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IDEOLOGIA HETERONORMATIVA: UMA CRÍTICA À LUZ DA TEORIA QUEER
Bruna Camilo de Souza Lima e Silva1
João Felipe Zini Cavalcante de Oliveira2
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo fazer uma análise crítica do domínio que a
heteronormatividade tem sobre as normas das identidades sexuais e de gêneros, tendo como
foco a comunidade LGBT. Debruçar-nos-emos sobre a Teoria Queer, que desafia a ideologia
heteronormativa através dos seus estudos sobre as diversas identidades existentes. Para tanto,
parte-se da análise do discurso, significado e significante, de modo a explanar as
subversividades das identidades de gênero dissidentes. Com base no exposto, o presente
trabalho busca analisar o conceito de ideologia, heteronormatividade e explicar os motivos
que levam a sociedade a se submeterem a hegemonia da norma. Ademais, o artigo tem como
objetivo, a partir da Teoria Queer, expor os novos conceitos que surgem para contrapor a
ideologia a ser questionada. Para base nesses estudos procura-se usar como marco teórico
Judith Butler, Joan Scoot, Jacques Derrida e Guacira Lopes Louro, que trouxeram à tona
questões de sexualidade e gênero. Por fim, o trabalho proposto tem como objetivo análise e
crítica da ideologia heteronormativa, propondo um espaço de reflexão e desconstrução da
norma que pesa sobre nós, possuindo reflexos em todos os espaços de existência do ser e de
seu corpo.
Palavras- chave: Heteronormatividade, Teoria Queer, identidade de gênero, subversão.
1 INTRODUÇÃO
Há séculos a ideologia heteronormativa usa de argumentos biológicos, religiosos e
políticos para determinar padrões a serem seguidos por todos e todas. As normas abrangem
diversas categorias existentes no cotidiano de uma pessoa, desde o modo de falar até decisões
a serem tomadas. Todo comportamento fora da norma é visto como “anormal”, portanto, não
reconhecido pela ideologia em questão. Na cultura em que vivemos é comum, normal e dever
da mulher se casar com um homem que sustente a casa, ter filhos e ser responsável pela
educação deles. A identificação de gêneros distintos e definidos em uma relação é essencial
para que ela seja enquadrada na heteronormatividade, além disso, as instituições sociais
1 Graduanda de Ciências do Estado pela UFMG. E-mail: brunalimaa25@gmail.com 2 Graduando de Direito pela UFMG. E-mail: niizufmg@hotmail.com
impõem essa distinção para qualquer que seja a circunstância por meio do sexo biológico, ou
seja, mulheres possuem vagina e homens possuem pênis e isso basta para explicar o que é
masculino e feminino, sendo essa uma explicação falaciosa, superficial e discriminatória. A
naturalização imposta em nossa sociedade descarta quaisquer que sejam outras identidades,
assim, estigmatizando pessoas que subvertem a ideologia hegemônica.
Com base no exposto, o presente trabalho busca analisar o conceito de ideologia,
heteronormatividade e explicar os motivos que levam as pessoas a se submeterem a
hegemonia da norma. Ademais, o artigo tem como objetivo, a partir da Teoria Queer, expor
os novos conceitos que surgem para contrapor a ideologia questionada. Para base nesses
estudos procura-se usar como marco teórico Judith Butler, Joan Scott e Guacira Lopes Louro,
além de autores como Foucault e Jacques Derrida, que trouxeram à tona questões de
sexualidade e gênero, significado e significante.
É mister ressaltar a importância da diversidade sexual e de gênero na
contemporaneidade, tendo em vista o conservadorismo tanto vinda da sociedade civil quanto
das entidades responsáveis pelo bem-estar dos indivíduos. Negar o direito à comunidade
LGBT é violar a dignidade da pessoa humana, liberdade e outros princípios fundamentais que
estão expressos na CF/88. É um desafio na atualidade reconhecer os direitos para casais
homoafetivos, travestis e pessoas transexuais diante dos conflitos ideológicos e políticos que
cercam a sociedade, para tanto, se faz necessário uma crítica ao sistema em que estamos
inseridos e compreensão de como as identidades se constituem, sem estigmatizar indivíduos
que não se encaixam na ideologia heteronormativa. Por fim, o artigo tem o intuito de mostrar
a necessidade da desconstrução da hegemonia heteronormativa que silencia, oprime e viola
direitos fundamentais dos indivíduos.
2 HETERONORMATIVIDADE: UMA QUESTÃO DE IDEOLOGIA
Ideologia, de modo geral, é um conjunto de ideias, convicções e pensamentos de
determinado indivíduo ou grupo, que está, de modo geral, ligado a ações políticas,
econômicas e sociais. O filósofo Karl Marx ligava o conceito aos sistemas criados pela classe
dominante, ou seja, para os marxistas a ideologia é uma forma de manter a ordem social
favorável aos mais ricos. Para o pensador alemão, a ideologia não surge do nada, ou melhor, é
construída a partir das relações socioeconômicas, da luta de classes, das contradições que
existem na sociedade, com o objetivo de justificar os conflitos, dessa forma, tornando-os
naturais e aceitáveis3.
A heteronormatividade, como o próprio nome já sugere, é uma norma heterossexual
tomada como natural e já difundida em nossa sociedade. Meyer e Petry explicam:
A heteronormatividade visa regular e normatizar modos de ser e de viver os desejos
corporais e a sexualidade De acordo com o que está socialmente estabelecido para as
pessoas, numa perspectiva biologicista e determinista, há duas – e apenas duas –
possibilidades de locação das pessoas quanto à anatomia sexual humana, ou seja,
feminino/fêmea ou masculino/macho4.
Ao nos depararmos com um indivíduo já pressupomos um gênero, sexualidade e
outras diversas características, que por vezes, não condiz com a “normalidade” que a
sociedade impõe. A pessoa quando inserida em um grupo, desde sua concepção, está sujeita
ao poder de coerção externa descrita por Durkheim, que explica que a pressão sociológica,
muitas vezes não percebida, está diretamente ligada a moral, religião, costumes e educação.
Nessa esteira, Althusser5 também descreve a complexidade da sociedade a partir de aparelhos
ideológicos de Estado, estes também relacionados às instituições sociais mencionadas por
Durkheim6 que influenciam o comportamento dos indivíduos. Esses métodos de coerção
seguem o padrão heteronormativo.
As principais vítimas da ideologia heteronormativa são as pessoas LGBT e mulheres
heterossexuais cis, devido ao gênero e sexualidade não condizerem com a norma e por conta
do machismo que oprime não somente as mulheres, mas também capaz de desestruturar toda
uma família, sem contar com a polêmica sobre a legalização do aborto que não é discutida
pela nossa política e, enquanto isso, mulheres morrem por conta do desamparo do Estado.
Outro ponto polêmico que envolve a política é a introdução da ideologia de gênero nos Planos
Nacionais de Educação, que por conta do conservadorismo da política brasileira a
possibilidade de tal medida ser barrada é grande. Ensinar sobre gênero nas escolas é
empoderar, emancipar, dar visibilidade a direitos poucos discutidos pela sociedade.
3 MARX, Karls; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Tradução de Rubens Enderle et. al. São
Paulo: Boitempo, 2015. 4 MEYER, Dagmar Elisabeth Estermann; PETRY, Analídia Rodolpho. Transexualidade e
heteronormatividade: algumas questões para a pesquisa. Textos & Contextos: Porto Alegre, v. 10, n. 1, p.
193 - 198, jan./jul. 2011, p. 195 5 ALTHUSSER. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. Trad. Joaquim José de Moura Ramos. Lisboa:
Presença. 6 DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
Por meio das instituições sociais já citadas, a norma é propagada nas escolas, igreja,
economia de uma forma geralmente sutil, capaz de silenciar a vítima com um sentimento de
culpa. Homossexuais fogem totalmente da norma no que diz respeito à identidade sexual,
adoção e casamento e, por isso, sujeitos a discriminação vinda não só da família, mas também
de instituições públicas que tem o dever que amparar pelos mais diversos motivos.
Percebe-se a discriminação, nos pedidos de adoção feitos por casais homoafetivos e
casamento, onde o judiciário do nosso país ainda conservador em muitas das decisões
impedem a busca pelo bem- estar dessas pessoas.
De forma semelhante ou até pior, na maioria dos casos, vivem as travestis e pessoas
transexuais, que subvertem o conceito de gênero imposto pela ideologia hegemônica.
Diferentemente da homossexualidade, a transexualidade ainda está no rol mundial de doenças
e, por isso, são patologizadas todo o momento nos hospitais, escola e judiciário, por exemplo.
O desrespeito ao nome social, o uso de laudos médicos para diagnosticar a “doença” e
o processo burocrático para retificação de sexo e gênero nos registros civis e cirurgia de
transgenitalização são alguns dos problemas enfrentados por esses indivíduos cotidianamente.
Sobre a transexualidade no ambiente heteronormativo, pode-se afirmar:
Esta esperada “coerência natural” entre sexo-gênero-sexualidade, que os indivíduos
deveriam apresentar, isto é, a “viagem planejada” que os sujeitos deveriam seguir,
entretanto, também situa e define fortemente os corpos que “escapam” e trilham
outros trajetos. Estes indivíduos transgridem as normas esperadas, assumindo outras
formas de sexualidade e de gênero. Os sujeitos que escapam desafiam o instituído
demonstrando que a esperada relação gênero-sexo-sexualidade não pode ser
entendida como linear e “natural”. Esta relação pode ser deslocada!7
Dessa forma, o gênero enquanto uma referência de status quo, em consonância com a
sexualidade, postula a forma heteronormativa de como homens e mulheres devem se
comportar perante as pessoas e, como já dito, quem foge da ordem social é estigmatizado e
submetido a condições precárias, ocupando territórios marginalizados e subalternos, longe dos
olhos heterossexuais da moralidade.
Mas afinal, estamos predestinados à heteronormatividade? Teremos sempre mulheres
padronizadas responsáveis pelo lar e homens “naturalmente machos” com liberdade de
propagar machismo? E as pessoas LGBT’s, sempre fadadas ao descaso e discriminação?
Essas questões por muito tempo não foram levadas à tona com uma perspectiva que não fosse
científica, religiosa ou moral, mas a partir do séc. XX, sob um olhar sociológico, questionador
7 Ibidem, p. 195.
e crítico, filósofos e filósofas buscam a desconstrução da ideologia heteronormativa e, com
isso, constroem novos conceitos de identidades sexuais e de gênero, inclusivas, diversas e
humanas.
Autores como Foucault e Jacques Derrida8 inspiraram a Teoria Queer e sua principal
percursora, Judith Butler, a subverter a norma e tornar visíveis formas, pensamentos e
comportamentos excluídos há tempos pela ideologia imposta em nossas vidas9.
3 TEORIA QUEER E A CRÍTICA À IDEOLOGIA HETERONORMATIVA
A palavra queer não possui tradução, mas está relacionada a tudo que parece estranho
aos olhos da heteronormatividade e, por isso, é adotado esse nome à Teoria, de forma
estratégica a fim de criticar a ideologia que reproduz a normatização, binarismo e
estigmatização dos corpos que subvertem a norma, como travestis e pessoas trans:
O interesse queer por travestis, transexuais e pessoas intersex se deve ao
compromisso científico de crítica dos apanágios identitários e concepções de
sujeitos unitários e estáveis. A Teoria Queer busca romper as lógicas biná- rias que
resultam no estabelecimento de hierarquias e subalternizações, mas não apela à
crença humanista, ainda que bem intencionada, nem na “defesa” de sujeitos
estigmatizados, pois isto congelaria lugares enunciatórios como subversivos e
ignoraria o caráter contingente da agência. A crítica da normalização aposta na
multiplicação das diferenças que podem subverter os discursos totalizantes,
hegemônicos ou autoritários. Neste sentido, a Teoria Queer mostra que identidades
são inscritas através de experiências culturalmente construídas em relações sociais, e
o êxito de investigações que busquem articular estas esferas dependerá do
desenvolvimento de metodologias que não apenas permitam estudar cada um dos
componentes dos processos sociais de constituição das identidades, mas, sobretudo,
analisem as interdependências entre as categorias, de forma que não resultem na
soma de opressões.10
A Teoria Queer nos admite pensar na multiplicidade dos corpos, na liberdade em
transitar entre gêneros e sexualidades, como explica Tomaz:
(...) tal como o feminismo, a teoria queer efetua uma verdadeira reviravolta
epistemológica. A teoria queer quer nos fazer pensar queer (homossexual, mas
também “diferente”) e não straight (heterossexual, mas também “quadrado”): ela
nos obriga a considerar o impensável, o que é proibido pensar, em vez de
simplesmente considerar o pensável, o que é permitido pensar. (...) O queer se torna,
assim, uma atitude epistemológica que não se restringe à identidade e ao
conhecimento sexuais, mas que se estende para o conhecimento e a identidade de
8 DERRIDA, Jacques. Margens da filosofia. Porto: Rés-Editora. 9 DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 2004 10 MISKOLCI, Richard. A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da normalização. Porto
Alegre: Sociologias, ano 11, nº 21, jan./jun. 2009, p. 175-176
modo geral. Pensar queer significa questionar, problematizar, contestar, todas as
formas bem comportadas de conhecimento e de identidade. A epistemologia queer é,
neste sentido, perversa, subversiva, impertinente, irreverente, profana,
desrespeitosa.11
Essa ideologia tem como conceito principal a problematização da identidade sexual,
mostrando o quão é superficial e hipócrita a forma imposta, expondo também, a existência de
possibilidades de identidades. Para entender mais sobre os princípios da Teoria Queer, León
as 05 ideias centrais:
1. As identidades são sempre múltiplas, compostas por um número infinito de
“componentes de identidade” — classe, orientação sexual, gênero, idade,
nacionalidade, etnia, etc. – que se podem articular de inúmeras formas.
2. Qualquer identidade construída – como, de resto, todas são – é arbitrária, instável
e excludente, uma vez que implica o silenciamento de outras experiências de vida.
Na verdade, a afirmação de uma identidade, em vez de constituir um processo de
libertação, obedece a imperativos estruturais de disciplina e regulação que visam
confinar comportamentos individuais, marginalizando outras formas de apresentar o
“eu”, o corpo, as ações e as relações entre as pessoas. Steve Seidman11 formula este
pressuposto quando afirma que as identidades são, em parte, “formas de controle
social uma vez que distinguem populações normais e desviantes, reprimem a
diferença e impõem avaliações normalizantes relativamente aos desejos”
3. Ao invés de defender o abandono total da identidade enquanto categoria política,
a teoria queer propõe que reconheçamos o seu significado permanentemente aberto,
fluído e passível de contestação, abordagem que visa encorajar o surgimento de
diferenças e a construção de uma cultura onde a diversidade é acolhida. Portanto, o
papel individual – como forma de capacitação – e coletivo – em termos políticos,
jurídicos e de reconhecimento social – que a identidade pode desempenhar não é
rejeitado.
4. A teoria queer postula que a teoria ou política de homossexualidade centrada no
“homossexual” reforça a dicotomia hetero/homo, fortalecendo o atual regime sexual
que estrutura e condiciona as relações sociais ocidentais. Neste sentido, a teoria
queer visa desafiar tal regime sexual enquanto sistema de conhecimentos que coloca
as categorias heterossexual e homossexual como pedras angulares das identidades
sexuais. De fato, a teoria queer considera a hetero e a homossexualidade como
categorias de conhecimento, uma linguagem que estrutura aquilo que conhecemos
sobre corpos, desejos, sexualidades e identidades.
5. Por fim, a teoria queer apresenta-se enquanto proposta de teorização geral sobre a
sexualização de corpos, desejos, ações, identidades, relações sociais, conhecimentos,
cultura e instituições sociais.12
Com relação dos estudos queer e heteronormatividade, Miskolci explica que:
O foco queer na heteronormatividade não equivale a uma defesa de sujeitos não-
heterossexuais, pois ele é, antes de mais nada, definidor do empreendimento
desconstrutivista dessa corrente teórica com relação à ordem social e os
pressupostos que embasam toda uma visão de mundo, práticas e até mesmo uma
epistemologia. Em síntese, o estudo da sexualidade necessariamente implica
explorar os meandros da heteronormatividade, tanto a homofobia materializada em
11 SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo
Horizonte: Autêntica, 1999, p. 107. 12 LEÓN, Adriano de. As artes da Tirania: sexo, Foucault e Teoria Queer. Revista Ártemis, vol. 10. Jun.
2009, p. 89, disponível em <http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/artemis/article/view/11828/6882>Acesso
em: 06 de ago. de 2015.
mecanismos de interdição e controle das relações amorosas e sexuais entre pessoas
do mesmo sexo, quanto a padronização heteronormativa dos homo orientados13.
Entendendo que a ideologia heteronormativa é uma norma de padrão social, ético,
moral, científico, religioso, político e comportamental construído historicamente como
"natural", o gênero e a sexualidade eram, até determinada época, condições predestinadas e
padronizadas. A partir de filósofos como Jaques Derrida e Michel Foucault, iniciaram-se
estudos que questionavam essa norma hegemônica. Em sua obra A história da sexualidade I:
a vontade de saber, Foucault ressalta a proliferação da discussão sobre sexo e sexualidade,
essas sempre classificadas e naturalizadas. Sobre esse discurso o autor explica:
(...)todos esses controles sociais que se desenvolveram no final do século passado e
filtram a sexualidade dos casais, dos pais e dos filhos, dos adolescentes perigosos e
em perigo- tratando de proteger, separar, prevenir, assinalando perigos por toda
parte, despertando as atenções, solicitando diagnósticos, acumulando relatórios,
organizando terapêuticas; em torno do sexo eles irradiaram os discursos,
intensificando a consciência de um perigo incessante que constitui, por sua vez,
incitação a se falar dele.14
Dessa forma, a proliferação discursiva do sexo e da sexualidade mostra a existência de
identidades sexuais diversas classificadas em detrimento de técnicas que procuram
“normalizar”, controlar e modelar, estabelecendo formas “normais” e “perversas” de prazer,
sendo esse, um dos pontos de encontro entre a Teoria Queere Foucault.
Sobre a sexualidade, León explica que
Michel Foucault constrói, portanto, uma nova hipótese acerca da sexualidade
humana, segundo a qual esta não deve ser concebida como um dado da natureza que
o poder tenta reprimir. Deve, sim, ser encarada como produto do encadeamento da
estimulação dos corpos, da intensificação dos prazeres, da incitação ao discurso, da
formação dos conhecimentos, do reforço dos controles e das resistências. As
sexualidades são, assim, socialmente construídas. Assim como a hipótese repressiva,
é uma explicação que funciona. Cada um que aceite a verdade que mais lhe convém.
Ou invente novas verdades.15
Afinal, o que é ser mulher ou homem? Há décadas, Simone de Beauvoir com sua
frase Ninguém nasce mulher, torna-se mulher ganhou o mundo e tornou-se o centro das
discussões relacionadas ao gênero, “que parece ter feito sua aparição inicial entre as
feministas americanas com o intuito de enfatizar o caráter fundamentalmente social
13 MISKOLCI, Richard. A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da normalização. Porto
Alegre: Sociologias, ano 11, nº 21, jan./jun. 2009, p. 157. 14 FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade do saber. 19° ed.Trad. Maria Thereza da Costa
Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988, p.37. 15 LEÓN, Adriano de. As artes da tirania: sexo, Foucault e Teoria Queer. Revista Ártemis, vol. 10.
Jun.2009,p.88,disponível em <http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/artemis/article/view/11828/6882>Acesso
em: 06 de ago. de 2015.
das distinções baseadas no sexo” 16. Muita coisa mudou após a celebre frase de Beauvoir, e a
discussão sobre gênero não se esgotou entre as feministas, pelo contrário, se alastrou ao longo
dos tempos sendo questionado também pelos homens.
Desse modo, explica-se:
Assim, falar sobre gênero não significa falar “de mulher”, mas questionar as
maneiras como socialmente construímos as categorias “mulher” e “homem”. Pensar
sobre gênero é pensar necessariamente sobre essas relações, marcadamente culturais
e históricas, não negando a materialidade dos corpos, mas entendendo que esses
corpos só são inteligíveis (compreensíveis) a partir de processos de significação
culturalmente, historicamente e politicamente construídos. 5
Portanto, não existem determinações naturais sobre como deve ser o comportamento
do homem e da mulher, mas diversas regras que a sociedade impõe desde os primórdios,
como se fossem determinações biológicas. Tais regras advêm da ideologia
heteronormativa que busca, através da ciência e religião, comprovar e impor a dualidade de
gênero como única e inquestionável. Atualmente, busca-se ir contra o conceito de gênero
voltado para as mencionadas determinações biológicas, e confirmar cada vez mais seu caráter
social, pois é nele que se constrOi as relações entre sujeitos, como afirma Guacira Lopes
Louro:
Na medida em que o conceito afirma o caráter social do feminino e do masculino,
obriga aquelas/es que o empregam a levar em consideração as distintas sociedades e
os distintos momentos históricos de que estão tratando. Afasta-se (ou se tem a
intenção de afastar) proposições essencialistas sobre os gêneros; a ótica está dirigida
para um processo, para uma construção, e não para algo que exista a priori. O
conceito passa a exigir que se pense de modo plural, acentuando que os projetos e as
representações sobre mulheres e homens são diversos. Observa-se que as
concepções de gênero diferem não apenas entre as sociedades ou os momentos
históricos, mas no interior de uma dada sociedade, ao se considerar os diversos
grupos (étnicos, religiosos, raciais, de classe) que a constituem17.
Os estudos iniciais sobre gênero e sexualidade tem influência de uma corrente teórica
denominada Desconstrução, que tem como um dos percursores o filósofo Jaques Derrida.
Essa teoria pretende minimizar as correntes hierárquicas sustentadas pela norma hegemônica,
assim, abalando os conceitos já instaurados, sem destruí-los, como explica Jonathan Culler:
Desconstruir uma oposição é mostrar que ela não é natural e nem inevitável, mas
uma construção, produzida por discursos que se apoiam nela, e mostrar que ela é
uma construção num trabalho de desconstrução que busca desmantelá-la e
16 SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Traduzido por Tomaz Tadeu da Silva. Vol.
2, n.2. Porto Alegre: Educação & Realidade. Jul/dez. 1995, p. 72. 17 LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação. Uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis:
Vozes, 1997, p. 23.
reinscrevê-la - isto é, não destruí-la mas dar-lhe uma estrutura e funcionamento
diferentes18.
A corrente Desconstrução de Derrida inspirou a arquitetura, filosofia, metafísica,
política e principalmente a Teoria Queer. A partir da década de 90, a temática se destaca pelos
estudos de gênero, sexualidade e a desconstrução destes, constituindo um campo de pesquisa
variado influenciado por filósofos como Michel Foucault e Jaques Derrida, como já dito.
Nessa perspectiva, Richard Miskolci afirma:
A contribuição de Jacques Derrida para a Teoria Queer pode ser resumida a seu
conceito de suplementaridade e à perspectiva metodológica da desconstrução. A
suplementaridade mostra que significados são organizados por meio de diferenças
em uma dinâmica de presença e ausência, ou seja, o que parece estar fora de um
sistema já está dentro dele e o que parece natural é histórico. Na perspectiva de
Derrida, a heterossexualidade precisa da homossexualidade para sua própria
definição, de forma que um homem homofóbico pode-se definir apenas em oposição
àquilo que ele não é: um homem gay.7 Este procedimento analítico que mostra
oimplícito dentro de uma oposição binária costuma ser chamado de desconstrução.19 Continuando sobre Derrida e sua teoria da Desconstrução relacionada à Teoria Queer,
Louro expõe:
Portanto, ao se eleger a desconstrução como procedimento metodológico, está se
indicando um modo de questionar ou de analisar e está se apostando que esse modo
de análise pode ser útil para desestabilizar binarismos lingüísticos e conceituais
(ainda que se trate de binarismos tão seguros como homem/ mulher,
masculinidade/feminilidade). A desconstrução das oposições binárias tornaria
manifesta a interdependência e a fragmentação de cada um dos pólos. Trabalhando
para mostrar que cada pólo contém o outro, de forma desviada ou negada, a
desconstrução indica que cada pólo carrega vestígios do outro e depende desse outro
para adquirir sentido. A operação sugere também o quanto cada pólo é, em si
mesmo, fragmentado e plural. Para os teóricos/as queer, a oposição
heterossexualidade/ homossexualidade – onipresente na cultura ocidental moderna –
poderia ser efetivamente criticada e abalada por meio de procedimentos
desconstrutivos.20
Atualmente, as questões de gênero e sexualidade ganham reconhecimento e espaço no
âmbito acadêmico, graças aos estudos queer, e ao destaque de uma das percursoras, Judith
Butler, com a obra Gender Trouble: Feminism and The Subversion of Identity21, por exemplo,
que busca desconstruir o binarismo e discutir as identidades múltiplas. A professora Sara
Salih, em seu livro Judith Butler e a Teoria Queer define muito bem as obras de Butler:
18 CULLER, Jonathan. Teoria Literária: uma introdução. Trad. Sandra Vasconcelos. São Paulo: Becca, 1999,
p. 122. 19 MISKOLCI, Richard. A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da normalização. Porto
Alegre: Sociologias, ano 11, nº 21, jan./jun. 2009, p. 153 20 LOURO, Guacira Lopes. Teoria Queer: Uma Política Pós-Identitária para a Educação. In: Revista
Estudos Feministas. V.9 n.2 Florianópolis: IFCH, 2001, p. 548. 21 BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
Em maior ou menor grau, todos os seus livros levantam questões sobre a formação
da identidade e da subjetividade, descrevendo os processos pelos quais nos tornamos
sujeitos ao assumir as identidades sexuadas, “generificadas”, racializadas que são
construídas para nós (e em certa medida, por nós) no interior das estruturas de poder
existentes.22
Para Butler, a performatividade é parte da explicação sobre a construção social do
gênero e sexo dos indivíduos. A linguagem performativa restringida por normas tem o poder
de nomear coisas, ou seja, repetir conceitos e discursos para uma pessoa ou grupo é construir
uma identidade, sendo ela verdadeira ou não.
Gênero e sexo são dinâmicos e se constroem ao longo do tempo e não imposto como é
feito. Nesse ponto, pode-se associar Butler a Derrida, este que antes da Teoria Queer se
mostrar ao mundo, já afirmava a capacidade da comunicação escrita ou falada tem de
construir conceitos e como isso “naturalmente” é repassado uns aos outros ao ponto de não
conseguir identificar quando se iniciou a repetição.
Na ideologia heteronormativa, a performatividade tem a função de manter o gênero
em sua função binária, e por isso, possivelmente, a matriz heteronormativa, ou melhor, a
heterossexualidade forçada, se encontra nesse ponto em comum dos dois filósofos, a
capacidade de naturalização de conceitos heteronormativos através de rituais, e
principalmente, a capacidade que essas repetições ritualísticas têm de oprimir e restringir,
sexualidade e gênero. Ainda que a linguagem performativa seja uma ferramenta usada pela
ideologia hegemônica, Derrida e Butler, mais uma vez concordam que ela está totalmente
relacionada com a repetição cultural, e por isso, alguma mudança só poderá ser feita se as
novas performances subversivas forem introduzidas à linguagem de forma gradativa.
Desassociar a heteronormatividade da linguagem é impossível para Butler, da mesma
forma que não é possível mudar significados de palavras e o sistema de gênero
completamente, mas a repetição da mudança deve ser introduzida para que mudanças
ocorram, mesmo que lentamente.
No que tange a educação, a Teoria queer é de suma importância não só para estudos
sociológicos avançados, mas também para o Plano Nacional de Educação tão discutido nos
últimos tempos em nossas instituições. A Pedagogia Queer surge justamente com o intuito de
22 SALIH, Sara. Judith Butler e a Teoria Queer. Trad. e notas Guacira Lopes Louro. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2012, p. 10.
uma nova forma de educação inclusiva e libertadora em prol da Ideologia de Gênero23, sendo
a principal percussora a pesquisadora Guacira Lopes Louro, que indaga o dilema entre a
necessidade de ensinar gênero nas escolas e a forma de introdução do tema:
Como um movimento que se remete ao estranho e ao excêntrico pode articular-se
com a Educação, tradicionalmente o espaço da normalização e do ajustamento?
Como uma teoria não-propositiva pode “falar” a um campo que vive de projetos e de
programas, de intenções, objetivos e planos de ação? Qual o espaço nesse campo
usualmente voltado ao disciplinamento e à regra, para a transgressão e para a
contestação? Como romper com binarismos e pensar a sexualidade, os gêneros e os
corpos de uma forma plural, múltipla e cambiante? Como traduzir a teoria queer
para a prática pedagógica?24
Ainda sobre a pedagogia queer, Louro, apesar das indagações, defende sua
efetividade:
Uma pedagogia e um currículo queer se distinguiriam de programas multiculturais
bem intencionados, onde as diferenças (de gênero, sexuais ou étnicas) são toleradas
ou são apreciadas como curiosidades exóticas. Uma pedagogia e um currículo queer
estariam voltados para o processo de produção das diferenças e trabalhariam,
centralmente, com a instabilidade e a precariedade de todas as identidades. Ao
colocar em discussão as formas como o ‘outro’ é constituído, levariam a questionar
as estreitas relações do eu com o outro. A diferença deixaria de estar lá fora, do
outro lado, alheia ao sujeito, e seria compreendida como indispensável para a
existência do próprio sujeito: ela estaria dentro, integrando e constituindo o eu. A
diferença deixaria de estar ausente para estar presente: fazendo sentido,
assombrando e desestabilizando o sujeito. Ao se dirigir para os processos que
produzem as diferenças, o currículo passaria a exigir que se prestasse atenção ao
jogo político aí implicado: em vez de meramente contemplar uma sociedade plural,
seria imprescindível dar-se conta das disputas, dos conflitos e das negociações
constitutivos das posições que os sujeitos ocupam.25
Faz-se importante destacar a importância dos estudos queer, por isso a necessidade de
expor as vantagens da pedagogia para a desconstrução da heteronormatividade:
Dentro desse quadro, a polarização heterossexual/homossexual seria questionada.
Analisada a mútua dependência dos pólos, estariam colocadas em xeque a
naturalização e a superioridade da heterossexualidade. O combate à homofobia – uma meta ainda importante – precisaria avançar. Para uma pedagogia e um currículo
queer não seria suficiente denunciar a negação e o submetimento dos/as
homossexuais, e sim desconstruir o processo pelo qual alguns sujeitos se tornam
normalizados e outros marginalizados. Tornar evidente a heteronormatividade,
demonstrando o quanto é necessária a constante reiteração das normas sociais
23 O conceito “Ideologia de Gênero” foi criado em uma conferência da ONU na cidade de Pequim, em 1995.
Apesar de relativamente nova, essa ideologia repercutiu, chegando aos lares, escolas, política e demais
instituições. A ideologia de gênero tem o intuito de ensinar que ser masculino ou feminino é uma questão de
construção sociológica e, também, que homens e mulheres não possuem funções pré estabelecidas, desse modo,
possuem os mesmos direitos. Evidentemente esses conceitos incomodam os conservadores, argumentando que
esses ensinamentos vieram para destruir a família e a tradição da nossa sociedade, o que é mentira. 24LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte:
Autêntica, 2004, p. 47. 25 LOURO, Guacira Lopes. Teoria Queer: Uma Política Pós-Identitária para a Educação. In: Revista
Estudos Feministas. V.9 n.2 Florianópolis: IFCH, 2001, p. 550.
regulatórias a fim de garantir a identidade sexual legitimada. Analisar as estratégias
– públicas e privadas, dramáticas ou discretas – que são mobilizadas, coletiva e
individualmente, para vencer o medo e a atração das identidades desviantes e para
recuperar uma suposta estabilidade no interior da identidade-padrão. 26
Infelizmente, a política nacional está muito desfavorável no que diz respeito aos
estudos queer, a religião e moral ainda é o que move nossas instituições públicas, o que
significa que as possibilidades de veto da Ideologia de Gênero nas escolas são consideráveis.
Por não ser uma metodologia usual, pode-se listar algumas críticas, como Louro faz no
mesmo texto:
Efetivamente, os contornos de uma pedagogia ou de um currículo queer não são os
usuais: faltam-lhes as proposições e os objetivos definidos, as indicações precisas do
modo de agir, as sugestões sobre as formas adequadas para ‘conduzir’ os/as
estudantes, a determinação do que ‘transmitir’. A teoria que lhes serve de referência
é desconcertante e provocativa. Tal como os sujeitos de que fala, a teoria queer é, ao
mesmo tempo, perturbadora, estranha e fascinante. Por tudo isso, ela parece
arriscada. E talvez seja mesmo... mas, seguramente, ela também faz pensar.27
No que diz respeito aos estudos sociológicos, Miskolci explica a contribuição da
Teoria em questão:
A Teoria Queer desafia a Sociologia a não mais estudar apenas os que rompem as
normas (o que redundaria nos limitados estudos de minorias), nem apenas os
processos sociais que os criam como desviantes (o que a teoria da rotulação já fez
com sucesso), antes focar nos processos normalizadores marcados pela produção
simultânea do hegemônico e do subalterno. 28
Sobre a relação importante e influente entre os estudos queer e a Sociologia, podemos
afirmar que:
De qualquer forma, é no diálogo intensificado e na troca crescente com a Sociologia
que a Teoria Queer recebe um novo impulso que torna ainda mais adequado seu
nome, afinal o termo queer mostra a presença do inconveniente e abjeto na
constituição da sociedade, assim como sua re-significação positiva na teoria social.
No presente, a Teoria Queer não retira mais seu impulso crítico de uma oposição ou
refutação da Sociologia (ou uma de suas subáreas), mas apresenta a ela uma
proposta desafiadora: o desenvolvimento de uma analítica da normalização que pode
interrogar como as fronteiras da diferença são constituídas, mantidas ou dissipadas.
Trata-se de um objetivo científico que teria também implicações políticas, pois
permitiria compreender e contestar os processos sociais que se utilizam das
diferenças como marcadores de hierarquia e opressão.29
Diante do exposto, percebe-se a importância da crítica à ideologia heteronormativa, a
exclusão, invisibilidade e patologização causada por ela não condiz com os direitos e
26 Ibidem, p. 550-551. 27 Ibidem, p. 552 28MISKOLCI, Richard. A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da normalização.
Sociologias, Porto Alegre, n. 21, jan./jul. 2009. 29 Idem, p. 178.
princípios garantidos a todos e todas em nosso país. A política conservadora e influenciada
pela norma impede que pessoas LGBT tenham a liberdade de usufruir de suas garantias.
Existe uma grande diferença entre o direito posto e o direito que se almeja, a falta de
legislação específica, uma política e religião conservadora e ciência patologizante faz com
que as minorias se afastem cada vez mais do direito, princípios e da cidadania.
Cada grupo de minoria possui uma demanda específica, por exemplo, casais
homoafetivos buscam o reconhecimento da homoparentalidade e casamento, bem como
travestis e pessoas transexuais visam processos jurídicos e médicos despatologizantes,
retificação do nome e sexo no registro civil e, quando necessário para seu bem- estar, uma
cirurgia de transgenitalização humanizada. Infelizmente, tais processos são burocráticos e
cercados de preceitos morais e retrógrados da heteronormatividade, o que incentiva, na
maioria das vezes, a reprodução da ignorância e discriminação. É triste e ao mesmo tempo
A Teoria Queer vem para desconstruir essa hegemonia excludente, que mesmo muito
questionada, ainda possui respaldo nas instituições sociais que moldam as pessoas de acordo
com o “biologicamente normal”.Os estudos são consideravelmente novos no Brasil, mas com
perspectiva promissora, tendo em vista a grande publicidade nas mídias sobre igualdade
sexual e de gênero.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A crítica à ideologia heteronormativa se faz necessária devido à comprovação do seu
caráter excludente. As instituições sociais enquanto aparelho ideológico do Estado (AIE)
reafirmam esses valores, renovando assim, de tempos em tempos, a incoerência da norma. O
ser humano deve ser reconhecido e respeitado como um todo, pois somos resultado de
diversos processos culturais e vivências e, por isso, não podemos ser limitados a estudos
científicos, biológicos, religiosos e as linguagens de cunho heteronormativo.
Exemplo recente do desrespeito e opressão envolvendo instituições ideológicas, no
caso a igreja, é o ataque ocorrido dia 08 de agosto de 2015 contra Viviane Beleboni, mulher
transexual moradora de São Paulo que, andando próximo à sua casa foi agredida por dois
homens com uma faca, insultando-a e chamando-a de “demônio”. Em entrevista ao site “Ego”
30, a atriz se diz ameaçada todo o momento e que não se sente segura.
Judith Butler, autora principal da Teoria Queer, traz em seus estudos novas
perspectivas gênero, sexo e sexualidade, desconstruindo todos os conceitos falaciosos que se
solidificaram durante séculos, que patologizaram indivíduos que pareciam “anormais” diante
da sociedade heteronormativa e, também, traz novas reflexões sobre as especificidades de
cada pessoa e como a categorização com a ajuda das AIE ajudam a manter a opressão. A
desconstrução da norma se torna importante, atualmente, por conta do despertar das minorias
LGBT que não buscam vantagens, mas sim equidade nos direitos, que possam usufruir dos
mecanismos que o Estado proporciona.
De modo geral:
Teoria Queer mostra que identidades são inscritas através de experiências
culturalmente construídas em relações sociais, e o êxito de investigações que
busquem articular estas esferas dependerá do desenvolvimento de metodologias que
não apenas permitam estudar cada um dos componentes dos processos sociais de
constituição das identidades, mas, sobretudo, analisem as interdependências entre as
categorias, de forma que não resultem na soma de opressões.31
Cabe ressaltar que os estudos queer representam as minorias, mas que não são
consideradas assim pela sua quantidade e sim pelo silenciamento, opressão e preconceitos
vividos através da heteronormatividade. As minorias queer possuem grande diversidade de
gênero e sexo, assim, mostrando ser maioria em multiplicidade e excentricidade.
Deve- se levar em consideração a desconstrução da ideologia hegemônica
principalmente no âmbito político, pois essa instituição é a principal percussora do
conservadorismo. Hoje em dia mulheres morrem nos hospitais devido a abortos mal feitos,
são violentadas física e psicologicamente, submetidas aos mais diversos tipos de humilhação
vinda de parceiros, parceiras, família e grupos da sociedade. A comunidade LGBT, principal
vítima do conservadorismo, sofre diariamente com a violação de direitos, sendo ainda, em
alguns casos, impedidos de adotar, retificar nome, enfim, são impedidos de acessar direitos
fundamentais a todos e todas. A política que combate a ideologia de gênero nas escolas
impede que crianças e jovens possam entender o real significado da palavra respeito, os
30 Entrevista disponível em: http://ego.globo.com/famosos/noticia/2015/08/viviany-beleboni-e-esfaqueada-e-
assustada-fala-em-suicidio.html Acesso em: 09 de ago. de 2015 31 MISKOLCI, Richard. A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da normalização.
Sociologias, Porto Alegre, n. 21, jan./jul. 2009, p. 176.
argumentos da bancada conservadora são superficiais, e mesmo assim, possuem um poder
persuasivo muitas vezes inacreditável.
A Teoria Queer tem um grande desafio na contemporaneidade, desconstruir os
conceitos falaciosos que pesam sobre nossos corpos, desconstruir discursos repetidos durante
séculos, ditos verdadeiros e naturais. Para isso, as ferramentas sociológicas serão de suma
importância, como explica Miskolci:
Ferramentas sociológicas são importantes para a compreensão de trajetórias
históricas e presentes das circunstâncias culturais e práticas que produzem as
condições para a construção das identidades de grupo. Procedimentos da teoria
queer permitem explorar melhor as relações entre linguagem e consciência,
sociedade e subjetividade, ou seja, descentrar o sujeito, de forma a complementar os
determinantes sociais com os subjetivos na reconstituição e análise de processos
sociais. A tendência sociológica a lidar com sujeitos seria colocada em tensão com a
proposta queer de desnaturalizá-los como produtos de processos normalizadores, o
que permitiria analisar de forma mais crítica fenômenos como as categorizações
sociais, os movimentos sociais, instituições como o Estado e a mídia.32
Por fim, é chegado o momento de refletir sobre as normas que permeiam nossa
sociedade, que impõem padrões e silenciam pessoas. É dever do Estado oferecer serviços para
todos e todas sem distinção de gênero, sexualidade, raça ou classe e sendo laico, é dever
também tomar decisões embasadas somente para o bem- estar da pessoa, não envolvendo a
moral e religião.
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