ento observamos que a recolha da cidade enquanto material

    da lrica funda o carter sbito da experincia, o choque do que a experincia

    fugaz e transitria como no poema A uma passante, a passante a que o eu

    lrico se dirige o encanta, mas no fim h a conscincia de que ele nunca tornar a

    v-la , a experincia da lrica moderna de Baudelaire da ordem da apario, do

    lampejo, e cabe ao poeta, no momento da recolha, transform-la em sua sntese

    perene. A cidade mostrada em Le Cygne , talvez, o mais importante cenrio do

    ambiente moderno que ressoa na poesia de Baudelaire, nele encontramos uma

    srie de oposies entre as quais o sujeito est suspenso: a transformao veloz

    do ambiente urbano, em relao memria infinita do que j se foi, do que

  • decorre o lugar, de onde o sujeito advm e o lugar no qual ele est colocado o

    sujeito capturado, no pelo espao, como Andrmaca e o cisne, mas pelo

    prprio tempo que o trai e gera no lugar onde ele se ps esttico a transformao.

    A ideia de transformao recorrentemente a prpria ideia de beleza em

    Baudelaire, sendo a cidade transformada e sua experincia eletrizante aquilo que

    ao mesmo tempo rapta e encanta.

    Opondo-se ao eltrico, observamos que o recolhimento no quarto tem sua

    importncia tal qual a observao da cidade durante o momento das caminhadas

    do flneur. No poema Le Cygne tudo memria, e a memria vem no

    recolhimento no quarto, do momento de criao introspectiva, fazendo com que

    as coisas vistas ressuscitem. Passado o furor eletrizante da cidade, h no

    recolhimento o papel de dar uma forma ao que passou, to presente na arte

    mnemnica extremamente conjurada pela literatura clssica vem da memria

    recolhida a reconstituio da cidade que o quarto transforma em sntese, nesse

    momento se instaura a possibilidade de captar o eterno no transitrio.

    II. O contexto sociopoltica de Dolf Oehler alinhado a uma sntese Benjaminiana

    Walter Benjamin, em seu ensaio intitulado Sobre alguns temas em

    Baudelaire fala sobre a dificuldade do poeta lrico na modernidade, sendo este

    algum que possui conscincia da prpria poesia enquanto moderna, dissidente

    temporal do mundo em que habita. O poeta lrico moderno vive a era industrial

    das transformaes frequentes, v o seu espao constantemente alterado, tal

    qual a surpresa melanclica do eu lrico de Le Cigne quando percebe que as

    obras de reconstruo das ruas por onde passa j no o abarcam: o colocam

    numa condio de exilado. Para pensar na experincia da cidade industrializada

    sendo matria da lrica moderna, Benjamin recorre filosofia de Bergson, que

    descreve uma relao de experincia e memria do espao urbano a partir da

    qual se pode refletir o processo de criao potica do lrico moderno francs.

    a experincia inspita ofuscante da poca da industrializao

    em grande escala. Os olhos que se fecham diante desta experincia

    confrontam outra de natureza complementar na forma por assim

  • dizer de sua reproduo espontnea. A filosofia de Bergson uma

    tentativa de detalhar e fixar esta imagem reproduzida, Ela oferece

    assim indiretamente uma pista sobre a experincia que se apresenta

    aos olhos de Baudelaire, sem distores, na figura de seu leitor.

    (Benjamin, 1994)

    O tratamento das questes vistas e pensadas ao longo dos poemas

    relacionado obra Em busca do tempo perdido, por sua questo com memria

    Proust elabora a memria da conjuno entre recordaes individuais e coletivas,

    levando a esse mbito a rememorao enquanto fator construtivo da nossa

    memria, formado pelo que recordamos de maneira voluntria e involuntria, e

    pelo que a ns rememorado a partir do contato com as outras facetas de uma

    mesma memria expostas pelas pessoas que tambm a viveram. Ora, a

    concepo de memria construda pelo coletivo surge na obra de Baudelaire com

    intensidade, justamente por ser o eu lrico um ser sempre angustiado e atento ao

    que por ele permeado na cidade populosa. Para Benjamin, necessrio

    considerarmos o tema da sociedade vivente nas descries de cidade moderna

    que lemos nos poemas. Ao pensar Le Cygne sob esse signo podemos nos dar

    conta que h uma construo oriunda do coletivo at literalmente no poema

    posto que a melancolia do ser passante surge a partir da viso do Louvre,

    construo contempornea ao autor, que se coloca sobre outras construes

    histricas. No ensaio Um socialista hermtico, Dolf Oehler se detm sobre esse

    tema. a viso do complexo do Louvre que dispara a primeira associao

    e destampa a fonte das memrias no difcil pensar aqui no

    modo de funcionamento da mmoire invontaire de Proust ; a

    rememorao imperiosa, falsa e forada da glria napolenica

    desperta a rememorao autntica. Essa relao dialtica entre

    opresso e liberdade, afirmada desde a primeira estrofe, constitui o

    cerne de O cisne (Oehler, 2004)

    A temtica daquele que, segundo Baudelaire numa dedicatria, nas

    cidades gigantescas, est afeito a tramas de suas inmeras relaes

    entrecortates para Benjamin informa que a relao do poeta com as massas

  • urbanas no est relacionada com nenhuma classe social ou grupo especfico. O

    que comove sua condio de flneur diante da multido amorfa de passantes

    (Benjamin, 1994). Decerto tema comum em diversos poemas d'As Flores do Mal

    e tambm dos seus Poemas em Prosa,o coletivo de sujeitos que formam o

    construto e reconstruto dirio da grande cidade. Para Benjamin o coletivo e a

    cidade so elementos, no s recorrentes, como indissociveis na literatura de

    Baudelaire, de modo que os Quadros Parisienses so invariavelmente quadros

    sobre a superpopulao e o sujeito que vive por ela perpassado em seu cotidiano.

    Oehler, no entanto, considera que h no cisne a questo das especficas

    classes sociais, cuja luta de classes e o tema da revoluo francesa podem no

    funcionar como os poemas dos tempos hericos da luta de classes, mas

    funcionam como perfrase do absurdo inescapvel daquele herosmo.

    III. A arquitetura potica de Calasso

    Roberto Calasso analisa a poesia de Baudelaire a partir da criao da

    cidade sobre a qual ela trata, para o crtico h na poesia de Baudelaire,

    fundamentalmente, a construo de uma cidade e de uma sociedade baseada

    num catico ordenamento ornamentado.

    Para Racine, a humanidade devia ser observada no interior da corte

    de Versalhes, porque aquele lugar, justamente por seu artificialismo

    (que era o todas as molduras), exaltava a evidncia das paixes,

    submetidas a uma portentosa lente de aumento. Baudelaire viveu em

    Paris como um corteso prisioneiro de Versalhes (Calasso, 2012)

    Ora, a artificialidade , de fato, trabalhada por Baudelaire em diversos

    momentos dos Quadros Parisienses, o artifcio oriundo da criao, de modo que

    o construto da cidade artificial, da cidade moderna que claramente cultura em

    oposio a natureza, tambm o que o crtico chama de terreno preparado e

    macerado, que a prpria poesia de Baudelaire. Calasso diz que a Paris de

    Baudelaire o caos dentro de uma moldura, sendo aquilo que a contm o recorte

    da memria, posto que a funo da moldura nos aproxima do momento

    introspectivo de construo potica, no qual a cidade eltrica recebida de dentro

  • do quarto, pelas memrias colhidas, e o que dela se apreende nesse momento

    atravs da janela (outra moldura, outro recorte do caos).

    IV. O espelho da memria literria de Jean Starobinski e Victor Brombert

    Victor Brombert diz que a chave do poema est em entender o primeiro

    verso, no qual o eu lrico se refere Andrmaca, personagem da mitologia grega.

    No poema Andrmaca instaurada numa segunda pessoa, com a qual o poeta

    dialoga sobre Paris. Segundo o crtico, a relao que podemos contemplar entre o

    poema de Baudelaire e a epopeia de Virglio , sobretudo, em seu carter

    temporal. Em seu ensaio 'Le Cygne': The Artifact of Memory ele cria uma noo

    temporal do poema, analisando a maneira como os verbos que invocam o

    presente pressupem outros do passado, de forma que, em vez de deix-los para

    trs enquanto experincia, os envolve numa justaposio. Como se no poema

    que Brombert diz possuir o tempo como processo central, os tempos verbais se

    contradissessem a ao de pensar e a de ter estado caminhando no so

    sequenciais, so simultneas. O paradigma temporal prescrito no poema compe,

    no s a histria vivida pelo eu lrico, como tambm a relao traada por ele pela

    histria da literatura.

    Yet even in Virgil's epic, the episodes in the past; it is relived through a

    narration, as a return to a former time, a 'flashback'. () Through its

    rhetorical and thematic structure, 'Le Cygne' is both a poem of time

    gone by and simultaneity, the assulion to the founding of Rome (the

    new Troy), integrated into the order of History, proposes a reassuring

    continuity. (Brombert, 1998)

    Jean Starobinski, em seu livro A melancolia diante do espelho rene trs

    ensaios acerca da obra de Baudelaire, analisada sob o signo da melancolia. O

    crtico faz uma analogia entre o ritmo constante do alto e baixo na obra do poeta e

    a figura do melanclico, sendo este aquele que pode-se elevar aos mais altos

    pensamentos e ainda assim ser, no mesmo movimento, corrompido pela bile

    negra (representao do mundo clssico sobre a melancolia). Ora, a partir de tal

    leitura podemos encontrar nas Flores do Mal certamente tal poeta que das ruas

  • e do quarto, que escava o cu. No entanto, para Starobinski o que se retm da

    figura melanclica no a imagem do eu lrico, que fala sobre si, mas o objeto

    contemplado, o ser imaginado ou rememorado, frase que certamente

    vislumbramos no poema Le Cygne, no qual a melancolia se perfaz atravs de

    duas principais figuras, lanadas uma sobre a luz da outra: Andrmaca, que

    advm da memria literria, e o prprio cisne que d ttulo ao poema, visto na

    cidade.

    A anlise de Starobinski parte da formao dos quadros (tableaux) de

    Baudelaire a partir do que o crtico chama de elementos antigos, que beiram o

    lugar-comum; ora, so esses topoi que reconstituem as relaes de memria e

    histria alegorizadas ao longo do poema a recriao parte do elemento imitado

    (mimesis) para aquilo que inaugural, e que se coloca de tal modo diante da

    tradio. Andrmaca a personagem que alegoriza a reminiscncia, o

    pensamento que a ela se dirige e que a todo momento se reinstaura no poema,

    insistindo na atitude reflexiva; conjurar Andrmaca na figura da mulher, rainha e

    escrava, capturada e exilada para uma nova terra que simula a sua de origem

    uma atitude muito prxima da que o eu lrico do poema tem ao ser,

    simultaneamente, exilado do seu passado e vivente no mesmo local cada um a

    seu modo, e ambos se cruzam em seu movimento oposto. So personagens que

    vivem uma iluso de local familiar, cujo parecer aquele que seria seu habitat serve

    apenas para intensificar a irrevogvel conscincia de no o ser. Diz o crtico que

    'Le Cygne', como se sabe, o poema do exlio e dos exilados, no entanto uma

    condio que ele atribui diretamente modernidade, por ser o exlio do construto,

    o exlio do tempo que atravessa o sujeito capturado e o perpassa de

    irreconhecimento frente ao 'reconstruto', fruto da coletividade j investigada por

    Oehler e Benjamin. Ora, o sujeito moderno reconhece-se irreconhecvel em seu

    locus quando o investiga em seus passeios, de onde o artista retira os quadros

    de suas fotografias mnemnicas, e de onde se exibem seus espaos

    descontinuados, e seu tempo que no parece mais diz-lo respeito.

    O lugar, o instante presente suscitam bruscamente uma

    superposio de lugares e momentos anteriores, todo um pretrito

    marcado pela destruio, o luto, a perda: esse espao anterior s

  • encontra apoio e corrobora na memria do poeta. Dele procede a

    cadeia de analogias que vincula as figuras: estas so 'chers

    souvenirs que o habitam para sempre' (Starobinski, 2012)

    Poderamos pensar, a partir da chave aberta pelo crtico, que a memria do

    sujeito moderno construda a partir do que no se encontra mais, a perda

    evidencia que o que no se tem j houve, e que tal ausncia compor o flneur

    em seus demais encadeamentos de 'souvenirs', ditar o ordenamento que ele

    dar aos seus indissociveis passeios e, desse modo, a sua prpria construo

    da memria.

    V. Composies da crtica literria

    Starobinski percorre o poema de Baudelaire com uma pertinncia singular

    diante dos outros crticos, posto que pensa o poema em seu ponto de simetria, o

    v diante do espelho no qual as referncias passam a refletir as obras que

    ancoram. A diviso formal disposta pelo autor evidencia os efeitos de alto e baixo,

    e em seus temas percebemos a concepo de histria traada, um construto

    que reflete a prpria construo potica assimilada pela metalinguagem que a sua

    meno instaura. Ora, o poeta aquele que constri os quadros parisienses

    dispondo-os diante de sua perspectiva. A construo e reconstruo costura

    muitos pontos importantes para o poema, posto que, numa anlise mais literal, a

    cidade em si contempornea de Baudelaire passava por infindveis destruies

    para a reconstruo, algo sobre o que trata Calasso. Uma possvel causa do

    spleen do ser passeante que frui a cidade sua a mudana e a corrente

    experincia de falta, na qual o movimento de queda dos monumentos e sua

    antagnica reverticalizao so simultneos ocorrem num ritmo quase

    paralelo, no qual um movimento conjura o outro invariavelmente. O ser exilado e

    melaclico teria seu spleen e seu ideal mais uma vez unidos, pois aqui tambm

    os movimentos de queda e ascenso so auto-referentes.

    Ainda sobre a relao entre a cidade que o poeta v e o que dela nele

    ressoa, tema bastante central de todas as crticas comentadas at aqui, para

    Starobinski h mais uma vez uma juno de opostos, que est marcada pelo uso

  • dos verbos voir e penser - diz ele que ambos constituem um trabalho de

    representao que resultar no pleno desdobramento de um 'quadro parisiense'.

    A intertextualidade em Baudelaire se mostra, sobretudo, na maneira, ao

    estilo Delacroix, de compor um reordenamento a partir da sobreposio de figuras

    e fundos, sendo Paris e o mundo clssico da nova Troia um fundo composto

    sobre o qual se evidenciam as figuras do cisne e de Andrmaca, e sobre os quais

    ressoam alegoricamente o que se v e o que se pensa. A anlise de Starobinski,

    sobretudo, percorre as figuras e fundos utilizados por Baudelaire ao longo do

    poema tendo em vista a forma como essas so perpassadas por lugares-comuns

    (topoi) da arte, e como o sentido construdo e reconstrudo a partir das relaes

    de intertextualidade e referncias, amplamente usadas tanto no contedo, como a

    referncia que captura da personagem da Eneida, quanto nos aspectos formais,

    de empreender a tcnica de composio dos quadros tal qual procede

    Delacroix.

    Talvez a respeito de Dolf Oehler, Starobinski diz que estavam certos os

    que afirmaram que 'Le Cygne' comporta um sentido sociopoltico, mas seria um

    engano reduzi-lo a isso., suponhamos que seria uma referncia para marcar que

    sua anlise se prope a abarcar os elementos de construo do poema, sem que

    se recuse a anlise sociopoltica, porm estabelecendo que esta deva ser

    ampliada.

    Diante de tudo, preciso notar, contudo, que a alegoria, no uso que dela

    faz Baudelaire, manifesta-se de maneira dupla (Starobinski). Ora, como vimos,

    h tanto figuras que remetem a temas, como o cisne fugido da gaiola, e a

    personagem mtica, representando o exlio, quanto temas abstratos (a Douleur e o

    Souvenir) que so dispostos no poema com a primeira letra maiscula, e que se

    transformam em temas passveis de alegorizar as figuras vistas e pensadas e a

    prpria condio do sujeito que por elas permeado. Nesse sentido, o poema

    sobre a falta e a memria dela demonstra seus temas numa tendncia de conjurar

    e evocar, nunca se consumando naquilo que inicia ele no traz de volta o

    perdido, mas sintetiza na construo o que inabalavelmente expe aquilo que

    falta, em sua irrevogvel condio de inapreensvel, em que cada aproximao

    refaz tambm o movimento contrrio, do que se percebe distante, do que se

    pensa e se v ausente.

  • Diz Starobinski que Todos os 'je pense' do poema dirigem-se a seres

    desafortunados eles mesmos pensativos e atormentados pelo infortnio de

    outros seres ou de outros lugares; todo pensamento , portanto, ancorado em

    algum: o eu lrico se reporta Andrmaca, o poema Victor Hugo (escritor

    na poca exilado), o pensamento se move na direo de certos seres, o que

    para ns muito importante, posto que o enunciador do poema no captura as

    figuras e as maneja a seu dispor em outro movimento ele percebe (v) a

    existncia delas no mundo (e na literatura), e o fato de que elas j traam uma

    srie de relaes mnemnicas e histricas. O poeta moderno, construtor de

    quadros, aproxima suas figuras, as redireciona, recria o mundo atravs do

    enquadramento em seu mpeto fotogrfico. Desse modo, as figuras de Baudelaire

    no podem responder a um produto oriundo de uma justaposio elas

    estabelecem relaes que podem construir e reconstruir os temas, num trabalho

    de revitalizao da memria. A falta nunca a uma nica pessoa, uma falta que

    remete a outros. Na lrica moderna de Baudelaire, a ausncia compreendida

    numa perspectiva de construo coletiva.

    VI. Bibliografia

    BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Charles Baudelaire:

    um lrico no auge do capitalismo. So Paulo, Brasiliense, 1994.

    BROMBERT, Victor. Le Cygne: The artifact of Memory. In: The hidden reader

    (Stendhal, Balzac, Hugo, Baudelaire, Flaubert). Cambridge, Havard University

    Press, 1998.

    CALASSO, Roberto. A Folie Baudelaire. So Paulo, Companhia das Letras, 2012.

    FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lrica moderna: da metade do sculo XIX a

    meados do sculo XX. So Paulo, Duas Cidades, 1978.

    OEHLER, Dolf. Um socialista hermtico. In: Terrenos vulcnicos. So Paulo,

    CosacNaify, 2004.

    RAYMOND, Marcel. Introduo. In: De Baudelaire ao surrealismo. So paulo,

    Edusp, 1997.

    STAROBINSKI, Jean. A melancolia diante do espelho. Trs Leituras de

    Baudelaire. So paulo, Editora 34, 2014.