37
O que é a Crítica? Um Ensaio sobre a Virtude de Foucault Judith Butler – UC Berkeley O que significa oferecer uma crítica? Isto é algo que, eu arriscaria, a maior parte de nós entende em algum senso comum. Mas o problema torna-se mais difícil se nós tentamos distinguir entre uma crítica disto ou daquele posicionamento e a crítica como uma prática mais generalizada, uma que pode ser descrita sem referência aos seus objetos específicos. Poderíamos mesmo elaborar tal questão sobre o caráter geral da crítica sem apontar para uma essência da crítica? E se nós encontramos a forma geral, propondo alguma coisa que aproxima uma filosofia da crítica, perderíamos então a própria distinção entre filosofia e crítica que opera como parte desta definição da própria crítica? Crítica é sempre uma crítica de alguma prática instituída, discurso, epistemé, instituição, e ela perde seu caráter no momento em que é abstraída de sua operação e posta para permanecer sozinha como uma prática geral pura. Mas se isto é verdade, não significa que nenhuma generalização seja possível ou que, de fato, nós estaríamos atolados nos particularismos. Pelo contrário, pisamos aqui em uma área de limitada generalidade, na qual se inicia o filosófico, mas que precisa, para manter-se crítica, permanecer a certa distância daquela concretização. O ensaio que ofereço aqui é sobre Foucault, mas deixe- me começar sugerindo o que acredito ser um interessante

traducao Butler O que é a crítica

Embed Size (px)

Citation preview

O que a Crtica? Um Ensaio sobre a Virtude de Foucault

Judith Butler UC Berkeley

O que significa oferecer uma crtica? Isto algo que, eu arriscaria, a maior parte de ns entende em algum senso comum. Mas o problema torna-se mais difcil se ns tentamos distinguir entre uma crtica disto ou daquele posicionamento e a crtica como uma prtica mais generalizada, uma que pode ser descrita sem referncia aos seus objetos especficos. Poderamos mesmo elaborar tal questo sobre o carter geral da crtica sem apontar para uma essncia da crtica? E se ns encontramos a forma geral, propondo alguma coisa que aproxima uma filosofia da crtica, perderamos ento a prpria distino entre filosofia e crtica que opera como parte desta definio da prpria crtica? Crtica sempre uma crtica de alguma prtica instituda, discurso, epistem, instituio, e ela perde seu carter no momento em que abstrada de sua operao e posta para permanecer sozinha como uma prtica geral pura. Mas se isto verdade, no significa que nenhuma generalizao seja possvel ou que, de fato, ns estaramos atolados nos particularismos. Pelo contrrio, pisamos aqui em uma rea de limitada generalidade, na qual se inicia o filosfico, mas que precisa, para manter-se crtica, permanecer a certa distncia daquela concretizao.

O ensaio que ofereo aqui sobre Foucault, mas deixe-me comear sugerindo o que acredito ser um interessante paralelo entre o que Raymond Williams e Theodor Adorno, de modos diferentes, procuraram empreender sob o nome de criticismo e o que Foucault procurou entender por crtica. Sustento que algo da prpria contribuio de Foucault para, e aliado , uma filosofia poltica progresssista ser posto s claras no curso desta comparao.

Raymond Williams preocupava-se que a noo de criticismo havia sido excessivamente restringida noo de encontrar erros [fault-finding] e props que encontrssemos um vocabulrio para os tipos de resposta que temos, especialmente em relao aos trabalhos culturais, nos quais no se assume o hbito (ou direito ou dever) de julgar. E o que ele mostrou ser necessrio foi um tipo mais especfico de resposta, uma que no generaliza muito rpido: o que sempre precisa ser compreendido, escreveu, a especificidade da resposta, a qual no um julgamento, mas uma prtica. (76) Acredito que esta ltima passagem tambm marca a trajetria do pensamento de Foucault sobre este tema, uma vez que crtica precisamente uma prtica que para ele no somente suspende julgamento, mas oferece uma nova prtica de valores baseada nesta prpria suspenso.

Assim, para Williams, a prtica da crtica no redutvel a chegar aos julgamentos (e express-los). Significativamente, Adorno faz um apelo similar quando escreve sobre o perigode julgar fenmenos intelectuais de uma maneira subsumida, uniforme e administrativa e assimilando-os constelao de poder predominante na qual o intelecto os deve expor. Assim, a tarefa de expor estas constelaes de poder impedida pela pressa de julgar como o ato exemplar da crtica. Para Adorno, a mesma operao de julgamento serve para separar a crtica do mundo social disponvel, um movimento no qual se desmentem os resultados da sua prpria operao, constituindo um afastamento da prxis. (23) Adorno escreve que a crtica soberana o bastante para exigir um conhecimento mais profundo do objeto, a separao da ideia de seu objeto atravs da independncia do julgamento crtico ameaa sucumbir forma thinglike de objeto quando o criticismo cultural apela para um coleo de ideias ja expostas, por assim dizer, e fetichiza categorias isoladas. (23) Para Adorno, para que a crtica opere como parte da prxis, preciso que ela apreenda os modos pelos quais categorias so institudas nelas mesmas, como o campo de conhecimento ordenado, e como aquilo que ela omite retorna, por assim dizer, como sua prpria ocluso constitutiva. Julgamentos operam para ambos os pensadores como modos de subsumir um particular sob uma categoria j constituda, ao passo que a crtica demanda pela ocluso constitutiva do campo das prprpoas categorias. O que se torna especialmente importante para Foucault em seu domnio, isto , tentar pensar o problema da liberdade e, de fato, a tica em geral, alm do julgamento: o pensamento crtico constitui este tipo de esforo.

Em 1978, Foucault apresenta uma conferncia intitulada O que a Crtica?, um trabalho que preparou o caminho para o seu mais conhecido ensaio O que o Iluminismo? (1984). Ele no pergunta somente o que a crtica, mas procura compreender o tipo de problema que a crtica institui, oferecendo algumas tentativas de circunscrever esta atividade. O que talvez seja ainda mais importante sobre esta conferncia, e sobre o ensaio subsequente mais desenvolvido, a forma de questionamento na qual o assunto proposto. Pois na questo mesma o que a crtica? h um momento de empreitada crtica sendo colocado, e portanto a questo no coloca somente o problema o que esta crtica que ns supostamente fazemos ou, de fato, buscamos fazer? mas expressa certo modo de questionamento que vai se mostrar central prpria atividade crtica.

Realmente, eu sugeriria que o que Foucault procura fazer com esta questo algo bem diferente daquilo que talvez ns tenhamos nos habituado a esperar da crtica. Habermas tornou a operao da crtica bem problemtica quando sugeriu que um passo alm da teoria crtica era necessrio se procuramos o recurso a normas para avaliar julgamentos sobre condies e metas sociais. A perspectiva da crtica, em sua viso, capaz de por os fundamentos em questo, desnaturalizar a hierarquia social e poltica, e at mesmo estabelecer perspectivas pelas quais possvel tomar certa distncia do mundo naturalizado. Mas nenhuma destas atividades pode nos dizer em qual direo devemos seguir, nem podem nos dizer se as atividades nas quais estamos engajados esto realizando certo tipo de metas justificadas normativamente. Portanto, em sua viso, a teoria crtica tinha que fornecer uma via para uma teoria normativa mais forte, tal como a ao comunicativa, de modo a fornecer uma fundao teoria crtica, possibilitando a realizao de fortes julgamentos normativos, e para que as polticas tivessem no somente um objetivo claro e aspirao normativa, mas para que ns nos tornssemos capazes de avaliar prticas correntes em termos das habilidades para alcanar tais metas. Fazendo este tipo de criticismo da crtica, Habermas torna-se curiosamente acrtico [uncritical] sobre o prprio sentido de normatividade que ele emprega. Sobre a questo o que ns devemos fazer? pressupe que o ns estava formado e que conhecido, que sua ao possvel, e o campo no qual ele pode agir delimitado. Mas se esta prpria formao e delimitao tm consequncias normativas, ento ser necessrio perguntar-se pelos valores que montam o cenrio para a ao, e isto ser uma dimenso importante de qualquer investigao crtica acerca de problemas normativos.

E embora os habermaseanos possam ter uma resposta a este problema, minha meta hoje no retomar estes debates nem responder a eles, mas marcar a distancia entre uma noo de crtica que caracterizada como normativamente depauperada em certo sentido, e outra, que eu espero oferecer aqui, a qual no somente mais complexa do que o assumido pelo criticismo usual, mas que possui, eu diria, fortes compromissos normativos que se mostram em formas que seriam difceis, seno impossveis, de interpretar dentro da gramtica atual da normatividade. De fato, neste ensaio, espero mostrar que Foucault no somente traz uma importante contribuio para a teoria normativa, mas tambm que tanto sua esttica quanto sua considerao acerca do sujeito so integralmente relacionados tanto sua tica quanto sua poltica. Enquanto, por um lado, alguns intrpretes o descartaram como um esteta ou, mesmo, como um niilista, espero propor que a incurso por ele realizada no tpico da constituio de si e, por pressuposio, na prpria poisis, central para a poltica da de-sujeio que ele prope. Paradoxalmente, constituio de si mesmo e de-sujeio acontecem simultaneamente quando se arrisca um modo de existncia que no sustentado pelo que ele chama de poltica de verdade.Foucault comea sua discusso afirmando que existem vrias formas de entender o termo crtica, distinguindo entre uma alta empreitada kantiana chamada crtica, como tambm as pequenas atividades polmicas que so chamadas crticas. (24) Assim, ele nos adverte no incio que a crtica no ser uma coisa, e que no poderemos a definir afastada dos vrios objetos pelos quais ela mesma definida. Pela sua funo, diz Foucault, [a crtica] parece estar condenada disperso, dependncia e pura heteronomia. Ela existe apenas em relao a algo outro que no ela mesma.

Assim, Foucault procura definir crtica, mas descobre que apenas uma srie de aproximaes so possveis. A crtica ser dependente de seu objeto, mas, por sua vez, seu objeto ir definir o prprio significado da crtica. Alm disso, a primeira tarefa da crtica no ser avaliar se seus objetos condies sociais, prticas, formas de conhecimento, poder, e discurso so bons ou maus, atribuir alto valor ou desmerecer, mas por em relevo a prpria estrutura da avaliao. O que a relao do conhecimento com o poder, em vista da qual nossas certezas epistemolgicas mostram apoiar um modo de estruturar o mundo que exclui possibilidades alternativas de ordenamento? Claro, podemos pensar que precisamos de certezas epistemolgicas de modo a estabelecer de uma vez por todas que o mundo e deve ser ordenado de um modo determinado. At que ponto, no entanto, esta certeza orquestrada por formas de conhecimento precisamente de modo a excluir a possibilidade de pensar diferentemente? Neste ponto, algum astutamente poderia perguntar: de que adianta pensar diferentemente, se no sabemos previamente que pensar diferentemente produzir um mundo melhor? Se no temos uma estrutura moral pela qual decidir entendendo que certas novas possibilidades ou modos de pensar diferentemente traro futuramente aquele mundo cuja melhora podemos julgar com segurana e por padres previamente estabelecidos? Isto tem se tornado um tipo de rplica comum para Foucault e para foucaultianos de esprito. E devemos assumir que o relativo silncio que tem recebido este hbito de encontrar-erros em Foucault um sinal que sua teoria no tem respostas tranquilizadoras para dar? Penso que podemos assumir que as respostas que esto sendo proferidas no tm a tranquilizao como meta primria. Isto no o mesmo que dizer, claro, que sadas que recusam a tranquilizao so, por definio, respostas invlidas. Realmente, a nica rplica, ao que me parece, retornar para um sentido mais fundamental de crtica, de modo a ver o que pode muito bem estar errado com a questo, tal como ela posta e, de fato, colocar a questo de outro modo, para que se possa mapear uma considerao mais produtiva quanto ao papel da tica na poltica. Algum poderia interrogar-se, com razo, se o que quero dizer com produtivo ser mensurado por padres e medidas que eu estaria disposta a revelar, ou no que eu me agarro plenamente no momento em que fao uma tal reivindicao. No entanto, aqui eu pediria sua pacincia posto que crtica uma pratica que requer certa dose de pacincia, do mesmo modo que compreender, segundo Nietzsche, requer que ns nos comportemos um pouco mais como gado do que humanos e que ns aprendamos a arte da lenta ruminao.

A contribuio de Foucault ao que aparece como um impasse dentro da teoria crtica e ps-crtica de nosso tempo precisamente fazer-nos repensar a crtica como uma prtica na qual ns colocamos a questo dos limites dos nossos modos mais certos de saber, o que Williams designava como nossos hbitos acrticos de pensamento e o que Adorno descrevia como ideologia (no que o pensamento no-ideolgico aquele que no permite a si mesmo ser reduzido a termos operacionais e ao contrrio empenha-se unicamente em ajudar as coisas mesmas a articularem-se diferentemente do modo em que elas esto formatadas pela linguagem predominante. [29]) No nos dirigimos aos limites por causa de uma experincia emocionante, ou porque limites so perigosos e atraentes, ou porque isto nos traz para dentro de uma excitante proximidade com o mal. Perguntamo-nos sobre os limites dos modos de conhecimento porque j nos deparamos com uma crise dentro do campo epistemolgico no qual vivemos. As categorias pelas quais a vida social ordenada produzem uma certa incoerncia ou toda uma esfera do que indizvel. E desta condio, a destruio no tecido de nossa rede epistemolgica, que a prtica da crtica emerge, com a conscincia que nenhum discurso adequado aqui ou que nossos discursos reinantes tm produzido um impasse. Realmente, o prprio debate no qual a forte visada normativa combate a teoria crtica pode produzir precisamente aquela forma de impasse discursivo do qual emerge a necessidade e a urgncia da crtica.

Para Foucault, a crtica um meio para um futuro ou para uma verdade que ela no sabe se ser o caso, ou mesmo se isto acontecer, ela um olhar de sobrevo sobre um domnio que ela no quer policiar e que ela incapaz de regular. Portanto, a crtica ser aquela perspectiva sobre modos estabelecidos de ordenar e conhecer que no esto imediatamente assimilados no interior daquela funo ordenadora. Significativamente, para Foucault, esta exposio dos limites do campo epistemolgico est relacionada com a prtica da virtude, como se a virtude fosse oposta regulao e ordem, como se a prpria virtude devesse ser encontrada no pr em risco a ordem estabelecida. Ele no tmido quanto a isto. Ele escreve que h algo na crtica que se aparenta com a virtude. E ento ele diz algo que pode ser considerado ainda mais surpreendente: esta atitude crtica [] uma virtude em geral. (25)

Existem alguns modos preliminares pelos quais podemos entender o esforo de Foucault ao atribuir crtica o papel da virtude. Virtude mais frequentemente entendida ou como um atributo ou uma prtica de um sujeito, ou mesmo uma qualidade que condiciona e caracteriza certo modo de ao ou prtica. Ela pertence a uma tica que no cumprida meramente por seguir objetivamente regras e leis formuladas. E virtude no apenas um modo de obedecer ou conformar-se a normas preestabelecidas. Ela , de modo mais radical, uma relao crtica para com tais normas, uma relao que, para Foucault, toma forma como uma estilizao especfica da moralidade.

Foucault nos d uma indicao do que ele quer dizer com virtude na introduo de Histria da sexualidade Volume 2: o uso dos prazeres. Nesta conjuntura ele deixa claro que procura ir alm de uma noo de filosofia tica que deseja um conjunto de prescries. Exatamente como a crtica cruza com a filosofia sem precisamente coincidir com ela, assim tambm Foucault nesta introduo procura fazer de seu prprio pensamento um exemplo de uma forma no prescritiva de investigao moral. Da mesma maneira, ele ir posteriormente se voltar a formas de experincia moral que no so definidas de modo rgido por uma lei jurdica, uma regra ou comando para o qual o eu mecanicamente e uniformemente submetido. O ensaio que escreve, ele nos afirma, nele mesmo o exemplo de tal prtica, explorar o que pode ser mudado, no seu prprio pensamento, atravs do exerccio de um saber que lhe estranho. Experincia moral tem a ver com uma transformao de si mesmo induzida por uma forma de saber que estrangeiro ao nosso. E esta forma de experincia moral ser diferente da submisso a um comando. Com efeito, no plano em que Foucault interroga a experincia moral aqui ou em outro lugar, ele entende estar fazendo ele mesmo uma investigao sobre experincias morais que no esto principalmente ou fundamentalmente estruturadas por proibio ou interdio.

No seu primeiro volume de Histria da Sexualidade, ele espera mostrar que as primeiras interdies assumidas pela psicanlise e a exposio estruturalista das proibies culturais no podem ser assumidas como constantes histricas. Alm disso, considerada historiograficamente, a experincia moral no pode ser entendida atravs do recurso a um conjunto predominante de interdies dentro de um momento histrico determinado. Embora existam cdigos a serem estudados, estes cdigos precisam sempre ser lidos em relao a modos de subjetivao aos quais eles correspondem. Ele argumenta que a juridificao da lei alcana certa hegemonia no sculo XIII, mas que se retornamos cultura grega e romana clssica, encontramos prticas, ou artes de existncia, que esto relacionadas com uma relao cultivada do eu consigo mesmo.

Introduzindo a noo de arte de existncia, Foucault tambm reintroduz e reenfatiza prticas refletidas e voluntrias, especificamente, atravs das quais os homens no somente se fixam regras de conduta, como tambm procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra.

Tais vidas no se conformam simplesmente a preceitos ou normas morais de certo modo que subjetividades, consideradas preformadas ou prontas, se enquadrem em um molde estabelecido pelo preceito. Pelo contrrio, o sujeito se automodela em termos de norma, passa a habitar e incorporar a norma, mas a norma no se encontra neste sentido externa ao princpio pelo qual o sujeito formado. O que est em jogo para ele no comportamentos ou ideias ou sociedades ou ideologias, mas a problematizao atravs da qual o ser se d como podendo e devendo ser pensado, e as prticas a partir das quais essas problematizaes se formam.

Esta ltima afirmao dificilmente transparente, mas o que ela prope que certos tipos de prticas que so designadas para resolver certos tipos de problemas produzem, com o tempo, um dado domnio ontolgico como consequncia, e este domnio ontolgico, por sua vez, restringe nosso compreenso do que possvel. Somente em referncia a este horizonte ontolgico predominante, ele mesmo institudo por um conjunto de prticas, ns seremos capazes de compreender os tipos de relaes com preceitos morais que tm sido estabelecidos, bem como aqueles que ainda sero estabelecidos. Por exemplo, ele considera longamente vrias prticas de austeridade e as relaciona produo de certo tipo de sujeito masculino. As prticas de austeridade no testemunham uma nica e permanente proibio, mas o trabalho de operao artesanal de certo tipo de eu. Ou, de um modo mais preciso, o eu, incorporando as regras de conduta que representam a virtude da austeridade, cria a si mesmo como tipo especfico de subjetividade. Esta produo de si mesmo a elaborao e estilizao de uma atividade no exerccio de seu poder e na prtica de sua liberdade. No se tratava de uma prtica oposta ao prazer puro e simples, mas sim de certa prtica dos prazeres, uma prtica dos prazeres no contexto da experincia moral.

Assim, na seo trs desta mesma introduo, Foucault deixa claro que no ser suficiente oferecer uma crnica histrica de cdigos morais, pois tal histria no pode nos contar como estes cdigos foram vivenciados e, mais especificamente, quais formas de formao de sujeitos tais cdigos requisitaram e facilitaram. Aqui ele comea a soar como um fenomenlogo. Mas h tambm, somado ao recurso do sentido dos meios da experincia pelo qual as categorias morais so compreendidas, um movimento crtico, porque a relao subjetiva para com aquelas normas no ser nem predicativa nem mecnica. A relao ser crtica no sentido em que ela no acatar uma dada categoria, mas sim constituir uma relao interrogatria com o prprio campo de categorizao, referindo-se ao menos implicitamente aos limites do horizonte epistemolgico no qual tais prticas so formadas. No se tratar de referir a prtica a um contexto epistemolgico predefinido, mas de estabelecer a crtica como a prpria prtica que expe os limites deste mesmo horizonte epistemolgico, fazendo o contorno do horizonte aparecer, por assim dizer, pela primeira vez, poderamos dizer, em relao com seu prprio limite. Alm disso, a prtica crtica em questo acaba envolvendo a transformao de si com relao a uma regra de conduta. Como, ento, a transformao de si leva exposio deste limite? De que maneira a transformao de si compreendida como uma prtica de liberdade, e de que modo esta prtica compreendida como fazendo parte do lxico foucaultiano da virtude?

Vamos comear primeiro com a compreenso da noo de transformao de si aqui em jogo, e ento considerar como ela relaciona-se ao problema chamado crtica que o foco de nossa discusso. Certamente, uma coisa conduzir a si mesmo em relao a um cdigo de conduta, e outra coisa constituir a si mesmo como um sujeito tico em relao a um cdigo de conduta (e seria ainda outra coisa constituir a si mesmo como aquele que pe em risco o carter de ordenamento do prprio cdigo), As regras de castidade fornecem um exemplo importante para Foucault. H uma diferena, por exemplo, em no seguir desejos que violariam um preceito com o qual se est moralmente ligado e desenvolver uma prtica de desejo, por assim dizer, que ditada por certo projeto tico ou tarefa. O modelo de acordo com o qual se requisita a submisso a uma regra de lei exigiria de algum no agir de modos determinados, instalando uma proibio efetiva contra a ao originada de certos desejos. Mas o modelo que Foucault busca compreender e, de fato, incorporar e exemplificar leva a prescrio moral a participar na formao de um tipo de ao. Aqui o objetivo de Foucault parece ser mostrar que a renncia e a proscrio no comandam necessariamente uma atitude tica passiva ou no ativa, mas, ao contrrio, constituem uma atitude tica de conduta e um modo de estilizar tanto a ao quanto o prazer.

Creio que este contraste que Foucault aponta entre uma tica baseada no comando e a prtica tica que no seu centro engaja a formao do eu lana uma luz importante sobre a distino entre obedincia e virtude que ele prope no ensaio O que a Crtica?. Foucault contrasta esse entendimento de virtude que ainda precisa ser definido com a obedincia, mostrando como a possibilidade desta forma de virtude estabelecida pela sua diferena em relao a uma obedincia acrtica autoridade.

A resistncia autoridade, certamente, constitui a marca principal do Iluminismo para Foucault. E ele nos prope uma leitura do Iluminismo que no somente estabelece sua prpria continuidade com o objetivo do Iluminismo, mas compreende seus prprios dilemas retrospectivamente dentro da prpria histria do Iluminismo. A exposio que prope uma que nenhum pensador iluminista aceitaria, mas tal resistncia no invalidaria a caracterizao que temos aqui, porque o que Foucault procura nesta caracterizao do Iluminismo precisamente o que permanece impensado dentro de seus termos prprios: portanto, ele faz uma histria crtica. Na sua viso, a crtica comea com o questionamento da demanda por obedincia absoluta e pela sujeio de toda obrigao governamental imposta a uma avaliao racional e reflexiva. Embora Foucault no siga este caminho rumo razo, ele ir, apesar disso, perguntar quais critrios delimitam os tipos de razes que podem vir a sustentar a questo da obedincia. Ele se interessar particularmente pelo problema de como este campo determinado constitui o sujeito e como, por sua vez, um sujeito vem a constituir e reconstituir aquelas razes. Esta capacidade de constituir razes ser ligada de maneira importante relao de transformao de si mencionada acima. Ser crtico de uma autoridade que pretende se passar por absoluta requer uma prtica crtica que tem a transformao de si no seu mago.

Mas como passamos da compreenso das razes que podemos ter para assentir a uma demanda de formao de razes para ns mesmos, para a transformao de ns mesmos enquanto produzimos estas razes (e, finalmente, pondo em risco o prprio campo da razo)? Estes seriam tipos de problemas diferentes, ou um levaria invariavelmente ao outro? Ser que a autonomia alcanada na constituio de razes que servem de fundamento para o aceite ou rejeio de uma lei predeterminada a mesma coisa que a transformao de si que acontece quando uma regra incorporada na prpria ao do sujeito? Como iremos ver, tanto a transformao de si em relao aos preceitos ticos quanto a prtica da crtica so consideradas modos de arte, estilizao e repetio, sugerindo que no h possibilidade de aceite ou recusa de uma regra sem um eu que ser estilizado em resposta demanda tica sobre ele.

No contexto em que a obedincia requisitada, Foucault localiza o desejo que guia a questo como no ser governado? Este desejo, e o questionamento que se segue, constituem o mpeto central da crtica. Certamente no est claro como o desejo de no ser governado se liga com a virtude. Ele deixa claro, no entanto, que no est propondo a possibilidade da anarquia radical, e que no se trata do problema de como se tornar radicalmente no governvel. um problema especfico que emerge em relao a uma forma especfica de governo: como no ser governado deste modo, por isso, em nome destes princpios, com vistas a tais objetivos e por meio de tais procedimentos, no dessa forma, no para isso, no por eles.

Isto torna-se a assinatura da atitude crtica e sua virtude particular. Para Foucault, a prpria questo inaugura tanto uma atitude moral como poltica, a arte de no ser governado, ou melhor, a arte de no ser governado assim e a esse preo. Qualquer que seja a virtude que Foucault aqui nos circunscreve, ela ter que ver com a objeo quela imposio de poder, ao seu preo, ao modo como ela administrada, queles que fazem esta administrao. Podemos ser levados a pensar que Foucault est simplesmente descrevendo a resistncia, mas aqui parece que virtude tomou o lugar deste termo, ou ainda tornou-se o meio pelo qual ela redescrita. Teremos que perguntar porqu. Alm disso, esta virtude descrita propriamente como uma arte, a arte de no ser to governado, portanto, qual a relao aqui em funcionamento entre esttica e tica?

Ele encontra as origens da crtica na relao de resistncia autoridade eclesistica. Em relao doutrina pastoral, no querer ser governado era certa maneira de recusar, desafiar, limitar (digam como quiserem) o magistrio eclesistico. Era a volta Escrituraera a questo de qual a sorte de verdade que diz a Escritura. E tal objeo era certamente travada em nome de um solo de verdade e de justia alternativo ou, no mnimo, a um solo emergente. Isto leva Foucault a formular uma segunda definio de crtica: no querer ser governadono querer aceitar essas leis porque elas so injustas, porqueelas escondem uma ilegitimidade essencial.

Crtica aquilo que expe esta ilegitimidade, mas isto no se d porque a crtica tem recurso a uma ordem poltica ou moral mais fundamental. Foucault escreve que o projeto crtico confrontado com o governo e com a obedincia que ele exige e que crtica neste contexto quer dizer fazer brotar direitos universais e imprescritveis aos quais todo governo, qualquer que ele seja, quer se trate de um monarca, de um magistrado, de um educador ou de um pai de famlia, dever se submeter. A prtica da crtica, no entanto, no descobre estes direitos universais, como gostariam os tericos iluministas, mas ela os faz brotar. Contudo, ela no os faz brotar como direitos positivos. O fazer brotar um ato que limita o poder da lei, um ato que contraria e rivaliza com os efeitos de poder, poder no momento de sua renovao. Isto o estabelecimento da limitao nela mesma, aquela que toma a forma de uma questo que afirma, na sua prpria assero, um direito de questionar. A partir do sculo XVI, o problema como no ser governado especificado como quais so os limites do direito ao governo?No querer ser governado certamente no aceitar como verdadeaquilo que uma autoridade nos diz que verdade, ou ao menos no aceitar isto porque uma autoridade nos diz que isto verdadeiro, mas sim porque consideramos vlidas as razes para aceitar. Existe certamente uma quantidade razovel de ambiguidade nesta situao, porque o que constituir um critrio vlido para aceitar a autoridade? A validade deriva do consentimento em aceitar a autoridade? Se for assim, o consentimento valida os argumentos propostos, quaisquer que eles sejam? Ou antes, seria o caso de que apenas na fundao de uma validade prvia e passvel de ser descoberta que algum oferece seu consentimento? E estas razes prvias, na sua validade, tornam vlido o consentimento? Se a primeira alternativa for correta, ento consentimento o critrio pelo qual a validade julgada, e pareceria que a posio de Foucault se reduz a uma forma de voluntarismo. Mas talvez o que ele esteja nos propondo por meio da crtica seja um ato, ou mesmo uma prtica de liberdade, a qual no se reduz facilmente ao voluntarismo. Pois a prtica pela qual os limites so postos autoridade absoluta tal que depende fundamentalmente de um horizonte de efeitos saber dentro da qual ela opera. A prtica crtica no brota da liberdade inata da alma, mas, ao invs disso, constituda no molde de uma troca particular entre um conjunto de regras ou preceitos (que esto j dados) e uma estilizao de atos (que estendem e reformulam aquele conjunto prvio de regras e preceitos). Esta estilizao de si em relao s regras considerada como uma prtica.

Na viso de Foucault, seguindo Kant em um sentido atenuado, a ao de consentimento um momento reflexivo pelo qual a validade atribuda ou retirada autoridade. Mas esta reflexividade no se d na interioridade de um sujeito. Para Foucault, ela uma ao que coloca alguns riscos, porque no se tratar apenas de contestar a esta ou aquela demanda governamental, mas de questionar a ordem na qual tal demanda se torna legvel e possvel. E se aquilo a que se contesta a ordenao epistemolgica que estabelece a validade das regras governamentais, ento para dizer no demanda ser requisitado afastar-se dos fundamentos estabelecidos desta validade, marcando o limite de tal validade, que algo diferente e bem mais arriscado do que achar uma determinada demanda invlida. Nesta diferena, podemos dizer, comea-se a entrar em uma relao crtica com tais ordenaes e com os preceitos ticos que elas fazem surgir. O problema com estes fundamentos que Foucault chama ilegtimos no que eles sejam parciais ou autocontraditrios ou que eles levem a posies morais hipcritas. O problema precisamente que eles buscam encerrar a relao crtica, ou seja, buscam estender seu prprio poder para ordenar todo o campo de julgamento moral e poltico. Eles orquestram e exaurem o prprio campo de certezas. Como algum pode por em questo o ampla alcance que tais regras de ordenamento tm sobre a certeza sem arriscar a incerteza, sem habitar aquele lugar de hesitao que no qual se est exposto acusao de imoralidade, mal, esteticismo. A atitude crtica no deve seguir de acordo com as regras daqueles limites que a prpria relao crtica busca interrogar. Mas de que outro modo a crtica pode fazer seu trabalho sem se arriscar a ser denunciada por aqueles que naturalizam e tornam hegemnicos os prprios termos morais que so postos em questo por esta mesma crtica?

A distino de Foucault entre governo e governamentalizao procura mostrar que o dispositivo denotado pelo ltimo entra nas prticas daqueles que esto sendo governados, nos seus prprios meios de saber, nos seus prprios meios de ser. Ser governado no somente ter uma forma imposta sobre sua existncia, mas receber como dados os termos em vista dos quais cada existncia ser e no ser possvel. Um sujeito emergir em relao a uma ordem de verdade estabelecida, mas ele tambm pode ter uma perspectiva sobre aquela ordem estabelecida que retrospectivamente suspende seu prprio fundamento ontolgico.

E se a governamentalizao mesmo esse movimento pelo qual se trataria na realidade mesma de uma prtica social de sujeitar os indivduos por mecanismos de poder que reclamam de uma verdade, pois bem, eu diria que a crtica o movimento pelo qual o sujeito se d o direito de interrogar a verdade sobre seus efeitos de poder e o poder sobre seus discursos de verdade; (grifo da autora)

Note-se aqui que se diz do sujeito ser aquele que se d aquele direito uma maneira de autoatribuio e autoautorizao que parece por em primeiro plano a reflexifidade da reivindicao. Seria isto, ento, um movimento autogerado, algo que alavanca o sujeito acima e contra uma autoridade invlida? E que diferena faz, se faz alguma, que esta autoatribuio e autodesignao surjam como uma arte? Crtica, ele escreve, ser a arte da insubordinao voluntria, aquela da indocilidade refletida. E se ela uma arte em seu sentido, ento crtica no ser um nico ato, nem pertencer exclusivamente a um domnio subjetivo, porque ela ser a relao estilizada demanda sobre ele. E o estilo ser crtico at o ponto em que, como estilo, ele no seja completamente determinado de partida, mas incorpora uma contingncia atravs do tempo que marca os limites da capacidade ordenante do campo em questo. Assim a estilizao desta vontade produzir um sujeito que no prontamente conhecvel pela rubrica estabelecida de verdade. Mais radicalmente, Foucault pronuncia: A crtica teria essencialmente por funo o desassujeitamento do sujeito no jogo do que poderamos chamar, em uma palavra, polticas de verdade.

As polticas de verdade pertencem quelas relaes de poder que circunscrevem de partida aquilo que ir e o que no ir valer como verdade, que ordenam o mundo em certos modos regulares e regulveis, e que ns chegamos a aceitar como os campos de saberes dados. Ns podemos entender a importncia deste ponto quando comeamos a perguntar: O que tem o valor de uma pessoa? O que tem o valor de um gnero coerente? O que qualifica um cidado? O mundo de quem legitimado como real? Subjetivamente, ns perguntamos: Quem eu posso me tornar neste mundo em que significados e limites do sujeito esto postos previamente a mim? Por quais normas eu sou limitado enquanto pergunto o que eu posso me tornar? E o que acontece quando eu comeo a me tornar aquilo para o que no h lugar dentro de determinado regime de verdade? No seria precisamente isto que quer dizer o desassujeitamento do sujeito no jogodas polticas de verdade?

Em jogo aqui est a relao entre os limites de ontologia e epistemologia, a ligao entre os limites do que eu posso me tornar e os limites do que eu posso arriscar saber. Derivando um sentido de crtica de Kant, Foucault coloca o problema que o problema da crtica nela mesma: Voc sabe bem at onde pode saber? Nossa liberdade est em jogo. Assim, a liberdade surge nos limites do que podemos saber, no prprio momento em que o desassujeitamento do sujeito dentro das polticas de verdade acontece, o momento em que certo questionamento prtico comea tomando a seguinte forma: O que, ento, sou eu, eu que perteno a esta humanidade, talvez a este pedao, neste tempo, neste instante de humanidade que sujeitado ao poder da verdade em geral e verdades em particular? Outro modo de colocar isto: O que, nesta ordem contempornea do ser, eu posso ser? Se, colocando esta questo, a liberdade est em jogo, talvez colocar a liberdade em jogo tenha que ver com o que Foucault chama de virtude, com certo risco que posto em jogo pelo pensamento e, de fato, pela linguagem onde a ordenao contempornea do ser levada ao seu limite.

Mas como entender esta ordem contempornea do ser na qual eu me ponho em questo? Aqui Foucault escolhe caracterizar esta ordem do ser condicionada historicamente de um modo que o liga com a teoria crtica da Escola de Frankfurt, identificando racionalizao como o efeito da governamentalidade na ontologia. Aliando-se com a tradio crtica de esquerda post-Kant, Foucault escreve

da esquerda hegeliana Escola de Frankfurt, houve toda uma crtica do positivismo, do objetivismo, da racionalizao, da techn e da tecnicisao, toda uma crtica das relaes entre o projeto fundamental da cincia e da tcnica, que tem por objetivo fazer aparecer os elos entre uma presuno ingnua da cincia de um lado, e as formas de dominao prprias forma da sociedade contempornea de outro.

Na sua viso, a racionalizao toma uma forma nova quando ela se d a servio do biopoder. E o que continua sendo difcil para maior parte dos atores e crticos sociais nesta situao distinguir a relao entre racionalizao e poder. O que parece ser meramente de ordem epistemolgica, um modo de ordenao do mundo, no admite prontamente os limites pelos quais esta ordenao se d. Nem mostra avidamente o caminho pelo qual a intensificao e totalizao de efeitos de racionalizao levam a uma intensificao do poder. Foucault pergunta, O que faz com que a racionalizao conduza ao furor do poder? Certamente, a capacidade da racionalizao em adentrar os tributrios da vida no caracteriza apenas modos de prtica cientfica, mas tambm relaes sociais, organizaes estatais, prticas econmicas e at mesmo comportamentos individuais? Ela atinge seu furor e seu limite medida que ela apreende e impregna o sujeito que ela subjetiva. O poder coloca os limites nos quais um sujeito pode ser, alm dos quais ele no mais , ou ele habita em um domnio de ontologia suspensa. Mas o poder procura restringir o sujeito pela fora de coero, e a resistncia coero consiste na estilizao de si nos limites do ser estabelecido.

Uma das primeiras tarefas da crtica discernir a relao entre mecanismos de coero e elementos de saber (50). Parece que neste momento somos novamente confrontados com os limites do que se pode conhecer, limites que exercem uma determinada fora sem se embasarem em alguma necessidade, os quais podem ser tocados ou interrogados ao pr em risco a segurana no interior de uma ontologia disponvel:Nada pode existir como elemento de saber se, por um lado... no se conformar a um conjunto de regras e restries caractersticas, por exemplo, de um certo tipo de discurso cientfico de um determinado perodo; assim como, por outro lado, se no possuir efeitos de coero ou simplesmente de incitao prpria quilo que validado enquanto cientfico, ou simplesmente racional, ou simplesmente amplamente aceito, etc.Ento, ele continua a mostrar que conhecimento e poder no podem ser separados, mas atuam em conjunto no estabelecimento de um conjunto de critrios explcitos para se pensar o mundo: No se trata, portanto, de descrever o que o poder e o saber, e como um reprimiria o outro, ou como o outro abusaria do primeiro; mas antes se trata de descrever um nexo de saber-poder que permita apreender o que constitui a aceitabilidade de um sistema.

A crtica tem ento uma dupla tarefa: mostrar como saber e poder trabalham de modo a constituir um modo mais ou menos sistemtico de ordenar o mundo com suas prprias condies de aceitabilidade de um sistema; mas tambm a de seguir as linhas de ruptura que marcam a sua emergncia. Logo, necessrio no apenas isolar e identificar o nexo peculiar de poder e saber que permite a emergncia de um campo de coisas inteligveis, mas tambm rastrear o caminho pelo qual este campo determinado de poder-saber encontra seus pontos de irrupo, seus momentos de descontinuidade, os pontos onde ele falha em constituir a inteligibilidade para aquilo que ele deveria dar conta. Isso quer dizer que deve-se olhar tanto para as condies pelas quais um campo de objetos constitudo, como para os limites de tais condies, os momentos nos quais elas apontam sua contingncia e sua possibilidade de transformao. Nos termos de Foucault: esquematicamente falando, temos uma perptua mobilidade, essencial fragilidade, ou antes, a complexa interao entre o que reconduz ao mesmo processo e aquilo que o transforma.

De fato, outro modo de falar sobre esta dinmica no interior da crtica dizer que a racionalizao encontra seus limites na dessujeio. Se a dessujeio do sujeito emerge no momento no qual a episteme constituda atravs da racionalizao expe os seus limites, logo a dessujeio ressalta precisamente a fragilidade e transformabilidade da epistmica do poder.

A crtica comea com a presuno da governamentalizao e com a sua falha em totalizar o sujeito que se procura conhecer e subjugar. Mas o meio pelo qual esta prpria relao se articula desconcertantemente descrito como uma fico. Porque seria uma fico? Em que sentido seria uma fico? Foucault se refere a uma prtica histrico-filosfica na qual se deve fazer sua prpria histria, fabricar a histria como numa fico, uma histria que estaria atravessada pela pergunta sobre as relaes entre as estruturas de racionalidade que articulam o discurso verdadeiro e os mecanismos de sujeio ligados a tais discursos (45-44). Deste modo, h uma dimenso da prpria metodologia que compartilha da fico, de modo a desenhar linhas ficcionais entre racionalizao e dessujeio, entre o nexo entre poder-saber e sua fragilidade e limite. No nos dito que tipo de fico seria esta, mas parece claro que Foucault est se referindo a Nietzsche, e em particular, fico que a genealogia clama para si.

Vocs devem lembrar que embora a genealogia da moral seja, para Nietzsche, a tentativa de localizar as origens dos valores, ele na verdade estaria procurando encontrar como a prpria concepo de origem foi instituda. E os meios pelos quais ele procura explicar a origem so ficcionais. Ele conta uma historieta sobre os nobres, outra sobre o contrato social, outra sobre uma revolta escrava na moral, e outra sobre as relaes entre credor e devedor. Nenhuma destas historietas podem ser localizadas no espao e no tempo, e qualquer esforo em tentar encontrar embasamento histrico para a genealogia nietzschiana ir fracassar inevitavelmente. Na verdade, no lugar onde se conta a origem dos valores, ou a origem da origem, ns lemos historias ficcionais sobre como estes valores foram inventados. Um nobre diz que algo o caso, e isso se torna o caso: o ato de linguagem inaugura o valor e se torna algo como a ocasio atpica e atemporal sobre como apareceram os valores. Na verdade, as fices de Nietzsche se espelham no prprio modo de inaugurao valorativa que ele atribui aos nobres. Deste modo, ele no apenas descreve o processo, mas a prpria descrio torna-se parte de uma instncia de produo de valores, pondo em ao o processo que narrado.

Como este uso particular da fico se relacionaria com a concepo foucaultiana de crtica? Considere-se que Foucault est tentando entender a possibilidade de dessujeio no interior da racionalizao, sem com isso assumir que haveria uma fonte de resistncia habitando no sujeito ou mantida, de algum modo, como um fundamento. De onde vm a resistncia? Pode-se dizer que ela surge das profundezas de uma liberdade humana constrangida pelos poderes da racionalizao? Se ele menciona uma vontade de no ser governado, como deve-se entender o estatuto desta vontade?

Em resposta a uma questo que caminha neste sentido, ele diz:Eu no acredito que a vontade de no ser governado em absoluto seja algo que se possa considerar uma aspirao originria. Eu penso que, de fato, a vontade de no ser governado sempre uma vontade de no ser governado assim, deste modo, por estas pessoas, a este preo.E ele continua a se precaver contra a absolutizao desta vontade que a filosofia sempre tentou encontrar. Ele procura evitar aquilo que ele denomina como o paroxismo terico e filosfico daquilo que seria esta vontade de no ser relativamente governado (72-73). Ele deixa claro que explicar isso o envolve com o problema da origem, e ele passa perto de ceder a tal problema, mas uma certa relutncia nietzschiana prevalece. Ele escreve:Eu no me referia a algo que seria como um anarquismo fundamental, como uma liberdade originria, absolutamente e fundamentalmente resistente a qualquer governamentalizao. Eu no disse isso, muito embora eu tambm no o exclua em absoluto. Eu penso que minha apresentao termina neste ponto porque ela j foi demasiadamente demorada, mas tambm porque o que eu me pergunto... se se quiser explorar esta dimenso da crtica que me parece to importante por, simultaneamente, ser e no ser parte da filosofia... esta seria apoiada em algo como a prtica histrica da revolta, do no-aceitamento de um governo real por um lado, e por outro, a recusa individual da governamentalidade.

Qualquer que seja o embasamento ao se resistir governamentalizao, isto ser como uma liberdade originria e algo aparentado prtica histrica da revolta (minha nfase). De fato, trata-se de algo como ambos, mas que no igual. Quanto meno foucaultiana a uma liberdade originria, ele a coloca e retira ao mesmo tempo. Eu no o disse, ele ressalta, aps chegar perto de diz-lo, aps mostrar-nos como ele quase o disse, aps exercer uma espcie de aproximao que pode ser entendida como uma provocao de sua parte. Qual discurso quase lhe seduz neste momento, subjugando-o aos seus termos? E como ele se afasta dos termos que recusa? Que forma de arte essa, na qual uma distncia crtica que quase entra em colapso nos apresentada? esta a mesma distncia do imaginar, do por em questionamento? Quais limites do conhecimento ele ousa abordar enquanto nos questiona em voz alta? A cena inaugural da crtica envolve a arte da inservido voluntria, e o voluntrio ou o que seria uma liberdade originria apresentado aqui, mas na forma de uma conjectura, na forma de uma arte que suspende a ontologia e nos leva suspenso da descrena.

Foucault encontra uma maneira de dizer a liberdade originria, e me parece que lhe d um imenso prazer proferir tais palavras, prazer e medo. Ele as fala, mas apenas encenando as palavras, livrando-se de um compromisso ontolgico, mas liberando-as para um certo uso. Ele se refere a uma liberdade originria aqui? Ele procura usar este recurso? Ele encontrou a fonte da liberdade originria e bebeu de sua gua? Ou, de maneira significativa, ele coloca este problema, menciona-o sem realmente mencion-lo? Ele estaria invocando-o para que pudssemos aproveitar as ressonncias e saber o poder das mesmas? A encenao do termo no sua assero, mas poderamos dizer que a assero encenada artisticamente, submetida a uma suspenso ontolgica justamente para que este possa ser falado. E este o ato de linguagem o qual por vezes diz a frase liberdade originria, a partir da poltica epistmica no interior da qual se vive e que tambm traz certo nvel de dessujeio do sujeito dentro de uma poltica da verdade. Pois quando se fala daquele jeito se agarrado e libertado ao mesmo tempo pelas palavras que se diz. Certamente a poltica no apenas uma questo de fala, e eu no quero reabilitar Aristteles maneira foucaultiana (embora eu deva confessar que tal movimento me intrigue, e eu o menciono aqui para oferecer a possibilidade sem me comprometer com a mesma). Neste gesto verbal em direo ao fim desta leitura, certa liberdade exemplificada no atravs da referncia ao termo sem que haja qualquer ancoramento fundamental, mas pela performance artstica de seu desprendimento em relao s constries discursivas, da presuno que s se pode profer-la ao saber de antemo qual deve ser seu fundamento.

O gesto de Foucault estranhamente corajoso, eu sugiro, pois ele sabe que no possvel clamar por qualquer liberdade originria. Este no saber permite seu uso particular no discurso. Ele menciona o termo de qualquer modo, e esta meno, esta insistncia, se torna uma alegoria para certa aceitao do risco que ocorre nos limites de nosso horizonte epistemolgico. E isto talvez se torne uma prtica de virtude, e no, como dito por seus crticos, um sinal de desespero moral. Precisamente na medida em que a prtica deste tipo de fala coloca um valor que no sabe como fundamentar-se a si mesmo, mas que colocado de todo modo, e desse modo acaba por mostrar certa inteligibilidade que excede a prpria inteligibilidade j colocada pelo poder-saber. Isto uma virtude precisamente por oferecer a perspectiva atravs da qual o sujeito toma uma distncia crtica da autoridade. Mas se trata, ao mesmo tempo, de um ato de coragem, ato sem garantias, arriscando o sujeito nos limites de sua ordem. Quem seria Foucault se ele tivesse de mencionar tais palavras (Que tipo de dessujeio ele performa para ns ao proferi-las?

Tomar distncia crtica da autoridade estabelecida significa para Foucault no apenas reconhecer as maneiras pelas quais os efeitos coercitivos do saber atuam na formao do sujeito, mas tambm arriscar a sua prpria formao como sujeito. Deste modo, em O sujeito e o poder, Foucault dir: esta forma de poder aplicada na vida cotidiana e imediata, a qual categoriza o indivduo, marca-o com sua prpria individualidade, liga-o sua prpria identidade, impe-lhe uma lei de verdade a qual ele deve reconhecer em si mesmo e que os outros devem reconhecer nele (212). E quando esta lei falta ou quebrada, a prpria possibilidade de reconhecimento colocada em perigo. De modo que quando nos perguntamos como podemos dizer liberdade originria, e diz-lo numa cogitao, ns ao mesmo tempo colocamos em questo o sujeito que se diz estar enraizado neste termo, liberando-o, paradoxalmente, para uma aventura arriscada e que pode trazer-lhe nova substncia e possibilidade.

Para concluir, eu retornaria introduo de O uso dos prazeres, onde Foucault define as prticas que concernem seu estudo enquanto artes de existncia (10), as quais remetem a uma relao de cultivo de si para consigo. Esta formulao nos coloca mais prximos do tipo de virtude que o anti-fundacionismo de Foucault acaba por representar. De fato, como escrevi anteriormente, ao introduzir a noo de artes de existncia, Foucault tambm se refere a estas em sua produo de um sujeito que procura transformar-se a si mesmo em seu ser singular, e fazer de sua vida uma obra. Poderamos acreditar que isto fornece embasamento para a acusao de que Foucault estetizou totalmente a existncia s custas da tica, mas eu sugeriria apenas que ele nos mostrou que no pode haver tica ou poltica sem recurso a este sentido singular de poiesis. O sujeito que formado pelos princpios fornecidos pelo discurso de verdade ainda no um sujeito que se engaja para formar a si mesmo. Engajado nas artes de existncia, este sujeito ao mesmo tempo formado e formador, e a linha que separa como ele formado e como ele se torna um tipo de formao no facilmente desenhada e talvez nunca o seja. Porque no se trata do caso de um sujeito que primeiramente formado e ento se vira e comea a formar-se. Ao contrrio, a formao do sujeito a instituio da prpria reflexividade que, indistiguivelmente, assume o fardo da formao. A indistinguibilidade desta linha precisamente a conjuntura onde normas sociais cruzam com demandas ticas, e onde ambas so produzidas no contexto de um auto-fazer-se que no nunca totalmente autoinaugurado.

Embora Foucault refira-se diretamente inteno e deliberao neste texto, ele tambm nos mostra o quo difcil ser entender esta auto-estilizao em termos de algum conhecimento adquirido por inteno ou deliberao. Para a compreenso da reviso dos termos que esse uso exige, Foucault introduz os termos modos de sujeio ou subjetivao. Estes modos no remetem simplesmente ao modo como um sujeito formado, mas a como ele torna-se auto-formao. Este tornar-se de um sujeito tico no simplesmente uma questo de auto-conhecimento ou auto-conscincia; ele designa um processo no qual o indivduo delimita uma parte de si mesmo a qual formar o objeto de sua prtica moral. O si mesmo delimita a si mesmo, e decide qual a matria de seu auto-fazer-se, mas a delimitao posta em ao pelo eu ocorre num contexto onde as normas j esto anteriormente colocadas. Logo, se acreditamos que este modo esttico de auto-fazer-se contextualizado numa prtica tica, ele nos lembra que este trabalho tico s pode ocorrer num contexto poltico mais amplo, a poltica das normas. Ele deixa claro que no h uma auto-formao fora de um modo de subjetivao, o que significa que no h auto-formao fora das normas que orquestram a possvel formao do sujeito (28).

Movemo-nos discretamente de uma concepo discursiva de sujeito para uma noo de si mesmo com maiores ressonncias psicolgicas; e pode ser que, para Foucault, o ltimo termo carregue mais implicaes que o primeiro. O si mesmo se autoconstitui, mas o faz de acordo com um conjunto de prticas que so caracterizadas como modos de subjetivao. Que o alcance de suas formas possveis seja delimitado de antemo por estes modos de subjetivao no quer dizer que o si falha em formar a si mesmo, que o si-mesmo seja completamente formado. Ao contrrio, ele compelido a formar-se a si mesmo, mas a formar-se a si mesmo de acordo com formas que j esto em operao em maior ou menor grau. Ou, poderamos dizer, ele compelido a formar-se a si mesmo a partir de regras que esto mais ou menos dadas. Mas se este auto-formar-se feito em desobedincia aos princpios pelos quais se formado, ento a virtude torna-se a prtica pela qual o eu forma-se a si mesmo em uma dessujeio, o que quer dizer que ele arrisca sua deformao como sujeito, ocupando aquela posio ontologicamente insegura a qual recoloca a questo: quem ser um sujeito aqui? E o que vai contar como uma vida? Um momento de questionamento tico que requer que quebremos hbitos de julgamento estabelecidos para favorecer uma prtica mais arriscada que busca gerar o artstico a partir daquilo que constrange. Raymond Williams, Keywords, (New York: Oxford University Press, 1976), 75-76.

Theodor W. Adorno, Cultural Criticism and Society in Prisms, (Cambridge, MA.: MIT Press, 1984), 30.

Michel Foucault, What is Critique? in The Politics of Truth, eds. Sylvre Lotringer and Lysa Hochroth, (New York: Semiotext(e), 1997), transcript by Monique Emery, revised by Suzanne Delorme, et al., translated into English by Lysa Hochroth. This essay was originally a lecture given at the French Society of Philosophy on 27 May 1978, subsequently published in Bulletin de la Socit franaise de la philosophie 84:2 (1990) 35-63;

Para uma interessante exposio desta transio da teoria crtica para uma teoria da ao comunicativa, ver Seyla Benhabib, Critique, Norm, and Utopia: A Study of the Foundations of Critical Theory (New York: Columbia University Press, 1986), 1-13.

Nota da traduo: Histria da sexualidade vol.2: o uso dos prazeres, p.13

Nota da traduo: Histria da sexualidade vol.2: o uso dos prazeres, p.15

Nota da traduo: Histria da sexualidade vol.2: o uso dos prazeres, p.15

Nota da traduo: Histria da sexualidade vol.2: o uso dos prazeres, p.25