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FACULDADE DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS,
ADMINISTRATIVAS E CONTÁBEIS DE FRANCA
FACEF
RESPONSABILIDADE SOCIAL DA EMPRESA E
NEOLIBERALISMO, NO BRASIL CONTEMPORÂNEO.
ELVISNEY APARECIDO ALVES
FRANCA 2000
2
FACULDADE DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS,
ADMINISTRATIVAS E CONTÁBEIS DE FRANCA
FACEF
RESPONSABILIDADE SOCIAL DA EMPRESA E
NEOLIBERALISMO, NO BRASIL CONTEMPORÂNEO.
Elvisney Aparecido Alves
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu, para obtenção do título de Mestre em Administração, área de concentração Gestão Empresarial, sob orientação do Prof. Dr. Jorge Luis Cammarano Gonzáles.
FRANCA 2000
3
Alves, Elvisney Aparecido A478r Responsabilidade social da empresa e a hegemonia do pensamento
econômico neoliberal: o caso brasileiro no final do século XX/Elvisney Aparecido Alves. – Franca: 2000.
147 p. Orientador: Jorge Luis Cammarano Gonzáles Dissertação de Mestrado – FACEF Programa de Mestrado em Gestão Empresarial 1. Adiministração de empresas – Princípios. 2. Empresa –
Responsabilidade social – Brasil. 3. Economia – Neoliberalismo. 4. Estado – Função. 5. Capital – Conflito social.
CDD 658.408
4
Banca Examinadora:
Presidente: __________________________________________ Prof. Dr. Jorge Luis Cammarano Gonzáles
Membro: _______________________________________
Prof. Dr. Paulo de Tarso Oliveira
Membro: _______________________________________
Prof. Dr. Newton Paulo Bueno (UFV)
5
À Sandra e à Luana com amor.
À minha mãe e avôs maternos que souberam me
educar sob a égide da moral da integridade.
Aos verdadeiros amigos.
A Deus muito obrigado pela consciência que sou.
6
AGRADECIMENTOS
Quero agradecer a todos as pessoas que direta ou indiretamente me
auxiliaram nesta caminhada, principalmente, os que debateram formal ou informalmente
comigo este tema tão desafiador.
Ao professor Hélio Braga Filho pela presteza em ter cedido gentilmente
vários livros de sua biblioteca, bem como, todos aqueles que me trouxeram livros, artigos e
materiais diversos sobre o assunto, em especial, o professor Augusto Aparecido Mazier.
Por último, não menos importante, ao contrário, agradeço ao professor Dr.
Jorge Luis Cammarano Gonzáles que me orientou neste projeto. Em todos os momentos
me atendeu com extrema eficiência e eficácia, nas leituras e nas respostas contributivas ao
desenvolvimento desta dissertação. Sempre me incentivou no caminho. Muitos dos que
vemos são apenas bons professores, no entanto, posso afirmar com segurança que sua
postura, capacidade, compreensão e qualidade humana o tornam o verdadeiro mestre que é.
7
“Um ser superior pensa no que é correto.
Um ser inferior só pensa no que é lucrativo.”
Confúcio
“Difícil não é fazer o que é certo,
É descobrir o que é certo fazer.”
Srour
“A integridade não é uma fórmula mágica de prevenção,
uma inoculação contra dilemas éticos. É o sentido da integridade
pessoal que nos permite navegar pelas águas traiçoeiras desses
dilemas, e, embora, não seja garantia de sucesso, não pode haver
êxito sem ela (...) A integridade é o oposto de usar as pessoas para
fins exclusivos, mas é também ser claro sobre quais são nossos
verdadeiros fins (...) O que cada um diz é bem menos
importante do que cada um faz.”
Solomon
8
ÍNDICE
INTRODUÇÃO............................................................................................................................................... 12 1 A IDEOLOGIA ECONÔMICA NEOLIBERAL E A FUNÇÃO SOCIAL DAS EMPRESAS................... 16
1.1 O ESTADO DO BEM-ESTAR SOCIAL: ASCENSÃO E ESGOTAMENTO............................... 16 1.1.1 Keynes e o papel do Estado............................................................................................................ 17 1.1.2 O pós-guerra e os anos de ouro....................................................................................................... 20 1.1.3 Os duros anos das décadas de 70 e 80 ............................................................................................ 24 1.1.4 As contribuições da Dama de Ferro................................................................................................ 30
1.2 OS VALORES ECONÔMICOS DO NEOLIBERALISMO........................................................... 32 1.2.1 Os ideais econômicos do liberalismo clássico: Adam Smith.......................................................... 33 1.2.2 As contribuições de Hayek ............................................................................................................. 36 1.2.3 As contribuições de Friedman ........................................................................................................ 41
1.3 AS FUNÇÕES DO ESTADO NEOLIBERAL ..................................................................................... 44 1.4 A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA ................................................................................................. 48
2 DIMENSÕES DA RESPONSABILIDADE SOCIAL DA EMPRESA....................................................... 56 2.1 UM SISTEMA ABERTO E GLOBALIZADO..................................................................................... 57 2.2 A EMPRESA SOCIALMENTE RESPONSÁVEL............................................................................... 63
2.2.1 A concepção ideológica da sociedade capitalista ........................................................................... 67 2.2.2 O fundamento econômico da empresa............................................................................................ 70 2.2.3 A gestão profissional da empresa ................................................................................................... 74 2.2.4 O ordenamento institucional da sociedade ..................................................................................... 76 2.2.5 Os valores sociais do homem: a moral e a ética ............................................................................. 79
3 RESPONSABILIDADE SOCIAL DA EMPRESA NO BRASIL................................................................ 83 3.1 O IMPACTO DO NEOLIBERALISMO ECONÔMICO...................................................................... 83 3.2 DIMENSÕES DA RESPONSABILIDADE SOCIAL DA EMPRESA, NO CASO BRASILEIRO .... 86
3.2.1 A concepção ideológica da sociedade capitalista ........................................................................... 88 3.2.2 O fundamento econômico da empresa............................................................................................ 92 3.2.3 A gestão profissional da empresa no Brasil.................................................................................. 102 3.2.4 O ordenamento institucional da sociedade brasileira.................................................................... 107 3.2.5 Os valores sociais do homem brasileiro: a moral e a ética ........................................................... 112
4 LIMITES DA EFICÁCIA DA RESPONSABILIDADE SOCIAL DA EMPRESA .................................. 119 CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 136 Referências Bibliográficas............................................................................................................................. 143
9
Resumo
A responsabilidade social das empresas é um tema que surgiu no final do
século passado, no entanto, somente na década de cinqüenta começa a ganhar destaque
mundial e chega ao país no final da década de setenta. Devido às condições conjunturais da
economia nacional pouca atenção social lhe foi reservada, ao longo dos anos oitenta. A
partir da década de noventa, simultaneamente, ao domínio da ideologia econômica
neoliberal no país, a responsabilidade social das empresas vai se tornando um tema de
relevante interesse, principalmente, nos últimos três anos desta década. Embora, a
tradicional ideologia econômica neoliberal se posicione contrária a qualquer tipo de
obrigação social por parte das empresas, sua ação social se manifesta crescentemente no
país. As causas deste fenômeno encontram explicação no movimento dialético das forças
que regem o modo de produção capitalista frente às necessidades sociais surgidas de dentro
do espectro de cinco dimensões. No país, este movimento vai sendo potencializado pelo
domínio, cada vez maior, das forças do livre mercado dado pela reestruturação produtiva,
nos moldes do processo da mundialização e globalização do capital. A importância da
colaboração social das empresas é louvável, mas sua contribuição para a solução final dos
males sociais, criados pelo próprio sistema capitalista, encontra nele mesmo suas
limitações. Um embate vigoroso se dá no âmbito da sociedade, na construção de uma
empresa realmente cidadã e atuante. Um dilema social se interpõe no seio da moral
capitalista, afetando a estrutura das funções da célula produtiva. Coordenar esta ação social
de forma eficaz, certamente, não é tarefa para o mercado e sua mão-invisível.
10
Abstract
The social responsibility of the enterprises is an issue that was first arisen at
the end of the last century. However it was only in the 50’s that it started to gain world-
wide note and reached our country at the end of the 70’s. Due to the circumstantial
conditions of the Brazilian economy little social attention was given along the 80’s.
Starting in the 90’s, simultaneously to the dominion of the neoliberal economic ideology in
Brazil, the social responsibility becomes an issue of relevant interest, mainly in the last
three years of the current decade. Although the traditional economic ideology does not bear
any kind of the enterprises’ social obligations, their social actions are being more and
mores displayed in the country. The reasons for this phenomenon can be explained through
the dialectic movement of the actors who command the capitalist production way opposed
to the social needs arisen from inside the five-dimension spectrum. In our country, this
movement is becoming stronger by the increasing supremacy of the free-market forces
occurred due to the productive reorganization, following the patterns of the capital
globalization. The importance of the social participation of the enterprises is laudable, but
their contribution for the final solution of the social problems, originated by the capitalist
system, is limited by the system itself. A vigorous struggle takes place in the very heart of
the society for the construction of real socially active enterprises. A social dilemma
interposes itself in the capitalist moral, affecting the structure of the functions of the
produce organizations. The effective coordination of this social action certainly is not a
task for the market and its invisible hand.
11
Resume
La responsabilidad social de las empresas es un tema que apreció en el final
del siglo pasado, todavía, solamente en la decada de cincuenta empieza a ganar destaque
mundial y llega as país en el final de la decada de setenta. Debido las condiciones del
conjunto de la economía nacional poca atención social les fue reservada, al largo de los
años ochenta. A partir de la decada de noventa, simultáneamente, al dominio de la
ideología económica neoliberal en el país, la responsabilidad social de las empresas
tornándose un tema de relevante interés, principalmente, en los últimos tres años de esta
decada. Todavía, la tradicional ideología económica neoliberal se pone al contrario a
cualquier tipo de obligación social por parte de las empresas, su acción social manifiesta
creciente en el país. Las causas de este fenómeno encuentran explicación en el movimiento
dialéctico de las fuerzas que rigen el modo de la producción capitalista frente a las
necesidades sociales surgidas de dentro de el espectro de cinco dimensiones. En el país,
este movimiento potencialización por el dominio, cada vez mayor de las fuerzas del libre
mercado dado por la reestructuración productiva, en los moldes del proceso de la
globalización del capital. La importancia de la colaboración social de las empresas es
admirable, pero la contribución para la solución final de los males sociales, creados por el
propio sistema capitalista, encuentra en él mismo sus limitaciones. Un embate vigoroso
ocurre en el ámbito de la sociedad, en la construcción de una empresa realmente ciudadana
y actuante. Un dilema social interpone en el medio de la moral capitalista atinando la
estructura de las funciones de la célula productiva. Coordinar esta acción social con
eficacia ciertamente, no es tarea para el mercado y su mano invisible.
12
INTRODUÇÃO O presente estudo tem por finalidade a análise da hegemonia econômica
neoliberal e seus impactos na gestão empresarial privada do capital sob a ótica da
responsabilidade social das empresas.
É possível observar que o processo de globalização das economias
mundiais, ancorado em inovações tecnológicas e na abertura dos mercados, está
produzindo uma verdadeira revolução nos aspectos mais diversos da vida social, cultural,
econômica e política dos indivíduos e de suas inúmeras coletividades chamadas de
Estados-Nação. Considero que a denominada responsabilidade social das empresas
representa mais um destes aspectos que ora se manifestam.
Centrando esta investigação a partir das atuais relações econômicas
hegemônicas, pode parecer contraditório falar das responsabilidades sociais do setor
privado capitalista. Entretanto, a análise do processo de participação socialmente
responsável deste setor merece ser avaliada e, neste caso, o caminho adotado é o da
pesquisa teórica.
A responsabilidade social das empresas no Brasil é um tema relativamente
pouco explorado pela grande parte das próprias empresas e, até mesmo, do ponto de vista
da produção acadêmica em nosso país, podemos considerar que somente recentemente
passou-se a dar algum destaque específico para esta temática. Porém, é flagrante que este
aspecto empresarial vem ganhando, com certa rapidez, cada vez mais importância em
nossa sociedade.
O fortalecimento da democracia e de suas instituições civis só está
favorecendo o aprofundamento do exercício responsável da cidadania, o qual acaba por
impulsionar novas exigências à mentalidade empresarial capitalista. Surge uma noção que
passa a fazer referência e, por que não dizer, qualificar e distinguir as organizações
produtivas enquanto empresas “comuns” ou “empresas-cidadãs”. Este conceito está sendo
paulatinamente absorvido pela mentalidade empresarial e pelos modelos de gestão destas
organizações.
Então, poderíamos nos perguntar: A responsabilidade social das empresas
privadas é expressão das necessidades da própria mentalidade capitalista dominante, do
neoliberalismo econômico? Que elementos possibilitariam a explicação deste processo e
suas relações?
13
De imediato, é preciso termos em mente que numa sociedade capitalista
qualquer, ainda que seja menos injusta, do ponto de vista econômico, necessariamente,
devemos considerar que os interesses econômicos dos próprios agentes sociais é que estão
em jogo. Por outro lado, de nada adiantaria progresso, eficácia e produtividade em
abundância nas organizações produtivas, se o mercado não estiver à altura das
necessidades de demanda do sistema capitalista, pior ainda, se tais empresas estiverem
cercadas por tensões sociais que coloquem em risco a sua própria existência.
A atual ideologia econômica dominante, fruto de um movimento histórico
que recentemente ganhou contornos hegemônicos a nível mundial, reconduz ao antigo
ideal do liberalismo econômico clássico do Estado mínimo, bem porque, o modelo de
acumulação de capital garantido pelas políticas de déficits do Estado se esgotou. O próprio
Estado sequer se mostra à altura para enfrentar os novos desafios e vê seu poder se
esvaindo, ao mesmo tempo, em que cresce o poder das grandes organizações
transnacionais.
Na medida em que o Estado se desmonta para favorecer as necessidades
econômicas e ideológicas do capital globalizado, numa nova etapa da organização social
humana, vai se criando um vácuo nas relações de serviços às classes sociais mais carentes
economicamente. Aos poucos está ficando perceptível que o Estado que ai está não poderá
arcar sozinho com a responsabilidade social pelo bem-estar do cidadão comum, desprovido
de instrumentos econômicos privados que lhe permitam uma sobrevivência digna ou, pelo
menos, razoável.
Um caminho alternativo que se desenha está indicando uma necessidade
crescente da conscientização e participação de toda a sociedade, inclusive, das empresas
privadas, diante das preocupações com o social. Estas novas responsabilidades sociais que
se agigantam na direção das empresas, questionando seus antigos valores, exigem uma
nova forma de gestão empresarial. Algumas empresas se apercebem disto e de suas
conseqüências, outras não. No futuro, as empresas que souberem lidar com o trato de suas
responsabilidades sociais terão maiores chances de sucesso.
Seria ingenuidade acreditarmos que o livre mercado por si só promoveria a
melhor distribuição da riqueza material e o bem-estar entre os homens, embora, do ponto
de vista econômico, é compreensível a noção de que a suposta “mão invisível” do mercado
seja um elemento harmônico dos egoísmos individualistas contrapostos. No entanto, esse
fato não implica que no campo da justiça social aconteça a mesma coisa.
14
Visando contribuir para a análise teórica deste processo histórico e suas
possíveis implicações, a presente dissertação focada nas relações contraditórias da
sociedade capitalista, fruto do seu modo de acumulação e apropriação da riqueza,
procurará fazer um embate teórico do interesse puramente econômico inerente à sociedade
capitalista frente às suas responsabilidades sociais.
Ao explorar tais relações conflituosas procurarei expor a análise em três
grandes blocos de idéias distintos e articulados, a saber:
1 – No primeiro bloco, contextualizar a ascensão e a hegemonia econômica
neoliberal como elemento histórico catalisador da mudança de valores econômicos
contrapostos a percepção da função social responsável pelas empresas, paralelamente, a
análise do esgotamento dos ideais do papel social desempenhado pelo Estado do bem-estar
social (Welfare State ou Estado previdenciário);
2 – No segundo bloco, desvendar para o caso brasileiro as causas da postura
das empresas quanto às suas responsabilidades sociais, diante da consciência material do
homem, no período atual de domínio da visão econômica neoliberal;
3 - No terceiro e último bloco, avaliar a partir da natureza do sistema
capitalista e do papel das empresas privadas dentro deste, os seus limites internos quanto à
eficácia da gestão da responsabilidade social pela iniciativa privada.
Ao elaborar esta análise procuro elementos capazes de apoiar a percepção
de que o interesse puramente econômico sempre se sobreporá às responsabilidades sociais,
limitando a atuação das empresas àquelas atividades estritamente necessárias à manutenção
e expansão de sua atividade empresarial, de tal forma que somente existe consciência das
responsabilidades sociais pela empresa dentro das dimensões do domínio de interesses
econômicos. Assim, trata-se de argumentar, no sentido de buscar comprovação, acerca do
domínio da visão econômica neoliberal contraposta a incorporação da responsabilidade
social nos modos de gestão empresarial, na perspectiva de efetivação de um novo
paradigma organizacional.
É possível avaliar em que sentido o sistema capitalista cria barreiras à
eficácia das ações empresariais, limitando a relevância da atuação destas organizações
produtivas do ponto de vista das suas responsabilidades sociais. Desta forma, propor-se a
problematização de que o espírito capitalista, isoladamente, não é elemento capaz de
promover a construção de uma sociedade mais equânime do ponto de vista das
necessidades econômicas dos indivíduos, ainda que, o neoliberalismo defenda um
15
equilíbrio automático do bem-estar social pela via do mercado e apesar desta ação
embrionária de responsabilidade social assumida pelas empresas.
Em suma, busca-se a elaboração de uma análise crítica sobre os objetivos
das políticas sociais implementadas pela gestão empresarial capitalista, como instrumentos
utilizados estrategicamente, para promoverem a intervenção nas relações de conflito social
que cada vez mais são potencializadas pelo próprio sistema. Desta forma, podemos passar
à elaboração específica dos objetivos propostos diante da estrutura pensada.
16
1 A IDEOLOGIA ECONÔMICA NEOLIBERAL E A FUNÇÃO
SOCIAL DAS EMPRESAS
O duro golpe da recessão econômica mundial que se iniciou com a quebra
da bolsa de NY, em 1929, período da Grande Depressão, possibilitou para os setores da
economia e da política mundial a compreensão de que o sistema econômico com ênfase
demasiada no liberalismo e na crença do automático equilíbrio do mercado pela ação da
sua “mão-invisível” não era de todo benigno.
Restou apenas a sensação de vulnerabilidade do sistema econômico diante
da grave crise provocada pela escalada da especulação financeira no mercado de ações
americano. Ao analisar a saída deste processo, afirma Galbraith1, referindo-se à Segunda
Guerra Mundial: “Foi a guerra, não o saber econômico, que acabou com a depressão.”
Era o fim do credo na chamada Lei de Say, nome dado em homenagem ao
economista francês Jean Baptista Say, que formulara um princípio econômico simples,
porém, incorreto, concluindo não existir escassez de demanda, bem como, foi o fim da era
cega no liberalismo econômico clássico e de seus ideais de equilíbrio automático do
mercado no pleno emprego.
Neste período de crise econômica, a sociedade aprendeu que era possível
existir equilíbrio dinâmico na economia com desemprego. As observações de Galbraith2
ressaltam que nos Estados Unidos da América, em 1932, o desemprego atingiu “quase 25
por cento da força de trabalho” e na Alemanha, nesta mesma época, no inverno de 1931-
32, o desemprego atingia “mais de 40 por cento da força de trabalho”. No mesmo período,
1932, na Inglaterra, estimava-se “o número de desempregados de 22% da força de
trabalho”3. Para o capitalismo em cheque existia a sombria opção do comunismo.
1.1 O ESTADO DO BEM-ESTAR SOCIAL: ASCENSÃO E ESGOTAMENTO
A partir desse cenário é que começou a ser construída uma saída articulada
através da presença do Estado na economia. De início não poderíamos afirmar que havia
1 GALBRAITH, John Kenneth. Uma viagem pelo tempo econômico: um relato em primeira mão. São Paulo: Pioneira, 1994, p. 55.
2 Ibidem, p. 60-62.
3 REZENDE FILHO, Cyro de Barros. História Econômica Geral. 4. ed. São Paulo: Contexto, 1999, p. 215.
17
uma base teórica que o justificasse, contudo, simultaneamente, as ações inicialmente
tímidas do governo americano, foram reforçadas pela sabedoria e brilhantismo da teoria de
um economista inglês, chamado John Maynard Keynes.
A solução teórica keynesiana representou um novo fôlego ao processo de
acumulação de capital no sistema capitalista diante da crise econômica mundial e uma
alternativa diante da perda temporária na certeza de algumas convicções liberais,
fundamentalmente, na crença do mercado enquanto solução equilibrada para o nível de
emprego e para o bem-estar econômico-social das pessoas.
1.1.1 Keynes e o papel do Estado
O mercado livre e suas poderosas forças não se haviam mostrado à altura da
construção do bem-estar global dos seres humanos. A esperada harmonia ortodoxa
proporcionada pelo choque dos interesses egoístas dos comportamentos dos indivíduos,
agentes econômicos racionais contrapostos em concorrência livre e direta no mercado, foi
incapaz de evitar a crise. Ao contrário, seguiram-se sucessivos anos de quedas no nível da
atividade econômica, o que pode ser observado no caso americano, pelo relato de Rezende
Filho:
“De 1929 a 1933, o PNB caiu de 104,4 para 56 bilhões
de dólares, o que equivale a uma redução da ordem de
46%. A produção industrial caiu 50%, com a de
equipamentos ficando 75% menor. Enquanto o
investimento bruto passou de 16 para 1 bilhão de
dólares, registraram-se 110 mil falências. A renda per
capita caiu de 685 para 495 dólares e as rendas brutas
do setor agrícola de 11,9 para 5,3 bilhões de dólares. Os
preços dos produtos agrícolas caíram 55%, o custo de
vida 31% e os preços dos bens de produção 26%” 4.
Keynes foi o primeiro economista de peso a explicitar abertamente seu
apoio à política intencional de déficit fiscal americano, no ano de 1933, quando o então 4 REZENDE FILHO, Cyro de Barros. História Econômica Geral, op. cit., p. 209.
18
presidente Roosevelt imprimia sua política de programas econômicos mais conhecida
como New Deal. A sua intuição econômica e a concepção de que a Economia é uma
“ciência moral”, colocaram-no na direção do estudo aprofundado desta, questionando
antigos dogmas da ortodoxia clássica. O resultado foi uma teoria econômica que
revolucionou a base do pensamento econômico do século XX.
Mas antes de deter minha atenção aos aspectos gerais da teoria Keynesiana,
considero importante resgatar alguns elementos da denominada política do New Deal.
Segundo relato de Galbraith5, o projeto deliberado de criação de postos de trabalhos aos
desempregados, coordenado em dois programas, o “PWA, ou Public Works
Administration, e o WPA, ou Works Progress Administration”, formaram os pilares
essenciais daquela política, na medida em que se preocuparam em promover a construção
de obras públicas e a geração de empregos a estes associados, respectivamente. Ainda nas
observações daquele autor, a aprovação da Lei de Seguridade Social, Social Security Act,
em 1935, ainda que incipiente, foi outro evento de “importância vital” para aquela política.
Os desempregados passaram a ter o direito a uma compensação financeira devido à perda
do emprego e os idosos uma pensão.
O sistema capitalista reconheceu legalmente a sua incapacidade de proteção
a todos os trabalhadores ativos e àqueles em fase pós-produtiva. A grita dos conservadores
foi geral, porém, muitos destes críticos sequer perceberam ou concordaram que esta
medida só vinha proteger o próprio sistema capitalista ao garantir a estabilidade social. Nas
palavras de Galbraith:
“Como sempre, aqueles que são contemplados pela boa
fortuna no sistema econômico atribuem virtudes a si
mesmos e ao sistema como ele é. Todo e qualquer tipo
de mudança enfrenta, portanto, forte oposição. Nenhum
argumento que mencione o bem-estar pessoal ou
possíveis custos pessoais pode ser mencionado, pois
seria uma inadmissível grosseria. Ao invés, diz-se que a
integridade maior do sistema e seu funcionamento
5 GALBRAITH, John K. Uma viagem pelo tempo econômico, op. cit., p. 68-70.
19
precisam ser protegidos e promovidos. Algumas coisas
simplesmente não mudam” 6.
Podemos enfatizar a observação de que apesar da situação social
reconhecidamente caótica registrada, ainda assim, alguns representantes dignos do
interesse econômico dominante se manifestaram conscientemente contrários a esta ação
social. Felizmente, para os desprotegidos e para o sistema capitalista a lei foi aprovada. O
custo da proteção social aos desprovidos economicamente, no primeiro momento de
profunda crise econômica mundial, ficou sob a responsabilidade do Estado.
Para compreender porque a teoria Keynesiana ganhou tanto destaque
mundial e passou a ser o ícone da teoria macroeconômica, basta olhar as próprias
necessidades econômicas do sistema capitalista e somar um pouco das vaidades políticas.
Em 1936, foi publicada a obra máxima de Keynes, intitulada Teoria Geral do Emprego, do
Juro e da Moeda, que na essência trazia a receita para a superação daquela crise mundial
pela via das mãos do Estado.
Sumariamente, sua teoria econômica apregoou que para enfrentar o
equilíbrio na economia com desemprego era fundamental reanimar a demanda agregada.
Como o setor privado encontrava-se submerso em expectativas negativas, se fazia
necessário que o próprio governo gastasse no seu lugar, ou seja, assumisse o ônus de uma
política econômica deliberada de geração do déficit público. Estava resolvido o dilema da
tolerância do excesso de gasto do Estado frente ao receituário ortodoxo de controle
monetário e abria-se uma porta para as ações de interesse dos políticos para a realização de
gastos públicos indiscriminados sem origem de receita.
Na medida em que sua teoria emanava de Cambridge, Inglaterra, para todo
o restante do mundo, foi nos Estados Unidos da América que inicialmente encontrou seu
maior aliado e, justamente por isso, ganhou reconhecimento e adeptos pelo planeta. Era a
justificativa teórica ideal para as ações do Estado, o novo integrante do sistema econômico
que garantiria o combate ao desemprego. O sucesso inquestionável desta política
econômica, pelos próximos trinta anos, contados da sua publicação, tendo nos anos 50 e 60
seu período de maior êxito nos países em geral, lhe garantiu opositores ferrenhos do lado
da ortodoxia econômica. Contudo, é preciso fazer justiça ao receituário keynesiano, uma
vez que, nos períodos de prosperidade econômica, o déficit deveria ser eliminado e a conta 6 GALBRAITH, John K. Uma viagem pelo tempo econômico, op. cit., p. 71.
20
paga pela geração de superávits fiscais. Entretanto, a sua realização prática ficou inviável
considerando-se os interesses dos políticos, principalmente, nos países subdesenvolvidos
onde as políticas econômicas se estenderam mais e além do necessário. Nas palavras do
próprio Keynes7: “Não é a propriedade dos meios de produção que convém ao Estado
assumir”. Não era esta a prioridade das suas propostas, contudo, acabou sendo desta forma
utilizada pelos governos.
1.1.2 O pós-guerra e os anos de ouro
A Segunda Guerra Mundial ocorreu num momento em que os Estados
Unidos da América e a Grã-Bretanha dispunham de ociosidade de mão-de-obra e
capacidade ociosa instalada na sua economia.
Na análise de Galbraith8, seus efeitos sobre a atividade econômica
americana foram positivos, visto que o desemprego se reduziu de 17,2 por cento, em 1939,
para apenas 1,2 por cento, em 1944, enquanto o bem-estar econômico da população civil,
medido pelo seu nível do consumo, se elevou de US$ 220 para US$ 255 bilhões, em
valores constantes. Nesta fase, o governo americano vendendo títulos públicos financiou
seu déficit às custas da poupança privada. Ainda segundo o autor, num esforço ainda
maior, na Grã-Bretanha, a elevação de impostos, o racionamento e o controle de preços
significaram o sacrifício do consumo civil que foram prontamente aceitos, “até mesmo
bem-vindos, com notável disposição”.
Com o final da guerra, a forte intervenção do governo e seus vultosos gastos
e investimentos repeliram o fantasma da volta da depressão. Agora havia uma saída, e
passava pelas ações macroeconômicas do governo. Tão forte foi este sentimento do poder
governamental em cuidar da questão do emprego, que em 1946 nos Estados Unidos da
América, chegou a ser proposta uma Lei do Emprego, Employment Act, também chamada
de Full Employment Act, Lei do Pleno Emprego, vindo a ser reformada e moderada por
reação dos legisladores americanos mais conservadores, substituída pela criação de um
Conselho de Assessores Econômicos com ótica voltada para a análise das opções de
crescimento econômico.
7 KEYNES, John M.. A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. São Paulo: Nova Cultural, Coleção Os Economistas,1985. p. 256. 8 GALBRAITH, John K. Uma viagem pelo tempo econômico, op. cit., p. 86-88 e p. 93.
21
A economia americana despontou pela sua liderança mundial e o Plano
Marshall providenciou o capital monetário necessário aos países europeus visando uma
recuperação econômica planejada. O déficit fiscal dos governos europeus passou a ser
parte integrante desta nova lógica econômica vigente e pré-requisito para acesso ao crédito.
Não que houvesse somente uma pura compaixão pelas mazelas dos povos afetados pela
destruição da guerra, mas, havia também, o espectro do medo pela opção comunista
dominar toda a Europa.
Diante deste quadro de carência recém saído de uma guerra e das novas
responsabilidades econômicas assumidas pelo poder público, as questões sociais tornaram-
se temas de importância relevante para a determinação do exercício político. Numa clara
sensação de agradecimento, o governo americano retribuiu oferecendo ensino gratuito aos
“soldados liberados do serviço”9. Bem como, no inicio da década de 50, registra
Galbraith10: “O programa rural, o fortalecimento da Social Security e outros problemas
sociais dominavam o debate econômico. A questão não era o desempenho da economia
como um todo, mas como e a quem seria recompensado. Havia um consenso quase geral
de que os ricos deveriam pagar bem pela sua boa fortuna.”, paralelamente, continua ele, na
Grã-Bretanha, “foram tomadas providências enérgicas para fortalecer o estado do bem-
estar social e assegurar aos trabalhadores e cidadãos comuns um mínimo decente de bem-
estar”.
Podemos perceber que o foco nas questões sociais era prioridade no
imediato pós-guerra e as responsabilidades do Estado do Bem-estar Social estavam
claramente definidas na perspectiva política dos governantes. Conforme nos relata
Rezende Filho:
“O melhor exemplo disso é a Inglaterra, e elas foram
implantadas em todos os países capitalistas da Europa,
e em menor escala nos Estados Unidos. Além do
pagamento de aposentadorias substanciais e de seguros-
desemprego, o Estado passou a subsidiar os serviços de
saúde, educação e transportes para toda a população. As
palavras do escritor norte-americano John Gunter ao
visitar a Inglaterra, em 1952, são reveladoras: um
9 GALBRAITH, John K. Uma viagem pelo tempo econômico, op. cit., p. 101.
10 Ibidem, p. 114-115.
22
britânico não tem que pagar mais do que somas
simbólicas pelo médico, dentista, ou pelos remédios; a
parcela do orçamento familiar que anteriormente era
gasta em serviços médicos, hoje pode ser dispensada
em outras coisas que vão desde bacon até um toca-
discos” 11.
Segundo Galbraith12, o cenário econômico institucional, a partir do final da
década de 40, até o fim dos anos 60, com o fortalecimento dos sindicatos e a existência de
significativo poder de mercado das grandes empresas passaram a representar cada vez mais
uma séria ameaça microeconômica ao retorno inflacionário. Paralelamente, a estes bons
anos, o bem-estar crescente e geral da sociedade americana, desenvolvida e industrializada,
não apresentava homogeneidade na sua distribuição de renda. Relata o autor, “Nos Estados
Unidos, havia um número considerável de pessoas que dele não compartilhavam – aquelas
isoladas nos vales e desfiladeiros do planalto dos Apalaches, no Sul rural e nos cortiços
urbanos densamente povoados”, e reforça, “Quando estavam espalhados pelo campo,
vivendo em casas primitivas, com pouca educação, uma subsistência esparsa e nenhum
direito civil, os pobres do sul haviam ficado praticamente “fora de vista e da mente”, como
acontece até hoje com os desprivilegiados rurais. Mas nas grandes áreas urbanas eles não
podiam mais ser ignorados com tanta facilidade.”
Mantendo a convicção no papel do Estado enquanto agente propulsor do
crescimento econômico, o governo Kennedy inicialmente exerceu sua opção política pelo
convencimento dos sindicatos em moderar suas reivindicações salariais e, no caso das
empresas, exerceu forte pressão controladora para inibir os aumentos de preços. A despeito
de uma política econômica claramente keynesiana, fixando-se metas de crescimento
econômico anual, com o governo se preocupando apenas em elevar os gastos públicos, não
havia uma preocupação consciente quanto a questões mais relevantes, tais como,
produtividade, tecnologia e educação do trabalhador.
No entanto, no ano de 1963, ocorreu uma guinada conservadora nas ações
da política econômica. Com o crescimento da economia e, portanto, das receitas fiscais, o
governo americano se viu na posição de ter que decidir pela continuidade da elevação dos
11 REZENDE FILHO, Cyro de Barros. História Econômica Geral, op. cit., p. 240. 12 GALBRAITH, John K. Uma viagem pelo tempo econômico, op. cit , p. 117 e p.133.
23
gastos públicos ou pela redução dos impostos para manter o estímulo ao crescimento. A
segunda opção saiu vitoriosa e a redução dos impostos foi implementada a partir de 1964,
ano seguinte ao do assassinato do presidente Kennedy. Este fato representou um grande
revés na política keynesiana de sustentação dos gastos públicos como força motriz da
economia.
Os bolsões de pobreza urbana verificada careciam de uma forma adequada
de tratamento que evitasse um mal estar social maior, porque, o movimento dos direitos
civis americanos estava florescendo. A luta pela igualdade por oportunidades de educação,
o fim da segregação e da discriminação jurídica, do direito de voto, entre outros, eram
valores que despontavam enquanto parte da renovação da consciência social. De fato, a
preocupação com os atritos sociais se justificava, como registra Galbraith13: “Caso não
encontrassem algum tipo de alívio, haveria a possibilidade de que fossem violentamente às
ruas, coisa que fizeram naqueles anos em várias cidades”. Numa ação sensível do governo
americano, já sob a presidência de Lyndon Johnson, foi instituído O Programa da Pobreza,
assim registrado por Galbraith:
“O Programa da Pobreza, como veio a ser chamado o
esforço, era uma miscelânea: a incerteza quanto ao que
deveria ou poderia ser feito parcialmente resolvida
fazendo-se um pouco de tudo. Ou, através dos
Programas de Ação Comunitária, deixando em parte a
escolha aos próprios pobres, convidando-os a se
organizar e a encaminhar propostas que aliviassem a
miséria e pusessem um fim às privações. As verbas
necessárias – para a educação, inclusive ensino básico
para as crianças e treinamento nas aptidões econômicas
necessárias, e para a aquisição de instalações
comunitárias – viriam do governo federal... O Programa
da Pobreza criou então o Job Corps (Corpo de
Empregos) para treinar e conferir qualificações
elementares e básicas para o trabalho. Houve ainda
outras iniciativas, inclusive a do Teachers Corps (Corpo 13 GALBRAITH, John K. Uma viagem pelo tempo econômico, op. cit., p.135.
24
de Professores), originária, acredito, da minha proposta
anterior para resgatar as escolas carentes e seus
alunos” 14.
Quanto a elaboração de um projeto real de sucesso ao combate consciente da
pobreza, os americanos tiveram que se preocupar com a maior ameaça que havia nos anos
sessenta: o comunismo. Para tanto, os gastos sociais dividiram a atenção dos déficits
fiscais com os gastos bélicos, financiando as incursões militares americanas pelo resto do
mundo. Desnecessário justificar que o foco militar saiu vitorioso na obtenção dos maiores
benefícios fiscais15, apesar dos insucessos militares americanos, em Havana e no Vietnã.
Mesmo com o passar destes episódios sombrios, o problema da pobreza foi sendo relegado
a segundo plano e perdendo destaque no debate político.
O combate à pobreza não conseguira despertar a atenção da sociedade
americana como sendo resultado consciente de uma ação social natural, fruto de um direito
real do cidadão comum. Nas palavras de Galbraith16: “Os pagamentos de bem-estar social
para os pobres prosseguiram, mas como um gesto dúbio e condicional de caridade, não
como um direito social”.
1.1.3 Os duros anos das décadas de 70 e 80
Os anos 70 marcam o início na caminhada de uma reviravolta no
pensamento econômico americano devido à confluência de alguns fatores, dentre eles: a
pressão da espiral salários-lucro sobre os preços, provocada pela imperfeição acentuada do
mercado nas duas pontas; o poder emergente da Organização dos Países Exportadores de
Petróleo – OPEP e a crise do petróleo que elevou os preços desta fonte de energia mundial
em quase 3 vezes; a perda de credibilidade institucional no governo após o escândalo de
Watergate e da renúncia do presidente americano Nixon. E, finalmente, a questão mais
fundamental: a constatação da perda de competitividade da indústria americana frente à
expansão das empresas alemãs e japonesas, principalmente.
14 GALBRAITH, John K. Uma viagem pelo tempo econômico, op. cit, p.137. 15 Durante 1952 até 1986, os gastos militares do governo americano situaram-se ao redor de 26,5 por cento do total de seus gastos. Ibidem, p. 153.
16 Ibidem, p. 140.
25
As tentativas de administração deste quadro econômico pelas vias da
política econômica keynesiana, políticas de gastos fiscais, acrescidas agora de uma porção
de política monetária, com elevação acentuada da taxa de juros para redesconto pelo Banco
Central, não se mostraram eficazes para propiciar melhora no desempenho da economia
americana. A política macroeconômica keynesiana não mais servia aos interesses do
capital líder mundial, que, acuado, encontrou saída no apelo ao retorno da autoridade do
mercado.
Nesta época, e durante a Era Reagan, eleito em 1980, houve uma ação
articulada de desregulamentação governamental enquanto política pública. Sob o pretexto
necessário de diminuir os desvios de imperfeição do mercado, sindicatos fortes e grandes
empresas oligopólicas, foi ressuscitado a crença no caráter benéfico do mercado livre e
competitivo. Os preceitos de Adam Smith para o sucesso econômico de uma Nação,
baseados na luta incansável contra o Estado intervencionista na economia, haviam sido
reanimados.
Mais que isso, o Governo Reagan e os anos 80 representaram uma barreira
quanto ao desenvolvimento de uma percepção consciente dos males do sistema capitalista
em relação aos pobres. Suas convicções e interesses políticos, respeitando os de seus
eleitores, seguiram no sentido contrário aos ideais do New Deal, de Roosevelt, e das
esperanças sociais da Grande Sociedade, de Lyndon Johnson. A manutenção dos vultuosos
déficits orçamentários do governo federal era justificada pelos necessários gastos militares
a fim de garantir a hegemonia mundial bélica americana, bem como, provocar o
esgotamento econômico da antiga União Soviética. Numa comparação, Galbraith nos
esclarece a posição socialmente conservadora de Reagan:
“do Darwinismo Social de William Graham Sumner,
uma das mais influentes vozes sociais do final do
século dezenove, que afirmava, antecipando-se a
Ronald Reagan, que o sistema econômico
recompensava acertadamente os ricos pela sua
contribuição ao bem-estar geral e sabiamente punia os
pobres por suas insuficiências” 17.
17 GALBRAITH, John K. Uma viagem pelo tempo econômico, op. cit., p. 31.
26
Reagan soube representar habilmente os interesses de seus eleitores, os
mesmos que se beneficiaram nos anos anteriores da prosperidade econômica, fruto das
políticas fiscais de enfoque keynesiano. Agora ricos ou, no mínimo, vivendo muito
confortavelmente, tais eleitores dispunham de dinheiro e enorme força política. As ações
implementadas pelo governo representaram exatamente os interesses dessa nova classe
emergente, só precisariam ser justificadas adequadamente. No relato de Galbraith,
podemos vislumbrar a visão partidária de Reagan e seus métodos de persuasão:
“O governo, afirmou ele, não era a solução para o
problema social; ele era o problema social. Com
provocações meramente anedóticas mostravam a
inutilidade de se ajudar os pobres. Alguns que pareciam
sem-teto preferiam dormir ao relento, sobre as quentes
gradis de aquecimento dos prédios; essa era a forma de
expressarem sua independência. Ele citou com evidente
deleite o caso de uma mulher que foi vista comprando
alimentos para sua família com cupons subvencionados
pelo governo depois de ter investido seus próprios
recursos, evidentemente adequados, em uma garrafa de
vodca” 18.
Como se não bastasse houve contribuições teóricas de destaque,
reafirmando tais convicções, quer seja no campo das idéias sociais ou mesmo na mera
elaboração de teorias econômicas que serviram de justificativa para as ações políticas do
governo Reagan. Na sua total maioria, tais contribuições carregavam consigo uma visão
elitista. Dentre elas, podemos citar algumas das afirmações de George Gilder apud
Galbraith:
“o progresso material é inelutavelmente elitista: ele
torna os ricos mais ricos e aumenta o seu número,
exaltando os poucos homens extraordinários que podem
18 GALBRAITH, John K. Uma viagem pelo tempo econômico, op. cit., p. 162-163.
27
produzir riqueza sobre as massas democráticas que a
consomem” 19.
Ou ainda, reforça aquele mesmo autor, “Para terem sucesso, os pobres
necessitam, acima de tudo, do incentivo da sua pobreza”. Cabe aqui também as declarações
do Dr. Charles A. Murray apud Galbraith20, advogando o desmantelamento de “toda a
estrutura federal de bem-estar social e de suporte à renda para pessoas em idade de
trabalhar”, ao qual o próprio Galbraith acrescenta seu comentário crítico a essa afirmação
de Murray:
“Reconhecendo que esta seria uma providência um
tanto severa, ele concluía dizendo que o seguro-
desemprego poderia ser mantido e que as organizações
particulares de caridade deveriam ser encorajadas. É
preciso haver alguma insinuação de solidariedade” 21.
Outra contribuição nesta época, no campo da teoria econômica, explicita
Galbraith (1994,p.161-162), foi a chamada Curva de Laffer, que ao considerar o impacto
dos impostos sobre o nível de atividade econômica, afirmava que além de certo ponto os
impostos passavam a ter efeito negativo sobre o nível de renda e sobre a própria receita
tributária do governo. Ou seja, tributar em demasia reduziria a atividade econômica e,
conseqüentemente, a arrecadação do governo, e contrariamente, reduzir a tributação
poderia incrementar a atividade econômica privada, elevando as receitas tributárias do
governo, o que permitiria a redução automática do déficit público.
Na sua visão discordante Galbraith22, referiu-se assim as afirmações de
Laffer, “Afirmava ainda, sem qualquer comprovação empírica, que os Estados Unidos
haviam ultrapassado este ponto; assim, impostos menores implicariam em mais receita”. O
Governo Reagan dispunha então de um arcabouço teórico econômico que justificou a
redução de impostos das classes econômicas privilegiadas, já no inicio dos anos 80. Esta
mesma classe iria garantir sua reeleição. Ainda segundo Galbraith:
19 GALBRAITH, John K. Uma viagem pelo tempo econômico, op. cit., p. 162.
20 Ibidem, p. 162. 21 Ibidem, p. 162. 22 Ibidem, p. 162.
28
“Da experiência de tributação no passado e do temor de
mais tributação no futuro para beneficiar os pobres
veio, com notável consistência, o programa nacional de
Reagan. Os pobres, no máximo que fosse possível,
deveriam ser removidos da consciência popular.
Impostos cobrados em seu benefício deveriam ser
banidos. E os impostos já existentes deveriam ser
reduzidos. Não deveria haver hesitação em aliviar
camadas de renda mais alta. Poucos esforços na história
política americana tiveram tanto sucesso. Os impostos
foram reduzidos e, na década de 80, qualquer menção a
um aumento de impostos passou a ser considerado
político tanto por democratas como por
republicanos”23.
A geração de déficit fiscal do governo agora só se justificava pela
necessidade de gastos para fortalecer o poder militar americano, desconsiderando-se
qualquer efeito perverso deste tipo de gasto sobre a necessidade de elevação nos impostos.
Os objetivos de gerar bem-estar social não faziam mais parte do rol de argumentos
aceitáveis para a promoção dos gastos governamentais. Os gastos sociais passaram a ser
um peso para o crescimento econômico.
No entanto, alguns dispêndios sociais se mantiveram necessários, segundo
relata Galbraiht:
“Duas outras linhas de gastos civis permaneceram
sacrossantas: os desembolsos para salvar instituições
falidas, em especial as associações de poupança e
empréstimos, e para manter o sistema da Social
Security – a provisão ou garantia de pensões para
idosos. Ambas estavam a serviço de uma parte afluente
e também politicamente expressiva da comunidade 23 GALBRAITH, John K. Uma viagem pelo tempo econômico, op. cit., p. 160.
29
nacional. Portanto, ambas estavam isentas de qualquer
esforço restritivo. Foi conferido a esses gastos um papel
honorífico que eliminava toda e qualquer preocupação
com seus efeitos sobre o déficit” 24.
As conseqüências desta política de governo tiveram grande impacto do
ponto de vista econômico, sob duas formas de percepção, primeiro: desmantelando a forte
influência das organizações sindicais dos trabalhadores americanos, segundo:
redistribuindo a renda no sentido da concentração injusta. No primeiro caso, o governo
Reagan25 agiu tanto direto quanto indiretamente no sentido de reduzir as pressões
inflacionárias decorrentes dos aumentos de salários reivindicados pelos sindicatos
organizados. Diretamente ao reprimir exemplarmente a greve dos controladores de tráfego
aéreo, logo no início de seu governo, e, indiretamente, ao endurecer demasiadamente a
política monetária via prática de altas taxas de juros, causando a redução do nível da
atividade econômica e o crescimento do exército industrial de reserva26.
No segundo caso, relativo às questões distributivas da renda e suas
conseqüências sociais, ao qual voltaremos a analisar detalhadamente mais à frente, convêm
citar inicialmente o resultado dos estudos de Paul Krugman apud Galbraith:
“Em épocas recentes, os estados Unidos têm
apresentado uma distribuição desigual e cada vez mais
desigual da renda. Paul Krugman, estimou que nos anos
80 “cerca de 70 por cento do aumento da renda média
familiar foi para o 1 por cento de famílias mais ricas.
Este 1 por cento de renda mais elevada recebia 12 por
cento de toda a renda bruta e detinha cerca de 39 por
cento de todos os ativos” 27.
Podemos constatar uma mudança radical, nos anos 80, na forma da política
americana de conceber as necessidades básicas materiais da população mais carente
24 GALBRAITH, John K. Uma viagem pelo tempo econômico, op. cit., p. 161.
25 Ibidem, p. 163.
26 Conceito elaborado por Karl Marx que designa o conjunto de trabalhadores desempregados. 27 GALBRAITH, John K. Uma viagem pelo tempo econômico, op. cit., p. 175.
30
enquanto compromisso responsável elementar da sociedade pelas vias de participação do
Estado como agente social regulador. E, dado sua influência mundial, um novo exemplo se
construiu para o continente americano.
1.1.4 As contribuições da Dama de Ferro
A partir da primeira crise do petróleo, em 1973, a economia mundial
caminhou para uma grave recessão com inflação, chamada de estagflação. Os efeitos
microeconômicos negativos da espiral salários-lucro se fizeram sentir nos países
desenvolvidos e um Estado deficitário em nada poderia contribuir para o controle dos
preços. A visão monetarista da economia ganha rápido terreno nas preferências da política
econômica e a disciplina monetária vai se tornando uma meta dos receituários econômicos
no lugar das políticas fiscais keynesianas.
Em 1979 com a eleição de Margareth Thatcher, mais conhecida como Dama
de Ferro, primeira-ministra na Inglaterra, inicia-se um movimento político exemplar na
alavancagem do pensamento neoliberal enquanto força motriz hegemônica. Pioneira na
condução da nova filosofia político-econômica, Reagan somente seria eleito no ano
seguinte, Thatcher assume o comando de uma política econômica orientada para o controle
severo do meio circulante, eleva as taxas de juros, reduz os impostos, favorece as rendas
mais altas, libera o movimento dos fluxos financeiros, impõem uma legislação trabalhista
claramente anti-sindical, corta gastos sociais e reduz o tamanho do Estado produtor,
privatizando os setores de habitação, portuário, telecomunicações, indústria do aço,
petróleo, gás e saneamento de água.
Thatcher, assim como Reagan, logo demonstrou para a sociedade que não
aceitaria pressões do movimento sindical inglês. Numa dura ação contra a greve dos
mineiros, prolongando-se a paralisação por pouco mais de um ano, não poupou esforços
estatais quer seja para importar carvão da África do Sul, quer seja para desmoralizar
futuras ações sindicais, estando em perfeita sintonia com sua famosa expressão “não existe
sociedade, só indivíduo”28.
Interessante frisar que seu exemplo acabou sendo imitado até pelos
governos de esquerda da Europa continental, com diferentes graus de intensidade, os
28 HAVRANEK, Alice & BARSOTTI, Paulo. Notas sobre o Estado e a Política neoliberal. In: COGGIOLA, Osvaldo (org.). Capitalismo: Globalização e Crise. São Paulo: Humanitas,1998, p. 207.
31
socialistas na França, Espanha, Portugal, Itália e Grécia, apesar de algumas resistências nos
primeiros anos da década de 80. O insucesso da política econômica keynesiana não lhes
deixou outra escolha. As conseqüências na elevação das taxas do desemprego não
poderiam ser diferentes, para os países da Organização Européia para o Comércio e
Desenvolvimento (OCDE), relatados assim por Anderson29: “A taxa média de desemprego
nos países da OCDE, que havia ficado em torno de 4% nos anos 70, pelo menos duplicou
na década de 80”.
Da mesma forma, é conveniente atentar para as palavras do primeiro-
ministro da República Tcheca, Vaclav Klaus apud Anderson, um dos mais radicais
defensores do neoliberalismo nas reformas econômicas do leste europeu, ao criticar o
presidente do Banco Central americano (Federal Reserv Bank), Alan Greenspan, pois
retrata a influência das idéias inglesas no leste europeu:
“O sistema social da Europa ocidental está
demasiadamente amarrado por regras e pelo controle
social excessivo. O Estado de bem-estar, com todas as
suas transferências de pagamentos generosos
desligados de critérios, de esforços ou de méritos,
destrói a moralidade básica do trabalho e o sentido de
responsabilidade individual. Há excessiva proteção e
burocracia. Deve-se dizer que a revolução thatcheriana,
ou seja, anti-keynesiana ou liberal, parou – numa
avaliação positiva – no meio do caminho na Europa
ocidental e é preciso completá-la” 30.
Ao final da década de 80 a maioria absoluta dos paises da Europa havia
aderido à onda neoliberal, adotando políticas econômicas voltadas para o reforço dos
valores do livre mercado, apesar de alguns países serem governados pelos sociais-
democratas. A partir da metade da década de 90, a conversão havia se completado, nem na
Suécia, paraíso do Welfare State, as forças políticas puderam resistir à hegemonia
29 ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, Emir & GENTILI, Pablo (orgs.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 15. 30 Ibidem, p. 18.
32
econômica neoliberal. A queda do Muro de Berlim e o desfacelamento da antiga União
Soviética não deixaram nenhuma opção ideológica ao suposto poderio do mercado,
levando os países do leste europeu na mesma direção.
1.2 OS VALORES ECONÔMICOS DO NEOLIBERALISMO
Na medida em que o modelo do Estado do bem-estar social perdeu terreno
para a complexidade das necessidades econômicas mundiais, acentuadas a partir da metade
da década de 70, de um lado, pela dificuldade crescente do Estado keynesiano administrar
a manutenção contínua dos ciclos de expansão nacionais de acumulação de capital, pela via
das políticas monetárias e fiscais, e por outro lado, se justificar enquanto instrumento
interventor de política econômica na busca do equilíbrio da economia mais perto possível
do pleno emprego, o modelo keynesiano se esgotou. Mais que isto, com a queda do Muro
de Berlim e o desmantelamento da antiga União Soviética não restou sequer nenhuma
força ideológica opositora ao capitalismo que requeresse a manutenção do Welfare State.
Um grande vazio no plano da teoria econômica precisava ser preenchido, e
na falta de uma opção teórica melhor elaborada, os velhos ideais do liberalismo econômico
clássico serviram para o embasamento inicial daquilo que passou a ser conhecido como
neoliberalismo. É importante reconhecer que o renascimento dos ideais do livre mercado,
por si só, já estaria em sintonia com um Estado mínimo.
É prudente fazer um esclarecimento em nosso conceito quanto ao termo
neoliberalismo. Entendo aqui por neoliberalismo, os ideais econômicos que defendem um
Estado mínimo, não interventor nas relações de produção quanto à sua atuação diretamente
produtiva, ou seja, um Estado voltado a preocupar-se apenas com as questões mais básicas
dos serviços públicos: educação, saúde e segurança (física e patrimonial). Não significa
afirmar que esse Estado não estaria a serviço dos interesses do desenvolvimento do
mercado, podendo auxiliar diretamente na determinação de regras e normas institucionais
que supostamente defenderiam e auxiliariam na defesa do direito a liberdade econômica e,
portanto, a livre concorrência. Faço esta menção no sentido de diferencia-la
fundamentalmente da visão keynesiana, a qual possibilitou desembocar as políticas do
Estado interventor.
Justamente por se opor ferozmente ao “keynesianismo e o solidarismo”
surge logo após o final da II Guerra Mundial, a reação neoliberal encabeçada por Friedrich
33
Hayek, autor de O Caminho da Servidão, com a participação de diversos outros nomes de
grande importância intelectual da época ou que viriam a ser reconhecidos apenas
posteriormente, dentre eles, o economista Milton Friedman. A Sociedade de Mont Pèlerin,
como ficou conhecida esta “franco-maçonaria neoliberal”, encarnou a defesa da eliminação
de limites impostos a liberdade de mercado pela atuação maléfica do Estado interventor e
de bem-estar, numa alusão à destruição da liberdade dos indivíduos e da prosperidade
maior da sociedade31.
É a partir da percepção do mercado como única forma de equalização das
diferenças e liberdades individuais e mecanismo de equilíbrio social, que os teóricos
neoliberais se aproximam dos seus antecessores, os fundadores da economia política
clássica.
Neste sentido, é importante reconhecer os valores econômicos e filosóficos
daqueles economistas clássicos, os quais possibilitaram a construção dos alicerces desta
nova teoria econômico-social, apresentada numa nova roupagem, dentre os quais um
certamente se destaca pela convicção liberal, criatividade e liderança intelectual no seu
tempo: Adam Smith.
1.2.1 Os ideais econômicos do liberalismo clássico: Adam Smith
Na visão Smithiana, a organização da sociedade humana tem sua
essencialidade nas relações de troca em que o jogo de interesses dos participantes
envolvidos – produtores de excedentes - não reserva espaço para a boa vontade,
complacência ou caridade entre os homens. Sequer poderíamos advogar a existência da
amizade dos homens, enquanto elemento comum e elo de ligação nas suas ações
econômicas, o que viria a confirmar a famosa frase popular “amigos amigos, negócios à
parte”. Esta visão individualista da sobrevivência humana em sociedade é o centro da visão
economicista Smithiana e dela decorrerá suas conclusões acerca da prosperidade social, o
que pode ser observada nas suas palavras:
“Numa sociedade civilizada, o homem a todo momento
necessita da ajuda e cooperação de grandes multidões, e
sua vida inteira mal seria suficiente para conquistar a 31 ANDERSON, Perry. Balanço do Neoliberalismo, op. cit.. p. 9-10.
34
amizade de algumas pessoas. (...) O homem, entretanto,
tem necessidade quase constante da ajuda dos
semelhantes, e é inútil esperar esta ajuda simplesmente
da benevolência alheia. Ele terá maior probabilidade de
obter o que quer, se conseguir interessar a seu favor a
auto-estima dos outros, mostrando-lhes que é vantajoso
para eles fazer-lhe ou dar-lhe aquilo de que ele precisa.
É isso o que faz toda pessoa que propõe um negócio a
outra”32.
Na verdade é o respeito apenas ao próprio interesse que garante a
cooperação mútua entre os homens, e é justamente este princípio que garantirá à sociedade
o seu bem estar. Desta forma, podemos perceber que é no individualismo humano que está
calcado o seu maior valor teórico, especificamente na área do interesse econômico, como
podemos observar na sua famosa passagem:
“Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro
ou do padeiro que esperamos nosso jantar, mas da
consideração que eles têm pelo seu próprio interesse.
Dirigimo-nos não à sua humanidade, mas à sua auto-
estima, e nunca lhes falamos das nossas próprias
necessidades, mas das vantagens que advirão para
eles”33.
Desta forma, podemos perceber que a idéia ligada na palavra “auto-estima”,
citada em ambas passagens, está profundamente envolta pelo respeito ao interesse
econômico individual, muito diferente da conotação mais abrangente que hoje utilizamos
para ela e que ganha contornos além do mero vínculo econômico. Restaria esclarecer como
a ação individual do agente econômico resultará em maior bem estar social a todos. Neste
ponto Smith criou o famoso conceito do equilíbrio automático no mercado resultante das
ações egoístas individuais contrapostas, viabilizando um mecanismo invisível, quase
32 SMITH, Adam. A Riqueza das Nações. São Paulo: Nova Cultural, 1985, v. 1, p. 49-50.
33 Ibidem, p. 50.
35
sobrenatural, fruto da liberdade dos agentes econômicos que promovem o bem estar social
sem saber que o fazem. Nas suas afirmações:
“Geralmente, na realidade, ele não tenciona promover o
interesse público nem sabe até que ponto o está
promovendo. Ao preferir fomentar a atividade do país e
não de outros países, ele tem em vista apenas sua
própria segurança; e orientando sua atividade de tal
maneira que sua produção possa ser de maior valor,
visa apenas a seu próprio ganho e, neste, como em
muito casos, é levado como que por mão invisível a
promover um objetivo que não fazia parte de suas
intenções”34.
E vai além, acreditando não apenas que a suposta “mão-invisível” promove
o equilíbrio econômico e o bem-estar social, como também, coloca em questionamento a
viabilidade de se obter tal prosperidade por meio de uma ação individual produtiva
diretamente voltada para o interesse do bem coletivo, no campo da atividade econômica, o
que se pode vislumbrar nas suas palavras abaixo:
“Aliás, nem sempre é pior para a sociedade que esse
objetivo não faça parte das intenções do indivíduo. Ao
perseguir seus próprios interesses, o indivíduo muitas
vezes promove o interesse da sociedade muito mais
eficazmente do que quando tenciona realmente
promove-lo. Nunca ouvi dizer que tenham realizado
grandes coisas para o país aqueles que simulam exercer
o comércio visando ao bem público. Efetivamente, é
um artifício não muito comum entre os comerciantes, e
não são necessárias muitas palavras para dissuadi-los
disso”35.
34 SMITH, Adam. A Riqueza das Nações, op. cit., p. 379. 35 Ibidem, p. 379-380.
36
Ou seja, a obtenção da felicidade e prosperidade social só é obtida de forma
inconsciente fruto das ações individuais que respeitem os interesses egoístas no campo da
atividade econômica. É justamente preocupando-se apenas consigo mesmo que os
indivíduos poderão colaborar eficazmente para o progresso de todos. Fica claro que tal
evento só é possível diante da existência de um mercado livre que possibilite a prática das
ações individuais, portanto, voltadas apenas ao exercício livre dos seus interesses
econômicos, independentes das amarras de um Estado interventor.
Implica, portanto, reconhecer que é através da busca pelo lucro pessoal que
se estará construindo o todo social, o bem-estar da sociedade, desde que o Estado não
interfira nas relações econômicas de mercado que devem ser o mais livre possível para
fazerem aflorar os benefícios a riqueza humana fruto dos esforços individuais. Assim
sendo, o mercado livre é uma conseqüência natural requerida a fim de possibilitar o avanço
da riqueza e do bem-estar das sociedades humanas e a própria sociedade somente passa a
existir depois de preenchido os pré-requisitos demandados pelos indivíduos para
satisfazerem suas necessidades e egoísmos individuais. A sociedade e o bem-estar só serão
construídos sob a égide da liberdade econômica dos indivíduos e o mercado livre é o local
adequado para viabilizar este fenômeno social.
1.2.2 As contribuições de Hayek
Podemos considerar o austríaco Hayek como sendo o grande mentor
intelectual dos valores neoliberais modernos. Tendo sido professor de economia, ciências
sociais e morais foi agraciado com o Prêmio Nobel de Economia, no ano de 1974, e sua
filosofia econômico-social pode ser analisada a partir de sua obra principal, O Caminho da
Servidão, em que faz uma defesa brilhante dos ideais de liberdade frente a ameaça do
avanço da planificação efetivada pelos Estados totalitários. Fervoroso defensor do
individualismo enquanto concepção de expressão máxima do respeito à liberdade do ser
humano, reconhece neste a única possibilidade de manifestação da “supremacia de suas
preferências e opiniões”, ainda que, “por mais limitada que esta possa ser” é preferível ao
autoritarismo advindo de uma força externa a própria vontade do individuo. Na sua visão
“tolerância” seria a palavra que melhor exprime o verdadeiro significado da liberdade36. 36 HAYEK, Friedrich August von. O Caminho da Servidão. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1990, p. 40-41.
37
Na esfera da liberdade humana, das liberdades individuais, a liberdade
econômica é a sua chave mestra e a doutrina liberal a sua essência lógica. Ao defender a
liberdade econômica e a livre-concorrência, as forças invisíveis do mercado estariam
coordenando da melhor forma possível os esforços humanos sem a necessidade de um
“controle social consciente” que certamente seria prejudicial à eficiência da estrutura
sócio-econômica. Não significa defender um liberalismo pronto e acabado na sua forma de
implantação positiva na sociedade, ao contrário, nas próprias palavras do autor:
“Os princípios básicos do liberalismo não contêm
nenhum elemento que o faça um credo estacionário,
nenhuma regra fixa e imutável. O princípio
fundamental segundo o qual devemos utilizar ao
máximo as forças espontâneas da sociedade e recorrer o
menos possível à coerção pode ter uma infinita
variedade de aplicações”37.
Desta forma, o controle econômico deveria ser abominado e a liberdade
econômica valorizada a todo custo, uma vez que é pela via do mecanismo da concorrência
econômica que se manifestam os verdadeiros e mais precisos desejos dos indivíduos.
Numa alusão a Immanuel Kant, “o homem é livre quando não tem de obedecer a ninguém,
exceto às leis”. Na medida em que a atividade econômica envolve uma das facetas mais
significativa do interesse da vida humana, garantir-lhe a liberdade econômica é a própria
garantia para a consecução de outros objetivos da sua existência individual.
Será preciso reconhecer que embora fundamental, os “interesses
econômicos” são manifestações concretas de outras finalidades diversas não-especificadas
que o desejo humano pretende obter para garantir as satisfações pessoais. Ou seja, interesse
econômico é a forma aparente da manifestação de inúmeros outros desejos que
pretendemos satisfazer. Nas palavras do próprio Hayek:
“Os objetivos últimos da atividade dos seres racionais
nunca são econômicos. Rigorosamente falando, não
existe “interesse econômico”, mas apenas fatores 37 HAYEK, Friedrich August von. O Caminho da Servidão, op. cit., p. 43.
38
econômicos que condicionam nossos esforços pela
obtenção de outros fins”38.
Controlar a liberdade econômica das pessoas é, portanto, o mesmo que
controlar e limitar os seus desejos sem a sua permissão. Significaria retirar do indivíduo a
liberdade de escolha pessoal para poder desfrutar do resultado dos seus esforços, o que
somente poderia garantir um sistema ineficiente de incentivo à dedicação humana nas
atividades econômicas e do trabalho. Continua o autor:
“Se lutamos pelo dinheiro, é porque ele nos permite
escolher da forma mais ampla como melhor desfrutar
os resultados de nossos esforços... Seria muito mais
certo dizer que o dinheiro é um dos maiores
instrumentos de liberdade já inventados pelo
homem”39.
Como somente ao próprio indivíduo cabe a decisão para dispor de suas
rendas e posses econômica, é inaceitável qualquer tipo de restrição individual ao uso
daquela renda ou riqueza particular. Somente num regime de livre concorrência as pessoas
poderiam utilizar o seu direito à liberdade de escolha, o que é o mesmo que dizer que a
liberdade econômica é pré-requisito do exercício das demais liberdades humanas. Mais que
isso é o único meio razoável de ponderação das possíveis perdas incorridas pelos agentes
econômicos, nas palavras de seu autor:
“Quando compreendemos que o interesse econômico
não se distingue dos outros e que um ganho ou uma
perda de caráter econômico não passam de um ganho
ou de uma perda nas situações em que cabe a nós
decidir quais das nossas necessidades ou desejos serão
afetados ... Enquanto pudermos dispor, sem restrições,
dos nossos rendimentos e de todos os nossos bens, uma
38 HAYEK, Friedrich August von. O Caminho da Servidão, op. cit., p. 99. 39 Ibidem, p. 99.
39
perda econômica só nos privará daquilo que
consideramos o menos importante dos desejos que
teríamos condições de satisfazer. Uma perda
“meramente” econômica é, pois, uma perda cujo efeito
podemos fazer recair sobre nossas necessidades menos
importantes”40.
Ou seja, possíveis perdas e dissabores econômicos seriam absorvidos pelos
indivíduos na medida em que estes optariam livremente pela não obtenção de bens ou
serviços considerados menos importantes às suas necessidades pessoais. Em outras
palavras, as perdas incorridas pelo indivíduo seriam absorvidas de forma “marginal”
afetando apenas os benefícios pessoais menos significativos.
Ora, um sistema econômico de concorrência competitiva é justamente
aquele que melhor se ajusta aos benefícios sociais advindos desta liberdade requerida:
“deve ser a liberdade de ação econômica que, junto com o direito de escolher, também
acarreta inevitavelmente os riscos e a responsabilidade inerentes a esse direito”41.
Embora reconheça que mesmo num regime de mercado concorrencial as
oportunidades beneficiarão mais aqueles que dispõem de melhor condição de riqueza
material, em prejuízo relativo daquelas pessoas menos privilegiadas economicamente, o
autor ainda assim considera de fundamental importância a existência da liberdade
econômica que irá propiciar uma vida social mais saudável para todos e a busca de
oportunidades possíveis de serem vivenciadas.
Na observação de Hayek:
“No regime de concorrência, as probabilidades de um
homem pobre conquistar grande fortuna são muito
menores que as daquele que herdou sua riqueza. Nele,
porém, tal coisa é possível, visto ser o sistema de
concorrência o único em que o enriquecimento depende
exclusivamente do indivíduo e não dos poderosos, e em
40 HAYEK, Friedrich August von. O Caminho da Servidão, op. cit., p. 99-100.
41 Ibidem, p. 107.
40
que ninguém pode impedir que alguém tente alcançar
esse resultado”42.
Isto significa reconhecer que no sistema sócio-econômico de organização
capitalista a sua capacidade de viabilizar oportunidades só poderá ser aproveitada em
função do mérito dos esforços individuais e, no caso de perda, a partir da escolha das
próprias pessoas absorverem as menores perdas que tiverem que incorrer. Enfim,
reconhecer que o “sistema de propriedade privada é a mais importante garantia da
liberdade, não só para os proprietários mas também para os que não o são”43.
Neste sentido, não se justifica a existência de privilégios individuais
desgarrados da defesa do interesse social maior de liberdade geral e comum a todos os
indivíduos onde o respeito à liberdade de escolha individual permeie todo o espectro das
decisões pessoais possíveis. Por mais injusto que possa parecer o sofrimento de um homem
que tenha seus rendimentos diminuídos devido os imprevistos da atividade econômica,
ainda assim, na opinião do autor:
“a garantia de uma determinada renda não pode ser
concedida a todos (...) Se se protegessem de imerecidas
perdas aqueles cuja utilidade é reduzida por
circunstâncias que eles mesmos não poderiam controlar
ou prever, e se, por outro lado, se impedisse de auferir
vantagens imerecidas àqueles cuja utilidade aumentou
em função de circunstâncias também incontroláveis e
imprevisíveis, a remuneração deixaria em breve de ter
qualquer relação com a verdadeira utilidade”44.
Nestes termos, o livre jogo de interesses econômicos no mercado sempre
poderá ser considerado como o sistema mais justo e estimulante aos esforços individuais,
levando cada um a dar o melhor de si pelo maior período de tempo possível. Uma espécie
42 HAYEK, Friedrich August von. O Caminho da Servidão, op. cit., p. 110.
43 Ibidem, p. 111.
44 Ibidem, p. 126.
41
de força invisível, o mercado concorrencial serviria como fonte inesgotável de “pressão
externa” a dedicação contínua de todos os seres humanos.
Eliminá-lo seria o mesmo que desmontar toda a estrutura no qual repousa o
bem-estar social, seria o mesmo que abdicar da liberdade da consciência individual que é
obtida de forma impessoal.
Uma vez que a sociedade moderna é de enorme complexidade, nos diversos
campos de estudo sociais, caberá ao “ajustamento” do próprio indivíduo buscar adaptação
necessária às mudanças ocorridas na sociedade e cuja “natureza ele não pode
compreender”. Este entendimento do autor objetiva esvaziar as justificativas de haver um
“objetivo único” possível a ser imposto a toda a sociedade, proposta social dos defensores
do coletivismo. Neste mesmo sentido, não há que se permitir a “primazia absoluta de um
objetivo sobre todos os demais deve ser aplicada mesmo ao objetivo que hoje todos
concordam ser prioritário: a supressão do desemprego”45, o que significa jogar por terra os
argumentos das propostas econômicas keynesianos de implementação via políticas fiscal e
monetária do governo.
Melhor seria então deixar o indivíduo adaptar-se às necessidades do
mercado pelas vias do livre ajustamento salarial, bem porque, na sua opinião, o progresso
econômico obtido se fez mediante grandes esforços para “ascender continuamente por
mais baixo que tenhamos de começar”. Mais que isso, “só conseguiremos vencer um
período difícil como homens livres e capazes de escolher seu modo de vida se cada um de
nós estiver pronto a obedecer às injunções desse ajustamento”46. Fica claro que na opinião
do autor não existe valor maior que a liberdade individual, não justificando a
implementação de falsos ideais coletivistas que somente tenderiam ao favorecimento da
criação de um Estado autoritário.
1.2.3 As contribuições de Friedman
Dentre os economistas norte-americanos que contribuíram de forma
decisiva para o avanço da ideologia neoliberal no continente americano, Milton Friedman
foi sem dúvida o de maior destaque. Economista liberal e monetarista assumido ganhou o
Prêmio Nobel de Economia em 1976, e no livro Capitalismo e Liberdade expôs a
45 HAYEK, Friedrich August von. O Caminho da Servidão, op. cit., p. 188. 46 Ibidem, p. 190.
42
exuberância da sua filosofia econômica. Será sobre o estudo dos princípios contidos neste
livro que recairá nossas atenções, no sentido de fechar o círculo de raciocínio dos valores
econômicos neoliberais vigentes.
Na concepção de Friedman, a organização econômica nos moldes
competitivos é elemento fundamental na promoção de uma sociedade livre, e age no duplo
sentido, pois, enquanto liberdade econômica é parte da própria liberdade geral e também se
torna o instrumento necessário para viabilizar a liberdade política. Implica no
reconhecimento de que mercado livre e liberdade política estão intimamente interligados e,
neste caso, o primeiro é parte essencial de determinação do segundo47.
Neste sentido percebemos que o mercado livre é parte direta da liberdade
em si mesmo e na relação social entre todos os indivíduos irá possibilitar a “cooperação
voluntária” das suas atividades decididas pelo fórum mais íntimo de cada um deles, sem a
necessidade de nenhuma coerção. Mais uma vez fica denotado o teor central da liberdade
individual de ação das pessoas como ponto central da visão neoliberal.
Agora, no entanto, esta liberdade estendida ao campo econômico, o mercado
competitivo, torna-se a força motriz da liberdade política que os indivíduos poderão
desfrutar. Por liberdade política devemos entender o menor grau possível de coerção que
força os indivíduos a aceitarem uma regra legal única imposta e controlada pelo poder do
Estado. Quanto menos poder concentrado nas mãos do governo, maior o grau de liberdade
política da sociedade e, portanto, menores serão os abusos políticos.
Qualquer organização social será mais livre politicamente na medida em
que exista maior liberdade de mercado, pois é este o local onde as decisões são tomadas
livremente pelos indivíduos de forma voluntariamente cooperativa. Quanto mais as
decisões puderem ser tomadas no âmbito do mercado, menor os efeitos perversos de uma
ação política que exija conformidade de seus integrantes. Na representação deste poder
benéfico do mercado, o autor assim se expressa:
“O consumidor é protegido da coerção do vendedor
devido à presença de outros vendedores com quem
pode negociar. O vendedor é protegido da coerção do
consumidor devido à existência de outros consumidores
a quem pode vender (...) E o mercado faz isto, 47 FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e Liberdade. São Paulo: Nova Cultural, 1985, p. 17-20.
43
impessoalmente, e sem nenhuma autoridade
centralizada”48.
Ao aceitar esta concepção, não faz nenhum sentido defender o controle total
ou parcial do governo, autoridade política, sobre a liberdade das ações individuais no
campo da atividade econômica. Na verdade, caberá ao governo o papel para “a
determinação das ‘regras do jogo’ e um árbitro para interpretar e pôr em vigor as regras
estabelecidas”49. As regras serão obviamente aquelas que permitirem a preservação do
próprio livre mercado. E vai além, demonstrando que o mercado competitivo não
discrimina ninguém, é impessoal, característica que lhe confere qualidades acima das
decisões tomadas pelas vias da ação política, ao afirmar: “Ninguém que compra pão sabe
se o trigo usado foi cultivado por um comunista ou um republicano, por um
constitucionalista ou um fascista ou, ainda, por um negro ou por um branco”50.
Desta forma, a liberdade econômica expande as possibilidades da própria
liberdade no campo da política ao restringir sua necessidade de intervenção coerciva. O
livre jogo das forças do mercado cria uma eficiência econômica dissociada de qualquer
característica específica do indivíduo, ampliando o campo de oportunidades de ação das
pessoas independentemente de seu credo, cor, estado civil, entre outros. Significa dizer que
os homens serão reconhecidos pela sua contribuição efetiva à satisfação das necessidades
alheias, decidida livremente dadas as suas preferências de labor.
Ao viabilizar um mercado competitivo estar-se-ia privilegiando uma ação de
competição entre os homens, sem que haja rivalidade do ponto de vista pessoal, mas sim
no campo da impessoalidade. A existência deste livre mercado criará condições para que a
liberdade individual possa ser desfrutada no seu maior grau de satisfação possível. Nas
palavras do autor:
“Nenhum participante pode determinar os termos em
que os outros participantes terão acesso a empregos ou
mercadorias. Todos consideram os preços como dados
pelo mercado e nenhum indivíduo pode, por si só, ter
48 FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e Liberdade, op. cit., p. 23.
49 Ibidem, p. 23.
50 Ibidem, p. 28.
44
mais do que uma influência negligenciável sobre o
preço – embora todos os participantes juntos
determinem o preço por meio do efeito combinado de
suas ações separadas”51.
A defesa da liberdade econômica no mercado é a própria defesa da liberdade
maior de realização dos indivíduos, pois esta realização se concretiza no campo das
relações econômicas. Ela é a própria garantia de se evitar ações coercitivas quer seja pela
via política quer seja pela mesma via do domínio econômico, como por exemplo, a
existência do monopólio de atividades econômicas. No mercado competitivo a disputa
entre os participantes estará restrita às suas qualidades particulares e as oportunidades
serão oferecidas independentemente das posições ideológicas pessoais. Ao decidir ocupar
determinada posição produtiva, o indivíduo estará determinando seus direitos sobre a renda
que será fruto do produto do seu esforço oferecido à sociedade. É neste sentido que
Friedman diz “A grande contribuição do capitalismo não foi o acúmulo de propriedade, foi
ter dado oportunidade a homens e mulheres de estenderem e desenvolverem e
aperfeiçoarem suas capacidades”52.
Uma vez analisado os valores econômicos daqueles que auxiliaram na
construção dos ideais neoliberais, pode-se passar para a avaliação do impacto desta visão
sobre o papel do Estado e, por fim, para a análise da função social das empresas segundo
esta ideologia dominante.
1.3 AS FUNÇÕES DO ESTADO NEOLIBERAL
Embora haja grande diferença entre a percepção do mundo na época de
Smith e no período pós-guerra (os mundos de Hayek e Friedman) quanto à participação
real do Estado produtor na economia, ambas as posições reservam ao Estado um papel
passivo frente às tarefas de produção que pudessem ser de interesse do capital privado.
Não haveria justificativa para a intromissão do Estado nos afazeres produtivos possíveis de
serem realizados pelas empresas privadas. Em outras palavras, onde a iniciativa privada
puder se instalar, não compete intromissão do Estado.
51 FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e Liberdade, op. cit., p. 111. 52 Ibidem, p. 153.
45
No enfoque Smithiano, a existência da liberdade natural de cada indivíduo
permite-lhe ao buscar a realização dos próprios interesses corroborar a possibilidade de
geração do bem-estar social pelos motivos já expostos anteriormente.
Desta forma, restaria ao Estado deixar fluir as escolhas individuais e se
abster o máximo possível de intervenções sobre a ordem de interesses econômicos próprias
do fórum privado. Bem porque, não poderia o Estado tomar decisões no sentido de
escolher ou orientar as atividades particulares, como podemos observar nesta passagem de
Smith:
“O soberano fica totalmente desonerado de um dever
que, se tentar cumprir, sempre o deverá expor a
inúmeras decepções e para essa obrigação não haveria
jamais sabedoria ou conhecimento humano que
bastassem: a obrigação de superintender a atividade das
pessoas particulares e de orienta-las para as ocupações
mais condizentes com o interesse da sociedade”53.
Somente em casos especiais poderia o poder público participar de atividades
no campo da economia desde que a margem dos interesses econômicos do setor privado, o
qual podemos constatar na determinação dos deveres do soberano:
“o dever de criar e manter certas obras e instituições
públicas que jamais algum indivíduo ou pequeno
contingente de indivíduos poderão ter interesse em criar
e manter, já que o lucro jamais poderia compensar o
gasto de um indivíduo ou de um pequeno contingente
de indivíduos, embora muitas vezes ele possa até
compensar em maior grau o gasto de uma sociedade”54.
Ou seja, compete ao Estado garantir suporte institucional e material às
opções livres dos indivíduos, segundo seus interesses econômicos, no sentido de viabilizar
53 SMITH, Adam. A Riqueza das Nações, op. cit., v. 2, p. 147. 54 Ibidem, p. 147.
46
a geração de riqueza na sociedade. Ademais, em Smith existe uma qualificação dos gastos
realizados pelo Estado como sendo de mero caráter improdutivo, o que implica
necessariamente na sua limitação enquanto força propulsora do crescimento da riqueza de
uma nação. Vejamos:
“As grandes nações nunca empobrecem devido ao
esbanjamento ou à imprudência de particulares, embora
empobreçam às vezes em conseqüência do
esbanjamento e da imprudência cometidos pela
administração pública. Toda ou quase toda a renda
pública é empregada, na maioria dos países, em manter
cidadãos improdutivos”55.
Fica claro, portanto, que para Smith a liberdade dos indivíduos e suas
decisões suportadas pelo livre jogo do mercado, sem a interferência maléfica do Estado,
produzem a melhor solução para a riqueza material da sociedade. Compete ao Estado se
ater ao favorecimento das livres decisões pessoais no campo da atividade econômica,
abstendo-se ao máximo de realizar gastos improdutivos e, portanto, desonerando os
cidadãos do excesso de gasto público desnecessário. Mais que isso, cabe ao Estado se
abster de participar ou de interferir em áreas onde o resultado econômico lucrativo para a
iniciativa privada possa ser verificado.
Em mesmo sentido podemos perceber as funções do Estado, segundo a ótica
de Hayek, como sendo um guardião dos interesses do livre jogo do mercado. Como não
tem sentido o controle da atividade econômica, pois seria o mesmo que controlar as
possibilidades de realização individual ao diminuir sua liberdade de escolha, o Estado não
intervencionista atua eficazmente quando protege a estrutura legal do mercado
concorrencial. Nas palavras do próprio Hayke:
“O Estado que controla pesos e medidas (ou impede de
qualquer outro modo o estelionato e a fraude) é
indubitavelmente ativo, ao passo que o Estado que
permite o uso da violência – por piquetes de grevistas, 55 SMITH, Adam. A Riqueza das Nações, op. cit., v. 1, p. 293-294.
47
por exemplo – é inativo. Entretanto, é no primeiro caso
que o Estado observa os princípios liberais, enquanto o
segundo não o faz”56.
Implica dizer que o poder político não significa uma opção ao poder sempre
eficiente do livre-mercado, mas sim um complemento de garantia institucional na defesa
dos interesses econômicos das pessoas. Em outras palavras, o Estado deve servir de fonte
protetora dos benefícios sociais advindos da existência de liberdade econômica no
mercado, mesmo que para isso o Estado tenha que utilizar do seu poder de polícia.
Tais interesses econômicos livremente garantidos serão à verdadeira
essência de controle e reforço sobre o próprio poder político estabelecido, segundo a visão
de Friedman. Na medida em que o mercado permite menor grau de coerção que os canais
políticos, o Estado deveria privilegiar a defesa do livre jogo das forças concorrenciais e
atuar como legislador e árbitro na proteção das liberdades econômicas. Este autor
reconhece a importância do Estado no campo da economia, contudo, o faz no sentido de
alertar para as conseqüências indesejáveis desta atuação excessiva sobre os benefícios
econômicos que poderiam resultar do livre-mercado e expõe a intromissão do Estado sobre
os resultados econômicos positivos que, de outra forma, teriam frutificado no mercado:
“O primeiro requisito é, portanto, que o governo
resolva seus próprios problemas, isto é, que adote
medidas que garantam estabilidade razoável ao seu
fluxo de despesas. Se conseguisse isso, daria
importante contribuição à redução dos ajustamentos
necessários no resto da economia”57.
Ou ainda, em outra passagem onde declara que o progresso econômico dos
Estados Unidos não foi resultado das ações do governo, mas sim, frutos da atividade
econômica efetivada pelo mercado livre:
“A maior parte dos empreendimentos realizados pelo
governo nas últimas décadas não alcançou os objetivos
56 HAYEK, Friedrich August von. O Caminho da Servidão, op. cit., p. 92. 57 FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e Liberdade, op. cit., p. 76.
48
previstos (...) As medidas governamentais prejudicaram
em vez de favorecer tal desenvolvimento. Fomos
capazes de suportar e superar tais medidas unicamente
devido à extraordinária fecundidade do mercado. A
mão invisível fez muito mais pelo progresso do que a
mão visível pelo retrocesso”58.
Diante de tais pressupostos e afirmações ideológicas torna-se natural que, no
momento atual, haja forte necessidade de defender a existência de um Estado mínimo, para
servir apenas de elemento regulador e propulsor das leis que atendam as demandas
legítimas da liberdade econômica dos indivíduos. Obviamente, isto só será possível na
medida em que o mercado livre esteja protegido das interferências externas, dentre elas a
própria ação econômica do Estado.
1.4 A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA
A partir dos pressupostos ideológicos da corrente dominante atual, o
neoliberalismo, cabe então avaliar suas conseqüências sobre o fenômeno social objeto
deste estudo: a responsabilidade social das empresas. Num primeiro momento, no presente
tópico, iremos apenas analisar as implicações da aceitação de tais ideais econômicos sobre
a responsabilidade social das empresas, num ambiente onde impera a defesa do livre jogo
dos interesses das forças do mercado concorrencial. Ou seja, respeitado os ideais
econômicos neoliberais: que resultado seria possível esperar no campo da responsabilidade
social das empresas? Posteriormente, somente no próximo tópico, buscar-se-á avaliar as
dimensões das causas materiais que afetam este processo de responsabilidade social das
empresas.
Antes de qualquer coisa é preciso ter em mente que toda ação individual,
respeitadas as leis vigentes, é legítima e apenas tais ações tomadas num ambiente que
privilegie a liberdade econômica podem representar a única justificativa razoável para a
interação dos indivíduos em sociedade. Não resta dúvida que, no pensamento liberal, o ato
livre das escolhas do indivíduo é o ponto central em questão e o campo econômico a forma
como e onde tal liberdade poderá ser exercida. No raciocínio de Hayek: 58 FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e Liberdade, op. cit., p. 182.
49
“A liberdade econômica que constitui o requisito prévio
de qualquer outra liberdade (...) deve ser a liberdade de
ação econômica que, junto com o direito de escolher,
também acarreta inevitavelmente os riscos e a
responsabilidade inerentes a esse direito”59.
Implica reconhecer, portanto, na ótica neoliberal, que a liberdade de escolha
do indivíduo se faz representar pela primazia absoluta dos seus direitos no campo
econômico. Bem porque, as decisões econômicas representam aquilo que resultará de mais
valioso para prover a satisfação das necessidades individuais. É pela via dos interesses
econômicos que o indivíduo torna possível a sua realização e, na esfera da impessoalidade
do mercado, a dignidade do indivíduo é respeitada segundo suas habilidades e méritos.
Caberá ao próprio indivíduo promover a sua adaptação, seu ajustamento
segundo as demandas dos mecanismos invisíveis do mercado. Desrespeitar a lógica da
superioridade do mercado é por em risco o equilíbrio da própria organização social da vida
humana. Querer manipular o mercado segundo um suposto interesse coletivo maior, pode
significar o caminhar na direção da negação da liberdade das pessoas. Nas palavras de
Hayke:
“Foi a submissão às forças impessoais do mercado que
possibilitou o progresso de uma civilização que, sem
isso, não se teria desenvolvido. É, portanto,
submetendo-nos que ajudamos dia a dia a construir algo
cuja magnitude supera a nossa compreensão”60.
E reforça tais aspectos ao justificar que foram estas características positivas,
“cada vez mais raras”, que serviram de força motriz para viabilizar o progresso da Grã-
Bretanha, destacando a decisiva contribuição da “iniciativa individual” e sua
“responsabilidade”, quando diz:
59 HAYEK, Friedrich August von. O Caminho da Servidão, op. cit., p. 107. 60 Ibidem, p. 186.
50
“As virtudes nas quais em geral se admitia que esse
povo superava os demais (...) eram a independência e a
fé em si mesmo, a iniciativa individual e a
responsabilidade pela solução de problemas a nível
local, a justificada confiança na atividade voluntária, a
não-interferência nos assuntos dos vizinhos e a
tolerância para com os excêntricos e os originais, o
respeito pelo costume e pela tradição e uma saudável
desconfiança do poder e da autoridade”61.
Fica claro, portanto, que a responsabilidade social só poderá ser aceita e
assumida em consonância com a liberdade de escolha econômica que deve ser exercida
pelo indivíduo. Ou seja, não é possível querer obrigar ninguém a ser responsável
socialmente, uma vez que este ato está reservado a esfera da conduta pessoal e as suas
conseqüências econômicas ao seu autor. Ao querer e ser socialmente responsável o
indivíduo deverá arcar sozinho com os resultados advindos deste seu ato, o que certamente
trará reflexos sobre os benefícios econômicos particulares daquele indivíduo como, por
exemplo, assumir o compromisso de uma doação mensal de suas horas de trabalho, lazer
ou, até mesmo, fração pecuniária dos seus rendimentos. Isso pode ser mais bem
compreendido na frase abaixo, de autoria de um genuíno liberal:
“a moral é por essência um fenômeno de conduta
pessoal, mas também que ela só pode existir na esfera
em que o indivíduo tem liberdade de decisão e é
solicitado a sacrificar voluntariamente as vantagens
pessoais à observância de uma regra moral. Fora da
esfera da responsabilidade pessoal não há bondade nem
maldade, nem possibilidade de mérito moral, nem
oportunidades de pôr à prova as próprias convicções
pelo sacrifício dos desejos individuais ao que se
considera justo. Só quando somos responsáveis pelos
61 HAYEK, Friedrich August von. O Caminho da Servidão, op. cit., p. 194.
51
nossos interesses e livres para sacrifica-los é que nossa
decisão tem valor moral”62.
Uma vez assumida a decisão pelo ato socialmente responsável, as
conseqüências deste evento recairão sobre o indivíduo que a tomou, logo, possíveis perdas
econômicas incorridas deverão ser absorvidas dentro dos padrões das necessidades
particulares do seu autor. Considerando que do ponto de vista de Hayke, qualquer perda
econômica individual afetará as necessidades menos importantes, portanto, a margem ou
na periferia do conjunto de nossas preferências, podemos deduzir que a tomada de decisão
socialmente responsável pelo indivíduo será efetivada até o limite de aceitação das perdas
econômicas menos importantes para a sua vida. Certamente, não haverá nenhum liberal
que aceite impor sacrifícios a si mesmo em favor daquele que não se dispõe ao ajustamento
requerido pelas modificações imprevisíveis do mercado.
Isto não significa dizer que serviços sociais não devam ser oferecidos aos
menos afortunados ou aqueles que estejam passando por dificuldades eventuais na
sociedade, porém a realização destes préstimos está subordinada às necessidades maiores
das responsabilidades individuais frente o mercado. Ou seja, nada justifica a ausência de
respeito às liberdades individuais em sintonia fina com as demandas do campo econômico.
Nos argumentos utilizados por Hayke:
“A manutenção da concorrência tampouco é
incompatível com um amplo sistema de serviços sociais
– desde que a organização de tais serviços não torne
ineficaz a concorrência em vastos setores da vida
econômica”63.
A subordinação da responsabilidade social do indivíduo ao interesse
econômico maior cuja materialização se configura pelo respeito e manutenção das leis
invisíveis do mercado é a única forma eficaz possível de coordenação destes esforços
sociais. Então, compete à liberdade pessoal decidir até onde é possível assumir
62 HAYEK, Friedrich August von. O Caminho da Servidão, op. cit., p. 191. 63 Ibidem, p. 59.
52
compromissos socialmente responsáveis e arcar com os sacrifícios impostos por estas
decisões.
De outra forma, não se pode admitir a existência de um sistema de prestação
de serviços sociais que estivesse totalmente desvinculado da percepção das
responsabilidades individuais dos agentes sociais. Se assim for, significa instituir um
sistema sem mérito que isenta seus cidadãos da responsabilidade de assumirem
socialmente suas conseqüências econômicas. Nas palavras de Hayek64: “Nem temos o
direito de ser altruístas à custa de terceiros, nem mérito algum em o sermos quando não
existe outra alternativa”, tampouco, poder-se-á admitir a imposição de um sistema social
global que incentive a irresponsabilidade dos indivíduos.
Neste caso, podemos fazer um paralelo com a prestação de serviço social
levado a cabo pelo Estado que estaria servindo para o desvirtuamento dos valores sociais
estabelecidos pela ordem econômica do livre mercado. Mais que isso, a atuação do Estado
abre brechas para as desculpas justificadas daqueles cidadãos que em nada estariam
contribuindo para com o desenvolvimento de uma consciência socialmente responsável.
Na passagem abaixo essa possibilidade fica bem clara:
“Há claros indícios de que nos tornamos, na realidade,
mais tolerantes para com determinados abusos e muito
mais indiferentes perante as desigualdades em casos
individuais, depois que voltamos nossa atenção para um
sistema inteiramente novo, em que o Estado resolverá
todas as questões. É bem possível mesmo, como se tem
sugerido, que a paixão pela ação coletiva seja um meio
pelo qual, coletivamente e sem remorso, passamos a
satisfazer o egoísmo que, como indivíduos, tínhamos
aprendido, em parte, a reprimir”65.
Desta forma, a atuação social do Estado deve ser limitada aos setores onde a
inviabilidade do sucesso econômico não permita acesso à iniciativa privada concorrencial e
sua intensidade certamente não pode representar incentivo ao recrudescimento dos antigos
64 HAYEK, Friedrich August von. O Caminho da Servidão, op. cit., p. 191. 65 Ibidem, p. 192.
53
hábitos econômicos estatais, superados pela evolução natural imposta pelas novas
necessidades do livre mercado.
Segundo a perspectiva de Friedman66, se “os meios apropriados são a
discussão livre e a cooperação voluntária (...) O ideal é a unanimidade, entre indivíduos
responsáveis, alcançada na base de discussão livre e completa”, o que reflete o espírito do
verdadeiro liberal. A participação do Estado no auxílio à pobreza deve estar condicionada a
aceitação desta premissa antes de tudo.
Nas palavras de Friedman67, compete ao governo atuar “suplemente a
caridade privada e a família na proteção do irresponsável, quer se trate de um insano ou de
uma criança”. O que significa aceitar a participação do Estado na rede de proteção dos
serviços sociais aos desafortunados apenas em complemento à iniciativa livre dos agentes
econômicos privados. Iniciativas sociais estas que devem estar exclusivamente vinculadas
à vontade livre dos indivíduos, bem como, a partir da opinião da maioria destes definir a
forma e peso do custeio dos gastos governamentais de “quanto, a não ser em termos do
volume de taxa que nós – e, com isso quero dizer a maioria – estaremos dispostos a aceitar
para tais propósitos”68. Fica claro que as ações sociais do Estado devem ter o aval dos
indivíduos para determinar os limites dos custos econômicos aceitos pela sociedade para
tais intervenções.
Na essência, o pensamento liberal de Friedman defende a supremacia do
mercado e da liberdade de direito econômico dos indivíduos se manifestarem diante das
questões sociais relevantes, ao invés da benevolência e paternalismo do Estado. Isso pode
ser notado na passagem abaixo:
“O liberal acolherá, de bom grado, medidas que
promovam tanto a liberdade quanto a igualdade como,
por exemplo, os meios para eliminar o poder
monopolista e desenvolver as operações do mercado.
Considerará a caridade privada destinada a ajudar os
menos afortunados como um exemplo do uso
apropriado da liberdade. E pode aprovar a ação estatal
66 FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e Liberdade, op. cit., p. 29.
67 Ibidem, p. 39.
68 Ibidem, p. 174.
54
para mitigar a pobreza como um modo mais efetivo
pelo qual o grosso da população pode realizar um
objetivo comum. Dará sua aprovação, contudo, com
certo desgosto, pois estará substituindo a ação
voluntária pela ação compulsória”69.
Contudo, Friedman é categórico ao refutar qualquer caráter de obrigação de
responsabilidade social que possa ser requerida dos agentes econômicos participantes do
mercado competitivo. Para ele, numa economia competitiva não faz sentido cobrar dos
participantes nada que não esteja estabelecido pelo livre jogo das forças do mercado. Ou
seja, a maior contribuição social do capital privado é a sua própria sobrevivência no
ambiente econômico e, conseqüentemente, seu progresso no sentido de acumular e tornar
disponível maior volume de riqueza material. Nas suas palavras:
“Em tal economia, há uma e só uma responsabilidade
social do capital – usar seus recursos e dedicar-se a
atividades destinadas a aumentar seus lucros até onde
permaneça dentro da regras do jogo, o que significa
participar de uma competição livre e aberta, sem
enganos ou fraudes”70.
Imputar ao capital e às empresas obrigações de responsabilidades sociais
estão além da sua função existencial. É uma “doutrina fundamentalmente subversiva” na
medida em que é impossível para um indivíduo isolado determinar qual seria o interesse
social.
Quando isso ocorre, e os altos funcionários decidem em nome das empresas
qual deve ser a contribuição social, sua contribuição às obras de caridade, universidades e
entidades filantrópicas, mesmo considerando tal decisão por meio do uso de incentivos
fiscais, implicaria numa usurpação dos direitos de decisão dos acionistas, verdadeiros
donos da empresa. Mais que isso, o Estado que incentiva e permite tais formas de
69 FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e Liberdade, op. cit., p. 177. 70 Ibidem, p. 122.
55
contribuições sociais com dedução dos impostos está coagindo os agentes econômicos
contra sua própria natureza competitiva71.
Considerando os elementos acima, a ideologia neoliberal não pode ser
considerada totalmente incompatível com um sistema de proteção social nos molde que
respeite a supremacia dos direitos individuais, portanto, não se pode considerar que a
responsabilidade social assumida livremente pelas empresas seja um fenômeno incoerente
com o pensamento econômico dominante. Ao contrário, se pode argumentar que com a
diminuição de tamanho e poder do novo Estado mínimo, a prestação de serviços públicos
sociais é diminuída, por conseqüência, a função social das empresas se potencializa
enquanto fruto da carência de necessidades básicas não supridas e dos próprios valores
econômicos atuais que regem a vida do homem em sociedade (a supremacia da liberdade
econômica).
Mesmo quando Friedman apud Srour72 se manifestou no New York Times
Magazine, nos termos da celebre afirmação de que “Há uma e uma única responsabilidade
social nos negócios – usar seus recursos e investi-los em atividades destinadas a
incrementar os lucros”, ele se posiciona numa clara alusão em defesa da soberania dos
interesses dos acionistas, acima das decisões tomadas por administradores profissionais.
Contudo, no sentido do respeito à indelegável liberdade do indivíduo em tomar suas
decisões, então, o próprio Friedman está decidindo em nome dos acionistas o que seria
melhor para eles, portanto, infringe, ele mesmo, sua regra número um.
Posto tais premissas da concepção ideológica neoliberal que alicerçam os
valores no campo econômico, podemos passar a analisar o avanço concreto da percepção
empresarial diante do conceito de responsabilidade social das empresas e, então, avaliar as
condições materiais sob o qual tal fenômeno está se verificando no caso brasileiro e, até
mesmo, porque não dizer, se expandindo.
71 FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e Liberdade, op. cit., p. 124-125. 72 SROUR, Robert Henry. Ética empresarial: Posturas responsáveis nos negócios, na política e nas relações pessoais. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 217.
56
2 DIMENSÕES DA RESPONSABILIDADE SOCIAL DA EMPRESA
A sociedade atual é um mundo complexo formado por inúmeros tipos de
organizações legitimas: famílias, escolas, clubes, partidos políticos, governos e empresas,
dentre outras. Cada vez que um grupo de pessoas com interesses comuns se reúnem está se
formando uma organização social. Cada organização terá características próprias em
função das necessidades que procura satisfazer e usará de um aparato técnico específico
que permita atingir tais objetivos.
A empresa enquanto organização técnico-social diretamente produtiva ou
prestadora de serviço exerce inúmeras funções relevantes para a sociedade. Ao realizar
suas tarefas sociais entram em contato com o ambiente externo no qual está inserida e
interage com ele. Neste sentido, é oportuno perceber as empresas como sendo parte de um
sistema social aberto, tal qual concebe a Teoria Geral dos Sistemas73. Segundo Katz e
Kahn apud Duarte e Dias:
“nosso modelo teórico para a compreensão de
organizações é o de um sistema de energia input-
output, no qual o resultado da energia da produção
reativa o sistema. As organizações sociais são
flagrantemente sistemas abertos, porque o input de
energia e a conversão do output em novo input de
energia consiste de transações entre a organização e seu
meio ambiente”74.
Ou seja, cada empresa é uma organização técnico-social dotada de
características específicas, com objetivos próprios e compreende dinâmicas entre as
variáveis de dentro do seu sistema organizacional, bem como, dinâmicas destas para com
as variáveis do ambiente externo e vice-versa. Em outras palavras, as empresas afetam e
são afetadas pelas variáveis do meio ambiente no qual estão inseridas, além de seus
73 A Teoria Geral de Sistemas surgiu a partir das idéias do biólogo alemão Ludwig von Bertalanffly, nos anos 50. 74 DUARTE, Gleuso D., DIAS, José Maria A. M. Responsabilidade social: a empresa hoje. Rio de Janeiro; São Paulo: LTC: Fundação Assistencial Brahma, 1986, p. 4.
57
processos internos, numa contínua troca de influências que estarão redefinindo os motivos
do seu comportamento.
Considerar a visão sistêmica significa reconhecer numa percepção holística
o sistema organizacional das empresas e suas relações com o ambiente externo. Na medida
que as empresas interagem com o ambiente externo significa que estão inseridas num
sistema aberto e os resultados obtidos pela organização serão recebidos pelos elementos do
meio externo que irão reagir, provocando ações e reações de ambas as partes e mudanças
de posições ao longo do tempo.
2.1 UM SISTEMA ABERTO E GLOBALIZADO
A partir da compreensão de que as empresas estão inseridas num sistema
aberto, portanto, interagindo com o meio ambiente e consigo mesma, torna-se importante
compreender as características e dinâmicas envolvidas neste sistema. Uma vez que cada
empresa pode ser encarada como parte de um sistema total, ou seja, um subsistema, é
fundamental perceber as variáveis que ditam as possibilidades de interação dela com o
meio ambiente.
Antes, porém, é preciso retratar uma característica básica de um sistema: o
globalismo ou totalidade. A visão globalista de um sistema transparece pela possibilidade
de reação em cadeia que, uma mudança provocada por uma das unidades do sistema, se faz
refletir nas demais unidades.
Ou seja, existe uma espécie de natureza orgânica no sistema onde
alterações verificadas produzem um ajuste contínuo no sistema total. Há uma relação de
causa-efeito entre as ações das unidades que fazem parte de um sistema aberto. Nas
palavras de Miller appud Chiavenato:
“O efeito total dessas mudanças ou alterações se
apresentará como um ajustamento de todo o sistema. O
sistema sempre reagirá globalmente a qualquer
estímulo produzido em qualquer parte ou unidade”75.
75 CHIAVENATO, Idalberto. Introdução à teoria geral da administração. São Paulo: Makron Books, 1993, p. 753.
58
A natureza de um sistema aberto se caracteriza justamente pelas relações de
troca de influências das unidades com o ambiente externo. Em outras palavras, a empresa
enquanto unidade do sistema mantém intercâmbio constante com as outras unidades do
ambiente, num jogo contínuo de relações interdependentes. O modelo genérico abaixo
reflete os parâmetros de um sistema aberto76:
Organização
Entrada Saída Saída
Ambiente ______________ _____________ Ambiente
Retroação
Neste sentido, toda organização, toda empresa está submetida às mudanças
que ocorrerem no ambiente, de forma dinâmica. Ao operar em determinado subsistema, a
empresa estabelecerá relações com outras unidades de diversos subsistemas,
complementares à sua atividade produtiva ou não, e, no intuito de garantir a consecução de
seus objetivos, toda organização procurará alcançar um estado firme (homeostase) que lhe
proporcione estabilidade e equilíbrio.
Para alcançar tal estado de segurança será preciso preencher dois pré-
requisitos: unidirecionalidade e progresso. Unidirecionalidade significa constância de
direção e manutenção do foco nos objetivos finais pretendidos, ou seja, mesmo
considerando as mudanças ocorridas no ambiente haverá que se descobrir novos meios
para se chegar ao fim objetivado. E progresso no sentido relativo de se avançar, de se
chegar ao fim desejado dentro dos limites de distorção toleráveis, mas sempre redefinindo
novos graus de progresso como meta77.
Fica claro, portanto, que a sobrevivência de uma empresa num sistema
aberto será fruto da sua capacidade organizacional e gerencial de adaptação às mudanças
verificadas no meio ambiente, procurando se posicionar num espaço de mercado e social
de segurança. Significa perceber que alterações no padrão técnico-social do sistema total,
no qual está inserida a empresa, representam rupturas na forma anterior de equilíbrio dela
76 CHIAVENATO, Idalberto. Introdução à teoria geral da administração, op., cit., p. 757. (Adaptado: inclui a palavra “organização”) 77 Ibidem, p. 765.
Processamento
59
com o meio externo e requer inovações para garantir a adaptabilidade necessária a sua
sobrevivência.
Uma vez reconhecido que existe uma dinâmica própria no sistema, a
empresa terá que se ajustar constantemente às mudanças verificadas, sendo mais lógico
que ela mesma antecipe ações no sentido de construir estrutura e comportamento
organizacional que lhe garantam a sobrevivência. A conseqüência das ações inovadora de
determinadas unidades – empresas - do sistema terá reflexo sobre as demais que também
irão reagir, numa sucessão contínua de variações no equilíbrio organização-meio. É
importante considerar que a própria empresa é parte ativa das mudanças que são
provocadas no ambiente externo.
Nesta luta pela sobrevivência empresarial no mercado competitivo, outra
importante característica que deve ter uma organização é a da diferenciação. Cada
organização terá que se construir a partir da percepção de que é necessário dispor de
estrutura e comportamento organizacionais em sintonia com as novas exigências do
mercado. Segundo o modelo de Katz e Kahn apud Chiavenato, a diferenciação é assim
conceituada:
“A organização, como todo sistema aberto, tende à
diferenciação, isto é, á multiplicação e à elaboração de
funções, o que lhe traz também multiplicação de papéis
e diferenciação interna. Os padrões difusos e globais
são substituídos por funções mais especializadas,
hierarquizadas e altamente diferenciadas. A
diferenciação é uma tendência para a elaboração de
estrutura”78.
Visualizando o processo global de mudanças ao longo da história, ainda que
de forma genérica, é perfeitamente possível ponderar que as transformações ocorridas se
reflem na cultura, no comportamento e nos valores sociais. Diferenciar-se à frente das
outras organizações significa, então, demonstrar que determinada empresa dispõe de
melhores condições de adaptabilidade ao mercado. Mais que ficar à mercê das mudanças
78 CHIAVENATO, Idalberto. Introdução à teoria geral da administração, op. cit., p. 771.
60
do meio externo, a própria empresa é o agente de grande parte das transformações que
ocorrem na sociedade.
Enquanto força ativa na construção de tais variações no equilíbrio geral é
natural que a empresa atue no sentido de lhe garantir a defesa de seus interesses. Isto
determina uma atuação sobre as transformações sociais direcionando-as para a consecução
dos objetivos das organizações empresariais. Cabe aqui a percepção de Meigniez apud
Duarte e Dias, quanto à importância da intervenção empresarial na vida social:
“ela [empresa] participa do sistema de poder
econômico e, por conseqüência, interpreta as
orientações culturais de uma sociedade, em função dos
interesses da classe dominante. A empresa tem um
poder e procura impor, nela e fora dela, valores e
comportamentos sociais e culturais conforme seus
interesses particulares”79.
Sendo assim, diante da visão sistêmica e da perspectiva da nova ordem
mundial que vai se globalizando atualmente, cada vez com maior velocidade, devido às
inovações tecnológicas nos meios de comunicação, as mudanças provocadas no equilíbrio
do sistema total em quaisquer lugares do mundo, ganham contornos a nível local com certa
rapidez. As alterações provocadas por determinada empresa ou grupo de empresas,
localizadas num país qualquer, surtem efeitos em distantes locais do planeta, com
intervalos de tempo cada vez menores, ainda que, a realidade lá vívida seja concretamente
diferente se comparada à realidade local onde surtiu reflexo. Enfim, as mudanças
provocadas por uns interferem na vida de terceiros: sociedades, empresas, famílias, entre
outros, na direção de um sistema global, tendendo a compatibilização de valores, aspectos
culturais e comportamentos socialmente aceitáveis.
O neoliberalismo e sua ideologia econômica dominante reflete justamente as
mudanças sistêmicas promovidas na estrutura capitalista, as quais foram requeridas para
dar resposta as limitações estruturais, no processo de acumulação de capital, que se
apresentaram a partir da década de 70, manifestadas pela via da estagflação, nos paises
desenvolvidos. Coube ao excesso de intervencionismo econômico do Estado – o Estado do 79 DUARTE, Gleuso D., DIAS, José Maria A. M. Responsabilidade social: a empresa hoje, op. cit., p. 19.
61
bem-estar social - e ao movimento sindical – o poder dos sindicatos – receberem a culpa
pelos desajustes estruturais na economia.
É importante percebermos que a revolução ocorrida nos meios de
computação e telemática, a chamada Terceira Revolução Industrial, iniciada a partir da
segunda metade da década de 50, tem papel fundamental na construção de um mundo
global e sistêmico. Apesar da distância física, o gerenciamento das grandes empresas, que
espalham cada vez mais seus tentáculos por vários países do mundo, se torna possível
dentro de uma lógica global. Surge a empresa transnacional, assim descrita por Silva:
“Trata-se de uma empresa que atuando em mercados de
mais de uma nação, busca uma competitividade global,
uma flexibilidade multinacional e um aprendizado
mundial, de modo a auferir o lucro esperado por seus
investidores passivos. Para isto, a empresa
transnacional usa a receptividade local como
ferramenta para obter flexibilidade nas operações
internacionais” 80.
Da atuação globalizada destas organizações resultará uma articulação
sistematizada que afeta a atividade econômica, a política e a cultural das diversas
sociedades humanas pelo globo terrestre. Novas formas de pensar serão impostas pelas
necessidades requeridas pela infra-estrutura, pelas forças produtivas estabelecidas e suas
relações dentro do modo de produção capitalista. A importância e influencia destas
empresas, grandes corporações, ultrapassam as fronteiras das nações e afetam seus valores
culturais. Uma nova dimensão nas relações econômicas e sociais se estabelece, nos moldes
da visão sistêmica, que recebe a seguinte descrição de Ianni:
“Sim, o neoliberalismo articula o mundo em moldes
sistêmicos. A despeito de complexo e contraditório, ou
caleidoscópio e caótico, esse mundo é simultaneamente
organizado, integrado, administrado e dinamizado em
80 SILVA, Jorge Vieira da Silva. A empresa Transnacional. In: Capitalismo: Teoria e dinâmica atual. São Paulo em perspectiva: Revista da Fundação Seade, São Paulo, v. 12, n. 2, abr.-jun., 1998, p. 47.
62
moldes basicamente sistêmicos. Sob certos aspectos, o
individualismo e a escolha racional podem ser vistos
como produtos e condições de toda uma visão sistêmica
bastante sofisticada; na qual as condições e as
possibilidades da atividade de indivíduos e
coletividades estão mais ou menos delimitadas. As
tecnologias eletrônicas e informáticas, agilizadas pelas
corporações transnacionais e as organizações
multilaterais, intensificam e generalizam a articulação
sistêmica do mundo, compreendendo indivíduos e
coletividades” 81.
Um complexo emaranhado de relações de interesses econômicos e sociais
imprime forma, global e local, às relações estabelecidas entre empresa-indivíduo-
sociedade. Uma nova organização da estrutura produtiva a nível mundial ganha contornos
de flexibilidade e integração, seja a nível propriamente na forma de produção quer seja ao
nível do deslocamento espacial da mesma. Ou seja, uma nova configuração de ligação
entre as empresas e as sociedades se estabelece e passa a ditar a influência sobre as
mesmas. Surge uma grande rede de empresas conectadas por interesses comuns.
Segundo a percepção de Bernardes sobre a empresa-rede:
“Define-se uma empresa-rede como um arranjo
institucional básico para lidar com os processos de
inovação sistêmicos. As redes caracterizam-se como
formas interpenetradas de mercado e organização,
possibilitando às corporações identificar oportunidades
emergentes para ligar a especialização flexível através
das fronteiras das empresas e para disparar os processos
de inovação contínua e em interação”82.
81 IANNI, Octavio. Globalização e neoliberalismo. In: Capitalismo: Teoria e dinâmica atual, op. cit.,, p. 31. 82 BERNARDES, Roberto C. A inovação no capitalismo contemporâneo. In: Capitalismo: Teoria e dinâmica atual, op. cit., p. 36.
63
Ou seja, a organização cada vez mais sistêmica do modo de produção
capitalista global impõe uma interação a nível mundial das forças produtivas, bem porque,
as ações isoladas de uma empresa ou grupo de empresas de um setor de atividade qualquer,
numa dada sociedade, se refletem sobre as demais. Isto exige de cada empresa,
especificamente, um esforço de agilidade e inovação no sentido de manter-se competitiva e
poder sobreviver no mercado. Exige da empresa uma capacidade de adaptação aos novos
valores que vão surgindo no ambiente concorrencial, bem como, requer dela uma atuação
diretamente ativa sobre a criação destes novos valores, técnicos e sociais, pois, desta
forma, o processo de competição e inovação pode ser administrado pela própria
organização.
2.2 A EMPRESA SOCIALMENTE RESPONSÁVEL
É inegável a contribuição das empresas na criação da riqueza humana, bem
como, a sua importância ao longo da vida das pessoas. Vivemos cercados por elas,
existimos profissionalmente vinculados a estas organizações e da atuação delas depende o
desempenho verificado no sistema econômico. São verdadeiras fontes do progresso
econômico.
Contudo, da sua atuação também surgem conseqüências indesejáveis tais
como: a poluição ambiental, prejuízos à saúde humana e animal, desvios na ordem de
conduta moral em benefício unicamente do lucro empresarial, abusos do poder econômico
e, por fim, distorções perversas no funcionamento da economia. Estes aspectos negativos
representam o custo social que se paga para obter as vantagens decorrentes da existência
das empresas no sistema capitalista. Ou seja, se há benefícios inquestionáveis também há
custos sociais atrelados à existência das empresas. Há externalidades negativas.
Considerando, portanto, uma organização social onde impera a legalidade
do sistema de propriedade privada, a liberdade dos agentes econômicos, das empresas e
das pessoas, para atuarem de forma concorrencial no mercado, sob a vigência da ideologia
neoliberal econômica, pode-se afirmar que as manifestações dos efeitos negativos, acima
citados, são frutos da somatória das decisões livres e racionais dos indivíduos.
A concepção do que é a responsabilidade social da empresa está diretamente
relacionada com a manifestação concreta e sistêmica de tais conseqüências indesejáveis e,
mais que isto, implica também relacionamento com a concepção ideológica que a
64
sociedade humana desenvolve de si mesma, num determinado período histórico, num
processo intertemporal dinâmico de construção do corpo social e do aparato produtivo que
se desenvolve no seio da sociedade. No presente item convém resgatar e explicitar a
gênese do conceito de responsabilidade social da empresa e seu desenvolvimento, antes de
analisar o caso específico do Brasil.
Na sua origem, a idéia da responsabilidade social da empresa remonta o
final do século XIX e início do presente século. Segundo relato de Maximiano83, Andrew
Carnegie, fundador da U.S. Steel, foi um dos pioneiros no assunto ao conceber que o
“princípio da responsabilidade social baseia-se na premissa de que as organizações são
instituições sociais”, quando, em 1899, publicou nos Estados Unidos da América o livro O
evangelho da riqueza, caracterizando dois princípios básicos relativos a responsabilidade
social da empresa: “caridade e stewardship”, ou seja, princípio da caridade e princípio do
zelo.
No entanto, ressalta Duarte e Dias84, que apesar de outras manifestações tais
como: Charles Eliot (1906), Arthur Hakley (1907) e John Clark (1916), foi somente com o
trabalho de Howard R. Bowen, intitulado Responsabilidades sociais do Homem de
Negócios, publicado em 1953, nos Estados Unidos da América, que se demarcou o início
de uma análise mais criteriosa, profunda e a partir desta obra se deu a divulgação e
popularização do conceito, no início dos anos 60, nos Estados Unidos da América e, a
partir do final da década de 60, na Europa.
É interessante notar que ambas abordagens têm forte cunho religioso. O
título da obra de Carnegie, por si só, não deixa dúvidas e o trabalho de Bowen foi
patrocinado pelo Conselho Federal das Igrejas de Cristo da América. O que significa que
uma primeira percepção do assunto estava fortemente ligada ao caráter religioso da
sociedade americana, portanto, à condição estabelecida da moral social da época.
Nos dizeres do próprio Bowen85, responsabilidade social dos homens de
negócios significa: “Ela se refere às obrigações dos homens de negócios de adotar
orientações, tomar decisões e seguir linhas de ação, que sejam compatíveis com os fins e
valores de nossa sociedade”. Ou seja, existe um certo caráter ambíguo na definição ao
83 MAXIMIANO, Antonio César Amaru. Teoria geral da administração: da escola científica à competitividade em economia globalizada. São Paulo: Atlas, 1997, p. 308.
84 DUARTE, Gleuso D., DIAS, José Maria A. M. Responsabilidade social: a empresa hoje, op. cit., p. 43-45.
85 BOWEN, Howard R. Responsabilidades sociais do homem de negócios. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1957, p. 14-16.
65
relacionar “obrigação” com a necessidade de compatibilização dos valores morais da
sociedade americana. Isto, a contradição, fica mais claro quando o autor, um pouco mais
adiante, relaciona como sinônimos de responsabilidade social as idéias de “obrigações
sociais e moralidade comercial” e, complementa, dizendo: “Não se lhes devem impor
responsabilidades de que não seja lícito esperar que se desincumbam satisfatoriamente”, ou
ainda, recorre à expressão “aceitação voluntária”.
Ora, na medida em que aquele país defende uma ideologia calcada nos
valores econômicos do capitalismo, naquele momento histórico, nas décadas de 50 e 60,
paralelamente, passa a se difundir a percepção da responsabilidade social dos homens de
negócio enquanto um misto de obrigação e ação voluntária que possibilite o respeito aos
princípios da moralidade estabelecida na sociedade americana.
Modernamente, o conceito de responsabilidade social da empresa vai além
do argumento clássico que a considera como uma “obrigação”. Segundo Dias e Duarte86, a
empresa é entendida como um organismo social complexo e suas dimensões estão
integradas a uma dimensão maior: a sociedade. Há quatro dimensões na complexa
realidade vivida pela empresa que se devem considerar: a dimensão pessoal, pois a
empresa é composta por seres humanos; a dimensão social, pois o homem só existe em
sociedade; a dimensão política que reflete a convivência necessária do público e do
privado; e a dimensão econômica que é a sua natureza e função específica.
E, continua aqueles autores, esta percepção das dimensões vinculadas a
empresa torna possível perceber que ela tem outras responsabilidades que não apenas
aquelas primárias estabelecidas perante seus acionistas. Tais responsabilidades vão além da
mera prescrição obrigatória estabelecida em leis, ganhando contornos morais subordinados
a ética, bem como, devem se adequar aos ditames das demandas sociais envoltas por um
determinado cenário sócio-econômico da sua época.
Surge a noção de “parceiros” da empresa, stakeholders, um termo
abrangente que procura explicitar o grau de comprometimento e dependência recíproca da
empresa com os seus acionistas, empregados, fornecedores, clientes, concorrentes,
governo, grupos e movimentos e comunidade. Responsabilidade social da empresa é,
portanto, uma nova visão da empresa e do seu papel na sociedade.
A empresa passa a ser encarada como sendo um “cidadão”, um membro da
sociedade dos homens. Uma entidade social que se relaciona com todos os outros agentes 86 DUARTE, Gleuso D., DIAS, José Maria A. M. Responsabilidade social: a empresa hoje, op. cit., p. 52-56.
66
sócio-econômicos e, portanto, tem seus direitos e deveres que vão além das obrigações
legais estabelecidas no campo jurídico formal. Para Solomon:
“Se considerarmos as empresas como cidadãos e como
comunidades – não como entidades jurídicas, estáticas,
burocracias sem rosto e matrizes de compromissos
financeiros -, então as atividades e a ética dos negócios
se tornam muito mais abrangentes e humanas” 87.
Ou seja, a incorporação do conceito de responsabilidade social pelas
empresas torna possível surgir outras preocupações que vão além da fronteira de interesse
dos acionistas ou proprietários, bem porque, não há como separa-los dos interesses
econômicos e sociais dos demais participantes do processo, inclusive, das questões
ambientais.
Formal e modernamente conceituada pelo Conselho Empresarial para o
Desenvolvimento Sustentável (WBCSD), no ano de 1998, na Holanda, a responsabilidade
social corporativa está assim entendida:
“o comprometimento permanente dos empresários com
comportamentos éticos e com o desenvolvimento
econômico. A saber: melhorar a qualidade de vida dos
empregados e de suas famílias, bem como da
comunidade local e da sociedade como um todo”88.
Para entender o fenômeno da manifestação da responsabilidade social da
empresa, portanto, se faz mister analisar as condições materiais que o requereram e, neste
sentido, tomando como referência central à obra clássica de Bowen, num primeiro
momento, e, complementando-a, quando necessário, conceber um arcabouço que permita
tal interpretação e a construção um grupo lógico de justificativas que possam ser aplicadas
em outras sociedades. Não podemos esquecer, no entanto, que os padrões socialmente
87 SOLOMON, Robert. A melhor maneira de fazer negócios: como a integridade pessoal leva ao sucesso corporativo. São Paulo: Negócio Editora, 2000, p. 83. 88 SROUR, Robert Henry. Ética empresarial, op. cit., p. 198.
67
aceitos se alteram no tempo e os interesses da empresa serão diretamente influenciados por
eles.
2.2.1 A concepção ideológica da sociedade capitalista
Uma leitura cuidadosa da obra de Bowen reflete uma certa preocupação do
autor acerca dos desafios ideológicos enfrentados, na época, pela afirmação da sociedade
capitalista americana. Em outras palavras, é possível perceber que a vertente moral
protestante se faz presente em defesa clara dos interesses de construir uma sociedade nos
moldes capitalista. A questão da defesa de uma ideologia social capitalista estabelecida é o
primeiro elemento que chama atenção, na construção da percepção da responsabilidade
social da empresa.
Neste aspecto, o autor deixa transparecer de forma nítida um caráter de
obrigação que deve ser entendido não como uma obrigação imposta pelo poder de governo,
ao contrário, uma obrigação que nasce da situação vivida naquele momento histórico e
político pelo receio, justamente, de novas imposições do governo, ou pior, da mudança da
própria ideologia do Estado.
Justificando o porque da preocupação com a responsabilidade social pelos
homens de negócios, o autor explicita parte do caráter formal que é entendido pela
expressão do termo “obrigação”, dizendo: “porque eles têm sido forçados a se
preocuparem mais”89.
Devemos lembrar que a grave crise da década de 30 fez nascer um processo
de interferência do Estado na economia traduzida, inicialmente, pelo New Deal,
paralelamente, ao desconforto da defesa dos ideais do livre mercado, bem como, ao
término da Segunda Guerra Mundial, o sistema capitalista encontra um forte opositor
ideológico a nível mundial: o comunismo.
Numa alusão clara aos riscos desta conjuntura, o autor se posiciona
defendendo o sistema privado de livre iniciativa, dizendo “a emprêsa privada só pode ser
aceita, e assim continuar sendo, se ficar patenteado que ela pode servir melhor à Sociedade
do que outro sistema qualquer”90. Ou seja, sob o risco da opção comunista e de um forte
movimento civil, que se manifesta a partir da década de 50, a empresa deve dar sua
89 BOWEN, Howard R. Responsabilidades sociais do homem de negócios, op. cit., p. 126. 90 Ibidem, p. 58.
68
contribuição material para a sustentação da ideologia do sistema social vigente. E justifica
as preocupações ideológicas, do ponto de vista da empresa:
“Os homens de emprêsa americanos começaram a
aperceber-se das fôrças que induziam ao socialismo em
vários cantos do mundo e a reconhecer que algum dia
poderiam ser ameaçados da mesma forma, a menos que
se alterasse o sentido das tendências do pensamento
social e que se pudesse modificar o funcionamento do
sistema de livre-emprêsa, de molde a atender mais
amplamente às aspirações do povo norte-americano.
Deveras, muitos homens de negócios interpretaram o
“New Deal” como a ponta de lança do socialismo”91.
Existem, portanto, duas preocupações básicas: evitar a destruição do sistema
sócio-político estabelecido e, simultaneamente, conter a intervenção do Estado na
economia. Esta última percepção fica exposta pela crítica do autor, quando diz: “montante
de regulamentação oficial, ou até mesmo de propriedade pública, tem figurado como
permanente ameaça”92. Ou seja, a responsabilidade social da empresa pode evitar o avanço
desnecessário de regulamentações sociais de controle do governo. Esta questão fica visível
também na frase: “A evocação voluntária destas responsabilidades pelos homens de
negócios é, ao menos, uma alternativa possível para se evitar um maior controle da
economia pelo Estado”93.
Convém, então, perceber que este esforço de responsabilização social da
empresa pelos destinos do sistema sócio-político do capitalismo americano, ganha
contornos tanto na sociedade americana quanto a nível mundial, se espalha. Significa dizer
que a contribuição dada pela empresa na estabilidade da sociedade capitalista americana
serve de bom exemplo para outros países pelo mundo afora.
Bowen denomina este aspecto relacionado às finalidades específicas dos
homens de negócios vinculados a um necessário esforço educacional pró-capitalismo.
91 BOWEN, Howard R. Responsabilidades sociais do homem de negócios, op. cit, p. 93.
92 Ibidem, p. 126.
93 Ibidem, p. 40.
69
Vejamos seus argumentos, neste sentido: “desenvolver atitudes mais favoráveis com
relação às companhias e ao sistema de empresa, entre consumidores, autoridades públicas,
e o público em geral; e mesmo, persuadir povos estrangeiros das vantagens do
capitalismo”94.
Diante desta avaliação não resta dúvida de que a percepção socialmente
responsável das empresas existe vinculada aos interesses ideológicos do sistema social
capitalista, atualmente, vigente em quase todos os países.
Mais que isto, ela na verdade nasce na sua defesa e, portanto, o processo de
avanço na sua percepção pelas próprias empresas e pelo resto da sociedade mundial, se
potencializará na medida em que o aparato político e ideológico estabelecido o requerer
enquanto condição fundamental de proteção da ordem social.
Uma frase do autor não deixa dúvidas acerca desta avaliação:
“Estamos entrando em uma era em que os negócios
privados serão julgados exclusivamente em função de
sua contribuição concreta para o bem-estar coletivo. Os
mais destacados pensadores do mundo dos negócios
compreendem isto claramente. Para eles, por
conseguinte, a aceitação de obrigações para com os
trabalhadores, consumidores e o público em geral, é um
requisito para a sobrevivência do sistema de livre
empresa”95.
É neste sentido que a responsabilidade social da empresa não representa
uma ameaça ao sistema capitalista, ao contrário, significa sua solidificação e a
demonstração de sua capacidade de criar benefícios direcionados ao bem-estar da
sociedade em geral, garantindo sua aceitação ideológica e contribuindo para conter as
intervenções do Estado na economia. Enfim, a primeira dimensão de manifestação da
responsabilidade social da empresa representa um instrumental em favor da ideologia
capitalista, foi no passado e também é no presente.
94 BOWEN, Howard R. Responsabilidades sociais do homem de negócios, op. cit, p. 72. 95 Ibidem, p. 67.
70
2.2.2 O fundamento econômico da empresa
As condições materiais da sociedade, fundamentalmente, as questões
vinculadas às idéias e ao interesse econômico dos homens são sem dúvida um fator de peso
na percepção da responsabilidade social da empresa. Não há como desconsiderar o
interesse econômico vinculado a esta opção socialmente responsável da empresa.
A obtenção do lucro, a principal variável econômica que condensa os
interesses econômicos numa sociedade capitalista, decorre de inúmeros fatores que
interagem na empresa. Não implica querer dizer que o lucro é o único objetivo de uma
empresa, porém, é uma das essências que no modo de produção capitalista mantém a
empresa viva e competitiva no mercado. Para obter lucro uma empresa deve demonstrar-se
acima de tudo eficiente e flexível, interna e externamente.
A elaboração da produção e sua realização em termos competitivos pela
empresa são os pontos centrais desta questão. Ou seja, existem fatores relativos as
condições de elaboração do produto pela empresa e existem fatores concernentes ao
interesse de venda do produto no mercado; os quais atraem a atenção e os esforços
coordenados de qualquer empresa que procura sobreviver. Desta forma, avaliar este item
implica em fazer considerações do ponto de vista das relações internas e externas que a
empresa mantém com outras forças sociais.
Do ponto de vista das relações internas à empresa, o aumento da eficiência e
da produtividade do trabalho, na elaboração de bens e serviços, é fator de fundamental
importância, principalmente, se pensarmos o interesse econômico da empresa numa
perspectiva de longo prazo. Isto significa reconhecer que a participação dos trabalhadores
ganha posição de destaque.
Incorporando os princípios da abordagem administrativa das relações
humanas, elaborada na década de 30 e desenvolvida intensamente até metade da década de
50, se reconhece que existe uma relação do “trabalho informal e a satisfação do
trabalhador”. Ou seja, não são apenas as condições físicas que afetam a produtividade, os
“fatores psicológicos e sociais” envolvidos no grupo informal de trabalho também teriam
grande influência sobre ela. Ademais, a elaboração de um outro trabalho, do ponto de vista
das relações humanas, foi fundamental para demonstrar a importância de se preocupar com
as necessidades dos trabalhadores: a Teoria de Maslow (teoria das necessidades humanas).
Esta teoria incorpora a percepção cumulativa das necessidades humanas que vão de níveis
71
inferiores, necessidades básicas de sobrevivência, até as necessidades superiores, de
conteúdo intelectual e psicológico do trabalhador96.
É neste sentido que Bowen97 descreve como fins específicos da
responsabilidade social dos homens de negócios: “conseguir melhores relações com os
trabalhadores e maior produção destes”. Em outras palavras, o próprio Bowen, esclarece a
essência desta questão quanto à sua importância para a empresa, tanto do ponto de vista
dos interesses econômicos quanto das relações humanas, as quais passam a constituir
preocupações e pensamentos dos homens de negócios, dizendo:
“Reconhecem que a própria eficiência depende das
atitudes dos trabalhadores tanto quanto dos processos
técnicos de produção. Destarte, as boas relações
humanas transformam-se não somente em uma
finalidade desejável para o interesse social geral, como
igualmente em uma condição para o funcionamento
eficiente da empresa, que atende aos interesses desta
sob o ponto de vista restrito de obtenção dos lucros.
Uma orientação sábia quanto a relações humanas é
considerada como uma boa política social e um bom
negócio”98.
Portanto, com o auxílio do estudo científico da administração, desejos e
necessidades dos trabalhadores se tornam objetos que inspiram cuidados por parte da
empresa e, conseqüentemente, passam a fazer parte do rol de itens que compõem a
responsabilidade social dos homens de negócios. Mais que isto, o trabalho em grupo passa
a ser valorizado pela empresa segundo o funcionamento nos moldes do “espírito de
equipe”. Na sua essência, afirma Bowen99: “(por ex., boas condições de trabalho e boas
relações humanas) são realmente um bom negócio, já que fomentam a eficiência e reduzem
custos”.
96 BATEMAN, Tomas S. e Snell, Scott A. Administração: construindo vantagem competitiva. São Paulo: Atlas, 1998, p. 53. 97 BOWEN, Howard R. Responsabilidades sociais do homem de negócios, op. cit., p. 71. 98 Ibidem, p. 76. 99 Ibidem, p. 127.
72
Existe aqui o encontro de duas justificativas que motivam a empresa na
direção de sua responsabilidade social perante o trabalhador, uma de caráter de persuasão e
outra de caráter forçoso. Persuasão no sentido de que tais considerações acerca dos
trabalhadores e da produtividade vão de encontro aos interesses da empresa. Forçoso
devido à existência, naquela época, de um forte movimento operário organizado. Ou seja,
um fator de ordem imperativa que defende os interesses do trabalhador a começar pelos
seus rendimentos.
Convém explicitar uma constatação daquele autor sobre este caráter forçoso
da relação empresa-sindicato, na época em questão, que nos será útil mais adiante, pois
ainda não existe uma real participação dos trabalhadores na gestão da empresa, diz ele:
“Entretanto, a idéia de que os operários e outros devam participar nas decisões comerciais
em geral, por certo não foi ainda adotada por muitos homens de negócios americanos”100.
Da mesma forma, em período mais recente, podemos observar a essência
desta argumentação, em relação aos trabalhadores, quando Duarte e Dias reproduzem um
dos “Dez Pontos Reúnem Empresários Do Mundo Todo Em Torno Do Ideal De Uma
Empresa Solidária E Atuante”, dizendo: “Consideramos como importante objetivo da
empresa brasileira elevar constantemente os níveis de sua produtividade, sempre
acompanhada pelo crescimento paralelo da parte que por imperativo e justiça social, cabe
aos assalariados”101.
Do ponto de vista das relações externas, a empresa tem que considerar os
interesses de realização da produção. Ao se demonstrar socialmente responsável através de
suas ações junto ao público externo, a empresa ganha visibilidade e pode elevar sua
participação de vendas no mercado.
Para ser percebida pelo público alvo, demandantes efetivos e potenciais, na
opinião de Bowen102: “o homem de negócios pensa que o comércio deve empenhar-se
ativamente na criação de procura maior dos produtos por meio de publicidade e outros
processos de promoção de vendas”. Isto implica que a empresa deve ser bem conhecida
pelo público não apenas pelos seus produtos, mas, também, por outras ações, portanto,
podem ser ações responsáveis junto à comunidade.
100 BOWEN, Howard R. Responsabilidades sociais do homem de negócios, op. cit., p. 55.
101 DUARTE, Gleuso D., DIAS, José Maria A. M. Responsabilidade social: a empresa hoje, op. cit., p. 71.
102 Ibidem, p. 61.
73
Interessante notar que quanto mais se expuser ao público via práticas de
campanhas publicitárias, mais a empresa estará sendo avaliada pelo mesmo público. Sua
exposição contínua no mercado atrairá para a empresa a atenção sobre a sua conduta,
portanto, sobre as suas ações no âmbito restrito da produção e no âmbito das ações sociais
junto ao público. Nas palavras do autor: “É claro que as companhias que funcionam assim,
à luz de intensa publicidade, são forçadas a pensar nas reações públicas às suas
deliberações, o que equivale a tomar em devida consideração como estas afetarão o
interesse público”103.
Passa a existir um processo de relação mútua entre empresa-comunidade,
quando a primeira procura expandir suas vendas por meio da exposição publicitária no
mercado. Surge uma interação do tipo ação-reação que deve ser considerada pela empresa.
Certamente, conseqüências importantes para o destino da empresa serão travadas neste
processo e podem determinar sua sobrevivência, no longo prazo.
A imagem da empresa e, portanto, os volumes de vendas de seus produtos
estarão sendo associados às campanhas publicitárias e às ações socialmente responsáveis
da organização, na comunidade onde atua ou naquela onde pretende vender seus produtos.
Bowen descreve esta interação da seguinte forma:
“A publicidade tem duas conseqüências preciosas. A
primeira é que quando os administradores sabem que
suas ações serão examinadas publicamente, é provável
que tomem mais cuidado em atender às suas
responsabilidades sociais do que se suas atividades se
realizarem debaixo de sigilo. A outra é que quando o
público pode saber o comportamento das companhias,
fica em situação de distinguir entre as que satisfizeram
fielmente as suas obrigações sociais e as que deixaram
de obedecer aos estalões aceitos, e, portanto, em
condições de exercer uma pressão moral para a adoção
de padrões mais elevados de funcionamento”104.
103 BOWEN, Howard R. Responsabilidades sociais do homem de negócios, op. cit., p. 103. 104 Ibidem, p. 190.
74
Desta forma, atender as demandas de uma responsabilidade social implica
dizer que a empresa pode beneficiar-se desta atuação social do ponto de vista do volume de
vendas, da sua imagem e visibilidade no mercado e, portanto, do fortalecimento da sua
marca. A empresa ganha destaque diante aos olhos do público e dos concorrentes, e
receberá as reações que advirem desta sua ação dita socialmente responsável.
Neste sentido, a empresa percebe a possibilidade de compor sua estratégia
de marketing com projetos e ações sociais, os quais ultrapassam o mero exercício da
filantropia. O chamado “marketing social” torna-se uma realidade moderna baseada nas
ações sociais estrategicamente pensadas e articuladas pela empresa. Segundo Melo Neto e
Froes105, as principais modalidades do marketing social são marketing da filantropia;
marketing das campanhas sociais; marketing de patrocínio de projetos sociais; marketing
de relacionamento com base em ações sociais e marketing de promoção social do produto e
da marca.
Em resumo, quanto a uma análise das variáveis internas e externas ligadas à
responsabilidade social assumida pela empresa, pode-se relacionar abaixo seus principais
benefícios, respectivamente:
- motivação dos funcionários, aumento de produtividade, diminuição do
absenteísmo e rotatividade do pessoal, descoberta de novas
habilidades e lideranças, bem como, maior facilidade para recrutar
novos valores profissionais;
- aumento no volume de vendas, fortalecimento da imagem da empresa,
valorização das suas marcas no mercado e fidelização da clientela.
2.2.3 A gestão profissional da empresa
O crescimento da complexidade do exercício da administração da empresa
tornou obsoleta aquela percepção de que um só homem pode comandar sozinho, com
segurança e certeza, o futuro daquela organização. O “mandachuva” está em extinção. A
administração é uma arte complexa que exige formação técnica e sensibilidade pessoal. É
105 MELO NETO, Francisco Paulo de e FROES, César. Responsabilidade social e cidadania empresarial: a administração do terceiro setor. Rio de Janeiro: Qualitymark, 1999, p. 152.
75
impossível, sozinho, conceber todas as suas implicações sem um trabalho profissional e
amparado por uma equipe.
A “educação comercial” como era chamada o estudo da administração,
surgiu em 1881, na Universidade de Pennsylvania, e a segunda escola de comércio, em
1898, na Universidade de Chicago. Aos poucos a mentalidade comercial de formação a
nível superior vai ganhando adeptos e sua importância é reconhecida no mundo das
empresas. A administração vai se tornando uma profissão, pois ainda não era reconhecida
como tal, na época dos escritos de Bowen. Porém, segundo aquele autor, já havia uma
percepção básica dos educadores da função destas escolas, diz ele: “é dar um treinamento
profissional que contribua com o conhecimento das funções sociais da empresa comercial e
com um código de ética em que o interesse social ocupe lugar de destaque”106. Para
administrar um negócio, passa a ser preciso ter algum conhecimento técnico e este
reconhecimento vai ganhando terreno com o tempo.
Um outro fenômeno, paralelamente, a formação superior do administrador
de empresa, torna ainda mais influente a penetração do conceito de responsabilidade social
nas empresas: a separação das funções de propriedade e de controle na grande empresa.
Desta forma, o exercício da gestão dos negócios da empresas passa a ser necessariamente
dividido com pessoas de origem diferente daquelas que possuidoras da propriedade do
capital.
Os proprietários passam a dividir a gestão dos negócios com pessoas
profissionalizadas especificamente para exercer esta função. Agora, os interesses na gestão
da empresa não serão tão homogêneos quanto eram antes, pois a personalidade e os
interesses particulares do administrador profissional também passa a fazer parte do
processo de gestão empresarial. O dono da empresa ou acionista é levado a perceber que
será preciso adotar outra postura.
Nas palavras de Bowen107: “um grande número de homens de negócios
declara que os diretores de uma empresa são curadores, não apenas pelos acionistas ou
proprietários, mas também pelos empregados, fornecedores, consumidores, pela
comunidade vizinha, e pelo público em geral”. A administração dos negócios inicia uma
mudança de mentalidade e novos pontos de vista passam a fazer parte de suas atenções.
106 BOWEN, Howard R. Responsabilidades sociais do homem de negócios, op. cit., p. 97-99. 107 Ibidem, p. 62.
76
Ao conceber a empresa numa perspectiva de longo prazo, o administrador
profissional se preocupa com a prosperidade da organização no contexto de suas diversas
relações internas e externas. Um processo social na tomada de decisões ganha dimensões
dentro da empresa e o interesse único do acionista deixa de ter o monopólio e a palavra
final sobre as ações práticas e estratégicas da firma. Outros interesses se incorporam às
decisões empresariais: interesses sociais.
É neste sentido que Bowen se expressa, quando afirma:
“Quando os administradores e outros passaram a pensar
nela como um ente com interesses e vida próprios, isto
foi, de fato, um rompimento com a opinião tradicional
de que só importava o acionista. Tornou-se então
possível, como estágio seguinte da evolução, pensar
não apenas na prosperidade da empresa mas também no
impacto desta sôbre os vários grupos por ela afetados,
de que os acionistas são somente um”108.
É neste sentido que a responsabilidade social adentra a empresa, pelas
também mãos de seus administradores profissionais, numa clara manifestação da
complexidade dos diversos, às vezes, antagônicos, interesses particulares dos indivíduos
que ajudam estruturar e compor a própria empresa.
2.2.4 O ordenamento institucional da sociedade
Pensar na constituição de uma sociedade onde impera a liberdade de
expressão e manifestação participativa das pessoas e, noutra, onde existe um poder
totalitário e a negação dos movimentos democráticos, certamente, será de fundamental
diferença para a percepção da responsabilidade social pelas empresas. Quanto maior o grau
de liberdade de expressão das pessoas numa determinada sociedade, maior será o nível de
consciência social que a sociedade terá dela mesma.
108 BOWEN, Howard R. Responsabilidades sociais do homem de negócios, op. cit., p. 109.
77
Para Duarte e Dias109, a “conscientização popular”, que para eles é sinônimo
de “conscientização holística”, surge e se desenvolve na medida em que três aspectos
fundamentais vão ganhando forma e percepção perante os membros da sociedade: as
desigualdades sociais, o poder da empresa e os direitos individuais. Tais pressões sociais
surgidas se posicionam ao redor e, mesmo, por dentro, da estrutura da empresa. A partir de
suas manifestações não há como a empresa ser imune as conseqüências da necessidade de
repensar seu comportamento e seus valores perante a sociedade.
Uma nova espécie de controle social vai tomando corpo no seio da
sociedade e envolve as organizações produtivas. Na perspectiva pessoal de Srour110,
paralelamente, “ao enfraquecimento do controle social exercido pelas agências ideológicas
tradicionais – família, a comunidade local, a escola, a igreja” surgem novas formas de
controles sociais na sociedade atual: “poder de mercado dos clientes”, “pela mídia quando
expressa a vigilância da sociedade civil” e “pelo aparelho jurídico-judiciário do Estado”.
Portanto, na medida que uma sociedade organiza estes modernos
mecanismos de controle social, obviamente, mais eficientes que os tradicionais,
principalmente, nos grandes centros urbanos, a construção da democracia e suas leis, de
um ambiente competitivo com agências governamentais de fiscalização, de consumidores
exigentes devido ao próprio avanço do conceito de cidadania, bem como, por toda a
vigilância da sociedade civil, impõem-se maiores preocupações sobre as ações
empresariais.
Sob as luzes da divulgação de uma mídia, relativamente, mais independente,
livre e eficaz devido a heterogeneidade e eficiência técnica, na divulgação dos fatos pelo
mundo afora, a empresa se vê envolta por uma nova lógica de pressão social que recai
sobre as conseqüências das decisões que venha a tomar. Se suas decisões causarem grande
volume de externalidades negativas, a sociedade como um todo perceberá e irá reagir
prejudicando os interesses da própria empresa.
Entre as empresas concorrentes, aqueles que conseguirem se destacar pelo
respeito ao ordenamento institucional, ganharam o respeito do consumidor e da sociedade
civil. Na verdade, estas empresas estarão construindo uma base sólida e segura para
poderem operar seus negócios, dentro dos limites aceitáveis pela sociedade. Suas relações
109 DUARTE, Gleuso D., DIAS, José Maria A. M. Responsabilidade social: a empresa hoje, op. cit., p. 123. 110 SROUR, Robert Henry. Ética empresarial, op. cit., p. 19-20.
78
públicas serão fortificadas perante a comunidade e a empresa será vista como uma
empresa-cidadã.
Tanto a percepção de uma empresa com responsabilidades cidadã quanto o
poder que os controles sociais exercem sobre a mesma, já se faziam presentes na
formulação original de Bowen. Resguardado as diferenças da realidade temporal vivida
dada a complexidade maior de nosso tempo, a essência é praticamente a mesma, pois o que
se alterou foram às formas concretas da manifestação deste poder social sobre as empresas
e a reação delas sobre tais elementos.
Bowen111 reconhece que tanto as “atitudes do público” quanto a “definição
democrática” daquilo que se espera do homem de negócio, no “lugar e circunstância” da
sua época, são fatores que influenciam a responsabilidade social das empresas. E chega a
explicitá-las, dizendo: “O ponto importante, que um número cada vez maior de homens de
negócios está percebendo, é que o clima da opinião pública e das fôrças políticas em cujo
âmbito funcionam as emprêsas de hoje, difere dràsticamente do de há cinqüenta ou mesmo
vinte e cinco anos, atrás”112. O que não dizer, então, na atualidade, transcorrido quase
metade de um século a partir daquelas observações iniciais.
Cabe ressaltar uma importante característica, o poder de ação da empresa
frente a estes desafios e a própria adoção da responsabilidade social pelas mesmas. A
empresa não é uma organização passiva, ela reage às pressões do meio ambiente. O que
implica perceber que ela também tentará influenciar na construção do aparato de
ordenamento institucional. Na condição de “cidadão”, a empresa tentará exercer seus
direitos políticos e influenciar a sociedade.
Nas palavras de Bowen113: “O próprio fato dêle [homem de negócios] estar
tão interessado na opinião pública e de querer tanto modificá-la, é uma indicação nítida do
poder dessa opinião pública em sua conduta”, ou seja, é opção natural a empresa exercer
papel ativo na construção de um ordenamento institucional que favoreça sua sobrevivência
e seus interesses econômicos. E ela o faz através da aceitação estrategicamente pensada de
uma posição socialmente mais responsável que, dentro da dimensão democrática instituída,
significa reconhecer os interesses de outros grupos sociais e interagir com eles até o limite
da defesa dos interesses próprios.
111 BOWEN, Howard R. Responsabilidades sociais do homem de negócios, op. cit., p. 166-167.
112 Ibidem, p. 66.
113 Ibidem, p. 140.
79
2.2.5 Os valores sociais do homem: a moral e a ética
Tanto a sociedade como também a empresa esta envolta por um conjunto de
valores e crenças, socialmente estabelecidos, que regem as atitudes e o comportamento dos
indivíduos dentro destas estruturas sociais. Portanto, os valores dos homens definem o
comportamento padrão socialmente aceitável que se manifesta na sua cultura. A tradição
de regras e rituais que se manifestam na cultura, podem refletir a expressão destes valores
fundamentais ou apenas a superficialidade de crenças enraizadas na mente dos indivíduos.
Nos interessa aqui ressaltar a importância dos valores fundamentais
estabelecidos numa sociedade e que afetam a percepção da empresa em assumir a
responsabilidade social na sua cultura. É preciso compreender também que, com o passar
do tempo, tais valores fundamentais que regem a vida dos homens mudam na sociedade.
Evoluem. Ademais, a empresa estando contida na sociedade, certamente, receberá a
influencia da manifestação de novos valores sociais em sua cultura organizacional. Na
expressão de Solomon114: “Em última análise, são os valores, e não pessoas ou produtos,
que definem uma empresa e sua cultura”.
Ora, compreender os valores como parte fundamental de uma sociedade,
portanto, também da empresa, implica perceber que através deles é que se terá a regência
das ações concretas socialmente aceitas. Ou seja, por meio da ação real dos homens e das
empresas é que se manifestam os verdadeiros valores sociais que eles acreditam.
Então, pensar na responsabilidade social assumida pela empresa, enquanto
manifestação dos valores dos homens, necessariamente, implica ação de fato e não apenas
discurso. Nas palavras de Solomon115: “Eles estão necessariamente incorporados pelos
executivos, gerentes e funcionários. Os valores, como a cultura em geral, devem ser
vividos. O que cada um diz é bem menos importante do que o que cada um faz”.
Não se tem aqui a pretensão de fazer uma análise profunda de todos os
valores dos homens, porém, chamou a atenção uma questão intertemporal que envolve a
discussão e preponderância dos valores da moral e da ética nas relações dos homens na
sociedade.
114 SOLOMON, Robert. A melhor maneira de fazer negócios, op. cit., p. 86.
115 Ibidem, p. 87.
80
Convém, então, explicitar o conceito de moral e de ética. Conforme Aranha
e Martins116: “a moral é o conjunto das regras de conduta admitidas em determinada época
ou por um grupo de homens” e complementa, dizendo, “moral vem do latim mos, moris,
que significa ‘maneira de se comportar regulada pelo uso’, daí ‘costume’, e de moralis,
morale”. Já ética, para aqueles mesmos autores: “A ética ou filosofia moral é a parte da
filosofia que se ocupa com a reflexão a respeito das noções e princípios que fundamentam
a vida moral” e complementa: “Ética vem do grego ethos, que tem o mesmo significado de
costume”.
Enquanto a moral se reflete no comportamento e nos costumes praticados
pelo homem, num dado período de tempo, a ética é uma atitude filosófica, reflexiva, em
relação a estas práticas moralmente estabelecidas, numa sociedade ou grupo de pessoas.
Srour propicia importante contribuição, ao dizer:
“A ética opera no plano da reflexão ou das indagações,
estuda os costumes das coletividades e as morais que
podem conferir-lhes consistência... A ética visa à
sabedoria ou ao conhecimento temperado pelo juízo. A
moral, em contrapartida, corresponde a um feixe de
normas que as práticas cotidianas deveriam observar e
que, como discurso, ilumina o entendimento dos usos e
costumes”117.
Quer-se com isto demonstrar que há controles sociais informais que
norteiam o comportamento dos homens em sociedade ou agrupados em organizações, na
medida em que a conduta e atitude dos indivíduos (ou grupo de indivíduos) recebem
influência da moral e da reflexão ética socialmente aceitas.
Numa análise dos argumentos iniciais de Bowen, justificando a
responsabilidade social aceita pelos homens de negócios, é possível perceber uma forte
influência da moral religiosa estabelecida na sociedade americana. Os seus argumentos
estão carregados de adjetivos neste sentido, como, por exemplo, ao explicitar o dever e a
116 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução à filosofia. 2. ed. São Paulo: Moderna, 1993, p. 274. 117 SROUR, Robert Henry. Ética empresarial, op. cit., p. 29.
81
responsabilidade dos proprietários: “não exclusivamente visando seus fins egoístas, mas de
maneira a que sirvam às necessidades de tôda a sociedade (...) o dono é um depositário,
responsável perante Deus e a sociedade”118. Ou ainda, quando advoga o dever cristão do
homem de negócios e diz:
“O homem de negócios deve estar imbuído de respeito
pela dignidade e pelo valor essencial de todos os
homens, e de um espírito de compaixão revelado em
suas relações com os operários, fregueses,
fornecedores, competidores e outros com quem tenha
transações comerciais”119.
Esta concepção religiosa, portanto, moral, permeia toda a filosofia da
argumentação inicial de responsabilidade social. Do ponto de vista do trabalho, diz aquele
autor: “A natureza e as condições do emprêgo devem ser tais que o trabalhador perceba
uma finalidade em sua tarefa e tenha noção de estar sendo útil ao próximo no desempenho
de seus encargos diários”120. E do ponto de vista da necessidade econômica externa da
empresa, diz ele: “Só devem ser fabricados produtos condignos para satisfazer as
necessidades respeitáveis do público, e os processos de venda e de propaganda não devem
prejudicar os padrões morais e culturais dêste”121.
E podemos ir além, pois, paralelamente, existe uma incipiente participação
da reflexão e contribuição da ética para a consecução das atividades da empresa. Isto fica
claro quando Bowen reclama por uma maior participação da reflexão ética na indução dos
negócios: “As associações dos diversos ramos de negócios bem poderiam meditar mais a
respeito da criação de códigos de ética comercial e torná-los mais objetivos e concretos”122.
Na medida em que caminha a história do homem, um maior grau de
liberdade de expressão deste homem e de consciência da própria sociedade humana, se
associa a um nível ampliado de responsabilidades, seja a nível pessoal seja empresarial. O
homem herda e constrói sua cultura, seus valores. Vai tomando consciência de si mesmo,
118 BOWEN, Howard R. Responsabilidades sociais do homem de negócios, op. cit., p. 46. 119 Ibidem, p. 53. 120 Ibidem, p. 54. 121 Ibidem, p. 54. 122 Ibidem, p. 192.
82
refletindo. E isto se processa pelo uso, cada vez maior, da ética superando antigos preceitos
da moral tradicional.
A crescente interação dos interesses antagônicos dos diferentes grupos
sociais faz a ética dos negócios considerar “um envolvimento multifacetados com outras
pessoas no mundo”123. Logo, os atos livres e conscientes das empresas exigem,
conseqüentemente, maior grau de responsabilidade, além da simples tradição moral. Ou
seja, a empresa se torna responsável na medida em que responde por seus atos perante os
outros. Faz um exercício de reflexão. Enfim, a empresa passa a considerar com maior peso
o estudo ético de suas ações e as conseqüências advindas destes atos, principalmente,
aquelas conseqüências que afetam as questões sociais e ambientais perante a sociedade.
Cabe reconhecer, então, que as cinco dimensões apresentadas para avaliar as
diferentes perspectivas da empresa se tornar um agente socialmente responsável, não se
acham isoladas uma das outras. Na verdade, interagem entre si forçando um diálogo
necessário para a convivência social dos diferentes homens e suas ideologias, interesses
econômicos, anseios e valores pessoais, num processo contínuo de ação-reação.
123 SOLOMON, Robert. A melhor maneira de fazer negócios, op. cit., p 107.
83
3 RESPONSABILIDADE SOCIAL DA EMPRESA NO BRASIL
3.1 O IMPACTO DO NEOLIBERALISMO ECONÔMICO
Antes de iniciar a avaliação da percepção material da responsabilidade
social, pelas empresas brasileiras, num primeiro momento, é importante situar o país no
contexto de sua inserção na aceitação da ideologia global dominante: o neoliberalismo
econômico.
Enquanto o movimento neoliberal se estruturava política e ideologicamente
nos Estados Unidos da América, na Grã-Bretanha e na Europa continental, a partir do final
da década de 70, forçado pela crise econômica do modelo fordista-keynesiano, no caso
brasileiro, vivemos os benefícios do chamado milagre econômico, na mesma década de 70,
porém, seguido de uma crise brutal nos anos 80, a “década perdida”.
Inicialmente o Brasil foi beneficiado pela extrema liquidez internacional, na
década de 70, elemento favorável ao processo de endividamento brasileiro. Uma forte
acumulação de capital financeiro e geração de crédito, fruto do efeito multiplicador
bancário, se manifestou na Europa e deu origem ao chamado “euromercado de dólares”.
Este fenômeno de concentração monetária teve origem no “desequilíbrio financeiro e
comercial dos EUA, sua ajuda externa à Europa e ao Japão e os fluxos de seus
investimentos no exterior”124 e, junto com os petrodólares, financiou o endividamento dos
paises da América latina.
O país se aproveita deste crédito facilitado para avançar seu “plano nacional
de desenvolvimento autônomo” (II PNB) e solidificar sua inserção tardia na II Revolução
Industrial, viabilizando “aumento extraordinário da capacidade de produção das indústrias
pesadas, de insumos e de bens de capital”. Contudo, a política americana de promover uma
“diplomacia do dólar forte”, no período compreendido entre 1979/82, faz a dívida externa
do Brasil sofref forte elevação, multiplicando-se por três, e leva os paises do terceiro
mundo a crise de inadimplência dos anos 1980/82125. O ajuste da economia americana pela
via das altas taxas de juros, também fez ruir o sonho brasileiro do crescimento econômico
fácil e sustentado. No período entre 1982 a 1991, fluiu da América Latina cerca de US$
124 CANO, Wilson. América Latina: do desenvolvimento ao neoliberalismo. In: FIORI, José L. Estados e moedas no desenvolvimento das nações. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999, p. 293.
125 TAVARES, Maria da Conceição. Império, Território e dinheiro. In: FIORI, José L. Estados e moedas no desenvolvimento das nações, op. cit., p. 470-477.
84
195 bi em pagamentos de serviço da dívida externa para o sistema bancário
internacional126.
Durante toda a década de 80, o Brasil se vê forçado a implantar inúmeros
planos econômicos, no sentido de combater os desajustes estruturais, todos mal sucedidos,
e a buscar a geração de vultosos superávits comerciais para dar dos pagamentos da conta
dos juros e amortização da dívida externa. Paralelamente, ao movimento de estatização da
dívida externa, surge, conseqüentemente, sua irmã gêmea, a dívida pública interna, e o país
encontra os limites estruturais que o impede de continuar a crescer de forma equilibrada.
A adoção do modelo de substituição de importações por tempo prolongado
favoreceu o aparecimento de uma estrutura de mercado imperfeito, um mercado cativo às
empresas com baixo nível de concorrência interna e externa que, durante a crise
inflacionária deste período, apenas repassavam os aumentos de custos ao mercado sem
maiores preocupações com as questões de produtividade e eficiência. Restou ao Estado
brasileiro a tentativa de utilizar as empresas estatais como fonte de refinanciamento
externo, simultaneamente, instrumento de controle da inflação pela adoção de tarifas
públicas defasadas. Nem seria preciso enfatizar o uso político destas empresas e,
principalmente, do próprio aparato burocrático-administrativo do governo para gerar
empregos.
No quadro internacional, ao longo dos anos 80, os paises desenvolvidos
reestruturam suas economias. Seus Estados fazem parte do dever de casa e suas empresas
transnacionais passam a necessitar essencialmente de novos mercados para exploração. A
nova ideologia neoliberal servirá justamente para confrontar-se com os limites
institucionais existentes nos países subdesenvolvidos, Estados nacionais soberanos de
caráter interventor, desajustados estruturalmente, com o intuito de provocar mudanças
institucionais, produtivas e financeiras para que favoreçam a nova ordem econômica
global.
A política econômica neoliberal justificada para os países em dificuldade
financeira, se faz constituir a partir das recomendações do Consenso de Washington
(1989). Em síntese, as recomendações dos técnicos do FMI, Banco Mundial e Banco
Interamericano do Desenvolvimento advogavam disciplina fiscal, reforma tributária,
liberdade de movimentação para o capital financeiro, liberdade comercial, privatização e
126 HAVRANEK, Alice & BARSOTTI, Paulo. Notas sobre o Estado e a Política neoliberal. In: COGGIOLA, Osvaldo (org.). Capitalismo: Globalização e Crise, op. cit., p. 213.
85
desregulamentação dos mercados, proteção à propriedade intelectual, estabilização da
economia e incentivo à retomada dos investimentos estrangeiros. Enfim, era a defesa
justificada da abertura das economias subdesenvolvidas ao comércio internacional e a
entrada dos capitais externos, bem como, a redução do tamanho do Estado e sua
estruturação financeira.
Diante da desestruturação financeira do Estado brasileiro, e após diversas
tentativas frustradas de combate inflacionário, a eleição democrática do governo Collor,
em 1990, representou esta desesperança e o início da opção neoliberal no país,
ironicamente, simbolizados na caça aos marajás enquanto representação da ineficiência do
Estado. De início a abertura da economia brasileira a concorrência externa, o incentivo à
entrada de capitais estrangeiros e o desenvolvimento de uma política de privatizações,
visando diminuir o tamanho e a intervenção do Estado na economia, representava o
processo de desregulamentação estatal.
Com defasagem de uma década o país se vê inserido na lógica econômica
dominante, o que é prontamente reforçado pelo conjunto de medidas sugeridas pelo
chamado Consenso de Washington para adequação estrutural das economias
subdesenvolvidas, principalmente, as latino-americanas. O neoliberalismo brasileiro se
associa aos supostos ideais de modernidade e progresso econômico frente às mazelas
provocadas pelo gigantismo do Estado e promove a abertura acelerada da economia
brasileira à competição comercial externa, bem como, idealiza um projeto de privatizações
das empresas estatais, que tem continuidade no governo Itamar e toma forma mais
acentuada no governo Fernando Henrique Cardoso (FHC).
Quanto às posições colaborativas de FHC acerca do domínio neoliberal e
sua implementação, podemos sintetiza-las a partir da visão crítica de Alcoforado127 que
encontra no conceito da “teoria da dependência”, de autoria do próprio FHC e Enzo
Faletto, as bases lógicas de um pensamento sociológico que não percebe no neoliberalismo
econômico uma ameaça ao desenvolvimento do país. Ao contrário, descreve a
industrialização possível das economias dos países subdesenvolvidos justamente pela ótica
do “desenvolvimento dependente associado” ao capital internacional.
Acrescenta ainda aquele autor que na visão de FHC a “burguesia de
Estado”, a burocracia econômica, não dispunha mais de condições para gerenciar o
progresso do Estado-Nação devido a maior complexidade desenvolvida pelo sistema 127 ALCOFORADO, Fernando. Globalização. São Paulo: Nobel, 1997, p. 114-116.
86
capitalista, ou seja, devido à incapacidade de controlar sua própria economia interna. Em
sendo assim, o Estado não dispõe de capacidade para moldar o progresso da Nação, pior,
ele mesmo é um obstáculo aquele progresso, o que, portanto, requer sua reformulação.
Aceitar esta posição é reconhecer que o papel do Estado deva ser alterado. É
aceitar o modelo de inserção das economias nacionais subdesenvolvidas no cenário
internacional sob a égide passiva das suas políticas econômicas, no bojo de uma crescente
interdependência global. É aceitar o capital internacional como única fonte de geração da
riqueza e do progresso do país. Isso significa reconduzir o Estado às suas funções básicas
de prestação de serviços de educação, saúde e segurança, ou seja, ao Estado mínimo.
Neste sentido a proposta de FHC seria reorientar a atuação do Estado
ineficiente para a realização de “parcerias criativas”. Ao invés de produzir, considerar a
colaboração do empresariado; ao invés de atender sozinho às demandas sociais, considerar
o papel das organizações não governamentais; e ao invés de definir a forma das relações de
trabalho, aperfeiçoa-las pela participação dos sindicatos.
Devemos reconhecer, portanto, que os novos ideais político vigentes no
Brasil estão em perfeita sintonia com a visão neoliberal econômica e com as orientações
estruturais emanadas pelo Consenso de Washington, tendo contrapartida exata nas ações
do poder executivo que estão sendo implementadas pelo governo FHC.
Desta forma, podemos passar a avaliar as causas materiais concretas da
manifestação da responsabilidade social das empresas, no caso brasileiro. Para tanto,
tomaremos como base de raciocínio lógico, o quadro formado pelas cinco dimensões
desenvolvidas no item anterior.
3.2 DIMENSÕES DA RESPONSABILIDADE SOCIAL DA EMPRESA, NO CASO
BRASILEIRO
Embora a manifestação de responsabilidade social da empresa seja um
fenômeno recente no mundo, sua evolução não deixa dúvidas em concluir que esta é uma
filosofia que vai penetrando nos modelos de gestão empresarial, independentemente do
tamanho da empresa. Cada vez mais empresas procuram explorar este conceito no sentido
de se manterem firmes e atuantes no mercado.
87
Segundo Duarte e Dias128, somente no final dos anos 70, as idéias de
responsabilidade social da empresa começaram a chegar aos países “periféricos”;
simultaneamente, a crise econômica dos anos 80, na América Latina, também válida para o
caso brasileiro. Esta conjuntura econômica desfavorável, prejudicou uma construção mais
efetiva da percepção da responsabilidade social pelas empresas do país.
Coincidentemente, para o caso brasileiro, é justamente nos anos 90, em
plena vigência de subordinação nacional aos ideais econômicos neoliberais e a tentativa de
inserção mais pronunciada do país no processo de “globalização”, que as empresas e a
sociedade passam a perceber a responsabilidade social da empresa como um tema que vem
ganhando rápido destaque nacional. Segundo Carcanholo129: “A globalização pode ser
definida, então, como uma fase específica da economia em que as atividades das firmas, os
fluxos comerciais e financeiros adquirem caráter planetário. Tudo isso reflete-se em novas
características do sistema econômico.” Ou então, segundo Hirst e Thompson130: “A
globalização, em seu sentido radical, deveria ser considerada como o desenvolvimento de
uma nova estrutura econômica, e não simplesmente uma mudança conjuntural”.
Ainda que se considere mais novo o movimento de responsabilidade social
da empresa, no Brasil, cabe destacar o exemplar papel de fomentador institucional da idéia
que vem sendo exercido pelo Instituto Ethos. Com pouco mais de dois anos, operante
desde julho de 1998, com sede em São Paulo, este instituto é parceiro do seu co-irmão,
mais velho, o Business for Social Responsability (BSR), nos EUA, com idade de pouco
mais de oito anos.
Para se ter a real dimensão do poder de influencia que é e está sendo
exercido, por estes institutos, convém destacar que o BSR “tem 1600 associados que
respondem por um faturamento da ordem de 1,5 trilhão de dólares” e o Instituto Ethos
“reúne 214 empresas associadas. Um levantamento prévio do perfil de 78% destas
empresas revela um resultado parcial significativo: o faturamento somado é de R$ 119
bilhões, o que, para efeito de comparação, equivale a 14% do PIB. E essas empresas
128 DUARTE, Gleuso D., DIAS, José Maria A. M. Responsabilidade social: a empresa hoje, op. cit., p. 46-47.
129 CARCANHOLO, Marcelo D. Globalização e neoliberalismo: os mitos de uma (pretensa) nova sociedade. In: MALAGUTI, Manoel L. et al. A quem pertence o amanhã?: ensaios sobre o neoliberalismo. São Paulo:Loyola, 1997, p. 199.
130 HIRST, Paul e TOMPSON, Grahame. Globalização em questão. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 21-22.
88
empregam 470 mil pessoas”131. Anteriormente, o Instituto Ethos contava com 70
associados que reuniam um faturamento anual em torno de US$ 15 bilhões132.
A evolução da mudança de comportamento empresarial, no caso brasileiro,
é perceptível. Conforme declarou Oded Grajew133, empresário e atual presidente do
Instituo Ethos, no Simpósio Nacional de Empresas e Responsabilidade Social, realizado na
cidade de Ribeirão Preto, em novembro de 1999: “Há dez anos, quando se procurava uma
organização para pedir a ela que investisse em ações sociais, costumávamos ouvir: Tudo
bem, vou fazer um sacrifício, vou fazer uma doação”. Segundo levantamento do Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), no Brasil, em 1998, 67% das empresas
pesquisadas na região sudeste já direcionavam recursos monetários praticando algum tipo
de ação social134.
Conforme cita Melo Neto e Froes135, estudo do Banco Mundial, de março de
1999, denominado “Parceria, pobreza e cidadania” caracteriza um aumento da participação
das empresas, em todo o mundo, em projetos sociais. E salientam a pesquisa de “Kanitz &
Associados” que estimou em R$ 1,728 bilhões os investimentos em projetos sociais, das
400 maiores entidades filantrópicas do Brasil. Ou seja, os dados demonstram existir uma
sensível atuação social conjunta envolvendo empresas, governo, ONG’s e sociedade civil.
Enfim, fica claro, que com o desenvolvimento da consciência empresarial, a
chamada empresa-cidadã brasileira tem possibilitado um avanço considerável na sua
atuação, direta ou indiretamente, seja em projetos de cunho social ou ambiental. Torna-se
então fundamental avaliar, sob a perspectiva das dimensões que, anteriormente foram
encontradas, as causas materiais que requereram o pronunciamento deste fenômeno da
responsabilidade social das empresas, para o caso brasileiro.
3.2.1 A concepção ideológica da sociedade capitalista
De imediato, fazendo um paralelo com as questões levantadas nos
primórdios da responsabilidade social da empresa, no caso americano, na década de 50,
131 OLIVEIRA NETO, Waldemar de. Responsabilidade social no Brasil e no mundo.Revista Mercado Global, São Paulo, n. 107, junho, 2000, p. 53-54. 132 SOLOMON, Robert. A melhor maneira de fazer negócios, op. cit., p. 271. 133 GRAJEW, Oded. O que é responsabilidade social. Revista Mercado Global, op. cit., p. 47.
134 SROUR, Robert Henry. Ética empresarial, op. cit., p. 263. 135 MELO NETO, Francisco Paulo de e FROES, César. Responsabilidade social e cidadania empresarial: a administração do terceiro setor, op. cit., p. 22 e p. 9.
89
pode-se afirmar seguramente que, no caso brasileiro, pós anos 90, não se trata de uma
defesa do sistema capitalista frente a algum sistema social opositor. Bem porque, a queda
do muro de Berlim (1989) e a dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
(1991) caracterizaram o colapso do sistema comunista na Europa. Não existe mais nenhum
sistema social à altura de combater o capitalismo, no mundo, pois mesmo a China se vê
invadida aos poucos pelo sistema privado de empresas e Cuba quase nada representa a
nível internacional. Não há, por enquanto, risco institucional ao capital privado mundial.
A ideologia capitalista em questão está agora relacionada à defesa dos
interesses da liberdade econômica, da supremacia do livre jogo das forças do mercado, da
forma mais abrangente possível, portanto, livre das garras do Estado intervencionista. A
influência do Estado sobre os setores econômicos possíveis de serem exploradas pelo setor
privado, logo, pelas suas empresas, deve ser retirada, deixada livre para o capital privado.
Ademais, o próprio Estado brasileiro está com suas finanças públicas comprometida pelo
alto custo financeiro da dívida interna e as empresas estatais perderam a capacidade de
investimentos.
A obrigação que se entende agora enquanto expressão da ideologia
capitalista dominante é a da diminuição do tamanho do Estado, diminuição do Welfare
State e suas benesses aos indivíduos socialmente pouco comprometidos com a eficiência
do sistema econômico. Ou seja, o momento atual reflete uma necessidade ideológica de
desmonte do aparato produtivo econômico e social subordinado às ordens do Estado
keynesiano.
O processo acelerado de globalização econômica, principalmente, a partir
dos anos 70, nos países desenvolvidos, e a nova ideologia neoliberal, chega defasado no
Brasil em pouco mais de uma década. A abertura econômica implementada pelo governo
Collor, no início dos anos 90, marca o começo da adesão ideológica que o país faz pela
opção neoliberal. Portanto, também marca o início do desmonte do aparato social erguido
sob a regência do Estado forte em benefício da lógica de mercado, das relações de troca.
Antes dos anos 90, na década de 80, o empresariado brasileiro via
essencialmente na função do Estado uma clara obrigação de suporte social às necessidades
da população carente, inclusive, para aqueles que fossem seus funcionários. O que implica
em posicionar a responsabilidade social da empresa, num plano secundário de importância
dado à urgência da necessidade de sobrevivência da empresa, em meio à aguda crise
econômica da época.
90
Vejamos a opinião dos empresários brasileiros naquela época, na década de
80, relacionando responsabilidade social da empresa e o papel do Estado. Com a finalidade
de poder analisar este viés nacional, um importante trabalho de pesquisa realizado por
Tomei, num grupo composto de 45 pequenas e médias empresas e 20 grandes empresas,
viabiliza constatações neste sentido. Na opinião dos pequenos e médios empresários, numa
clara visão a nível micro, pode-se tomar como referência uma frase emblemática: “Eu acho
que a principal responsabilidade social do empresário é gerar empregos, dar condições para
que o trabalhador viva bem”136. Já para os grandes empresários, numa visão mais macro do
processo:
“Uma sociedade decadente resultaria a longo prazo
num ambiente empresarial menos viável. Portanto, uma
empresa deve assumir uma posição de ativo e bom
cidadão não apenas no que diz respeito à forma de
conduzir os negócios, mas também desempenhando
alguma liderança na direção em que a sociedade está se
mobilizando. Isto assegurará que pelo menos os seus
interesses sejam considerados”137.
Ou seja, se para a pequena empresa conceder emprego já é sua função
social, para a grande empresa “alguma liderança” pode ser feita na área da
responsabilidade social, contudo, sem nenhuma conjectura concreta do que poderia vir a
ser feito. É nesta direção que as empresas, na década de 80, estão mais preocupadas
consigo mesmas do que exercerem um papel realmente ativo na área de interesse social,
portanto, exógena à natureza primária da empresa.
A própria autora conclui, dizendo: “Muitos empresários de ambos os grupos
afirmaram que este tipo de preocupação com responsabilidade social é irrelevante para o
momento atual, independentemente da viabilidade ou não da prática de responsabilidade
136 TOMEI, Patrícia A. Responsabilidade social de empresas: análise qualitativa da opinião do empresariado nacional. Revista de Administração de Empresas, Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, v. 24, n. 4, out-dez, 1984, p. 195.
137 Ibidem, p. 195.
91
social; a situação do país exige outras prioridades”138. Enfim, numa conjuntura de crise,
primeiramente, importa a sobrevivência da própria empresa.
Em contraposição, a função social do Estado e sua obrigação enquanto ator
político principal está bem definida, na cabeça dos empresários. Notamos isso a partir das
seguintes declarações: “A função do Estado é muito precípua para mim, dentro da
sociedade. E uma das funções do Estado é internalizar aquilo que os economistas chamam
de externalidades”, ou ainda, “O atendimento às necessidades básicas da população
brasileira nas áreas de assistência médica, alimentação, educação, habitação e emprego não
é fundamentalmente um problema econômico ou financeiro, mas uma questão de vontade
política”139.
Num mesmo sentido, ainda que requerendo um acanhado afastamento do
Estado das atividades de produção, a tarefa social maior permanece sob a responsabilidade
do Estado, como também é possível notar nestas falas dos empresários: “A ênfase no papel
do Estado como produtor de bens e serviços deve ser substituída por profunda atuação no
campo social, com o objetivo de proporcionar a todos menor desigualdade no acesso á
oportunidade.”, ou ainda, “Uma empresa deve estar voltada para os problemas sociais,
embora a liderança da questão deva ser função do Governo”140. O que implica subordinar o
atendimento das necessidades sociais da população, essencialmente, sob a tutela do Estado.
O domínio ideológico neoliberal, contraditoriamente, rompe com a
passividade do empresariado na medida em que a reorganização do poder público, nos
moldes do Estado mínimo, deixa suas conseqüências perversas. Passa a existir um espaço
livre para a exploração econômica (de troca) das tarefas que antes eram básicas da
atividade de Estado: previdência, assistência médica, educação, entre outras, bem como, o
próprio Estado se manifesta insuficiente para dar conta das demandas sociais urgentes que
se manifestam na sociedade: desemprego, criminalidade, enfim, tensão social. Na
avaliação de Mattoso141, o neoliberalismo no Brasil fez destruir mais de 3 milhões de
empregos nos anos 90, elevando as taxas médias anuais de desemprego total de 8,7% em
1989 para 19,5% em 1999.
138 TOMEI, Patrícia A. Responsabilidade social de empresas: análise qualitativa da opinião do empresariado nacional, op. cit., p . 199.
139 Ibidem, p. 199 e 200. 140 Ibidem, p. 200 e 199. 141 MATTOSO, Jorge. O Brasil desempregado: como foram destruídos mais de 3 milhões de empregos nos anos 90. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999, 13.
92
A diminuição da participação do papel do Estado na sociedade requer que
este espaço seja ocupado por outro ator social: a empresa-cidadã. As palavras de Antonio
Jacinto Matias, vice-presidente do banco Itaú, deixam transparecer esta importância: “Se
investir em educação e saúde é decisivo para o país, também é condição essencial para que
uma empresa moderna evolua na construção da imagem de “empresa-cidadã” e tenha êxito
em suas metas empresariais”142. Ou seja, uma nova realidade se estabeleceu no mundo
social e dos negócios no Brasil.
3.2.2 O fundamento econômico da empresa
O processo de abertura da economia brasileira, ao longo dos anos 1990,
impôs uma urgente necessidade de reorganizar o modelo de gestão empresarial no país,
pois as empresas viviam num sistema protecionista do mercado nacional (economia quase
fechada) que não exigiam maiores cuidados vinculados ao padrão de competição acirrada.
O processo de incentivo a substituição de importações chegara ao fim.
Com a alteração do padrão de competitividade do mercado brasileiro, agora
mais aberto à concorrência de um maior número de empresas de porte internacional, uma
reestruturação produtiva se faz presente seja ao nível dos métodos de produção seja ao
nível da nova mentalidade exigida da empresa. Novos padrões “tecnológicos e
organizacionais” precisavam ser rapidamente incorporados à empresa, no processo de
modernização forçada a que ela está sendo submetida, sob pena de ser eliminada do
mercado.
Inovações do tipo programas de “Qualidade Total” e “Reengenharia”
viraram moda no meio empresarial como forma de aumentar a qualidade dos produtos da
organização, paralelamente, objetivando a redução nos custos. Níveis hierárquicos são
eliminados na área administrativa e técnicas de lean production (sem gorduras de pessoal)
são introduzidas nas fábricas. Automação e terceirização passam a fazer parte do novo
cenário produtivo.
Em pleno desenvolvimento da Terceira Revolução Industrial, o país adentra
mais uma vez tardiamente ao novo paradigma, agora denominado padrão de “acumulação
flexível”, em substituição ao modelo fordista de produção e acumulação de capital. Isto
não implica dizer que o modelo do fordismo tenha sido de todo eliminado, ao contrário, 142 SROUR, Robert Henry. Ética empresarial, op. cit., p. 270.
93
ambos modelos, o velho e o novo, convivem na mesma dimensão social. O termo padrão
de acumulação flexível é utilizado por Harvey143 para designar a necessidade pós-moderna
de “flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e
padrões de consumo”.
A modernização da economia brasileira, enquanto tentativa de integração do
país ao cenário capitalista neoliberal, sofre grande influência do poder do maior agente
mundial: a empresa transnacional. Numa relação clara de dependência sistêmica, Dowbor
descreve:
“O grupo de grandes empresas transnacionais que
efetivamente domina o processo de transformação
econômica exerce assim um poder extremamente vasto.
Este poder, articulado com o peso econômico, político,
midiático e militar do Primeiro Mundo, transforma a
maior parte dos atores sociais do planeta, e em
particular os do Terceiro Mundo, em meros
espectadores que tentam, sempre com atraso, se
adaptarem de forma relativamente menos prejudicial às
vertiginosas transformações do capitalismo
dominante”144.
Esta nova ofensiva de vertente neoliberal do capital, a nível mundial, ao
criar uma complexidade de inovações no âmbito da produção, intra-empresa, seja a nível
local, regional ou mundial, também obriga a empresa a conviver com elementos de ordem
político-institucionais, outras empresas e instituições sociais, que resultam numa percepção
da empresa como “sujeito-cidadã” do mundo145.
A “mundialização do capital” capitaneada pelos benefícios da evolução
tecnológica (microeletrônica e programação em computadores) permite uma automação
143 HARVEY, David. Condição pós-moderna. 9 ed. São Paulo: Loyola, 2000, p. 140. 144 DOWBOR, Ladislau. A reprodução social: propostas para uma gestão descentralizada. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 88. 145 ALVES, Giivanni. Nova ofensiva do capital, crise do sindicalismo e as perspectivas do trabalho – o Brasil nos anos noventa. In: TEIXEIRA, Francisco J.S. et al. Neoliberalismo e reestruturação produtiva: as novas determinações do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 1998, p. 150.
94
flexível das estratégias de produção mundial da empresa, com aprofundamento no processo
de divisão do trabalho, operacionalizando uma complexa “rede de empresas
especializadas” dentro da mesma companhia ou de empresa prestadora de serviços
(terceirizada), elos de ligação, simultaneamente, “a maior precisão de fabricação”146.
Cabe esclarecer que o significado do termo mundialização, utilizado por
Chesnais147, caracteriza: “dois movimentos conjuntos, estreitamente interligados, mas
distintos. O primeiro pode ser caracterizado como a mais longa fase de acumulação
ininterrupta do capital que o capitalismo conheceu desde 1914. O segundo diz respeito às
políticas de liberalização, de privatização, de desregulamentação e de desmantelamento de
conquistas sociais e democráticas, que foram aplicadas desde o início da década de 1980,
sob o impulso dos governos Thatcher e Reagan”. Neste trabalho, o foco se dá,
essencialmente, no segundo aspecto, que se funde com o termo “globalização”, enquanto
causa ideológica-estrutural do movimento de acumulação de capital, no período recente.
Com isto, percebe-se que o fator de competitividade da empresa brasileira
passa a incorporar elementos estruturais do sistema de concorrência a nível mundial, os
quais se acham operantes em outras organizações produtivas e vai ganhando contornos a
nível nacional. Esta mudança na forma de organizar a empresa exige uma reação local em
sintonia com o sistema total. Nas palavras de Chesnais148: “A competitividade de cada
companhia, tomada isoladamente, possui uma dimensão sistêmica ou estrutural: é uma
expressão dos atributos do contexto produtivo, social e institucional do país”.
A percepção da responsabilidade social da empresa, segundo seus interesses
econômicos, do ponto de vista das relações internas, recebe o impacto mais profundo da
modificação no padrão de organização da produção mundial, a partir da abertura da
economia brasileira. A substituição paulatina do modelo fordista de organização da
produção pelo modelo flexível, bem como, a maior nível de competição no país, acarreta a
exigência de um novo tipo de funcionário e estabelece numa nova etapa do relacionamento
deste com a própria empresa.
A eficiência produtiva do modelo fordista está baseada na racionalização
profunda do trabalho, mecanização, produção em massa de bens padronizados e salários
146 CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996, p. 108.
147 Ibidem, p. 34.
148 Ibidem, p. 121.
95
crescentes. No processo de trabalho, um tipo específico de funcionário é requerido,
segundo Kaplinsky apud Ferreira:
“O ‘fator humano’ neste processo de trabalho
hierarquizado e autoritário tem as seguintes
características: os trabalhadores encarregados das
tarefas parcelares de produção são vistos como
mercadorias não dotadas de capacidade de pensar;
como soldados de infantaria, o trabalho deles consiste
muito mais em obedecer ordens e imposições da
máquina do que no exercício de alguma iniciativa ou
criatividade”149.
Implica reconhecer que o funcionário exerce um papel secundário na
composição do nível de competitividade da empresa, pois a técnica e os instrumentos da
administração científica bastariam para resolver satisfatoriamente os desafios de mercado.
Ou seja, a grande maioria dos funcionários serve apenas como “mão-de-obra”.
Com o deslocamento do foco, na estrutura globalizada de mercado, da
demanda para a oferta, no período pós anos 70, o sistema de linha de produção do fordismo
encontra dificuldades em atender as rápidas variações nas mudanças de modelos
(qualitativas) do produto, bem como, as variações nas pequenas quantidades de diversas
produções diferenciadas, numa relação temporal de curto prazo. A qualidade e a rapidez na
elaboração dos produtos ganham destaques como fatores da capacidade competitiva da
empresa exigindo a organização dos trabalhadores não mais em “postos individuais” mas
em “pequenos grupos”, numa “rede de mini-linhas”, organizadas em “cadências flexíveis”
utilizando-se de uma nova base tecnológica (micro-processadores)150.
Surge um novo desafio dentro das empresas, a de coordenar a integração do
trabalhador com outros elementos do processo de produção, diante da nova revolução
industrial, caracterizada pela incorporação de tecnologia (automação e robótica). Ou seja,
Integrar de forma eficiente a “inteligência artificial” das máquinas a “inteligência do
149 FERREIRA, Cândido Guerra. O fordismo, sua crise e o caso brasileiro. Cadernos do Cesit, IE, Unicamp, Campinas, n. 13, ano ?, p. 4.
150 Ibidem, p. 9-14.
96
homem”. Agilidade, eficiência e flexibilização da produção, sinônimos de kanban e just in
time, os novos parâmetros da competitividade empresarial, somadas aos fatores
tecnológicos, determinam uma relação de maior dependência da empresa para com a
capacidade do trabalhador em responder a essa nova filosofia151.
A qualidade e nível do conhecimento requerido da mão-de-obra a fazem
ganhar novo status: a de capital intelectual. Às vezes, até promovida e avaliada dentro das
empresas como sendo o “capital humano”. Na visão de Harvey152: “O próprio saber se
torna uma mercadoria-chave, a ser produzida e vendida a quem pagar mais, sob condições
que são elas mesmas cada vez mais organizadas em bases competitivas”. As múltiplas
tarefas, o aprendizado no trabalho e a ênfase na co-responsabilidade do trabalhador passam
a ser valores internos fundamentais do novo “colaborador” da empresa. Relacionando a
idéia registrada por Dedecca153, referente a alocação do trabalho diante de “ocupação,
funções e tarefas não previamente conhecidas e crescentemente determinadas no nível das
empresas” que, desde os anos 80, já faziam parte dos mercados e das relações de trabalho,
nos países avançados, pode-se, também, concebe-la para o caso brasileiro pós anos 90.
Desta forma, a qualificação dos recursos humanos de uma empresa é fator
de importância vital no processo de inovação numa empresa. E a participação criadora e
inventiva do trabalhador só pode se manifestar e prosperar em ambiente democrático e de
liberdade de expressão. A “alta qualificação da mão-de-obra” é elemento que está na base
da eficiência dinâmica da vantagem competitiva empresarial, bem como, a infra-estrutura
científica e tecnológica, social e urbana local está correlacionada à logística de decisão dos
novos investimentos das empresas transnacionais, diante da liberalização dos mercados
nacionais154.
Ainda que a flexibilidade no processo de produção em escala mundial esteja
resultando no avanço dos níveis de desemprego e precarização das condições (trabalho
assalariado sem carteira ou por conta própria) e das relações (desregulamentação, contratos
temporários e cooperativas irregulares) do trabalho, os trabalhadores diretamente
contratados estarão em melhores condições de atenção e cuidados dedicados a eles pelas
151 KON, Anita. Tecnologia e trabalho no cenário da globalização. In: DOWBOR, L., IANNI, O. e RESENDE, P. E. (orgs.). Desafios da globalização. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 67. 152 HAVEY, David. Condição pós-moderna, op. cit., p. 151. 153 DEDECCA, Cláudio S. Racionalização econômica e trabalho no capitalismo avançado. Campinas: IE, Unicamp, Coleção Teses, 1999, p. 238. 154 BERNARDES, Roberto C. A inovação no capitalismo contemporâneo. In: Capitalismo: teoria e dinâmica atual, op. cit., p. 35.
97
empresas. Parte desta percepção se reflete na seguinte observação de Harvey155: “Surge
então um estrato altamente privilegiado e, até certo ponto, poderoso da força de trabalho, à
medida que o capitalismo depende cada vez mais da mobilização de forças de trabalho
intelectual como veículo para mais acumulação”.
Quer-se aqui frisar a maior importância relativa que os trabalhadores
diretamente contratados pelas empresas passam a ter, diante da nova ordem de organização
da produção. Estes trabalhadores sobreviventes merecem maiores cuidados e atenção por
parte da empresa, bem como, sua família e, até mesmo, aqueles que indiretamente estão
contratados pela mesma, pois desta relação se define a capacidade competitiva empresarial.
Educação e treinamento passam a fazer parte das preocupações e das
atividades empresariais, independentemente, da atuação do Estado, diga-se aqui,
contribuição limitada pela defasagem de resposta do aparato burocrático público, frente às
novas e urgentes demandas do sistema global de formação do conhecimento humano.
Na descrição de Alves:
“Por exemplo, na medida em que cortavam pessoal da
produção e da cadeia hierárquica, as empresas
procuravam investir mais em educação e treinamento
para os empregados e operários, implantando novos
modos de gerenciamento da força de trabalho e de
produção, voltados, principalmente, para envolver o
operário. Surge o denominado gerenciamento
participativo”156.
A responsabilidade social das empresas, no âmbito das relações internas,
com os funcionários e seus familiares, e, porque não dizer, também nas relações externas,
com seus fornecedores ou prestadores de serviços (às vezes, antigos contratados), é
resultado do impacto deste fenômeno de flexibilização das relações de trabalho dado pelo
novo paradigma da produção capitalista a nível mundial que, posteriormente, na década de
90, intensifica-se no Brasil.
155 HAVEY, David. Condição pós-moderna, op. cit., p. 175. 156 ALVES, Giovanni. Nova ofensiva do capital, crise do sindicalismo e as perspectivas do trabalho – o Brasil nos anos noventa, op. cit., p. 139.
98
Utilizando-se da idéia de Dupas157 de que esta “flexibilização introduzida na
economia brasileira pela abertura econômica acelerada”, nos anos 90, provocou alterações
sensíveis de “natureza psicossocial”, a responsabilidade social das empresas voltada,
principalmente, para o cliente interno é uma resposta no sentido de amenizar a
dramaticidade deste fenômeno, na mesma razão, da construção de condições
economicamente vantajosas para aquela organização.
O fator humano dentro das empresas ganha novo destaque na medida que
carrega consigo o conhecimento, ainda que, as novas formas tecnológicas de programação
queiram dele se apropriar, em benefício do capital. A empresa passa a dedicar maiores
cuidados para com o bem-estar de seus funcionários e familiares, procurando viabilizar
ótimas condições para o desempenho profissional do seu colaborador. Eis aqui a
necessidade de responsabilidade social da empresa, diante da perspectiva do interesse
econômico, voltado para o ambiente interno da organização.
Quanto à responsabilidade social da empresa, segundo o interesse
econômico, voltado para o ambiente externo, ela também pode desempenhar importante
papel na diferenciação da capacidade competitiva daquela organização perante seus
concorrentes. As empresas transnacionais ou nacionais buscam maior interação com a
sociedade local onde operam suas atividades econômicas, visando obter aprovação e
receptividade para os seus produtos.
Segundo Giddens apud Melo Neto e Froes158: “nessa era da globalização a
participação em atividades coletivas está se tornando um fator decisivo na constituição de
identidades pessoais”. Ou seja, construir identidades junto aos consumidores da
comunidade onde atua a empresa é aspecto de relevância fundamental no processo
concorrencial. Desta forma, as empresas podem atuar em atividades educacionais, de
saúde, assistencial e ecológica buscando vincular sua imagem de empresa-cidadã junto à
sociedade.
Esta atuação socialmente responsável da empresa, certamente, se torna uma
vantagem competitiva. Com a imagem empresarial fortalecida junto à sociedade, a
empresa-cidadã obtém maiores retornos de vendas, fidelização da clientela e, portanto,
preservação das suas operações, numa perspectiva de longo prazo. Para Melo Neto e
157 DUPAS, Gilberto. Economia Global e exclusão social: pobreza, emprego, estado e o futuro do capitalismo. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 127. 158 MELO NETO, Francisco Paulo de e FROES, César. Responsabilidade social e cidadania empresarial: a administração do terceiro setor, op. cit., p. 17.
99
Froes159: “A elevada consciência social de uma empresa, o exercício pleno da sua
cidadania empresarial e o volume dos seus investimentos sociais constituem o que
denominamos de tripé da autopreservação empresarial”, ou seja, ação social e
ecologicamente correta é a garantia de um fator adicional na construção da capacidade
competitiva da empresa.
A abertura da economia brasileira, a elevação da concorrência entre
empresas locais, nacionais ou transnacionais, já estabelecidas, e as empresas
transnacionais, que vislumbram sua participação no mercado nacional, trazem consigo o
estabelecimento de novas “estratégias de diferenciação da oferta e de fidelização da
clientela”. Segundo Chesnais160, um passa a existir movimento de aproximação natural das
“companhias, em relação aos consumidores que escolheram como alvo”. Esta aproximação
trará como conseqüências novas formas de promoção das vendas e o acirramento da
competição entre as empresas, no Brasil.
Ao comentar a enorme capacidade da empresa transnacional em definir um
planejamento empresarial vinculado a planos estratégicos, táticos e operacionais,
integrados numa mesma direção, Silva expressa o debate em questão, da seguinte forma:
“Considerando-se o lucro como o objetivo financeiro
principal de qualquer empresa, outros objetivos vêm ao
encontro deste como forma de continuá-lo, de perpetuá-
lo. As empresas costumam definir um objetivo social e,
por vezes até, um objetivo ecológico, de compromisso
com o meio ambiente (isto é, de não agressão,
preservação e proteção do meio ambiente). Deste
modo, os objetivos financeiros, sociais ou mesmo
ecológicos de empresas vêm direcionar seus planos de
ação”161.
Não se pretende com isso dizer que antes não havia nenhuma manifestação
de ações sociais e ecológicas, por parte das empresas no país, apenas deve-se registrar o
159 MELO NETO, Francisco Paulo de e FROES, César. Responsabilidade social e cidadania empresarial: a administração do terceiro setor, op. cit., p. 96.
160 CHESNAIS, François. A mundialização do capital, op. cit., p. 124.
161 SILVA, Jorge Vieira. A empresa transnacional, op. cit., p. 49.
100
fato de que a abertura da economia brasileira impõe uma nova dinâmica, mais intensa, dos
interesses da empresa para com estes temas. Portanto, a imagem que a comunidade local
faz da empresa pode ser um grande diferencial de mercado.
A inserção mais pronunciada do Brasil num mercado global e aberto expõe
o país a todo tipo de influências externas, tendendo a potencializar mais rapidamente uma
nova marca da sociedade pós-moderna: a “compressão do espaço-tempo”. Segundo
Harvey162: “chamarei de ‘compressão do espaço-tempo’ (...) no mundo capitalista – os
horizontes temporais da tomada de decisões privada e pública se estreitam, enquanto a
comunicação via satélite e a queda dos custos de transporte possibilitam cada vez mais a
difusão imediata dessas decisões num espaço cada vez mais amplo e variegado”. Desta
forma, as empresas podem se aproveitar mais eficazmente desta nova condição pós-
moderna para tirar vantagem competitiva, a nível global e local, ao mesmo tempo, que
outras empresas as pressionam sistemicamente com inovações e comportamento recém
implementados.
As transformações ocorridas em qualquer sociedade são rapidamente
absorvidas por outras comunidades e, independentemente, da sua situação local concreta,
pressionam as organizações no sentido da adaptação sistêmica. Profundas mudanças se
processam no mundo capitalista e um verdadeiro “bombardeio de estímulos” traz
profundas conseqüências na “psicologia humana”. O mundo se torna volátil demais e esta
tensão abarca o desempenho empresarial. Neste sentido, atuar ativamente sobre esta
volatilidade, no mundo empresarial, implica em “manipulação do gosto e da opinião”
pública mediante a construção de “novos sistemas de signos e imagens”, divulgados
através da publicidade e da mídia, junto aos produtos vendidos pela empresa. O jogo de
imagens se torna fundamental no processo de concorrência, ao associar a empresa:
“respeitabilidade, qualidade, prestígio, confiabilidade e inovação” além do reconhecimento
da marca163.
Explicitamente, Harvey resume desta forma:
“A competição no mercado da construção de imagens
passa a ser um aspecto vital da concorrência entre as
empresas. O sucesso é tão claramente lucrativo que o
162 HARVEY, David. Condição pós-moderna, op. cit., p. 140. 163 Ibidem, p. 259-260.
101
investimento na construção da imagem (patrocínio das
artes, exposições, produções televisivas e novos
prédios, bem como marketing direto) se torna tão
importante quanto o investimento em novas fábricas e
maquinário. A imagem serve para estabelecer uma
identidade no mercado, o que se aplica também aos
mercados de trabalho”164.
Ao apropriar-se da responsabilidade social enquanto forma simbólica,
divulgada por meio da publicidade, para fazer reconhecer a contribuição social que a
empresa dá a comunidade, ação consciente ou não, valor social está sendo agregado aos
produtos comercializados pela mesma. Na verdade, responsabilidade social transforma-se
em mais um instrumento de marketing da empresa.
Segundo pesquisa realizada junto às empresas brasileiras, para justificar
suas ações de responsabilidade social junto à comunidade, pode-se perceber a força desta
lógica: “Para 90% das empresas, porque melhora a imagem institucional da empresa; 74%
acham que há ampliação nas suas relações com a comunidade; 19% acreditam que melhora
a lucratividade; e 34% percebem que há melhora na motivação interna, o que provoca
aumento de produtividade.”165
Não é de se estranhar que no último Natal, no Brasil, tivesse havido um
forte vinculo, por parte de algumas empresas, como por exemplo, Bauducco, Telefônica e
Shopping Eldorado, relacionando a publicidade de seus produtos com suas ações sociais.
Esta foi uma clara tentativa de dar “visibilidade” às suas marcas e aos seus produtos, ao
prometerem aos consumidores, publicamente, reverter parte do dinheiro obtido com as
vendas de Natal para auxiliarem “instituições filantrópicas” 166.
Ao comentar a campanha de vendas da Bauducco, a gerente Renata Borges,
citada no texto, diz que a idéia não é nova na empresa, é antiga, situando as primeiras
tentativas há cerca de três anos atrás. Ou seja, demonstra a incipiente percepção temporal
que as empresas nacionais vêm tendo deste processo. E, a mesma gerente, declara em alto
164 HARVEY, David. Condição pós-moderna, op. cit, p. 260.
165 REVISTA MERCADO GLOBO: No mercado globalizado, empresas socialmente responsáveis pensam no ser humano., op. cit., p. 34. 166 SANTOS, Rui da Silva. Publicidade adota ação social como mote de Natal. Folha de São Paulo, São Paulo, 12 dez.1999, Caderno 4 Dinheiro, p. 2.
102
e bom som: “A Bauducco visa o lucro e isso não é segredo para ninguém. A filantropia só
é feita quando há lucro”167, justificando a expectativa de que a campanha alavancasse em
8% as vendas dos produtos daquela empresa. Este fato isolado também demonstra que, de
forma ainda assistencialista, confunde-se “filantropia” como sinônimo de compromisso
responsável com a ação social.
Finalmente, se pode citar pesquisa nacional recente, de parceria do Instituto
Ethos e do Jornal Valor Econômico168, realizada em maio deste ano, focando o impacto das
práticas empresariais socialmente responsáveis sobre a decisão de compra dos brasileiros,
revelando que, “no último ano, 31% dos consumidores brasileiros, efetivamente,
prestigiaram e/ou puniram empresas com base em suas avaliações sobre a prática, ou não,
da responsabilidade social”. E que 50% das pessoas consideradas líderes de opinião e 40%
das pessoas com maior nível de escolaridade também tiveram o mesmo comportamento.
Outra pesquisa, do Ibope, em maio de 1998, constatou que “68% de um universo de 2000
pessoas responderam que preferem pagar mais por produtos ecologicamente corretos”169.
Embora se possa argumentar que o processo deste movimento de
responsabilidade social das empresas é recente no país, ainda assim, parcela substancial
dos consumidores começa a demonstrar interesse pelo tema e, certamente, o mesmo
processo de análise por parte de outros consumidores, na hora da compra, deverá evoluir
num futuro não muito distante.
3.2.3 A gestão profissional da empresa no Brasil
Falar do avanço da gestão profissional das empresas, no caso brasileiro,
torna-se um desafio, pois o estado desta arte em nosso país sempre evoluiu a reboque das
tendências internacionais. Ou seja, o desenvolvimento das teorias administrativas aplicadas
aqui sempre refletiu os modelos elaborados nos países desenvolvidos, portanto, definindo
uma condição de subordinação e reprodução. É fácil compreender que devido ao estágio
avançado do desenvolvimento econômico, naqueles países ricos, justamente, seus padrões
de gestão empresarial que ditam o ritmo do processo de internacionalização dos interesses
167 SANTOS, Rui da Silva. Publicidade adota ação social como mote de Natal, op. cit., p. 2.
168 ROSEMBLUM, Célia. Imagem social da empresa influencia na hora da compra. Valor Econômico, São Paulo, 13 jun 2000, Caderno E Empresa & Comunidade, p. E1.
169 BARROS, Paulo A. S. de. Criando significados com responsabilidade social. Revista Marketing Industrial: administração do relacionamento entre empresas, São Paulo, n.14, ano 6, maio 2000, p. 12.
103
do capital e, que, por enquanto, lá as teorias administrativas caminham mais rápido para
atender as necessidades de vanguarda capitalista. Nós apenas acompanhamos,
defasadamente, é claro.
Segundo Covre170, nossas primeiras escolas de administração datam de
1952, a Escola Brasileira de Administração pública; em 1954, a Escola Brasileira de
Administração de Empresas de São Paulo; e a mais destacada, a Fundação Getúlio Vargas,
criada em 1944, teve início em 1955 seu primeiro curso de graduação. A profissão do
administrador é regulamentada pela Lei n. 4.760, no ano de 1965, e, na medida em que o
número de grandes empresas, principalmente, estrangeiras, se fazia presente no país, pós
anos 60, ocorre um “surto de ensino superior após 1970” do qual a demanda por
administradores de empresas se torna uma realidade nacional171.
Como se pode notar, a demanda por formação de administradores
profissionais é muito recente no país e reflete a função das próprias mudanças ocorridas no
processo de desenvolvimento econômico e formações sociais verificadas no Brasil. É a
partir da própria evolução das condições materiais de produção da riqueza que o país
requer a contribuição profissional do administrador de empresas.
Interessante notar que Covre172, no prefácio da terceira edição do citado
livro, no último ano da década de 80, registra importantes observações quanto à essência
da formação do administrador profissional: “a do atendimento ao capital”. A principal
delas é a tendência para a formação de um profissional que a autora denominou de
“vanguarda”, pois “provinham de ambiente com uma visão de mundo dominante” e cientes
da “expectativa de que cumprissem o seu papel histórico”. Pode-se aduzir que estava
nascendo um profissional “tipo moderno” com preocupações em servir ao capital, mas
também “preocupado em servir ao trabalho”, nas palavras da autora, graças ao “momento
histórico de certa abertura que passávamos”. Ou seja, um certo cheiro de democracia no ar
estava colaborando para a formação mais global do principal profissional da gestão
empresarial.
Não muito antes, no final dos anos 70, Drucker já registrava, com
entusiasmo o caráter multidimensional do estudo da administração, também, por ele,
considerada “muito jovem”, tanto quanto o surgimento das “organizações modernas”, e
170 COVRE, Maria de Lourdes Manzini. A formação e a ideologia do administrador de empresa. São Paulo: Cortez, 1991, p. 65. 171 Ibidem, p. 71-84. 172 Ibidem, p. 7-10.
104
advertia para a necessidade de uma percepção do ambiente social a sua volta. Relata o
autor:
“Finalmente, no tocante à administração das
repercussões sociais e das responsabilidades sociais da
empresa os administradores precisarão aprender a
meditar sistemática e cuidadosamente nas difíceis e
arriscadas ‘trocas’ entre necessidades conflitantes e
direitos conflitantes”173.
Ou seja, com razoável avanço nos países desenvolvidos, o tema da
responsabilidade social da empresa já se achava mais envolto ao debate acadêmico e ao
mundo empresarial. Conceito que, na forma descrita pelo autor, reflete uma discussão
sobre o que “a empresa deve ou pode fazer para enfrentar e resolver os problemas
sociais”174.
Para entender a chegada do tema da responsabilidade social da empresa,
ligada à necessidade de um gestor profissional, com maior vigor, nos anos 90, no Brasil,
basta atentar para a complexidade das mudanças organizacionais e sociais que acabaram
por requerer um novo olhar sobre a sociedade, por parte da própria empresa.
Nosso caso particular não apresenta um mercado de capitais tão pujante que
fomentasse uma intensa divisão entre posse-gestão do capital nacional, bem porque, não é
esta nossa cultura capitalista. Logo, este não é um fator decisivo na percepção da
responsabilidade social da empresa de capital nacional. Contudo, a mera presença de
empresas estrangeiras, participação intensificada a partir da abertura da economia, bem
como, os novos desafios empresariais que se apresentam complexos, naturalmente,
requerem um maior número de gestores profissionais (capacitados) dentro das empresas e
participando das decisões.
Na medida em que a ideologia neoliberal privilegia as decisões da sociedade
pela via das ações de eficiência do mercado, automaticamente, a atuação das empresas,
neste ambiente, se fará sentir nesta direção, a qual necessariamente deverá ser coordenada
por um profissional capacitado para tanto e que receba uma carga de conhecimentos já
173 DRUCKER, Peter F. Introdução à administração. São Paulo: Pioneira, 1984, p. 686. 174 Ibidem, p. 324.
105
desenvolvidos em centros de estudos administrativos mais avançados. Portanto, como já se
reconhecia à responsabilidade social da empresa enquanto instrumento administrativo de
intervenção sobre o meio interno e externo a empresa, passamos a reconhecê-la também
em nossas ações de gestão empresarial pelas mãos dos administradores formados pelas
melhores academias. O que não significa generalizar, é claro.
Na medida que integramos a economia do país ao mundo globalizado, mais
rapidamente, a partir dos anos 90, as decisões das empresas serão afetadas por este
processo. Os profissionais da área empresarial, por sua vez, também serão afetados pelas
teorias administrativas modernas e passarão a usa-las enquanto instrumentos de gestão, na
tentativa de proteger a organização empresarial das ações dos concorrentes.
Num cenário econômico globalizado que vai internacionalizando a
economias dos diferentes países, a presença das empresas transnacionais e suas estruturas
de influência local, por meio de um sistema de redes de empresas, que vai conectando e
condicionando o desenvolvimento das pequenas e médias empresas, altera em muito o
comportamento da gestão profissional das empresas no país. Novas técnicas de gestão
empresarial, paulatinamente, passam a fazer parte das ações estratégicas de grande parte
das empresas. A responsabilidade social das empresas é uma expressão destas inovações
das técnicas gerenciais.
Lúcia Bruno nos dá um exemplo dos primórdios desta forma de intervenção,
baseada no avanço das noções das teorias de administração, quando analisa a intervenção
da empresa nas questões sociais, dizendo:
“É interessante assinalar que, já nos anos trinta, Elton
Mayo (1880-1948), o principal teórico da Escola de
Relações Humanas, preocupado com o radicalismo dos
conflitos sociais, suscitados pela sociedade industrial,
propunha que as empresas atuassem no sentido de
promover a integração, o controle, a coesão e a
cooperação social, uma vez que o estado e a sociedade
em geral mostravam-se incapazes de fazê-lo”175.
175 BRUNO, Lúcia. Poder e Administração no capitalismo contemporâneo. In: OLIVEIRA, Dalila A. Gestão democrática da educação: desafios contemporâneos, Petrópolis: Vozes, 1997. p. 25.
106
Significa dizer que na medida que o Estado não demonstra capacidade para
resolver problemas sociais, a empresa pode ser requerida para ajudar a fazê-lo. Na atual
vigência do ideal de um Estado mínimo, como é a tendência do caso brasileiro, que possui
baixa eficácia na resolução de problemas sociais, a empresa encontra este espaço para atuar
nas questões sociais.
A moderna gestão da empresa sofreu grandes transformações nos anos que
precederam a abertura da economia brasileira. As novas exigências tanto internas quanto
externas de eficiência às empresas fazem surgir um novo conceito: o management.
Segundo Chanlat176: “Contudo, o termo management não designa unicamente práticas e
processos. Ele compreende também pessoas que detêm postos na hierarquia das empresas:
os diretores, os gestores, os executivos e os gerentes”.
Desta forma, os “atores” da gestão empresarial ganham destaques enquanto
partes fundamentais e integrantes do processo. Mas não apenas isso, a gestão estratégica
das empresas passa a considerar a interação com a “prática social”, ou seja, as relações
pessoais interagindo com os fatores sócio-culturais do ambiente onde opera a empresa.
Toda esta nova perspectiva vai além das questões do estudo da cultura organizacional. Na
verdade, busca-se agora desenvolver a capacidade cognitiva da própria empresa, pois na
nova era global tudo se transforma rapidamente. A capacidade de aprender rápido torná-se
um fator decisivo, num mundo fragmentado, flexível e altamente competitivo.
Resgatando os ideais do movimento de relações humanas ressurge a questão
da solidariedade como forma de manter a coesão social. Justificando o interesse por este
novo ingrediente (a solidariedade) na gestão empresarial, diz Chanlat177: “Nos últimos
anos, essa questão passou a ocupar importância capital em razão do aumento das taxas de
desemprego, da precariedade crescente e da expansão da exclusão social que conhecem
vários países de economia central e emergente”.
Enfim, as novas práticas empresariais procuram se manifestar sobre este
tema e registram através de símbolos socialmente visíveis sua contribuição social à
resolução dos problemas da comunidade. As dimensões humanas e sociais se integram
numa visão comum da prática da gestão empresarial.
176 CHANLAT, Jean-François. Ciências Sociais e management: reconciliando o econômico e o social. São Paulo: Atlas, 1999, p. 31. 177 Ibidem, p. 47.
107
3.2.4 O ordenamento institucional da sociedade brasileira
O desenvolvimento do conceito e da própria percepção da responsabilidade
social, numa visão chamada “progressista”, que ao considerar a obtenção de lucro legitimo
o vincula à necessidade da empresa assumir uma postura social, trás consigo um novo
ingrediente a discussão: o poder social.
Keith Davis ao traçar um quadro de certezas, no final da década de 70,
destaca esta questão enquanto um dos pontos de consenso moderno ligado ao tema de
responsabilidade social, o qual é registrado por Guimarães da seguinte forma:
“A responsabilidade social emerge do poder social.
Como as decisões empresariais têm conseqüências
sociais, estando relacionadas ao sistema social global,
elas não podem ser tomadas com base unicamente em
fatores econômicos. A tomada de decisão deve
obrigatoriamente se guiar por ações que também
projetam os interesses da sociedade”178.
A proteção dos interesses sociais refletidas pelas ações socialmente
responsáveis da empresa não pode ser considerada uma ação meramente voluntária. É na
verdade conseqüência de um processo de interação empresa-sociedade que exige da
primeira uma atitude mais responsável. Uma nova postura empresarial vai sendo moldada
pelo movimento das forças sociais e o exemplo nasce em sociedades mais esclarecidas e
avançadas, nos anos 60 e 70, e vai se alastrando pelo resto do mundo. Na visão de
Guimarães:
“Com o aguçamento da consciência de cidadania da
sociedade civil nos países desenvolvidos e com a força
adquirida pelos movimentos das minorias e
principalmente pelo movimento ecológico, passou a ser
cobrada dos proprietários de empresas uma maior
178 GUIMARÃES, Heloísa Werneck Mendes. Responsabilidade social da empresa: uma visão histórica de sua problemática. Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 24, n. 4, out-dez 1984, p. 216.
108
amplitude de responsabilidade sobre diversos aspectos
de sua atitude”179.
Considerando um mundo global, onde uma nova estrutura de poder social se
estabelece, os Estados Nacionais e sindicatos perdem importância relativa perante a
sociedade. Os novos agentes da dinâmica do processo capitalistas são as empresas
transnacionais que reagem e utilizam novas técnicas para se imporem. Na observação de
Lúcia Bruno:
“a atuação das grandes empresas que, conscientes do
poder político que detêm e exercem, buscam legitimar-
se através do mecenato cultural e artístico, além de
diferentes formas de intervenção nas áreas sociais, seja
através de Organizações Não-Governamentais (ONGs),
seja através dos sistemas de parceria com o Estado
Central”180.
Uma nova realidade no jogo das forças sociais se estabelece entre empresa-
sociedade e também tem suas ramificações explicitadas na criação de um aparato jurídico-
legal ou em mudanças nos padrões de comportamentos sociais que agora afetam a cultura e
a ação empresarial. Todo este processo se manifestará com maior ou menor intensidade em
função da possibilidade de liberdade de expressão dos interesses dos diversos participantes
que co-existem na sociedade.
Antes da década de 90, este movimento de participação das forças sociais na
sociedade brasileira é pouco significativo. A crise dos anos 80 coincide com o a chegada e
o desenvolvimento teórico nacional do tema responsabilidade social da empresa,
retardando-o. Tomei, nos proporciona importante relato das condições da época:
“Os raros empresários que alegaram ter sofrido
pressões externas para assumir responsabilidades
179 GUIMARÃES, Heloísa Werneck Mendes. Responsabilidade social da empresa: uma visão histórica de sua problemática, op. cit., p. 215. 180 BRUNO, Lúcia. Poder e Administração no capitalismo contemporâneo, op. cit., p. 28.
109
sociais pertencem ao grupo I [grandes empresas] e se
referiam a responsabilidades particulares, como
programas de emprego e condições de trabalho,
qualidade de produto e, em menor número de casos, ao
controle da poluição. A origem destas pressões se
concentra nas agências administrativas governamentais,
embora haja casos em que elas foram fruto de iniciativa
de grupos privados”181.
Ou seja, pensar em assumir responsabilidades sociais não fazia parte da
realidade do modelo de gestão das empresas no país, a não ser que houvesse uma certa
imposição do poder estatal. Ademais, é somente neste período, na última metade da década
de 80, que se inicia o processo de redemocratização da nação brasileira.
Após o aprendizado inicial de elaboração da nova Carta Magna, a
Constituição Federal de 1988, seguido da primeira eleição direta no país, em 1989, depois
de mais de 30 anos, o que permitiu aos cidadãos escolherem o presidente, tais eventos
marcam uma nova fase no país. O Brasil inicia uma caminhada tardia na recuperação da
cidadania esquecida. O poder autoritário do Estado começa a ser diminuído na prática
social. Portanto, é nos anos 90 que a liberdade de expressão e um maior nível de
consciência social vai sendo construído no país, a partir da manifestação das forças sociais
que passam a modelar um novo ordenamento institucional.
Do ponto de vista empresarial, é marcante o reflexo da evolução social
recente do país que se pode fazer pela leitura do “Documento dos Líderes” empresariais,
uma manifestação pública das idéias daquela classe social, pois reflete justamente as
preocupações possíveis de serem manifestadas de acordo com as preocupações prioritárias
do seu tempo.
Três documentos foram produzidos pelo Fórum de Líderes Empresariais:
em 1978, 1983 e 1997. Em 1978, o Documento dos Oito, centrava sua atenção na
necessidade de “retorno do País ao estado de direito”, pois existia no país uma procura pela
abertura democrática dos direitos políticos dos homens. Em 1983, o Documento dos Doze,
se debatia sobre o modelo econômico do país centrando sua atenções na “revisão dos
181 TOMEI, Patrícia A. Responsabilidade social de empresas: análise qualitativa da opinião do empresariado nacional, op. cit., p. 196.
110
limites, das funções e do tamanho do Estado”, ou seja, na participação excessiva do Estado
na economia. Finalmente, embora, tardiamente, elaborado em 1997, o Documento dos
Líderes182, intitulado “Cidadania e Riqueza Nacional: o resgate do social na prosperidade
econômica”, demonstra a sua preocupação com as questões sociais.
Num dos trechos, daquele documento datado de 1997, aprovado pelo fórum
em fevereiro de 1998, fica explícito a nova preocupação social:
“A exclusão sócio-econômica não conviverá por muito
mais tempo com as inclusões já conquistadas nas
dimensões civil e política. Ou buscamos soluções
estratégicas, inteligentes e razoáveis para a inclusão
sócio-econômica ou ela virá pelas vias do reformismo
ideológico, dogmático, autoritário e assistencialista”183.
Uma nova mentalidade empresarial, ainda que forçada pelas contingências
da estrutura social, começa a se manifestar no caso brasileiro e servirá de base para o
avanço da percepção da responsabilidade social das empresas, numa fase mais atuante e
participativa destas organizações produtivas.
Embora as questões relativas à cidadania sejam recentes em nosso país,
simultânea e paralelamente, caminhou o avanço da pobreza e da exclusão social, sendo,
justamente, estes elementos que propiciaram uma maior participação da sociedade civil
ligada às questões sociais. Na Grande São Paulo, segundo Singer184, a participação
percentual dos desempregados na população economicamente ativa evoluiu de 7,3% , em
outubro/89, para 13,8%, em outubro/95. E no Brasil, segundo Pochmann185, a taxa de
desemprego total cresceu de 6,7%, em 1989, para 14,2% em 1996. Um avanço
significativo do chamado Terceiro Setor está se verificando no país e, na busca por
recursos financeiros, estreita seus laços com as empresas. Entidades filantrópicas,
entidades de direitos civis, ONGs, organizações e movimentos sociais, fundações e
182 DOCUMENTO DOS LÍDERES. Cidadania riqueza nacional. Gazeta Mercantil, São Paulo, 18 fev 1998, Caderno Relatório, p.1 183 DOCUMENTO DOS LÍDERES. Cidadania riqueza nacional, op. cit., p. 1. 184 SINGER, Paul. Globalização e desemprego: diagnóstico e alternativas. 3 ed. São Paulo: Contexto, 1999, p. 115.
185 POCHMANN, Márcio. O trabalho sob fogo cruzado: exclusão, desemprego e precarização no final do século. São Paulo: Contexto, 1999, p. 105.
111
instituições sociais das empresas proliferaram com rapidez no país. O número de pessoas
ocupadas neste setor evoluiu 44, 38%, aumento de 775.384 pessoas, em 1991, para
1.119.533, em 1995186.
Um destaque particular merece ser citado, a contribuição de Betinho,
Herbert de Souza, que em 1996, presidindo o Instituto Brasileiro de Análises Sociais
(IBASE), deu início à campanha contra a fome e a pobreza, incitando os empresários e
sociedade civil a participar conscientemente deste programa. Além do Instituto Ethos,
outras associações de iniciativa empresarial merecem ser citadas: o Grupo de Institutos,
Fundações e Empresas (GIFE), criado em 1996, e o Instituto de Cidadania Empresarial,
criado em 1997187.
Em conseqüência deste movimento das forças da sociedade civil, o
comportamento socialmente responsável da empresa passou a ser parte integrante das
preocupações da sociedade. Ademais, a colaboração decisiva da mídia, principalmente,
televisiva, jornalística e virtual, mais livre e democrática, passou a criticar e informar todos
os segmentos da população brasileira, em tempo real, das carências sociais vividas por
grande parte de quase-cidadãos nacionais. Não havia como a empresa se recusar ao convite
da participação, direta ou indireta, do debate sobre o tema da responsabilidade social e dar
sua contribuição material. A sociedade mudou.
Por fim, convém citar que a construção de um aparato jurídico-legal, mais
eficiente, colaborou para o exercício da responsabilidade social por parte das empresas.
Dentre eles, além da própria Constituição federal e da criação das Agências Nacionais,
podemos registrar: o Código de Defesa do Consumidor, Lei no. 8.078 de setembro de
1990; a nova legislação de defesa da concorrência por meio da Lei no. 8.884, de 1994, que
somente agora veio a fortalecer as decisões do Conselho Administrativo de Defesa
Econômica – CADE, fundado em 1962188; e o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei
no. 8.089, de 1990, juntamente, com o Conselho Nacional de Defesa da Criança e do
Adolescente (Condanda), criado pela Lei no. 8.242, de 1991189.
186 MELO NETO, Francisco Paulo de e FROES, César. Responsabilidade social e cidadania empresarial: a administração do terceiro setor, op. cit., p. 27.
187 BNDES. Empresas, responsabilidade corporativa e investimento social, www.bndes.gov.br, p. 11-12.
188 OLIVEIRA, Gesner. Defesa da livre concorrência no Brasil: tendências recentes e desafios à frente. Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 39, n. 3, jul-set 1999, p. 18.
189 VEIGA, João Paulo Cândia. A questão do Trabalho Infantil. São Paulo: Associação Brasileira de Estudos do Trabalho, ABET, 1998, p. 123-136.
112
Neste sentido, as forças sociais ordenadas institucionalmente, segundo um
aparato legal formal ou informal, vão construindo uma teia de obrigações e convenções
sociais que cercam as empresas e exigem delas um comportamento socialmente
responsável perante os outros participantes da sociedade, ainda que, muitos estejam
excluídos economicamente.
3.2.5 Os valores sociais do homem brasileiro: a moral e a ética
No caso brasileiro, a abertura da economia, nos anos 90, beneficiada pela
revolução tecnológica e pela pressão da mídia, mais atuante e eficiente, na divulgação dos
fatos em tempo real, certamente, colaborou para o desenvolvimento de uma nova ordem
institucional, formalmente estabelecida por leis ou ações socialmente praticadas pela
sociedade. Aos poucos a influência da ética, ainda que incipiente, vai aparecendo nas
modificações das práticas morais e culturais do povo brasileiro. Esta transformação
também afeta a cultura organizacional das empresas e suas ações concretas no mercado.
Aos poucos a invasão do mundo e das idéias econômicas neoliberais impõe algumas
reformulações na cultura brasileira e, conseqüentemente, no estilo de gestão empresarial,
ditadas na direção da eficiência.
Do ponto de vista da formação moral do Brasil, o velho dilema histórico
entre as práticas da “moral da integridade” e da “moral do oportunismo” serão reavaliadas
segundo a nova percepção social que se constrói a partir da reflexão ética. Comparando as
duas morais, Srour descreve a moral da integridade como sendo um “sistema de normas
morais que corresponde ao imaginário oficial brasileiro e configura o comportamento
considerado decente e virtuoso. Essa moral é ensinada nas escolas e nas igrejas, serve de
pauta aos tribunais e à mídia mais responsável”, ao passo que, a moral do oportunismo
“repousa no mais estreito interesse pessoal, num egoísmo mesquinho que, na ânsia de obter
vantagens e saciar caprichos, despe-se de quaisquer escrúpulos”190.
Então, a conduta do brasileiro oscila entre as duas morais. Uma qualificada
segundo os que são chamados de “otários”, por tentarem seguir o caminho da moral da
integridade, e a outra por aqueles que são chamados de “espertos” por adotarem a moral do
190 SROUR, Robert Henry. Ética empresarial: posturas responsáveis nos negócios, na política e nas relações pessoais, op. cit., p. 150-152.
113
oportunismo como prática social. A primeira considerada inocente e ingênua, a segunda
considerada imoral.191
Nas palavras de Srour, descrevendo as oscilações morais características da
formação do povo brasileiro:
“Agentes híbridos. Ambíguos quanto às suas culpas e
inseguros quanto às suas razões. Moldados por uma
moralidade casuística – tão louvada quanto são a
mistura das comidas, a miscigenação das raças, o
sincretismo das religiões, ou o jogo das inversões nos
carnavais, em que se confundem hierarquias, gêneros
ou papéis”192.
Já no plano abstrato da distinção entre os tipos de ética, que passam a
influenciar e a condicionar a moral vivida pelo brasileiro, há que se considerar a distinção
entre a “ética da convicção” e a “ética da responsabilidade”. Pois, a preponderância de uma
delas é que irá ditar as mudanças na cultura da sociedade.
A ética da convicção, como descrita por Srour:
“é uma ética das certezas e dos imperativos categóricos,
das ordenações incondicionais e das mentes perfiladas.
Repousa no conforto das respostas acabadas e das
verdades absolutas (...) Lembra de algum modo o
misticismo religioso, na medida em que as orientações
pressupostas são recebidas como sagradas. É uma ética
saturada pela universalidade de sua profissão de fé”193.
É fácil perceber que esta ética é uma “ética da fé”, dos “mandamentos”,
portanto, rígida demais para os padrões de exigências de flexibilidades da nova ordem
191 SROUR, Robert Henry. Ética empresarial: posturas responsáveis nos negócios, na política e nas relações pessoais, op. cit., p. 155.
192 Ibidem, p. 158.
193 Ibidem, p. 72.
114
global. É ela que embasa a moral da integridade e, portanto, desaba aos poucos com a
construção do novo mundo. É a ética da consciência que se transforma apenas num sonho.
A ética da responsabilidade, descrita por Srour:
“é uma ética das dúvidas ou das interrogações, uma
ética que se subordina ao exame das circunstâncias e
dos fatores condicionantes. Enfrenta a vertigem das
controvérsias e o desafio das soluções incertas.
Desemboca em prognósticos. É uma ética situacional,
aberta, cética e condicional, em busca do ‘horizonte
possível’ de cada época, moldada pelas análises de
risco e precariamente estribada em certezas provisórias,
sujeita à dinâmica dos costumes e do conhecimento. É
uma ética saturada pela historicidade de seu projeto”194.
Percebe-se que é uma ética totalmente adaptável a nova ordem mundial,
representada pela lógica máxima de que “somos responsáveis por aquilo que fazemos” e o
que conta são os resultados positivos para o maior número de pessoas possível, portanto,
está embasada pela visão utilitarista. É a “ética da razão”, dos “pés no chão”, do
pragmatismo.
Ora, na medida em que a ética da responsabilidade ganha terreno no campo
das práticas sociais, conseqüentemente, clama por ações socialmente responsáveis das
pessoas e das organizações. É a sua preponderância que justifica a assunção de
responsabilidade social por parte das empresas, no mundo globalizado. Por parte daqueles
que tem o “pé no chão”: empresários, administradores, políticos, entre outros. Através dela
se viabilizam decisões complexas pela via da reflexão e do conhecimento.
O racionalismo do programa neoliberal, imposto ao Brasil, pelas orientações
do Consenso de Washington, ao privilegiar a eficiência nas ações pessoais e empresariais,
impõe ao país não apenas a necessidade de uma nova ética, mas, principalmente, a adoção
de novos padrões de comportamento e costumes de ordem moral. A ética da
responsabilidade ao ser pressionada pela ética do mercado (da eficiência) condiciona a
194 SROUR, Robert Henry. Ética empresarial: posturas responsáveis nos negócios, na política e nas relações pessoais, op. cit., p. 72.
115
nova moral exigindo atos concretos na mesma direção, porém, daquilo que nos é possível
fazer.
Ao reconhecer os interesses, às vezes, antagônicos, outras vezes,
coincidentes, dos stakeholders, mas, sobretudo, integrados numa nova visão social, a
empresa assume uma nova postura na conduta dos seus atos morais. Uma conduta
moralmente responsável para atender o maior número de interessados possíveis,
considerando as suas possibilidades. Surge uma outra moral, a da parceria.
Embasada sob a égide do conceito de eficiência que exige “profissionalismo
e idoneidade”, a moral da parceria visa construir um sentido de cooperação entre os
agentes sociais participantes da nova sociedade global. Uma espécie de “ganha ganha”,
pois sem parceiros não haveria vencedores.
Na descrição de Srour195, a moral da parceria envolve “um discurso
refletido, com adoção de padrões de conduta centrados em interesses de médio e longo
prazo” que “implica numa crítica à miopia imediatista” e visa “ao benefício mútuo, num
processo de cooperação que, em geral, institucionaliza-se através de relações contratuais
que tendem a ser duradouras”, por isso, a necessidade da “idoneidade nas transações”.
Isto não significa dizer que a corrupção e as distorções no comportamento
moral tenham sido, totalmente, eliminadas do meio empresarial, no caso brasileiro. Ao
contrário, permanecem vivas sob uma nova roupagem: a “moral da parcialidade”. Nas
palavras de Srour:
“A moral da parcialidade corresponde a um
compromisso ambíguo entre a lealdade nas relações
particulares e a conveniência nas relações com os
‘outros’. Espelho da moral do oportunismo, ela
funciona em benefício daqueles que detêm um ‘capital
de relações sociais’ e, ipso facto, opera em detrimento
dos que ficam além do círculo de giz”196.
195 SROUR, Robert Henry. Ética empresarial: posturas responsáveis nos negócios, na política e nas relações pessoais, op. cit, p. 179-180 196 Ibidem, p. 165.
116
Decorrente da nova construção social criada para servir ao novo padrão
global de acumulação de capital, as relações no seio da sociedade brasileira, aos poucos,
vão se alterando ao longo dos anos 90. Novas perspectivas passam a fazer parte da gestão
empresarial brasileira. Embora não haja, de forma alguma, consenso a respeito do
comportamento de responsabilidade social das empresas brasileiras, muito já se construiu e
está sendo construído neste país, principalmente, de forma acelerada, nos últimos anos. As
novas idéias estão em ebulição ética. Declarações de empresários, neste sentido, passam a
ser cada vez mais comuns, como por exemplo, em outubro de 1998, a de Guilherme Peirão
Leal, sócio da Natura:
“Você é empresário? Isso é com você. Ah, você é
funcionário? Também é com você. Estou falando de
responsabilidade social, ética, filantropia. Esse
comportamento se caracteriza por uma coerência ética
nas suas ações e relações com os diversos públicos com
os quais interage, buscando minimizar os efeitos
negativos de suas atividades e aproveitar as
oportunidades existentes para contribuir para o
desenvolvimento contínuo das pessoas, das
comunidades e de suas relações entre si e com o
ambiente. (...) Responsabilidade social é – ou deveria
ser – um assunto estratégico de negócios”197.
Recente pesquisa sobre a percepção da ética na atividade empresarial, no
Brasil, divulgada pela Fundação Instituto de Desenvolvimento Empresarial (FIDES)198, faz
uma comparação da evolução deste comportamento empresarial compreendida entre os
anos de 1993 e 1999. Algumas importantes conclusões daquele documento merecem nossa
atenção, dentre elas:
- a maior preocupação ética das empresas está relacionada ao
cumprimento das legislações;
197 SROUR, Robert Henry. Ética empresarial: posturas responsáveis nos negócios, na política e nas relações pessoais, op. cit, p. 264. 198 DOCUMENTO FIDES no. 2. Ética na atividade empresarial: pesquisa 1999. São Paulo: Fundação Instituto de Desenvolvimento Empresarial, 2000.
117
- dentre os onze primeiros itens (são 41 ao todo) considerados mais
importantes pelo empresariado, sete se referem a questões da
legislação: Código de Defesa do Consumidor, Legislação comercial
(fornecedores), legislação previdenciária, legislação trabalhista,
legislação societária, legislação comercial (clientes) e legislação
tributária, na ordem;
- a posição do interesse pelos consumidores melhorou da décima-
segunda posição de importância, em 1993, para a terceira posição;
- os dois primeiros itens de maior preocupação em 1999 se referem aos
critérios de demissão e admissão, nesta ordem, definidos sem
discriminação;
- dentre os itens menos importantes, em 1999, está em ante-penúltima
posição a manutenção de assistência social;
- programas de controle da poluição ambiental ficou na trigésima-quarta
posição e o zelo pelos padrões de publicidade e propaganda ficou em
vigésimo-oitava, em 1999;
- a postura contra a corrupção permaneceu na vigésima posição;
- as preocupações, classificadas em grandes grupos por natureza de
importância ética, foram: legislação, mercado, atos desonestos,
recursos humanos e comunidade, na grande maioria das empresas,
independente do seu tamanho, nesta ordem, em 1999, porém, em
1993, atos desonestos estavam em último lugar;
- comparando o grau de importância dos stakeholders, ou seja, os
diferentes públicos, em 1999, a classificação das ações éticas focou
sendo: fornecedores, clientes/consumidores, acionistas/investidores,
comunidade local e público interno, nesta ordem, porém, em 1993,
acionistas/investidores ocupavam a última posição;
Como se pode notar ainda há muito que desenvolver na mentalidade ética
empresarial em nosso país, no tocante ao tema da responsabilidade social das empresas.
Percebe-se uma grande preocupação centrada naqueles itens incorporados pela legislação
e, também, com destaque, para os elementos relacionados à sobrevivência da empresa no
mercado (fornecedores e clientes).
118
Comunidade e público interno amargam as duas últimas posições, em
termos da preocupação ética com os diferentes públicos. A evolução, de fato, socialmente
importante registrada, entre 1993 e 1999, marca uma evolução na questão da
discriminação, o que reflete respeito à heterogeneidade da formação do povo brasileiro.
Pode-se registrar certa melhora na atenção para com os atos desonestos, porém não foi uma
evolução significativa.
Enfim, tudo isso reflete não apenas o perfil ético do comportamento
empresarial no país, mas, fundamentalmente, o resultado da formação histórica do povo
brasileiro que está em evolução. Na medida em que o país é influenciado pela necessidade
de novas posturas éticas, moldadas em termos da regência do fenômeno da mundialização,
entendida aqui na concepção original deste termo, tanto a mentalidade empresarial quanto
à dos demais membros da sociedade brasileira absorvem outros valores sociais, portanto,
vai se transformando a realidade da sociedade brasileira.
Considerada a elaboração das dimensões que requerem da empresa uma
postura socialmente responsável e, especificamente, após sua avaliação no caso brasileiro,
convém elaborar uma análise dos possíveis fatores limitantes da eficácia deste
comportamento empresarial, enquanto elemento capaz de contribuir decisivamente para a
geração do bem-estar social, dado o domínio da ideologia econômica neoliberal no sistema
capitalista.
119
4 LIMITES DA EFICÁCIA DA RESPONSABILIDADE SOCIAL DA
EMPRESA
Não existe aqui a pretensão de elaborar uma avaliação detalhada da
contribuição da empresa ao bem-estar da sociedade. Neste último tópico, se pretende
apenas fazer uma reflexão introdutória, no sentido de perceber as limitações e contradições
básicas deste fenômeno, ainda que, em termos genéricos, na sua possibilidade de
contribuição à criação do bem-estar da sociedade.
Enquanto a ideologia econômica neoliberal domina o mundo,
paralelamente, a expansão da pobreza e concentração da riqueza, novas tensões sociais vão
sendo criadas e precisam de respostas. Ainda que sejam parciais algumas respostas
precisam dar conta das necessidades básicas mais prementes da grande maioria dos
desafortunados seres humanos que não encontram guarida social. A absorção da
responsabilidade social pela gestão da empresa é apenas parte da resposta desta complexa
equação social.
Contudo, esta parte da resposta encontra limites. O primeiro deles é a
própria ideologia da sociedade capitalista. Uma ideologia que valoriza o indivíduo em
particular, sua satisfação e realização pessoal promovidas pelas vias do livre mercado, ou
seja, por meio das relações de trocas. De imediato é preciso compreender que tais
empresas, ainda que, socialmente responsáveis, estão inseridas numa sociedade cuja
ideologia é capitalista. No bojo desta sociedade resulta a normalidade nas relações de
troca, entre todos os seus participantes, ou melhor, todos aqueles que possuem algo para
ser trocado, que se materializa objetivando a realização de um ganho monetário privado, de
uma vantagem particular.
Como dizem os economistas: “não existe almoço de graça”, naturalmente,
pois tudo tem um valor, tudo tem um preço a ser pago. Ou seja, se alguém ganhou é porque
outro pagou a conta. Alguns serão chamados de vencedores e outros não. No final, quem
vai poder ou ter que pagar a conta? Essa é a questão dialética envolvendo o processo pós-
moderno de construção social do mundo capitalista e o fortalecimento da percepção da
responsabilidade social da empresa.
É da própria natureza do sistema de sociedade capitalista promover
desníveis de ordem sócio-econômica junto a seus membros da comunidade. Adam Smith
apud Heilbroner reconheceu esta questão, ao dizer: “Onde quer que haja grande
120
propriedade, há grande desigualdade. Para cada homem muito rico, deve haver pelo menos
quinhentos pobres, e a propriedade do rico pressupõe a indigência do povo”199.
Na medida em que a sociedade pós-moderna promove a “compressão do
espaço-tempo”, a ideologia capitalista ganha uma nova dinâmica, acelera-se muito na
velocidade temporal e se desloca espacialmente ganhando contornos mundiais. As idéias
de competição e individualidade, sob a égide da eficiência, promovem a construção de uma
sociedade global cada vez mais fragmentada, desigual e insegura.
As relações sociais passam a depender fundamentalmente das práticas e
processos da produção da vida material, sob a liderança da ideologia do capital. Um jogo
de imagens passa a dominar as sociedades, portanto, domina também os homens em suas
relações sociais criando a necessidade de elaboração de um grande espetáculo, agora a
nível mundial, que possa justificar a nova realidade e, ao mesmo tempo, entreter a platéia
na espera ansiosa por uma solução melhor.
Ainda que o espetáculo do neoliberalismo coloque suas bases de raciocínio
lógico sobre a liberdade econômica dos indivíduos, elemento vital na construção de uma
sociedade livre, avançada e desenvolvida, a prática mundana está demonstrando o lado
sombrio desta visão. Integrando a visão neoliberal ao mundo pós-moderno, Bauman nos
proporciona interessante compreensão do caráter ambivalente desta situação, dizendo:
“A condição pós-moderna dividiu a sociedade em
metades, a dos felizes seduzidos e a dos infelizes
oprimidos, com a mentalidade pós-moderna celebrada
pela primeira metade e aumentando a miséria da
segunda. A primeira metade pode abandonar-se à
descuidada celebração apenas porque se convenceu,
satisfeita, de que a miséria da segunda é uma opção
legítima dessa metade ou, pelo menos, uma parte
legítima da estimulante diversidade do mundo. Para a
primeira metade, a miséria é a ‘forma de vida’ que a
segunda metade escolheu – quando nada por levar um
199 HEILBRONER, Robert. A natureza e a lógica do capitalismo. São Paulo: Ática, 1988, p. 33.
121
estilo de existência despreocupada e negligenciar o
dever da escolha”200.
Então, apesar da ideologia neoliberal tentar justificar o óbvio, persiste e se
aprofunda, o dilema da riqueza e da pobreza na sociedade capitalista surgindo daí uma
necessidade, aparentemente, contraditória, porém, muito coerente, de combate-la. Será
preciso rever alguns parâmetros da produção na sociedade para atender, pelo menos em
parte, as carências materiais no plano real, visando amenizar os horrores sociais que
poderiam advir de uma crise na ordem estabelecida.
Na interpretação de Harvey:
“A única questão, portanto, é como exprimir, conter,
absorver ou administrar essa tendência de maneiras que
não ameacem a ordem social capitalista. Deparamos
aqui com o lado heróico da vida e da política burguesa,
em que devem ser feitas escolhas reais para que a
ordem social não se transforme em caos”201.
As empresas são partes integrantes e fundamentais desta dialética da vida
material e social dos homens. Através delas se processa a maior parte da criação da
riqueza, sua apropriação e se estabelecem às formas das relações sociais entre os membros
da sociedade capitalista. Podemos tomar como parâmetro desta relevante importância das
empresas, do ponto de vista do poder econômico, o relato de Clairmont:
“As desigualdades econômicas, sobre as quais se
fundamenta o poder das duzentas maiores
transnacionais, no entanto, encontram-se, igualmente
no interior do ‘clube dos bilionários’: apenas dês
transnacionais geram um lucro anual de 348 bilhões de
200 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de janeiro: Jorge Zaar Ed., 1999, p. 274. 201 Harvey, David. Condição pós-moderna, op. cit., p. 170.
122
dólares, ou seja, aproximadamente o mesmo montante
das 190 restantes (386 bilhões de dólares)”202.
Então, as empresas estão posicionadas no centro de atenções das
contradições da reprodução da vida material dos homens. Mais que isso, elas mesmas são
agentes do processo e, interagindo com o meio social, recebem os reflexos negativos do
mundo em construção. Portanto, são forçadas a reagirem na direção contrária dos efeitos
negativos que elas mesmas ajudaram a promover. Harvey203 nos dá um pequeno exemplo
desta ação, ao comentar a dramaticidade que os “choques futuros” estão promovendo, ao
dizer: “As empresas subcontratam ou recorrem a práticas flexíveis de admissão para
compensar os custos potenciais de desemprego provocado por futuras mudanças no
mercado”.
As empresas vão se adaptando às novas exigências do padrão de
acumulação de capital, numa arquitetura pós-moderna, ao mesmo tempo, que procuram
preservar sua posição e a própria forma da ideologia vigente na sociedade, a capitalista.
Num esforço dialético, as empresas socialmente responsáveis tentam ordenar o ritmo e a
intensidade da apropriação da riqueza, compatível com o bem-estar social e a proteção da
natureza. De um lado, a vontade incontida e insaciável em acumular capital, de outro lado,
a necessidade de responder às demandas sociais e ambientais mais urgentes, para preservar
o sistema e a própria vida do homem na terra. A frase de Jeremy Seatbrook, reproduzida
por Bauman204, reflete a essência deste dilema: “A pobreza não pode ser ‘curada’, pois não
é um sintoma da doença do capitalismo. Bem ao contrário: é evidência da sua saúde e
robustez, do seu ímpeto para uma acumulação”.
Outra questão limitadora do desempenho eficaz da empresa, no campo da
responsabilidade social, é a da necessidade de defender seus interesses econômicos, num
mercado global que vai se estruturando nos moldes da concorrência imperfeita. Ou seja, a
empresa precisa preservar os resultados econômicos, ao mesmo tempo, em que luta para
sobreviver numa estrutura de mercado desigual. Existem aqui três elementos interligados
que merecem ser pensados: primeiro, sem resultado econômico positivo a empresa não
sobrevive; segundo, a obtenção de lucro só se viabiliza por meio de um agente econômico
202 CLAIRMONT, Fréderic F. Sob as asas do capitalismo planetário. In A quem pertence o amanhã? Ensaios sobre o neoliberalismo. São Paulo: Loyola, 1997, p. 42. 203 Harvey, David. Condição pós-moderna, op. cit., p. 263. 204 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p. 87.
123
chamado consumidor; e, terceiro, a estrutura de mercado no mundo real não é
perfeitamente competitivo.
A nova ordem no mundo dos negócios impõe uma ditadura da lógica da
eficiência com especialização. Cada organização produtiva ou prestadora de serviços
precisa se demonstrar altamente especializada naquilo que faz, com extrema competência e
eficiência, tal sorte que não comprometa o seu desempenho econômico. Suas ações e
atenções devem estar concentradas naquilo que ela pode fazer de melhor e, com isso,
garantir uma posição relativamente estável no mercado.
Caso contrário, se houver dispersão, a empresa corre sério risco de não
conseguir acompanhar as modificações verificadas na economia. Bem porque, a principal
característica dos novos tempos, segundo Edward Luttwak, economista e historiador
americano, apud Martin e Schumann205, é “a aceleração do processo de destruição criativa
é a novidade do capitalismo na atual economia de livre mercado”. Ou seja, no melhor das
representações do espírito schumpeteriano, o processo de inovações e reestruturação
econômica se espalha com a velocidade das novas tecnologias, gerando inúmeros períodos
de transição e acomodação impostas sobre as forças produtivas.
Drucker206 expõe este primeiro elemento limitador da responsabilidade
social da empresa, chamando a atenção daquela organização para a necessidade de
viabilizar antes de tudo o cumprimento da sua função primaz. Embora, reconheça na
empresa uma forma de instituição social, portanto, de concentração de poder social, ainda
assim, é preciso considerar os aspectos da ação social empresarial do ponto de vista da
política. Neste paralelo, lembra o autor: “Elas não têm legitimidade, nem competência, em
política”.
Mais que isto, explicita aquele autor: “Mas elas [as empresas] querem coisas
[do governo] que as beneficiem, que as capacitem (ao menos na sua opinião) a realizar
melhor seu próprio trabalho, que se encaixem em seu sistema de valor, ou encham seus
bolsos”207. Ou seja, embora, existam responsabilidades sociais que a empresa deve
observar, o desempenho econômico é mola mestra nesta engrenagem.
Ao se dedicarem a tarefas não relacionadas com a sua função principal, fora
da sua “competência especializada”, portanto, fora das suas “funções especializadas”, a
205 MARTIN, Hans-Peter e SCHUMANN, Harald. A armadilha da globalização: o assalto à democracia e ao bem-estar social. São Paulo: Globo, 1999, p. 253. 206 DRUCKER, Peter. Sociedade pós-capitalista. São Paulo: Pioneira, 1994, ed. 3a., p. 71. 207 Ibidem, p. 71.
124
empresa pode prejudicar a si mesma e também a sociedade. Para ser socialmente
responsável, a empresa necessita do “desempenho econômico” eficaz, sem o qual não
poderá ser nem empregadora nem cidadã. Pior, será socialmente irresponsável se “aceitar
responsabilidades que podem comprometer seriamente sua capacidade para desempenhar
sua tarefa e missão principais.” É preciso que suas ações sociais estejam compreendidas
dentro da sua competência e daí poderem transformar estas ações em oportunidades208.
O segundo elemento desta lógica envolve reconhecer que o vigor do sistema
capitalista depende da criação de demanda efetiva. Na medida em que ocorre a revolução
dita tecnológica e a reestruturação organizacional, a empresa necessita utilizar-se cada vez
menos de mão-de-obra para a realização de suas tarefas. Isto quer dizer que a base técnica-
organizacional de reordenamento contínuo das forças produtivas, constantemente, expele
pessoas para fora do sistema. Mas, a atual organização social transformou-se
essencialmente numa sociedade com suas atenções voltadas para o consumo e não mais
numa sociedade de preocupações típicas da era industrial, ou seja, com ênfase nas tarefas
dos produtores.
A sociabilidade do indivíduo se dá pela sua capacidade de demonstrar-se
enquanto um consumidor voraz e exigente. O que interessa fundamentalmente à
sobrevivência da lógica do mercado, conseqüentemente, das empresas, é que os produtos
sejam realizados. É que os indivíduos se sintam irremediavelmente compelidos à prática do
consumo irrestrito.
No entanto, o consumo dos produtos só se dá pelas mãos dos homens. Isto
nos coloca diante de uma complicação, pois, com o passar do tempo e utilizando-se de
métodos tecnológicos mais eficientes, um grande contingente de indivíduos estará sendo
alijado de participarem do mercado consumidor. Como bem observou Kurz apud
Bandeira209: “robôs produzem muito mas não compram nada”. Portanto, ao mesmo tempo,
as empresas tornam-se mais eficientes, elevam os índices de produtividade, reduzem os
custos e tentam integrar ao mercado consumidor os indivíduos que a ordem natural do
sistema capitalista está excluindo.
Este dilema reflete a necessidade do sistema capitalista inserir no vetor da
demanda os excluídos da economia e do convívio social, aquelas pessoas que querem ter
208 DRUCKER, Peter. Sociedade pós-capitalista, op. cit., p. 70-71. 209 BANDEIRA, Vinícius. Globalização ou crise mundial do capitalismo? In: COGLIOLLA, Osvaldo (org.). Capitalismo: “globalização” e crise. São Paulo: Humanitas Publicações, 1998, p. 197.
125
acesso à renda para poderem consumir. As empresas gostariam que elas tivessem renda
para poderem consumir, porém, a lógica da eficiência requerida pelo sistema capitalista
não permite, pois a renda se concentra nas mãos da minoria. Ser “economicamente
correto” não é tarefa fácil dentro do sistema capitalista, talvez, impossível.
O terceiro e último elemento, a estrutura imperfeita dos mercados, delimita
o impacto positivo que o mercado concorrencial traria sobre a necessidade das empresas
assumirem suas responsabilidades sociais. No mundo neoliberal é justamente através do
efeito da concorrência que os agentes econômicos são obrigados a conviverem numa
situação de criação do bem-estar social. Da mesma forma, é o alto grau de concorrência
que motiva as empresas a se diferenciarem dos seus concorrentes. O que significa adotar
uma postura inovadora, socialmente responsável, para viabilizar sua perenidade no
mercado.
No entanto, o sistema capitalista não vive sob o domínio de um mercado de
concorrência perfeita, ao contrário, domina as estruturas de mercado de concorrência
imperfeita (oligopólios e monopólios). Isto implica em reconhecer que algumas empresas
dispõem de maior poder econômico, portanto, de maiores condições de influenciarem o
mercado que outras. No uso desta prerrogativa, podem e influenciam não apenas o
mercado, mas também o poder político e todo o ordenamento institucional da sociedade, na
direção de seus interesses econômicos.
O mito do livre mercado não existe. A globalização é apenas uma nova
etapa da necessidade do processo de acumulação de capital, agora com vistas ao mercado
mundial. Prova disto é a formação de blocos econômicos e suas intermináveis brigas
comerciais dentro e entre eles, que, quando não resolvidas amigavelmente, são
solucionadas na arena da Organização Mundial do Comércio (OMC). Na perspectiva de
Carcanholo, “não resta a menor dúvida de que a competição entre os diferentes blocos não
será feita no sistema de livre concorrência”210.
Enfim, para representar o ponto de vista das limitações a responsabilidade
social da empresa, dadas pelos seus interesses econômicos, pode-se citar o exemplo da
empresa alemã Bertelsmann, fundada em 1935, que tem os seguintes objetivos delineados
no seu contrato social, de forma clara e, por que não dizer, conflitantes:
210 CARCANHOLO, Marcelo Dias. Globalização e neoliberalismo: os mitos de uma (pretensa) nova sociedade, op. cit., p. 210-211.
126
“1 – A empresa precisa fazer a máxima contribuição
possível à sociedade. Todos os interesses de grupos
ficam subordinados a este objetivo. 2 – (...) É de
responsabilidade da administração garantir a estrutura
interna necessária para tal, assim como harmonizar
interesses conflitantes. 3 – A empresa precisa obter
lucro a fim de garantir sua sobrevivência e a dos
empregos que proporciona”211.
Os aspectos da “máxima contribuição possível”, “harmonizar interesses
conflitantes” e “precisa obter lucro” conferem complexidade dialética à dimensão dos
interesses econômicos e sua interação com a responsabilidade social da empresa. Um
esforço desgastante passa a ser exigido das empresas. É neste sentido que o aparecimento
do chamado Terceiro Setor, realizando parcerias com as empresas, viabiliza melhores
condições de eficiência na gestão dos recursos monetários destinados para atender as
demandas sociais.
Diante deste cenário, os gestores das empresas precisam adotar a postura do
“fazer bem as coisas certas”, com a máxima urgência que a situação organizacional e
social exigem. Contudo, para fazerem as coisas certas se deve obedecer à lógica da
“eficácia eficiente”. Os gestores da organização não estão livres para fazerem o que
quiserem na ajuda das questões sociais, apenas podem fazer o que for possível.
Certamente, eles o farão na perspectiva de “descoberta de novas oportunidades que possam
ser transformadas em motores (geradores) de lucro”212.
Esta situação remete às funções da gestão organizacional, segundo Cunha e
Cunha213, para as seguintes tarefas: “(1) catalisar a construção de uma visão orientadora; e
criar uma cultura de (2) mudança e de (3) obtenção de resultados”. Num paralelo que se
pode fazer com o cenário dialético da responsabilidade social da empresa, acima descrito,
significa requerer da gestão organizacional uma participação ativa na construção dos novos
211 HANDY, Charles. Além do Capitalismo. São Paulo: Makron Books, 1999, p. 150.
212 CUNHA, Miguel Pina e; CUNHA, João Vieira da. Tese, síntese, antítese: contributos para uma teoria dialética das organizações. Revista de Administração Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 3, n. 3, set-dez 1999, p. 13.
213 Ibidem, p. 13.
127
significados da organização, implementação de uma cultura “pró-mudanças” diante dos
novos desafios e tirar proveito rentável deste processo.
Em síntese, o novo padrão de “eficácia eficiente” na gestão dos recursos da
organização, implica garantir a sua sobrevivência a partir da gestão dos “negócios actuais
de forma a gerarem negócios futuros”, em outras palavras, explorar novas oportunidades
no mercado gerando “vacas leiteiras estrelas”214.
Quer-se com isto demonstrar que uma lógica de mudança nos padrões de
comportamento econômico da sociedade capitalista, a partir da sua célula produtora
principal, a empresa, não pode atender na plenitude ao imenso conjunto das carências das
demandas sociais. Não faz parte da função principal da empresa resolver os problemas
sociais, apenas contribuir para amenizar parte deles. A responsabilidade social, assumida
pela empresa, é esta parcela de contribuição assumida perante alguns poucos. Porém, não é
a solução final.
Ademais, a sobrevivência da própria empresa está condicionada no bojo das
reorganizações cíclicas da estrutura da economia capitalista. Além do processo
schumpeteriano da “destruição criadora”, uma tendência natural à ocorrência de ciclos
econômicos é parte integrante da lógica do processo de acumulação de capital.
Na percepção de Kalecki215, um mecanismo natural do ciclo econômico,
com movimentos de depressão e recuperação, se estabelece na sociedade capitalista a partir
do processo de acumulação e inversão de capital. Na medida em que o investimento se
realiza, propicia a possibilidade de crescimento econômico, pelo lado da demanda, porém,
simultaneamente, o excesso de capacidade produtiva criada vai enfraquecendo o
desempenho ao longo do caminho daquele crescimento.
Este movimento cíclico natural da economia capitalista está diretamente
relacionado ao excesso do equipamento de capital que é criado em conseqüência das
decisões de investir das próprias empresas. Nas palavras de Kalecki, explicando o
processo:
“A ampliação do equipamento de capital, isto é, o
aumento da riqueza nacional, contém a semente de uma
214 CUNHA, Miguel Pina e; CUNHA, João Vieira da. Tese, síntese, antítese: contributos para uma teoria dialética das organizações, op. cit., p. 14. 215 KALECKI, Michal. Crescimento e ciclo das economias capitalistas. São Paulo: Hucitec, 3 ed., 1990, p. 26.
128
depressão no curso da qual a riqueza adicional se
comprova ser apenas adicional. Porque uma parte
considerável do capital permanece ociosa e somente
torna-se útil na próxima recuperação”216.
Em outras palavras, a criação excessiva de capital que fica ocioso nas
empresas causa a recessão e, com o tempo, sua carência gera a necessidade de recuperação
econômica. O que implica reconhecer que as próprias empresas se acham à mercê das
conseqüências negativas durante o processo. Principalmente, durante a fase de recessão
econômica que condicionará severos limites à sua capacidade em contribuir com recursos
monetários às necessidades de responsabilidade social requeridas pelo sistema.
Sob a lógica econômica do neoliberalismo, o Estado eficiente não é aquele
que procura atender diretamente as necessidades materiais básicas dos indivíduos, nem
interferirá na reversão do ciclo. O Estado deve ser mínimo, no sentido de influenciar pouco
a economia, porém, positivamente, ao cidadão para ser mais responsável consigo mesmo e
para com os outros. Paralelamente, isto exige um maior grau de responsabilidade social de
cada um perante os seus próprios problemas.
No entanto, na medida que diminui a ação social e interferência econômica
do governo, o indivíduo, deixado a sós com seus problemas, não pode justificar que o
Estado é o causador dos males da sociedade. Conforme retratou Bauman217: a sua “inépcia
ou negligência individual” é a verdadeira causa da injustiça social.
Nesta sociedade pós-moderna, a valorização e liberalização das atividades
econômicas, levadas ao extremo, significam a própria privatização das preocupações
sociais. Então, a dependência social entre as pessoas se dá sob uma nova forma, a da
independência do indivíduo consumidor. Perde, portanto, ênfase o caráter público nas
questões sociais. Descrevendo esta situação ideológica e ambígua da dependência, Bauman
registra:
“uma dependência que é sustentada, reproduzida e
reforçada essencialmente por métodos de mercado, que
é abraçada de boa vontade e não se sente absolutamente
216 KALECKI, Michal. Crescimento e ciclo das economias capitalistas, op. cit., p. 26-27. 217 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência, op. cit., p. 276.
129
como dependência – pode se mesmo dizer: que se sente
como liberdade e um triunfo da autonomia
individual”218.
Porém, dado o caos social que vai se formando, embora a política
econômica neoliberal não queira incentivar o despertar do cidadão que existe dentro do
consumidor, dialeticamente, um movimento de construção da cidadania é arquitetado na
prática para dar conta das contradições sociais do sistema. Mas deve-se destacar, este
movimento de cidadania é regido não mais sob a coordenação do poder público, mas no
âmbito das ações privadas.
Embora a democracia seja cada vez mais colonizada pelo poder da
economia, o que se reflete visualmente na comercialização dos espaços públicos, o maior
número de cidadãos pobres e excluídos em relação aos demais, representa uma constante
ameaça à manutenção do sistema capitalista. A cidadania prometida pela via das ações
sociais privadas de solidariedade, na verdade, revela uma grande tolerância com a própria
existência da pobreza.
Empresas e sociedade civil são chamadas a doar sua contribuição para
favorecer a manutenção do próprio processo que causa a exclusão. Embora, louvável, o
comportamento da empresa-cidadã ao implementar ações sociais, decididas no âmbito da
sua autonomia, portanto, no exercício de sua liberdade, não confere a todos na sociedade
os benefícios desta ação. Na verdade, a liberdade existente é unidirecional, do mais rico
para o mais pobre cidadão, além de restrita àqueles que interessam serem beneficiados.
Tomando como referência à percepção de cidadania, em Handy219, “que nasce do
comprometimento mútuo”, se pode questionar até que ponto existe de fato este
comprometimento.
Nesta reinvenção da cidadania, num mundo democrático e neoliberal, cabe
ressaltar a observação de Drucker220: “Como termo legal, ‘cidadania’ indica mais uma
identificação do que uma ação. Como termo político, ‘cidadania’ significa compromisso
ativo. Significa responsabilidade. Significa fazer diferença na sua comunidade, na sua
sociedade, no seu país”. O que num mundo global capitalista implica reavaliar
218 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência, op. cit., p. 276-277.
219 HANDY, Charles. Além do capitalismo, op. cit., p. 155.
220 DRUCKER, Peter. Sociedade pós-capitalista, op. cit., p. 130.
130
negativamente as reais possibilidades de sucesso da eficácia total da responsabilidade
social da empresa, enquanto forma de contribuição a resolução final do problema da
exclusão social.
Ao retirar do Estado a possibilidade de coordenação das tentativas de
combate à eliminação da exclusão social, ainda que, momentaneamente, a lógica neoliberal
se embasa na defesa de uma moral individualista voltada para o sucesso pessoal, não
social. Sob a alegação de influenciar negativamente a eficiência e produtividade do sistema
capitalista, acusa o Estado do bem-estar social de desvirtuar os “recursos morais” e os
“valores comuns” que poderiam fazer nascer a solidariedade na sociedade civil, vivida
conscientemente pela comunidade, pois distribui benefícios sem nenhum “mérito
demonstrável”221.
Uma nova racionalidade de natureza neoliberal na economia toma conta das
ações de solidariedade. A exemplo da análise do paradoxo da produção dos bens coletivos,
não existe nenhuma irracionalidade em se agir na direção do interesse coletivo dada um
predomínio da lógica do cálculo individual. Ao contrário, ela está justificada porque
“alguém [o próprio sistema] força os indivíduos a cooperar” não em troca de um “benefício
individual”, mas para evitar uma punição que “resultaria da não-cooperação”. Ou seja, uma
realidade neoliberal dialética e complexa vai tomando conta da coordenação dos
movimentos sociais e empresariais em benefício do suposto interesse da coletividade222.
No plano microeconômico mais próximo da empresa, a responsabilidade
social enquanto manifestação de um caráter contraditório de “associação” do capital, com
outros agentes econômicos, é fruto da lógica do convívio forçoso com os stakeholders. Na
interpretação crítica de Srour:
“As duas lógicas, a do lucro e a da responsabilidade
social, convivem às turras. A primeira, endógena e
imanente ao capitalismo; a segunda, exógena e fruto da
ação política militante. A primeira, imantada pela
satisfação dos interesses dos proprietários ou detentores
do capital (quotistas, acionistas); a segunda, imbuída
221 OFFE, Claus. Capitalismo desorganizado: transformações contemporâneas do trabalho e da política. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 274-275. 222 Ibidem, p. 293.
131
pela satisfação dos interesses dos demais stakeholders
das empresas”223.
Ampliar esta dimensão para o cenário macroeconômico, certamente, pode
gerar razoáveis benefícios sociais à comunidade onde interage a empresa. Contudo, não
podemos generalizar e afirmar que o desafio da geração do bem-estar social total estaria
resolvido. Na verdade reflete aquilo que Solomon224 chamou de a construção de um
“futuro global mais amplo e inevitavelmente partilhado”. Uma mentalidade de partilha que
vai sendo paulatinamente desenvolvida a força.
Nesta interação das forças sociais, no atual estágio do desenvolvimento da
sociedade capitalista, a influência dos valores econômicos neoliberais, ao regerem o
comportamento social dos indivíduos, molda uma necessidade pela ética da
responsabilidade que procura encontrar uma saída para preservar a própria característica do
sistema.
A idéia de responsabilidade segundo Levinas apud Sennett225, envolve a
noção básica de que “Como alguém conta comigo, eu sou responsável por minha ação
perante outro”. Esta condição de responsabilidade só pode existir se “para nos sentirmos
necessários, esse Outro tem de estar em necessidade”. Ou seja, avaliando a pergunta
deixada pelo autor: “Quem precisa de mim?”, torna-se compreensível que o caminho ético
assumido pela sociedade capitalista é fruto da própria condição de exploração do homem
pelo homem.
Não significa assumir a existência de uma ética pronta e acabada, ao
contrário, ela está em permanente desenvolvimento sendo constantemente desafiada pela
lógica do capital. A indiferença do mundo neoliberal se confunde com a necessidade
relativa de se preocupar com os outros. Na percepção da construção ética, por Srour226:
“No mundo capitalista, dado o dínamo endógeno de acumulação do capital, as duas
223 SROUR, Robert Henry. Ética empresarial: posturas responsáveis nos negócios, na política e nas relações pessoais, op. cit., p. 187-188.
224 SOLOMON, Robert. A melhor maneira de fazer negócios: como a integridade pessoal leva ao sucesso corporativo, op. cit., p. 174.
225 SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 174.
226 SROUR, Robert Henry. Ética empresarial: posturas responsáveis nos negócios, na política e nas relações pessoais, op. cit., p.198.
132
dimensões – política e simbólica – necessitam imbricar-se para lograr o respeito aos
interesses dos outros, ou seja, para desempenhar uma função ética”.
Por sua vez, nas palavras de Sennett227, podemos perceber o reverso da
condição de exploração do homem pelo próprio homem, numa perspectiva individualista
da corrosão do comportamento ético: “Há história, mas não narrativa partilhada de
dificuldade, e portanto tampouco destino partilhado. Nessas condições, o caráter se corrói;
a pergunta ‘Quem precisa de mim?’ não tem resposta imediata”.
Ou seja, o desafio de sobreviver egoisticamente numa sociedade capitalista,
trilhando o caminho construído pela ética, se realiza em paralelo da existência de outros
indivíduos que estão sendo explorados e corrompidos. Nesta situação, a ética da
responsabilidade também não oferece uma solução completa para as contradições do
sistema capitalista. Ela apenas acomoda parte das necessidades humanas na medida do
possível.
Diante de toda argumentação acima, falar em assumir responsabilidade
social envolve, segundo Magalhães228, questões além do âmbito “das ‘empresas’, ‘do
governo’. É uma questão essencialmente das pessoas, dos indivíduos, de grupos, de
comunidades. É portanto uma questão política. E como tal, é uma questão de cultura, de
valores sociais.” E continua aquela autora, “Exercer a responsabilidade social é uma
questão de sermos conscientes, usar e abrir espaço para a ação política. É superar o
preconceito do ser político e ser cidadão”. Enfim, é uma questão de cunho ideológico,
econômico e social.
Então, envolve navegar pelo nível de consciência do indivíduo, das
empresas e da própria sociedade capitalista. Mas qual nível de consciência? A consciência
do reconhecimento possível da realidade que nos cerca, portanto, falamos aqui de muitas
consciências que existem, em diferentes estágios de desenvolvimento no mundo, nas
regiões e nos locais.
Na interpretação de Sennett229, considerado as idéias do filósofo Gadamer,
temos a seguinte frase: “o eu que somos não se possui a si mesmo; pode-se dizer que [o eu]
227 SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo, op. cit., p. 175-176. 228 MAGALHÃES, Iliana Maria Michel Magalhães. Responsabilidade social das empresas e ação política dos indivíduos e da sociedade. Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 24, n. 4, out-dez 1994, p. 224-225. 229 SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo.,op. cit., p. 175.
133
‘acontece’, sujeito aos acidentes do tempo e aos fragmentos da história. Assim, ‘a
consciência do indivíduo’, declara Gadamer, ‘é apenas um piscar do circuito fechado de
vida histórica”.
Ser socialmente responsável, então, é o resultado do avanço da consciência
possível verificada ao longo da história do avanço do capitalismo que, num mundo
globalizado e sistêmico, vai se refletindo nas demais unidade (indivíduos, organizações e
sociedades) do sistema total, ainda que de forma difusa. É perceber que o sofrimento dos
outros exige uma ação concreta para atenua-lo, embora, contraditoriamente, não sejamos
formalmente responsabilizados por isto. Mas, o sistema em que vivemos, certamente, o é.
Para finalizar, convém citar os argumentos de Dowbor, a respeito desta
consciência assumida pelas pelos empresários no sistema capitalista:
“Pode parecer ingênuo esperar consciência de quem
com ela não lucra. No entanto, os dramas sociais e
ambientais estão se avolumando com tanta rapidez, que
um número crescente de empresários, e particularmente
os que não buscam ou não têm condições de fazer
negócios às custas de política de bastidores, passaram a
entender que resgatar as condições de governabilidade,
de uma sociedade mais justa e ambientalmente
sustentável, é vital para todos”230.
Ou ainda, citar a preocupação de Hobsbawm diante dos riscos que
atualmente presenciamos:
“Vivemos num mundo conquistado, desenraizado e
transformado pelo titânico processo econômico e
tecnocientífico do desenvolvimento do capitalismo, que
dominou os dois ou três últimos séculos (...) As forças
geradas pela economia tecnocientífica são agora
suficientemente grandes para destruir o meio ambiente,
ou seja, as fundações materiais da vida humana. as
próprias estruturas das sociedades humanas, incluindo 230 DOWBOR, Ladislau. A reprodução social: propostas para uma gestão descentralizada, op. cit., p. 437.
134
mesmo algumas das fundações sociais da economia
capitalista, estão na iminência de ser destruídas pela
erosão do que herdamos do passado humano. Nosso
mundo corre o risco de explosão e implosão. Tem que
mudar”231.
Isto não quer dizer, necessariamente, que a sociedade capitalista esteja
alterando a sua natureza. Pode-se reconhecer no sistema capitalista de organização social
uma clara tendência autofágica, porém, com instrumentos que procuram regenerar sua
condição, até o limite maior da defesa dos interesses da propriedade privada e da suposta
liberdade do indivíduo.
Neste aspecto, também cabe aqui uma frase de Ianni:
“Note-se que ‘desvios’ destinados a provocar mudança
social, ou mesmo evolução sistêmicca, podem ser
‘intencionalmente produzidos’. Na realidade, são
principalmente as ‘elites’ dominantes (envolvendo
indivíduos, grupos, classes, organizações
governamentais, organizações bi e multilaterais,
corporações nacionais e transnacionais) alguns dos
principais ‘atores’ que concretamente agem de modo a
produzir, orientar e dinamizar ‘desvios’ destinados a
provocar mudança ou evolução”232.
Enfim, entender a responsabilidade social da empresa pode requerer uma
percepção filosófica da questão, embora, numa sociedade em que a filosofia não faz parte
da essência da estratégia de sobrevivência material do homem. Da mesma forma, a
mudança deste conceito também pode passar pela percepção da “reatividade social das
empresas”, num claro abandono da discussão do objetivo final para se transformar apenas
numa resposta às questões manifestadas concretamente. Ou ainda, uma combinação das
231 HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 562. 232 IANNI, Octavio. Terias da globalização, op. cit., p. 72.
135
idéias filosóficas e de reatividade, resultando no chamado “desempenho social das
empresas”, numa alusão óbvia da necessidade de um novo “contrato social” firmado entre
empresa e sociedade233.
Mas, certamente, em todos os casos acima citados permanece a mesma
situação: a necessidade de viabilizar um mínimo de convívio social aceitável dentro da
estrutura da sociedade capitalista. Uma situação que pode muito bem ser resumida pelo
movimento dialético deste modo de produção da vida material dos homens frente a
manutenção da ordem social, contido na expressão cunhada por Marx234: “Não é a
consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que
determina sua consciência”. Responsabilidade social das empresas é parte da ação
estratégica e operacional concreta deste organismo social.
233 STONER, James A. e FREEMAN, R. Edward. Administração. Rio de Janeiro: LTC, 1999, p. 74-75. 234 MARX, Karl. Para a crítica da economia política; Salário, preço e lucro; O rendimento e suas fontes: a economia vulgar. 2 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1986, p. 25.
136
CONCLUSÃO
Avaliar a projeção da responsabilidade social sobre as empresas
correlacionadas ao mundo capitalista, do qual ela faz parte, certamente, é uma tarefa
desafiadora. Poder-se-ia conceber esta questão do ponto de vista filosófico ou ideológico e,
em ambos os casos, a realidade concreta da vida do homem se manifesta segundo inúmeros
detalhes particulares e específicos que caracterizam cada uma das muitas sociedades.
O presente estudo tomou como ponto de partida a existência atual de uma
ideologia capitalista dominante na maioria das sociedades humanas, cuja hegemonia, no
trato das questões econômicas, se traduz pela visão neoliberal. Isso também é uma
realidade no caso brasileiro. A preocupação principal foi distinguir de que maneira esta
ideologia está relacionada com o avanço dos movimentos reais de responsabilidade social
das empresas privadas no Brasil.
De imediato se percebe que o individualismo econômico defendido pelo
neoliberalismo poderia ser um entrave ao avanço deste processo de aceitação das
responsabilidades sociais por parte daquelas organizações. A visão econômica neoliberal
não defende nenhum tipo de “obrigação” de responsabilidade social das empresas. A
“auto-estima” pelos interesses individuais é a única obrigação existente no campo das
relações de mercado, a qual se encarregaria de criar um clima geral de bem-estar social.
Mas o entrave ideológico é uma visão parcial da questão.
Se a ideologia neoliberal não reconhece obrigação econômica, por outro
lado, também não implica coibir e, porque não dizer, proibir qualquer atitude individual
que pretenda reconhecer e participar de ações socialmente responsáveis. O maior valor
neoliberal é a liberdade das ações do indivíduo, portanto, somente ele é o senhor dos seus
interesses econômicos. Óbvio, que sua participação em ações sociais, por envolver o uso
de recursos monetários particulares, implica em defender acima de tudo o interesse
econômico próprio.
Neste sentido, a utilização livre da renda pelo indivíduo, destinada ao
benefício que não ele mesmo, é possível, mas somente se ocorrer à margem dos principais
interesses econômicos pessoais. Ou seja, possíveis perdas econômicas poderão ser
livremente assumidas desde que na base inferior do valor monetário dos bens não
consumidos e que lhe interessariam. A liberdade do jogo de interesses econômicos rege a
137
tomada de decisões dos indivíduos, portanto, também das empresas. A responsabilidade
social da empresa assumida “livremente” é compatível com a ideologia neoliberal.
O Estado interventor fere a liberdade do indivíduo, da empresa, da
comunidade ao tomar decisões que interpretam os interesses econômicos que eles mesmos
deveriam escolher. A busca pela adaptação às necessidades do mercado seria a única forma
de manifestação clara das vontades daqueles indivíduos, o que vai envolver características
pessoais distintas. Por isso o poder econômico do Estado deve ser minimizado, para
favorecer as escolhas econômicas tomadas livremente no âmbito do espaço individual.
Sobreviver, portanto, exige uma conformação aos interesses dos outros
indivíduos na busca do próprio interesse. Equivale a subordinação à lei da oferta e da
demanda onde as partes terão que achar o ponto de equilíbrio dos interesses particulares
conflitantes. Embora opostos tais interesses econômicos individuais serão confrontados no
mundo concreto e daí resultará uma solução do equilíbrio possível.
Este mecanismo automático de equilíbrio se processa ao longo dos períodos
temporais, não é um resultado imediato. É um processo social histórico e dinâmico, que
mutuamente se faz necessário a todos os indivíduos. A competição no espaço do mercado
garante esta conformação do equilíbrio possível. Ao Estado cabe apenas garantir as
condições ideais de manifestação das forças do mercado, na busca da realização dos
interesses econômicos individuais.
A empresa, assim como, um indivíduo livremente responsável pelos seus
próprios interesses econômicos, poderá assumir responsabilidades sociais desde que decida
faze-lo. Não existe portanto caráter compulsório. Na verdade, privilegiando as decisões
individuais, só faz sentido falar em responsabilidade social da empresa desde que seja
voluntariamente assumida. Neste caso, está preservada o valor moral e a nova forma da
ideologia capitalista.
Na medida em que o Estado diminui seu poder intervencionista sobre o
mercado, brechas cada vez maiores de assistência social a sociedade ficariam,
conseqüentemente, a cargo da responsabilidade voluntariamente assumida pelo setor
privado. Ao Estado cabe o papel social de ser “suplemente à caridade privada”. A ação
voluntária tenta substituir qualquer ação social compulsoriamente imposta pelo poder do
Estado.
Ora, na medida em que a empresa assume livremente responsabilidades
sociais o faz, certamente, sem prejuízo dos seus interesses econômicos fundamentais. Fará
138
uso de recursos monetários a margem de suas necessidades vitais, portanto, se incorrer em
perdas estas serão suportáveis. A reestruturação do Estado do bem-estar social na direção
do Estado mínimo, defendida pela visão econômica do neoliberalismo, é elemento
logicamente integrado a diminuição da ação social pública substituída pela ação social
privada. Em sendo assim, cabe aos indivíduos e também as empresas assumirem
espontaneamente novas responsabilidades sociais.
No entanto, a vida material do homem em sociedade não é necessariamente
sempre fruto de um plano ideológico meticulosamente arquitetado, de forma consciente,
nos mínimos detalhes. Pode ser que as complexas condições materiais verificadas na
sociedade estejam sendo construídas de forma inconsciente, paralelamente, ao
desenvolvimento da ideologia, ou até mesmo, precedendo-o.
Ao analisar as variáveis que na prática influenciam a responsabilidade social
assumida pelas empresas, percebe-se um intrincado quebra-cabeça que relaciona diferentes
dimensões criadas no âmbito das distintas formas de relações dos indivíduos na sociedade.
Mais que isto, estas relações estão interligadas de forma sistêmica, conectadas em tempo
real, num ambiente de abrangência mundial que privilegia as ações efetivadas em parceria
com terceiros.
Percebe-se a existência de cinco dimensões influenciando a
responsabilidade social da empresa: a concepção ideológica da sociedade capitalista, os
fundamentos dos interesses econômicos da empresa, a profissionalização da gestão
empresarial, as características do ordenamento institucional da sociedade e os valores
morais e éticos do comportamento social.
No caso brasileiro, a adoção do modelo econômico do neoliberalismo, logo
no início dos anos 90, promoveu uma ruptura na acomodação das forças internas nestas
cinco dimensões. O país se viu rapidamente integrado numa série de necessidades
globalizantes, voltadas para a construção de uma nova ordem econômica, social e legal.
A concepção ideológica da sociedade capitalista brasileira inicia a pressão
sobre a diminuição do poder de interferência estatal no ambiente de mercado e advoga a
liberalização das relações econômicas com o resto do mundo. O Estado vai perdendo a
primazia pela ação de interesses sociais, paralelamente, ao aparecimento da percepção do
empresariado local das carências que crescentemente vão cercando o ambiente da empresa.
A empresa vai tomando ciência do espaço das demandas sociais que aparecem na
sociedade.
139
Dado os interesses econômicos internos e externos da empresa, a mudança
positiva no nível da concorrência nacional impõe a reconstrução das estratégias de geração
de capacidade competitiva dentro da empresa e junto à comunidade. A necessidade de
prover facilidade de adaptação aos novos tempos transforma o funcionário de mão-de-obra
para capital humano, de empregado para colaborador interno, pois a capacidade de
inovação intelectual está no homem. O colaborador remanescente precisa de apoio, bem
como, sua família no intuito de criar um ambiente físico e psicológico minimamente
salutar ao desempenho profissional eficiente.
Do lado externo, a responsabilidade social da empresa agrega valor aos
resultados econômicos na medida em que ela pode criar um diferencial de capacidade
competitiva, aos olhos e desejos de consumo da sociedade em geral. A participação e
integração das empresas nos problemas sociais da comunidade local onde ela atua, cria
uma identidade e todo um simbolismo de respeito e admiração para com aquela
organização socialmente responsável. Considerando a realidade das carências nacionais,
potencializadas pela reestruturação produtiva neoliberal, vislumbra-se uma vantagem
competitiva que pode ser rapidamente explorada.
A capacidade da gestão empresarial em se adaptar e inovar na condução dos
negócios da empresa, buscando um porto seguro, mais e mais depende dos métodos
contemporâneos de gestão profissional implementados na organização. A participação dos
administradores profissionais ganha destaque e, com eles, novos modelos científicos
passam a fazer parte da estratégia das empresas acompanhando as ações já verificadas nos
países desenvolvidos. Naqueles países a abordagem da responsabilidade social das
empresas se encontra em estágio mais avançado que aqui, logo, exigindo sua reprodução.
O management absorve no país a solidariedade enquanto elemento de gestão empresarial.
A empresa-cidadã surgida, por sua vez, também tem que enfrentar o desafio
do poder social constituído legalmente. Existe um outro lado da responsabilidade social da
empresa, seu caráter compulsório. A legislação desenvolvida no país vai procurando
reformular as vias de facilitação do avanço no processo de acumulação de capital, bem
como, garantir a defesa da sociedade contra os abusos do poder econômico. Este
movimento legalista e civil se intensifica junto com o processo de abertura da economia
brasileira e redemocratização da nação.
O empresariado local demonstra-se preocupado com estas questões e passa
a interagir ativamente na elaboração do novo contrato social. O respeito às pressões
140
puramente de ordem da sociedade civil ainda são incipientes, exceto, quando há
envolvimento maciço da mídia, mas no tocante à legislação há uma preocupação latente
em garantir a sobrevivência fiscal da empresa.
Ao mesmo tempo, um novo clima de valores sociais vai se desenvolvendo
no país e a empresa percebe a necessidade de incorporá-los à sua forma de gestão. A
percepção de valores sociais avaliados segundo preceitos de vertente ética vai,
paulatinamente, penetrando no mundo empresarial. A corrupção começa a ser vista como
um mal econômico e vai sendo combatida. Não se quer com isso dizer que o
comportamento ético tomou conta do país, pois ainda estamos muito longe disto. Apenas
percebe-se uma ebulição de reflexões éticas que passam a considerar os efeitos negativos
das pressões dos diversos grupos sociais com quem a empresa mantém relações. A
responsabilidade devagar vai ganhando terreno.
O país, portanto, está envolvido por uma nova e complexa teia de relações
sociais que interligam empresa-indivíduo-sociedade, numa subordinação à ordem
globalizante do capital mundial. Certamente, as características aqui verificadas de
percepção da responsabilidade social diferem, sutilmente, das formas materiais
manifestadas em outros locais do planeta.
Contudo, uma questão importante permanece no centro da implementação
das responsabilidades sociais das empresas: é possível, por esta via, construir uma saída
eficaz a colaboração do bem-estar da sociedade geral? De imediato, pode-se reconhecer
que há de fato uma colaboração material importante no combate à miséria e à pobreza
humana por parte da empresa. Mas, a solução para este tipo de problema da nossa
sociedade requer uma mudança na estrutura social.
A sociedade nos moldes capitalista gera um movimento histórico de
concentração da renda, de produção de excluídos. Este processo social é fruto do domínio
das bases de ordenação das relações econômicas sobre as demais formas do
relacionamento humano. É inevitável reconhecer as mazelas materiais de um mundo
dividido entre ricos e pobres.
As empresas são instrumentos fundamentais da viabilização deste processo
perverso de exploração do homem pelo próprio homem. Sua lógica natural é a da
acumulação, portanto, é inapropriado esperar dela a resolução de todos os problemas
sociais. A organização do mundo concreto é elaborada por força de suas atividades
econômicas, logo, as carências sociais são reflexos das ações das próprias empresas, no seu
141
conjunto, ainda que, individualmente, algumas se demonstrem mais preocupadas com as
questões humanas de terceiros.
Paralelamente, de forma dialética, constata-se a construção de uma pressão
interna ao sistema capitalista para que as empresas assumam responsabilidades sociais,
aquém das suas finalidades criadoras. Contraditoriamente, uma crescente necessidade de
proteção social aos excluídos clama pela ação social empresarial. Está criado o impasse,
um dilema moral para a sociedade capitalista.
Se responsabilidade envolve ação consciente, a responsabilidade social é
relativa à capacidade que determinada sociedade manifesta conscientemente na ajuda aos
seres humanos menos favorecidos economicamente. Os muitos outros que precisam dos
outros poucos, conscientemente, cedo ou tarde, este últimos manifestarão sua solidariedade
na arena social, pois estão interligados pelas vias do reconhecimento da realidade comum
deste mundo que os cerca.
A consciência da responsabilidade social da empresa só existe quando as
necessidades dos excluídos batem às portas dos favorecidos, num plano de reconhecimento
possível de uma realidade capitalista que precisa ser reconstruída. Deixa de ser meramente
uma questão de ideologia e passa ser um fato concreto da realidade social.
Uma ação social articulada vai tomando forma na busca da solução viável.
A responsabilidade social da empresa surge como um desvio necessário à proteção do
tecido de uma sociedade que busca uma nova forma em sua evolução, ainda que, com a
pretensão de proteger os benefícios individuais já conquistados.
A nova realidade do dinamismo do capital a nível mundial empurra a
empresa, na busca pela sobrevivência, para novos caminhos além da função unicamente
produtiva. De outro lado, questões sociais avançam na sua direção, para dentro do sistema
de domínio de exploração, numa provável luta perdida. A viabilidade de uma maior
harmonia entre a posse do capital e os seres humanos entra numa nova etapa de guerra, na
busca de uma pretensa paz.
Responsabilidade social das empresas é uma preocupação forçada com os
outros, contraditando a ideologia neoliberal, porém, totalmente coerente com o movimento
dialético das forças produtivas da sociedade capitalista. É o confronto entre o indivíduo e a
sociedade, o capital e a pobreza, a vida feliz e a morte severina. É a necessidade do capital
reconstruir aquilo que ele mesmo está destruindo, diante da necessidade de uma nova
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realidade e seus padrões socialmente aceitos. Estabelece-se uma luta no interior da pseudo-
consciência humanitária capitalista, da consciência do historicamente possível.
A responsabilidade social das empresas é de fato uma necessidade da
moderna gestão empresarial. Ainda que, a mentalidade capitalista dominante e atrasada, na
sua visão neoliberal, não defenda explicitamente este tipo de comportamento, ele está
sendo implementado pelas vias da necessidade humana.
No caso brasileiro, justamente, na confluência precoce da ideologia
neoliberal ao capitalismo tardio, nasce uma combinação histórica que trás as marcas
recentes da necessária ação social empresarial. Sensível mudança no comportamento
empresarial brasileiro, comparando a mentalidade e o discurso nos anos 80 com a dos anos
90, vem expor este processo em desenvolvimento.
Afirmar que a responsabilidade social das empresas é fruto apenas da
dimensão dos interesses econômicos, embora, não se questione sua preponderância, é um
risco, pois outras forças sociais da vida dos homens podem vir a manifestar-se nas formas
constituídas ou de forma nunca vista. A prova é que o domínio das forças impessoais do
próprio mercado, portanto, inconscientes, está gerando uma reação conscientemente
forçada das empresas na condução de questões sociais. Embora, as empresas procurem
tirar proveito econômico desta situação, pois vivemos num mundo de troca, quem poderá
afirmar cegamente que tipo de novas forças sociais surgirão de dentro deste novo contexto
para explicar totalmente sua existência.
A criação de novos elementos na ordem institucional e a mudança de
valores sociais podem alterar a rota das intenções sociais do capital, obrigando-o a
remodelar ainda mais sua forma, no entanto, não sem a contra-pressão natural do poder
econômico. As empresas e suas responsabilidades sociais, por enquanto, estão se
posicionando no centro deste embate social. Só não sabemos até quando isso é possível ser
mantido e que conseqüências poderão ocorrer na estrutura social e organizacional das
empresas e da própria sociedade.
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