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17/6/2014 Revista Cult » Uma sequencia de atos
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Uma sequencia de atosPara Judith Butler, o gênero “é a contínua estilização do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de umquadro regulatório altamente rígido e que se cristaliza ao longo do tempo”
TAGS: Guacira Lopes Louro, Judith Butler, Uma sequencia de atos
Guacira Lopes Louro
Cena do longa Laurence Anyways (2012) em que o ator Melvil Poupaudvive Laurence, um homem que não se identifica com seu gênero
Uma garota indisciplinada que não seguia regras e costumava contestar os professores. Umagarota- -problema, ainda que reconhecida como inteligente. Assim Judith Butler se lembra deter sido caracterizada na infância. Por matar aulas e desobedecer às ordens, o diretor da escolaadvertiu seus pais que ela poderia vir a ser uma delinquente. Havia que desviá-la do maucaminho, e o corretivo encontrado foi obrigá-la a ter aulas particulares com o rabino. Noentanto, contrariando o que pensavam, o castigo pareceu-lhe “uma coisa formidável”. Elaadorava ouvir o rabino, fazia-lhe as mais incríveis perguntas e, acolhida por ele, discutia temasimprováveis para quem estava apenas entrando na adolescência.
O caráter inquieto, um toque de rebeldia, a constante desconfiança em relação ao que é postocomo estabelecido e definitivo parecem ter se tornado seus traços mais marcantes. Se a meninagostava de fazer perguntas, a mulher continuou se mostrando uma questionadora incorrigível;a intelectual passou a pôr em xeque “verdades” consagradas; e a escritora… Bem, seus textostornaram-se mais famosos pelas indagações que propõem do que pelas soluções ou respostasque eventualmente fornecem.
Avessa a palavras de ordem, essa mulher, dita feminista, também não se absteve de pôr emquestão algumas das consagradas proclamações do feminismo. Em 1990, ela lançouProblemas de gênero – feminismo e subversão da identidade [Gender Trouble], um livro plenode questionamentos e provocações que até hoje é, provavelmente, sua obra mais conhecida. Nacapa da edição original, da Routledge, uma foto antiga de duas crianças trajando vestidos. Ummenino e uma menina? Ou não? Dizem os créditos que se trata do retrato de duas irmãs, umadelas com “jeito” de garoto e a outra com aparência mais “feminina”. A foto perturba o olhar.Perturba a noção de gênero. Sugere gender trouble.
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O que é gênero afinal? É algo com que nascemos? Algo que nos é designado definitivamente,de uma vez por todas? Algo que aparentamos, por ações, gestos, comportamentos, moda?Como se faz um gênero? Como alguém se torna um sujeito de gênero? E quando issoacontece? O que sexo tem a ver com gênero?
Judith Butler mergulhou nessas questões e em muitas outras. Ensaiou respostas, mas longe dese mostrar satisfeita, continuou, ao longo de vários livros e incontáveis artigos, entrevistas epalestras, refazendo as perguntas, complicando o jogo, invertendo a lógica. Claro que ela leuSimone de Beauvoir e, como tantas outras pensadoras, também se remete à clássica afirmaçãode que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. Contudo, sendo uma atravessadora dedisciplinas e de áreas, passou a combinar leituras feministas com as de teóricos e teóricas dosmais diversos matizes e é com o aporte desse conjunto heterogêneo que produz suas reflexões,muitas vezes na contracorrente ou até a contrapelo daquilo que leu. É para o “tornar-semulher”, para o devir que Beauvoir anunciara, que ela volta seu interesse. Entende que esse éum processo contínuo do qual não se pode precisar o fim. Talvez nem mesmo a origem. Maisdo que isso, acredita que é um processo do qual nunca se atingiria a meta. E se isso é pensadosobre a mulher, também pode ser pensado sobre o homem. “O gênero”, diz Butler, “é acontínua estilização do corpo, um conjunto de atos repetidos, no interior de um quadroregulatório altamente rígido, que se cristaliza ao longo do tempo para produzir a aparência deuma substância, a aparência de uma maneira natural de ser”.
Tornar-se um sujeito feminino ou masculino não é uma coisa que aconteça num só golpe, deuma vez por todas, mas que implica uma construção que, efetivamente, nunca se completa.Butler complica a noção de “identidade de gênero”. Afirma que gênero não é algo que somos,mas algo que fazemos. Não é algo que se “deduz” de um corpo. Não é natural. Em vez disso, éa própria nomeação de um corpo, sua designação como macho ou como fêmea, comomasculino ou feminino, que “faz” esse corpo. O gênero é efeito de discursos. O gênero éperformativo.
É com apoio em Austin e Derrida que Butler desenvolve a noção de performatividade degênero. Em Austin, ela vai buscar inspiração na teoria dos atos de fala (que distingue entre osenunciados constatativos, aqueles que descrevem um fato, uma situação, e os performativos,aqueles que, ao serem proclamados, produzem, isto é, fazem acontecer aquilo queproclamam). De Derrida (que desconstruíra em parte a teoria de Austin), ela tomaemprestadas noções como citacionalidade e reiteração. Relê essas teorias de um modo próprio eexplora sua potencialidade para pensar o gênero e o sexo.
A atriz Julie Andrews em Victor ou Victória, longa do cineasta norte-americano Blake Edwards, de 1982
“Interpelação fundante”
O anúncio “é uma menina” ou “é um menino”, feito por um profissional diante da tela de umaparelho de ultassonografia morfológica, põe em marcha o processo de fazer deste ser umcorpo feminino ou masculino, acredita Butler. Esse ato, de caráter performativo, inaugurauma sequência de atos que vai constituir alguém como um sujeito de sexo e de gênero. Paraela, mais do que a descrição de um corpo, tal declaração designa e define o corpo. O anúnciopode ser compreendido como uma espécie de “interpelação fundante”, mas, adverte ela, nadaestá resolvido de forma absoluta neste momento; a interpelação precisa ser “reiterada porvárias autoridades, e ao longo de vários intervalos de tempo, para reforçar ou contestar esseefeito naturalizado”. Um grande investimento vai ser empreendido para confirmar talnomeação. Ela não está absolutamente garantida. Precisará ser repetida, citada e recitadaincontáveis vezes, nas mais distintas circunstâncias. E poderá, igualmente, ser negada esubvertida. O devir pode tomar muitas direções. O terreno do gênero é escorregadio e cheio deambivalências.
É interessante pensar que o corpo vem a existir através de um discurso – generificado – que se
No Bloomsday, o tradutor Caetano Galindo
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faz sobre ele. Admitindo esse argumento, parece razoável supor que não há corpo que não seja,desde sempre, generificado, isto é, marcado por, ou feito no, gênero. E é por vias como essa queButler acaba perturbando a distinção sexo/gênero. O sexo, assim como o gênero, é efeito dediscursos.
Ela entende que a nomeação de um corpo implica, ao mesmo tempo, o estabelecimento defronteiras e a repetição de normas de gênero. Impossível esquecer que essa nomeação é feita“no interior de um quadro regulatório altamente rígido”, o da heterossexualidade. Tudo isso,contudo, parece sugerir um determinismo ou uma estabilidade que não combinam com apensadora dita inquieta e desobediente.
Quais as possibilidades de desvio? Como se perturbariam as normas? Onde se encontrariaespaço para a subversão? Como ou quando ocorreriam rupturas, repúdios?
Butler discorre sobre esses temas em muitos de seus textos e palestras. Mas talvez sejaparticularmente expressiva quando conta, num depoimento gravado para a televisão francesa,o quanto e como sua família judia buscava integrar- se à sociedade norte-americana. Natentativa de incorporar as normas de gênero daquela sociedade, lembra que sua mãe, seu pai etambém seus avós buscavam se aproximar mais e mais das referências de masculinidade e defeminilidade então predominantes, aquelas que representavam, na sua percepção ou napercepção da época, o que seria desejável. Hollywood era sua referência. Os astros e as estrelashollywoodianos pareciam expor ou representar as formas mais acabadas dos dois gêneros.Butler recorda, então, as tentativas e as falhas dos homens e das mulheres de sua família. E, aonarrar esse episódio, ela afirma, com veemência, que o fracasso é sempre possível; na verdade,acentua, “o fracasso talvez seja mais interessante”.
Performativos de gênero são repetidos constantemente. Citados e recitados em contextos ecircunstâncias distintas; no âmbito da família, da escola, da medicina; na mídia, em suas maisdiversas expressões; nas regulamentações da justiça ou da religião. Não obterão, contudo,exatamente os mesmos resultados. Os efeitos dos performativos são sempre imprevisíveis. Apossibilidade de insucesso, que Derrida já demonstrara ao analisar a teoria de Austin, éexplorada por Butler em sua reflexão sobre o gênero. A falha, que é intrínseca aosperformativos, pode ser produtiva. É na possibilidade do fracasso que reside o espaço para aressignificação e para a subversão no terreno dos gêneros e da sexualidade.
Mas tudo isso acontece por acaso ou por escolha dos sujeitos? Em outras palavras, alguém seempenha deliberadamente em fracassar? Ou tenta ser bem sucedido e fracassa? Serão osfracassos sempre subversivos? Aqui um dos pontos escorregadios e complexos do pensamentode Butler: a possibilidade de agência dos sujeitos. Ela afirma, em vários de seus textos, que ogênero é uma escolha, mas observa que essa não é uma escolha absolutamente livre. Éimpossível imaginar alguém que, colocado em algum lugar fora do gênero (onde?), seja capazde escolher o que deseja “ser”. Uma vez que “alguém já é seu gênero, a escolha do ‘estilo degênero’ é sempre limitada, desde o início”, como diz Sara Salih em seu livro sobre Butler. Apossibilidade de agência é, portanto, sempre restringida. O sujeito pode, sim, interpretar asnormas existentes; pode ressignficá-las, dotá-las de um signficado distinto; pode,eventualmente, organizá-las de um jeito novo, ainda que isso seja feito de modo constrangido elimitado. Efetivamente, estamos sempre fazendo isso. Todos os sujeitos interpretam, de seujeito, continuamente, as normas regulatórias de sua cultura, de sua sociedade.
Mas (e a adversativa é importante) aqueles e aquelas que não “fazem” seu gênero“corretamente” são, muitas vezes, punidos. Os desvios, a depender das circunstâncias em queacontecem, a depender de sua extensão ou intensidade, costumam implicar em danossimbólicos e físicos, morais e sociais. As falhas e desvios podem, por outro lado, se constituir emoportunidade para reconstruções subversivas da identidade; podem até mesmo, aposta Butler,se prestar a uma política de ressignficação dos gêneros.
O desprezo e o escárnio usados para nomear quem se desvia das normas de gênero podem serrevertidos. A designação ofensiva pode ser ressignficada. Ainda que os vestígios de um discursode ódio não sejam completamente apagados, eles podem ser recofigurados. A nomeaçãoinjuriosa pode ser reapropriada de forma afirmativa.
Normas de gênero podem também ser citadas em contextos distintos, exibidas de modo aexpor, de forma radical, seu caráter fabricado e construído. É o que faz, por exemplo, umadrag queen. A drag se aproxima do objeto que imita e, ao mesmo tempo, o expõe e o critica.Pelo excesso e pelo exagero, escancara as normas de gênero e demonstra seu caráter artificial.Ela pode ser vista como um exemplo de subversão e também de possibilidade de agência. Mas(e de novo a adversativa) a figura da drag não será sempre, necessariamente, subversiva. Porvezes, as formas paródicas de gênero acabam por provocar, tão somente, o riso inconsequente.De algum modo domesticadas ou colonizadas no interior da matriz heterossexual, elas podem,mais uma vez, por vias outras, reforçar as diferenças e as hierarquias.
As normas de gênero acabam por se impor sempre, inexoravelmente? É possível driblá-las dealgum modo? Quais as possibilidades e os limites para a agência? Quando uma reconstrução éefetivamente subversiva? Quando se constitui em renovada dissimulação das normas? Ainquietude de Butler contagia.
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Guacira Lopes Louroé doutora em Educação. Autora, entre outros títulos, de Um corpo estranho – ensaios sobresexualidade e teoria queer (Autêntica)
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