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Formação dos Estados Modernos e do Poder
Aula 4 – Origem do Estado: hipótese econômica
Prof.: Rodrigo Cantu
Karl Marx (1818-1883)
Perry Anderson(1938-)
Marx – Prefácio, Para a Crítica da Economia Política
O meu estudo universitário foi o da jurisprudência, o qual no entanto só
prossegui como disciplina subordinada à filosofia e à história. No ano de
1842-43, como redator da Rheinische Zeitung, vi-me pela primeira vez,
perplexo, perante a dificuldade de ter também de dizer alguma coisa
sobre o que se designa por interesses materiais. Os debates do Landtag
Renano sobre roubo de lenha e parcelamento da propriedade fundiária,
a polémica oficial que Herr von Schaper, então Oberpräsident da
província renana, abriu com a Rheinische Zeitung sobre a situação dos
camponeses do Mosela, por fim as discussões sobre livre-cambismo e
tarifas alfandegárias protecionistas deram-me os primeiros motivos
para que me ocupasse com questões económicas.
Por outro lado, tinha-se nesse tempo — em que a boa vontade de "ir
adiante" repetidas vezes contrabalançava o conhecimento das questões
— tornado audível na Rheinische Zeitung um eco do socialismo e
comunismo francês, sob uma ténue coloração filosófica. Declarei-me
contra esta remendaria, mas ao mesmo tempo confessei abertamente,
numa controvérsia com a Allgemeine Augsburger Zeitung, que os meus
estudos até essa data não me permitiam arriscar eu próprio qualquer
juízo sobre o conteúdo das orientações francesas. Preferi agarrar a mãos
ambas a ilusão dos diretores da Rheinische Zeitung, que acreditavam
poder levar a anular a sentença de morte passada sobre o jornal por
meio duma atitude mais fraca deste, para me retirar do palco público e
recolher ao quarto de estudo.
O primeiro trabalho, empreendido para resolver as dúvidas que me
assaltavam, foi uma revisão crítica da filosofia do direito que Hegel, um
trabalho cuja introdução apareceu nos Deutsch-Französische Jahrbücher
publicados em Paris em 1844. A minha investigação desembocou no
resultado de que relações jurídicas, tal como formas de Estado, não
podem ser compreendidas a partir de si mesmas nem a partir do
chamado desenvolvimento geral do espírito humano, mas enraízam-se,
isso sim, nas relações materiais da vida, cuja totalidade Hegel, na esteira
dos ingleses e franceses do século XVIII, resume sob o nome de
"sociedade civil", e de que a anatomia da sociedade civil se teria de
procurar, porém, na economia política. A investigação desta última, que
comecei em Paris, continuei em Bruxelas, para onde me mudara em
consequência duma ordem de expulsão do Sr. Guizot.
O resultado geral que se me ofereceu e, uma vez ganho, serviu de fio
condutor aos meus estudos, pode ser formulado assim sucintamente: na
produção social da sua vida os homens entram em determinadas
relações, necessárias, independentes da sua vontade, relações de
produção que correspondem a uma determinada etapa de
desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade
destas relações de produção forma a estrutura económica da sociedade,
a base real sobre a qual se ergue uma superstrutura jurídica e política, e
à qual correspondem determinadas formas da consciência social. O
modo de produção da vida material é que condiciona o processo da vida
social, política e espiritual. Não é a consciência dos homens que
determina o seu ser, mas, inversamente, o seu ser social que determina
a sua consciência.
Numa certa etapa do seu desenvolvimento, as forças produtivas
materiais da sociedade entram em contradição com as relações de
produção existentes ou, o que é apenas uma expressão jurídica delas,
com as relações de propriedade no seio das quais se tinham até aí
movido. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas
relações transformam-se em grilhões das mesmas. Ocorre então uma
época de revolução social. Com a transformação do fundamento
económico revoluciona-se, mais devagar ou mais depressa, toda a
imensa superestrutura.
População da Europa (milhões)
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Fonte: Urlanis, B. (1941). Population growth in Europe.
Revolta camponesa na Inglaterra (1381)
Peste Negra (1346-53)
(1974)
Estado absolutista
Organização política que surge na transição do feudalismo
para o capitalismo na Europa Ocidental, para perpetuar
repressão a classes subalternas no contexto da emergência
de uma economia mercantil
Na verdade, é significativo que os anos decorridos entre 1450 e 1500,testemunhas do surgimento dos pródromos das monarquiasabsolutistas no Ocidente, tenham sido também aqueles em que foisuperada a longa crise da economia feudal, através de umarecombinação dos fatores de produção onde, pela primeira vez, osavanços técnicos especificamente urbanos desempenharam o papelprincipal. O feixe de invenções que coincide com a articulação daépoca “medieval” com a época "moderna" é por demais conhecido,sendo desnecessário discuti-lo aqui. A descoberta do processo seigerpara separar a prata do minério de cobre reabriu as minas da Europacentral e restabeleceu o fluxo de metais para a economiainternacional; a produção de moeda da Europa central quintuplicouentre 1460 e 1530. O desenvolvimento do canhão de bronze fundidofez da pólvora, pela primeira vez, a arma decisiva na arte da guerra,tornando obsoletas as defesas dos castelos senhoriais. A invenção dostipos móveis possibilitou o advento da imprensa. A construção dogaleão de três mastros, com leme à popa, tornou os oceanosnavegáveis, facilitando as conquistas ultramarinas.
O feudalismo como modo de produção definia-se por uma unidadeorgânica de economia e dominação política, paradoxalmentedistribuída em uma cadeia de soberanias parcelares por toda aformação social. A instituição do trabalho servil, como mecanismo deextração de excedente, fundia a exploração econômica e a coerçãopolítico-legal, no nível molecular da aldeia. O senhor, por sua vez,tinha normalmente o dever de vassalagem e de serviço militar paracom o seu suserano senhorial, que reclamava a terra como seudomínio supremo. Com a comutação generalizada das obrigações,transformadas em rendas monetárias, a unidade celular de opressãopolítica e econômica do campesinato foi gravemente debilitada eameaçada de dissolução (o final deste processo foi o "trabalho livre” eo “contrato salarial”). O poder de classe dos senhores feudais estavaassim diretamente em risco com o desaparecimento gradual daservidão. O resultado disso foi um deslocamento da coerção político-legal no sentido ascendente, em direção a uma cúpula centralizada emilitarizada — o Estado absolutista.
Simultaneamente, porém, a aristocracia tinha que se adaptar a umsegundo antagonista: a burguesia mercantil que se desenvolvera nascidades medievais. Viu-se que foi precisamente a intercalação destaterceira presença que impediu a nobreza ocidental de ajustar suascontas com o campesinato à maneira oriental, esmagando a suaresistência para agrilhoá-lo ao domínio. A cidade medieval fora capazde desenvolver-se porque a dispersão hierárquica de soberanias nomodo de produção feudal libertara pela primeira vez as economiasurbanas da dominação direta de uma classe dirigente rural. Nestesentido, as cidades nunca foram exógenas ao feudalismo no Ocidente,como vimos: com efeito, a própria condição de sua existência era asingular “destotalização” da soberania no interior da ordem político-econômica do feudalismo. [...] Indústrias urbanas importantes comoas do ferro, papel e têxteis cresceram durante toda a depressão feudal.À distância, tal vitalidade econômica e social atuava como umainterferência constante e objetiva na luta de classes centrada na terra,e bloqueava qualquer solução regressiva proposta pelos nobres.
A ameaça da inquietação camponesa, incontestavelmente
constitutiva do Estado absolutista, sempre se conjugou, assim, com
a pressão do capital mercantil ou manufatureiro no seio das
economias ocidentais em seu conjunto, moldando os contornos do
poder de classe aristocrático na nova era. A forma peculiar do
Estado absolutista no Ocidente deriva desta dupla determinação.
As alterações nas formas de exploração feudal sobrevindas nofinal da época medieval estavam, naturalmente, longe de sereminsignificantes. Na verdade, foram precisamente essas mudançasque modificaram as formas do Estado. Essencialmente, oabsolutismo era apenas isto: um aparelho de dominação feudalrecolocado e reforçado, destinado a sujeitar as massascamponesas à sua posição social tradicional — não obstante econtra os benefícios que elas tinham conquistado com acomutação generalizada de suas obrigações. Em outras palavras, oEstado absolutista nunca foi um árbitro entre a aristocracia e aburguesia, e menos ainda um instrumento da burguesia nascentecontra a aristocracia: ele era a nova carapaça política de umanobreza atemorizada. [...] A nova forma de poder da nobreza foi,por sua vez, determinada pela difusão da produção e troca demercadorias, nas formações sociais de transição do início daépoca moderna.
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