View
247
Download
0
Category
Preview:
Citation preview
Léa Campos: as interdições e o protagonismo da primeira árbitra de futebol do mundo
IGOR CHAGAS MONTEIRO1
LUDMILA MOURÃO2
Introdução
A motivação para a realização deste trabalho sobre Léa Campos, reconhecida pela
FIFA como a primeira árbitra de futebol do mundo, surge a partir de uma pesquisa em
andamento, que investiga a trajetória de mulheres brasileiras na arbitragem do futebol
profissional.
Quando pensamos na figura do(a) árbitro(a) no futebol, é necessário destacar quando
essa função aparece oficialmente na modalidade. O árbitro foi inserido no futebol no ano de
1868, na Inglaterra, pela Football Association (FA), com o objetivo de ser um agente externo
de controle da violência nas partidas de futebol (BOSCHILIA; VLAUSTIN; MARCHI JR.,
2008). No Brasil, a figura do árbitro aparece com a chegada do próprio futebol ao país, em
1894, de acordo com Silva, Rodriguez-Añez e Frometa (2002). Entretanto, os autores
sinalizaram que existe uma dificuldade em precisar quando as mulheres começaram a atuar
como árbitras.
Essa escassez de registros sobre a atuação de mulheres como árbitras de futebol
reflete abordagens tradicionais de escrita da história, que se preocupavam em narrar grandes
feitos, fatos políticos e escreviam a história com referência aos homens como heróis. Assim,
em diversos campos, como o político, cultural e esportivo, acabaram por registrar as memórias
da humanidade e sua história a partir da trajetória de homens (GOELLNER, 2007). Nesse
sentido, permanece urgente “tirar as mulheres do rodapé da história”, como afirma Knijnik
(2010:35), trazendo à tona suas trajetórias, já que “[...] a segregação social e política a que as
mulheres foram historicamente conduzidas teve como consequência a sua ampla invisibilidade
como sujeito [...]” (LOURO, 1997:17).
Há uma carência de dados sobre as árbitras de futebol, e os registros de Léa Campos
são os primeiros a retratar as mulheres nessa função. As trajetórias de mulheres como árbitras
1 UFJF, Bacharel em Educação Física, apoio CAPES. 2 UFJF, Doutora em Educação Física, apoio CAPES.
2
permaneceram na “zona de sombras” nos estudos da história do esporte, portanto entendemos
como relevante resgatar suas memórias e visibilizar seu protagonismo.
Considerando ainda que sua história inaugura a formação oficial da primeira árbitra
de futebol do mundo, este texto tem como objetivo descrever a trajetória e as experiências de
Léa Campos, que tensionaram o campo de estudo da arbitragem em futebol e contribuíram para
visibilizar a mulher como árbitra de futebol.
Caminhos metodológicos
Quanto aos percursos metodológicos, esta pesquisa foi construída na perspectiva da
história oral como técnica de produção e tratamento de entrevistas (GOELLNER et al., 2007).
Para Thompson (1992:17), a história oral pode
[...] dar grande contribuição para o resgate da memória nacional, mostrando-se um
método bastante promissor para a realização de pesquisa em diferentes áreas. É
preciso preservar a memória física e espacial, como também descobrir e valorizar a
memória do homem. A memória de um pode ser a memória de muitos, possibilitando
a evidência dos fatos coletivos.
A história oral trabalha com uma versão plausível, verossímil dos fatos; não busca
uma verdade inequívoca, pois “as formas de narrar o como são múltiplas e isso implica colocar
em xeque a veracidade dos fatos” (PESAVENTO, 2003:51).
As fontes orais utilizadas foram duas entrevistas concedidas por Léa Campos. A
primeira, aberta ao público, foi realizada no Museu do Futebol, em São Paulo, em maio de
2015. A entrevista durou 107 minutos e abordou questões relativas à infância e juventude da
entrevistada, a sua atuação como árbitra e sua profissão de jornalista, assim como o contexto
político da época, bem como os impedimentos e as tensões sofridas para que ela se tornasse
árbitra.
A segunda entrevista foi realizada pelos autores dessa pesquisa também no mês de
maio de 2015 e teve duração de 30 minutos. A conversa com Léa Campos se desenvolveu a
partir de um roteiro, subdividido em quatro blocos, com temas que não haviam sido abordados
na primeira entrevista, e aprofundamento de algumas questões já abordadas. O primeiro bloco
de questões versou sobre sua inserção na arbitragem; o segundo, sobre o desenvolvimento da
3
carreira de árbitra; o terceiro, sobre as possibilidades de ascensão na carreira; e o último, acerca
da “aposentadoria” na arbitragem. As entrevistas foram transcritas na íntegra, respeitando todas
as formas discursivas apresentadas pela entrevistada.
Léa Campos: a história da primeira árbitra de futebol do mundo
A mineira Asaléa Campos Fornero (Léa Campos) nasceu no ano de 1944, em
Abaeté, interior de Minas Gerais. Quando pequena, mudou-se para Montes Claros (MG), onde
estudou no Colégio Imaculada Conceição, com uma bolsa concedida pelo presidente da
república Juscelino Kubitschek (ALEIXO, 2015)3. Nesse período ela comprou uma bola, no
intuito de que as meninas do internato jogassem futebol com ela, mas não lhes foi concedido
esse direito pelas irmãs que regiam o colégio interno.
Léa apresenta, em seu relato, como começou o seu envolvimento com o futebol:
Meu pai era ferroviário e minha mãe, dona de casa. Eu fui filha única por nove anos,
então eu tive que me dividir. Eu era menino para o meu pai e menina para a minha
mãe. Com o meu pai eu ia para pescaria, ia jogar bolinha de vidro, soltar pipa [...]
E um dia meu pai fez uma bola de meia, de trapo [...] então ele fez aquela bolinha e
começou a jogar comigo e me entusiasmou. Eu falei “vou levar para a escola e jogar
com os meninos. A minha intenção era jogar com as meninas, mas elas me chamaram
de macho, disseram que aquilo não era brinquedo para menina. (CAMPOS, 2015a).
Nessa narrativa de Léa, evidencia-se o que Goellner (2005) apresenta sobre a
aproximação entre o futebol e os estereótipos ligados à masculinização da mulher que o pratica,
bem como a representação de uma feminilidade normativa que valoriza uma relação entre
mulher, beleza e sensualidade.
Esses discursos apontam para o impedimento das mulheres em modalidades
esportivas de confronto corporal, como as lutas e o futebol: “ [...] o futebol tem sido
tradicionalmente um esporte de domínio masculino. E se diz que as mulheres, ao optar por essa
prática, não fazem mais do que se masculinizar e perder sua feminilidade, além do mais são
3 Aos 10 anos, ela enviou uma carta a Juscelino pedindo uma bolsa de estudos, e o mandatário ajudou-a,
concedendo-lhe a bolsa (GOZZI, 2015).
4
censuradas e discriminadas [...]. ” (CAVIDAD; CASTRO, 2001 apud BRANDÃO; CASAL,
2003:157).
Os discursos tendem a se reproduzir nos diferentes espaços da formação dos
sujeitos, os quais, dessa forma, subjetivam representações de impedimento e inadequação dos
corpos para determinadas atividades físicas. Dentre esses espaços de formação, encontra-se a
escola, sobre a qual Léa Campos afirma: “Eu jogava no recreio da escola, e a diretora implicava
que não podia, porque eu estava jogando com os meninos. Naquela época tinha aquela coisa:
menina para lá, menino para cá” (CAMPOS, 2015a).
Bourdieu argumenta que a escola transmite
[...] pressupostos da representação patriarcal e sobretudo, talvez, os que estão
inscritos em suas próprias estruturas hierárquicas, todas sexualmente conotadas,
entre as diferentes escolas ou as diferentes faculdades, entre as disciplinas, entre as
especialidades, isto é entre as maneiras de ser e as maneiras de ver, de se ver, de se
representarem as próprias aptidões e inclinações, em suma, tudo aquilo que contribui
para traçar não só os destinos sociais como também a intimidade das imagens de si
mesmo. (BOURDIEU, 2011:104).
Nessa perspectiva, Léa relata mais um episódio em que o discurso da interdição se
fez presente: “Começamos a jogar ao lado da igreja, e aí o padre franciscano foi atrás de mim
e falou: ‘Olha, Léa, não quero você jogando futebol com os meninos’. Aí eu falei: ‘Mas, padre,
eu não estou fazendo nada de mal, qual o problema? ’ ‘Mas isso não é para mulher, isso é para
homem’ ” (CAMPOS, 2015a). Bourdieu (2011) alega que o Estado, a escola, a igreja e a família
são instituições que constroem categorias restritivas à ação humana.
A educação brasileira do final do século XIX e início do século XX estava pautada
em um ideal higienista, com ideias biologicistas, que atribuía à mulher a maternidade, em que
ela deveria gerar filhos fortes e saudáveis para servir a nação. As atividades físicas indicadas
para elas deviam ser leves e moderadas; os esportes adequados eram os menos violentos e
deviam ser compatíveis com a delicadeza e o organismo das mães (GOELLNER; FRAGA,
2003).
Os autores destacam que, nesse período, havia “mulheres forçudas” exibindo seus
músculos, realizando exercícios de força em teatros e circos ao redor do mundo. Elas ficaram
5
conhecidas como strongwomen4 e tiveram os seus corpos silenciados pelos intelectuais
brasileiros que prescreviam exercícios. Isso porque a estimulação de atividades físicas,
dependendo da quantidade, poderia conferir às mulheres uma musculatura resistente para a
maternidade ou moldar o corpo de uma strongwomen (GOELLNER; FRAGA, 2003).
Assim como os corpos das “mulheres forçudas” foram “silenciados”, as
modalidades esportivas que envolviam confronto, como o futebol, tiveram a prática pelas
mulheres interditada e invisibilizada. Entretanto, cabe ressaltar que invisibilidade não quer dizer
ausência, visto que as experiências das mulheres nos esportes sempre ocorreram, mesmo de
forma “clandestina”. Retomando a trajetória de Léa, cabe sublinhar que, no período de infância
e adolescência da árbitra, vigorava o Decreto-lei 3199/41, uma normatização sobre a prática
esportiva, do Conselho Nacional de Desportos (CND), cujo artigo 54 apontava: [...] “às
mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua
natureza” (MOURÃO, 1998). As bases biológicas e científicas apoiavam esses atos e, de certa
forma, interditavam as mulheres para práticas de confronto e contato, viris e de força, como
futebol, futebol de salão, futebol de praia, halterofilismo e lutas. Com essa interdição, a prática
do futebol pelas mulheres permaneceu na invisibilidade. Entretanto, isso não implicava a
ausência das mulheres da prática do futebol e dos outros esportes “não indicados”.
Nesse sentido, Léa Campos narra que começou “a luta desde pequenininha,
brigando, dizendo que queria jogar futebol”. E, quando chegou à adolescência, “a coisa ficou
grossa, porque eu ia jogar e a polícia ia atrás e me prendia”. E complementa: “Era polícia
federal. Então a [polícia] federal me levava para o DOPS” (CAMPOS, 2015a).
Do discurso da árbitra, infere-se que havia diferentes interdições impostas às
mulheres que praticavam futebol, culminando na extremada condução ao Departamento de
Ordem Política e Social (DOPS), no período da ditadura militar.
Nesse contexto de repressão ao jogo de futebol, em 1967, Léa decidiu fazer um
curso de arbitragem, com a justificativa de que “não podia continuar aquela história de todo
sábado ir presa por causa de futebol. [...] Estavam abertas as inscrições, e eu fiz a inscrição.
Eu era a única mulher do grupo, não tinha outra” (CAMPOS, 2015a). Vale destacar, porém,
4 Como exemplo de strongwomen, temos a austríaca Sandwina, considerada em 1910 a mulher mais forte do
mundo (GOELLNER; FRAGA, 2003).
6
que, antes de ingressar em um curso de formação de árbitros de futebol, Léa já havia apitado
jogos de futsal do irmão e jogos do jardim de infância a convite de sua irmã (CAMPOS, 2015a).
O curso da Federação Mineira de Futebol teve duração de oito meses e contemplava
uma parte teórica e outra física.
A gente tinha que fazer Educação Física duas vezes por semana. E além de fazer
Educação Física duas vezes por semana com os árbitros, eu acordava às cinco horas
da manhã para fazer Educação Física. Eu queria ter uma condição física que não
deixasse margem, dúvida da minha capacidade. (CAMPOS, 2015a).
Léa Campos declarou também que sempre teve o apoio de seus colegas árbitros e
do professor da federação durante a realização do curso de arbitragem. Essa postura corrobora
com estudos de Mourão (1998), que revelam o apoio de homens e intelectuais à inserção das
mulheres brasileiras nas atividades físico-desportivas nas primeiras décadas do século XX.
Lá [no curso de arbitragem] não encontrei resistência, todos os meus colegas me
apoiaram. O nosso professor, que era um capitão da polícia, me deu a maior força,
me deu o maior apoio. Os árbitros que estavam fazendo o curso, disseram: Nós vamos
te ajudar! É uma honra ter você aqui. (CAMPOS, 2015a).
No momento de encerramento do curso e recebimento dos diplomas, o nome de Léa
Campos não estava na lista de formandos, porque a Confederação Brasileira de Desportos
(CBD) não permitiu. Em solidariedade e apoio a Léa, o diretor de arbitragem da Federação
Mineira de Futebol não compareceu à cerimônia de entrega dos diplomas.
Um dos motivos apresentados pelo senhor João Havelange, presidente da CBD na
época, para não diplomar a árbitra foi que “a constituição óssea da mulher é inferior à do
homem” (CAMPOS 2015a). Léa, então, recorreu à medicina legal para comprovar que a sua
constituição óssea era a mesma de um homem. O médico se recusou a fazer o exame e emitiu
um laudo constatando que a constituição óssea de Léa Campos era igual à de um homem. Então,
quando Léa levou até João Havelange o laudo, ele disse: “E quando você estiver naqueles seus
dias [tensão pré-menstrual], como é que você vai apitar futebol? ” (CAMPOS, 2015a). Léa
prontamente respondeu: “Pois é, o senhor é campeão de natação e deve ter várias colegas que
nadam, alguma delas deixam de nadar por isso? ” (CAMPOS, 2015a).
7
Esses relatos refletem a posição de João Havelange, ancorada na biologia dos
corpos e na ideia de que as diferenças corporais justificam desigualdades, “atribuem funções
sociais e determinam papéis a serem desempenhados por um ou outro sexo” (GOELLNER,
2001 apud GOELLNER, 2007:17).
Posteriormente, segundo Léa, o presidente da CBD foi mais enfático e demonstrou
sua prepotência, ao dizer: “Enquanto eu for presidente da CBD, nenhuma mulher joga ou apita
futebol neste país, porque eu não quero” (CAMPOS, 2015a). Léa, então, decidiu procurar
Emílio Garrastazu Médici, presidente da república em 1971.
Por ter sido Rainha do 1º Regimento de Infantaria do Exército em 1969, rainha do
carnaval de Belo Horizonte (1966), Rainha do Exército, Rainha do Cruzeiro, Rainha do Futebol
Amador, Miss Fotogenia, Rainha dos Ex-combatentes, Léa construiu uma rede de relações e
conhecimentos que lhe possibilitou obter uma entrevista com o presidente Médici (ALEIXO,
2015). Nesse período, ela recebeu um convite da FIFA para representar o Brasil, como árbitra,
no 1º Campeonato Mundial de Futebol Feminino no México, em 1971.
No dia da entrevista [com Médici] eu chego lá, estava todo mundo lá, os repórteres
todos curiosos para saber o que eu queria. Eu falei, nada. Eu também sou repórter,
eu vou entrevistar o homem se me derem chance. Quando chegou a minha vez eu
entrei na sala para falar com ele [...]. Você me pediu 30 segundos, eu vou lhe dar
cinco minutos. Em que eu posso lhe servir? Eu preciso que o senhor me faça uma
carta para a CBD porque eu recebi uma carta do México me convidando para
representar o Brasil [como árbitra em um torneio internacional de futebol para
mulheres]. Aí o senhor vai conseguir para mim que o João Havelange libere meu
diploma, porque se eu apitar lá e ganhar algum dinheiro não posso trazer porque é
evasão de divisa. E eu não quero estar infringindo as leis do meu país. O senhor pode
me ajudar? (CAMPOS, 2015a).
A partir desse contato, ficou combinado um almoço com o presidente Médici na
Granja do Torto, em Brasília. Léa contou que ficou muito nervosa, ansiosa e chegou a hesitar
em ir ao almoço em Brasília, contudo seu pai a encorajou. No encontro, o presidente redigiu
de próprio punho uma carta ao senhor João Havelange: “Solicito ao senhor presidente da CBD,
outorgar à senhorita Léa Campos o diploma de árbitra a que ela faz jus. Atenciosamente,
assinado Emilio Garrastazu Médici” (CAMPOS, 2015a).
A chegada das mulheres a determinados cargos – diretoras, gestoras esportivas,
árbitras, técnicas esportivas, entre outras profissões – parece estar condicionada à presença da
tutoria. Um tutor é aquele que faz as indicações, convites e/ ou facilita o acesso ao cargo, fato
8
que está intimamente ligado ao tamanho da rede de contatos dessas mulheres (GOMES et al.,
2012). Aqui podemos ver a importância da tutoria e do tutor – no caso em questão, o presidente
da república.
Ao final do encontro, o presidente Médici disse que tinha uma surpresa para Léa,
sobre a qual ela diz: “Foi o pior fim de semana da minha vida, porque achava que iam me matar”
(ALEIXO, 2015: 9). Entretanto, a surpresa consistia em apresentar-lhe o filho, fã de Léa, que
guardava, em seu quarto, fotos, reportagens e revistas sobre ela. Em seguida, Léa foi enviada
em um voo para o Rio de Janeiro, onde seguiria para a CBD para entregar a carta de Médici
endereçada a João Havelange.
Nesse período, Léa dividiu as manchetes dos jornais e revistas com Pelé, já que ela
se tornaria a primeira árbitra de futebol do mundo ao mesmo tempo em que ele fazia a sua
partida de despedida da seleção brasileira, em 18 de janeiro de 1971 (ALEIXO, 2015).
Chegando ao Rio de Janeiro, na sede da CBD, Léa se dirigiu a um dos assessores
de imprensa e pediu para falar com João Havelange, dizendo que tinha uma carta de Médici
para ele. Após receber a carta, o presidente da CBD pediu que seu assessor convocasse a
imprensa para uma entrevista coletiva, e disse: “É com muita honra e orgulho que eu levo a
conhecimento de toda a imprensa mundial, que é na minha gestão que sai para o mundo
futebolístico, a primeira mulher árbitra de futebol” (CAMPOS 2015a). Esse episódio evidencia
que Havelange busca reverter a situação a seu favor, como se de fato tivesse conferido
oportunidade às mulheres no campo da arbitragem. No entanto, ele estava apenas cumprindo
uma ordem do presidente da república.
Léa conseguiu superar as diversas interdições e barreiras, e embarcou para o
México em 1971, onde atuou no 1º Campeonato Mundial de Futebol Feminino, apitando sua
primeira partida entre Itália e Uruguai (ALEIXO, 2015). O uniforme utilizado era short preto,
meiões pretos, camisa preta com punho e colarinho branco5.
5 Por um longo período os árbitros foram chamados de homens de preto, devido aos uniformes negros que
utilizavam e pelo fato de terem sua figura equiparada à de policiais e juízes (BOSCHILIA; VLAUSTIN;
MARCHI JR., 2008).
9
Figura 1: Léa Campos atuando com seu uniforme preto na década de 1970
Fonte: Acervo pessoal de Léa Campos.
Léa Campos, a primeira árbitra de futebol do mundo reconhecida pela FIFA, apitou
mais de 100 partidas. Atuou em Portugal – onde arbitrou dezesseis partidas de futebol
masculino – assim como na Inglaterra, Espanha, Itália, França e em países da América Latina
(ALEIXO, 2015). De acordo com suas memórias, atuou por todo o Brasil, inclusive no Norte e
no Nordeste do país, com destaque para as capitais Teresina, Recife e Fortaleza.
O pioneirismo de Léa ganhou também as areias da praia de Atlântida-RS, na década
de 1970, onde ela apitou uma partida de futebol de areia entre Grêmio (RS) e Internacional
(RS):
[...] lá no Rio Grande do Sul na praia de Atlântida, que eu fui convidada para apitar
um Gre-Nal, de praia que era realizado todos os anos. O Doutor Olavo fez esse
encontro durante 10 anos por conta própria dele. Então eu tive a honra de ter sido
convidada também para apitar essa partida de praia. Foi a primeira e única vez que
eu apitei um jogo de praia, quer dizer, me fizeram pioneira na praia no Rio Grande
do Sul. (CAMPOS, 2015b).
O pioneirismo de Léa Campos foi reconhecido pela FIFA, em 1971, quando ela recebeu
o apito de ouro, por ter sido a primeira árbitra de futebol do mundo.
[...] fui reconhecida pela FIFA em 1971 e ganhadora de um apito de ouro que me foi
dado por Stanhaus em 1971. É uma distinção feita ao trabalho arbitral. Então a FIFA
reconheceu em mim, como mulher, por ser pioneira, um avanço dentro da arbitragem.
[...] No Brasil só existiram 2 apitos de ouro até os dias de hoje, o do Armando
Marques e o meu. Então é uma honra muito grande para mim ter sido premiada por
Stanhaus em 1971 com esse troféu, para mim é um troféu esse apito de ouro.
(CAMPOS, 2015b).
Léa Campos exerceu uma posição de comando, um cargo de tomada de decisão, num
país em que a representatividade das mulheres, tanto na gestão esportiva, como em cargos de
10
técnicas e árbitras, é baixa no Brasil (FERREIRA et al., 2013; MONTEIRO; SOARES;
MOURÃO, 2015). Por isso, é importante ressaltar sua trajetória e seu protagonismo como
primeira árbitra de futebol do mundo, um feito que trouxe visibilidade à carreira de árbitra e
estendeu essa possibilidade às mulheres. No excerto abaixo, podemos ver a fala de Léa sobre
sua função:
Comigo, graças a Deus, nunca houve desrespeito. Porque a minha profissão era
apitar futebol. Eu estava ali com uma coisa na cabeça, levar aquela partida pelos 90
minutos. Entrar com 22[jogadores] e sair com os 22[jogadores] de campo, essa era
a minha intenção. (CAMPOS, 2015a).
Em fevereiro de 1974, Léa relata um acidente de ônibus, que culminou com o
encerramento de sua carreira como árbitra.
Eu estava vindo numa quarta-feira de cinzas, aqui para São Paulo de ônibus. Eu iria
me encontrar com o meu empresário, porque ele havia feito um contrato e eu iria
apitar o campeonato nacional da Argentina”. Quase chegando em Três Corações, o
motorista bateu na traseira de um caminhão, e eu fiquei presa entre o banco e a roda.
Esse ônibus andou ainda 120 metros antes de parar. Eu engoli muito farelo de vidro
e entrou muito pedaço de vidro e madeira da carroceria na minha perna. Essa minha
perna ficou completamente separada, presa apenas pela pele em cima e aqui atrás.
Foi uma fratura exposta com perda óssea. (CAMPOS, 2015a).
Após encerrar sua carreira como árbitra, Léa Campos continuou militando em prol
do futebol de mulheres, organizando uma equipe em 1983, e realizou a Copa Léa Campos, com
24 equipes de futebol de mulheres, todas de Minas Gerais. A final dessa competição aconteceu
no Mineirão, em Belo Horizonte, no mesmo ano.
Léa Campos casou-se com o jornalista esportivo colombiano Luis Medina e mudou-
se para os Estados Unidos em 1993, país em que reside atualmente6. Sua trajetória foi descrita
por Luis Medina em 2001, em uma biografia lançada pela editora Luis XVIII Publishing,
ganhando versões em inglês e espanhol. Informações e fotos de sua carreira também estão
disponíveis no site <leacampos.com>.
Em maio de 2015, Léa Campos foi homenageada na inauguração da exposição
“Visibilidade para o Futebol Feminino”, no Museu do Futebol, em São Paulo. Essa mostra foi
6 Léa Campos também foi pioneira no jornalismo esportivo. Formada em jornalismo em 1966, ela trabalhou na
Rádio Mulher em 1972. Germana Garilli e Claudete Troiano faziam reportagens de campo, e Léa era comentarista
de arbitragem de futebol. A equipe da rádio era composta somente por mulheres.
11
responsável por inserir no Acervo do Museu, a trajetória de mulheres no futebol, como
jogadoras, técnicas, árbitras e jornalistas esportivas.
Considerações finais
A infância e a adolescência de Léa Campos foram marcadas por tensões, impedimentos
e resistências para que ela praticasse o futebol. Observa-se que as interdições e barreiras que
ela enfrentou para jogar motivaram-na a realizar um curso de arbitragem em futebol, já que, em
plena ditadura militar, não era proibido por lei que uma mulher se formasse árbitra de futebol.
Léa foi a primeira mulher a realizar o curso de arbitragem na Federação Mineira de
Futebol em 1967. Mesmo sem a proibição legal, ela teve que lutar até que, mediante o auxílio
do Presidente Médici, fossem concedidos o seu reconhecimento como árbitra e o direito de
atuação no futebol. Foi diplomada apenas em 1971, mesmo ano em que a FIFA reconheceu seu
pioneirismo como árbitra de futebol – a primeira do mundo – e lhe concedeu um apito de ouro
da entidade. Léa Campos resistiu, superou interdições, brilhou em um tempo de ditadura militar
e consolidou o seu protagonismo no esporte bretão.
Referências
ALEIXO, G. Juíza de coração valente. Revista Oficial do Cruzeiro Esporte Clube, Belo
Horizonte, v.16, n.129, p.6-11, fev./mar. 2015.
BOSCHILIA, B.; VLAUSTIN, J.; MARCHI JR. Implicações da espetacularização do esporte
na atuação dos árbitros no futebol. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Campinas, v.
30, n. 1, p. 57-73, set. 2008. Disponível em:
<http://www.rbceonline.org.br/revista/index.php/RBCE/article/view/191/198>. Acesso em:
23 jan. 2013.
BOURDIEU, P. A dominação masculina. 10 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.
BLOG DO CURIOSO. Projeto sobre futebol feminino dá destaque para as pioneiras da
Rádio Mulher. 2015. Disponível em: < http://guiadoscuriosos.com.br/blog/2015/05/18/projeto-sobre-futebol-feminino-da-destaque-
para-as-pioneiras-da-radio-mulher/>. Acesso em: 28 jan. 2015.
12
BRANDÃO, M. R. F.; CASAL, H. V. Mulheres atletas e o esporte de rendimento: a questão
do gênero. In: SIMÕES, A.C. (Org.). Mulher e esporte: mitos e verdades. São Paulo:
Manole, p.155-164, 2003.
CAMPOS, A. Entrevista aberta de Léa Campos. Produção: Museu do Futebol. São Paulo:
Museu do Futebol, 2015a. 107 min., som., color.
_________. Entrevista “Mulheres de preto: trajetórias na arbitragem do futebol profissional”.
Produção: Igor Chagas Monteiro. Juiz de Fora: Universidade Federal de Juiz de Fora, 2015b.
107 min., som.
FERREIRA, H. J. et al. A baixa representatividade de mulheres como técnicas esportivas no
Brasil. Movimento, Porto Alegre, v. 19, n. 3, p. 103-124, mar. 2013. Disponível em:
<http://www.seer.ufrgs.br/index.php/Movimento/article/view/29087/26019>. Acesso em: 22
jun. 2014.
GOELLNER, S. V. Mulheres e futebol no Brasil: entre sombras e visibilidades. Revista
Brasileira de Educação Física e Esporte, v. 19, n. 2, p. 143-151, jun. 2005. Disponível em:
<http://www.revistas.usp.br/rbefe/article/view/16590/18303>. Acesso em: 22 jun. 2014.
__________. Mulheres, memórias e histórias: reflexões sobre o fazer historiográfico. In:
GOELLNER, S. V.; JAEGER, A. A. (Orgs.). Garimpando memórias: esporte, educação
física, lazer e dança. Rio Grande do Sul: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, p. 13-
26, 2007.
GOELLNER, S. V. et al. Garimpando memórias: esporte, educação física, lazer e dança no
Rio Grande do Sul. In: GOELLNER, S. V.; JAEGER, A. A. (Orgs.). Garimpando
memórias: esporte, educação física, lazer e dança. Rio Grande do Sul: Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, p. 53-62, 2007.
GOELLNER, S. V.; FRAGA, A. B. Antinoüs e Sandwina: encontros e desencontros na
educação dos corpos brasileiros. Movimento, Porto Alegre, v.9, n.3, p.59-82, set./dez. 2003.
GOMES, E. et al. As Representações da Mídia Sobre a Gestão Feminina no Clube de
Regatas Flamengo. Podium, Sport, Leisure and Tourism Review, São Paulo, v. 1, n.1, p.
151-173, jan./jun.2012.
GOZZI, R. Léa Campos: primeira árbitra de futebol do mundo. Portal Terceiro Tempo, 2015.
Disponível em: <http://terceirotempo.bol.uol.com.br/que-fim-levou/lea-campos>. Acesso em:
13 fev. 2016.
KNIJNIK, J. D. Gênero: um debate que não quer calar. In: KNIJNIK, J.D. (Org.). Gênero e
esporte: masculinidades e feminilidades. Rio de Janeiro: Apicuri, p. 25-66, 2010.
13
LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista.
Petrópolis: Vozes, 1997.
MONTEIRO, I. C.; SOARES, J. P. F.; MOURÃO, L. Saindo da “posição de impedimento”:
as árbitras brasileiras no futebol profissional. In: XIX Congresso Brasileiro de Ciências do
Esporte, 2015. Anais do XIX CONBRACE 2015, GTT 7 - Gênero, Vitória, Colégio Brasileiro
de Ciências do Esporte, p.1-15, set. 2015. Disponível em:
<http://congressos.cbce.org.br/index.php/conbrace2015/6conice/paper/view/6875/3636 >.
Acesso em: 22 fev. 2016.
MOURÃO, L. Representação social da mulher brasileira nas atividades físico-
desportivas: da segregação à democratização. Tese (Doutorado em Educação Física). Rio de
Janeiro: Universidade Gama Filho, 1998.
PESAVENTO, S. J. História & história cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
SILVA, A. I.; RODRIGUEZ-AÑEZ, C. R.; FROMETA, E. R. O árbitro de futebol: uma
abordagem histórico-crítica. Revista da Educação Física/UEM, Maringá, v.13, n.1, p.39-45,
2002. Disponível em:
<http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/RevEducFis/article/view/3722>. Acesso em: 27
jan. 2016.
THOMPSON, P. A voz do passado. São Paulo: Paz e Terra, 1992.
Recommended