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Evellyn Juliane da Rocha Brandão
AGORA É SUPER DIFERENTE: Prática Exploratória e a coconstrução de
entendimentos sobre a qualidade de vida de uma turma de primeiro ano do Ensino Médio
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Letras/ Estudos da Linguagem.
Orientadora: Profa. Inés Kayon de Miller
Rio de Janeiro Setembro de 2016
Evellyn Juliane da Rocha Brandão
AGORA É SUPER DIFERENTE: Prática Exploratória e a coconstrução de
entendimentos sobre a qualidade de vida de uma turma de primeiro ano do Ensino Médio
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
Profa. Inés Kayon de Miller Orientador
Departamento de Letras – PUC-Rio
Profa. Adriana Nogueira Accioly Nóbrega Departamento de Letras – PUC-Rio
Profa. Isabel Cristina Rangel Moraes Bezerra UERJ
Profa. Monah Winograd Coordenadora Setorial do Centro de Teologia
e Ciências Humanas – PUC-Rio
Rio de Janeiro, 29 de setembro de 2016.
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem autorização da universidade, da autora
e do orientador.
Evellyn Juliane da Rocha Brandão
Graduou-se em Letras (Português – Inglês) na Universidade do
Estado do Rio de Janeiro – Faculdade de Formação de
Professores, em 2012. Foi bolsista de Iniciação Científica CNPq
por dois anos durante a graduação. Cursou Pós Graduação Lato
Sensu em Educação Básica – Ensino de Língua Inglesa na
Faculdade de Formação de Professores da UERJ. Atua como
professora de Língua Inglesa na rede estadual de ensino. Sua
área de interesse compreende as pesquisas em Linguística
Aplicada, sobretudo, pesquisas em Prática Exploratória voltadas
para entender a vida na escola.
Ficha Catalográfica
CDD: 400
Brandão, Evellyn Juliane da Rocha Agora é super diferente: prática exploratória e a
coconstrução de entendimentos sobre a qualidade de vida de uma turma de primeiro ano do ensino médio/Evellyn Juliane da Rocha Brandão; orientadora: Inés Kayon de Miller. – 2016.
146 f.: il. color. ; 30 cm Dissertação (mestrado)–Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro, Departamento de Letras, 2016. Inclui bibliografia 1. Letras – Teses. 2.Prática exploratória. 3. Qualidade de
vida. 4. Estigma. 5. Reflexão. 6. Entendimentos. I. Miller, Inés Kayon de. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Letras. III. Título.
Para a minha família, em
especial, para a minha tia
Patrícia Brandão, por todo o
apoio e incentivo.
Aos alunos das turmas
1005/2014 e 1001/2015 pelo
aprendizado e parceria.
Agradecimentos A Deus, por todos os caminhos e oportunidades que me fizeram chegar com força
edeterminação ao final de mais uma etapa.
Aos meus pais que, ao longo da minha caminhada acadêmica, perceberam o
quanto eu gostava do que fazia, o quão importante era pesquisar, passar por cada
obstáculo e até por algumas noites sem dormir. Agradeço a eles pela compreensão
e confiança.
À minha família, pelo apoio e incentivo e, especialmente, à minha tia Patrícia
Brandão, por não ter medido esforços para me deixar de herança bem tão
precioso: o estudo.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), e à
PUC-Rio, pelos auxílios concedidos, sem os quais este trabalho não poderia ter
sido realizado.
À minha orientadora, Prof. Dra. Inés Kayon de Miller, pelo exemplo, pela
sabedoria e conhecimento admiráveis; pelo incentivo, confiança e carinho; pelos
momentos de desenvolvimento mútuo e coconstrução de entendimentos.
Aos professores do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem da
PUC-Rio, em especial à Adriana Nóbrega, por não ter me deixado desistir e por
ter aceitado fazer parte da banca examinadora deste trabalho. Agradeço à Profa.
Liliana Bastos pelo incentivo constante.
A todos os funcionários do Departamento de Letras da PUC-Rio, em especial, à
Chiquinha, por toda a ajuda recebida.
À Prof. Isabel Cristina Rangel Moraes Bezerra, por ter me apresentado a Prática
Exploratória ainda na graduação e por ter me feito apaixonar por suas questões e,
dado oportunidade com toda a generosidade do mundo para que eu pudesse
descobrir as minhas. Pelo exemplo, inspiração e amor. Hoje, sua filha acadêmica
agradece por toda a ajuda ao longo dessa jornada e por ter a honra de ter este
trabalho lido e avaliado por você.
Aos meus amigos e colegas de profissão, pelos momentos de crescimento e até
mesmo de embate; pelos momentos de luta e alegria. Em especial, ao Edgard, à
Gabriella, Jardel, Felipe, Laís e Natália; e aos colegas de mestrado Alexandre e
Wilson.
Ao meu amigo-irmão Diego Fernandes, por todos os conselhos, puxões de orelha
e ombro amigo. Agradeço por toda a humildade e carinho.
Ao Douglas Araujo, por ser meu “amor-amigo”, pelo cuidado, paciência, carinho,
apoio e amor.
Aos meus companheiros do NEPPE – FFP, minha escola para a vida, em especial
às professoras Isabel e Renata pela troca de experiências e até pelas reuniões
“chororô” e aos demais praticantes exploratórios que contribuíram para a
realização deste trabalho.
Aos alunos e à direção do Colégio Arte de ser Feliz1 que possibilitaram a
realização deste trabalho. Obrigada pela parceria, confiança e oportunidades de
aprendizagem.
1 Nome fictício escolhido por mim para me referir à escola em que esse trabalho foi realizado.
Resumo
Brandão, Evellyn Juliane da Rocha; Miller, Inés Kayon de (Orientadora).
Agora é super diferente: Prática Exploratória e a coconstrução de
entendimentos sobre a qualidade de vida de uma turma de primeiro
ano do Ensino Médio. Rio de Janeiro, 2016. 146p. Dissertação de
Mestrado – Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro.
Neste trabalho busco refletir e gerar entendimentos sobre a qualidade de
vida de uma turma de primeiro ano do Ensino Médio de uma escola pública do
estado do Rio de Janeiro. Assim, investigo como re(construímos) nossas
identidades em interação, além de como (des)construímos estigmas e afetos em
interação face a face. Para tanto, utilizarei o referencial teórico-metodológico da
Análise da Conversa Etnometodológica (Sacks, Schegloff e Jefferson, 1974;
Goodwin e Heritage, 1990; Garcez, 2012) e dos Estudos de Narrativas (Bastos,
2005), aliados à Teoria da Avaliatividade (Martin; White, 2005) assim como os
estudos sobre Estigma de Goffman (1978) e Biar (2012) para refletir sobre o
estigma (des)construído em interações sobre o que vivemos na escola.
Fundamentada nos pressupostos da pesquisa qualitativa, dentro da perspectiva
ético-metodológica da Prática Exploratória, sobretudo a partir do conceito de
pesquisa do praticante [practitioner research] (Allwright & Hanks 2009),
apresento a análise de excertos de conversas exploratórias (Nunes &Moraes
Bezerra, 2013) e de APPES - Atividades Pedagógicas com Potencial Exploratório
geradas em contexto escolar entre meus alunos e eu. Desta forma, por entender o
processo de formação de professores como permanente (Miller & Moraes Bezerra,
2004) e considerar a Prática Exploratória (Miller, 2011) como arcabouço teórico-
metodológico que orienta meu olhar à minha prática pedagógica e de pesquisa,
entendo que essa oportunidade de aprendizagem (Allwright, 2005) me auxilia
tanto a construir entendimentos sobre a qualidade de vida da turma investigada e
sobre as identidades que emergem nos discursos dos alunos, quanto sobre a minha
formação continuada e sobre o meu processo de construção identitária
profissional.
Palavras-chave Prática Exploratória; Qualidade de Vida;Estigma; Reflexão;
Entendimentos
Abstract
Brandão, Evellyn Juliane da Rocha; Miller, Inés Kayon de (Advisor). Now
it's super different: Exploratory Practice and the co-construction of
understandings about the quality of life of a first year class in High
School. Rio de Janeiro, 2016. 146p. Masters Dissertation – Departamento
de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
In this dissertation I seek to think and engender understandings about the
quality of life of a first year High School class in a public school in the state of
Rio de Janeiro. Thus, I investigate how we (re)construct our identities in
interaction through discourse, as well as how we (de)construct stigma in face-to-
face interaction. To do so, I will use constructs from the Ethnomethodological
Conversation Analysis perspective (Sacks, Schegloff and Jefferson, 1974;
Goodwin e Heritage, 1990; Garcez, 2012), Narrative studies (Labov, 1972;
Bastos, 2005; Linde, 1993;1997) with the pressupositions of the Appraisal Theory
(Matin; White, 2005) and from studies about Stigma (Goffman, 1988; Biar,
2012). Based on the presuppositions of qualitative research, within the ethical and
methodological perspective of Exploratory Practice, mainly starting from the
concept of practitioner research (Allwright & Hanks, 2009), I present the analysis
of excerpts from exploratory conversations (Nunes & Moraes Bezerra, 2013) and
PEPAs- potentially exploitable pedagogical activities created in the school
context between my students and I. This way, comprehending the teachers'
professional development process as permanent (Miller and Moraes Bezerra,
2004) and considering Exploratory Practice (Miller, 2011) as the theoretical and
methodological basis which guides the view of my teaching and research practice,
I assume that this learning opportunity (Allwright, 2005) helps not only to
construct understandings about the quality of life in the investigated class and the
identities which emerge from the students' discourse, but, mainly, about my
continuing professional development and the construction process of my
professional identity.
Keywords
Exploratory Practice; Quality of life; Stigma; Reflection; Understandings
Sumário
1. Introdução 15
1.1. Da minha Janela: a Prática Exploratória e a minha trajetória
profissional
15
1.2. No canal oscilava um barco: sou ou não sou uma professora
exploratória?
20
2. Arcabouço teórico 25
2.1. A Linguística Aplicada 25
2.1.2. Linguística Aplicada e a pesquisa em sala de aula: o que a
Prática Exploratória tem a ver com isso?
2.1.3. Sobre professores e aprendizes: a Prática Exploratória e sua
proposta reflexiva
27
29
2.2. A vida em sala de aula 32
2.2.1. A sala de aula como uma comunidade de prática 34
2.2.2. A importância do afeto 37
2.3. Estigma
2.3.1. Processo de elaboração de faces
39
44
2.4. Sala de aula e interação 46
2.4.1. A Análise da Conversa Etnometodológica 46
2.4.1.1. A noção de piso conversacional e estrutura de participação 48
2.4.2. Estudos de Narrativa 49
2.4.2.1. A contribuição laboviana
2.4.2.2. A contribuição de Linde
2.4.2.3. Discurso e coconstrução de identidades
2.4.3. A Teoria da Avaliatividade
2.4.3.1 O sistema de atitude e a instanciação de afeto
50
51
52
54
55
3. Metodologia e contexto de pesquisa 58
3.1. A pesquisa do Praticante e a natureza da pesquisa 58
3.1.1. O pesquisador como praticante, agente e Bricoleur 60
3.1.2. O cunho (auto)etnográfico 61
3.2. A cidade feita de giz: o contexto 62
3.2.1. O Programa Autonomia 63
3.2.2. A 1001 e eu 64
3.3. A geração de dados 64
3.4. A transcrição dos dados 65
3.5. Os praticantes
65
4. Explorando o jardim: análise dos dados 68
4.1 A aspersão sobre o jardim: primeiras tentativas 68
4.2. Explorando o jardim: análise dos dados 76
4.2.1 - “a gente tinha que provar pra eles que é diferente” 77
4.2.2. “agora é super diferente” 90
4.2.3. “errar é humano” 107
4.2.4. “mas a gente riu tanto”
113
5. Eis o jasmineiro em flor: a janela abriu ou o olhar mudou? –
considerações finais.
118
5.1. Sobre a análise dos excertos: a (des)construção do self
estigmatizado
119
5.2. Sobre os desafios de ser uma professora-pesquisadora-
praticante exploratória
124
5.3. Sobre ser aluno e professor na 1001: minhas reflexões
124
6. Referências bibliográficas 127
Anexo I - Termos de autorização da pesquisa
135
Anexo II - Prova de Pedro 137
Anexo III - Excertos 138
Lista de figuras Figura 1 - A sala de aula como uma comunidade de prática 35
Figura 2 - Exemplo de Puzzles que retratam o aspecto físico da
escola
71
Figura 3 - Exemplo de Puzzles que retratam tanto questões sobre o
que se vive em sala de aula, quanto em outros momentos na
escola.
72
Figura 4 - Exemplo de Puzzles que retratam busca por
entendimentos sobre a função da escola e ressaltam o papel dos
alunos no processo de ensino-aprendizagem e as relações
interpessoais na escola
72
Figura 5 - Puzzles de Pedro 74
Figura 6 - Definição de estereótipo 77
Figura 7 - Atividade proposta pelo livro didático após a apresentação
do termo estereótipo
78
Figura 8 - APPE: teachers can X teachers can’t, students can X
students can’t
108
Figura 9 - Sobre trabalho de face e as interações em sala de aula 123
Figura 10 - Reunião Halloween – retorno dos dados aos praticantes:
alunos da 1001 e eu.
126
Figura 11 - Questão da prova 137
Figura 12 - Resposta de Pedro e Cleber. 137
Lista de quadros Quadro 1 – Instanciação de afeto
Quadro 2 – Os praticantes da pesquisa
56
66
Quadro 3- Sobre ser aluno do PA e sobre o PA 121
Quadro 4 - Sobre ser aluno e professor 122
Convenções de transcrição2
. (ponto final) Entonação descendente
? (ponto de interrogação) Entonação ascendente
, (vírgula) Entonação de continuidade
↑ (seta para cima) Mais agudo
↓ (seta para baixo) Mais grave
palavr- (hífen) Marca de corte abrupto
pala::vra (dois pontos) Prolongamento de som
(maior duração)
palavra (sublinhado) Sílaba ou palavra enfatizada
PALAVRA (maiúscula) Intensidade maior
(“volume”alto)
ºpalavraº (sinais de graus) Intensidade menor
(“volume baixo”)
>palavra< (sinais de maior do que e menor do
que)
Fala acelerada
<palavra> (sinais de menor do que e maior do
que)
Fala desacelerada
hh (série de h’s) Aspiração ou riso
.h (h’s precedidos de ponto) Aspiração audível
= (sinais de igual) Elocuções contíguas, sem
intervalo
[ ] (colchetes) Início e fim de falas
simultâneas/sobrepostas
(2.4) (números entre parênteses) Medida de silêncio (em
segundos e décimos de
segundos)
(.) (ponto entre parênteses) Micropausa de até 2/10 de
segundo
( ) (parênteses vazios) Fala que não pode ser
transcrita
(palavra) (segmento de fala entre parênteses) Transcrição duvidosa
((olha para
baixo))
(parênteses duplos) Comentário do analista,
descrição de atividade não-
vocal
2 Convenções de Transcrição adaptadas de Garcez, Bulla e Lorder, 2014.
A arte de ser feliz
Houve um tempo em que a minha janela se abria para um chalé. Na ponta do chalé brilhava um
grande ovo de louça azul. Nesse ovo costumava pousar um pombo branco. Ora, nos dias límpidos,
quando o céu ficava da mesma cor do ovo de louça, o pombo parecia pousado no ar. Eu era
criança, achava essa ilusão maravilhosa, e sentia-me completamente feliz.
Houve um tempo em que a minha janela dava para um canal. No canal oscilava um barco. Um
barco carregado de flores. Para onde iam aquelas flores? Quem as comprava? Em que jarra, em
que sala, diante de quem brilhariam, na sua breve existência? E que mãos as tinham criado? E
que pessoas iam sorrir de alegria ao recebê-las? Eu não era mais criança, porém minha alma
ficava completamente feliz.
Houve um tempo em que a minha janela se abria para um terreiro, onde uma vasta mangueira
alargava sua copa redonda. À sombra da árvore, numa esteira, passava quase todo o dia sentada
uma mulher, cercada de crianças. E contava história. Eu não a podia ouvir, da altura da janela; e
mesmo que ouvisse, não entenderia, porque isso foi muito longe, num idioma difícil. Mas as
crianças tinham tal expressão no rosto, e às vezes faziam com as mãos arabescos tão
compreensíveis, que eu que não participava do auditório imaginava os assuntos e suas peripécias
e me sentia completamente feliz.
Houve um tempo em que a minha janela se abria para uma cidade que parecida feita de giz. Perto
da janela havia um pequeno jardim quase seco. Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e
o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre homem com um balde e, em
silêncio ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega: era uma
espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o
homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros, e meu coração ficava
completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas.
Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham
os olhos, sonhando com pardais. Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do
ar. Marimbondos: que sempre parecem personagens de Lope da Vega. Às vezes, um avião passa.
Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem
que essas coisas não existem, outras dizem que essas coisas só existem diante das minhas janelas,
e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.
Cecília Meireles
15
1. Introdução
“Tudo na vida tem um porque e cada porque tem um sentido diferente
Às vezes não entendemos certas coisas por quê?
Porque não existe um por que.
Agora vem o meu por que.
Por que não existe um professor dedicado como antigamente?
Por que não se existem alunos como antigamente?
Não entendo mais nada
Por que nós alunos não queremos nada com a hora do Brasil?
Por que não melhoramos em vez de complicar?
Pedro, aluno do primeiro ano do Ensino Médio.
1.1. Da minha Janela: a Prática Exploratória e a minha trajetória profissional
Ser professora era algo que chamava a minha atenção desde a infância.
Sempre que podia escolher sobre o que brincar com meus amigos, certamente, as
brincadeiras que envolviam a escola eram as preferidas.
Com o passar dos anos, a admiração por aqueles que foram os grandes
responsáveis pela minha escolha profissional só aumentava, assim como a minha
paixão por estudar a Língua Inglesa. Por isso, decidi que prestaria vestibular para
a Faculdade de Formação de Professores da UERJ, escolhendo, assim, o curso de
Letras – Português/Inglês. Concomitantemente, trabalhava como monitora de
Inglês no curso de idiomas em que eu estudava. Tão logo fui aprovada no
vestibular, os diretores do curso me convidaram a virar estagiária e, seis meses
depois, instrutora de ensino.
Poucas são as recordações sobre os conteúdos das disciplinas do início da
faculdade, já que, por achar que eu já era professora, cursava as matérias com o
objetivo de cumpri-las para terminar o curso de licenciatura mais rápido. Eis que,
na metade da graduação, cursei a disciplina Fundamentos e Práticas de Ensino de
Língua Inglesa II, lecionada pela professora Isabel Cristina R. Moraes Bezerra.
Membro do grupo de Prática Exploratória do Rio de Janeiro, a professora buscava
integrar a disciplina aos princípios da Prática Exploratória. Ao longo de suas
aulas, meus colegas e eu fomos conhecendo um pouco mais essa nova forma de
pensar e viver a sala de aula.
16
No final daquele semestre, tive a oportunidade de participar do processo
seletivo que buscava um bolsista de iniciação científica para o projeto Formação
Profissional Reflexiva do Professor de Línguas em Serviço e Pré-serviço,
coordenado pela professora Isabel. Após a aprovação, fui bolsista por dois anos
deste projeto e foi a partir dele que pude conhecer e viver, de fato, o que é a
Prática Exploratória.
A Prática Exploratória surgiu a partir da ressignificação do termo inicial
Exploratory Teaching (Ensino Exploratório), utilizado por Allwright (1991) para
denominar a maneira como deveria ser o ensino de línguas estrangeiras.
Ao rever de forma crítica as pesquisas realizadas àquela época em sala de
aula, percebendo que os próprios professores já se questionavam sobre o que
viviam em seus contextos, Allwright salienta que os professores de língua
estrangeira deveriam trabalhar junto aos seus alunos não apenas para o
aprendizado de conteúdos. Mas, sobretudo, para a busca de entendimentos locais
sobre questões que envolvam o processo de ensino-aprendizagem, as relações
interpessoais e sua influência para a qualidade de vida em sala de aula (Moraes
Bezerra, 2012, p.60), ou seja, não dependendo de pesquisadores externos para
elaborar/criar essas questões, já que elas são vividas pelos participantes daquele
contexto, seres humanos com suas histórias, crenças, marcas identitárias e
emoções (Rodrigues, 2014).
Além disso, o autor convida professores e alunos a atrelarem o fazer
pedagógico a essa busca por entendimentos de questões que os aflijam. Desse
modo, ao propor que o trabalho para a investigação de tais questões fosse
realizado de maneira integrada ao ensino, considerando alunos e professores
enquanto agentes não só no processo de ensino, mas também nos processos de
busca por entendimentos, o termo Exploratory Teaching deixou de ser utilizado,
dando origem ao que hoje conhecemos como Exploratory Practice (Prática
Exploratória), como ressalta Miller (2012, p.321):
Foram, precisamente, a integração do fazer investigativo com a prática
pedagógica bem como o reconhecimento das agentividades dos alunos e dos
professores que deram origem ao nome Prática Exploratória (cf. Exploratory
Practice), como ela é conhecida até o presente.
17
Assim, a ideia é que tanto professores quanto alunos sejam vistos como
praticantes (practitioners) e se engajem em atividades pedagógicas cotidianas, ou
seja, aquelas as quais já estão acostumados a realizar em sala de aula a fim de
buscar entendimentos para suas questões instigantes (puzzles), que segundo Ewald
(2015, p 50-51) são:
[...] perguntas instigantes, normalmente iniciadas com “por que”. Os puzzles
podem partir de qualquer praticante envolvido, pois, como nessa modalidade
todos os participantes são agentes e responsáveis pelo processo reflexivo, os
questionamentos não partem necessariamente dos praticantes que têm posição
“superior”, como o professor na sala de aula e o formador ou consultor em outros
contextos.
Tais atividades, denominadas atividades pedagógicas ou profissionais
com potencial exploratório - APPEs (Miller et al., 2008; Allwright e Hanks,
2009), podem ser planejadas com este objetivo ou, simplesmente, adaptadas ou
“levemente adaptadas”, nas palavras de Ewald (2015, p.7). Contudo, devem
proporcionar o envolvimento de todos no processo de ação para entender (action
for understanding) os puzzles dos praticantes, pois eles estão imbricados à nossa
vida pessoal e profissional (Rodrigues, 2014).
Em suma, diferentemente da “pesquisa parasítica” (parasitic research)
(Miller, 2012), em que os dados são apenas coletados e os participantes não se
envolvem participando ativamente da mesma, a Prática Exploratória tem como
foco a “ação para o entendimento” integrada ao próprio trabalho de pesquisa e
ensino, tendo como elemento inovador, a agência dos praticantes. Assim, as
decisões acerca do planejamento e dos passos a serem dados durante o processo
de investigação não seguem apenas a agenda do pesquisador, isto é, são
compartilhadas e decididas com todos os praticantes envolvidos no processo de
busca por entendimentos.
Dessa forma, pesquisas que envolvem estudos em Prática Exploratória têm
ganhado cada vez mais espaço no meio acadêmico (Miller, 2012), já que
possibilitam um trabalho inclusivo-investigativo que prioriza a “ação para
entender” os puzzles dos praticantes e a qualidade de vida do grupo, em vez de a
“ação para mudança” (action for change) (Miller et al, 2008, p. 147).
Embora não seja prioridade, ao olhar com mais cuidado as questões que
nos intrigam, a mudança pode acontecer, pois o processo de mudança faz parte da
18
vida das pessoas (Ewald, 2015; Moraes Bezerra e Nunes, 2013), e pode ocorrer na
medida em que as questões ao longo do processo de busca por entendimentos são
refinadas pelos praticantes a partir de suas reflexões iniciais sobre o que visam a
entender.
Entendo Prática Exploratória como “[...] uma maneira indefinidamente
sustentável em que praticantes, dentro de seus contextos de trabalho e enquanto
exercem suas práticas profissionais, se engajam para desenvolver o seu
entendimento da vida nesses contextos.” (Miller, 2010, p.113). Alinho-me a essa
definição de Miller em razão da minha inserção na comunidade de Prática
Exploratória.
De maneira diferente ao que comumente se esperava sobre a iniciação de
pesquisadores na realização de pesquisas em Prática Exploratória, meu primeiro
contato com essa proposta para entendimento da vida dentro e fora de sala de aula
foi através da pesquisa. Durante o período em que fui bolsista, procurei entender
através do meu questionamento inicial “Por que eles não querem ser professores
de Inglês? ”, como meus colegas de graduação construíam discursivamente suas
identidades e revelavam seus questionamentos sobre a nossa formação inicial
através de narrativas que surgiram ao longo das aulas da disciplina “Fundamentos
e Práticas de Ensino II”.
Além disso, em Brandão (2012), destaco, em meu trabalho de final de
curso, não somente como a pesquisa se encaminhou e meus entendimentos sobre o
que vivi com meus colegas (o que já vinha sendo realizado em apresentações de
trabalho em eventos acadêmicos e nos relatórios de pesquisa), mas também a sua
influência na minha certeza sobre a escolha profissional que fiz. Ter participado
do projeto, indubitavelmente, me fez crescer enquanto pesquisadora e professora
em formação inicial, e me deixou com mais vontade para estudar a formação de
professores e os possíveis questionamentos que possam surgir ao longo deste
processo.
Em 2013, ingressei no curso de especialização lato-sensu em Educação
Básica – Ensino de Língua Inglesa na mesma universidade em que concluí a
licenciatura. Ainda sob o efeito que a pesquisa em iniciação científica havia me
deixado, continuei a participar dos encontros com os bolsistas que passaram a
integrar o grupo do qual eu fazia parte. No mesmo ano, comecei a exercer a
função de coordenadora pedagógica no curso de idiomas em que trabalhava. Isto,
19
para mim, só não foi muito difícilpor conta do suporte ético que obtive com o
aprendizado através dos entendimentos de minhas questões.
A responsabilidade era grande. Agora, não respondia só por mim, pelo
trabalho que realizava ou pelos meus alunos, mas também, pela função
institucional em que me coloquei. Os embates eram enormes. Após o trabalho
com a Prática Exploratória, imaginei que estar nessa posição me ajudaria a
modificar as rotinas às quais tinha que me submeter e com as quais eu não
concordava. Acreditava que, ao fazer isso utilizando o meu poder institucional,
ajudaria também os meus colegas de profissão. No entanto, estava enganada.
Quanto mais o tempo passava, mais vontade eu sentia de sair daquele contexto.
Sentia-me cada vez com menos autonomia sobre as minhas decisões tanto como
professora quanto como coordenadora pedagógica. Na verdade, a única alternativa
que eu tinha era continuar investindo em minha formação profissional, realizando
concursos públicos para a área do magistério e concluindo a pós-graduação.
Perto da finalização das disciplinas, com o incentivo dos professores e de
meus colegas, participei do processo seletivo de mestrado da PUC- Rio. A minha
escolha em continuar minha formação nesta universidade tinha como motivo
poder ficar mais perto do Grupo de Prática Exploratória do Rio de Janeiro e,
assim, dar continuidade aos trabalhos que já realizava na graduação.
Era 2014, mesmo ano em que comecei o curso de mestrado, quando fui
nomeada servidora pública do estado, começando a atuar como professora regente
de Inglês em uma escola pública no município de Niterói.
O início mostrou-se complicado, pois cumpria a carga horária de dezesseis
horas semanais em três escolas diferentes e ainda trabalhava no curso de idiomas
todos os dias da semana, além de cursar as primeiras disciplinas no mestrado e
precisar terminar o meu trabalho final de pós-graduação, no qual, mais uma vez,
decidi voltar o meu olhar para a formação de professores.
Junto a dois estagiários que recebi logo no início daquele ano, busquei
entendimentos sobre o meu processo de formação continuada e sobre a
importância do estágio supervisionado como espaço para a construção conjunta de
entendimentos acerca do nosso processo de formação profissional (Brandão,
2014). Assim, logo no início de minha jornada nesse novo contexto, tive o auxílio
desses dois colegas em formação, que também estavam ali para compartilhar seus
questionamentos e buscar novos entendimentos sobre o que era ser ou tornar-se
20
professor. Porém, logo seu período de estágio acabou, e foi a partir daquele
momento em que eu estava sozinha naquele novo contexto que de fato comecei a
apurar o meu olhar para aquela nova paisagem que se instaurava diante de minha
janela. A seguir, saliento as minhas primeiras inquietações dentro da escola.
1.2. No canal oscilava um barco: sou ou não sou uma professora exploratória?
Ao nos convidar a olhar o familiar, o antropólogo Gilberto Velho
certamente estava nos convidando a olhar para as minúcias do nosso cotidiano,
para aquilo que parece ser, mas que talvez não seja, ou simplesmente para o que é
“incomum e espetacular”, nas palavras de Ben Rampton (2006, p. 117). Contudo,
pensar no que possa ser incomum e mereça o nosso olhar com mais cuidado,
torna-se uma tarefa complexa, uma vez que estamos inseridos em contextos nos
quais a familiaridade pode denunciar apreensões da realidade expostas ao
julgamento e opiniões diversas (Velho, 2013, p.77).
A sala de aula, sobretudo a de línguas estrangeiras, é um espaço que deve
proporcionar aos alunos e professores o desenvolvimento de uma consciência
crítica sobre o que se vive no contexto escolar. Cabe aos professores provocar
esse estranhamento ao que parece familiar junto aos alunos, para que reflitam
sobre a escola, sobre seus professores e sobre eles mesmos.
Porém, essa tarefa não é fácil. Assim como eu, meus alunos são seres
humanos, atravessados por discursos que os ajudam a se constituírem enquanto
sujeitos, cada um com sua história, desejos, vontades e questões. Embora a minha
formação tenha sido balizada nos pressupostos e princípios da Prática
Exploratória, que detalharei com mais cuidado nos capítulos subsequentes, senti
muita dificuldade em meus primeiros meses na escola.
Apesar de saber que deveria trabalhar para promover o surgimento de
questões sobre a vida em sala de aula, na escola e fora dela, era mais fácil
começar com os exercícios de fixação de conteúdo, pois, influenciada pelos
moldes do curso de idiomas, acreditava que ao fazer isso estava facilitando o meu
trabalho, já que era dessa forma que, a meu ver, conseguiria ter controle sobre as
turmas.
21
No entanto, mesmo agindo dessa maneira, algo me incomodava. Não era
daquele jeito que eu gostaria de trabalhar. Não era para agir desse modo que a
minha trajetória acadêmica me guiava, nem tampouco os entendimentos que eu
havia gerado até ali. Afinal, por que eu não tinha certeza se era uma professora
exploratória?
Para minha surpresa, encontro junto a um grupo de alunos motivação para
ir contra a maré; para não me acomodar com os discursos pré-estabelecidos sobre
a escola, sobretudo, no que se refere aos discursos que envolvem o desinteresse
dos alunos, as questões de indisciplina, e sobre o trabalho que é desenvolvido
dentro deste contexto, atravessados pelas questões institucionais e políticas.
Esta turma era considerada a pior da escola, tanto em desempenho quanto
em comportamento, mas havia um diferencial: eu os adorava. A minha relação
com aquele grupo de alunos era ótima a ponto de, apesar de tantas conversas
paralelas durante as aulas e até mesmo da desmotivação em relação à disciplina
que leciono, não haver impedimento para que tivéssemos um bom relacionamento
e conversássemos sobre as questões que nos cercavam. Como percebi que a
indisciplina era um fator que incomodava os outros professores e até mesmo
alguns estudantes, resolvi trabalhar com essa turma através de algumas APPEs
para que juntos pudéssemos entender e aprender a lidar com as situações que
envolviam esse questionamento.
Era 2014, final do meu primeiro ano letivo enquanto professora regente de
Inglês naquela escola pública desses alunos. Finalmente, tinha conseguido sair do
curso de idiomas e da caixinha em que eu mesma havia me colocado durante os
anos em que trabalhei nele. Lembro-me, como se fosse hoje, do quão feliz eu saí
da escola no dia em que os alunos daquela turma de primeiro ano do Ensino
Médio participaram do XV Evento de Prática Exploratória. Eles estavam radiantes
e felizes, assim como eu.
Na pausa para o intervalo, em uma ida à cantina, uma das funcionárias
resolve pergunta-los sobre quem eu era. Sem muita demora, um deles responde
que eu era a professora de Inglês: “a melhor professora da escola”. Em um misto
de surpresa e curiosidade, permaneço ali, parecendo saber que a interação não
acabaria naquela afirmação.
Eu estava certa. Outro aluno, em resposta à funcionária que os indagara
sobre o porquê eu era a melhor professora da escola, acrescenta: “ela é a melhor
22
professora da escola, porque além de professora, ela é a psicóloga da nossa
turma”. De repente, daquele misto de curiosidade e felicidade, minha mente se
inundou de diversos questionamentos sobre o meu papel enquanto professora,
sobre a minha escolha profissional, sobre a vida que se vive na escola em que eu
trabalho e outras questões instigantes que busquei entender ao longo de minha
pesquisa de mestrado.
Infelizmente, não pude buscar entendimentos sobre os questionamentos
que me fiz junto àquela turma, já que leciono para alunos de primeiro ano do
Ensino Médio, e, portanto, no ano seguinte, eles tiveram aula com outra
professora. No entanto, foram aquelas palavras que me motivaram e me guiaram
à pesquisa que desenvolvi junto aos estudantes do ano subsequente e que
resultaram nesta dissertação de mestrado.
Logo, tal como a cronista que passa a observar os pequenos
acontecimentos cotidianos de sua janela e que, apesar de toda a diversidade que
encontra, se sente completamente feliz, convido você, caro leitor, a compartilhar
de minhas alegrias, inquietações e questionamentos ao longo deste trabalho em
que busco entender como eu, professora-pesquisadora, e meus alunos
(re)construímos identidades e estigma durante nossas interações em contexto
escolar. Para tanto, escolhi iniciar essa dissertação com a crônica de Cecília
Meireles na epígrafe deste trabalho, uma vez que a cada momento em que a leio,
sou convidada a refletir sobre a minha vida. Encontro, nessa crônica, a inspiração
para refletir sobre a minha trajetória profissional e sobre a vida que vivemos na
troca de experiências e saberes com meus companheiros de pesquisa: meus
alunos.
Portanto, motivada pelos meus questionamentos enquanto professora,
neste trabalho, busco refletir sobre a coconstrução discursiva de identidades
coletivas de uma turma do primeiro ano do Ensino Médio, além de buscar indícios
de pertencimento e não pertencimento através da análise de interações geradas em
sala de aula à luz dos princípios da Prática Exploratória (Miller, 2001; Moraes
Bezerra, 2007; Allwright and Hanks, 2009, inter alia), tendo como principais
objetivos:
Entender o processo de coconstrução do self e de estigmas através
da análise de interações geradas em contexto escolar;
23
Analisar as interações geradas em sala de aula, bem como as
atividades desenvolvidas durante o processo de busca por
entendimentos sobre a vida na escola e, principalmente, sobre ser
aluno e professor de uma turma de primeiro ano do Ensino Médio
em uma escola pública;
Partilhar os meus entendimentos com os demais praticantes da
pesquisa, atendendo, então, a proposta ético-inclusiva da Prática
Exploratória.
Ao alcançar esses objetivos, pretendo refletir sobre o meu processo de
formação continuada e buscar novos entendimentos sobre o meu papel dentro da
escola.Em relação à estrutura organizacional, este trabalho divide-se em seis
capítulos.
Após a introdução do tema e de minhas motivações iniciais feitas no
presente capítulo, segue o capítulo 2, que apresenta os construtos teóricos que
fundamentam este estudo.
Ele versa, a princípio, sobre a Linguística Aplicada Contemporânea e a
Prática Exploratória, tecendo elos entre a prática do linguista aplicado na
contemporaneidade (Rajagopalan, 2003; Moita Lopes, 2006; 2013) e a proposta
ético-inclusiva da Prática Exploratória (Miller, 2013), que considero o fio
condutor para minha prática profissional como professora e linguista aplicada.
Além disso, apresento na sua segunda seção, sob o título “A vida em sala de
aula”, a minha visão acerca da sala de aula, a partir das contribuições de Prabhu
(1992) e Nóbrega Kuschnir (2003). Destaco, também, a importância da dimensão
afetiva para os processos de ensino-aprendizagem e reflexão.
O conceito de Estigma é apresentado na terceira seção do capítulo 2, a partir
da premissa de Goffman (1988) e das contribuições de Biar (2012).Já a última
seção versa sobre a dinâmica entre a interação face a face em sala de aula, a partir
de alguns construtos da Análise da Conversa Etnometodológica (Sacks,Schegloff,
Jefferson, 2003[1974]) e dos Estudos de Narrativa (Labov, 1972; Linde,
1993;1997 e Bastos, 2005), aliados à Teoria da Avaliatividade (Martin e White,
2005) que através de seus ferramentais teóricos me auxiliaram na tentativa de
mapear discursivamente o que aconteceu no “aqui e agora” de nossos encontros.
24
O capítulo 3inicia-se com a discussão acerca da natureza da pesquisa
(Denzin e Lincoln, 2006) e sobre a pesquisa do praticante (Miller, 2001;
Rodrigues, 2014; Ewald, 2015). A seguir, são descritos o contexto de pesquisa,
assim como uma breve descrição do Programa Autonomia e dos processos de
geração e transcrição de dados. Além disso, apresento ao final do capítulo os
praticantes desta pesquisa.
O capítulo 4destina-se à análise dos dados gerados. Este capítulo está
dividido em dois blocos: o primeiro, sob o título “A aspersão sobre o jardim:
primeiras tentativas” refere-se às primeiras tentativas de realização do trabalho
com a turma investigada; o segundo contém quatro subseções de análise dos
dados gerados em áudio. Para analisar os excertos que compõem este capítulo,
utilizo osconceitos revisitados no capítulo 2.
No capítulo 5 busco refletir sobre a análise dos dados gerados à luz dos
princípios da Prática Exploratória para, finalmente, retomar os objetivos da
pesquisa com o intuito de apesentar algumas considerações finais sobre os
questionamentos que surgiram ao longo do trabalho.
Compõem os anexos deste trabalho as autorizações para a realização desta
pesquisa, assim como a resposta a uma questão de prova realizada por dois alunos
que é retomada durante a interação transcrita no capítulo quatro, subseção4.2.2 -
“agora é super diferente” e os excertos que compõem a seção de análise.
25
2. Arcabouço teórico
Neste capítulo, apresento as concepções teóricas que orientarão o meu
olhar à análise dos dados gerados para esta pesquisa de mestrado. Primeiramente,
saliento a importância da Linguística Aplicada (Moita Lopes, 2006; 2013) e da
Prática Exploratória (Miller et al, 2008) para as pesquisas sobre/na sala de aula,
assim como insiro esta pesquisa neste campo dos Estudos da Linguagem.
Em seguida, destaco a minha visão acerca da sala de aula, considerando-a
a partir das visões de Prahbu (1992) e Nóbrega Kuschnir(2003), sob o olhar de
uma perspectiva sociointeracional de construção de conhecimento.
A terceira subseção deste capítulo destina-se ao conceito de Estigma,
especialmente, aos estudos de Goffman (1988) e Biar (2012). Já a quarta e última
subseção refere-se ao ferramental teórico relacionado à sala de aula e à interação,
que me servirão como lente para a análise dos dados. Assim, faço uma breve
apresentação acerca da ACE (Análise da Conversa Etnometodológica), dos
Estudos de Narrativa (Labov, 1972; Linde, 1993;1997; Bastos, 2005) e da Teoria
da Avaliatividade (Martin, 2003; Martin e White, 2005).
2.1. A Linguística Aplicada
Desde o seu surgimento, a Linguística Aplicada3 sofreu duras críticas e foi
alvo de grande discussão entre linguistas. Muitos teóricos consideravam a LA
como aplicação da Linguística teórica, isto é, a aplicação prática das teorias
linguísticas ao ensino. Contudo, ao longo do tempo, ela tem se firmado como uma
área de estudo independente.
Nas décadas de setenta e oitenta, os primeiros trabalhos em LA começam a
ser publicados em periódicos científicos, como o Journal of Applied Linguistics e
o Annual Review of Applied Linguistics, alcançando, assim, maior visibilidade
(Celani, 1992). No Brasil, nesta mesma época, a LA começa a ganhar espaço com
a implementação dos cursos de pós-graduação, mais especificamente na década de
3 Para me referir ao termo Linguística Aplicada, utilizarei de agora em diante a sigla LA.
26
70, quando é criado, na PUC-SP, o primeiro programa de pós-graduação em
Linguística Aplicada.
Somente na década de noventa, após a divulgação do livro Linguística
Aplicada: da aplicação da linguística à linguística transdisciplinar (Paschoal e
Celani, 1992) é que a disciplina passou a ganhar notoriedade no Brasil, com a
publicação do artigoAfinal, o que é Linguística Aplicada? (Celani, 1992).
Apesar de os estudos sobre a sala de aula de línguas serem a área de maior
desenvolvimento em nosso país (Moita Lopes, 2013, p.16), a LA passa a ganhar
identidade própria e ir além de pesquisas acerca do ensino-aprendizagem de
Línguas Estrangeiras, como salienta Moita Lopes (2006, p.19):
Ao contrário do que frequentemente acontece em outras partes do mundo, no
Brasil, a pesquisa em LA tem se espraiado para uma série de contextos diferentes
da sala de aula de LE: da sala de aula de LM para as empresas, para as clínicas de
saúde, para a delegacia de mulheres, etc., ainda que predominem aspectos
referentes à educação linguística.
Assim, diferente dos linguistas que se preocupam com a descrição e
teorização sobre as línguas, o linguista aplicado é, segundo Rajagopalan (2003,
p.106):
Um ativista, um militante, movido por certo idealismo e convicção inabalável de
que, a partir de sua ação, por mais limitada e localizada que ela possa ser, seja
possível desencadear mudanças sociais de grande envergadura e consequência.
Moita Lopes aponta que essa variedade de questões em contextos diversos
de usos da linguagem fez com que as pesquisas em LA passassem a ser
construídas de maneira interdisciplinar (Moita Lopes, 2006, p.19). O autor ainda
nos alerta para a necessidade constante de repensar os modos de teorizar e fazer
LA, já que lidamos com pessoas que não estão em um vácuo social e agem sobre
o mundo em que vivem (Moita Lopes, 2006, p.21). Desta forma, por vivermos na
chamada modernidade recente (Chouliaraki & Fairclough, 1999 apud Moita
Lopes, 2006, p. 22), em um mundo que se encontra em constante mudança e sob
grande influência da globalização, Moita Lopes nos apresenta uma Linguística
Aplicada Indisciplinar, que se propõe autorreflexiva, fugindo aos padrões de
disciplinariedade, convidando-nos a desconfiar das verdades absolutas e do que
27
não muda, já que nós somos responsáveis pela mudança e podemos ajudar a
(re)criar a nossa realidade.
Isto posto, por que ainda é necessário pensar sobre a escola embora sejam
numerosas as pesquisas acerca deste assunto (sobretudo, a sala de aula), além dos
avanços de pesquisas em Linguística Aplicada? A resposta encontra-se no fato de
que alunos e professores são agentes de mudança e convivem neste mundo em
transformação contínua, sendo influenciados pelos discursos que os cercam,
construindo e (re)construindo em conjunto saberes sobre serem alunos,
professores e sobre o papel da escola na contemporaneidade.
Logo, enquanto linguista aplicada e professora em formação continuada,
busco, em minha prática docente, agir como intelectual transformadora. Alinho-
me à ideia de Giroux (1997), por acreditar que os professores devem buscar
desenvolver a capacidade crítica de seus alunos, entendendo o nosso papel
político, uma vez que podemos agir como legitimadores de práticas sociais e
colaborar para a formação de cidadãos críticos, capazes de questionar e refletir
sobre o que é viver na contemporaneidade.
2.1.2. Linguística Aplicada e a pesquisa em sala de aula: o que a Prática Exploratória tem a ver com isso?
Enquanto ainda estava na graduação, fui apresentada, pela minha
professora de Fundamentos e Práticas de Ensino em Língua Inglesa, a uma nova
maneira de olhar a vida que se vive na escola: a Prática Exploratória. Desde então,
busco trabalhar a partir desta proposta para entendimento da vida dentro e fora da
sala de aula (Miller et al, 2008).
Acredito que a Prática Exploratória fez com que meu olhar se expandisse
para as necessidades de ruptura que a LA contemporânea nos propõe, já que, em
vez de agir para a mudança (Miller et al, 2008, p.147), aquela busca agir para
entender os puzzles, i.e., questionamentos sobre a vida em sala de aula e em outros
contextos. Da mesma maneira, Moita Lopes (2006, p.20), em reflexão sobre seu
texto de 1996, nos lembra que a LA não busca resolver problemas, mas “ao
contrário, a linguística aplicada procura problematizá-los ou criar inteligibilidade
sobre eles, de modo que alternativas para tais contextos de usos da linguagem
possam ser vislumbradas”.
28
Outra articulação possível entre a Prática Exploratória e a LA
Contemporânea está na reconfiguração da LA como prática investigadora, como
aponta Fabrício (2006, p.49). Assim como a autora, destaco aqui a necessidade de
uma agenda ética de pesquisa, preocupação também das pesquisas em Prática
Exploratória (cf. Miller 2010; Rodrigues, 2014), que consideram todos os
envolvidos nas pesquisas como praticantes, reconhecendo sua agência e a
responsabilidade de todos para a coconstrução de entendimentos sobre as questões
e sobre a agenda de pesquisa. No que tange a questão ética, Fabrício (2006, p.62)
assinala que
Não devemos almejar o saber pelo saber, ou a invenção pela invenção,
deslocados de compromissos éticos. Não devemos, tampouco, nos relacionar com
o conhecimento que produzimos como “captura teórica do real”. Embora
tecnicidades analíticas sejam parte necessária de nossas pesquisas, elas não
deveriam se converter em mera atividade técnico-cognitiva. Nossas construções
devem objetivar uma vida melhor.
Desta forma, acredito que a Prática Exploratória possa ajudar linguistas
aplicados a entender, por exemplo, alguns questionamentos apontados por Bohn
(2013, p. 83), quando o autor, ao citar a leitura do livro Pode o subalterno falar?,
reflete sobre de quem seria a voz da sala de aula: dos alunos ou dos professores?
Como ele mesmo aponta, alunos e professores alternam suas posições enquanto
falantes e ouvintes, mas me questiono até que ponto suas vozes são respeitadas.
Concordo com Miller (2012, p. 323) quando a autora ressalta que
A Prática Exploratória reinventa a vida em sala de aula e as formas de produzir
conhecimento nelas, na medida em que Allwright reconhece a capacidade do
professor e dos alunos para produzir conhecimento a respeito de suas vivências –
ensino aprendizagem. Allwright (2006) clama por uma Linguística Aplicada que
valorize, com urgência, os professores como aqueles capazes de teorizar (cf.
theory-building) sobre suas questões locais e situadas.
Neste sentido, busco, no presente trabalho, alinhar-me aos pensamentos da
Linguística Aplicada contemporânea (in)disciplinar (Moita Lopes, 2006),
transgressiva (Pennycook, 2006), da desaprendizagem (Fabrício, 2006), da ruptura
(Bohn, 2013), na tentativa de olhar com mais cuidado e ouvir atentamente ao que
as vozes do sul, dos que estão à margem, têm a nos mostrar sobre a vida na escola.
Assim, os princípios da PE têm orientado o meu olhar à pesquisa e aos alunos da
29
turma investigada, promovendo a reflexão sobre nossos papéis no contexto escolar
em que estamos inseridos. São eles, segundo Miller et al (2008, p.147):
Priorizar a qualidade de vida.
Trabalhar para entender a vida na sala de aula ou em outros contextos
profissionais.
Envolver todos neste trabalho.
Trabalhar para a união de todos.
Trabalhar para o desenvolvimento mútuo.
Integrar este trabalho com as práticas de sala de aula ou com outras
práticas profissionais.
Fazer com que o trabalho para o entendimento e a integração seja
contínuo.
Portanto, considero a PE como fio condutor do meu trabalho enquanto
professora e linguista aplicada, uma vez que, à luz de seus princípios, posso
buscar entendimentos sobre meus alunos e suas questões, assim como as minhas,
realizando a pesquisa dentro do meu próprio contexto, integrando-a com a prática
docente. Acredito que, assim, possa trabalhar não só para o entendimento, mas
para a conscientização a respeito de questões locais.
2.1.3. Sobre professores e aprendizes: a Prática Exploratória e sua proposta reflexiva
A Prática Exploratória, a partir de sua proposta inclusiva de busca por
entendimentos, seja na prática docente, seja na pesquisa, tem caminhado no
sentido de incentivar a agência do aprendiz. Allwright e Hanks (2009, p.2), ao
tecerem considerações sobre a ação docente e a ação discente na sala de aula de
línguas, questionaram:
Os professores estão oficialmente incumbidos da prática de ensino da língua nas
salas de aula, mas eles devem deixar a prática real de aprendizagem de línguas
para os aprendizes. Só os aprendizes conseguem fazer sua própria aprendizagem.
E é sua prática paralela como aprendizes que irá ou não completar efetivamente o
esforço dos professores e de outros profissionais de língua que operam no
background do processo [...] para tornarem as salas de aulas mais produtivas.
Então, por que não tentar pensar nos aprendizes como praticantes da
aprendizagem e não apenas como “alvos do ensino”?
30
Essa afirmação dos autores traz para o primeiro plano o aprendiz e o seu
papel no processo de aprendizagem de uma língua. Ao invés de ‘alvos do ensino’,
o aprendiz é visto como agente, como colaborador. Reforçando essa ideia,
Allwright e Hanks (ibid.), sem ignorar a ação do professor, indicam que os
aprendizes podem construir seus entendimentos sobre as questões e sobre suas
vidas de aprendizes, de seres no mundo e, portanto, podem se desenvolver como
‘praticantes da aprendizagem’[cf. practitioners of learning].
Mesmo tendo conhecimentode que não são noções novas na área de
ensino-aprendizagem de línguas, os autores apresentam cinco proposições sobre
aprendizes. São elas:
1- Os aprendizes são indivíduos únicos que aprendem e se desenvolvem melhor
de suas próprias maneiras;
2- Os aprendizes são seres sociais que aprendem e se desenvolvem melhor em um
ambiente de apoio mútuo;
3- Os aprendizes são capazes de levar sua aprendizagem a sério;
4- Os aprendizes são capazes de tomar decisões de forma independente;
5- Os praticantes são capazes de se desenvolver como praticantes de
aprendizagem (Allwright & Hanks, 2009, p.2).
A primeira proposição caminha no sentido inverso ao caminho das práticas
docentesque trazem em seu bojo a ideia de que os aprendizes devem ser tratados
como massa. Embora um grupo de aprendizes possa apresentar habilidades
similares e/ousaberes semelhantes,cada um tem uma experiência escolar e de vida.
Por isso, não devem ser tratados de forma reducionista, como se todos
aprendessem sempre e igualmente a partir das mesmas atividades propostas, por
exemplo.Logo, a primeira proposição destaca a individualidade do aprendiz e suas
próprias capacidades.
A segunda proposição nos lembra de que o processo de aprendizagem acontece
em ambientes em que os aprendizes trazem suas peculiaridades para somá-las com
as de outros aprendizes. Allwright e Hanks destacam o ambiente de aprendizagem
como um evento social.
Os aprendizes, professores e alunos,podem ser fonte de apoio mútuo nos
diversos momentos, no processo de aprender. Embora não saibamos se os autores
31
tinham isso em mente, ao mencionar ‘apoio’, estamos nos referindo também a
questões de afeto, no sentido que Vygotsky ([1987] apud Silva, 2008) propôs, ao
vincular cognição e afeto, no processo de construção de conhecimento (cf. 2.2.2).
Assim, a qualidade do afeto gerado discursivamente, em situações de sala de aula
e/ou nas interações entre os praticantes, influencia a aprendizagem.
Allwright e Hanks comentam, em relação à terceira proposição, que
muitos professores acreditam que seus alunos não tratam com seriedade o
processo de aprender. Consequentemente, essa crença pode balizar a forma como
esses profissionais conduzem sua prática docente, podendo, por sua vez, levar os
alunos a agirem de forma diferente da expectativa do professor. Por isso, tratar os
aprendizes como pessoas que levam a sério o processo de aprender pode encorajá-
los, fazendo com que se sintam reconhecidos e capazes pelo seu próprio
aprendizado.
A quarta proposição aponta na direção de um aprendiz ao qual não é
preciso estar sempre dizendo o que fazer, quando, como e com quem fazer.
Allwright e Hanks trazem a crítica de que, via de regra, os currículos,
planejamentos, planos de aulas e livros deixam pouco espaço para o aluno
aprender a tomar suas próprias decisões acerca do que aprender, quando aprender,
etc. A proposta da Prática Exploratória seria exatamente a de orientar o ensino no
sentido de incentivar o aprendizado nas práticas discentes cotidianas.
Finalmente, com relação à quinta proposição, Allwright e Hanks buscam
chamar atenção para o fato de que, como não se pode esperar que os aprendizes já
iniciem o processo de aprender totalmente desenvolvidos, eles são capazes de se
desenvolverem e de se construírem enquanto agentes de seu processo de
aprendizagem.
Além disso, acredito que, quando o desenvolvimento dos aprendizes
passar a ser entendido como “um processo social mútuo em que todos ganharemos
mais ao partilharmos compreensões, ideais e experiências” (ibid., 2009, p.6),
temos maiores possibilidades de exercitarmos nossa agência e de colaborarmos
para o processo coletivo de construção de entendimentos de forma mais
consciente.
Essas questões levam-nos a outro construto fundamental da Prática
Exploratória: qualidade de vida em sala de aula. Gieve e Miller (2006) descartam
a construção de uma possível relação desse construto com algo cuja eficiência
32
possa ser mensurável, afastando-se assim de um modelo tecnicista de educação.
Segundo eles, a ideia de ‘qualidade de vida’, a partir de uma visão humanista,
propõe o imbricar da vida que se vive no contexto escolar e a vida fora dele.
Dessa forma, professores e alunos constituem uma comunidade de prática (cf.
2.2.1), na qual suas múltiplas e complexas identidades estão em constante
interação.
Assim, as tensões e/ou os momentos de entrosamento vivenciados e
decorrentes das práticas docentes e discentes, em sala de aula e fora dela,
configurarão a qualidade de vida dessa comunidade de prática de natureza mais ou
menos conducente à aprendizagem e, da mesma forma, à construção de relações
de apoio mútuo.
Portanto, após apresentar alguns de meus entendimentos sobre como a
Prática Exploratória têm norteado o meu trabalho enquanto professora da
Educação Básica e Linguista Aplicada, na próxima seção, discorro acerca da
minha visão sobre a sala de aula.
2.2. A vida em sala de aula
Nesta dissertação de mestrado, faço uma tentativa de transformar em texto
o que vivi com meus alunos em sala de aula. Destaco que é apenas uma tentativa
por acreditar que seja imensurável definir ou delimitar, dentro destas páginas, o
que de fato vivemos ao longo do período em que estivemos juntos. Da mesma
forma, considerar a sala de aula apenas como o espaço físico, no qual nossos
encontros eram realizados semanalmente, seria o mesmo que ignorar toda a
complexidade que envolve esse contexto.
Nóbrega Kuschnir (2003, p. 26) sinaliza que “devemos considerar a sala
de aula como um ambiente de interação e aprendizagem, onde um misto de
atividades ocorrem simultaneamente”. Esta forma de interpretar a sala de aula
associa-se ao que Prabhu salienta (1992) ao designar a sala de aula a partir de duas
dimensões. O autor esclarece que a aula não é somente um evento pedagógico,
destacando, assim, a importância da dimensão social e das relações pessoais.
Prabhu (1992) postula que a aula pode ser compreendida a partir de
diversas perspectivas; dentre elas, há a visão de que a aula é “uma unidade
33
sequencial do currículo” (idem. p.225), isto é, a execução de sequências didáticas
para que o currículo seja consolidado. Outra visão é a de aula como
implementação de um método (ibid., p. 226). A partir desta concepção, a aula
estaria relacionada ao conjunto de técnicas necessárias para que seja possível
assimilar os conteúdos propostos por determinado currículo.
Contudo, apesar dos diferentes enfoques, ao considerar a sala de aula
como um evento social, o autor destaca os aspectos social e interpessoal. Ao
ressaltar essa perspectiva, Prahbu (1992, p. 228), além disso, enfatiza que alunos e
professores podem assumir diferentes identidades durante a participação nesse
evento, uma vez que estes acabam sendo determinados com suporte em diferentes
ações que fazem parte das rotinas que acontecem cotidianamente em sala de aula.
Para o autor, esse aspecto ritualístico permite que os participantes se
sintam mais seguros em relação aos acontecimentos da sala de aula, uma vez que
estes se tornam previsíveis. Assim, alunos e professores podem se sentir menos
ameaçados e mais confortáveis a exercerem seus papéis.
No entanto, é importante ressaltar que não é possível determinar de fato o
que acontecerá em sala de aula, apesar da expectativa que os participantes podem
ter sobre isso. Há professores, por exemplo, que podem imaginar que, por conta
dessas práticas rotineiras, o esperado é que ele assuma o controle sobre as
atividades, podendo, assim, delegar ou não tarefas aos alunos, que devem cumpri-
las sem hesitar. A figura de autoridade do professor, mesmo que patente, pode não
dar espaço aos alunos que sintam que a sua participação em seu processo de
ensino-aprendizagem seja relevante.
Desta forma, o conceito de aula e de sala de aula se configura de forma
dinâmica, pois está, necessariamente, relacionado às múltiplas identidades e
histórias dos participantes do evento social.
Ao concordar com Kramer (2002), Nóbrega Kuschnir destaca, assim como
a autora, o caráter heterogêneo das práticas pedagógicas ao acrescentar que tanto
professores quanto alunos “possuem diferentes experiências, conhecimentos,
valores, religiões, raízes culturais, sexos, classes sociais, etnias, etc,” (2003. p.29).
Assim, a autora salienta o aspecto multidimensional da sala de aula, destacando
que em sua dissertação de mestrado dará atenção ao que considera como o “o tripé
estrutural da sala de aula: as dimensões social, afetiva e cognitiva” (ibid. p.28). À
vista disso, concordo com a autora, por considerar, assim como ela, que
34
A sala de aula caracteriza-se por um misto de atividades e de identidades que
coexistem e encontram-se em constante mudança, de acordo com os interesses e
necessidades de diferentes naturezas, apontados pelos participantes da aula, bem
como pelas necessidades advindas da aula como um fenômeno social (ibid,
p.27).
Essa visão parece ir ao encontro do que Prabhu assinala em relação à sala
de aula como uma arena de interações humanas (1992, p.229), no sentido em que
ela extrapola as rotinas daquele contexto e passa a ser entendida como “um grupo
de indivíduos – um professor e muitos alunos – com variadas personalidades,
motivos, autoimagens, medos e aspirações, níveis de tolerância, e graus de
maturidade”.4
2.2.1. A sala de aula como uma comunidade de prática
Essas concepções me remetem ao conceito de Communities of Practice,
proposto inicialmente por Lave e Wenger (1991), que se referia a grupos unidos
por um objetivo comum e com práticas em comum. Segundo Wenger (1998), ao
longo de nossas vidas, nós participamos de diversas comunidades de prática. Elas
se tornam, assim, partes de nossas vidas.
Ewald (2015, p.19) ressalta a afirmação do autor de que “as pessoas
aprendem ao agir participando em diferentes contextos”. Em relação a isso,
Wenger destaca que,
a aprendizagem não é uma atividade em separado. Não é algo que optamos por
fazer quando não estamos fazendo nada ou paramos de fazer quando fazemos
uma outra coisa qualquer. Há momentos em nossa vida nos quais a aprendizagem
torna-se mais intensa, por exemplo, quando determinadas situações perturbam
nosso senso de familiaridade, quando somos desafiados a ir além da nossa
capacidade ou quando desejamos nos engajar em novas práticas e buscamos nos
unir a novas comunidades.
Assim, a partir desta perspectiva, poderíamos considerar a sala de aula
como uma comunidade de prática, na qual alunos e professores dividem a
4 Essa reflexão vem da minha tradução para o texto original “Behind the conventionalized roles
and routines of a lesson are a group of individuals – a teacher and many learners – with varied
personalities, motives, self-images, fears and aspirations, levels of tolerance, and degrees of
maturity” (Prabhu, 1992, p.229).
35
responsabilidade e buscam se ajudar mutualmente com o objetivo de inserirem-se
em novas comunidades de prática e em novas práticas sociais, já que “a sala de
aula não existe isolada do mundo que a cerca” (Nóbrega Kuschnir, 2003, p. 58).
Em relação a 1001, meus companheiros de vida em sala de aula e nesta
pesquisa, percebo que nós estamos inseridos em uma comunidade de prática
comum às outras turmas: a escola.
Reconheço a 1001 e cada turma da escola também como uma comunidade
de prática, já que possuem características particulares, bem como peculiares a
cada indivíduo que a compõe. Além disso, percebo que, dentro da comunidade de
prática “1001”, existem outras comunidades de prática.
Destaco aqui que os alunos dessa turma, geralmente, se dividem entre a
comunidade de prática dos alunos que terminaram o ensino fundamental no
sistema regular, os alunos oriundos do Programa Autonomia e os alunos que estão
cursando novamente o primeiro ano do Ensino Médio. Todos nós, digo, os alunos
e eu, circulamos entre essas e outras comunidades de prática e, apesar de nos
afiliarmos àquelas que apresentam características que vão ao encontro de nossas
vivências, percebo que esses grupos, que aqui chamarei de pequenas comunidades
de prática, se misturam, trocam de participantes, se afiliam, formando a
comunidade de prática maior: a turma 1001.
Figura 1 - A sala de aula como uma comunidade de prática
36
Alinho-me a Moita Lopes (1996, p.95), por acreditar que “o conhecimento
é um processo para o qual colaboram aqueles envolvidos na prática de sala de
aula”. Desse modo, os envolvidos nessa comunidade de prática estão a todo
instante negociando seus saberes a fim de atingir um objetivo comum: a
aprendizagem.
Portanto, dentro da comunidade de prática da qual somos integrantes,
meus alunos e eu trabalhamos para o aprendizado de língua estrangeira e também
buscamos entendimentos sobre nossas vidas, a partir de uma perspectiva
sociointeracionista de aprendizagem (Vygotsky, 1984), já que considero que o
conhecimento é socioconstruído a partir de nossas interações cotidianas. Assim, a
linguagem tem papel essencial nesse processo, pois, como afirmou Bakhtin(1981,
p.113) “a palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se
apoia sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se sobre o meu interlocutor”.
Em relação a isso, Moita Lopes (1996, p.96), aliado às ideias de Bruner
(1986) e Vygotsky (1978), ressalta que “a educação é um processo essencialmente
cultural e social, no qual alunos e professores participam interagindo na
construção de um conhecimento conjunto”. No caso desta dissertação de
mestrado, meus alunos e eu tentamos construir em conjunto conhecimento sobre
nossas relações em sala de aula, por exemplo.
Ao considerar os processos de amadurecimento (nível de desenvolvimento
real), ou seja, aquilo que já conseguimos fazer sozinhos, sem a ajuda de um
outrem; e os processos em formação (nível de desenvolvimento potencial), aquilo
que se pretende conseguir fazer sem auxílio, Vygotsky (1984) postula o conceito
de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP). Dessa forma, o autor sinaliza que a
aprendizagem acontece na interação entre pares mais competentes, i.e, aqueles
que já conseguem fazer alguma coisa sozinhos e aqueles que ainda estão em
processo de maturação, atribuindo, assim, papel primordial à linguagem.
Ainda sob essa mesma ótica, Wood, Bruner e Ross (1976) conceituam
andamento (scaffolding), isto é, o processo interacional que ocorre dentro da zona
de desenvolvimento proximal e se refere ao auxílio de um par mais competente,
para que, o que ainda está em processo de desenvolvimento potencial possa se
desenvolver, a partir desta ajuda, e realizar a tarefa de maneira autônoma.
37
Assim, atuo, neste trabalho, como par mais competente em relação à
pesquisa e em relação ao trabalho realizado em Prática Exploratória, buscando
criar andaimes interacionais e afetivos com meus alunos, na tentativa de despertar
o interesse para o questionamento do que nos parece comum. Considerando-me
aprendiz, trabalho em conjunto com eles, para que, além das comunidades de
prática as quais já fazem parte, também se sintam membros da comunidade de
Prática Exploratória. Por isso, em alguns momentos da análise de dados, faço
algumas interrupções no fluxo das narrativas, questiono os alunos sobre o que eles
pensam, sobre o que estão falando, assim como também faço aqui, no meu próprio
texto.
Creio que esta dissertação é um grande andaime, pois, a cada momento de
escrita, reflexão e interação com o meu próprio texto, também estou caminhando
no meu processo de aprendizagem e de construção enquanto pesquisadora e
professora em Prática Exploratória.
Logo, seguindo esta linha de pensamento, acredito que cabe a mim e aos
professores criar oportunidades de interação em sala de aula, para que andaimes
possam ser coconstruídos, a fim de que os alunos se tornem cada vez mais ativos e
se sintam agentes responsáveis pelo seu próprio aprendizado e entendimento.
Igualmente, creio que isso só seja possível dentro de uma atmosfera motivadora,
na qual a dimensão afetiva, assim como a linguagem, atue como coadjuvante,
nesse processo.
2.2.2. A importância do afeto
Arnold e Brown (1999), ao discorrem sobre o afeto, relacionam-no a
“aspectos de emoção, sentimento, humor ou atitude que condicionam
comportamento” (ibid, p.1). Ao longo do texto, os autores apresentam outras
definições para o termo, apoiando-se em estudos de outros autores; no entanto, o
que torna este texto uma referência em relação aos estudos sobre a dimensão
afetiva é a relação entre o afeto e a dimensão cognitiva. Os autores postulam que
O lado afetivo da aprendizagem não se encontra em oposição ao lado cognitivo e
quando os dois são usados juntos, o processo de aprendizagem pode ser
construído em uma base mais sólida. O lado afetivo não se sobrepõe ao lado
cognitivo, nem vice-versa. Na verdade, um não pode ser separado do outro.
38
A fim de sustentar tal concepção, os autores citam Damásio (1994, apud
Arnold e Brown, 1999, p.1), que ressalta que a emoção é essencial para que nossa
capacidade racional se desenvolva. Logo, o autor relaciona a importância dos
sentimentos e emoções à racionalidade e à aprendizagem.
Porém, cabe salientar que emoções e sentimentos negativos também
podem interferir e criar barreiras nesse processo. Sentimentos como medo e
ansiedade ou raiva, podem comprometer o processo de ensino-aprendizagem.
Estendo, aqui, tal concepção, ao engajamento em processos reflexivos, já que,
para tal, é necessário que os praticantes estejam engajados a buscar não somente
entendimentos para suas questões, mas também apoio mútuo para o
desenvolvimento coletivo.
Brown e Arnold acrescentam que devemos ressaltar os sentimentos
positivos e citam Goleman (1995), que sugere que em sala de aula sejam
desenvolvidos “mente e coração”, extrapolando assim a noção de que a escola ou
a sala de aula é espaço apenas para a transmissão de conteúdos.
Essa visão também era a compartilhada por Vygotsky ([1987] 2008, p. 9),
que acreditava que “haveria um sistema dinâmico de significados em que o
afetivo e o intelectual se unem”. Ainda sobre o processo de construção de
conhecimentos desenvolvido por Vygotsky, Moraes Bezerra (2013, p.258) nos
lembra que:
o movimento dialético entre o nível interpessoal e intrapessoal de aprendizagem
no processo de construção de conhecimentos também viabiliza a construção de
parâmetros de comportamento afetivo, da forma como vivê-lo e demonstrá-lo de
acordo com a cultura e o espaço social em que o processo acontece.
Assim, fica evidente a relação entre cognição e afeto, assim como a
relevância de trabalharmos em busca de objetivos de vida e não somente de
objetivos para aprendizagem de línguas. Desta forma, os alunos também seriam
capazes de se desenvolver e se educar afetivamente para conseguir viver em
sociedade e se engajarem nas práticas às quais estão envolvidos. Desse modo,
ignorar tal questão significa ignorar que somos seres humanos, revestidos por
39
nossas crenças5 e emoções, e que a nossa motivação e sentimentos positivos
facilitam o processo de ensino-aprendizagem.
Logo, assim como a aprendizagem, acredito que o afeto também é
coconstruído nas interações. Assim, alunos e professores podem se desenvolver
em interação. O discurso tem papel importante nesse processo, uma vez que é nele
e através dele que professores e alunos podem estabelecer até que ponto podem
chegar em uma interação e que papeis podem assumir. Veremos, na seção a
seguir, porém, como o discurso e a linguagem também têm papel decisivo na
mediação de conflitos e na (des)construção de estigmas em interação.
2.3. Estigma
“‘ah...o pessoal do autonomia’ aí já pensa logo que a gente é idiota,
que a gente não sabe ler, não sabe escrever, que a gente é tudo um
bando de neandertais”.
Iuri (conversa exploratória – 27/03/2015)
Goffman (2013[1988]), ao discorrer sobre o termo estigma, salienta que
ele não estaria relacionado, necessariamente, a um atributo negativo que algum
indivíduo possa possuir. Segundo o autor, tal conceito surge das relações sociais
entre os indivíduos estigmatizados e aqueles considerados “normais”6, isto é,
aqueles que se enquadram dentro das expectativas sociais. Desta forma, ele
ressalta o caráter interacional do estigma, uma vez que é socioconstruído. Sobre
isso, o autor assinala que
O termo estigma, portanto, será usado em referência a um atributo profundamente
depreciativo, mas o que é preciso, na realidade, é uma linguagem de relações e
não de atributos. Um atributo que estigmatiza alguém pode confirmar a
normalidade de outrem, portanto ele não é em si mesmo, nem honroso e nem
desonroso (Goffman, 2013[1988] p.13).
5 Alinho-me ao conceito de Barcelos (2006 p.18), no qual crenças são “uma forma de pensamento,
como construções da realidade, maneiras de ver e perceber o mundo e seus fenômenos, co-
construídas em nossas experiências e resultantes de um processo interativo de interpretação e
(re)significação. Como tal, crenças são sociais (mas também individuais), dinâmicas, contextuais e
paradoxais”. 6 Goffman (2013[1988]p.14) utiliza o termo “normal” para se referir aos não estigmatizados. Em
suas palavras, “nós e os que não se afastam negativamente das expectativas particulares em
questão”.
40
Em relação a essa noção, o autor ainda destaca que “a sociedade estabelece
os meios de categorizar as pessoas e o total de atributos considerados como
comuns e naturais para os membros de cada uma dessas categorias” (ibid, p.11).
Desta forma, ao conhecermos um indivíduo, utilizamos o nosso conhecimento
prévio, i.e., tudo o que já nos foi dito e tudo que vivenciamos para enquadrá-lo em
um determinado grupo.
É a partir dessa nossa primeira impressão, baseada em nossas expectativas
sociais, que podemos apurar se aquela pessoa possui alguma marca desviante, ou
seja, pouco desejada em relação as nossas crenças ou não. Assim, ao conferir aos
indivíduos características de acordo com as nossas regras e perspectivas,
concedemos-lhes uma identidade social.
Goffman (2013[1988] p.12) diferencia identidade social virtual de
identidade social real. Se identidade social virtual está relacionada aos padrões
normativos de uma sociedade, i.e., aos atributos esperados para que um indivíduo
pertença a uma determinada categoria a qual ele representa, o autor afirma que a
identidade social real é aquela que o indivíduo, como ator social, “na realidade,
prova possuir” (idem.). Desta forma, o autor salienta que em interação os
indivíduos podem ou não apresentar esses atributos. Portanto, é desta oposição
entre as identidades sociais virtual e real que se manifesta o estigma, uma vez que
é entre o estereótipo desejável e as particularidades que o diferencia que o sujeito
torna-se
uma pessoa estragada e diminuída. Tal característica é um estigma, especialmente
quando o seu efeito de descrédito é muito grande - algumas vezes ele também é
considerado um defeito, uma fraqueza, uma desvantagem - e constitui uma
discrepância específica entre a identidade social virtual e a identidade social real
(Goffman, 2013[1988] p.12).
Em síntese, conforme salienta Biar (2012, p.50),
De forma mais elaborada, a ideia básica é que, quando estamos em uma situação
em co-presença, prevemos virtualmente certos atributos que comporiam a
identidade social de nossos pares. Transformamos, então, essas pré-concepções
em expectativas normativas sobre como o indivíduo que está a nossa frente
deveria ser ou agir. Essas expectativas, entretanto, precisam ainda ser
confrontadas com aquilo que é atualizado na interação: os atributos efetivamente
ali reconhecíveis. Quando há uma discrepância entre o “virtual” e o “atual”, tem-
se a constituição do estigma, em geral, identificado por um atributo
41
profundamente depreciativo; algo que possa ser considerado um defeito, uma
fraqueza, uma desvantagem. Em resumo, estigma seria o resultado de uma tensão
entre atributo e estereótipo.
Além dessa distinção entre identidades sociais virtual e real, Goffman
postula que o termo estigma está relacionado a uma dupla perspectiva. Assim,
também apresenta duas definições sobre os indivíduos estigmatizados: os
desacreditados e os desacreditáveis. Os primeiros seriam aqueles que assumem
que “a sua característica distintiva já é conhecida ou é imediatamente evidente”
(ibid, p.14), tais como as deformidades físicas, por exemplo. Já a segunda
perspectiva, a dos desacreditáveis, se refere aos indivíduos cujo atributo
estigmatizante “não é nem conhecida pelos presentes, nem imediatamente
perceptível por eles” (idem.), o que torna possível que em interação essas marcas
possam ser ocultadas. São exemplos de indivíduos desacreditáveis os
desempregados, os viciados, os homossexuais.
Ao considerar as noções debatidas por Goffman, observo que, dentro do
contexto no qual esta pesquisa acontece, as tensões entre os “normais” e os
estigmatizados também fica evidente. É comum ouvir, em discursos que se
referem à escola ou às relações dos sujeitos da comunidade escolar, características
que os categorizem de acordo com o que é esperado pelo senso comum. Dessa
maneira, torna-se habitual considerar que os alunos são aqueles que estão na
escola para aprender e o professor é aquele que os ensina. Contudo, essa
classificação prévia das identidades sociais ignora a individualidade dos sujeitos e
parece surgir a partir de entendimentos particulares sobre o que é ser aluno e
professor.
De acordo com o que é adequado à escola, para que o aluno não se
enquadre em categorias de estigmatização, ele deve ser reconhecido por ser
estudioso, bem comportado, esforçado, inteligente, por exemplo. Assim como
seus professores devem ser preparados, dinâmicos, atenciosos, aqueles que não
podem errar.
No entanto, quando algum aluno ou professor apresenta alguma qualidade
que não vá ao encontro do que é esperado pela sociedade, eles acabam sendo
inseridos na condição de desacreditáveis, incapazes de pertencer àquele grupo ou
de exercer aquela função.
42
Essa discussão torna-se relevante para a presente pesquisa, uma vez que,
desde os meus primeiros encontros com a turma 1001, pude perceber que aquela
turma era marcada por atributos depreciativos. Isso acontecia porque,
diferentemente das outras quatro turmas de 1º ano do Ensino Médio, ela era
formada por alunos que concluíram o Ensino Fundamental no sistema regular, isto
é, em nove anos, alunos advindos do Programa Autonomia e alunos que estavam
cursando novamente a primeira série do Ensino Médio.7
Assim, era comum ouvir dos professores dessa turma, da direção da escola
(que chegou a pedir que fosse realizado um trabalho diferenciado com esses
estudantes), das outras turmas e dos próprios alunos da 1001 características que os
diferenciavam das turmas consideradas “normais”. Porém, cabe aqui ressaltar que
essa distinção da turma 1001 em relação às demais ocorria de forma mais
acentuada devido a parte dela ser formada pelos alunos do Programa Autonomia,
que, por participarem do programa de aceleração de estudos, na tentativa de evitar
o fracasso escolar, já eram categorizados pela comunidade escolar como
incapazes.
Sempre busquei olhar para aquele grupo como uma turma, mesmo
reconhecendo as peculiaridades da turma como um todo e das demais
comunidades de prática (cf.2.2) daquele contexto, apesar de perceber que o
estigma em relação aos alunos do Programa Autonomia era perceptível a cada
aula, já que
Quando normais e estigmatizados realmente se encontram na presença imediata
uns dos outros, especialmente quando tentam manter uma conversação, ocorre
uma das cenas fundamentais da sociologia porque, em muitos casos, esses
momentos serão aqueles em que ambos os lados enfrentarão as causas e efeitos
do estigma (ibid. p. 23).
Logo, a aula era um dos momentos de “contato misto” 8, de encontro entre
os alunos, suas idiossincrasias e eu. Era em interação que coconstruíamos e
(des)construíamos os estigmas que emergiam nesses encontros. Desta forma, era
em interação que buscávamos sustentar nossa identidade social real, procurando
7 No próximo capítulo, apresento o contexto da pesquisa de forma mais detalhada. 8 Nas palavras de Goffman (2013 [1988] p.22) “os momentos em que os estigmatizados e os
normais estão na mesma “situação social”, ou seja , na presença física imediata um do outro, quer
durante uma conversa, quer na mera presença simultânea em uma reunião informal”
43
minimizar os conflitos que pudessem surgir. Portanto, igualmente, construíamos
nossa face, outro conceito proposto por Goffman (1955) e definido pelo autor
como
O valor social positivo que uma pessoa efetivamente reclama para si mesma
através daquilo que os outros pressupõem ser a linha por ela tomada durante um
contato específico. Face é uma imagem do self delineada em termos de atributos
sociais aprovados (Goffman, [1955] 1980, p.76).
O autor ainda postula que, quando o indivíduo está sob uma orientação
diferente da esperada e percebe que está fora da face, esta pode se sentir
“envergonhada ou inferior pelo que aconteceu à atividade por culpa sua ou pelo
que pode acontecer à sua reputação como participante” (ibdem, p.79).
Por isso, faz-se necessário recorrer também ao conceito de Self, já que
ambos estão interligados. O autor (1959), ao comparar a vida cotidiana das
pessoas a performances teatrais, sinaliza que, em encontros face a face, os
indivíduos tendem a controlar suas ações a fim de persuadir o outro sobre a
imagem que este terá sobre ele. Assim, a partir de sua projeção em interação,
buscamos o tempo todo deixar impressões sobre as quais gostaríamos de ser
lembrados. Do mesmo modo, nossos ouvintes também tentam elaborar
entendimentos sobre nós.
A respeito do conceito de Self, Pereira (2002, p.16) nos lembra que
O que nós somos (ou acreditamos ser) advém não apenas de processos sociais que
operam a nível de instituições sociais (por exemplo a família, a escola, o trabalho)
mas de processos sociais embutidos nas situações, ocasiões, encontros e rituais do
dia a dia. Tais processos de micronível ajudam-nos a organizar e dar sentido aos
nossos comportamentos do dia a dia e ajudam a nos prover o sentimento do self.
Com relação à comparação da vida cotidiana como uma peça teatral,
Goffman salienta que, assim como a performance teatral, nas interações que
ocorrem na região que denomina como fachada, os atores, i.e, os indivíduos que
estão à frente de sua plateia, ressaltam as impressões que desejam que os outros
tenham sobre eles, ou seja, os aspectos positivos do self.
Já a atuação nos bastidores revela o que os indivíduos pensam sobre si
mesmos. Desta forma, Goffman reconhece que, assim como em uma peça teatral,
os indivíduos podem assumir diferentes papéis em interação, podendo ser
44
espectadores ou atores. Além disso, quando estão no papel de atores, tentarão ao
máximo ressaltar sua face positiva, guiando sua audiência para a mesma
perspectiva, ou seja, para que sejam aceitos de forma favorável e do jeito que
preferem.
Acredito que, nos encontros mistos entre os alunos da turma 1001 e eu,
pudemos apreciar tanto ocasiões de ameaça quanto de proteção à face. Uma vez
que se considerarmos que os rótulos sobre os estigmatizados são passíveis de
mudança ao longo das interações, o trabalho de face surge como uma estratégia de
defesa na qual tanto eu quanto os alunos podemos nos valer para “salvar a nossa
face”, assim como para “salvar a face dos outros” (Pereira, 2002, p.16). Na
tentativa de (re)estabelecer o equilíbrio dentro das interações, evitando assim, que
conflitos possam surgir.
Desta forma, uma vez que um dos objetivos deste trabalho é refletir sobre
a vida que vivemos na 1001, não poderia desconsiderar os rótulos que emergem
em nossas interações, já que para entender um pouco mais sobre o que era esse
grupo, eles se tornam relevantes, mesmo que, como Goffman, eu creia que eles
sejam instáveis. Para tanto, ao considerar a importância de olharmos com cuidado
para o que acontece no “aqui e agora” de nossas vidas, apresento, na subseção a
seguir, algumas considerações sobre o trabalho de face.
2.3.1. Processo de elaboração de face
A todo instante somos inseridos ou nos inserimos em encontros sociais,
característica inerente ao mundo em que vivemos. Estamos a todo o momento,
seja em encontros face a face ou não, tentando atender a uma expectativa do que
se considera padrão nesses encontros. Logo, nossos atos verbais e não verbais
buscam atender à expectativa de nossos interlocutores.
Igualmente, eles também expressam e avaliam a situação em que estamos
inseridos. Goffman (1980, p.76) postula que a cada encontro social tentamos
seguir uma linha, isto é, buscamos atender às expectativas de nossos
interlocutores.
45
Goffman (1980, p.76-77) define face como o valor social positivo que uma
pessoa clama para si, por meio daquilo que os interlocutores presumem ser a linha
seguida por ela em interação, isto é,
face é uma imagem do Self delineada em termos e atributos sociais aprovados –
embora se trate de uma imagem que pode ser partilhada por outros, como quando a
pessoa consegue fazer uma boa exibição profissional ou religiosa fazendo uma boa
exibição para si mesma(ibid).
Portanto, as pessoas buscam, por meio dos processos de elaboração de face,
manter a harmonia e o equilíbrio das interações nas quais estão inseridas,
permanecendo na face esperada, uma vez que qualquer desequilíbrio pode
configurar uma ameaça à face construída no encontro. Acerca disso, cabe salientar
que, para o pesquisador (ibid.p.78), face é algo que se localiza nos eventos
interativos e se manifesta ao longo dos encontros, de acordo com a maneira pela
qual é interpretada pelos participantes das interações.
Isto posto, ainda segundo Goffman (ibid. p. 79), diz-se que se está na face
certa quando ocorre a aprovação dos participantes da interação sobre a maneira
pela qual os interlocutores se apresentam, o que lhes traz segurança e alívio.
Porém, o evento torna-se expressivo quando uma pessoa está na “face errada” ou
“fora da face”, conforme postula o autor. Esta situação se destaca, pois pode fazer
com que as pessoas se sintam envergonhadas, já que “estar na face errada” pode
significar estar em desacordo com os demais participantes da interação.
Portanto, o processo de elaboração de face ou, simplesmente, o trabalho de
faceé uma ferramenta social que nos auxilia nas práticas interacionais do dia a dia,
visto que é nas relações sociais que faces aprovadas são ratificadas e as
reprovadas são preteridas.
Ainda sobre o processo de elaboração de face, Goffman (ibid. p.84) destaca
que ele pode ocorrer a partir de dois processos: o processo de evitação e o
processo corretivo. O processo de evitação consiste em evitar contato com o
interlocutor, na tentativa de prevenir ameaças à face. Mudanças de assunto e
preferência por não contar/dizer qualquer detalhe de algum acontecimento, na
tentativa de se precaver de possíveis ameaças e desconfianças acerca da linha
seguida pelo falante,são exemplos desse processo.
46
No processo corretivo, a possível ameaça à face recebe atenção dos
interagentes, pois pode salientar uma quebra da linha de conduta seguida pelo
falante. Assim, ele se esforçará ao máximo para amenizar esta tensão, a fim de
corrigir os efeitos da possível ameaça. Destaco, porém, que esse processo também
pode ser realizado pelos interlocutores, uma vez que, ao perceberem que o falante
mostra-se na linha errada, isto é, em desacordo com a linha escolhida por ele para
seguir, eles podem se valer desta estratégia para denunciar que o falante encontra-
se na face errada.
Portanto, uma vez que, em minha pesquisa de mestrado, observo e analiso
como utilizamos a linguagem em interação para nos entendermos enquanto
aprendizes/praticantes exploratórios/ professora e alunos, valho-me do conceito de
elaboração de facepara melhor compreender como nos afiliamos, construindo ou
desconstruindo estigmas sobre o que vivemos em sala de aula, sobre a pequena
comunidade de prática de alunos oriundos do Programa Autonomia e sobre nós
mesmos.
2.4. Sala de aula e interação
Como já mencionei nas seções anteriores, a linguagem, sobretudo, o
discurso, tem papel fundamental nas relações em sala de aula. Nesta seção, me
dedicarei a apontar os aparatos teóricos que me ajudaram a olhar com mais
cuidado para o que vivemos nesse cenário. Logo, apresentarei a priori algumas
considerações acerca das pesquisas que levam em consideração a interação em
sala de aula, bem como sua importância para entendermos melhor esse contexto a
partir das lentes da Análise da Conversa Etnometodológica. Depois, aproveito
para discutir, mesmo que de forma breve, alguns construtos da Sociolinguística
Interacional, que também se tornam relevantes para este estudo.
2.4.1. A Análise da Conversa Etnometodológica
A Análise da Conversa Etnometodológica (doravante ACE) surge a partir
dos estudos de Garfinkel (1967), que questionou os métodos utilizados àquela
época para investigar a vida em sociedade. No entanto, é somente na década
47
seguinte que esta tendência advinda dos estudos sociológicos passa a ganhar
notoriedade, a partir do reconhecimento de tais questionamentos pelos analistas da
conversa, que buscaram respondê-los a partir das primeiras noções básicas a
respeito de como deveriam ser observados os dados.
Dentre estes analistas, estão Sacks, Schegloff e Jefferson, que, em
(2003[1974]), descrevem a sistemática de tomada de turnos nas conversas. Essa
sistematização evidenciou que a fala em interação acontece de forma organizada,
assim como os falantes a organizam a fim de alcançarem uma meta fim, i.e, seja
para projetarem suas identidades, para convencer alguém, para dar resposta a uma
pergunta, por exemplo.
No Brasil, os estudos em ACE, sobretudo sobre as interações em sala de
aula, passaram a ganhar destaque a partir das pesquisas de Paulo Gago e Garcez.
Garcez (2006), por exemplo, retoma a noção de organização de aula proposta por
Sinclair e Coulthard (1975), na qual os autores postulam que as aulas tendem a
seguir uma organização padrão. Para esta organização padrão, utilizam a sigla
IRA – Iniciação – Resposta – Avaliação. Garcez, assim como Sinclair e
Coulthard, observa que as aulas costumam seguir uma sequência previamente
planejada pelo professor, quando este quer garantir que os objetivos daquela aula,
em relação às informações que deseja compartilhar com os alunos, sejam por eles
compreendidas. Essa estrutura ajuda a reforçar a autoridade do professor em
relação aos alunos uma vez que “reforça a hierarquia entre os participantes”
(Garcez, 2006, p.69).
Desse modo, o trabalho desenvolvido por Garcez insere-se no que Drew e
Heritage (1992, p.22) delineiam como fala em interação institucional, posto que
“a interação em institucional envolve uma orientação por parte de pelo menos um
dos interagentes para alguma meta, tarefa ou identidade fulcral (ou o conjunto
delas) convencionalmente associada com a instituição em questão”.
Assim, a conversa institucional distingue-se da conversa cotidiana, uma
vez que naquelas as identidades institucionais, bem como as dos participantes,
tornam-se relevantes, para que uma meta seja atingida.
Nesta dissertação, mesmo que em alguns momentos as conversas sejam
semelhantes às conversas do cotidiano, cabe ressaltar que elas aconteceram em
contexto institucional, na escola onde trabalho e na qual os alunos da 1001
estudam. Portanto, para melhor compreendermos como lidamos com as nossas
48
questões, por instantes, será necessário retomar nossos papéis sociais dentro
daquela instituição. Sendo assim, apresento, a seguir, algumas contribuições da
ACE para o entendimento das análises de fala institucional apresentadas em
minha seção de análise.
2.4.1.1. A noção de piso conversacional e estrutura de participação
A noção de piso conversacional apresenta-se de forma relevante para a
análise deste trabalho, uma vez que ela está relacionada à forma de “engajar-se em
uma conversa, obter um turno, ter o direito à palavra e a ser ouvido, ser ratificado
como participante legítimo e até mesmo como membro da comunidade sala de
aula” (Schulz, 2007, p.35).
Ainda segundo Schulz (2007 p.32),“as diferentes formas de participar
envolvem a tomada de turno e o acesso ao piso, ou seja, ser ouvido e estar no
mesmo foco de atenção que os demais participantes”. Assim, em interação, os
participantes se monitoram a todo instante a fim de sustentarem, ao longo do
encontro interacional e em um esforço coletivo, suas ações de forma coordenada,
i.e., orientada pelos diferentes participantes para um mesmo ponto.
Sobre a ideia de piso conversacional, Philips (2001) aponta, porém, que o
aspecto interacional das estruturas de participação são passíveis de mudança, i.e,
segundo o autor, dependendo dos momentos dos encontros em que nos
engajamos, nossos papéis podem mudar de acordo com as orientações conjuntas
que os participantes dão ao longo do evento. Desta forma, isto nos remete à
distinção entre ouvintes e falantes, proposta por Goffman (2013 [1979]), que
aponta que “no curso da interação, ocorrerá o intercâmbio dos papéis de falante e
ouvinte, com vistas à manutenção de um formato afirmação/resposta, sendo que o
direito legitimado de falar neste instante – a palavra – vai e vem” (ibid. p. 114).
A respeito desta distinção, Goffman afirma que as diversas noções de
falantes e ouvintes funcionam como indícios da negociação socialmente
construída dos diferentes papéis que os participantes podem assumir. Dentro dessa
perspectiva, para Goffman (2013[1979] p118.), ouvintes ratificados são aqueles
49
cujas falas são direcionadas em interação. Diferentemente, os não ratificados
podem ocorrer de duas formas. Nas palavras do autor:
Podemos fazê-lo propositalmente, resultando da “intromissão” (escutar às
escondidas, por atrás da porta, espichar a orelha), ou a oportunidade ocorrer de
forma inadvertida e não intencional, como quando “ouvimos por acaso”. Em
suma, um participante ratificado pode não estar escutando, e alguém que esteja
escutando pode não ser um participante ratificado.
Em relação à noção de falante, Goffman (ibid. p.133) salienta três
distinções. A primeira refere-se ao falante como animador, cujo papel seria
apenas analítico. Já o falante autor é aquele que “selecionou os sentimentos que
estão sendo expressos e as palavras nas quais eles estão codificados” (ibid, p.
114). Já o falante responsável surge como aquele “cujas crenças são verbalizadas,
alguém que está comprometido com o que as palavras expressam” (idem.).
Neste trabalho, tais noções tornam-se relevantes uma vez que, a partir
delas, é possível mapear como nossas relações se estabelecem em interação, já
que posso observar se as falas foram provocadas partindo da minha seleção de um
ouvinte ratificado ou não, assim como posso levar em consideração o que os
alunos que não se expressam verbalmente também têm a me mostrar.
2.4.2. Estudos de Narrativa
Como um dos focos deste estudo recai sobre o sentimento de
pertencimento a um grupo, revelado através do discurso, o estudo de narrativas
faz-se necessário, visto que, através delas, é possível retomar como os
participantes desta pesquisa, isto é, eu, professora-pesquisadora em formação
continuada, e meus alunos, percebemos e vivemos a qualidade de vida da turma, e
sentimos esse processo de coconstrução de estigmas e afeto. Digo isto alinhada à
Bastos (2005) , que, ao discorrer sobre a importância das narrativas, destaca que
elas estão presentes em nosso cotidiano e nos auxilia no entendimento acerca do
mundo que nos cerca. Além disso, podemos revelar nossas crenças, emoções e
avaliações sobre nós mesmos e sobre o outro, através de narrativas, nos
construindo, assim, como sujeitos e (re)construindo a nossa realidade.
50
Podemos, desta forma, compreender o relato da narrativa mais como uma
construção social do que como uma representação do que aconteceu, no sentido
de que construímos as estórias que contamos em função da situação de
comunicação (quando, onde e para quem contamos), de filtros afetivos e
culturais, e do que estamos fazendo ao contar uma história. (Bastos, 2005, p.80)
Moraes Bezerra (2007), por sua vez, salienta que “as estórias que contamos
não são contadas ingenuamente”. Logo, as narrativas que geramos em interação
não são construídas apenas para o relato de experiências, já que, ao narrar,
também construímos significados sobre o que foi vivido. Assim, cada vez que a
narrativa for (re)contada, ela adquirirá novas interpretações sobre a narrativa em
si, sobre a pessoa que conta a história e sobre seus interlocutores.
2.4.2.1. A contribuição laboviana
Pioneiro nos estudos de narrativas, Labov postula que a narrativa é “um
método de recapitular experiências passadas” (ibid, 1972). Segundo ele, portanto,
toda narrativa é estruturada em uma sequência temporal, isto é, possui orações
narrativas com verbos no passado. Além disso, ela deve ter um ponto e ser
contável (ibid.).
Bastos (2004, p.19) destaca que o ponto da narrativa é “o motivo pela qual
ela é contada”, o motivo pela qual ela existe. Labov (idem) ainda destaca que elas
devem se referir à algo extraordinário, que a tornaria contável. Desta forma, ela
assevera outra característica importante para que haja uma narrativa: a
reportabilidade. Portanto, para que possamos reconhecer uma narrativa, segundo
aos postulados labovianos, devemos observar se ela tem um ponto, ou seja, uma
razão para que seja contada, se ela se possui sequencialidade e a
reportabilidade.
Labov foi criticado pelos teóricos que o sucederam, pois, em seus estudos,
interessava-lhe mais a estrutura da narrativa do que o conteúdo em si. Contudo,
suas contribuições acerca da estrutura das mesmas são extremamente relevantes e
auxiliam os estudiosos que o sucederam.
A seguir, apresento os elementos básicos da estrutura narrativa propostos
por Labov, conforme Bastos (2005, p. 75-76apud Brandão, 2011, p.4):
51
Resumo – aparece no início da narração sumarizando a narrativa;
Orientação – Identifica o tempo, o espaço, as pessoas envolvidas e a
situação em que estão envolvidas na narrativa. Situa-se, principalmente, no
início das narrativas, porém, podem ocorrer em outros momentos;
Ação complicadora – Sequência de orações narrativas construídas no
pretérito perfeito. É o único elemento obrigatório em uma narrativa;
Avaliação – Para Bastos, o mais complexo e o mais fascinante elemento da
estrutura narrativa, pois indica o seu ponto –carga emocional e dramática.
Pode ocorrer de duas formas: ser externa – quando o fluxo da narrativa é
suspenso pelo narrador a fim de relatar como este se sentiu durante
determinado momento do evento narrado –, ou interna/encaixada – quando
o fluxo da narrativa é mantido, mas a avaliação é feita através de alguns
recursos discursivos, tais como: diminuição ou aceleração do ritmo de fala,
repetições, alongamentos de vogais, entre outros;
Coda – Traz o narrador e oouvinte para o presente e marca o fim da
narrativa.
Além das contribuições de Labov, outros autores se preocuparam em
dedicar-se aos estudos de narrativas. Dentre esses estudos, destaca-se o de
Charlotte Linde, sobre o qual discorro a seguir.
2.4.2.2. As contribuições de Linde
Sem desconsiderar os constructos labovianos, Linde (1993) também
contribui para os estudos de narrativas, nos apresentando o conceito de histórias
de vida. Linde (ibid, p. 11) postula esta noção como “uma unidade oral que é
contada em muitas ocasiões. Convencionalmente, inclui certos tipos de eventos
marcantes tais como a escolha da profissão, casamento, divórcio ou conversão
religiosa ou ideológica”9. A autora ainda o define como um conjunto coerente de
narrativas formado por unidades discursivas.
Além disso, a pesquisadora discute outro conceito importante, o conceito
de coerência. Segundo ela (ibid, p.12), para que um discurso possa ser entendido
pelos ouvintes, faz-se necessário que falante e ouvinte negociem seus
significados para que haja uma construção conjunta de sentidos, evitando, assim,
9Minha tradução para a seguinte citação original: “In summary a life story is an oral unit that is
told over many occasions. Conventionally, it includes certain kinds of landmark events, such as
choice of profession, marriage, divorce and religious or ideological conversion of any”. (Linde,
1993, p. 11)
52
possíveis discrepâncias entre o que é projetado pelo falante e o que é
compreendido pelos seus interlocutores.
Retomando a discussão sobre o conceito de histórias de vida, outra
contribuição feita por Linde é o acréscimo de duas outras noções acerca da
estrutura das histórias de vida: a crônica e a explanação/explicação.
Por crônica, a autora compreende o relato de eventos encadeados
temporalmente. O que difere a crônica da narrativa laboviana são seus elementos
constitutivos, já que, na primeira, o resumo, a orientação e a coda não aparecem.
Contudo, a crônica, assim como a narrativa, geralmente, possui um ponto
avaliativo ou várias seções avaliativas, não necessariamente referentes à toda a
unidade narrativa.
Já por explanação/explicação (ibid. p. 94), a autora concebe unidades do
discurso compostas por uma afirmação que ocorre seguida por evidências lógicas
que tentam explicá-la, na tentativa de conferir coerência à história de vida.
Em seus estudos, Linde também contribui para a noção de avaliação. Esse
conceito, de acordo com a autora (1997, p.152), se refere às normas sociais. Em
outras palavras, a avaliação produzida por um falante está sempre vinculada a uma
forma de julgamento da vida social, seja sobre uma pessoa ou um acontecimento.
Assim, como Linde entende a avaliação como uma prática social, esta se torna a
parte mais importante da narrativa para a compreensão da relação das dimensões
linguísticas e sociais.
Além das contribuições dos trabalhos de Linde (1993; 1997), outros
estudos contemporâneos revisam os postulados de Labov, ampliando a visão
acerca dos componentes constitutivos e as noções acerca do que seja a narrativa.
Destaco, porém, que utilizo as contribuições de Labov, no presente estudo,
contudo, não levo apenas em consideração a presença, ausência ou maior
ocorrência de determinado componente para a construção das narrativas, mas
observo como estes elementos podem ajudar a mim e aos praticantes exploratórios
na busca por entendimentos sobre nossas questões intrigantes, através do discurso
produzido por nós em interação.
2.4.2.3. Discurso e coconstrução de identidades
53
O entendimento de identidade que fundamenta este estudo alinha-se à
perspectiva de socioconstrução, pois, assim como Moita Lopes (2003), “entendo
as identidades sociais como construções sociais e, portanto, discursivas, visto que
aprendemos a ser quem somos nos encontros interacionais de todo o dia”. Além
disso, acredito que seja através da análise das práticas sociais que podemos
coconstruir significados sobre nós mesmos e sobre o outro.
Assim, ao agirmos socialmente, carregamos alguns traços identitários, tais
como: idade, religião, raça, classe social, que ajudam a nos definir nas diferentes
interações que participamos, uma vez que as identidades não são estruturas fixas e
contínuas (Mishler, 1999, p.11), mas sim coconstruídas no discurso, já que todo
discurso pressupõe um interlocutor (Bakhtin, 1981 apud Moita Lopes, 2001, p.58)
e é localizado sócio-historicamente.
Entender a fragmentação das identidades significa assumi-las dentro de
sua multiplicidade e de seu caráter performativo, ou seja, as ações do sujeito pós-
moderno, em sociedade, evidenciam esta fragmentação e a existência de um “eu
evidentemente performativo” (Hall [2000]2002, p.103). Contudo, é no contexto
no qual as identidades emergem que as performances identitárias são negociadas.
Neste sentido, trago a perspectiva de Bastos e Oliveira (2006) em relação à
identidade. Segundo Bastos e Oliveira (ibid.), a identidade é:
Um ato performativo realizado quando as pessoas expõem quem são a cada
momento em interações sociais específicas. [...] nós a vemos também como um
processo negociado de exposição e de interpretação de posições sociais,
afiliações, status e outras categorias sociais.
Em outras palavras, nossas múltiplas identidades são acionadas e
negociadas nas interações, sendo validadas ou não. É necessário analisar o “aqui e
agora”, “o que está acontecendo” (Goffman, 1974) na interação, para entender os
processos interacionais e, decorrente disso, tentar mapear as identidades
projetadas, para compreendero que cada participante faz discursivamente, bem
como as possíveis motivações interacionais que os movem na interação.
Os estudos de narrativa nos auxiliam a compreender o processo de
construção identitária. Segundo Bruner (1997),
O que as pessoas fazem nas narrativas nunca é por acaso, nem estritamente
determinado por causa e efeito; o que elas fazem é motivado por crenças, desejos,
54
teorias, valores e outros “estados intencionais”. As ações narrativas implicam
estados intencionais.
Na verdade, a ação narrativa não se constitui apenas no mundo da
narrativa. Ela entrelaça o mundo da narração e o da narrativa, trazendo
implicações interacionais, bem como a construção de identidades sociais no
mundo da estória. Como assevera Moita Lopes (2006, p. 294), “narrar é uma
forma de fazer coisas em relação a pessoas no mundo da interação e no contexto
interacional”.
Além disso, neste trabalho, por exemplo, utilizarei a narrativa como
ferramenta teórica, também inspirada pelo trabalho de Fabrício e Bastos (2009, p.
46), pois as autoras entendem que “as identidades não são autônomas, uma vez
que adquirem sentido em relação a outras identidades, em processos que emergem
na interação social”.
2.4.3. A Teoria da Avaliatividade
Halliday (1994), para postular conceitos fundamentais à Linguística
Sistêmico Funcional, salienta que a linguagem se subdivide em três metafunções:
metafunção ideacional, metafunção interpessoal e metafunção textual.
A primeira está relacionada ao contexto de campo, isto é, está relacionada
à expressão das percepções sobre o mundo no momento em que a língua é
utilizada. A segunda refere-se aos papéis sociais dos sujeitos e suas relações em
interação, assim, esta metafunção está relacionada ao julgamento, opiniões e
atitudes do falante sobre seus interlocutores e sobre o mundo que o cerca.
A metafunção textual, por sua vez, está relacionada à forma de
organização do discurso, do texto em si. Logo, refere-se à linguagem utilizada
para a construção de significados e da mensagem.
É a partir das contribuições da Linguística Sistêmico-Funcional e,
principalmente, dos conceitos supracitados que surge a Teoria da Avaliatividade.
Esse desdobramento da Linguística Sistêmico-Funcional está relacionado à
metafunção interpessoal, já que ela nos auxilia a compreender como os sujeitos
posicionam-se discursivamente em relação ao outro e ao mundo. Dessa forma, ela
55
está relacionada às avaliações geradas e negociadas nas interações em que o
escritor/falante está envolvido.
Martin (2001) salienta que a Teoria da Avaliatividade é um recurso
semântico que pode ser utilizado pelos sujeitos em interação, para negociar
emoções, julgamentos e apreciações. Desse modo, Martin e White (2005)
destacam que essa teoria se subdivide em três sistemas inter-relacionados, a saber,
sistema da atitude, sistema do engajamento e sistema da gradação.
O sistema da atitudese refere à maneira emque as atitudes do autor
refletem nos textos, isto é, refere-se à forma como os sentimentos, emoções,
avaliações positivas e negativas de comportamentos são expressos pelo
falante/escritor.
O sistema de engajamentonos remete ao conceito de polifonia
bakhtiniano, uma vez que estesistema “lida com a fonte de atitudes e o jogo de
vozes em torno de opiniões no discurso”10 (Martin e White, 2005, p.35). Logo,
está relacionado a como nos afiliamos ou nos distanciamos, discursivamente, em
relação aos diferentes pontos de vista lançados em interação.
O sistema da gradação, por sua vez, está relacionado ao aumento ou
diminuição no grau das avaliações, isto é, permite graduar entre a força e o foco
das avaliações.
Como esta pesquisa de mestrado objetiva buscar entendimentos sobre a
qualidade de vida de uma turma de primeiro ano do ensino médio, percebo que,
em muitos instantes, ao interagir com os alunos, salientamos como estamos nos
sentindo ou como nos sentimos em determinada situação ou, ainda, acabamos
destacando como avaliamos alguma determinada atitude nossa ou de outra pessoa.
Portanto, dedicarei maior atenção, a seguir, ao sistema de atitude.
2.4.3.1. O sistema de atitude e a instanciação do afeto
Martin e Rose (2003) destacam que o sistema da atitude se divide em três
subsistemas: afeto, julgamento e apreciação. O subsistema de afeto relaciona-se
às emoções e sentimentos; o de julgamento, ao posicionamento ético dos
falantes/escritores; e o da apreciação, aos conceitos estéticos.
10Minha tradução para a seguinte citação original: “Engagement deals with sourcing attitudes and
the play of voices around opinions in discourse”. (Martin e White, 2005, p. 35)
56
Como comentado anteriormente, já que, nos dados dessa pesquisa,
destacam-se as relações entre as pessoas e seus sentimentos, darei focoao
subsistema do afeto, nesta seção.
O subsistema de afeto está relacionado a sentimentos e emoções. Dessa
forma, a avaliação manifesta o grau de envolvimento emocional entre as pessoas,
os textos ou a situação em que estão inseridos, assim como pode servir para
designar e descrever qualidades de uma pessoa e/ou situação.
Este se divide em três categorias opositivas, que podem ser expressas em
nível lexical ao utilizarmos adjetivos, advérbios, verbos, nominalizações e
modalizações. São elas: felicidade/ infelicidade; segurança/insegurança e
satisfação/insatisfação.
A fim de melhor ilustrar como isso ocorre em interação, utilizarei, no
quadro a seguir, exemplos encontrados nos dados que foram gerados, durante a
pesquisa, e encontram-se na seção de análise dos dados:
Felicidade “A gente tinha uma professora de
matemática aqui na escola que ela era a
melhor professora de matemática da
escola”
“Mas a gente riu tanto da cara de
vocês”
Infelicidade “porque simplesmente pelo fato de
entrar dentro da sala o [professor] já
olhar assim “Autonomia - Autonomia”
“Isso era horrível”
Segurança “Agora que eu cheguei no primeiro
ano, agora dá tempo para eu recuperar”
“Agora eu vou falar, porque quando eu
falo o bagulho fica”
Insegurança “Eu vou ficar escrevendo um negócio
que eu sei que não vou conseguir
concluir?”
“Eu não sei quanto eu vou tirar agora
57
[nessa prova agora]”
Satisfação “Sabe aquela pessoa que é ridícula na
matéria ela fazia tirar nota boa e não é-
ela não dava nota não, ela realmente
ensinava mesmo”
Insatisfação “Por que na hora do intervalo dá suco e
no almoço não”
“Vocês falaram falaram, falaram
daquele negócio de preconceito mas
será que vocês também não tão
deixando?”
Quadro 1: Instanciações de afeto
Em suma, vimos que é em interação que os participantes constroem
significados sobre o que estão fazendo no “aqui e agora”, no momento em que a
interação acontece.
Isto posto, tendo apresentado as lentes que orientarão o meu olhar para a
análise dos dados gerados com meus alunos, encerro este capítulo e apresento, a
seguir, os aspectos metodológicos balizadores deste trabalho.
58
3. Metodologia e contexto de pesquisa
Embora não exista fórmula pronta para se aprender a pesquisar, é
importante, primeiro, considerar que não se trata de tarefa especial,
muito menos excepcional, porque é parte da vida.
Demo (2004)
O mundo não é. O mundo está sendo. Como subjetividade curiosa,
inteligente, interferidora na objetividade com que dialeticamente me
relaciono, meu papel no mundo não é só de quem constata o que
ocorre, mas também o de quem intervém como sujeito de ocorrências.
Não sou apenas objeto da História, mas seu sujeito igualmente.
Freire (1996, apud Moraes Bezerra, 2011, p. 94)
O objetivo principal deste capítulo é apresentar as orientações teórico-
metodológicas que norteiam o meu olhar à pesquisa desenvolvida junto aos meus
alunos durante o percurso da referida investigação. Ao longo deste capítulo
discutirei, primeiramente, acerca da natureza da pesquisa e como ela se
desenvolve dentro da perspectiva da Pesquisa do Praticante (“Practitioner
Research”). Depois, apresento o contexto da pesquisa, além de uma breve
descrição do Programa Autonomia, do processo de geração de dados e dos
procedimentos utilizados para a análise.
3.1. A pesquisa do Praticante e a natureza da pesquisa
O presente estudo está situado dentro da abordagem qualitativo-
interpretativista de pesquisa (Denzin e Lincoln,2006; André, 1995) e à luz dos
princípios da Prática Exploratória (Miller, 2001; Moraes Bezerra, 2007; Allwright
e Hanks, 2009, inter alia), a partir da perspectiva do paradigma da pesquisa do
praticante (cf. practitioner research) (Miller, 2001; Rodrigues, 2014; Ewald,
2015).
Como aponta Rodrigues (2014, p. 67), ao vincular sua pesquisa àquelas
que encontraram representação no meio acadêmico a partir desta perspectiva
metodológico-investigativa, tais como as teses de doutorado de Miller (2001) e
Moraes Bezerra (2007) e a dissertação de Nóbrega Kuschnir (2003), a autora
59
destaca que a Pesquisa do Praticante, como postura investigativa, encontra sua
importância no “desejo de entender a situação de ensino/aprendizagem”.
Desta forma, a autora retoma a proposição inicial de Allwright (2003,
p.137), a qual o autor postula que os professores podem investigar suas próprias
práticas, não necessitando de um pesquisador externo para determinar ou apontar
o que seria melhor ou o que deveria ser modificado em seus contextos de trabalho.
Logo, ao contrário das pesquisas cujo pesquisador faz uma intervenção e espera os
resultados obtidos para, por meio desta, poder avaliá-los, a Prática Exploratória
surge como uma forma de investigação que possibilita aos próprios professores
promoverem, junto aos seus alunos e aos demais envolvidos no processo de busca
por entendimentos de questões, engajamento coletivo em reflexões sobresuas
vidas dentro e/ou fora desses contextos.
Alinho-me a Ewald (2015), que, ao apresentar as motivações ético-
epistemológicas para o estabelecimento da Prática Exploratória como modalidade
de pesquisa do praticante, destaca as diferentes pesquisas que vêm sendo
desenvolvidas em trabalhos acadêmicos sob esse paradigma, não só no que se
refere à vida na escola, mas também em outros contextos profissionais, tais como
as dissertações de mestrado recentes de Vitoriano (2015), que buscou
entendimentos sobre o contexto socioeducativo; Melo (2015), que se debruçou
sobre questões de formação inicial a partir da participação de licenciandos de
letras no programa PIBID/CAPES e sobre sua formação continuada; e as teses de
doutorado de Souza (2016) e Moura (2016), ambas motivadas pelas suas atuações
em seus contextos profissionais. A primeira, psicóloga educacional, dedicou-se a
buscar entendimentos sobre o mal-estar apresentado por alunos encaminhados à
orientação psicológicajunto a suas professoras em reuniões de trabalho. Já a
segunda, dedicou-se a entender o processo de construção colaborativa de sua
pesquisa de doutorado junto a alguns alunos de uma universidade privada do Rio
de Janeiro em contexto virtual.
Assim, é possível perceber o caráter híbrido (Miller, 2012) da prática
investigativa desenvolvida em pesquisas à luz dos princípios da Prática
Exploratória, uma vez que, ao contrário de pesquisas que se desenvolvem dentro
da tradição positivista, cuja busca da verdade e resultados são o foco, a Prática
Exploratória apoiada em seus próprios pressupostos e aliada aos suportes teóricos
oferecidos por outras áreas do conhecimento – tais como ciências sociais,
60
antropologia, psicologia, educação –, apresenta-se dentro da natureza
interpretativista, já que o contexto e o processo por busca de entendimentos é feito
a partir de um olhar qualitativo ao contexto e a todos os envolvidos, i.e, um olhar
que “envolve uma abordagem naturalista, interpretativista, para o mundo, o que
significa que seus pesquisadores estudam as coisas em seus cenários naturais,
tentando entender, ou interpretar, os fenômenos em termos dos significados que as
pessoas a eles conferem” (Denzin e Lincoln, 2006, p.17), já que este modelo de
pesquisa caracteriza-se epistemologicamente por “uma preocupação em entender
o outro”. (Denzin e Lincoln, 2006, p. 15).
3.1.1. O pesquisador como praticante, agente e Bricoleur
Acredito que a pesquisa desenvolvida por mim e por meus alunos localiza-
se dentro da postura ético-inclusiva de ensinar, aprender e pesquisar da Prática
Exploratória, uma vez que buscamos entender o contexto ao qual estamos
inseridos de forma agentiva, atuando como praticantes (practitioners) no
“trabalho para entender” o que é ser aluno e professor de uma turma do primeiro
ano do Ensino Médio. Assim, apesar de ser a professora daquele grupo, não impus
que a pesquisa se realizasse, nem tampouco possuía uma agenda pré-determinada.
Nossas decisões foram negociadas em conjunto ao longo do processo de busca por
entendimentos, e a nossa participação ao longo das interações que surgiam dentro
das aulas ou em outros encontros era o que determinava como a pesquisa
prosseguiria.
Porém, apesar de reconhecer que a pesquisa tenha ganhado formato a
partir de nossas vivências ao longo deste período, reconheço o meu papel
bricoleur, posto que cabe a mim reunir e organizar, nesta dissertação, o que foi
vivido por nós. Desta forma, alinho-me ao posicionamento de Denzin e Lincoln
(2006, p.20):
O produto do trabalho do bricoleur interpretativo é uma bricolagem complexa
(que lembra uma colcha), uma colagem ou uma montagem reflexiva – um
conjunto de imagens e de representações mutáveis, interligadas. Essa estrutura
interpretativa é como uma colcha, um texto de performance, uma sequência de
representações que ligam as partes ao todo.
61
Portanto, ao entender que esta pesquisa se desenvolveu dentro de uma
perspectiva socioconstrucionista do discurso (Moita Lopes, 2001; 2003), cuja
realidade é socialmente construída nos e pelos discursos em que estamos
envolvidos, posiciono-me como um bricoleur interpretativo, já que entendo “que
a pesquisa é um processo interativo influenciado pela história pessoal, pela
biografia, pelo gênero, pela classe social, pela raça e pela etnicidade dele e
daquelas pessoas que fazem parte do cenário” (Denzin e Lincoln, 2006, p. 20),
como discutirei na subseção a seguir.
3.1.2. O cunho (auto)etnográfico
A pesquisa de cunho etnográfico (André, 2001) é uma abordagem de
investigação aliada à prática de pesquisa qualitativa. André (1995) conceitua
etnografia como “um tipo de pesquisa realizada por Antropólogos para estudar
uma cultura ou uma sociedade através da descrição” (Garcez e Schulz, 2015, p.
19).
Ainda de acordo com André (idem.), as pesquisas em contextos
educacionais deveriam ser consideradas de tipo etnográfico, já que uma das
características das pesquisas etnográficas é a longa permanência do pesquisador
em um mesmo local (campo). Além disso, as pesquisas no contexto escolar, em
especial, em sala de aula, contam com as dinâmicas instituídas pelas instituições
escolares e seus regimentos. Desta forma, acompanhar um mesmo grupo de
alunos, professores, ou outros membros da comunidade escolar por um longo
período torna-se mais difícil. Logo, faz-se necessário que os métodos utilizados
pelos pesquisadores em pesquisas educacionais sejam adaptados para que seja
possível olhar atentamente para as questões que possam emergir dentro deste
contexto.
Melo (2015) destaca em sua dissertação de mestrado a articulação possível
entre a Prática Exploratória e as pesquisas de cunho etnográfico ao afirmar que “a
Prática Exploratória como pesquisa educacional de cunho etnográfico valoriza o
instrumento humano no processo investigativo ao criar oportunidades de
mediação da geração dos dados da pesquisa entre os praticantes”. Sobre isto, a
62
autora cita Miller (2002 apud Moraes Bezerra, 2007) que destaca a Prática
Exploratória como uma prática investigativa autoetnográfica que
[...]promove uma profundidade em termos de entendimentos que falta a outras
abordagens investigativas. Nossa experiência tem mostrado que, quando os
praticantes percebem que podem trabalhar sobre suas práticas e de suas maneiras,
eles não apenas acham isso intelectual e emocionalmente gratificante, mas
também emancipatório dos modelos de aprendizagem de déficit.
Assim, no caso da pesquisa que aqui descrevo, ressalto o meu papel
enquanto mediadora do processo de pesquisa e busca de entendimentos,
procurando envolver a todos em nossas conversas exploratórias. Além disso, ao
fazê-lo, também ajudo a promover momentos de reflexões sobre o que vivemos na
escola, sobre nossas práticas cotidianas e sobre nós mesmos.
3.2. A cidade feita de giz: o contexto
Os dados deste trabalho foram gerados entre os meses de maio e novembro
de 2015 em uma escola pública da rede estadual de ensino, localizada na cidade
de Niterói, próximo às comunidades do Cubango e Bumba, que ainda se
recuperam das consequências de um grande deslizamento de terras provocado por
uma forte tempestade que atingiu a cidade em abril de 2010, ocasionando o
soterramento de casas que foram construídas em terreno irregular.
Atuo nesta escola como professora regente de Inglês e realizei este
trabalho, mais especificamente, na sala de aula de uma turma de primeiro ano do
Ensino Médio. A turma 1001, meus parceiros neste estudo, era composta por 27
alunos no início do ano letivo de 2015, dentro da faixa etária de 14 a 18 anos. Essa
turma era considerada por seus professores uma das piores da escola tanto em
relação à indisciplina, quanto em relação à assimilação de conteúdo. Além disso,
era formada por alunos que cursaram o Ensino Fundamental no sistema regular,
isto é, do 1º ao 9º ano; e por alunos que finalizaram o Ensino Fundamental II no
Programa Autonomia.
O livro didático adotado pela escola para a utilização no Ensino Médio é a
coleção High Up, da editora MacMillan. Além do livro didático, a escola
63
disponibiliza fotocópias, caso eu escolha utilizar algum material extra, tais como
atividades de leitura, por exemplo.
Para a realização das APPES (cf.cap 1), levei o meu próprio material,
cartolina, canetinhas, cola, tesouras, uma vez que esses materiais ficam sob
domínio dos professores de Artes.
3.2.1. O Programa Autonomia
O Programa Autonomia (doravante PA) é um programa de aceleração de
estudos realizado pela Secretaria Estadual de Educação em parceria com a
Fundação Roberto Marinho, cujo objetivo é corrigir a distorção idade/série,
proporcionando formação básica aos alunos, que por algum motivo, não
conseguiram progredir nos estudos. Porém, existem algumas diferenças em
relação ao ensino regular.
Os alunos que participam do Programa Autonomia estudam de segunda a
sexta-feira, com uma carga horária reduzida de quatro horas por dia. Além disso,
eles têm aula com apenas um professor, que utiliza a metodologia da Telessala11
para trabalhar com todas as disciplinas. Desta forma, eles finalizam o ensino
fundamental em dois anos, dividido em quatro módulos, sendo as disciplinas de
Língua Portuguesa e Matemática as únicas disciplinas comuns aos quatro
módulos. 12
Devido a este fato, o ingresso desses estudantes no Ensino Médio regular
causou estranhamento tanto aos alunos, que levaram certo tempo para se adaptar
ao novo sistema de ensino, quanto aos seus professores e outros colegas da turma.
Ressalto, aqui, que, além desta dificuldade de adaptação inicial, os alunos
oriundos deste projeto acabam sendo estigmatizados por alguns professores e por
parte da comunidade escolar, uma vez que muitos deles apresentam dificuldades
11 Sobre a metodologia da Telessala, Almeida (2015, p. 74), em sua dissertação de mestrado em
Eduacação sobre os alunos inseridos em programas de aceleração escolar, nos lembra que “a
Metodologia Telessala foi desenvolvida pela Fundação Roberto Marinho como uma prática
pedagógica de ensino presencial mediada por um professor, utilizando livros e teleaulas do
Telecurso. Desde 1995 essa metodologia é aplicada no atendimento de jovens e adultos que não
concluíram a Educação Básica e aos que se encontram em defasagem idade-série.” 12 As informações sobre o Programa Autonomia podem ser conferidas na página da Secretaria
Estadual de Educação do Rio de Janeiro através do link
http://www.rj.gov.br/web/seeduc/exibeconteudo?article-id=1218602
64
de aprendizagem. Contudo, mesmo com todos os rótulos que receberam ao longo
do ano, sempre tive empatia por esse grupo de alunos.
3.2.2. A 1001 e eu
Logo nos primeiros contatos, percebi que a turma 1001 era um grupo
especial. Diferentemente de outras turmas e até mesmo daquela do ano anterior
(cf. cap 1), esta chamou a minha atenção por eu perceber nitidamente, por conta
da organização espacial da sala de aula, que se sentavam em dois grupos distintos:
os alunos oriundos do Autonomia, no canto esquerdo da sala de aula, próximo à
porta, estendendo-se até o final da sala. Já os alunos que haviam concluído o
ensino fundamental na modalidade regular sentavam-se próximo à mesa do
professor e ao quadro negro.
Tal divisão, a meu ver, seria bastante comum se considerarmos que os
alunos iniciantes do Ensino Médio passam por um período de transição entre o
Ensino Fundamental e este; além disso, a escola recebe novos estudantes, e,
assim, novos grupos são formados. No entanto, aos poucos comecei a perceber
que, naquela turma, esta divisão era singular. Era habitual ouvir, durante as aulas,
frases como: “Ei, fica quieto, isso aqui não é Autonomia não!” ou “Vai, abre o
caderno. Tá pensando que isso aqui é Autonomia?”. Porém, talvez o que mais
tenha chamado a minha atenção foi ouvir, de meus colegas de profissão, que eles
não sabiam o que fazer, chegando, inclusive, a propor para a direção da escola que
fosse criada uma turma somente para os alunos oriundos do programa,
justificando ser impossível trabalhar com estes, pois “atrapalhariam” demais.
Assim, motivada por essa minha observação inicial, resolvi buscar junto à
1001, entendimentos sobre o que estávamos vivendo não somente em nossas
aulas, mas sobre esses discursos que circulavam na escola e que nós mesmos
ajudávamos a construir.
3.3. A geração de dados
A partir da minha questão instigante “Por que eu gosto da 1001?”, resolvi
que ao longo do ano desenvolveria APPEs (cf. APPESs cap. 1) que nos
65
auxiliassem a entender como era o grupo. Para mim, a 1001 era uma turma do
primeiro ano do Ensino Médio como as demais, com alunos que tinham suas
histórias pessoais, suas crenças e opiniões e, por isso, sua heterogeneidade ficava
evidente.
Os meus entendimentos prévios despertaram a minha curiosidade para
buscar inteligibilidade sobre o motivo pelo qual os próprios alunos faziam essa
segregação e colaboravam para a manutenção do estigma sobre aqueles do
programa autonomia. Desta forma, achei necessário mapear o discurso que
emergia em nossas interações em sala de aula, a fim de buscar indícios de que isso
acontecia, pois, o meu receio era agir como alguns colegas e acabar segregando os
alunos. Por isso, resolvi que as atividades que desenvolveria seriam realizadas por
todo o grupo. Durante as aulas em que as APPEs eram desenvolvidas, gravamos
nossas interações em busca de entendimentos locais sobre o que nos afligia.
O conjunto de dados deste trabalho é composto por excertos das gravações
de nossas interações geradas através da realização das APPEs, que serão descritas
no capítulo de análise dos dados antes das transcrições dos excertos, bem como
pelas próprias atividades.
3.4. A transcrição dos dados
Os dados, gerados através da gravação de áudio das interações realizadas
ao longo das APPES, foram transcritos por mim seguindo as convenções de
transcrição baseadas nos estudos da Análise da Conversa Etnometodológica
(Sacks, Schegloff e Jefferson, 1974; Goodwin e Heritage, 1990; Garcez, 2012),
utilizando os símbolos adaptados de Garcez, Bulla e Lorder (2014).
Minha escolha em utilizar o ferramental teórico-metodológico da ECE,
aliada aos estudos da Sociolinguística Interacional, deve-se à oportunidade de
observar de forma mais cuidadosa as minúcias micro discursivas, i.e, o que os
participantes engajados em uma interação fazem durante a mesma, e como nossas
perspectivas e formas de perceber o que é dito ficam marcadas em nossos
encontros face-a-face.
3.5. Os praticantes
66
Como já foi mencionado ao longo do texto, os alunos da turma 1001 são
considerados, aqui, praticantes da pesquisa [practitioners]. Contudo, vejo a
necessidade de informar ao leitor certos pontos a respeito de alguns estudantes
que, ao participarem como falantes e ouvintes ratificados em nossas interações,
ajudaram-me a tecer os entendimentos sobre a vida que vivemos em nossa escola.
Desta forma, organizei, com a ajuda dos alunos, o quadro a seguir com suas
informações, que podem nos ajudar na leitura e interpretação dos dados:
Nome 13 Idade Informações adicionais
Evellyn 25 Professora de Inglês das turmas do primeiro ano
do Ensino Médio da escola há 2 anos.
Bianca 16 Terminou o Ensino Fundamental em 2014 no
sistema regular.
Iuri 16 Terminou o Ensino Fundamental em 2014 no
Programa Autonomia. Diagnosticado com Dislexia
Sabrina 17 Terminou o Ensino Fundamental em 2014 no
sistema regular.
David 17 Terminou o Ensino Fundamental em 2013. Em
2015, cursou pela segunda vez o 1º ano do EM.
Raissa 16 Terminou o Ensino Fundamental em 2014 no
Programa Autonomia
Hanna 15 Terminou o Ensino Fundamental em 2014 no
sistema regular.
Flávia 17 Terminou o Ensino Fundamental em 2014,
cursando o 8º e 9º anos no Programa Autonomia. Foi
aluna destaque por duas vezes no Programa Autonomia.
Bruna 16 Terminou o Ensino Fundamental em 2014.
Adriana 16 Terminou o Ensino Fundamental em 2014, no
sistema regular.
Pedro 16 Terminou o Ensino Fundamental em 2014 no
Programa Autonomia.
Sandra 15 Terminou o Ensino Fundamental em 2014 no
sistema regular
Cleber 15 Terminou o Ensino Fundamental em 2014 no
13 Cabe evidenciar que todos os nomes dos alunos, exceto o meu, uma vez que sou autora deste
trabalho de participante da pesquisa, foram alterados por questões éticas na tentativa de preservar o
anonimato dos demais participantes-colaboradores.
67
sistema regular.
Quadro 2 – Os praticantes da pesquisa
Decidi organizar desta forma as informações sobre esses alunos, uma vez
que é através de suas vozes e de suas percepções que pudemos coconstruir saberes
locais acerca de nossas questões.
Contudo, gostaria de ressaltar que, ao fazê-lo, não ignoro, nem tampouco
menosprezo a participação dos demais alunos desta turma. Apenas optei por esta
organização devido à importância do contexto para a construção de significados
sobre as interações face-a-face, defendidas por Ribeiro e Pereira (2002), que
destacam o papel dos participantes para a coconstrução discursiva de tais
contextos em interações. Além disso, mesmo que não se expressassem
verbalmente nas interações, os alunos contribuíam com outras pistas de
contextualização14, tais como o próprio silêncio, o riso, a troca de olhares, o
balançar da cabeça em concordância ou em desacordo com o que havia sido dito
por seus colegas ou por mim, entre outros.
Dedico o próximo capítulo à descrição de minhas primeiras tentativas em
envolver todos nesse processo de busca por entendimentos sobre o que, para nós,
é a vida daquele grupo, e à análise dos dados em áudios gerados através de nosso
compartilhamento de saberes e questões.
4.
14 Conceito proposto por Gumperz (1982) para se referir às pistas/dicas que damos a nossos
interlocutores acerca do contexto sobre o qual estamos nos referindo em interação. Nas palavras de
Gumpers: “o termo tipo de atividade não é usado para representar uma estrutura estática, mas para
refletir um processo dinâmico que se desenvolve e sofre alterações à medida em que os
participantes interagem. Além disso, a base do seu significado reflete algo que está sendo feito,
algum propósito ou objetivo que os participantes estão tentando atingir”(GUMPERZ, 1998, p. 99).
68
Explorando o jardim: análise dos dados
Escutar é obviamente algo que vai mais além da possibilidade
auditiva de cada um. Escutar, no sentido aqui discutido, significa a
disponibilidade permanente por parte do sujeito que escuta para a
abertura da fala do outro, aos gestos do outro, às diferenças do outro.
Paulo Freire (2002, p.135)
Apresento, neste capítulo, a análise dos dados gerados ao longo do
processo de investigação com a turma 1001, sobre a qualidade de vida do nosso
grupo e sobre como problematizamos, discursivamente, nossos questionamentos
sobre estar na escola. Desta forma, resolvi dividir o capítulo em dois blocos. O
primeiro versa sobre as primeiras tentativas em realizar o trabalho com aquele
grupo de alunos. Descrevo as minhas impressões, sob as lentes da Prática
Exploratória, sobre os puzzles dos alunos, que surgiram durante uma conversa
exploratória com o grupo, sobre o que era a Prática Exploratória, o mestrado
acadêmico e o meu papel enquanto professora-pesquisadora.
O segundo bloco compreende quatro subseções de análise dos dados,
gerados em áudio, durante o período em que esta pesquisa aconteceu. Apresento
15 excertos de conversas exploratórias que surgiram a partir das atividades com
potencial exploratório, as quais desenvolvi junto à turma 1001. Nesta seção de
análise, me debruço sobre a transcrição de nossas interações, buscando indícios
que evidenciem, em nossos discursos, a qualidade de vida da turma e como nós
percebemos e tornamos discursivas nossas crenças e ideias sobre a sala de aula, os
professores, o Programa Autonomia e sobre nós mesmos. Para tanto, me valerei
dos conceitos revisitados na fundamentação teórica deste trabalho (cf. cap. 2) para
analisar os excertos que compõem este capítulo.
4.1. A aspersão sobre o jardim: primeiras tentativas
Apesar de ter conhecido a Prática Exploratória antes de iniciar meus
estudos no mestrado, senti a mesma dificuldade de Silva Barbosa (2010), que
afirma tê-la conhecido durante as aulas de uma das disciplinas oferecidas pelo
69
programa de pós-graduação da PUC-Rio. A autora salienta que a escolha se deu a
partir de sua identificação com aquela maneira inovadora de olhar para a sala de
aula e pela oportunidade de poder pesquisar o seu próprio contexto de trabalho
junto aos alunos.
No dia 13/05/2015, a aula de Inglês começou diferente: pedi que os
estudantes sentassem em um grande círculo e disse que precisávamos conversar.
Escrevi no quadro o meu puzzle “Por que eu gosto da 1001?” e falei sobre as
impressões que eu tinha sobre a turma, até o momento. Além disso, expliquei o
que era puzzle, utilizando o meu como exemplo, e os convidei a buscar
entendimentos sobre a minha questão e sobre as que pudessem surgir ao longo do
ano letivo.
Do mesmo modo que os alunos de Silva Barbosa (2010) se sentiram
maravilhados em saber que a sua professora fazia um curso de mestrado e não
hesitaram em participar, os meus também aceitaram e fizeram muitas perguntas a
respeito de como seria quando participariam. Então, embora não houvesse
programado nada a priori para aquele dia além de finalizar as atividades iniciadas
na aula anterior, pedi que removessem uma folha de seus cadernos e, após alguns
minutos de conversa com os colegas, escrevessem nesta os seus questionamentos
sobre as aulas de Inglês, sobre o que viviam na escola e, especialmente, sobre a
sua turma.
Agora, ao redigir a dissertação, consigo reconhecer o quanto, naquele
momento, eu parecia querer controlar/guiar os alunos para a tarefa que eu
esperava que fosse realizada.Percebo que os direcionei a escrever aquilo que eu
gostaria de ler posteriormente; algo que correspondesse à minha expectativa:
sobre tópicos relacionados à turma, o preconceito15 que os alunos do Programa
Autonomia relatavam que sofriam por alguns professores ou pelos próprios
colegas de turma.
Por reconhecer que o “trabalho para entender” (Allwright, 2003) deve
estar atrelado às atividades que são realizadas cotidianamente por estudantes e
professores, senti que, ao falar sobre o meu puzzle e realizar uma atividade
diferente de tudo o que estávamos acostumados a fazer, não estava seguindo o que
15A palavra “preconceito” é utilizada, nesta dissertação, considerando-a comoideia ou conceito
formado antecipadamente e sem fundamento sério ou imparcial.
70
era esperado de um processo de pesquisa em Prática Exploratória. Contudo, após
refletir sobre a atitude que tomei, percebi que convidar meus alunos a
participarem desta pesquisa e contar as minhas impressões era apenas o início do
trabalho coletivo para entender nossas questões. Ao tomar tal atitude, localizei
este estudo dentro da perspectiva ético-inclusiva (Miller, 2012; Rodrigues, 2014)
a que a Prática Exploratória se propõe. Seria injusto, e até mesmo desleal, focar a
minha pesquisa em minhas aulas olhando somente através das minhas lentes, da
minha janela.
Sinto que, com essa primeira tentativa, ao compartilhar o meu puzzle com
aquele grupo de alunos, o fiz como o jardineiro ao semear a flor. Como praticante
mais experiente, procurei envolvê-los na atividade, para que, ao buscarem suas
questões, pudessem entender melhor como a nossa prática de pesquisa se
desenvolveria, “ao criar oportunidades para os praticantes exploratórios se
‘apaixonarem’ pelas questões, pela prática de questionar” (Miller et al. 2008,
p.147).
Logo, essa primeira APPE serviu como uma primeira aspersão sobre esse
jardim, que, assim como o de Cecília Meireles, se apresentava, a cada olhar, de
uma maneira diferente, diante de minha janela. Ela serviu como uma primeira
tentativa para que os alunos pudessem se questionar e para que eu também os
pudesse ouvir.
Quando terminaram de escrever suas questões, recolhi as folhas e, ainda
em círculo, li os puzzles que haviam surgido, sem citar os nomes dos alunos que
os escreveram. Percebi, ao longo desta atividade, que a maioria deles mencionou
algum questionamento relacionado à parte física da escola, isto é, ao prédio em si,
à falta de manutenção do ar condicionado e de uma quadra poliesportiva, por
exemplo. Além disso, também foi mencionado o fechamento da cantina, uma
questão que extrapola os muros da escola, uma vez que ocorreu por conta de uma
ação judicial que proíbe o funcionamento de cantinas dentro da instituição.
71
Figura 2 - Exemplo de Puzzles que retratam o aspecto físico da escola
Legenda: Data 13/05/15
Turma 1001
Nome:
Por que não reabre a cantina?
Por que não conserta o ar condicionado e os ventiladores da sala.
À medida que realizava a leitura das questões, entrávamos em discussão
sobre o que os alunos haviam apontado, e eu também tive a oportunidade de
esclarecer algumas de suas dúvidas. Desta forma, a conversa e troca de ideias fez
parte do nosso processo de investigação para entender as questões que emergiam
durante a realização da tarefa, na busca pelo engajamento coletivo no “trabalho
para entender” tais questões. Sobre isso, Miller (2012, p. 325), ressalta que
Na Prática Exploratória, a investigação é considerada um amplo “trabalho para
entender” as questões relevantes para os agentes e que se realiza de forma
integrada à própria prática profissional e de forma conjunta, com outros
praticantes envolvidos.
Em relação ao fechamento da cantina, por exemplo, os estudantes
imaginavam que havia sido uma decisão da direção da escola. Aproveitei esta
oportunidade para salientar que, dentro do contexto escolar, nem todas as decisões
cabem à direção ou aos professores, mas que nada impedia que esses
questionamentos surgissem ali.
Alguns alunos ressaltaram questões a respeito do dia a dia na escola e
também sobre o que estavam vivendo no início daquele ano letivo em sala de aula,
como podemos observar na figura a seguir:
72
Figura 3 - Exemplo de Puzzles que retratam tanto questões sobre o que se vive em sala de aula,
quanto em outros momentos na escola.
Legenda: Por que a maioria dos professores da 1001 têm discriminação16 com a autonomia?Por
que a maioria dos professores se acha superiores?Porque na hora do intervalo dá suco e no almoço
não?
Ao escrever seus questionamentos, conforme a figura acima, a aluna
também salienta a vontade de refletir sobre o papel de seus professores dentro
daquele contexto, ressaltando a possível discriminação que eles têm pelos alunos
do programa autonomia. Além disso, revela o desejo de entender o motivo pelo
qual estes acreditam serem superiores aos estudantes.
Igualmente, questionamentos sobre o relacionamento interpessoal dos
alunos, sobre a escola e sobre o papel daqueles no processo de ensino-
aprendizagem foram destacados:
Figura 4 - Exemplo de Puzzles que retratam busca por entendimentos sobre a função da escola e
ressaltam o papel dos alunos no processo de ensino-aprendizagem e as relações interpessoais na
escola
Legenda: Por que os professores discriminam o autonomia?/Por que os alunos não têm vontade de
conhecer uns aos outros?/Por que ninguém pensa em melhorar a turma?/Por que a maioria dos
16 Utilizo o termo discriminação ao longo desta dissertação no mesmo sentido de estabelecer
diferença.
73
professores que acham a turma ruim, não fazem nada para ajudar?/Por que hoje em dia é muito
difícil ver a escola como local de aprendizado?/Por que alguns alunos não querem aprender?
Os questionamentos presentes nas figuras 2 e 3 foram os que mais
chamaram a minha atenção. Os da figura 2 me afetam diretamente, pois, por
tratarem de questões acerca dos professores daquele grupo, lembraram-me de que
eu também pertencia a este quadro.Já os puzzles da figura 3 evidenciam o nível de
reflexão profundo que aquele momento pode proporcionar. A aluna consegue
passar para a folha de papel o que a incomoda, o que a inquieta não somente em
sala de aula, como também nas relações com os colegas, com os professores, e
destes com os seus colegas.
Outro ponto relevante a ser exposto aqui é que as estudantes que
escreveram os puzzles presentes nestas duas figuras não haviam participado do
programa autonomia, e ambas ressaltam a discriminação que os alunos deste
programa estariam sofrendo pelos professores. Contudo, a que escreveu os
questionamentos da figura 3 também salienta que os professores não só
discriminam, como também nada fazem para ajudar a turma que consideram ruim.
Logo, estes puzzles clamam por uma mudança de atitude, tanto por parte dos
professores em relação à turma como um todo, como dos alunos, já que alguns
“não querem aprender”.
Destaco, aqui, o meu reconhecimento de que nem todos os estudantes
atingiram esse nível de reflexão, uma vez que, por ser uma atividade diferente das
demais desenvolvidas por mim e pelos outros professores deste grupo, alguns
alunos preferiram não escrever – embora tenham participado da discussão durante
a leitura dos questionamentos. Pedro, um dos alunos oriundos do Programa
Autonomia, por exemplo, parece fazer um desabafo “não entendo mais nada”,
utilizando aquele pedaço da folha de papel como um canal. No entanto, o que a
princípio mereceu o meu olhar foi a reflexão inicial que o estudante faz sobre o
ato de se questionar. Ainda sem saber o que era a Prática Exploratória, Pedro
relaciona a atividade que eu havia proposto – isto é, refletir sobre a escola – com a
vida, posto que “tudo na nossa vida tem um porque”. Assim, parece reconhecer
que o que vivemos em contexto escolar faz parte de nossas vidas; deste modo,
refletir sobre o que se vive na escola implica refletir sobre quem somos e como
agimos socialmente dentro e fora daquele contexto (Gieve e Miller, 2006, p. 20).
74
Figura 5 - Puzzles de Pedro
Legenda: Tudo na vida tem um porquê e cada porque tem um sentido diferente as vezes não
entendemos certas coisas porquê? Porque não existe um porquê. Agora vem o meu porquê.
Por que não se existe um professor dedicado como antigamente? Por que não se existe alunos
como antigamente? Não entendo mais nada! Por que nós alunos não queremos nada com a hora do
Brasil. Por que não melhoramos em vez de complicar?
Pedro, ainda, afirma que não há professores e alunos dedicados como
antigamente, e responde ao seu questionamento dizendo que estes, incluindo-se ao
utilizar o pronome nós, não querem “nada com a hora do brasil”.
Optei por trazer os puzzles de Pedro, pois, na sessão de análise, retomarei
os questionamentos que surgiram nessa primeira atividade, em uma conversa
exploratória (cf. Moraes Bezerra, 2007; Ewald, 2015) com o aluno.
Noto, porém, que a maioria dos puzzles dos alunos que emergiram nesta
atividade, apesar de aparecerem em formato de pergunta, surgem como
instanciações de afeto, salientando sua insatisfação e infelicidade em relação ao
espaço escolar e à escola em si. Dessa forma, é possível dizer que, a partir dos
puzzles dos alunos, podemos começar a mapear, discursivamente, as instanciações
de afeto que auxiliam a (des)construir o estigma sobre os alunos do programa
autonomia e sobre a escola pública.
A fim de elucidar o que foi explanado, destaco que os alunos, nas três
primeiras figuras ilustradas, nessa seção, utilizam o espaço físico da escola e seus
professores para se (re)construírem afetivamente, como podemos perceber com os
puzzles da figura 3. A aluna, ao escrever “Por que a maioria dos professores da
1001 tem discriminação com a autonomia?” Por que a maioria dos professores se
acham superiores?” e “Porque na hora do recreio dá suco e no almoço não”,
75
expressa, através de suas escolhas lexicais, sua insatisfação em relação ao
contexto em que está inserida e em relação aos professores.
Ao construir seus dois primeiros puzzles, a aluna repete a estrutura “Por
que a maioria”. A carga semântica do termomaiorianos remete à quantidade, além
disso, o uso dessa estrutura sinaliza o sentimento da aluna em relação aos
professores do grupo. Ademais, ao questionar “Por que a maioria dos professores
se acham superiores?”, a aluna reitera o questionamento anterior sobre a possível
discriminação dos professores com os alunos do programa autonomia e instaura
uma dicotomia entre professores e alunos. Ao dizer que eles, os professores, se
acham superiores, na verdade, a aluna indica o seu sentimento de inferioridade e
sua posição e a dos demais colegas, em relação aos primeiros. Dessa forma, os
puzzles supracitados salientam instanciações de sentimentos negativos,
insatisfação.
Os puzzles de Pedro, por sua vez, ressaltam instanciações de insegurança,
o que pode ser percebido ao observarmos a própria estrutura de formação de suas
questões instigantes.
Pedro (cf. figura 5) inicia seus questionamentos com um advérbio de
intensidade tudo,a fim de justificar que, a todo o instante, estamos nos
questionando. Porém, talvez por saber que, ao final da atividade, a folha seria
entregue a mim, ele faz alguns rodeios e não formula suas questões de imediato.
Apenas quando anuncia “agora vem o meu porque”, o aluno parece se sentir mais
confortável e com confiança para dizer o que o aflige.
Contudo, a insegurança inicial de Pedro também expressa sua insatisfação
em relação a seus professores e a ele mesmo (“Por que não existe um professor
dedicado como antigamente?/ Por que não existe alunos como antigamente), se
referindo a um tempo passado “antigamente”, que, no imaginário tanto de
professores como de alunos, sempre é lembrado, em termos escolares, como um
tempo em que os professores eram mais respeitados e os alunos eram mais
responsáveis. Assim, Pedro também nos ajuda a começar a mapear essas
identidades sobre ser aluno e professor na contemporaneidade.
Ao enunciar “Não entendo mais nada!”, o advérbio de negação nada
indica sua insegurança. O processo reflexivo de geração de puzzles requer o
esforço de Pedro que, apesar de ressaltar que não entende mais nada, instancia sua
insatisfação, ao utilizar o pronome pessoal nós incluindo o grupo de alunos e a ele
76
mesmo no papel daqueles que “não querem nada com a hora do Brasil” e que “não
fazem nada para melhorar”. Portanto, os questionamentos de Pedro declaram, ao
mesmo tempo, sua insegurança e insatisfação em relação a ele mesmo e à
comunidade de prática a qual está inserido.
Em suma, ao ouvir com cuidado e atentar para as questões que emergiram
da atividade, pude chegar a um primeiro entendimento: não poderia ficar somente
olhando da janela;o meu olhar deveria ir além. Talvez, até aquele momento, eu o
tenha voltado para a sala de aula apenas como pesquisadora, preocupando-me em
entender a qualidade de vida daquele grupo,mas focando em minhas próprias
questões. Portanto, diferente da cronista, que olha para o cotidiano através de suas
lentes e sempre de sua janela, eu precisava sair daquele lugar que me permitia o
estatismo e a contemplação. Eu precisava,sim, atender ao chamado dos alunos,
mesmo que o objetivo não fosse a mudança; mas eu necessitava, também, olhar
para mim.
Depois daquela atividade, confesso que não soube o que fazer, não sabia
qual seria o próximo passo a ser dado nem como começaria novamente alguma
outra atividade. Entrei em conflito.
Apesar de o meu desejo de compreender a qualidade de vida daquele
grupo ter se tornado mais aguçado, não sentia que estava sendo exploratória.
Porém, resolvi que levaria o gravador para todos os encontros com a turma, e,
para minha surpresa, os dados gerados para este trabalho – que se encontram no
capítulo a seguir – surgiram a partir da realização de tarefas em sala de aula (com
o livro didático ou não), de maneira espontânea, a partir da adaptação de alguma
atividade, e considerando cada um de nossos encontros como oportunidades de
aprendizagem e de pesquisa.
4.2. Explorando o jardim: análise dos dados
Neste capítulo apresentarei a análise de conversas exploratórias que
surgiram a partir das atividades com potencial exploratório que desenvolvi junto à
turma 1001. Nesta seção de análise, me debruço sobre a transcrição de nossas
interações, buscando indícios que evidenciem em nossos discursos a qualidade de
vida da turma, assim como o estigma sobre o grupo do autonomia e suas crenças
77
que emergem e se sustentam ou não ao longo das interações. Para tanto, me
valerei dos conceitos revisitados na fundamentação teórica deste trabalho (cf. cap.
2) para analisar os excertos que compõem este capítulo.
4.2.1. “a gente tinha que provar pra eles que é diferente”
Os excertos que compõem essa seção são fragmentos de uma interação
com duração de 42”19’ que ocorreu no dia 27 de Março de 2015. Neste dia,
realizava uma atividade no livro didático adotado pela escola. Tal atividade
abordava questões culturais dos países falantes de língua Inglesa e, em uma de
suas atividades, apresentava a seguinte definição para o termo estereótipo17:
Figura 6 - definição de estereótipo apresentada no livro didático adotado pela escola (High UP 1 –
MacMillan – p. 28)
Legenda: stereotype/¹sterie taip/ noun [C] simplistic generalization about a group
Na atividade anterior, havia uma lista de estereótipos sobre o Brasil e os
alunos deveriam dizer se concordavam ou não. Na atividade seguinte, deveriam
relacionar se os estereótipos de uma outra lista se referiam a pessoas
americanasou britânicas.
17Utilizo o termo estereótipo ao longo desta seção de análise de dados tendo em mente a definição
sobre o termo mencionado que aparece no livro didático adotado pela escola para o ensino de
língua inglesa, para as turmas de primeiro ano do Ensino Médio: “A simplistic generalization
about a group” – uma generalização simples sobre um grupo(tradução minha).
78
Figura 7 - atividade proposta pelo livro didático após a apresentação do termo estereótipo
Percebi que os alunos estavam interessados em discutir sobre oassunto e vi
naquela atividade a oportunidade de continuar o trabalho para entender, que havia
começado alguns dias antes. Assim, de forma não previamente planejada, escrevi
no quadro a seguinte questão: Vocês acham que a turma 1001 tem um estereótipo?
Esse questionamento levou a turma a pensar sobre essas e outras questões que
serão iluminadas a partir da análise dos trechos a seguir:
Excerto 1 - “[o que eu falei foi] que a autonomia tem estereótipo”
Bianca 1 que foi que ele falou? Iuri 2
3 4 5 6 7
[o que eu falei foi] que a autonomia tem
estereótipo porque quando a gente chega na sala
assim as vezes assim “ah...o pessoal do
autonomia” aí já pensa logo que a gente é idiota
que a gente não sabe ler, não sabe escrever que a
gente é tudo um bando de neandertais Sabrina 8 [↑gente calmaÊ] Evellyn 9
10 11
mas o Iuri, olha só, isso é uma pergunta para
Iuri e pra- para todo mundo. Porque você acha
isso, Iuri? Iuri 12
13 14 15
porque simplesmente pelo fato de entrar dentro da
sala o [professor] já olhar assim “Autonomia -
Autonomia” [aí começa] tipo assim a ficar em cima
do autonomia e esquece dos outros alunos= David 16 [para de falar certo] Raissa 17 [é verdade]
A fala de Iuri salienta o preconceito sofrido pelos alunos do Programa
Autonomia. Ele responde à minha pergunta sobre se a turma tinha um estereótipo
dizendo que o Autonomia, isto é, os alunos oriundos deste programa, tem um
79
estereótipo: [O que eu falei foi] que a autonomia tem estereótipo porque quando
a gente chega na sala assim as vezes assim “ah...o pessoal da autonomia (linhas
4-5). Ademais, Iuri se inclui nesse grupo utilizando o termo “a gente”.
Em “ah...o pessoal do autonomia” (linhas 4 – 5), o aluno utiliza uma fala
reportada, uma estratégia que lhe confere mais legitimidade para o que diz, uma
vez que ao utilizar tal recurso, reproduz a fala utilizada em contexto real de
produção. Contudo, Iuri decide não especificar quem pratica essa ação. Em
seguida, do mesmo modo, ele apresenta uma sequência de escolhas em períodos
assertivos para mostrar como o grupo do qual faz parte é visto: aí pensa logo que
a gente é idiota que a gente não sabe ler, não sabe escrever, que a gente é tudo
um bando de neandertais (linhas 5-7).
O aluno chama atenção para o estigma relacionado aos alunos do
Programa Autonomia. Biar (2012, p.51) analisa o conceito de Goffman, segundo
o qual, o estigma está relacionado às “relações sociais, de assimetria, de poder”. É
um atributo sempre negativo, de acordo com as normas da sociedade de
determinada época. Em suas análises, apresenta a definição de Goffman (1988,
p.7) de que o estigmatizado é “aquele que não está habilitado para a aceitação
social plena”. A fala de Iuri, então, apresentaria o tratamento dos alunos do PA
como aqueles identificados pela não-adequação à turma 1001, por carregarem
atributos negativos, como os que “não sabem ler”, “não sabem escrever”.
A partir do que emergiu dessa interação, faz-se necessário salientar o papel
do discurso para a construção e manutenção das identidades que surgem em
nossos encontros face a face. A fala de Iuri começa a nos mostrar como as
identidades coletivas desses alunos são construídas discursivamente e
socialmente. Sobre isso, Duszak (2002), nos alerta que
não há dúvidas de que a linguagem nos dá as mais poderosas ferramentas para
transmitir identidades sociais, para dizer (e fazer) amigos e inimigos. A
construção e o gerenciamento de identidades sociais são feitas por meio do
discurso e, por meio de vários mecanismos e estratégias linguísticas.18
18Minha tradução para a seguinte citação no original “No doubt language gives us most powerful
tools for conveying social identities, for telling (and making) friends and foes. The construction
and the management of social identities are done through discourse and by means of various
linguistic mechanisms and strategies” (Duszak, 2002).
80
Dessa forma, Iuri não somente nos revela como a identidade coletiva do
grupo de alunos do PA é construída pelo outro, mas também, como ele constrói a
sua identidade a partir da fala do outro, uma vez que ele faz parte desse grupo.
Duszak (ibid) ainda destaca que, em interação, buscamos sinais de
solidariedade (solidarity) e distanciamento (detachment). Logo, ao utilizar o
pronome pessoal nós de maneira informal (a gente), Iuri se apresenta como
“porta-voz” do grupo, o que evidencia seu pertencimento ao grupo e a
solidariedade em relação aos demais alunos oriundos do PA, pois, sua fala,
também, traz à tona os conflitos/frustrações e o distanciamento em relação a
“eles”: aos professores da turma e aos alunos que terminaram o Ensino
Fundamental no sistema regular.
Na linha 8, a sobreposição da fala de Sabrina à fala de Iuri ocorre para
chamar a atenção para que o aluno pudesse manter o turno e ser ouvido. Desta
forma, a fala ocorre como uma solicitação de silêncio para que ela pudesse ouvir o
que o colega estava falando. Apesar de em turno seguido ao de Iuri, eu anunciar
que farei uma pergunta para o aluno e para seus colegas de turma, pareço solicitar
e esperar como resposta uma explicação, uma justificativa de Iuri ao que foi
exposto por ele, anteriormente, uma vez que inicio o turno com a conjunção
adversativa "mas" - mas o Iuri (linha 9), parecendo não concordar com o que ele
havia dito e, também, endereço a minha fala a ele, ao final do turno, após a
pergunta.
Em seguida, Iuri responde ao meu questionamento: Porque simplesmente
pelo fato de entrar dentro da sala o [professor] já olhar assim “Autonomia -
Autonomia” [aí começa] tipo assim a ficar em cima da autonomia e esquece dos
outros alunos= (linhas 12-15). Mais uma vez, o aluno utiliza uma fala reportada
em relação ao “Autonomia”, entretanto, aqui, é possível saber que essa fala é do
professor, o que nos faz pensar que a fala reportada utilizada por Iuri, no turno
anterior, também se refere aos professores da turma. O aluno a utiliza como
estratégia para dar credibilidade a sua fala, já que serve como um account
(justificativa) que ele encontra para sustentar o piso conversacional e sua ideia,
como é possível observar a partir de suas escolhas: “simplesmente”, “pelo fato”.
Ao fazer uso dessas escolhas, Iuri parece tornar seu enunciado
inquestionável, já que, ao introduzir sua fala com esses termos, o aluno apresenta
como argumento a fala do professor, que, muitas vezes, é considerado como
81
aquele que possui legitimidade para falar sobre os assuntos referentes ao contexto
escolar. Assim, ele atribui, discursivamente, aos professores o olhar
estigmatizador em relação aos alunos do Autonomia.
Logo em seguida, o aluno se preocupa em deixar mais claro para seus
interlocutores a sua tese, uma vez que utiliza o marcador "tipo assim" (linha 14)
para articular uma explicação a respeito do que foi dito anteriormente. Além
disso, ao utilizar a expressão metafórica "a ficar em cima" para se referir à
cobrança dos professores em relação aos alunos oriundos do Programa
Autonomia, parece elucidar a distinção entre o tratamento recebido pelos alunos
do PA em relação aos outros alunos, o que é confirmado por Raissa, em turno
sobreposto ao de Iuri ("é verdade" – linha 17).
Excerto 2 – “é porque com eles foi diferente gente sei lá” Evellyn 18 =mas já aconteceu alguma coisa que:: Iuri 19 já= Fábio 20 =heleno= Hanna 21 =é porque com eles foi diferente gente sei lá Sabrina 22
23 ficar falando que não vai fazer o exercício e
ficar dormindo não dá não Flávia 24 é Sabrina 25 é se ele [falar isso (que você tá dormindo)]= Iuri 26
27 28 29 30 31
[mas ele não pode falar que nós somos] idiotas
porque cara a gente pelo fato de já ter passado
[pelo autonomia] [a gente prova que tem um
intelecto bom cara] a gente fez várias séries em
menos de- menos de- [menos de três anos] –fizemos
em [dois anos]
A fim de saber mais sobre o assunto, tento provocar através de minha fala
“mas já aconteceu alguma coisa” (linha 18) que os alunos, nos turnos seguintes,
iniciem uma narrativa que exemplifique o relato de Iuri.
Creio que esta postura deva-se a minha formação enquanto pesquisadora,
já que, em outras oportunidades de pesquisa, me vali dos Estudos de Narrativa
para guiar o meu olhar para a análise dos dados. Noto, assim, a relevância das
diferentes comunidades de prática às quais me inseri ao longo da minha trajetória
acadêmica, já que foi a partir das experiências e vivências que construí
significados sobre o que era pesquisar e sobre as minhas expectativas como
professora-pesquisadora.
No entanto, mesmo alinhada aos princípios da Prática Exploratória e
entendendo que as pesquisas que se realizam a partir deste posicionamento
82
teórico-metodológico costumam seguir uma agenda de pesquisa negociada entre
os praticantes em seus contextos, pareço, aqui, tentar controlar/guiar a interação.
Após a pronta resposta de Iuri – Já – (linha 19), Fábio, também ex-aluno
do PA, cita o nome de um dos professores da turma. Dessa forma, é possível
deduzir que eles acreditam que esse é um dos professores que estigmatizam esse
grupo de alunos.
A fala de Hanna (linha 21), que terminou o Ensino Fundamental no
Sistema Regular, nos mostra que a aluna percebe que o processo com o outro
grupo de alunos – “eles”- foi diferente. Sabrina, por sua vez, utiliza o turno
seguinte para expor uma atitude de Iuri, o fato de ele dizer que não fará os
exercícios e ficar dormindo, com a qual ela parece não concordar:não dá não
(linha 23). Flávia, no turno seguinte, concorda com a colega de turma (linha 24).
Em turno sobreposto ao de Sabrina que, mais uma vez, provoca Iuri (linha
25), o aluno argumentaque isso não justificaria a atitude dos professores. Ele
utiliza como argumento o fato de os alunos terem feito várias séries em menos de
dois anos, o que “provaria” que eles têm um intelecto bom (linha 29). Noto, mais
uma vez, a utilização do pronome “nós” (linha 26) para se referir aos alunos do
PA e não aos alunos da turma como um todo. Pode-se perceber, então, que, ao
utilizar uma micronarrativa para defender os alunos do grupo estigmatizado,do
qual faz parte, Iuri mantém a divisão de posicionamentos e ideias: “eles” de um
lado e “nós” do outro.
Biar (2012) apresenta as análises de Goffman, segundo as quais o
indivíduo estigmatizado não fica isolado. Quando é possível, quando o atributo do
estigma não é visível, o indivíduo tenta encobri-lo ou neutralizá-lo, tentando
sempre se enquadrar às normas sociais.
Ao utilizar a frase a gente prova que tem um intelecto bom cara (linha 28-
29), Iuri tenta se alinhar ao grupo de alunos que não sofre estigma, o que aparece
como uma estratégia de evitação, pois, dessa forma, tenta seguir a mesma linha de
conduta adotada por ele, no excerto anterior. Ressalto, aqui, que tal estratégia já
havia sido utilizada pelo aluno, quando o mesmo prefere utilizar expressões vagas
para se referir aos professores que tratam o grupo de alunos do PA de forma
diferente – a gente chega na sala assim às vezes “ah, o pessoal do autonomia”.
83
Na tentativa de fazer com que Iuri olhe para si, algumas alunas que
terminaram o Ensino Fundamental no sistema regular apresentam mais facilidade
em problematizar as atitudes dos professoresrelatadas pelos alunos da turma.
Excerto 3 – “todo mundo aqui consegue” Evellyn 32 [GENTE olha só] Hanna 33
34 35 36
[não mas olha só mas não é isso não porque::]
[mas oh olha só] Ô Iuri mas Flávia era do
autonomia e Flávia é totalmente diferente [das
outras pessoas]= David 37 =[mas nem todo mundo é igual cara] Iuri 38
39 todo mundo aqui consegue mas o professor [já
entra na sala]= Flávia 39
40 41 42 43
=[não não mas agora] eu vou falar, vou falar
porque quando eu falo o bagulho fica- mas você
sabe por que pensam que é diferente? por que você
abre o caderno quando o professor [tá
explicando]?= Alunos 44
45 [é::] ((a maioria dos alunos concorda com a fala
de Flávia em coro)) Flávia 46 = você copia [a matéria, Iuri?] Hanna 47 [que nem] -que nem na aula [de –de Português] Flávia 48 [é cara e professora de Biologia cara]=
Iuri 49 [eu copiei a matéria] eu só não sei Flávia 50
51 50 51 52 53
=eu tava do lado dela e ela disse “chama Iuri
para fazer a recuperação”. “não quero” (.) “por
quê?” “vou ficar de dependência mesmo” ((após a
fala de Flávia os alunos começam a falar ao mesmo
tempo e fica difícil transcrever este momento))
pois é, aí você vê. você não copia a matéria Iuri 54 mas isso não justifica cara Flávia 55 a:::-h eu acho que isso justifica sim= Evellyn 56 mas olha só já= Bruna 57 =não copia a matéria=
Aumento a voz buscando a atenção do grupo (linha 32). As sobreposições
de turno aparecem, no excerto a seguir, como tentativa de conquistar o piso
conversacional, para que, assim, quem o conseguisse, pudesse colocar o seu ponto
de vista. Mais uma vez, tento expor a minha opinião, mas não tenho sucesso.
Eu tento recuperar o turno, mas o debate continua. Hanna, não
concordando com a fala de Iuri, que parece o tempo todo atribuir a
responsabilidade sobre o estigma do grupo Autonomia aos professores, lembra ao
colega que Flávia era aluna do Autonomia e era diferente das outras pessoas
(linhas 33 a 36). Dessa forma, Hanna utiliza o termo diferente de maneira
apreciativa, destacando Flávia do grupo de alunos do Programa Autonomia.
Porém, mesmo sem utilizar os pronomes nós e eles, ao salientar a diferença de
84
Flávia em relação aos demais colegas oriundos do PA, Hanna ajuda a manter o
estigma sobre aqueles alunos e ameaça a face de Iuri.
No turno seguinte, Iuri parece discordar de Hanna, salientando que todos
os alunos conseguem obter bons resultados: todo mundo aqui consegue (linha 38),
na tentativa de desconstruir o estigma e, mais uma vez, desvinculá-lo das ações
dos alunos eatribuí-lo à ação dos professores, como é possível observar a partir da
utilização da conjunção adversativa mas–mas o professor já entra na sala(linha
39). Além disso, realiza sua escolha na tentativa de salvar a sua face, isto é, a
linha que vem tentando manter desde o início de nossa conversa, buscando
também a evitação do confronto.
No entanto, após sobrepor o turno de Iuri, dizendo: mas agora euvou falar
porque quando eu falo o bagulho fica (linha 39-40), percebo que Flávia não faz
isso na tentativa de proteger ou defender os amigos do antigo grupo ao qual
pertencia: o grupo de alunos do PA.
Os turnos de Flávia aparecem ao longo desse excerto, também, para mostrar,
para seus demais colegas e para mim, que Iuri estava na face errada19, e para
sustentar, discursivamente, a imagem que Hanna construiu da amiga, em turno
anterior – Flávia é totalmente diferente [das outras pessoas]= (linha 35-36).
Ao indagar diretamente o aluno sobre o porquê as pessoas pensam que é
diferente - Por que você (Iuri) abre o caderno quando o professor tá explicando?
(linha 41-43); =você copia [a matéria, Iuri?] (linha 46), Flávia se constrói como a
aluna que abre o caderno e é diferente de Iuri, que não faz isso, como salientam
seus colegas, ao concordarem em coro com o que é dito por ela (linha 44).
Flávia, além de falar com legitimidade, uma vez que fez parte do mesmo
grupo de alunos que Iuri, expressa seus sentimentos com confiança e segurança, o
que geralmente ocorre quando “uma pessoa sente que está em face” (cf. Goffman,
1955), já que “sente que pode manter sua cabeça erguida e apresentar-se
abertamente para os outros.” (cf. Goffman, 1955). Logo, seus questionamentos
parecem surgir em uma tentativa de mostrar para Iuri que ela é diferente por conta
de seu esforço individual, o que faltaria ao colega.
19Segundo Goffman (1955): “Pode-se dizer que uma pessoa está na face errada quando, de algum
modo, surge uma informação acerca do seu valor social que não pode ser integrada, mesmo com
esforço, à linha que está sendo sustentada para ela.”.
85
Hanna, concordando com a colega, apresenta um exemplo, mencionando a
aula de Português (linha 47), porém sem contar o que ocorreu. Em seguida, Flávia
cita a professora de Biologia e, ao retomar o turno, após Iuri dizer que copiou a
matéria, só não sabia (linha 49), mais uma vez tentando salvar a sua face, ela
reportaas falas do colega e da professora, para exemplificar a falta de esforço
daquele, que rejeita a proposta da professora de Biologia em fazer a recuperação.
Assim, Hanna e Flávia coconstroem discursivamente a identidade de suas
professoras como aquelas que ajudam os alunos, imagem contrária à que vinha
sendo construída ao longo da interação, por Iuri. Ainda assim, o aluno parece não
concordar com as colegas (linha 54), pois, para ele, independentemente de suas
atitudes, os professores não poderiam tratar o grupo de alunos de maneira
diferente. Mesmo após o debate, no qual as alunas tentam mostrar para Iuri que
suas atitudes como aluno não o ajudam, ele permanece voltando seu olhar para o
tratamento que diz receber dos professores, e não para si mesmo.
As falas desse excerto me remetem ao que Goffman (1955) ressalta em seu
texto sobre o uso agressivo da elaboração facial. Acerca disso, Magalhães (2013
p.45) salienta que:
[...] um evento comunicativo pode tornar-se não uma cena de consideração mútua
das faces20, mas uma competição cujo objetivo é marcar o maior número de pontos
contra o adversário e fazer o maior número de pontos para si mesmo. Tal situação
pode ocorrer quando um dos participantes da interação faz menção a fatos
lisonjeiros sobre si mesmo e a fatos desfavoráveis sobre os outros. Este caso é um
exemplo de interação agressiva, onde o vencedor demonstra que consegue lidar
consigo mesmo melhor que seus adversários.
Nesse sentido, diferentemente de Iuri, que utiliza como estratégia a
evitação, Hanna e Flávia parecem elucidar as atitudes do aluno, valendo-se de um
processo corretivo21. Dessa forma, elas parecem desafiar o aluno para que a sua
conduta desviada torne-se aparente.
Excerto 4 - “a gente tinha que provar pra eles que é diferente
David 58 =corta esse cabelo sansão= Evellyn 59 =Olha SÓ - ↑parou – GENTE OLHA SÓ. Ô Iuri, tá
20Destaque feito pela autora. 21 Diz respeito ao processo de elaboração de face, em que “os participantes tendem a dar à ameaça
ocorrida o status de incidente, para ratificá-la como uma ameaça que merece atenção direta, e
tentar corrigir seus efeitos.” (MAGALHÃES, 2013, p.45).
86
60 61
falando isso porquê? Já aconteceu alguma situação
que você se sentiu assim= Iuri 62
63 64 65 66 67 68
=já. porque até a própria professora de Português
às vezes trata a gente como se a gente fosse-
isso não é desculpa para evadir o que eu tô
querendo falar mas isso não justifica porque é:::
a professora às vezes tá ali na frente aí ela
deixa às vezes de atender o que Pedro fala
achando que ele tá de deboche com a cara dela Flávia 69
70 71 72
não, mas sabe qual é o problema, já que o pessoal
tem tanto preconceito com a gente tinha que
provar para eles que é diferente. você vai provar
assim com o caderno fechado? Sabrina 73
74 ↑verdade ((alunos começam a falar ao mesmo tempo
sobre o assunto)) Iuri 75
76 eu vou ficar escrevendo um negócio que eu sei que
não vou conseguir concluir?
David, entendendo a interação a partir do enquadre22debate, afilia-se às
opiniões compartilhadas pelas colegas, e, em tom de brincadeira e ironia, parece
solicitar o silêncio de Iuri, uma vez que, após a fala de Hanna e Flávia, o aluno
parece não ter argumentos.
Em turno contíguo ao de David, por perceber que houve mudança no
enquadre inicial de nosso encontro, me coloco como mediadora desse debate e
chamo a atenção dos alunos: Olha SÓ -↑parou – GENTE OLHA SÓ(linha 59), na
tentativa de voltarmos para o enquadre conversa. Porém, ao analisar os meus
turnos ao longo da interação com os alunos, percebo que as minhas falas
assemelham-se mais ao que é esperado no enquadre entrevista, posto que meus
turnos, mesmo que sejam curtos, até o momento, são formados sempre por
perguntas direcionadas aos alunos.
Com a minha fala, convido o aluno a iniciar uma sequência explicativa,
para que todos compreendam quais situações vivenciadas em sala de aula
legitimam o seu posicionamento. O aluno responde prontamente já (linha 62).
Após uma pequena pausa que salienta, mais uma vez, a hesitação de Iuri, o
aluno apresenta uma situação na qual se sentiu desmerecido como ex-aluno do
Autonomia. Em porqueaté a própria professora de Português (linhas 62-63), a
construção “até a própria professora de português” enfatiza que mesmo uma
professora com a qual o aluno se identifica já apresentou uma atitude negativa em
relação aos alunos oriundos do PA. No mesmo turno, em –isso não é desculpa
22 O enquadre ou frame, conforme Bateson ([1972] 2013) é “um conjunto de instruções para que
o/a ouvinte possa entender uma dada mensagem”.
87
para evadir o que tô querendo falar(linhas 64-65), Iuri parece reconhecer que a
própria explicação pode não ser suficiente, mas coloca-se de forma modalizada,
enquanto apresenta seu argumento na tentativa de ter sua fala validada.
A escolha de Iuri em proferir tal enunciado aparece como uma tentativa de
salvar sua face positiva de possíveis críticas e reprovações. Aqui, apesar de não
me ater, ao longo da fundamentação teórica desta dissertação, às proposições de
Brown e Levinson (1987) acerca da teoria de polidez, percebo que a fala de Iuri
parece servir de exemplo para o que os autores destacam como sendo uma das
quatro categorias de atos ameaçadores de face. Destaco que a escolha do aluno
pode ser entendida como um ato ameaçador de sua face positiva, uma vez que se
apresenta como uma autocrítica, como um pedido de desculpas antecipado para
seus interlocutores.
Ao iniciar seu turno com a pergunta retórica - mas sabe qual é o problema
(linha 69), Flávia apresenta uma nova linha de análise, segundo a qual os ex-
alunos do PA deveriam mudar as atitudes para não sofrer preconceito. Dessa
forma, após o embate inicial, agora, Flávia parece seguir o que Goffman propõe
como o segundo movimento do processo corretivo de elaboração da face. A aluna
ouve o colega, mas ressalta a necessidade de provar para eles que é diferente: a
gente tinha que provar para eles que é diferente. (linhas 70-71).
O pronome eles volta a aparecer, dessa vez, proferido, pela aluna, para se
referir aos professores, assim como fez Iuri, nos primeiros turnos. Porém, apesar
dessa possível aproximação, Flávia conclui sua fala com outra pergunta retórica,
uma vez que não tem dúvida da resposta. Iuri, por sua vez, a responde com uma
nova pergunta, manifestando sua dificuldade e assumindo não ser capaz de mudar
sua situação sem ajuda.
Iuri manifesta sua infelicidade e insatisfação em relação à professora de
Português, que é ‘aquela que acha que Pedro fica de deboche com a cara dela’, e
utiliza isso como justificativa para suas atitudes enquanto aluno que não copia a
matéria. A atitude do aluno pode ser justificada, também, se lembrarmos de que a
sala de aula deve ser compreendida a partir do tripé social, afetivo e pedagógico.
Ao salientar sua insatisfação, Iuri destaca a instabilidade e o desequilíbrio
presentes nesta sala de aula e parece reconhecer que apenas o pedagógico, já que a
professora passa a matéria e ele não copia, não seja o suficiente para que ele
alcance sucesso em sua vida estudantil.
88
Ainda durante nossa conversa sobre se a turma investigada tinha ou não
estereótipo, os alunos relembram o primeiro dia de aula. A análise do excerto, a
seguir, se torna relevante, neste trabalho, uma vez que, ao relembrarmos como
aconteceu o primeiro encontro entre os alunos,Adriana mostra discursivamente
que, desde o primeiro encontro,os confrontos já eram evidentes.
Excerto 5 – O primeiro dia de aula foi assim
Adriana 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19
[peraí] gente –peraí. primeiro dia de aula foi
assim, a gente foi lá embaixo a gente tipo tinha
um grupinho ano passado eu, Hanna e meus amigos,
aí só vimos que eu e Hanna estávamos em uma
turma separada que era a deles, aí eu e Hanna
falou assim não-não vou ficar nessa turma porque
eu não conheço ninguém” ela entrou na sala e
falou “eu não gosto do autonomia” eu “Hanna não
fala assim vai pegar –é:: as garotas –as garotas
não vão gostar de você porque você falou isso”
mas foi isso Hanna chegou na sala e só falou “eu
não gosto do autonomia” e tinha um monte de
garota lá atrás eu acho que tava::você a tava no
dia não tava? tava essa menina ((alunos começam
a falar)) aí foi isso né gente ↑tipo eu também
não queria ficar nessa sala ((alguém pede
silêncio))- eu também não queria ficar nessa
sala mas POR MEDO eu não falei, eu botei minha
mochila e saí hhhhhh eu levantei e saí
Evellyn 20 medo de quê?
Adriana 21 eu sei lá vai que:: eu levantei e saí
Ao falar sobre o primeiro dia de aula, Adriana deixa evidente uma
separação existente na turma: os alunos que estudavam juntos no nono ano e a
turma do Programa Autonomia. Essa divisão pode ser notada pelo uso de
vocábulos como “a gente” (linhas 1-3) e “meus” - Hanna e meus amigos(linha 3),
em sua narrativa que não segue o molde canônico estabelecidos por Labov.
Para recontar o que ocorreu no primeiro dia de aula, Adriana pede atenção
de todos e anuncia o assunto (linhas 1-2). Porém, cabe ressaltar que o assunto não
é ponto dessa narrativa. A aluna decide narrar o primeiro dia de aula, porém, o
motivo pelo qual ela decide relembrar esse fato consiste em justificar o seu
distanciamento e o de seus colegas dos alunos oriundos do programa autonomia, o
que ocorre a partir da linha 2. Em uma narrativa que intercala sessões de
orientação, que auxiliam o leitor/ouvinte a compreender em que espaço e quem
89
eram os envolvidos naquela situação, e avaliações encaixadas, utilizando fala
reportada para conferir maior legitimidade ao que é dito, a aluna também revela
seus sentimentos e emoções sobre esse dia, já que, na sentença avaliativa POR
MEDO (linha 18), ela, enfim, chega ao ponto de sua história, evidenciando, assim,
que o afeto negativo que sentia em relação aos alunos do Programa Autonomia a
fez tomar tal atitude – “eu não falei, eu botei minha mochila e saí” (linhas 18-19).
Além de filiar-se a um grupo, Adriana se distancia dos outros alunos, ao
afirmar que o seu grupo de amigos foi separado e que Hanna e ela ficaram na
turma que era a deles, dos alunos do PA. Nesse excerto, o pronome elesé utilizado
para se referir aos alunos do PA. Assim, Adriana reforça que não deveria ficar
naquela turma, já que não pertencia àquele grupo.
Essa dualidade/ rivalidade entre nós x eles fica evidente na sequência de
falas relatadas – não-não vou ficar nessa turma porque eu não conheço
ninguém(linhas 6 – 7) ; eu não gosto do autonomia (linhas 7-8); Hanna não fala
assim vai pegar –é:: as garotas –as garotas não vão gostar de você porque você
falou isso (linhas 9-11).
O distanciamento de Adriana em relação ao outro grupo de alunos
também é marcado pela utilização de verbos na primeira pessoa do plural (nós):
estávamos (linha 4), vimos (linha 4). Dessa forma, salienta a proximidade em
relação ao grupo no qual se inclui, os alunos que terminaram o Ensino
Fundamental no sistema regular e que agora estão na turma deles: os alunos do
PA.
Esse afastamento também fica evidente quando a aluna (linha 12) se refere
a um grupo de alunos que estavam sentados no final da sala como as garotas,
semelhante ao que ocorreria se ela utilizasse o pronome pessoal elas. Por
conseguinte, Adriana também se exclui desse grupo de alunas, o que nos leva a
crer que “as garotas” que não iriam gostar do que Hanna havia dito eram as alunas
do PA.
Em seguida, a aluna revela que, assim como Hanna, não queria ficar nessa
sala (linhas 16-17) e que,POR MEDO(linha 17), não agiu como a amiga e,
simplesmente, saiu. Ao considerar que Adriana tem como ouvintes seus colegas
de turma e eu, ela expõe a amiga, Hanna, e protege sua própria face, uma vez que,
apesar de declarar discursivamente pertencimento ao mesmo grupo de amigos, por
90
agir de forma diferente, a aluna reforça como sua atitude ocorreu na tentativa de
evitar conflitos.
4.2.2. “agora é super diferente”
No dia 08 de julho, final do primeiro semestre letivo do ano de 2015, eu
estava na sala de aula da turma 1002 fechando notas e preenchendo o meu diário,
quando Pedro, um dos alunos da turma 1001 se oferece para me ajudar, pois
estava em um horário vago, sem aulas. Coincidentemente, eu estava lançando as
notas da turma 1001 no diário e me lembrei da prova de Pedro, que havia
chamado bastante a minha atenção durante a correção.
Ao longo daquele semestre havia desenvolvido algumas sessões de
reflexão sobre a vida na escola com a turma dele, como já foi dito anteriormente;
por isso, no momento em que precisei elaborar a prova das minhas turmas para
aquele final de semestre, decidi que colocaria, no final, uma questão que
promovesse reflexão, até mesmo para que eles tivessem, dentro de uma avaliação
formal, um espaço para que pensassem sobre nossas vidas. Dessa forma, escolhi
uma tirinha da Mafalda e pedi para que tentassem relacionar a tirinha com o que
viviam na escola. As provas não foram apenas aplicadas para a 1001, mas também
para as outras quatro turmas de primeiro ano da escola, das quais eu também era
professora. Tomei essa decisão, pois, ao longo do processo de busca por
entendimento junto à 1001, fui percebendo que não poderia me questionar sobre a
minha prática profissional se não olhasse e não me atentasse para os outros
espaços em que eu atuava. Assim, foi a partir do compartilhamento de ideias sobre
uma das questões da prova e a resposta dada por Pedro a ela (cf. ANEXO II) que
surgiu a conversa cujos excertos encontram-se, a seguir:
Excerto 6 - “agora entram professores, saem professores” Evellyn 1
2 3 4 5 6 7 8
eu achei legal isso aqui que eu estava lendo em
casa na hora que eu fui corrigir é::: esse
exercício sobre a tirinha aí eu achei legal que
você e o Cleiton fizeram separado né? ele colocou
que a melhor arma são palavras foi bem legal mas
eu fiquei curiosa com isso que você escreveu aqui
por que que você relacionou é::: o que tá na
tirinha com = Pedro 9
10 =é porque eu assim é muito diferente é porque a
gente estava no autonomia e agora eu comecei a vir
91
11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26
27 28
para o primeiro ano agora que no autonomia a gente
via vídeo é televisão e tudo complicava aí chegou
no primeiro ano é super diferente porque é::
diferente porque a gente aprendia as coisas com as
pessoas explicando na televisão aí chego chega
aqui no primeiro ano é tudo diferente sai
professores e entram professores e vai complicando
mais, entendeu? é -bé sei lá é diferente não é tão
ruim nem tão bom mas é diferente é:: então isso os
professores tem professores que conseguem entender
e tem professores que também não conseguem
entender que tem aluno que ainda por si ainda
poderia até ter mesmo uma ajuda pra poder
conseguir mas tem professores que não enxergam que
o aluno tem dificuldade que tem aluno que tem
facilidade de aprender e tem outros também que não
tem eles tem gente que sei lá não sei explicar
muito essas coisas
Assim que inicio a conversa com Pedro, revelo como me senti ao corrigir a
prova que o aluno havia feito com o colega de turma, Cleber (eu achei legal –
linha 1; eu achei legal – linha 3; eu fiquei curiosa – linha 6). Em minha fala dou
destaque à resposta de Cleber (linhas 4-5) e começo a questionar Pedro, ao dizer
que fiquei curiosa para saber sobre a relação que ele havia feito entre a tirinha e a
situação que viveu dentro da escola.
Eu esperava que Pedro fosse mencionar ou até mesmo narrar a situação
que relatou na prova utilizando o turno seguinte ao meu, já que rapidamente se
engajou na interação, porém, Pedro começa uma longa sessão de reflexão sobre
como é diferente agora que é aluno do ensino regular, em comparação ao que
vivenciou enquanto ex-aluno do programa Autonomia. Essa reflexão permeará
toda a nossa conversa, logo, preferi dividir nossa interação em excertos, apesar de
eles terem acontecido em um mesmo encontro, para poder organizar melhor a
análise e para que possa olhar para as minúcias de nosso evento.
No primeiro turno de Pedro, observo que a resposta do aluno não segue o
meu questionamento, isto é, parecemos estar em enquadres diferentes. Talvez,
isso se deva ao fato de nos posicionarmos, normalmente, de forma assimétrica em
sala de aula: eu, a professora, e ele, o aluno.
No início de sua fala, Pedro dá ao seu turno um tom de justificativa à sua
resposta na prova – é porque eu assim é muito diferente (linha 9), se referindo à
diferença entre o sistema regular e o programa Autonomia. Ao longo do turno,
Pedro utiliza o adjetivo diferente para falar de dois momentos distintos: presente
92
e passado. Isso pode ser notado quando o aluno utiliza intensificadores para
mencionar o quão diferente tem sido essa transição para o sistema de ensino
regular (muito diferente– linha 1;super diferente – linha 13; tudo diferente –
linha 16).
Pedro reforça que agora é muito diferente, pois quando era aluno do
autonomia, ele e os demais alunos do programa assistiam a vídeos na televisão e
tudo complicava (linha 12), porque eles aprendiam as coisas com as pessoas
explicando na televisão (linhas 14-15). Percebo que Pedro parece reconhecer que
essas pessoas que explicavam as coisas na televisão, não eram professores e como
estavam na televisão, existia um distanciamento entre elas e os alunos do
programa, o que fazia com que tudo complicasse.
Porém, Pedro salienta que agora é tudo diferente (linha 16). Para minha
surpresa, agora que estão no ensino regular e têm professores para todas as
disciplinas, Pedro ressalta que é tudo diferente, sai professores e entram
professores e vai complicando (linhas 16-17). Assim, percebo que, para o aluno, o
distanciamento que existia entre a televisão e as pessoas que transmitiam os
conteúdos através dos vídeos que ele e seus colegas assistiam, ainda permanece no
ensino regular em relação aos seus professores. Contudo, este distanciamento é
sentido, pelo aluno, de maneira significativa, uma vez que vai complicando mais
(linha 17-18).
A fala de Pedro apresenta a estrutura de uma crônica, isto é, apresenta uma
sequência de eventos encadeados temporalmente, contudo, sem alguns elementos
da narrativa tradicional laboviana, como o resumo, por exemplo. Porém, a crônica
gerada em interação com Pedro é formada por avaliações, durante todo o nosso
encontro. Além disso, noto que o aluno expressa seus sentimentos em relação à
mudança do Programa Autonomia para o ensino regular lexicalizando seus
sentimentos em gradação. Logo, ao dizer que agora que está no primeiro ano “é
muito diferente” (linha 9), o advérbio de intensidade muito expressa um grau de
intensidade baixo em relação à “é super diferente” (linha 13), que, por sua vez,
denota um grau de intensidade médio em relação ao grau alto “é tudo diferente”
(linha 16), todos eles escolhidos por Pedro para expressar como se sentia naquele
novo contexto.
Como professora desse grupo de alunos, a fala de Pedro me surpreende,
uma vez que, seguindo a maneira como acredito que seja o processo de ensino-
93
aprendizagem, professores e alunos deveriam trabalhar em conjunto para que o
aprendizado ocorra de forma prazerosa, através da troca de experiências e saberes.
Logo, para mim, o sistema regular, por proporcionar essa troca e esse contato
entre professores e alunos, seria melhor para os alunos que estavam chegando do
programa autonomia, pois os professores poderiam compreender suas angústias,
dificuldades e dúvidas. Segundo Pedro, não é tão ruim nem tão bom mas é
diferente (linha 18-19).
Todavia, Pedro continua a falar apontando, em seu turno, o papel dos
professores nesse novo contexto (linhas 20 – 27), destacando que há professores
que entendem e professores que não entendem que existem alunos que não
conseguem aprender sozinhos, alunos que precisam de ajuda. Dessa forma, apesar
de ter apontado inicialmente o distanciamento dos professores que entram e saem
da sala de aula, Pedro reconhece a importância dos professores na mediação do
processo de ensino-aprendizagem. Cabe salientar que Pedro estava conversando
comigo, professora desta turma, e por isso, talvez, demonstre mais cautela ao falar
sobre os professores, como pude perceber a partir de expressões vagas nas linhas
26 e 27 (“sei lá, não sei explicar muito essas coisas”).
Pedro, assim como seu colega Iuri, se vale do processo de evitação para
prevenir ameaças à própria face. O primeiro movimento ocorre quando o aluno
parece entender a minha pergunta como uma possível ameaça.
Noto a minha tentativa em não tornar aquele momento ameaçador, posto
que em meu turno apresento grande hesitação – alongamento da vogal e (é:::)
(linha7) uma vez que não faço imediatamente a pergunta para o aluno. No
entanto, a minha pergunta se refere a uma avaliação feita por Pedro e Cleber.
Logo, também reconheço que ao questioná-lo sobre uma resposta dada em uma
prova, apesar dos meus rodeios, clamo pela participação do aluno. Ademais, por
se tratar de uma prova bimestral, admito que meu questionamento poderia deixar
o aluno inseguro, já que para muitos alunos, a avaliação formal é um instrumento
que não costuma admitir mais de uma resposta. Normalmente, espera-se o certo
ou o errado.
Pedro, porém, prefere não me responder e dá um novo rumo para nossa
conversa. Em um turno composto por enunciados truncados e vagos, busca se
esquivar de qualquer assunto que possa interferir na construção favorável de sua
imagem – sei lá é diferente não é tão ruim nem tão bom mas é diferente (linha 19
94
- 20); tem professores que conseguem entender e professores que não conseguem
entender que tem alunos que ainda por si ainda poderia até ter mesmo uma ajuda
pra poder conseguir(linhas 20-24); mas tem professores que não enxergam que o
aluno tem dificuldade que tem aluno que tem facilidade de aprender e tem outros
também que não tem eles tem gente que sei lá não sei explicar muito essas coisas.
(linhas 24-28).
Ainda que utilize algumas estratégias de evitação para salvaguardar sua
face, Pedro se constrói em interação como um aluno que tem dificuldade.
Nossa interação continua e eu busco entender melhor o que Pedro estava
tentando me mostrar ao decidir não falar sobre sua resposta à questão da prova e
dedicar-se a tornar público como estava sentindo a transição para o Ensino Médio
regular.
Excerto 7 -“você não acha também que os alunos não colaboram?”
Evellyn 29
30 31 32 33 34 35 36 37 38 39
hhhhh não é legal a gente pensar só que eu fiquei
pensando sabe no que é:: eu tava vendo, né? eu
elogiei vocês no semestre passado porque eu achei
que é: a turma entregou bastante trabalhos nesse
semestre no último bimestre mas nesse bimestre
pouca gente entregou trabalho aí eu achei assim
poxa será que eles também não estão se
entregando, sabe? já que vocês falam falaram
muito daquele negócio de preconceito de que acha
que os professores tem preconceito mas será que
vocês também não tão deixando? Pedro 40
41 42
é é porque eu eu mesmo percebo que a turma tá::
deixando de sei lá desacreditando porque os
estudos não estão como antigamente Evellyn 43 por que? Pedro 44
45 46 47 48 49 50 51 52
porque tem professores que se interessam existe
não vou falar que não existe tem professores que
se interessam ao ensinar e tem professores que não
se interessam entendeu. “Ah lá, não sabe? Já
expliquei então você faz” aí fica por isso mesmo.
os alunos não deixa de acreditar. professor-a
gente pede para ir para sala dos professores, os
professores já se alteram e já tem outros
professores que explicam direito enten[deu] e=
Inicio meu turno através de um período marcado porhesitações – hhhh
não é legal a gente pensar só que eu fiquei pensando sabe no que é:: eu tava
vendo né(linhas 29-30) – para iniciar, de forma polida, uma problematização do
papel do aluno, no diálogo antes focado no questionamento das atitudes dos
95
professores. Além disso, procuro me alinhar aos novos contornos que a conversa
tomou.
O uso da interjeição poxa indica o meu espanto com a colocação do aluno
que, assim como Iuri, parece responsabilizar seus professores, já que são eles que
não entendem que alguns alunos têm ou não dificuldade. Essa interjeição também
introduz o meu próximo questionamento – poxa será que eles também não estão
se entregando, sabe? – que me aproxima emocionalmente do aluno, salientando a
minha preocupação com o processo de ensino-aprendizagem, com o objetivo de
levá-lo a uma reflexão ainda maior sobre as questões que ele tentou apontar
anteriormente.
Após chamar atenção para o preconceito que os alunos dizem sofrer (linha
37), pergunto: mas será que vocês também não tão deixando?(linhas 38-39),
deixando elíptico o pensamento “a desejar” ou “de fazer a parte de vocês”,
sustentando a minha face de professora que se preocupa com os alunos, e na
tentativa de evitar o conflito e ressaltar a assimetria entre alunos e professores.
Pedro, então, escolhe o verbo desacreditarem a turma tá:: deixando de sei lá
desacreditando(linha 40-41) para se referir ao sentimento da turma, naquele
momento, e logo volta a focar seu discurso no comportamento dos professores.
Para problematizar o interesse de alguns professores em ensinar, Pedro,
primeiro, tenta defender sua linha de conduta denunciando que alguns professores
têm interesse, mas o aluno faz isso de forma hesitante: porque tem professores
que se interessam existe não vou falar que não existe tem professores que se
interessam ao ensinar e tem professores que não se interessam entendeu. (linhas
44 a 47). Pedro busca a minha concordância e confere se estou seguindo a sua
linha de pensamento com o emprego do termo entendeu no final do período.
Na sequência, ele reporta a fala de um professor para sustentar seu
argumento de que alguns não se interessam pelo processo de aprendizagem dos
alunos: Ah lá, não sabe? Já expliquei então você faz (linhas 47-48). A utilização
da expressão popular aí fica por isso mesmo(linha 48) sugere que cabe à
consciência e ao interesse do professor explicar novamente ou não. Logo, Pedro
talvez queira ressaltar que não há nenhuma forma de punição para o professor
desinteressado.
Para finalizar seu turno, Pedro repete o mesmo modelo de interação e
transmite a sua opinião de forma implícita: os alunos não deixa de
96
acreditar[sic](linha 49). Por isso, o possível “desacreditar” do aluno seria
consequência das atitudes de um grupo de professores. Ao mesmo tempo, tenta
ser polido, ao deixar claro que nem todos os professores agem da mesma maneira,
direcionando a sua fala a mim: professor-a a gente pede para ir para sala dos
professores, os professores já se alteram e já tem outros professores que explicam
direito enten[deu] e= (linhas 49-52). Mais uma vez, percebo a preocupação de
Pedro em confirmar se estamos sob um mesmo enquadre.
Excerto 8 - “Eu não chego aqui e se entrego também” Evellyn 53
54 55 56 57 58 59 60 61 62 63
=[mas]então mas às vezes eu fico pensando assim
nos estudos –os estudos mudaram mas por que agora
os professores estão assim diferentes ou fecha
essa porta aí para mim Peterson, tá muito barulho.
((Pedro fecha a porta)) –é –não –deixa assim
encostada. Nossa, mas aí::: você falou desse
negócio do professor você tava dizendo que os
estudos tá diferente porque o professor você
procura os professores na sala dos professores
eles não ajudam uns ajudam você não acha também
que os alunos não colaboram? Pedro 64
65 66 67 68 69 70 71 72 73 74 75 76 77 78 79 80 81 82 83 84 85
tem alunos que –que fica desinteressado, têm
bastante. Eu –eu vou falar de mim – eu -eu me
interesso eu acho mas quando eu não sei eu tento
buscar mais daquilo para eu poder ver se eu
consigo me aproximar. Quando eu vejo que eu não tô
conseguindo-não é questão de desistir – eu tipo
assim – eu paro porque pô não vou conseguir então
eu vou parar porque fica difícil às vezes faço
prova às vezes fico nervoso não consigo pensar
direito porque eu fico com medo de errar mas é::
eu não chego aqui e se entrego também porque tem
alunos que se entregam não quer crescer eu-eu-
penso assim –eu quero crescer mas vendo por essa
dificuldade que eu tô passando eu acabo me
desinteressando também porque eu penso assim
“ah..eu não vou conseguir” porque Matemática eu
não às vezes agora no primeiro ano eu não tô
conseguindo pegar muito, Biologia também mas agora
eu tô conseguindo me recuperar História também
acabei de fazer agora a avaliação do segundo
((bimestre))que eu tirei em história, mas em
história eu tô com quatro na média Evellyn 86 huhum tá pertinho Pedro 87
88 e eu não sei quanto que eu vou tirar agora [nessa
prova agora]
Intrigada, após a fala de Pedro, pareço agir não só na tentativa de
problematizar o que o aluno falou, mas também na tentativa de me defender e
defender o grupo do qual faço parte: o grupo dos professores. Pedro, ainda que
não se posicione diretamente contrário às atitudes dos professores, não volta seu
97
olhar para o grupo de alunos ao qual ele pertence. Assim, ao refletir sobre o que
havia ouvido, utilizo a expressão você falou desse negócio (linhas 58-59) para
retomar a fala de Pedro, conferindo a ele o status de autoria sobre aquele
enunciado. Em seguida, a reproduzo para que nós dois comecemos a pensar juntos
sobre a questão de os estudos terem mudado e sobre o papel de alunos e
professores neste processo. Para isso, pergunto você não acha também que os
alunos não colaboram? (linhas 62-63). Cabe salientar que, apesar de buscar o
envolvimento interacional mais natural típico da conversa espontânea, ainda nesse
momento de meu encontro com Pedro não consigo. Meus turnos, até então,
encerram-se com perguntas endereçadas ao aluno. Assim, o meu momento de
reflexão com Pedro, formado por perguntas e respostas, sejam estas às minhas
perguntas ou esquivas a elas, aproxima-se do que geralmente se espera de um
enquadre de entrevista de pesquisa.
Pedro inicia sua resposta de forma impessoal, usando o termo genérico
alunospara expressar sua opinião sobre um sentimento comum entre os colegas –
tem alunos que –que fica desinteressado, têm bastante (linhas 64-65). Entretanto,
na sequência, ele opta por focar seu discurso em sua experiência pessoal, usando
frases assertivas marcadas pela utilização do pronome pessoal em primeira pessoa
eu: eu –eu vou falar de mim – eu -eu me interesso (linhas 65-66). Pode-se
observar na fala de Pedro uma distinção entre alunos que não se interessam e ele,
que se diz interessado, apesar da marca de hesitação eu acho no fim da frase que
também lhe confere certa modéstia, mais uma vez, como estratégia de não ameaça
à face positiva que projeta em cena.
Em seguida, o aluno tenta se justificar ao falar sobre seu interesse: mas
quando eu não sei eu tento buscar mais daquilo para eu poder ver se eu consigo
me aproximar (linhas 66-68). Pedro se constrói como um aluno que tem
dificuldade e que procura melhorar, porém essa dificuldade acaba resultando em
desmotivação – quando eu vejo que eu não tô conseguindo-não é questão de
desistir – eu tipo assim – eu paro porque pô não vou conseguir então eu vou
parar porque fica difícil (linhas 68-71).
Contudo, Pedro parece não se orgulhar da desistência e manifesta
preocupação em como o que dirá será recebido por mim, que além de sua ouvinte,
também sou sua professora. Além disso, assumir que pode desistir poderia ser
extremamente ameaçador à fachada que vem construindo ao longo da interação, já
98
que, apesar da dificuldade, é um aluno que se dedica. Pedro, então, prefere dizer
que não é questão de desistir (linha 69).
Depois, Pedro utiliza a expressão coloquial tipo assim para iniciar uma
sequência explicativa: eu tipo assim - eu paro porque pô não vou conseguir.
(linhas 69-70). A escolha da interjeição de uso popular pô expressa sua
insatisfação. Ele desiste porque acha que não vai conseguir – então vou parar
porque fica difícil (linha 71).
Em seguida, o aluno apresenta uma sequência marcada pelo uso da
locução adverbial às vezes para elucidar sua dificuldade e sua insegurança: às
vezes faço prova às vezes fico nervoso não consigo pensar direito porque eu fico
com medo de errar. (linhas 71-73).
Esse turno é inteiramente marcado pelo uso da conjunção adversativa mas
para justificar o desinteresse do aluno e, também, para restringir seus objetivos,
como se sempre houvesse um obstáculo separando-o de seus sonhos. Ele se coloca
como diferente dos outros, porque se interessa e tem um objetivo mas é:: eu não
chego aqui e se entrego também porque tem alunos que se entregam não quer
crescer eu-eu- penso assim –eu quero crescer (linhas 74 – 76). No entanto, há
sempre a dificuldade: mas vendo por essa dificuldade que eu tô passando eu
acabo me desinteressando também porque eu penso assim “ah..eu não vou
conseguir (linhas 76-79). Ele se interessa, mas...Ele tenta crescer, mas...Além
disso, Pedro, ao reportar seu pensamento “ah..eu não vou conseguir”, indica, mais
uma vez, sua insegurança e sua desmotivação.
Após essas sequências adversativas, o aluno inicia uma nova sequência
explicativa para exemplificar as dificuldades que possui em algumas disciplinas
do currículo escolar: porque Matemática eu não às vezes agora no primeiro ano
eu não tô conseguindo pegar muito, Biologia também mas agora eu tô
conseguindo me recuperar História também acabei de fazer agora a avaliação do
segundo ((bimestre))que eu tirei em história, mas em história eu tô com quatro na
média (linhas 79-85). Então, tento motivá-lo de forma solidária “Huhum tá
pertinho”, fazendo referência à média cinco estipulada pela Secretaria de
Educação. Ele, mais uma vez, manifesta insegurança - e eu não sei quanto que eu
vou tirar agora [nessa prova agora] (linhas 87-88), tornando público, assim, sua
preocupação também com as avaliações formais.
99
Excerto 9 - “eu acho que tudo mudou” Evellyn 89
90 91
[você não acha que é muito diferente do ano
passado ou você acha que tipo você acha que você
mudou também? Será=
Pedro
92 93 94 95 96 97 98 99 100 101 102 103 104 105 106 107 108 109
110
111
112
113
114
115
tem as duas opções mudou e:: não tá- tá um
pouquinho sabe porque mudou? porque porque nana
autonomia a gente só tinha um professor- o
professor podia dar atenção para gente então a
autonomia toda ficava em dúvida o professor na
hora parava o que ele tava fazendo e explicava
agora na:: -na mil e um de tarde- não de tarde
não – de manhã a gente faz o- a gente fica com
uma dúvida os professores não tem paciência não
quer explicar porque falou que já explicou e a
turma –e a turma não prestou atenção tem alunos
que presta atenção tem alunos que não presta fica
conversando alto aquela algazarra aí não dá para
escutar direito. O professor fala e fala que tava
todo mundo conversando mas não é tem aluno que
presta atenção eu se eu tiver conversando e
alguém tiver falando comigo eu paro de conversar
com a pessoa para tentar entender o que a pessoa
fala às vezes eu escuto às vezes às vezes eu peço
para a pessoa parar para poder explicar de novo.
Antes o professor explicava tudo direitinho ele
dava atenção para todo mundo dentro da sala mas
quando chegou no primeiro ano tudo mudou. Eu acho
que tudo mudou.
Evellyn 116 hhhhhh Pedro 117 Agora é super diferente
Em turno sobreposto ao de Pedro, pergunto se ele não acha que é porque
as coisas mudaram em relação ao último ano e se ele também não mudou (linhas
89-91). Sem muito esperar, Pedro diz que “tem as duas opções” (linha 92). Apesar
de utilizar o termo pouquinho para se referir às mudanças, ele acaba revelando
mudanças significativas em relação ao ano letivo anterior, o que possibilita que eu
entenda melhor como funcionava o PA na escola em que trabalho.
Ademais, ao realizar essa escolha, Pedro também protege a minha face,
pois evita uma possível discordância, visto que dizer que algo mudou “um
pouquinho” é menos ameaçador do que admitir que mudou muito, por exemplo.
Através da pergunta retórica sabe porque mudou?(linha 93) e do uso da
conjunção explicativa porque, ele inicia a explicação do que considera ter
mudado, focando seu discurso nas atitudes diferentes dos professores perante as
dúvidas dos alunos. Enquanto a fachada do professor único do PA é construída
pelo aluno por atribuições de qualidades positivas – podia dar atenção para
gente(linha 95); na hora parava o que ele tava fazendo e explicava (linhas 96-97),
a face dos professores de sua turma atual é construída de forma contrária – os
100
professores não tem paciência não quer explicar porque falou que já explicou e a
turma –e a turma não prestou atenção (linhas 100-102).
Ainda que na visão de Pedro haja professores que se interessam e
professores que não se interessam, ele direciona o seu olhar para o comportamento
dos alunos ao relatar que tem alunos que presta atenção tem alunos que não
presta fica conversando alto aquela algazarra aí não dá para escutar direito
(linha 103).
Pedro utiliza o substantivo algazarra(linha 104)para se referir ao barulho
que a turmaproduz quando todos conversam, expressão comumente associada a
esse contexto. No entanto, ele se defende e se distancia discursivamente, ao
utilizar o pronome eu, desses alunos que conversam durante as aulas: eu –se eu
tiver conversando e alguém tiver falando comigo eu paro de conversar com a
pessoa para tentar entender(linhas 108-109).
Noto que, ao se referir aos alunos, Pedro não o faz em relação somente aos
que estudaram com ele no Programa Autonomia, mas aos alunos da 1001 como
um todo. Em comparação ao ano anterior, ele reforça a ideia de que antes o
professor explicava a matéria, dava atenção a todos os alunos (linhas 113-114) e
que quando chegou no primeiro ano tudo mudou (linhas 114-115). No começo de
sua fala, Pedro diz que as coisas estão um pouquinho diferente, mas depois de
relembrar sua experiência tanto no Programa Autonomia, quanto como aluno da
1001, admite que agora é super diferente (linha 117).
Excerto 10 - “como que uma professora não sabe explicar um dever para um aluno?”
Evellyn 118
119 120 121 122
é...é que eu não consigo imaginar por isso que
eu tenho que conversar com vocês porque eu acho
que mesmo sabendo disso, acho que só vocês
contando mesmo, falando que-que tem como a
gente ter uma noção melhor do que acontece Pedro 123
124 125 126 127 128 129
é:: porque tudo –é –é tudo na conversa, como eu
falei com a professora Maria, ela conversa
bastante comigo também-ela é legal também-ela
explica, ela tem paciência para poder explicar,
mas tem alguns que já não vão gostar muito –não
tem professores que explicam bem mas tem u::ns
sabe Evellyn 130 [hhhhh] Pedro 131
132 133 134 135
[hhhhh] tem uns que ainda não sabe explicar –
se embola é:: no autonomia mesmo tinha uma
professora que não vou citar nomes né que todo
mundo já sabe já quem é:: ela precisava para os
alunos explicar a ela o dever que ela não sabia
101
136 137 138
fazer. como que uma- como que uma professora
não sabe explicar um dever para um aluno?
aí:::= Evellyn 139
140 141
=mas você não acha que a gente também pode
aprender com vocês? Eu acho que eu super
aprendo com [vocês] Pedro 142
143 144
[não] pode –pode sim aprender mas aí já é
demais hhh abrir o livro e perguntar como se
faz o dever para os alunos hhhh Evellyn 145 hhhhhh Pedro 146
147 148 149 150 151 152 153
ela abriu o livro e perguntou “gente abre o
livro na página tal. como é que faz esse daqui?
eu não sei fazer isso daqui não- isso aqui é
muito diferente não sei o que” aí ficava todo
mundo de boca aberta porque acabava que ninguém
sabia também –vai fazer o que? A professora
ficar perguntando para gente como é que se faz
o dever?
Após ouvir as considerações de Pedro sobre o programa Autonomia e
sobre o que tem vivido na 1001, ressalto o quão importante é a minha conversa
com os alunos para entender o que de fato acontece em sala de aula e como era
quando estudavam no Autonomia. Para isso, utilizo enunciados procurando
transmitir a relevância de seus relatos – “eu não consigo imaginar por isso que eu
tenho que conversar com vocês”, “só vocês contando mesmo... tem como a gente
ter uma noção melhor do que acontece” (linhas 118-122).
Pedro parece reconhecer a importância da conversa entre professores e
alunos também (linhas 123-124). Talvez, para Pedro, os professores que
conversam com os alunos podem ter mais paciência para lidar com eles. O aluno
cita a professora Maria, dizendo que ela conversa bastante com ele também, que
ela é legal também, tem paciência, mas que nem todos os professores têm essa
atitude (linhas 124 – 127). Ao fazer isso, posso entender que Pedro me alinha a
professores como Maria, pois, assim como ela, também estou conversando com
ele, logo, tambémsou legal. Através da fala de Pedro, posso perceber como ele me
vê. Contudo, mais uma vez, Pedro ressalta que há professores e professores.
(linhas 128-129): tem professores que explicam bem mas tem u::ns sabe. O
emprego da conjunção adversativa mas e de sabe, semelhante ao entendeu
utilizado em turnos anteriores no fim da fala, sugere ideia oposta à expressa
anteriormente, isto é, na opinião do aluno, há professores que não explicam tão
bem.
Noto que aos poucos Pedro se sente mais à vontade para falar sobre as
coisas que o afligem, e nosso encontro ganha, finalmente, contornos de uma
102
conversa espontânea, embora ainda estejamos em contexto institucional. A minha
assimetria em relação ao aluno, agora, não aparece de forma tão visível.
Uma das formas de perceber essa mudança em nossos footings23são os
risos das linhas 130 e 131 e a mudança na construção de meus turnos, que antes
eram formados apenas por perguntas, o que parece ajudar o aluno a sentir-se mais
confortável em nossa interação.
Para minha surpresa, ao falar de professores que, em seu entendimento,
não sabem explicar e se embolam (cf. linhas 131 – 138), ele não cita um professor
da 1001, mas sim do PA – no autonomia mesmo tinha uma professora que não
vou citar nomes né que todo mundo já sabe já quem é:: ela precisava para os
alunos explicar a ela o dever que ela não sabia fazer (linhas 132-136).
Até aquele momento da conversa, mesmo que eu soubesse que os alunos
do programa tinham aulas com apenas um professor em todos os módulos do
curso, a fala de Pedro me fez acreditar que o trabalho realizado era bom, já que ele
destacava o bom relacionamento com o professor, a paciência que ele tinha em
sanar as dúvidas, a ponto de “parar tudo” e explicar novamente o conteúdo.
Porém, para citar exemplos de professores que não sabem explicar e “se
embolam”, o aluno narra uma situação que ocorreu com uma professora na época
em que era do Autonomia. Segundo Pedro (linha 135), os alunos precisavam
explicar o exercício para a professora, o que o deixava indignado como assim uma
professora não sabe explicar um dever para um aluno? (linhas 136-137).
Em turno seguinte ao de Pedro, provoco sua reflexão ao questioná-lo se ele
não acha possível que os professores também aprendam com os alunos,
salientando que eu acho que eu aprendo com eles (linha 139-141) e, revelando,
dessa forma, como acredito que seja o processo de ensino-aprendizagem. Pedro,
por sua vez, não espera que eu termine de falar para concordar - [não] pode –pode
sim aprender (linha 142) , mas diz que não saber explicar o exercício já é demais
(linha 142-143); abrir o livro e perguntar como se faz o dever para os alunos
(linha 144).
23Em interação, os participantes assumem posições diferentes, a partir da necessidade de
adequarem-se à situação comunicativa em que estão engajados. Sobre isso, Goffman ([1987] 2013
p. 146) salienta que “uma mudança de footing implica uma mudança no alinhamento que
assumimos para nós mesmos e para os outros presentes, expressa na maneira como conduzimos a
produção ou a recepção de uma elocução. Uma mudança em nosso footing é um outro modo de
falar de uma mudança em nosso enquadre dos eventos.”
103
A crítica de Pedro denuncia o não planejamento da professora e não
preparo para trabalhar todas as disciplinas com aqueles alunos. No turno seguinte,
ele utiliza uma pequena sequência de orações narrativas e falas reportadas da
professora para me contar a situação.
Creio que Pedro tenha usado esta pequena narrativa como ferramenta para
que eu pudesse acreditar que aquela situação de fato ocorria e para ressaltar como
os alunos se sentiam, já que ficavam de boca aberta (linha 150). A expressão
coloquial empregada indica surpresa, pois tal atitude não era a esperada pelos
alunos, já que a maioria vê o professor como o detentor do conhecimento, aquele
que sabe tudo. Aproveito a ocasião para perguntar a Pedro o porquê de ele ter
participado do Programa Autonomia.
Excerto 11 - “e por que você foi para o autonomia, Pedro?”
Evellyn 154 e porque você foi para o Autonomia, Pedro? Pedro 155
156 porque eu tinha muita dificuldade-eu-eu-eu era
igual o Iuri Evellyn 157 uhum Pedro 158
159 160 161 162
respondia tudo-assim- fa- é- falando –e – e-
quando chegava na hora eu sabia tudo –na hora
de fazer o dever –tava tudo certo mas quando
chegava na hora de fazer a prova eu não
conseguia= Evellyn 163 =uhum= Pedro 164
165 166 167 168 169 170
Então eu comecei a brincar na sala de aula
comecei a fazer um monte de coisa. matava aula.
depois que eu vi que isso não ia acontecer nada
–isso não ia me levar a nada –eu faltando aula
não ia ter uma vida que queria que eu sonho em
ser fisioterapeuta né:: eu quero ser
fisioterapeuta Evellyn 171 que chique Pedro 172
173 eu quero ser fisioterapeuta então foi assim. se
eu não estudar vou chega= Evellyn 174 =tem [que]= Pedro 175
176 177 178 179 180 181 182 183 184 185 186 187 188 189 190
[se eu não] estudar –se eu não fizer nada
da minha vida como é que eu vou ser um
fisioterapeuta –se eu não fizer nada da vida.
então, eu fui pensando e agora- agora que eu tô
caindo na real porque eu brincava muito no
ensino ih-eu brincava no ensino fundamental
assim – ficava brincando muito. matava aula. –
não queria saber de nada, as provas não fazia
deixava tudo em branco porque eu não sabia e no
primeiro ano agora eu tento fazer mesmo estando
errado eu tô fazendo porque eu tô vendo que
hoje em dia tá complicado para você arranjar um
trabalho você tem que ter pelo menos o primeiro
grau completo porque tá tudo difícil e depois –
e agora –e agora quando eu cheguei no primeiro
ano agora dá tempo para eu recuperar eu vou
104
191 tentar correr atrás Evellyn 192
193 ai que bo::m mas aí ainda dá tempo tem que
estudar bastante biologia Pedro 194 é::agora eu tô sem tempo também
Ao perguntar o que o levou ao Programa Autonomia, Pedro me responde
com uma narrativa de história de vida (Linde, 1993) o motivo. Pedro tinha muita
dificuldade e se compara a outro aluno também oriundo do programa, acreditando
que eu entenderia o que desejava expressar a partir dessa comparação. Ele ressalta
novamente a dificuldade que sente quando precisa fazer uma prova:respondia
tudo-assim- fa- é- falando –e – e- quando chegava na hora eu sabia tudo –na
hora de fazer o dever –tava tudo certo mas quando chegava na hora de fazer a
prova eu não conseguia= (linhas 158-162). Talvez, mesmo que indiretamente,
Pedro faça isso em forma de crítica ao modelo de avaliação tradicional. A prova
não avaliaria o seu potencial, porque na hora de fazer o dever - tava tudo certo
(linhas 159-160).
A conjunção conclusiva então é empregada para iniciar uma sequência
explicativa das consequências de sua insatisfação com os resultados obtidos na
escola - então eu comecei a brincar na sala de aula comecei a fazer um monte de
coisa. matava aula. depois que eu vi que isso não ia acontecer nada –isso não ia
me levar a nada (linhas 164-167) . Entretanto, o aluno decidiu mudar sua postura
em relação aos estudos, porque tinha um objetivo: –eu faltando aula não ia ter
uma vida que queria que eu sonho em ser fisioterapeuta né:: eu quero ser
fisioterapeuta (linha 167- 170). Ao reconstruir sua sentença trocando o verbo
sonhar por querer, ele declara acreditar ser possível agir para alcançar esse sonho
e torna o seu objetivo algo real. Eu, em seguida, o incentivo: que chique (linha
171).
Pedro segue expressando seus desejos e relatando suas experiências
enquanto aluno: eu quero ser fisioterapeuta então foi assim. se eu não estudar vou
chega= (linha 174). Eu lhe sobreponho incentivando-o mais uma vez e
aconselhando-o a estudar para alcançar seu objetivo =tem [que]= (linha 174). Ele
continua o turno e destaca a importância do estudo para a realização de seu sonho:
[se eu não] estudar –se eu não fizer nada da minha vida como é que eu vou ser
um fisioterapeuta –se eu não fizer nada da vida (linhas 175-177).
Pedro constrói sua identidade como aluno do Ensino Fundamental e agora
do Ensino Médio. Para se referir negativamente às suas atitudes no Fundamental,
105
utiliza expressões coloquiais associadas ao contexto escolar: eu brincava
muito(linha 179),matava aula(linha 181), não queria saber de nada(linha 182), as
provas não fazia deixava tudo em branco porque eu não sabia (linhas 182-183).
No entanto, no Ensino Médio, sua postura mudou: eu tô caindo na real (linha
179),eu tento fazer mesmo estando errado eu tô fazendo (linhas 184-185)
O aluno se projeta discursivamente como um aluno que tem um objetivo
na vida e precisa estudar para alcançá-lo. Como um ator social, Pedro constrói sua
identidade na interação com o outro, seguindo o que seria adequado social e
culturalmente. Biar (2012, p.48) analisa o conceito de self, de Goffman (1959),
isto é, “o ‘si mesmo’ (...) definido como o sentido subjetivo de si que um
indivíduo vem a obter como resultado de suas várias experiências sociais”.
Através de seu discurso, Pedro mostra-se maduro e consciente acerca do
mundo em que vive. Apesar de saber que tá tudo difícil (linha 188), expressa
entusiasmo e otimismo: agora quando eu cheguei no primeiro ano agora dá
tempo para eu recuperar eu vou tentar correr atrás (linhas 189-191). Eu o
incentivo e o aconselho novamente: ai que bo::m mas aí ainda dá tempo tem que
estudar bastante biologia (linhas 192-193). Em seguida, Pedro levemente
desconstrói o empenho que demonstrou anteriormente, substituindo o mas sempre
presente em sua fala pelo “é” que adquire significado adversativo nesse contexto:
é::agora eu tô sem tempo também.(linha 194).
Excerto 12 - “eu te convido a pensar”
Evellyn 195
196 197 198 199
mas a gente arranja tempo. eu fiquei curiosa
porque você colocou assim no cantinho? Você
lembra porque você escreveu isso? Não sei, eu
olhei assim e falei:: ge::nte porque Pedro
escreveu assim no cantinho? Pedro 200 não sei hhhhhh Evellyn 201
202 203 204 205 206 207 208 209 210 211 212 213
hhhhhhh eu tô pensando ainda. vamos ficar
pensando nisso. eu fiquei pensando mas assim eu
acho várias coisas assim –você sabia que eu ia
ler né? que a professora vai ler – não sei se
você ficou com vergonha porque era a professora
que ia ler, mas vamos- eu te convido a pensar
no porquê que será que você escreveu no
cantinho. não precisa me responder agora não
porque é uma coisa que tem que pensar porque a
gente vai continuar pensando nisso bimestre que
vem sobre aquelas coisas todas da sala e você
acha que tem questionamentos novos? Porquês
novos? novos puzzles? Pedro 214
215 pode ter não tenho muita certeza, mas pode ter
ou então pode não ter sei lá porque
106
Evellyn 216 217 218
eu também achei muito interessante muito legal
aquilo que você escreveu sobre os porquês que a
vida tem vários porquês Pedro 219
220 tem muito porque, então, para poder explicar o
porque tem que ter um porque então Evellyn 221
222 223 224
é:: é – mas é né. eu acho que o mais legal é
isso a gente ter sempre um porque para gente se
movimentar, para gente pensar. Você vê, se não
fosse talvez um porque um motivo para você= Pedro 225 =se explicar Evellyn 226
227 228 229
é:: para você ué, você não queria – você não
quer ser fisioterapeuta. se Deus quiser você
vai ser. se não fosse isso talvez você não
estudasse mais. Pedro 230 é::
Em meu turno, continuo a encorajar Pedro e digo que a gente arranja
tempo (linha 195). Tento retomar o motivo do início de nossa conversa,
questionando novamente o motivo de ele ter escrito no cantinho da prova (ver
anexo II): eu fiquei curiosa porque você colocou assim no cantinho? Você lembra
porque você escreveu isso? Não sei, eu olhei assim e falei:: ge::nte porque Pedro
escreveu assim no cantinho?(linhas 195-199). Reporto, assim, meu pensamento
enquanto corrigia a prova. Em seguida, o aluno me responde vagamente - não sei
(linha 200)- e ri.
Encorajo-o a refletir sobre sua resposta às perguntas da prova, sem forçá-
lo a responder meu questionamento imediatamente: hhhhhhh eu tô pensando
ainda. vamos ficar pensando nisso. eu fiquei pensando mas assim eu acho várias
coisas assim. (linha 201-203). Depois, apresento um possível motivo: você sabia
que eu ia ler né? que a professora vai ler – não sei se você ficou com vergonha
porque era a professora que ia ler (linhas 203-206).
Reforço o convite à reflexão e digo que continuaremos a pensar sobre as
questões da turma, colocando-me discursivamente, assim, como uma professora
cuja prática é questionadora, exploratória, e que engaja seus alunos em busca de
entendimentos sobre questões acerca do que vivem, sejam elas sobre a sala de
aula ou questões pessoais. Aproveito, então, e pergunto a Pedro se ele tem novos
questionamentos (porquês ou puzzles) me referindo à primeira atividade que
realizei junto aos alunos da turma 1001.
Pedro, mais uma vez, responde vagamente e com hesitação - pode ter não
tenho muita certeza, mas pode ter ou então pode não ter sei lá porque (linhas
214-215). Acredito que o aluno tenha realizado tal escolha, visto que no turno
anterior eu digo que sou professora da turma, que leio o que eles escrevem na
107
prova. Talvez, Pedro tenha agido dessa forma com medo de uma possível
avaliação negativa da minha parte.
A fim de ajudá-lo, relembro a atividade e digo que achei interessante o que
ele havia escrito sobre os porquês – eu também achei muito interessante muito
legal aquilo que você escreveu sobre os porquês que a vida tem vários porquês
(linhas 216-208). Dessa forma, acabo iniciando uma nova discussão. Sinto que o
aluno se apropria dessa nova discussão e, também, brinca com as palavras e seus
sentidos - tem muito porque, então, para poder explicar o porque tem que ter um
porque então (linha 219-220).
Continuo tentando engajá-lo na reflexão: é:: é – mas é né. eu acho que o
mais legal é isso a gente ter sempre um porque para gente se movimentar, para
gente pensar. você vê, se não fosse talvez um porque um motivo para você=”.
Pedro complementa o pensamento: “=se explicar (linha 223-224). Em seguida,
concluo: é:: para você ué, você não queria – você não quer ser fisioterapeuta. se
Deus quiser você vai ser. se não fosse isso talvez você não estudasse mais (linhas
226-229). A interjeição “ué” funciona como uma resposta ao provável espanto do
aluno.
A reformulação da sentença, trocando o tempo verbal do passado você não
queria (linha 226) para o presente você não quer (linhas 226-227) encoraja o
aluno a persistir em seu sonho. Faço uso da expressão coloquial “se Deus quiser”,
como uma interjeição para expressar meu desejo de que ele realize seu sonho. Na
sequência, chamo atenção para a relevância de ter um objetivo em sua decisão de
continuar estudando e se esforçar mais.
Neste excerto final do meu encontro com Pedro, noto que torna-se
evidente a minha tentativa e a minha postura enquanto praticante exploratória em
engajar o aluno em um processo maior de reflexão, para além do que costuma
acontecer na relação entre professores e alunos. Minha postura parece causar
estranhamento no aluno, que, na maior parte de nossa interação, coloca-se
discursivamente de maneira defensiva em relação a mim.
4.2.3. “errar é humano”
No dia 14 de Outubro de 2015, um dia antes do dia dos professores,
realizei com os alunos da turma 1001 uma APPE, cuja proposta inicial era que
108
pensassem, em grupos, sobre o que os professores podem ou não fazer em sala de
aula e na escola, e o que os alunos podem ou não fazer dentro da escola. Desta
forma, a ideia era que eles utilizassem o verbo modal Can nas formas afirmativa e
negativa para formar sentenças de forma criativa, como na figura a seguir:
Figura 8 - APPE: teachers can X teachers can’t, students can X students can’t
Legenda: I can help students; I can educate students; I can teach students; I can advice students/
Students can: I can play sports/ I can dedicate/ I can work/ I can’t fight/ I can’t smoke/ Students
can’t use cellphones in the classroom.
Na aula seguinte, no dia 21 de outubro, levei para a turma as atividades
que os grupos desenvolveram e discutimos sobre o que eles haviam colocado
como o que os professores podiam fazer ou não e o porquê de eles acharem
aquilo. Essa discussão foi gravada em áudio e, nesta seção, analisarei alguns
trechos de nossa conversa que auxiliou a gerar uma narrativa coconstruída pelos
alunos, sobre uma professora de Matemática que eles haviam tido em alguns anos
atrás.
Excerto 13 -“tem que falar dos estagiários também né?” Hanna 1 tem que falar dos estagiários também né? Bruna 2
3 é..aquela do cabelo enroladinho eu acho que já é
professora Bianca 4
5 ela já é professora? é até que ela parece
melhorzinha mesmo Flávia 6
7 o pior mal dos estagiários é pensar que já é
professor Hanna 8 É né? Evellyn 9
10 11
que isso? oh...daqui a pouco a estagiária de
inglês tá chegando aí hein, e ela já dá aula, já é
professora
109
Sabrina 12 13 14
essas estagiárias de matemática parece até que é
mais burra do que eu. O cara escreveu errado aqui
ó no quadro para todo mundo ver Flávia 15 é o cara ensinou o negócio errado para gente
Adriana 16 17 18
e..aí no meio do exercício que todo mundo fez
falou que tava certo e ele falou que tava errado,
“opa, como [assim?”]
Ao começar a atividade, Hanna (linha 1) salienta a necessidade de falar
sobre os estagiários também. Quando pensei em realizar a atividade, de fato, não
considerei os estagiários, mas deixo que a conversa siga e não dou uma pronta
resposta a Hanna, até mesmo para ver que rumos a conversa seguiria.
Bruna, imediatamente, cita a estagiária de Matemática: é..aquela do cabelo
enroladinho eu acho que já é professora (linhas 2-3). Bianca confere a
informação apresentada pela colega, e diz considerar a estagiária melhorzinha
por ela já ser professora. Porém, para isso, emprega o adjetivo de forma
depreciativa: até que ela parece melhorzinha mesmo (linhas 4-5). As alunas
parecem tentar criar maneiras de distinguir estagiários e professores, como se a
estagiária só pudesse ser boa por já atuar como professora.
Flávia, no entanto, expõe uma ideia contrária a das meninas: o pior mal
dos estagiários é pensar que já é professor (linhas 6-7). A aluna em questão, de
forma depreciativa, também revela a distinção entre professores e estagiários. Em
seguida, Hanna concorda com a colocação da colega (linha 8).
Na tentativa de tornar público que não concordo com as alunas, digo que a
estagiária de Inglês estava chegando e que ela também já era professora. Acredito
que tenha tomado tal atitude, não só para tentar começar a expor o que pensava,
mas também com receio de que a estagiária chegasse e se sentisse reprimida ou
que a conversa, que, para mim, ainda tinha muito assunto a ser discutido, fosse
terminada sem que eu expusesse o que achava naquele momento.
Sabrina prossegue com o questionamento sobre os estagiários:
essasestagiárias de matemática parece até que é mais burra do que eu. O cara
escreveu errado aqui ó no quadro para todo mundo ver (linhas 12-13). Primeiro,
a aluna utiliza um adjetivo depreciativo para qualificar a estagiária, depreciando
inclusive a ela mesma, pois se compara à suposta “burrice” da professora em
formação. Em seguida, inicia o relato de um acontecimento para suportar seu
argumento.
110
Flávia concorda e apresenta outra situação envolvendo o estagiário: é o
cara ensinou o negócio errado para gente (linha 15). Por último, Adriana também
concorda e continua o relato de Flávia: é...aí no meio do exercício que todo
mundo fez falou que tava certo e ele falou que tava errado, “opa, como [assim?].
(linhas 16-18). O conectivo “aí”, no início da fala, é utilizado para dar
continuidade ao exemplo apresentado anteriormente pela colega. O emprego da
expressão opa, como assim (linha 18) expressa surpresa perante o acontecimento.
A aluna não esperava que o professor, ou o estagiário, cometesse erros.
Nesse excerto, o estigma coconstruído em interação em relação aos
professores e estagiários torna-se evidente, o que salienta que não só o aluno pode
se sentir estigmatizado na relação professor-aluno. O professor deve entender e
respeitar as diferentes habilidades e dificuldades de seus alunos, mas a mesma
postura não é apresentada pelos alunos em questão. Principalmente, quando
pensam que um estagiário, provavelmente por acreditarem que ele não tenha
experiência ou ainda não seja formado, não pode ter a mesma competência de um
professor, ou quando se referem a eles por adjetivos como “burro” e
“melhorzinha”, ou até mesmo quando se surpreendem com um possível erro de
um professor.
Excerto 14 -“uma vez é normal, mas errar sempre”
Evellyn 19 20 21
não mas o estagiário que tá na escola também vocês
não acham que aqui também é um espaço para eles
aprenderem? Sabrina 22
23 24
mas os que já são profe[ssores]? Hh eles tem que
dar o negócio certo para gente tem que ensinar
certo e não ensinar errado
25 26
[é]hhhh ((alguns alunos da
turma concordam)) Sandra 27 mas eles [são humanos]=
Flávia 28 [bem ou mal eu copiei]
Sabrina 29 30
=SEmpre? errar é humano errar uma vez é normal,
mas errar sempre? Sandra 31
32 mas isso não acontece sempre, você não pode pensar
[assim]= Sabrina 33 =não erra erra sim
Hanna 34 [tá certo] porque eu vejo
Evellyn 35 36
mas gente –mas gente, vocês não acham assim que
professor também pode errar? Sabrina 37
38 39 40
claro que pode né professora, mas sempre. você
passar uma coisa e não conseguir fazer? Um
professora vai ali no quadro colocar uma conta e
vai errar? um professor de matemática? (.)
111
Após ouvir as alunas, sinto a necessidade de apontar a minha opinião e
mostrar outra perspectiva (linhas 19-21). Assim, pergunto à turma, quase que
sugerindo pelo uso de “não mas” no começo da fala, se eles não acham que os
estagiários também estão na escola para aprender. Sabrina, no entanto,
prontamente responde fazendo outra pergunta: “mas os que já são profe[ssores]?”
(linha 22).
Em seguida, continua sua fala enfaticamente: hh eles tem que dar o
negócio certo para gente tem que ensinar certo e não ensinar errado (linhas 22-
24) e é seguida em coro por seus colegas de turma.
Sandra, por sua vez, apresenta uma opinião diferente ao dizer que os
estagiários,eles [são humanos]= (linha 27). Entretanto, Sabrina é relutante e
insiste, afirmando que os estagiários erram sempre (linhas 29-30).
Sandra também se mantém firme em seu argumento: mas isso não
acontece sempre, você não pode pensar [assim]= (linhas 31-32). Porém, a
primeira não muda de opinião, contrariando o argumento da colega: =não erra
erra sim(linha 33). Hanna concorda dizendo que ela está certa, porque vê os
estagiários errando (linha 34). Noto, mais uma vez, a utilização da conjunção
adversativa masnão somente como uma conjunção que introduz uma ideia
contrária à que já foi exposta, mas também como uma conjunção utilizada pelos
alunos para introduzir uma argumentação que venha a sustentar a linha de conduta
à qual se alinham.
Incomodada com o rumo que a discussão estava tomando, uma vez que meu
objetivo ainda era seguir o que havia planejado, para que nós pudéssemos discutir
o que os alunos e professores podem fazer ou não, utilizo o meu turno como
oportunidade para que os alunos possam refletir sobre quem pode errar em sala de
aula e os indago se os professores também não podem errar (linhas 35-36).
Contudo, não obtenho sucesso, pois Sabrina permanece relutante: claro que pode
né professora, mas sempre. você passar uma coisa e não conseguir fazer? Um
professora vai ali no quadro colocar uma conta e vai errar? um professor de
matemática? (.). (linhas 37-40).
Apesar de responder claro que pode né professora (linha 37), Sabrina ainda
ressalta a questão da recorrência mas sempre(linha 37). Imagino que como a
112
resposta foi dada a mim, professora daquele grupo, talvez, por receio de algum
tipo de repreensão da minha parte, Sabrina tenha dito que pode. Contudo, ao
longo de seu turno, fica claro que a aluna ainda mantém a sua opinião, e utiliza
como argumento situações como passar alguma coisa e não conseguir fazer e ir
até o quadro fazer uma conta e errar, sendo professor de matemática (linhas 38-
40).
A resposta empregada pela aluna claro que pode né professora poderia estar
relacionada ao trabalho de face, na tentativa de invisibilização da “identidade
deteriorada” do outro (aqui relacionada aos professores), com o objetivo de evitar
conflitos na interação, já que a aluna se refere de forma negativa à categoria da
qual faço parte. Biar (2012, p.86) analisa “estratégias de trabalho de face” como
“comportamentos discursivos que mitigam a possibilidade de conflito na
interação, tornando o estigma neutralizado a ponto de diminuir assimetrias e
choques potenciais entre entrevistado e entrevistador”. No entanto, apesar de
manter a polidez por estar diante de uma professora, a aluna não muda seu
pensamento e nem se mostra aberta a repensar sua visão.
Excerto 15 - “mas isso era relevante?”
Cleber
41 42 43 44
Professora, a gente tinha uma professora de
matemática aqui que ela era a melhor professora
de matemática da escola, mas só que ela tinha
erros de português Hanna 45 É:: peraí que eu vou lembrar o nome dela
Sabrina 46 47
Eu sei ó tá aqui ((aponta para a língua)) Vilma
hhhhhh ((risos dos alunos)) Flávia 48
49 Hhhhh [olha ela a pessoa fala para não falar
nomes e fala] Cleber 50
51 52 53
[ela a pessoa- sabe aquela pessoa que é ridícula
na matéria ela fazia tirar nota boa e não é- ela
não dava nota não, ela realmente ensinava mesmo,
mas tinha erro de português para caramba Hanna 54 Professora, ela falava po-bre-ma hhhhhh
Evellyn 55 Mas isso era relevante?
Cleber 56 [não]
Hanna 57 [isso era horrível, professora]
Cleber parece entender que tudo que for dito não vai mudar a opinião da
colega e que Sabrina e as outras meninas utilizam situações para corroborar a
opinião que tinham em relação aos estagiários. Assim, o aluno utiliza a mesma
estratégia e conta, para a turma e para mim, que eles tinham uma professora na
113
escola que era a melhor professora de Matemática, mas cometia alguns erros de
Português (linhas 41-44). O emprego de mas só que, em sua fala, duas
conjunções de valor adversativo, a segunda mais presente no discurso oral,
transmite a ideia de que os erros de Português a desqualificam como boa
professora, mesmo trabalhando com Matemática.
Rapidamente, suas colegas reconhecem a situação e, assim como fizeram
antes, parecem querer colaborar para que Cleber reconstrua o que aconteceu. No
entanto, ao contrário dele, as alunas focam seus discursos apenas nos erros de
Português, ignorando o fato de a professora ser excelente, como relata o aluno, na
disciplina que leciona. Além disso, suas falas são produzidas de modo irônico, em
meio a risos, não apenas das alunas, mas também de outros colegas.
O aluno usa seu turno (linhas 50 – 53) para novamente tentar ressaltar as
habilidades da professora, dizendo que sua explicação era tão boa que até alunos
com dificuldade conseguiam um bom resultado: [ela a pessoa- sabe aquela
pessoa que é ridícula na matéria ela fazia tirar nota boa e não é- ela não dava
nota não, ela realmente ensinava mesmo, mas tinha erro de português para
caramba. No fim, ele volta a mencionar os erros de Português, entretanto não
desmerece as habilidades da professora, pois não foca seu discurso apenas nisso.
Hanna, por sua vez, ignora o relato sobre as qualidades da professora, e
permanece ressaltando os erros: professora, ela falava po-bre-ma hhhhhh (linha
54). Então, eu questiono a relevância dos erros: mas isso era relevante?(linha
55). Cleber prontamente responde que não, porém Hanna desqualifica a
professora mais uma vez ao dizer em turno sobreposto ao de Cleber que [isso era
horrível, professora](linha57).
Portanto, apesar de toda a argumentação ao longo da conversa, percebi ao
final daquela atividade que o erro só tinha espaço dentro da sala de aula para os
alunos. Para a maior parte daquele grupo, os professores, sejam eles pré-serviço
ou em serviço, não podem errar, nem mesmo o conteúdo de outras disciplinas que
não interferem diretamente no aprendizado dos alunos, durante aquela aula
específica. Pode-se perceber que o estigma em relação ao professor também é
construído e reconstruído o tempo todo na interação entre os alunos.
4.2.4. “mas a gente riu tanto”
114
A última atividade que realizei com a turma 1001 foi uma atividade de
retorno dos dados gerados ao longo do ano de 2015. Escolhi a aula do dia 25 de
Novembro por ser a véspera do Dia de Ação de Graças e, assim, poderia
agradecer a participação dos alunos no meu processo de busca por entendimentos
sobre ser professora daquele grupo e sobre as questões que nos afligiam. Além
disso, durante essa aula, os alunos não só teriam a oportunidade de se ouvir, mas
também de buscarem novas questões. Novos entendimentos poderiam surgir e eu
atenderia desta forma à proposta ético-inclusiva da Prática Exploratória.
Como estávamos no final do ano letivo, decidimos que faríamos uma
festinha de Ação de Graças e que, antes da Confraternização, eu levaria os slides
que havia apresentado em dois eventos acadêmicos sobre a nossa pesquisa.
Em um dos slides, eu apresentava o excerto 5, que versa sobre o primeiro
dia de aula desses alunos. Porém, para minha surpresa, após comentar o que havia
falado sobre aquele excerto, eles novamente, em esforço coletivo, acabam gerando
uma nova versão sobre aquele evento, a qual analiso a seguir:
Excerto 16 - “a gente tinha ebola” David 1
2 3
adriana -adriana subiu cheia de vergonha porque a
diretora mandou ela voltar para a sala dela hhhh
((risos do grupo)) Adriana 4 Isso foi muito tempo depois= Flávia 5
6 =e a gente, olha, mas a gente riu tanto da cara de
vocês= Hanna 7 Foi [–fo::i –fo::i a diretora] hhhh Sabrina 8
9 [A tia do corredor veio e devolveu vocês hhhhh
(alunos riem) Flávia 10
11 12 13
[ no dia que vocês] –é –elas saíram da sala
professora hhhhhhh ((risos de Sabrina))porque a
gente tinha uma do[ença contagiosa] que elas não
podiam chegar [perto]hhhhh Adriana 14 [hhhhhh] David 15 [a gente] tinha ebola hhhh= Camila 16
17 18
= oh a gente ficou aqui só esperando a desgraça
chegou ela, chegou Ana, acho que chegou Vanessa
também NÃO Sabrina 19 NÃO ela ficou aqui Flávia 20 não foi quem? Sabrina 21 foi ela ((apontando para Adriana) Adriana 22 [foi]eu= Hanna 23 =foi ela [e Bia só] Flávia 24
25 26
[aí quando elas] chegaram e a diretora
falou ‘senta’ olha mas a gente riu, mas a gente riu
tanto Hanna 27
28 29
Cadê aquele garoto?Como que era? Como que era
aquele garoto que saiu da es[cola? Qual] o nome
dele?=
115
Flávia 30 =[Julio]= Hanna 31
32 =[falou que ia tacar uma bomba na gente, gente, eu
olhei para cara dele]= Flávia 33
34 =[a gente riu tanto que a diretora chegou aqui e
colocou todo mundo de volta]= Sabrina 35
36 porque a tia chegou aqui falando “eu vou trazer
elas”= Hanna 37 =cagoetaram a gente NÉ safadas Adriana 38 foi Alice que cagoetou
Após terminarem de ouvir a apresentação de slides, sobretudo, sobre o
primeiro dia de aula, David parece continuar a contar o que aconteceu após
Adriana pegar a mochila e sair da sala. David lembra que a colega subiu cheia de
vergonha porque a diretora mandou ela volta para a sala de aula(linhas 1-2) e
todo o grupo ri. Começa, assim, um movimento coletivo de reparo à fachada
sustentada por Adriana no excerto 5.
Adriana (linha 3) diz que o que David falou ocorreu muito tempo depois.
Se a primeira versão foi contada por Adriana, aluna que cursou o nono ano no
Sistema Regular, nesta segunda, os alunos do Autonomia apresentam novos
pontos de vista da história, contando como viveram aquele momento.
Em =e a gente, olha, mas a gente riu tanto da cara de vocês=, Flávia
utiliza a gentepara se referir ao grupo de alunos oriundos do PA e vocês se
referindo aos alunos que não queriam estudar com eles. Hanna, uma das alunas
do Sistema Regular, ri ao lembrar-se da situação e ressalta foi [–fo::i –fo::i a
diretora] hhhh, iniciando o relato em conjunto de como as alunas tiveram que
voltar para a sala, na ocasião. Os risos de Hanna parecem indicar seu nervosismo
para o desenrolar daquela interação, já que foi ela que disse que não gostava do
grupo de alunos do PA.
Em uma sequência de turnos sobrepostos, os alunos tentam reconstruir o
primeiro dia de aula pelo olhar dos alunos do Autonomia. Sabrina lembra que a
tia do corredor veio e devolveu vocês (linha 8) e todos riem. Ainda rindo sobre a
situação, Flávia se dirige a mim contando é –elas saíram da sala professora
hhhhhhh ((risos de Sabrina)) porque a gente tinha uma do[ença contagiosa] que
elas não podiam chegar [perto]hhhhh. A aluna emprega o pronome elas para se
referir às alunas do Sistema Regular, e a gente, mais uma vez, para se referir ao
grupo a qual pertence, dos alunos do Autonomia.
Na sequência, Adriana ri, e David, em meio aos risos dos colegas, diz que
o grupo tinha ebola, doença altamente contagiosa (linha 12). Pode-se perceber que
116
os alunos discutem de forma descontraída a separação que existia na turma, no
início do Ano Letivo, e o estigma que os alunos oriundos do PA sofriam por parte
de outros alunos da escola, que não eram oriundos do Programa.
Camila ressalta que os alunos do PA ficaram na sala esperando as meninas
voltarem para a sala de aula (linhas 16-18). A aluna emprega o termo pejorativo
desgraça, em tom cômico, e utiliza a partícula negativa NÃO, como um pedido
de ajuda dos colegas para conferir se estava certa sobre o que estava falando.
Sabrina tenta ajudá-la e diz que não foi Vanessa, já que ela havia ficado na
sala (linha 19). Flávia fica curiosa e tenta conferir a informação também: não foi
quem?. Então, Sabrina aponta para Adriana e diz que foi ela (linha 21), o que é
confirmado pela própria aluna (“foi eu” – linha 22). Hanna também confirma a
informação, e ainda acrescenta: “=foi ela [e Bia só]”.
Flávia, então, continua (linhas 24-25) dizendo que quando as alunas
chegaram e a diretora disse senta, olha mas a gente riu mas a gente riu tanto,
utilizando a partícula a gente para se referir aos alunos do Autonomia que riram
muito dos alunos que tiveram que voltar e ficar mesmo naquela turma. Hanna,
ainda, tenta lembrar o nome de um aluno que estava presente neste dia (linhas 27-
29), mas que acabou saindo da escola ao longo do Ano Letivo.
Com a ajuda de Flávia (linha 30), que lembra o nome do amigo que era
aluno do PA, Hanna lembra também que ele disse que ia tacar uma bomba “na
gente”. Agora, na gente é utilizado para se referir aos alunos do nono ano. Em
seguida, a aluna utiliza o vocativo gente para chamar atenção para a sua reação à
fala do colega gente, eu olhei para cara dele (linha 31-32).Parecendo não se
intimidar, Flávia retoma o turno e diz novamente que os alunos do Autonomia
riram muito quando a diretora chegou e “colocou todo mundo de volta” (linhas
33-34). Sabrina justifica que aquilo já era esperado pelos alunos do PA porque a
tia, se referindo à inspetora do corredor, tinha chegado à sala e dito que traria as
alunas.
Hanna, então, aproveita e diz que isso aconteceu porque as
alunascagoetaram a gente NÉ safadas (linha 37), ou seja, contaram que elas
haviam saído da sala para pedir para sair da turma. A aluna utiliza linguagem
coloquial para se referir à atitude das colegas. O verbo cagoetaram e o adjetivo
safadas, empregado aqui como vocativo, geralmente apresentam uma conotação
negativa, ofensiva, mas ela os emprega em tom de brincadeira. A aluna salva a sua
117
face ao se defender da acusação feita pela colega dizendo que quem contou que
elas haviam descido foi Alice, a professora de Biologia da turma.
Assim, pude perceber, ao final daquela atividade, que os alunos, apesar de
se alinharem discursivamente aos seus grupos de origem, através da utilização dos
pronomes nós/ a gente versus vocês/ eles/ elas, se unem para reconstruir e criar
inteligibilidade sobre um fato relevante para o grupo como um todo: o primeiro
dia em que duas turmas viraram uma só. Pude sentir que, nesse caminho para
reconstruir o fato e coconstruir uma segunda versão, os risos dos alunos me
ajudam a perceber que aquela tensão que existia no início do ano foi sendo
contornada aos poucos, a ponto de agora, todos poderem rir juntos sobre o que
aconteceu.
Assim, após olhar com mais cuidado para o que aconteceu ao longo da
trajetória desta pesquisa, apresento no capítulo a seguir as considerações (quase)
finais sobre o que foi vivido por mim e por meus parceiros nesse trabalho para
entender a vida na escola.
118
5. Eis o jasmineiro em flor: a janela abriu ou o olhar mudou? – considerações finais.
Ninguém é sujeito da autonomia de ninguém. Por outro lado, ninguém
amadurece de repente, aos vinte e cinco anos. A gente vai
amadurecendo todo dia, ou não. A Autonomia, enquanto
amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser.
Paulo Freire (2002)
O excluído precisa saber pensar sua própria história, para refazer-se
como sujeito de suas soluções possíveis. Aprender é, no seu âmago,
saber fazer-se sujeito de história própria, individual e coletiva.
Demo (2001, p.51)
Neste trabalho, partindo do meu questionamento inicial - Por que eu gosto
da 1001? -, busquei entender junto aos alunos dessa turma, como eles se
construíam como alunos, como turma e como (des)construíam discursivamente o
estigma sobre os alunos advindos do Programa Autonomia. Desta forma, nesse
capítulo final, apresento algumas de minhas reflexões durante a trajetória dessa
pesquisa.
Logo no segundo capítulo desse trabalho, me preocupei em inseri-lo sob as
lentes transgressoras e híbridas da Linguística Aplicada Contemporânea, a partir
do caráter ético-inclusivo proposto pelas pesquisas em Prática Exploratória. Creio
que este meu olhar (in)disciplinar (Moita Lopes, 2006) e essa postura
questionadora e reflexiva da Prática Exploratória me permitiram enxergar além do
que as atividades desenvolvidas junto aos alunos pareciam me mostrar.
À vista disso, senti a necessidade de desenvolver essa pesquisa de natureza
interpretativista atuando como o bricoleur(cf. capítulo 3), tecendo conhecimentos
conjuntos com meus parceiros de pesquisa e praticantes em busca de
entendimentos sobre a vida que vivíamos na escola: meus alunos. Assim, além de
APPEs desenvolvidas ao longo do ano letivo de 2015, gravei as nossas interações
em sala de aula para buscar entendimentos mais profundos sobre como o self
estigmatizado dos alunos advindos do PA era (des)construído por seus colegas e
por eles mesmos.
Desta forma, por entender que a sala de aula é um espaço que não propicia
somente o aprendizado de conteúdos que atendam as proposições do currículo
escolar, mas também sobre a vida dentro e fora da escola, destaco, no segundo
capítulo deste trabalho, o meu posicionamento teórico sobre a sala de aula, a partir
119
das contribuições de pesquisas como as de Phrabu (1992) e Nóbrega Kuschnir
(2003).
Ademais, aproveito os estudos de Lave e Wenger acerca das comunidades
de prática, para desenvolver o meu olhar sobre a turma investigada. Conforme
discuti ao longo do texto, entendo que a 1001 é formada por diferentes
comunidades de prática, cada uma com suas particularidades, mas que auxiliam na
formação da comunidade de prática maior na qual tanto eu, quanto os alunos,
sejam eles do PA ou os que terminaram o ensino fundamental no sistema regular,
nos inserimos a partir de nossas práticas discursivas: a turma 1001.
Busquei na teorização sobre Estigma de Erving Goffman (1988) e nos
estudos realizados por Biar (2012), atrelando-os às contribuições da
Sociolinguística Interacional e da Análise da Conversa Etnometodológica, as
lentes que me orientariam para a análise dos dados gerados em nossas aulas.
Ao voltar a minha atenção para as particularidades de nossa aula,
compreendendo-a como um evento situado, pude perceber como os diferentes
alinhamentos que assumíamos para nós e para o outro em interação nos ajudavam
a (des)construir ou coconstruir estigmas, conforme discutirei a seguir.
5.1. Sobre a análise dos excertos: a (des)construção do self estigmatizado
Em relação à transcrição dos dados gerados, é possível observar muitas
sobreposições de turno, o que impossibilitou, em alguns momentos, que a
transcrição fosse realizada de forma mais refinada e fiel ao que de fato ocorreu em
nossos encontros face-a-face. Contudo, torna-se relevante destacar a importância
das sobreposições e reparos produzidos ao longo da interação, de acordo com a
estrutura de participação da conversa.
Ao utilizar os conceitos advindos da Sociolinguística Interacional e da
Análise da Conversa Etnometodológica, noto que a estrutura de participação dos
meus alunos, durante a interação, varia de acordo com os diferentes
posicionamentos que reivindicamos para nós e para os outros em interação.
Na maior parte dos turnos em que ocorre sobreposição, ela não ocorre no
intuito de interromper o fluxo da interação e de “assaltar” o turno de quem está na
posição de falante. Assim como Tannen, ao observar uma conversa entre amigos
120
(cf. Tannen, 1990), destaco que meus alunos, falantes de alto envolvimento,
parecem não se importar com a sobreposição de vozes. Na tentativa de garantir a
intersubjetividade (cf. Schegloff, 1992), i.e, para que todos os participantes
estejam sob uma mesma orientação, a fim de compreender o que está acontecendo
no aqui e agora da interação, as sobreposições e os assaltos24 aos turnos ocorrem,
neste tipo de interação, com a finalidade de auxiliar a coconstrução de
entendimentos e questionamentos sobre os puzzles que emergiram de nossos
encontros.
Por meio da análise de dados, notei que os alunos e eu, nos momentos de
interação face a face, na escola, estamos a todo instante nos reconstruindo como
sujeitos em um constante processo de elaboração de faces, que, por muitas vezes,
assemelha-se a um debate, como pude analisar nos quatro primeiros excertos, na
segunda subseção da análise de dados (cf. 4.2.1). Percebo que esse processo nos
auxilia a coconstruir entendimentos sobre sermos alunos e professores, sobre as
faces que precisamos sustentar/manter ou encobrir em determinadas situações.
Além disso, noto que estamos a todo o momento construindo e
descontruindo estigmas e afetos. Logo, o mapeamento de instanciações do afeto
negativo e positivo, no discurso dos alunos, nos auxilia a entender como eles
(re)significam suas vidas e sentimentos acerca da escola, de seus professores e de
seus colegas, a partir do que vivem e sentem. Destaco, porém, que, ao longo da
análise dos excertos e dos puzzles, podemos observar instanciações de afeto
positivo e dos subsistemas de felicidade, satisfação e segurança. Ouso dizer,
portanto, que o afeto negativo expresso por mim e pelos alunos ajuda, também, a
construir o estigma sobre o grupo de alunos do Programa Autonomia.
Fairclough (1992, p.3 apud Moita Lopes, 2001, p.59) já apontava que “os
discursos não somente refletem ou representam as entidades e relações sociais,
elas as constroem ou as constituem”, por isso, destaco, no quadro a seguir, alguns
exemplos de como era possível mapear em nossos discursos os estigmas e crenças
que nele emergiam.
24 Galembeck (2011, p. 2) ao retomar seu texto Galembeck, Silva e Rosa(1990, p. 75 e ss.)
define que existem “duas estratégias básicas pelas quais ocorre a troca de falantes: a passagem
de turno e o assalto ao turno. No primeiro caso, o ouvinte intervém num ponto em que – segundo
a sua percepção – o falante concluiu a sua fala: um final de frase ou uma pergunta. No assalto ao
turno, o ouvinte ‘invade’ a fala do seu parceiro conversacional, sem esperar a conclusão do
enunciado”.
121
Interlocutor Excerto
Iuri (4.2.1) “(...) que a gente é idiota, que a gente não sabe ler, não
sabe escrever que a gente é tudo um bando de neandertais”
- Excerto 1 – Linhas 5-7
“(...) [a gente prova que tem um intelecto bom cara] a
gente fez várias séries em menos de-menos-de- [menos de
três anos] –fizemos em [dois anos] – Excerto 2 – Linhas
28-31
Pedro (4.2.2) “(...) no autonomia a gente via vídeo e televisão e tudo
complicava” – Excerto 6 – Linhas 11 -12
“(...) na autonomia a gente só tinha um professor- o
professor podia dar atenção para gente” – Excerto 9 –
Linhas 94-95
“(...) antes o professor explicava tudo direitinho ele dava
atenção” – Excerto 9 – Linhas 112-115
Quadro 3: Sobre ser aluno do PA e sobre o PA
Vitoriano (2015), ao buscar entendimentos sobre o ensino em contextos
socioeducativos, ressaltou que “quando o estigma não é evidente, a pessoa
marcada tende a manipular o estigma a fim de parecer o mais ‘igual’ quanto for
possível” (op.cit. p.84).
Iuri (cf. 4.2.1) e Pedro (4.2.2), além de culpabilizarem seus professores
pela distinção feita por eles em relação aos outros alunos, e de darem luz ao outro
para que se mantenham seguros e distantes de qualquer julgamento, tentam se
construir como alunos “normais”, ressaltando que todo mundo aqui consegue(cf.
4.2.1, excerto 3 – linha 38).
Percebi que também é comum nesse tipo de encontro misto valer-se de
estratégias de evitação de confronto, na tentativa de diminuir ou apagar atributos
negativos, tais como vaguezas, generalizações, hesitações (pausas, alongamentos
de vogais), não-resposta. Durante a análise dos dados gerados, vi que as
estratégias de evitação ocorrem com maior frequência do que as estratégias
corretivas, e também são utilizadas por mim na tentativa de dar continuidade ao
meu planejamento para entender [planning for understanding] a qualidade de vida
122
daquele grupo e tornar a interação face a face um momento menos ameaçador. (cf.
4.2.2)
Dessa forma, como um dos objetivos dessa pesquisa diz respeito à busca
por entendimentos sobre ser aluno e professor de uma turma de primeiro ano do
Ensino Médio, pude resgatar em nossos discursos como as diferentes faces eram
atribuídas aos professores e aos alunos, assim como sobre os alunos do PA,
inclusive, por alunos que fizeram parte do programa. Destaco, no quadro a seguir,
alguns exemplos de como os alunos constroem significados sobre o que é ser
aluno e professor:
Interlocutor Excerto Significados
Flávia (4.2.1) “ (...) por que você abre o
caderno quando o professor [tá
explicando]? Excerto 3 –
Linhas 42 – 43)
“você copia a matéria, Iuri”
Excerto 3 – linha 46
Aluno tem que copiar a
matéria, abrir o caderno.
Sabrina (4.2.1) “(...)ficar falando que não vai
fazer o exercício e ficar
dormindo não dá não” –
Excerto 2 – linhas 22-23
Aluno tem que fazer o
exercício e não pode
dormir durante as aulas
Pedro (4.2.2) “(...)ela conversa bastante
comigo também-ela é legal
também-ela explica, ela tem
paciência para poder explicar”
– Excerto 10 – linhas 124-126
“como que uma professora
não sabe explicar um dever
para um aluno?(...)” – Excerto
10 – linhas 136-138
Para Pedro, um bom
professor é aquele que
conversa, que tem
paciência para explicar a
matéria;
O professor precisa saber
explicar o conteúdo e os
exercícios aos alunos.
Quadro 4: sobre ser aluno e professor
A priori, imaginei que os dados gerados para este trabalho me mostrariam
como o estigma sobre os alunos do PA era sentindo e coconstruído em interação.
Contudo, além de compreender que os estigmas também são desconstruídos,
123
entendo que nossos encontros propiciaram o surgimento de alguns
questionamentos sobre a nossa vida e nossos papéis na escola, assim como a
coconstrução de inteligibilidade sobre tais questionamentos, como o lugar do erro
na escola, quem pode errar, os papéis de professores, estagiários e alunos (cf.
4.2.3).
Em suma, creio que a contribuição deste trabalho esteja no entendimento
de que as interações em sala de aula ultrapassam o que é delimitado pela estrutura
IRA – Iniciação, Resposta; Avaliação. Garcez (2006) reconhece que olhar para a
sala de aula considerando que as interações entre alunos e professores acontecem
apenas de uma maneira é desconsiderar que aquele contexto também seja
composto por interações aluno-aluno, que pode assumir outras configurações e
excluir toda a criatividade deste evento.
Assim como as práticas discursivas com as quais nos engajamos no nosso
cotidiano, as nossas interações na escola são marcadas por projeções do eu e do
outro. Logo, talvez, a maior contribuição desse estudo esteja no fato de propor um
novo olhar para o evento “aula”, em que o trabalho de face surge como uma das
estratégias interacionais evidentes para (des)construção de estigmas, para refletir
sobre a qualidade de vida dos grupos e sobre seus questionamentos e, neste
trabalho, para coconstruir entendimentos locais sobre ser aluno e professor.
Figura 9 - Sobre trabalho de face e as interações em sala de aula.
124
5.2. Sobre os desafios de ser uma professora-pesquisadora-praticante exploratória
Assim como Silva Barbosa (2010) relata a dificuldade em começar o
trabalho tendo como base a Prática Exploratória, em sua dissertação de mestrado,
compartilho a seguir minhas percepções sobre o trabalho conjunto com a 1001.
Acredito que a minha sensação de não ser tão exploratória por, pelo
menos, algumas circunstâncias, se deva ao fato de perceber que os alunos não
consideravam os momentos de reflexão e de conversa como momento de aula,
como parte da aula. Fui surpreendida por alunos que me pediam para não dar aula
para quepudéssemos conversar. Embora, a meu ver, essas colocações fizessem
parte do processo dos alunos de tornarem-se exploratórios, entendia que esses
momentos eram não somente espaços que tínhamos de construir entendimentos
sobre as questões que nos afligiam, mas também momentos de aprendizagem,
mesmo que esta não se referisse a algum tópico gramatical, por exemplo.
Aprender a lidar com a minha autonomiafoi outra dificuldade que
enfrentei. Pode parecer contraditório que eu tenha sentido isso, mesmo havendo
desejado tanto estar em um contexto de trabalho que me permitisse tomar minhas
decisões. No entanto, ter muita liberdade e sair do planejamento, por muitas
vezes, me deixou intrigada e me vi compartilhando doquestionamento dos meus
alunos: será que o que estava acontecendo em sala de aula era, de fato, aula? Será
que os momentos de troca de saberes e reflexão estão sendo entendidos por eles
como parte do processo de aprendizagem?
5.3. Sobre ser aluno e professor na 1001: minhas reflexões
Allwright e Hanks (2009), ao delinearem as cinco proposições sobre
aprendizes, salientam a necessidade de tanto professores quanto alunos serem
entendidos como agentes no processo de ensino-aprendizagem. Ao atribuírem
papéis relevantes nesse processo a ambos os praticantes, os autores propõem que
os aprendizes não sejam vistos como “alvos do ensino” (op. cit., p.2), uma vez que
125
eles “podem se desenvolver e, assim, se desenvolvem e se desenvolverão, com ou
sem o reconhecimento dos profissionais da linguagem”25 (idem.).
Como Linguista Aplicada e aprendiz/praticante, reconheço que os alunos
da turma investigada e eu nos encontramos em um processo constante de
aprendizagem sobre nós mesmos e sobre a vida que vivemos na escola.
Destaco, aqui, a importância do meu papel como professora para a
construção de andaimes que auxiliarão os meus alunos a construírem
conhecimento. Sobre isso, Rosiek (2003) discute a importância da “construção de
pontes entre o conceito e as experiências dos alunos”. Após a minha experiência
durante essa pesquisa e, ao longo da minha trajetória profissional, creio que seja
possível ir mais além.
Acredito que professores e alunos podem coconstruir pontes que
colaborem para o surgimento de puzzlessobre a vida em sala de aula e fora dela;
assim como andaimes que os ajudem no processo de reflexão na busca por
entendimentos para as questões intrigantes, uma vez que considero que “situações
que colocam a aprendizagem em foco não são necessariamente aquelas nas quais
nós mais aprendemos, ou aprendemos mais profundamente” (Wenger, 1998, p.8).
Durante a escrita desse trabalho, por inúmeras vezes, me questionei sobre
o quão relevante ele seria, sobre o porquê me dedicar às questões que apresentei
ao longo do texto, sobre os motivos em continuar a buscar entendimentos sobre a
vida em um contexto que se apresenta, por muitas vezes, como um pequeno
jardim seco, quase morto.
Talvez, a contribuição mais relevante dessa grande oportunidade de
aprendizagem tenha sido a possibilidade de dar voz aos que, geralmente, estão à
margem em pesquisas sobre a escola. Ouvir e ser ouvida por aqueles que
constroem o meu dia a dia contribuiu para que eu voltasse a pensar sobre o meu
processo de formação continuada, sobre o meu papel dentro daquele contexto e,
principalmente, sobre a vida. Da mesma forma, também me encontro em meio a
esses dilemas e questionamentos que me ajudam a construir minha identidade de
professora-pesquisadora em formação permanente (Moraes Bezerra, Cunha e
Miller, 2004).
25Tradução minha para a citação original: “Learners can develop, do develop and will develop,
whether or not language professionals recognize the fact”.
126
Refiro-me aqui à vida, pois, assim como a cronista no texto que escolhi
para inaugurar esse estudo se dedica a olhar para o que parece rotineiro com mais
cuidado, tentei pensar sobre a sala de aula como um espaço de encontros e
desencontros, altos e baixos, espera, disputas e conflitos, mas, sobretudo, um
espaço de oportunidades e alegrias.
Assim como foram e são eles, hoje já são outros. Não tenho como
mensurar o quanto essa pesquisa foi importante para aqueles alunos, já que
seguiram seu caminho, mas, para mim, foi o motivo para continuar, para voltar a
acreditar na escola como uma instituição, para ir além do descrédito e da
desmotivação causadas por ordens políticas e que estão fora do meu alcance.
Guardo com carinho cada palavra, cada atividade e cada abraço, e
agradeço pela oportunidade de ter sido professora desse grupo de alunos. Hoje,
tenho a certeza de que essa dissertação não se encerra aqui, uma vez que falar
sobre a vida não cabe nos limites dessas páginas e ultrapassam as margens desse
texto.
Há muito caminho a ser seguido à luz da Prática Exploratória, pois discutir
e observar tais aspectos, de nada valeria se não mexesse com as pessoas e não
provocasse novos entendimentos. Espero que, a partir desse trabalho, eu possa
continuar a fazer o mínimo para sair do senso comum em sala de aula, mesmo
enfrentando dificuldades do sistema público de ensino, para aprender a lidar com
as adversidades que eu possa encontrar pelo caminho.
O olhar continua o mesmo: ávido pela busca de entendimentos e para o
surgimento de novas questões. A janela abriu, já que, além de contemplar a minha
paisagem e me sentir completamente feliz, a complemento, faço parte, saio da
inércia e, junto ao que vejo, construo suas cenas.
Figura 10 - Reunião Thanksgiving – retorno dos dados aos praticantes: alunos da 1001 e eu.
127
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Anexo I Termos de autorização da pesquisa Niterói, ____ de _______ de 2015
À Direção e Coordenação Pedagógica,
Gostaria de solicitar sua colaboração para viabilizar a participação dos alunos da
turma 1001 do Ensino Médio do Colégio Estadual Arte de Ser Feliz em pesquisa
de mestrado da professora Evellyn Juliane Da Rocha Brandão, professora regente
de Inglês desta instituição.
Esta pesquisa, que está vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da
Linguagem da PUC-Rio, vem sendo desenvolvida sob orientação da professora
Dra. Inés Kayon de Miller, e insere-se no Projeto de Pesquisa Prática
Exploratória: ações pedagógico-investigativas para entender a vida em sala de
aula, ligado à Linha de Pesquisa Discurso, Práticas Cotidianas e Profissionais. A
pesquisa será realizada mediante a geração e análise de dados orais e Atividades
Exploratórias com Potencial Exploratórias produzidas pela professora e pelos
alunos ao longo do ano letivo.
Ao ter acesso às produções dos alunos, comprometo-me a não divulgar o nome da
instituição nem o nome dos estudantes cujos trabalhos forem utilizados na
pesquisa. Esperando poder contar com a sua colaboração, coloco-me à sua
disposição para quaisquer esclarecimentos.
Atenciosamente,
Evellyn Juliane da Rocha Brandão
Niterói, ____ de ________ de 2015.
136
À Professora Evellyn Juliane da Rocha Brandão,
Em nome da direção do Colégio Estadual Arte de Ser Feliz, eu, Clementina Olívia
da Cunha Moreira da Hora, autorizo a realização de pesquisa de mestrado da
professora Evellyn Juliane da Rocha Brandão, vinculada ao Programa de Pós-
Graduação em Estudos da Linguagem da PUC-Rio, sob orientação da professora
Dra. Inés Kayon de Miller.
Autorizo, ainda, que os trabalhos desenvolvidos em suas aulas ao longo do ano
letivo sejam incluídos no corpus da pesquisa, sob a condição de que o nome dos
alunos e o da unidade escolar não sejam divulgados.
Atenciosamente,
Diretora
137
Anexo II Prova de Pedro
Figura 11 - Questão da prova.
Legenda da tirinha: 1º quadrinho – “Péssimo! A professora me deu “péssimo” outra vez!, fala do
menino. / 2º quadrinho – É pra isso que a gente vai todo dia à escola?/ 3º quadrinho – Se eu viesse
de vez em quando, ainda vai!.../ 4º quadrinho – Mas fazer isto com um freguês?
Figura 12 - Resposta de Pedro e Cleber.
Legenda das respostas: Cleber desenha um microfone em formato de pistola e escreve – “A
melhor arma são as palavras”. Já Pedro, no cantinho da folha, responde: Sim, lembra que eu fiz
meu trabalho à mão e a professora não aceitou. Poxa!!! Me senti envergonhado por que eu fiz com
todo cuidado para ela não aceitar me senti péssimo também!!!
138
Anexo III Excertos
Excerto 1 -“[o que eu falei foi] que a autonomia tem estereótipo”
Bianca 1 que foi que ele falou? Iuri 2
3 4 5 6 7
[o que eu falei foi] que a autonomia tem
estereótipo porque quando a gente chega na sala
assim as vezes assim “ah...o pessoal do
autonomia” aí já pensa logo que a gente é idiota
que a gente não sabe ler, não sabe escrever que a
gente é tudo um bando de neandertais Sabrina 8 [↑gente calmaÊ] Evellyn 9
10 11
mas o Iuri, olha só, isso é uma pergunta para
Iuri e pra- para todo mundo. Porque você acha
isso, Iuri? Iuri 12
13 14 15
porque simplesmente pelo fato de entrar dentro da
sala o [professor] já olhar assim “Autonomia -
Autonomia” [aí começa] tipo assim a ficar em cima
do autonomia e esquece dos outros alunos= David 16 [para de falar certo] Raissa 17 [é verdade]
Excerto 2 – “é porque com eles foi diferente gente sei lá”
Evellyn 18 =mas já aconteceu alguma coisa que:: Iuri 19 já= Fábio 20 =heleno= Hanna 21 =é porque com eles foi diferente gente sei lá Sabrina 22
23 ficar falando que não vai fazer o exercício e
ficar dormindo não dá não Flávia 24 é Sabrina 25 é se ele [falar isso (que você tá dormindo)]= Iuri 26
27 28 29 30 31
[mas ele não pode falar que nós somos]
idiotas porque cara a gente pelo fato de já ter
passado [pelo autonomia] [a gente prova que tem
um intelecto bom cara] a gente fez várias séries
em menos de- menos de- [menos de três anos] –
fizemos em [dois anos]
Excerto 3 – “todo mundo aqui consegue”
Evellyn 32 [GENTE olha só] Hanna 33
34 35 36
[não mas olha só mas não é isso não porque::]
[mas oh olha só] Ô Iuri mas Flávia era do
autonomia e Flávia é totalmente diferente [das
outras pessoas]= David 37 =[mas nem todo mundo é igual cara] Iuri 38
39 todo mundo aqui consegue mas o professor [já
entra na sala]= Flávia 39
40 41 42 43
=[não não mas agora] eu vou falar, vou falar
porque quando eu falo o bagulho fica- mas você
sabe por que pensam que é diferente? por que você
abre o caderno quando o professor [tá
explicando]?= Alunos 44 [é::] ((a maioria dos alunos concorda com a fala
139
45 de Flávia em coro)) Flávia 46 = você copia [a matéria, Iuri?] Hanna 47 [que nem] -que nem na aula [de –de Português] Flávia 48 [é cara e professora de Biologia cara]=
Iuri 49 [eu copiei a matéria] eu só não sei Flávia 50
51 50 51 52 53
=eu tava do lado dela e ela disse “chama Iuri
para fazer a recuperação”. “não quero” (.) “por
quê?” “vou ficar de dependência mesmo” ((após a
fala de Flávia os alunos começam a falar ao mesmo
tempo e fica difícil transcrever este momento))
pois é, aí você vê. você não copia a matéria Iuri 54 mas isso não justifica cara Flávia 55 a:::-h eu acho que isso justifica sim= Evellyn 56 mas olha só já= Bruna 57 =não copia a matéria=
Excerto 4 - “a gente tinha que provar pra eles que é diferente
David 58 =corta esse cabelo sansão= Evellyn 59
60 61
=Olha SÓ - ↑parou – GENTE OLHA SÓ. Ô Iuri, tá
falando isso porquê? Já aconteceu alguma situação
que você se sentiu assim= Iuri 62
63 64 65 66 67 68
=já. porque até a própria professora de Português
às vezes trata a gente como se a gente fosse-
isso não é desculpa para evadir o que eu tô
querendo falar mas isso não justifica porque é:::
a professora às vezes tá ali na frente aí ela
deixa às vezes de atender o que Pedro fala
achando que ele tá de deboche com a cara dela Flávia 69
70 71 72
não, mas sabe qual é o problema, já que o pessoal
tem tanto preconceito com a gente tinha que
provar para eles que é diferente. você vai provar
assim com o caderno fechado? Sabrina 73
74 ↑verdade ((alunos começam a falar ao mesmo tempo
sobre o assunto)) Iuri 75
76 eu vou ficar escrevendo um negócio que eu sei que
não vou conseguir concluir?
Excerto 5 – O primeiro dia de aula foi assim
Adriana 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17
[peraí] gente –peraí. primeiro dia de aula foi
assim, a gente foi lá embaixo a gente tipo tinha
um grupinho ano passado eu, Hanna e meus amigos,
aí só vimos que eu e Hanna estávamos em uma
turma separada que era a deles, aí eu e Hanna
falou assim não-não vou ficar nessa turma porque
eu não conheço ninguém” ela entrou na sala e
falou “eu não gosto do autonomia” eu “Hanna não
fala assim vai pegar –é:: as garotas –as garotas
não vão gostar de você porque você falou isso”
mas foi isso Hanna chegou na sala e só falou “eu
não gosto do autonomia” e tinha um monte de
garota lá atrás eu acho que tava::você a tava no
dia não tava? tava essa menina ((alunos começam
a falar)) aí foi isso né gente ↑tipo eu também
não queria ficar nessa sala ((alguém pede
silêncio))- eu também não queria ficar nessa
140
18 19
sala mas POR MEDO eu não falei, eu botei minha
mochila e saí hhhhhh eu levantei e saí
Evellyn 20 medo de quê?
Adriana 21 eu sei lá vai que:: eu levantei e saí
Excerto 6 - “agora entram professores, saem professores”
Evellyn 1 2 3 4 5 6 7 8
eu achei legal isso aqui que eu estava lendo em
casa na hora que eu fui corrigir é::: esse
exercício sobre a tirinha aí eu achei legal que
você e o Cleiton fizeram separado né? ele colocou
que a melhor arma são palavras foi bem legal mas
eu fiquei curiosa com isso que você escreveu aqui
por que que você relacionou é::: o que tá na
tirinha com = Pedro 9
10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26
27 28
=é porque eu assim é muito diferente é porque a
gente estava no autonomia e agora eu comecei a vir
para o primeiro ano agora que no autonomia a gente
via vídeo é televisão e tudo complicava aí chegou
no primeiro ano é super diferente porque é::
diferente porque a gente aprendia as coisas com as
pessoas explicando na televisão aí chego chega
aqui no primeiro ano é tudo diferente sai
professores e entram professores e vai complicando
mais, entendeu? é -bé sei lá é diferente não é tão
ruim nem tão bom mas é diferente é:: então isso os
professores tem professores que conseguem entender
e tem professores que também não conseguem
entender que tem aluno que ainda por si ainda
poderia até ter mesmo uma ajuda pra poder
conseguir mas tem professores que não enxergam que
o aluno tem dificuldade que tem aluno que tem
facilidade de aprender e tem outros também que não
tem eles tem gente que sei lá não sei explicar
muito essas coisas
Excerto 7 -“você não acha também que os alunos não colaboram?”
Evellyn 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39
hhhhh não é legal a gente pensar só que eu fiquei
pensando sabe no que é:: eu tava vendo, né? eu
elogiei vocês no semestre passado porque eu achei
que é: a turma entregou bastante trabalhos nesse
semestre no último bimestre mas nesse bimestre
pouca gente entregou trabalho aí eu achei assim
poxa será que eles também não estão se
entregando, sabe? já que vocês falam falaram
muito daquele negócio de preconceito de que acha
que os professores tem preconceito mas será que
vocês também não tão deixando? Pedro 40
41 42
é é porque eu eu mesmo percebo que a turma tá::
deixando de sei lá desacreditando porque os
estudos não estão como antigamente Evellyn 43 por que? Pedro 44
45 46
porque tem professores que se interessam existe
não vou falar que não existe tem professores que
se interessam ao ensinar e tem professores que não
141
47 48 49 50 51 52
se interessam entendeu. “Ah lá, não sabe? Já
expliquei então você faz” aí fica por isso mesmo.
os alunos não deixa de acreditar. professor-a
gente pede para ir para sala dos professores, os
professores já se alteram e já tem outros
professores que explicam direito enten[deu] e=
Excerto 8 - “Eu não chego aqui e se entrego também”
Evellyn 53 54 55 56 57 58 59 60 61 62 63
=[mas]então mas às vezes eu fico pensando assim
nos estudos –os estudos mudaram mas por que agora
os professores estão assim diferentes ou fecha
essa porta aí para mim Peterson, tá muito barulho.
((Pedro fecha a porta)) –é –não –deixa assim
encostada. Nossa, mas aí::: você falou desse
negócio do professor você tava dizendo que os
estudos tá diferente porque o professor você
procura os professores na sala dos professores
eles não ajudam uns ajudam você não acha também
que os alunos não colaboram? Pedro 64
65 66 67 68 69 70 71 72 73 74 75 76 77 78 79 80 81 82 83 84 85
tem alunos que –que fica desinteressado, têm
bastante. Eu –eu vou falar de mim – eu -eu me
interesso eu acho mas quando eu não sei eu tento
buscar mais daquilo para eu poder ver se eu
consigo me aproximar. Quando eu vejo que eu não tô
conseguindo-não é questão de desistir – eu tipo
assim – eu paro porque pô não vou conseguir então
eu vou parar porque fica difícil às vezes faço
prova às vezes fico nervoso não consigo pensar
direito porque eu fico com medo de errar mas é::
eu não chego aqui e se entrego também porque tem
alunos que se entregam não quer crescer eu-eu-
penso assim –eu quero crescer mas vendo por essa
dificuldade que eu tô passando eu acabo me
desinteressando também porque eu penso assim
“ah..eu não vou conseguir” porque Matemática eu
não às vezes agora no primeiro ano eu não tô
conseguindo pegar muito, Biologia também mas agora
eu tô conseguindo me recuperar História também
acabei de fazer agora a avaliação do segundo
((bimestre))que eu tirei em história, mas em
história eu tô com quatro na média Evellyn 86 huhum tá pertinho Pedro 87
88 e eu não sei quanto que eu vou tirar agora [nessa
prova agora]
Excerto 9 - “eu acho que tudo mudou”
Evellyn 89 90 91
[você não acha que é muito diferente do ano
passado ou você acha que tipo você acha que você
mudou também? Será=
142
Pedro 92 93 94 95 96 97 98 99 100 101 102 103 104 105 106 107 108 109 110 111 112 113 114 115
tem as duas opções mudou e:: não tá- tá um
pouquinho sabe porque mudou? porque porque na-
na autonomia a gente só tinha um professor- o
professor podia dar atenção para gente então a
autonomia toda ficava em dúvida o professor na
hora parava o que ele tava fazendo e explicava
agora na:: -na mil e um de tarde- não de tarde
não – de manhã a gente faz o- a gente fica com
uma dúvida os professores não tem paciência não
quer explicar porque falou que já explicou e a
turma –e a turma não prestou atenção tem alunos
que presta atenção tem alunos que não presta
fica conversando alto aquela algazarra aí não dá
para escutar direito. O professor fala e fala
que tava todo mundo conversando mas não é tem
aluno que presta atenção eu se eu tiver
conversando e alguém tiver falando comigo eu
paro de conversar com a pessoa para tentar
entender o que a pessoa fala às vezes eu escuto
às vezes às vezes eu peço para a pessoa parar
para poder explicar de novo. Antes o professor
explicava tudo direitinho ele dava atenção para
todo mundo dentro da sala mas quando chegou no
primeiro ano tudo mudou. Eu acho que tudo mudou. Evellyn 116 hhhhhh Pedro 117 Agora é super diferente
Excerto 10 - “como que uma professora não sabe explicar um dever para um aluno?”
Evellyn 118 119 120 121 122
é...é que eu não consigo imaginar por isso que
eu tenho que conversar com vocês porque eu acho
que mesmo sabendo disso, acho que só vocês
contando mesmo, falando que-que tem como a
gente ter uma noção melhor do que acontece Pedro 123
124 125 126 127 128 129
é:: porque tudo –é –é tudo na conversa, como eu
falei com a professora Maria, ela conversa
bastante comigo também-ela é legal também-ela
explica, ela tem paciência para poder explicar,
mas tem alguns que já não vão gostar muito –não
tem professores que explicam bem mas tem u::ns
sabe Evellyn 130 [hhhhh] Pedro 131
132 133 134 135 136 137 138
[hhhhh] tem uns que ainda não sabe explicar –
se embola é:: no autonomia mesmo tinha uma
professora que não vou citar nomes né que todo
mundo já sabe já quem é:: ela precisava para os
alunos explicar a ela o dever que ela não sabia
fazer. como que uma- como que uma professora
não sabe explicar um dever para um aluno?
aí:::= Evellyn 139
140 141
=mas você não acha que a gente também pode
aprender com vocês? Eu acho que eu super
aprendo com [vocês] Pedro 142
143 144
[não] pode –pode sim aprender mas aí já é
demais hhh abrir o livro e perguntar como se
faz o dever para os alunos hhhh Evellyn 145 hhhhhh Pedro 146
147 ela abriu o livro e perguntou “gente abre o
livro na página tal. como é que faz esse daqui?
143
148 149 150 151 152 153
eu não sei fazer isso daqui não- isso aqui é
muito diferente não sei o que” aí ficava todo
mundo de boca aberta porque acabava que ninguém
sabia também –vai fazer o que? A professora
ficar perguntando para gente como é que se faz
o dever?
Excerto 11 - “e por que você foi para o autonomia, Pedro?”
Evellyn 154 e porque você foi para o Autonomia, Pedro? Pedro 155
156 porque eu tinha muita dificuldade-eu-eu-eu era
igual o Iuri Evellyn 157 uhum Pedro 158
159 160 161 162
respondia tudo-assim- fa- é- falando –e – e-
quando chegava na hora eu sabia tudo –na hora
de fazer o dever –tava tudo certo mas quando
chegava na hora de fazer a prova eu não
conseguia= Evellyn 163 =uhum= Pedro 164
165 166 167 168 169 170
Então eu comecei a brincar na sala de aula
comecei a fazer um monte de coisa. matava aula.
depois que eu vi que isso não ia acontecer nada
–isso não ia me levar a nada –eu faltando aula
não ia ter uma vida que queria que eu sonho em
ser fisioterapeuta né:: eu quero ser
fisioterapeuta Evellyn 171 que chique Pedro 172
173 eu quero ser fisioterapeuta então foi assim. se
eu não estudar vou chega= Evellyn 174 =tem [que]= Pedro 175
176 177 178 179 180 181 182 183 184 185 186 187 188 189 190 191
[se eu não] estudar –se eu não fizer nada
da minha vida como é que eu vou ser um
fisioterapeuta –se eu não fizer nada da vida.
então, eu fui pensando e agora- agora que eu tô
caindo na real porque eu brincava muito no
ensino ih-eu brincava no ensino fundamental
assim – ficava brincando muito. matava aula. –
não queria saber de nada, as provas não fazia
deixava tudo em branco porque eu não sabia e no
primeiro ano agora eu tento fazer mesmo estando
errado eu tô fazendo porque eu tô vendo que
hoje em dia tá complicado para você arranjar um
trabalho você tem que ter pelo menos o primeiro
grau completo porque tá tudo difícil e depois –
e agora –e agora quando eu cheguei no primeiro
ano agora dá tempo para eu recuperar eu vou
tentar correr atrás Evellyn 192
193 ai que bo::m mas aí ainda dá tempo tem que
estudar bastante biologia Pedro 194 é::agora eu tô sem tempo também
Excerto 12 - “eu te convido a pensar”
Evellyn 195 196 197 198 199
mas a gente arranja tempo. eu fiquei curiosa
porque você colocou assim no cantinho? Você
lembra porque você escreveu isso? Não sei, eu
olhei assim e falei:: ge::nte porque Pedro
escreveu assim no cantinho?
144
Pedro 200 não sei hhhhhh Evellyn 201
202 203 204 205 206 207 208 209 210 211 212 213
hhhhhhh eu tô pensando ainda. vamos ficar
pensando nisso. eu fiquei pensando mas assim eu
acho várias coisas assim –você sabia que eu ia
ler né? que a professora vai ler – não sei se
você ficou com vergonha porque era a professora
que ia ler, mas vamos- eu te convido a pensar
no porquê que será que você escreveu no
cantinho. não precisa me responder agora não
porque é uma coisa que tem que pensar porque a
gente vai continuar pensando nisso bimestre que
vem sobre aquelas coisas todas da sala e você
acha que tem questionamentos novos? Porquês
novos? novos puzzles? Pedro 214
215 pode ter não tenho muita certeza, mas pode ter
ou então pode não ter sei lá porque Evellyn 216
217 218
eu também achei muito interessante muito legal
aquilo que você escreveu sobre os porquês que a
vida tem vários porquês Pedro 219
220 tem muito porque, então, para poder explicar o
porque tem que ter um porque então Evellyn 221
222 223 224
é:: é – mas é né. eu acho que o mais legal é
isso a gente ter sempre um porque para gente se
movimentar, para gente pensar. Você vê, se não
fosse talvez um porque um motivo para você= Pedro 225 =se explicar Evellyn 226
227 228 229
é:: para você ué, você não queria – você não
quer ser fisioterapeuta. se Deus quiser você
vai ser. se não fosse isso talvez você não
estudasse mais. Pedro 230 é::
Excerto 13 -“tem que falar dos estagiários também né?”
Hanna 1 tem que falar dos estagiários também né? Bruna 2
3 é..aquela do cabelo enroladinho eu acho que já é
professora Bianca 4
5 ela já é professora? é até que ela parece
melhorzinha mesmo Flávia 6
7 o pior mal dos estagiários é pensar que já é
professor Hanna 8 É né? Evellyn 9
10 11
que isso? oh...daqui a pouco a estagiária de
inglês tá chegando aí hein, e ela já dá aula, já é
professora Sabrina 12
13 14
essas estagiárias de matemática parece até que é
mais burra do que eu. O cara escreveu errado aqui
ó no quadro para todo mundo ver Flávia 15 é o cara ensinou o negócio errado para gente
Adriana 16 17 18
e..aí no meio do exercício que todo mundo fez
falou que tava certo e ele falou que tava errado,
“opa, como [assim?”]
Excerto 14 -“uma vez é normal, mas errar sempre”
Evellyn 19 20 21
não mas o estagiário que tá na escola também vocês
não acham que aqui também é um espaço para eles
aprenderem?
145
Sabrina 22 23 24
mas os que já são profe[ssores]? Hh eles tem que
dar o negócio certo para gente tem que ensinar
certo e não ensinar errado
25 26
[é]hhhh ((alguns alunos da
turma concordam)) Sandra 27 mas eles [são humanos]=
Flávia 28 [bem ou mal eu copiei]
Sabrina 29 30
=SEmpre? errar é humano errar uma vez é normal,
mas errar sempre? Sandra 31
32 mas isso não acontece sempre, você não pode pensar
[assim]= Sabrina 33 =não erra erra sim
Hanna 34 [tá certo] porque eu vejo
Evellyn 35 36
mas gente –mas gente, vocês não acham assim que
professor também pode errar? Sabrina 37
38 39 40
claro que pode né professora, mas sempre. você
passar uma coisa e não conseguir fazer? Um
professora vai ali no quadro colocar uma conta e
vai errar? um professor de matemática? (.)
Excerto 15 - “mas isso era relevante?”
Cleber
41 42 43 44
Professora, a gente tinha uma professora de
matemática aqui que ela era a melhor professora
de matemática da escola, mas só que ela tinha
erros de português Hanna 45 É:: peraí que eu vou lembrar o nome dela
Sabrina 46 47
Eu sei ó tá aqui ((aponta para a língua)) Vilma
hhhhhh ((risos dos alunos)) Flávia 48
49 Hhhhh [olha ela a pessoa fala para não falar
nomes e fala] Cleber 50
51 52 53
[ela a pessoa- sabe aquela pessoa que é ridícula
na matéria ela fazia tirar nota boa e não é- ela
não dava nota não, ela realmente ensinava mesmo,
mas tinha erro de português para caramba Hanna 54 Professora, ela falava po-bre-ma hhhhhh
Evellyn 55 Mas isso era relevante?
Cleber 56 [não]
Hanna 57 [isso era horrível, professora]
Excerto 16 - “a gente tinha ebola”
David 1 2 3
adriana -adriana subiu cheia de vergonha porque a
diretora mandou ela voltar para a sala dela hhhh
((risos do grupo)) Adriana 4 Isso foi muito tempo depois= Flávia 5
6 =e a gente, olha, mas a gente riu tanto da cara de
vocês= Hanna 7 Foi [–fo::i –fo::i a diretora] hhhh Sabrina 8
9 [A tia do corredor veio e devolveu vocês hhhhh
(alunos riem) Flávia 10
11 12 13
[ no dia que vocês] –é –elas saíram da sala
professora hhhhhhh ((risos de Sabrina))porque a
gente tinha uma do[ença contagiosa] que elas não
podiam chegar [perto]hhhhh
146
Adriana 14 [hhhhhh] David 15 [a gente] tinha ebola hhhh= Camila 16
17 18
= oh a gente ficou aqui só esperando a desgraça
chegou ela, chegou Ana, acho que chegou Vanessa
também NÃO Sabrina 19 NÃO ela ficou aqui Flávia 20 não foi quem? Sabrina 21 foi ela ((apontando para Adriana) Adriana 22 [foi]eu= Hanna 23 =foi ela [e Bia só] Flávia 24
25 26
[aí quando elas] chegaram e a diretora
falou ‘senta’ olha mas a gente riu, mas a gente riu
tanto Hanna 27
28 29
Cadê aquele garoto?Como que era? Como que era
aquele garoto que saiu da es[cola? Qual] o nome
dele?= Flávia 30 =[Julio]= Hanna 31
32 =[falou que ia tacar uma bomba na gente, gente, eu
olhei para cara dele]= Flávia 33
34 =[a gente riu tanto que a diretora chegou aqui e
colocou todo mundo de volta]= Sabrina 35
36 porque a tia chegou aqui falando “eu vou trazer
elas”= Hanna 37 =cagoetaram a gente NÉ safadas Adriana 38 foi Alice que cagoetou
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