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MãesPerturbadoras,
FilhosMonstruosos
RaquelRiera
MÃESPERTURBADORAS,FILHOS
MONSTRUOSOS:
UmaLeituradeDistânciadeResgate,deSamantaSchweblin
Copyright©2020byTL224PublicaçoesDireitosreservadoseprotegidospelaLei19.2.1998.E� proibidaareproduçaototalouparcialsem
autorizaçao,porescrito,daeditora.
Capa:JaquelineSampaio.Preparaçaoerevisao:AmandaAmador,CarolinaJacomini,JaquelineSampaioeTabathaSouza.Diagramaçao:CarolinaJacomini,JaquelineSampaioeTabathaSouza.
Fichacatalogra�icaUniversidadeEstadualdeCampinas
BibliotecadoInstitutodeEstudosdaLinguagemLeandrodosSantosNascimento-CRB8/8343
R445m
Riera,Raquel,1996-.q1a
Maesperturbadoras,�ilhosmonstruosos:umaleituradeDistânciaderesgate,deSamantaSchweblin/RaquelRiera;organizadores:AmandaMartinsAmador,CarolinaEstefaniaSimonsJacomini,JaquelineSampaio,TabathaSouza.–Campinas,SP:Unicamp/PublicaçoesIEL,2020.
116p.ISBN978-65-87175-04-1
1.Schweblin,Samanta,1978-.Distanciaderesgate–Crıticaeinterpretaçao.2.Maternidade.3.Feminismo.I.Amador,AmandaMartins,1999-.II.Jacomini,CarolinaEstefaniaSimons,1996-.III.Sampaio,Jaqueline,1997-.IV.Souza,Tabatha,2000-.V.Tıtulo.
CDD:Ar863.709
PrintedinBrazilFoifeitoodepositolegal
DireitosreservadosaTL224PublicaçoesR.SergioBuarquedeHolanda,571,CEP:13083-859,CidadeUniversitaria,
Campinas,SP-Brasil
ÀEdmeaeàChris,mulheresdaspalavras:por
tudooqueforamemvidaepeloquesempre
serãoemnossasmemórias.
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente à Profª. Dra. Miriam Viviana
Gáratepelaexemplarorientação,pelapaciênciacomasmudanças pelasquaisapesquisapassouepela�irmezaquandofoinecessária. Otrabalhosóchegouaoseuresultado�inalgraçasaisso.
Agradeço à minha família, à minha irmã, Julia e ao meu primo,Pedro,peloapoio.Agradeçoprincipalmenteaosmeuspaise aomeucompanheiro.FláviaeCélio,vejodiariamenteoesforçode vocês para possibilitar que eu tenha a melhorvidapossível,para me guiar quando é preciso eparamedeixariremfrentesozinha quando é chegada a hora. Vocês nunca duvidaram das minhas escolhas e se encantaram comigopelaspalavrasàmedidaqueas fui conhecendo. Por isso, sou eternamente grata. Gustavo, sua companhia,seuamoresuagentileza�izeramosúltimoscincoanos serem mais fáceis, divertidos e absolutamente valiosos. Obrigada portanto.
Agradeço aos amigos pelo apoio incondicional. A lista é extensa,eoamorquesintoporvocêstambém.AsamigasLarissae So�iaeasmulheresdoCharcoacreditaramemmimquandoeunão o�iz,esemissominhacaminhadateriasidomuitomaisdi�ícil.
Finalmente, agradeço à equipe de revisão da disciplina TL224doprimeirosemestrede2020pelointeresseemaprimorare dar luz ao meutrabalho.Aatençãoeadedicaçãodevocêsforam incríveis,obrigada!
SUMÁRIO
INTRODUÇA�O 13
CAPI�TULOI:Distânciaderesgateesuasperturbadorasnuances
22
Rememoraçãoperanteaiminênciado�im 24
Mãesboasemãesruins 29
Aperdadainocênciainfantil 48
CAPI�TULO II: Relaçoes entre Distância de resgate e outros textosdeSchweblin
55
Relaçõesfamiliaresfraturadas:temáticarecorrente 58
Campo:lugardedescansoehesitação 79
CAPI�TULOIII:Aquestaodocontoeaquestaodofantastico 86
Entrenovelaeconto 87
Aiminênciadofantástico 96
CONCLUSO� ES 106
BIBLIOGRAFIA
110
INTRODUÇÃO
A oposiçao entre “mae boa” e “mae ruim” e comumtanto
empensamentosfundadoresdateoriapsicanalıticaquanto
em discursos culturais amplamente disseminados. Porem,
como sera demonstrado ao longo desta pesquisa, trata-se
de algo construıdo historicamente. Nesse sentido,
Elisabeth Badinter versa, emO con�lito: A mulher e a mãe
(2011), acercadediferentesmovimentosquepromoveram
ideais maternais ao longo do seculo XX, evidenciando as
controversias que tangenciam o tema. Nota-se, por meio
da obra, oscilaçoes no que concerne a concepçao de uma
13
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
imagem arquetıpica de maternidade de acordo com os
diferentes momentos vivenciados por mulheres na
sociedade.
Sabe-se que “oaperfeiçoamentotecnicoemmateria
de contraceptivos” (MILLET, 1974, p. 11) e sua difusao
possibilitaram profundas mudanças na relaçao das
mulheres com o sexo e com a maternidade. Segundo
Badinter, com a revoluçao sexual, diversos grupos
feministas passaram a renunciar a maternidade por
entenderem que se tratava mais de pressao social do que
de escolha. Em contrapartida, durante a decada de 1970
“ouviu-se cada vez mais falar das leis da natureza e da
biologia, da ‘essencia’ e do ‘instinto’ maternos, os quais
impoem deveres cada vez mais serios em relaçao a
criança” (ibidem, p. 42). Da mesma forma, veri�ica-se em
outro estudo da autora que a noçao deamormaterno–e,
consequentemente, de desejo por �ilhos – “e �lexıvel e [...]
sujeito a elipses”(BADINTER,1988,p.20).Comoevidencia
Badinter, a ideia da existencia de um instinto maternal
inerente ao genero feminino e uma construçao recente.
14
Introdução
Ate o seculo XIX, as relaçoes maternas eram geralmente
de�inidas pela frieza. Os bebes eram frequentemente
deixados em casa, em condiçoes verdadeiramente
insalubres, enquanto as maes se ocupavam de tarefas
domesticas ou acompanhavamseusmaridosnostrabalhos
agrarios.
Com a instauraçao de�initiva da lei da vocaçao
feminina para cuidar dos �ilhos, novasfunçoespassarama
ser delegadas as mulheres. De acordo com o historiador
LosandroTedeschi,sao
delimitadas novas funçoes especi�icamente femininas em relaçao as crianças, a �imdegerar um ‘consenso’ biologico e um ‘carater inato’ a assumir um signi�icado social. A demarcaçao desse espaço do ‘materno’ como algo ‘inato’ a constituiçao feminina e, consequentemente, a devoçao das maes aos �ilhos [...] delimitarao e criarao novas funçoes a mulher: a educaçao (TEDESCHI,2008,p.104).
Dessa forma, o papel da mae “passa a ser
determinante para a atuaçao boa ou ma de seu fruto”
(ibidem, p. 105). Alem disso, com o crescente volume de
estudos psicanalıticos conduzidos a partir de inıcios do
15
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
seculo XX sobre os primeiros anos de vida dos bebes, a
progenitora ganha cada vez mais responsabilidadequanto
ao bomdesenvolvimentofısicoepsicologicodeseus�ilhos.
Donald Winnicott considera, em Os bebês e suas mães
(1999), que cabe a mae criar umambiente e uma relaçao
bons o bastante para que o bebe possa alcançar sua
completude pessoal adequadamente. A�inal, “onde o
ambiente de facilitaçao [...] possuir caracterısticas
su�icientemente boas, as tendencias hereditarias de
crescimento que o bebe tem podem [...] alcançar seus
primeiros resultados favoraveis” (WINNICOTT, 1999, p. 8).
A mulher que e capaz de prover esse espaço saudavel e
denominada “mae su�icientemente boa”, em oposiçao
aquela que, por diferentesrazoes,naoconseguecumprira
tarefa. De acordo com o psicanalista, “o apoio do ego
materno facilita a organizaçao do ego do bebe”,
evidenciando a importancia da �igura da “mae
su�icientemente boa” para que o recem-nascido possa
desenvolver-secomoumsercompleto(ibidem,p.8).
16
Introdução
Para Rene Spitz, “pode-se alegar que a mae naoeo
unico ser humano no ambiente da criança, nem o unico
quetemin�luenciaemocional;queoambientecompreende
pai, irmaos, parentes e outros” (SPITZ, 2004, p. 101). No
entanto, na cultura ocidental, as in�luencias culturais e
emocionais sao majoritariamente “transmitidas a criança
pela mae” (ibidem, p. 101). As mulheres teriam, entao,
papel “totalmente abrangente [...] no aparecimento e
desenvolvimento da consciencia do bebe” (ibidem,p.99)e
participaçaovitalemseuprocessodeaprendizagem.
Revisar textos que tratam social e
psicanaliticamente da relaçao entre mulher e �ilhos ou
entremulherematernidadeeespecialmenteproveitosoao
entrar em contato com o corpus literario da escritora
argentina SamantaSchweblin e,maisespeci�icamente,com 1
1 Nascida em 1978 na Argentina, ganhouopremioCasadelasAméricas em 2008 por sua coletanea de contos intituladaPássaros na boca. Esta entre os 22 melhores jovens escritores em lıngua espanhola segundo ediçaode2010darevistaGranta. Alemdisso, ganhouem2015opremio literarioTigreJuaneoPremioInternacionaldeNarrativaBreveRiberadel Duero. Em 2017, seu livro Distância de resgate foi �inalista doMan BookerInternationalPrize.
17
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
sua ultima publicaçao: na novela Distância de resgate 2 3
(2016), ovınculoentreduasmaeseseusrespectivos�ilhos
e umdos pontos centrais. Alemdisso,naoraroconstituem
sua obra temas envolvendo idiossincrasias femininas e
re�lexoes acerca de relaçoes familiares, as quais
apresentamdisfuncionalidadesecausaminquietaçoes.
Tanto por meio de suas narrativas quanto de suas
entrevistas, Samanta Schweblin deixa clara a sua
preferencia pelo insolito: “se nao encontro nada
perturbador, nao me interessa narrar” (PALACIOS, 2012). 4
Seguindo as linhas teoricas esboçadas acima e as
tendenciasdaautoraaquiloqueincomoda,pretende-se,no
presente trabalho, analisar principalmente as relaçoes
maternas encontradas na novela de Schweblin – e, por
conseguinte, as construçoes da infancia nela existentes.
2Atea�inalizaçaodestapesquisa,emjulhode2018.3 A preferencia pelo termo “novela” em vez do usual “romance” sera tratadacommaisprofundidadenaseçao3.1destetrabalho.4 Palacios (2012), Silva(2012), Tinoco(2013), Maristain(2014), Pablos (2016), Guzman(2016),Bianco(2016)Mello-Gerlach(2017)eHenrıquez (2018) sao entrevistas concedidas por SamantaSchweblin. Nocorpodo texto, quando houver citaçao direta delas, a referencia sera feita entre parentesescomosobrenomedoentrevistadoreoano.
18
Introdução
Junto a isso, busca-se respaldo em teorias psicanalıticas
concernentes a dıade mae-bebe (SPITZ, 2004), visando a
melhor compreender o vınculo entre as personagens
adultas e infantis de Distância de resgate. Optou-se por
esse vies teorico por se entender que indicaria caminhos
interpretativosinteressantes.
Alem disso, a �im de promover uma investigaçao
mais completa, serao examinados certos aspectos mais
amplos da obra da autora, com o �im de delinear um
panorama de suas produçoes. Isso porque se tenciona
analisar elementos tanto da novela emquestao quanto de
suas outras publicaçoes, a procura de pontos que as
correlacionem.
Aindaqueabuscaporsemelhançasmotiveparteda
pesquisa a seguir, pode-se estabelecer que uma das
caracterısticas mais marcantes – e mais disseminadas pela
fortuna crıtica – da obra de Schweblineseuvınculocomo
genero fantastico. No entanto, refutando a alcunha, a
autora mostrou, em diferentes entrevistas, que considera
seus textos majoritariamente realistas, aindaqueabordem
19
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
temas pouco naturais.Considerando-se que a inserçao em
generos distintos confere outros signi�icados aos eventos
dos relatos, o ultimo capıtulo deste estudo se dedica a
debater a questao do fantastico na produçao da autora.
Para isso, foram revisadas teorias literarias que buscam
determinar precisamente o que causa a sensaçao de se
estar diante de algo inexplicavel pelas leis que regem o
mundodoleitor.
A escolha deDistânciaderesgatefoimotivadatanto
pela relevancia de seus temas quanto por sua
singularidade emrelaçao as outras publicaçoes da autora:
ainda que seja classi�icado como novela, e possıvel
identi�icar, no relato, caracterısticas que o ligamatradiçao
contıstica deSchwebline,deformamaisampla,degrandes
autores latino-americanos. Alem disso, considera-se que
estudar as imagens e as relaçoes maternas apresentadas
na obra possibilita re�lexoes acerca do papel da mulher e
damaenasociedadeocidentalhoje.
20
21
CAPÍTULOI
Distânciaderesgateesuasperturbadorasnuances
E� possıvel identi�icar, no vasto repertorio de narrativas de
Samanta Schweblin, certas constantes. De acordo comLia
Cristina Ceron (2018), tematicas que visama questionar a
realidade e nela interferir sao comuns, fazendocomqueo
leitor repense suas relaçoes com o mundo e com outras
pessoas. Para incitar essa problematizaçao do cotidiano,
Schweblin parte, no geral, de uma construçao que
privilegia o “elemento perturbador [...], sem, no entanto,
abrir mao totalmente de uma representaçao que preze
pela verossimilhança” (CERON, p. 90, 2018). Essa
proximidade com o real contribuiria, em grande parte,
22
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
para o surgimento da sensaçao de incomodo, tendo em
vista que faz seus textos remeterem a experiencias que
poderiam suceder ao leitor. Veri�ica-se que o “elemento
perturbador” pode se manifestar de variadas formas, seja
por meio das tematicas, das personagens, ou mesmo dos
cenariosutilizados.
Assim, em consonancia com o estabelecido por
Ceron, interessa, neste capıtulo, estudar aspectos de
Distância de resgate que in�luenciem no surgimento da
sensaçao perturbadora – tanto nos personagens quanto
no leitor – e façam, a partir disso, com que novos
entendimentos de realidade despontem. Partindo dessas
premissas, serao analisadas as tematicas (e,
consequentemente, as personagens que dao vida a elas)
centrais do relato, assim como sua peculiar narraçao.
Ademais, sera observada sua cronologia diferencial,
marcada por rememoraçoes de um passado recente,
amalgamadas de forma confusa ao presente febril vivido
pelanarradora.
23
Distanciaderesgateesuasperturbadorasnuances
Rememoraçãoperanteaiminênciado�im
Distânciaderesgatefoi escrito de modo singular, naforma
de um dialogo – ou interrogatorio – ininterrupto entre
Amanda e David. A protagonista foi intoxicada por
agrotoxicos durante uma viagem de ferias ao interior da
Argentina com a �ilha, Nina. Ja seu interlocutor e uma
criança peculiar que sofreu o mesmo tipo de
contaminaçao, da qual se salvou graças a rituais
sobrenaturais, aparentemente. Segundo o que sua mae,
Carla, relata a Amanda, quando o menino foi envenenado,
a curandeira do vilarejo declarou que a unica forma de
salva-lo seria por meio de um processo por ela
denominado migração: “se transferıssemos a tempo o
espırito de David para outro corpo, entao uma parte da
intoxicaçao tambemiria comele. Dividida emdois corpos,
haveriachancesdevence-la.”(SCHWEBLIN,2016,p.27).
24
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
Quem efetivamente narra o relato e Amanda, 5
embora a conversa seja, por vezes, intensa e rapida, a
ponto de confundir o leitor – ou de sugerir a hipotese de
que, em verdade, David seja uma projeçao da mente da
narradora. Semcapıtulos ou pausas, a obrasegueapenas 6
o ritmoestabelecidopelodialogoentreosprotagonistas.A
cena inaugural do relato tem comocenario umquarto de
hospital, no qual Amanda esta internada em estado
terminal. O menino estasentadoasuacabeceira,enquanto
tenta incansavelmente descobrir o “ponto exato onde
nascem os vermes” (ibidem p. 9). Os vermes, como se
deduz no desenvolvimento do livro, fazem referencia aos
agrotoxicos que contaminam o vilarejo que ela visita e no
qualseuinterlocutorvive.
E� importante atentar-se ao momento em que o
enredo tem inıcio, ja em um dialogo que parece ter
5 Isso e mais claramente perceptıvel apenas na cena inicial do relato, quandoAmandadiz:“quemfalaeomenino,vaimedizendoaspalavrasao ouvido.Quemperguntasoueu”(SCHWEBLIN,2016,p.9).6 A situaçao de David e incerta. Nao se pode a�irmar com segurança, a partir das informaçoes fornecidas no relato, se e umapessoareal ouse constituiumdelıriodeAmandaenquantocedeaintoxicaçao.
25
Distanciaderesgateesuasperturbadorasnuances
começado antes da cena relatada – ainda que logo se
entenda queamulherestadeitadaemumleitodehospital,
e David lhe faz perguntas sobreopassadoquesaoporela
respondidas no presente: “oquemaisestáacontecendono 7
jardim da casa? Eu estou no jardim?Nao, nao esta, quem
esta e Carla, sua mae. [...] Esta terminando o cafe e
deixando a xıcara na grama” (ibidem, p. 10). Entende-se,
entao, que se trata de uma rememoraçao de eventos ja
sucedidos. Essa maneira de estruturar suas memorias da
ao texto umritmo deiminencia,comoseAmandapudesse,
por meio da fala, situar-se – e situar tambema David eao
leitor, comoespectadores –quaseque�isicamenteemsuas
lembranças. Essa seria uma das principais fontes de
suspense e tensao do relato, na medida em que passa “a
falsa sensaçao de que [a contaminaçao e] ainda um
destino que pode ser corrigido” (GUZMA� N, 2016). O
sentimento de deslocamento entre o agoraeojasucedido
e intensi�icado nos momentos em que a narradora,
7 Schweblin diferencia os discursos dos personagens apenas tipogra�icamente, sem fazer uso de travessoes: as falas de David sao destacadasemitalicoenquantoasdeAmandanaorecebemgrifoalgum.O mesmometodoseraadotadonesteestudoemcitaçoesdiretasdanovela.
26
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
perdida em delırios febris, e imprecisa quanto a
linearidade dos eventos: “estou confusa, confundo os
tempos”(SCHWEBLIN,2016,p.86).
Guiada porDavid,Amandaprocuradetalhesemsua
trajetoria durante os dias passados no vilarejo que os
ajude a determinar o instante em que ela e Nina foram
envenenadas. Quando se perde em sua propria linha de
raciocınio, o menino recomenda com veemencia que se
concentre, pois, segundo ele, tudo chega rapidamente ao
�im – sugerindo que, de algum modo, David sabe que a
morte de Amanda esta proxima. Por vezes, ele assume o
comando do dialogo, relatando eventos antes mesmoque
Amanda o faça. Isso possibilita novas interpretaçoes e
instiga questionamentos. Como teria o menino
conhecimento das memorias da mulher sem que ela
tivesse se pronunciado a esse respeito? Possıveis
explicaçoes poderiam abarcar in�luencias sobrenaturais,
comose, apos ter sua alma alegadamentetransferidapara
outro corpo, tivesseadquiridonovosnıveisdeconsciencia;
ou ainda, a sua inexistencia, colocando-o como uma
27
Distanciaderesgateesuasperturbadorasnuances
projeçao febril de Amanda em uma tentativa de melhor
compreendersuasexperienciasrecentes.
A certa altura, David protestacontraumadigressao
desnecessaria de sua interlocutora: “preciso que você se
concentre,nãoquerocomeçaroutravezdoinício.[...]Vocêjá
me contou como chegou aqui quatro vezes” (ibidem, p. 88).
Isto secon�igurariacomoargumentoplausıvelparaprovar
a sua existencia, posto que explicaria que seus
conhecimentos aparentemente sobrenaturais sao, em
verdade, resultado do que Amanda ja teria lhe contado
outras vezes – ainda que nao seja osu�icienteparaexcluir
totalmente a hipotese de ele ser produto da mente da
narradora. Dessa maneira, sua condiçao permanece
incerta.
Como observa Schweblin, e interessante a forma
dialogal coma qual se desenvolve anovela,tendoemvista
que a transforma “quase em uma longa sessao de
psicanalise” (PABLOS, 2016). A composiçao do espaço
primordial do livro – a mulher deitada em um leito
enquanto outrem a guia durante o relato de suas
28
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
memorias – e, de certa forma, similar a “cena psicanalıtica
elementar, ou seja, o paciente diante de seu analista”
(SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 68). Quanto a tecnica
psicanalıtica,SigmundFreudexplicaque
o medico renuncia a destacar um fator ou problema determinado e secontentaemestudar a superfıcie psıquica apresentada pelo analisando, utilizando a arte da interpretaçao essencialmente para reconhecer as resistencias que nela surgem e torna-las conscientes para o doente(FREUD,2010,p.147).
Nesse sentido, David assumiria a posiçao daquele
que, aoinvesderevelardiretamenteaAmandaomomento
em que foi intoxicada, a guiaria por suas memorias para
queelamesmavejaedescubraoquelheaconteceu.
Mãesboasemãesruins
Segundo oqueconcebeWinnicott,amaeea“unicapessoa
capaz de apresentar o mundo ao bebe de uma forma
adequada e que lhe faça sentido. Ela sabe comofaze-lo, e
para tanto nao precisa de nenhumaforma detreinamento
29
Distanciaderesgateesuasperturbadorasnuances
ou habilidade especial: sua sabedoria decorre do fato de
ser a mae natural” (WINNICOTT, 1999, p. 70). Seguindo
essa mesma linha, para Spitz, nao e possıvel “reprimir o
carinho e o amor [da mae] notratocomacriança”(SPITZ,
2004, p. 173). Em ambos os casos, veri�ica-se claramente
uma alusao a ideia amplamente disseminada de que a
mulher, por razoes naturais, tem competencia intrınseca
para gerar e cuidar de �ilhos – oqueresultanoconhecido
instintomaternal.
Mais especi�icamente, em Rene Spitz (2004), e
possıvel encontrar a ideia da importancia da �igura
materna para educaçao dos �ilhos. Para o psicanalista, “a
atitude emocional da mae, seus afetos, servirao para
orientar os afetos do bebe” (ibidem, p. 100) econferir-lhe
a qualidade de vida necessaria para que cresça mental e
�isicamente bem. Segundo oautor,ossentimentosdeamor
da mulher emrelaçao ao �ilho propiciamo surgimento de
um “clima emocional favoravel” (ibidem, p. 100),
responsavel por fazer com que o �ilho se torne objeto de
contınuo interesse para a mae que, por sua vez,
30
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
oferece-lhe uma sucessao de novas experiencias vitais
para conhecer e entender de maneira benigna o mundo.
Essa atmosfera repleta de carinho e, de acordo comSpitz,
elementar na infancia, tendoemvistaque,“nodecorrerde
seus primeiros meses, a percepçao afetiva e os afetos
predominam na experiencia do bebe, praticamente com
exclusao de todos os outros modos de percepçao.”
(ibidem,p.100).
Como visto, a oposiçao entre “mae boa” e “mae
ruim” – ou apenas “nao su�icientemente boa” – e a
construçao de modelos para o exercıcio exemplar da
maternidade sao comuns tanto em pensamentos
fundadores da teoria psicanalıtica quanto em dogmas
culturalmente estabelecidos na sociedade ocidental. Criar
um molde ligado a concepçao e educaçao de crianças ao
qual as mulheres deveriam se adequar, no entanto, 8
8 Deve-se esclarecer que certamente ha cobranças as quais as �iguras masculinastambemdevemresponder.Todavia,entende-seque“ninguem, ate hoje, erigiuo amorpaternoemleiuniversaldanatureza”(BADINTER, 1988, p.144).Assim,veri�ica-sequeoquediferenciaasatitudespaternae materna e a pressao social a que somente a mulher e submetida para cuidar exemplarmente dos �ilhos. Nesse sentido, fala-se largamente de “condenar as mulheres porsuadesnaturaçao”(ibidem,p. 189)enquanto
31
Distanciaderesgateesuasperturbadorasnuances
certamente limita suas opçoes para alem da esfera
materna. Dilui, tambem, as contradiçoes e os con�litos em
torno da relaçao entre ser, ao mesmo tempo, mulher e
mae. A historiadora francesa Elisabeth Badinter (1988)
a�irma acuradamente que, ao ser de�inida pela psicanalise
como a grande responsavel pelo desenvolvimento
saudavel e apropriado de seus �ilhos, a mulher “nao mais
podera evitar [o papel de mae] sob pena de condenaçao
moral”(BADINTER,1988,p.238).
Assim, Badinter versa, em Um amor conquistado
(1988), sobre o mito do instinto materno e as
ambiguidades obliteradas quando se trata da concepçao
de crianças. Comoreferido anteriormente, de acordo com
a autora, a predestinaçao da mulher a ter �ilhos e, com
isso, sentir-se completamente realizada, e um conceito
recente. Antes do seculo XIX, os pais franceses pareciam 9
“�icamos menos chocados com aatitudemasculina”(ibidem,p. 143)de negligencia.9 Elisabeth Badinter analisa, em sua obra, a historia da maternidade na Europa de modo geral, mas mais particularmente na França de seculos passados. Aindaqueoestudoestejaconcentradoemumpovoespecı�ico, constata-se que suas conclusoes podem ser amplamente aplicadas a outrosgruposdasociedadeocidental.
32
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
exibir indiferença ou mesmo desprezo por suas crias,
contribuindo para que a taxa de mortalidade infantil na
França dos seculos XVII e XVIII fosse alta e banalizada. O
abandono dos recem-nascidos ou a sua delegaçao a amas
de leite, que frequentemente viviam em condiçoes
insalubres, ocorria com naturalidade. Em menor escala, 10
praticava-seateoinfanticıdio.
Os paisqueoptavampelaentregadorecem-nascido
as amas de leite – dentro de algunsdiasoualgumashoras
apos o parto – �icavam praticamente sem notıcias da
criança durante seus primeiros anos. Dadas as condiçoes
morbidas em que geralmente viviam as amas, amiude o
bebe nao voltava vivo para a casa de seus progenitores. 11
Comojusti�icativas para a contrataçao dos serviçosdessas
mulheres mesmo nas circunstancias descritas,
predominavam a di�iculdade do aleitamento materno e a
10 Porisso, Badinteranalisaque“medicosemoralistasdoseculoXVIIIas acusarao [as amas] de todos os pecados: ambiçao de ganho, preguiça, ignorancia, preconceitos, vıcios e doenças. [...] A razao de tantos erros, frequentementemortais [paraosbebes], e a pobrezaindescritıveldessas amas”(BADINTER,1988,p.123).11 Nesses casos, era comum queapenasum–oumesmonenhum–dos paiscomparecesseaoenterro(BADINTER,1988,p.89).
33
Distanciaderesgateesuasperturbadorasnuances
falta de tempo ou de vontade para dedicar ao bebe em
crescimento. Assim, a amamentaçao era considerada
“�isicamente ma para a mae, e pouco conveniente. [...]
Invocava-se, alem disso, uma excessiva sensibilidade
nervosa, que seria perturbada pelo choro da criança”
(ibidem, p. 95). A autora conclui, dessa forma, que
prevalecia um “egoısmo solido. Todas [as maes]
sacri�icavam suas obrigaçoes maternas a seus desejos
pessoais, fossemeles insigni�icantes ou legıtimos” (ibidem,
p.118).
Na opiniao de Badinter, a rejeiçao da maternidade
pelas mulheres ate o seculo XVIII pode ser explicada, em
boa parte, pela falta de importancia que a funçao,
considerada comum e vulgar, recebia. Dedicar-se aos
�ilhos, nesse contexto, nao era a respostaparaocrescente
desejo de emancipaçao que as mulheres fatalmente
experimentavam “ao procurar de�inir-se como ser
autonomo” (ibidem, p. 100). Por isso, nao obtinham
“nenhuma gloria sendo maes [...]. Elas [as mulheres]
compreenderam que, para ter direito a alguma
34
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
consideraçao, deviam seguir outro caminho que nao o da
maternagem”(ibidem,p.101).
Essa noçao muda ao �inal do seculo XVIII, quando,
concomitantemente a propagaçao dos ideais iluministas, a
alta taxa de mortalidade infantil na Europa passa a ser
vista como absurda, pois desfavoravel aos
desenvolvimentos social e economico. Cabe, entao, ao
genero feminino, assumirasresponsabilidadesdomesticas
que os pensadores de sua epoca querem lhes delegar,
dadas as suas supostas inclinaçoes maternais. Apos
seculos de indiferença quanto a �ilhos, e preciso
reconduzir as mulheres ao papel que elas, segundo os
estudiososdaepoca,nasceramparaexercer.
A nova luz conferida a maternidade prometetrazer
o lugar de destaque “que a maioria delas jamais tivera”
(ibidem, p. 146). Alem disso, “igualmente nova e a
associaçao das [...] palavras ‘amor’ e ‘materno’, que
signi�ica nao so a promoçao do sentimento, comotambem
a da mulher enquanto mae” (ibidem, p.146).Dessaforma,
a mae passa a ter lugar de importancia no ambito
35
Distanciaderesgateesuasperturbadorasnuances
domestico em detrimento da �igura paterna, que nao
participa ativamente da criaçao dos �ilhos. Surge,
“�inalmente, uma tarefa necessaria e‘nobre’,queohomem
nao podia, ou nao queria, realizar. Dever que, ademais,
deviaserafontedafelicidadehumana”(ibidem,p.147).
A mulher, em seu recem-adquirido papel de
relevancia perante a sociedade, deixa de ser identi�icada
como ser pecaminoso e vulgar e “se transforma numa 12
pessoa doce e sensata de quemse espera comedimento e
indulgencia [...], cujas ambiçoes nao ultrapassamoslimites
do lar” (ibidem, p. 176). Para atraı-la em direçao ao
modelo esperado, passa-se a pregar o “retorno a boa
natureza” (ibidem, p. 181), sugerindo que a mulher, assim
como todas as outras femeas do reino animal, nasceria
tanto como instintopurodereproduzir-seecuidardesua
prole, quanto comanatomia adequada para tais. Elahavia,
12 “Amulhernaoe maisidenti�icadaa serserpentedoGenesis, oua uma criatura astutae diabolicaqueeprecisopor nalinha. [...] Evacedelugar, docemente, a Maria. A curiosa, a ambiciosa, a audaciosa metamorfoseia-se numa criatura modesta e ponderada” (BADINTER, 1988,p.176).
36
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
portanto, sido apenas desvirtuada daquilo que lhe e
natural durante os seculos anteriores. Seguindo essalinha
de raciocınio, aquela que nao assumisse seus deveres
maternais seria considerada “desnaturada”: “isto e, uma
doente ouummonstro.Eseidenti�icarmosanaturezacom
a virtude, a mulher desnaturada sera corrompida ou
viciosa, isto e, uma amoral, ou uma mae ruim” (ibidem p.
190).
Badinter, ao discorrer sobre diferentes modelos de
maternidade ao longo da historia, desacredita o ideal,
ainda hoje vigente, do instinto e do amor maternos
inerentes a mulher. Fosse o que se concebe como uma
“boa mae”verdadeiramentenatural,oconceitocertamente
nao teria passado por tao profundas mudanças.
Observa-se claramente que a divisao entre “mae boa” e
“mae ruim” esteve sempre sujeita a transformaçoes, e que
a linha que separa ambos os polos e tenue e manipulavel.
Badinter concluiseuestudoestabelecendoqueoamordas
maes e apenas um sentimento que, comoqualquer outro,
“pode existir ou nao existir, ser e desaparecer. Mostrar-se
37
Distanciaderesgateesuasperturbadorasnuances
forte ou fragil. [...] Tudo depende da mae, de sua historia
[...]. Nao ha uma leiuniversalnessamateria,queescapaao
determinismonatural”(ibidem,p.367).
Ao pensar a maternidade como um conceito
complexo e suscetıvel a transformaçoes, Schweblin refuta,
em sua novela, a representaçao tradicional de mae. A
concepçao de “instinto materno” e questionada, abrindo
espaço para que as personagensnaosejamrepresentadas
como maes intrinsecamente perfeitas, exibindo dois
extremos: deumlado,aindiferençaquasetotalquantoaos
proprios�ilhosedooutro,asuperproteçao.
De acordo coma narradora-personagemdo relato,
a distancia de resgate e o espaço variavel que a separade
sua �ilha, Nina (SCHWEBLIN, 2016, p. 22). Amanda sente
essadistancia�isicamente,comoum�ioinvisıvel,masmuito
presente, e reconhece sua existencia desde a infancia – e
uma noçao geracional, passada da avoparaamae;damae
para ela. A conexao gerada pelo �io, que se tensiona de
acordo com o grau de periculosidade detectado em
determinada situaçao, rege a vida de Amanda e Nina.
38
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
Quando estao emsituaçoes familiares, o �io se afrouxa e a
mae deixa que Nina se movimentecommaisliberdadepor
onde quiser. Para calcular precisamente quanta liberdade
pode dar a �ilha, a protagonista primeiro mapeia
minuciosamente o terreno ao seu redor e, caso nao
identi�ique nenhuma ameaça, deixa que o espaço entre
elas aumente. E� dessa maneira que ela procede quando
chegam ao local onde vao passar as ferias – depois disso,
sente-se mais calma, a�irmando: “o �io invisıvel que nos
une se esticava outra vez, presente, mas permissivo”
(ibidem,p.40).
De acordo com Schweblin, o �io tem relaçao
indubitavel com “o cordao umbilical que une as maes a
seus �ilhos e que constitui uma relaçao muito distinta
daquela que poderiam ter esses mesmos �ilhos com seus
pais” (MARISTAIN, 2014). E� interessante perceber esse 13
�io como uma relaçao de codependencia: nao apenas a
13 Schweblin declarou, tambem, a nao intencionalidade de “deixar o masculino de lado, mas simconcentrartodaa atençaosobreopontode vistadeAmandae deCarla”, alemdodesejodecriar“umarelaçaointensa entre essas duas personagens, com certa tensao inclusa” (MARISTAIN, 2014)parapotencializaro“feitiço”dosacidentespelosquaispassaram.
39
Distanciaderesgateesuasperturbadorasnuances
criança depende dos cuidados da mae para nao sofrer
nenhum acidente; Amanda tambem tem necessidade de
saber o tempo todo o que acontece a sua volta para que
tudo esteja bem. Esse fato e facilmente reconhecıvel em
toda a extensao dodialogoentreanarradora-personagem
e David: em meio as rememoraçoes, ela sempre faz
perguntas acerca do paradeiro de Nina – que se separou
da mae para buscar ajuda apos a intoxicaçao–,a�irmando
veementemente que essa e “a informaçao mais
importante” (SCHWEBLIN, 2016, p. 88). E� como se a
narradora tivesse abdicado de sua vida anterior no
momento em que nasceu sua �ilha e, agora, so consegue
respirar enquanto o�ioqueasligaexiste.Precisamente,na
cena �inal do relato, a vida de Amanda pareceseesvairno
instanteemquesentequeeleerompido.
E� possıvel entender a distancia de resgate de
diferentes maneiras. Alem de poder assumir a forma de
um cuidado singular e amoroso por um �ilho, a ideia da
necessidade de um espaço seguro entre a mae e sua
criança tambem pode levar a um estado constante de
40
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
preocupaçao. Segundo a narradora-personagem, para
justi�icar a superproteçao estabelecida pelo �io que as
ligava, sua mae lhe dizia que, cedo ou tarde, algo ruim
certamente aconteceria e, nesse momento, seria melhor
que estivessem unidas. Nesse sentido, as sensaçoes
delicadas e especiais que acompanhama maternidade sao
esquecidas em detrimento de um horror proximo:
“pode-se viver com a iminencia da morte de um �ilho?”
(GUZMA� N, 2016). Ironicamente, no momento em que
Amanda e Nina entram em contato com agrotoxicos, o
espaço que as separa e ın�imo, evidenciando que a
superproteçao pode se provar inutil e que os esforços de
qualquer mae para manter seus �ilhos a salvo podemser
sempreemvao.
Ademais, de acordo com Donald Winnicott, “a mae
entra numa fase, uma fase da qual ela comumente se
recupera nas semanas e meses que se seguem ao
nascimento do bebe, e na qual em grande parte ela e o
bebe, e o bebe e ela” (WINNICOTT, 1999, p. 4, grifo do
autor). Depois disso, a funçao da mae seria ajudar o bebe
41
Distanciaderesgateesuasperturbadorasnuances
a desenvolver-se rumoa autonomia. Aindaqueosestudos
do psicanalista mantenham uma imagemda mulher como
principal – se nao unica – responsavel pela criaçao de
�ilhos, einteressantelevaremconsideraçaoasensibilidade
teoricamente desenvolvida nos primeiros meses apos o
parto. De acordo comesse pontodevista,epossıvelqueo
�io da distancia de resgate sentido intensamente pela
narradora seja uma resposta a crescente independencia
que sua �ilha naturalmente adquiriria: recusando-se a
aceitar a separaçao, Amanda se esforça exageradamente 14
paramanterameninaporperto.
Enquanto a protagonista se martiriza com a
possibilidade de que algotragicoaconteça,amaedeDavid
vive enlutada por ter perdido o �ilho, ainda que,
supostamente ele continue vivo. Nessa ambiguidade se
concentra a relaçao entre Carla e o menino: a partir do
14 Talseparaçao, segundoWinnicott,enatural,aindaquenaointeiramente possıvel: a “dependencia absoluta [...] se transforma rapidamente em dependenciarelativa, semprenumatrajetoriaemdireçaoaindependencia (que jamais e alcançada)” (WINNICOTT, 1999, p. 80). Emseusestudos, Badinter con�irma que, socialmente, um dos deveresdamaeconsistiria “em saber emancipar a criançae ensinar-lhegradualmentea autonomia” (BADINTER,1988,p.258).
42
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
momento em que ele tem sua alma doente trocada por
outra saudavel (e desconhecida), a mae sente que o
perdeu irreversivelmente. Nao reconhece nonovoDavido
�ilhoaoqualdeualuz.
Em uma das cenas �inais do relato, Carla informa a
narradora que o unico meio de salvar Nina daintoxicaçao
e executar nela o mesmo procedimento de migraçao
realizado, anos antes, em David. Carla autoriza a
transferencia de almas mesmo contra a vontade de
Amanda – tomando para si a autoridade de mae –, e e
nesse instante derradeiro que a narradora sente o �io se
romper. Embora Carla nao faça qualquer mençao a um
sentimento semelhante ao da distancia de resgatedescrito
por Amanda, e possıvel pensar que, no instante em que
David e desapossado de sua essencia original, perde
tambem o �io que primordialmente o ligava a sua mae. As
motivaçoes de Carla para ignorar a desaprovaçao de
Amanda quanto a migraçao nao sao claras;possivelmente,
relacionam-se ao arrependimento: culpada por nao ter
43
Distanciaderesgateesuasperturbadorasnuances
conseguido, a seu ver, salvar o proprio �ilho, tenta fazer
comqueoprocedimentoemNinasejabem-sucedido.
Nesse sentido, uma leitura da personagem Carla a
partir de um sentimento de culpa tambem e possıvel.
Quando o David de dois anos entra acidentalmente em
contato com agrotoxicos e e intoxicado, sua mae nao ve
alternativa alem de leva-lo ate “a mulher da casa verde”
(SCHWEBLIN, 2016, p. 23). A mulher, segundo as crenças
do vilarejo, “consegue enxergar a energia das pessoas,[...]
saber se alguemesta doente eemquepartedocorpoesta
a energia negativa” (ibidem, p. 23). Ao examina-lo, ela
estabelece que a unica maneira de mante-lo vivoseriapor
meio da migraçao do espırito dele para outro corpo.
Compungida por nao ter sido capaz de impedir que uma
tragedia acontecesse a seu �ilho, Carla permite que o
mesmo procedimento seja feito em Nina, em um ato que
podeservistodediferentesformas.
Na opiniao de Badinter, “e certo que nunca se
insistiu tanto sobre a necessidade do sacrifıcio materno”
(BADINTER, 1988, p. 267) como na modernidade. Nesse
44
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
sentido, caberia a mae despender esforços imensuraveis
como intuito unico de agradar eajudarseus�ilhos.Assim,
uma justi�icativa viavel para que Carla permitisse a
migraçao relaciona-se a ideia de sacrifıcio: em um ato de
desespero, pensando apenas emsalvar a vidadeseu�ilho,
a mulher aceita as consequencias irreversıveis da troca.
Nao obstante, sua decisao pode ser vista tambem como
egoısta: incapaz de imaginar-se sem o �ilho, ela ignora os
efeitos que a nova alma pode trazer ao corpodacriançae
oqueissopodeprovocaremsuasvidas.
Apos a migraçao, Carla deixa de reconhecer David
como seu consanguıneo e extingue-se o laço afetivo que
antes os ligava intensamente. Quando o menino volta do
procedimento de troca de almas, sua mae relata que “nao
queria ve-lo, o que [...] queria era fugir” (SCHWEBLIN,
2016, p. 33). Certamente,taldesejocontrariaosentimento
de alıvio esperado pela mae ao reencontrar o �ilho, que
sobreviveu a umacidente provavelmente terminal. Apos o
sucesso da transferencia – o que faz comque a realidade
do relatoseafastedaquelaemqueoleitorvive–,amulher
45
Distanciaderesgateesuasperturbadorasnuances
passa a se referir a David com termos pejorativos que o
excluemda posiçao de �ilho verdadeiro: “esse e meu novo
David. Esse monstro” (ibidem, p.36).Quandorelatatodoo
incidenteaAmanda,deixaclaroqueeleeraseu,e“agoraja
naooe”(ibidem,p.14).
E� possıvel indagar seCarlanaoexperiencia,apartir
do momento em que seu �ilho passa pelo processo de
migraçao, algo como uma depressao pos-parto tardia, ja
que,decertomodo,atrocadealmaspodeserconsiderada
uma especie de renascimento: umnovo David desponta.O
impacto, muito mais forte do queelaconseguiriaaguentar,
toma-a por completo. Apos esse processo, Carla deixa de
considera-lo seu �ilho: o que antes era por ela visto como
fonte de alegria in�indavel, transforma-se emummonstro
incompreensıvel num corpo conhecido. A partir da
possibilidade de uma reaçao exagerada de Carla, outra
questao permeia o relato: teria David realmente mudado
drasticamente seu comportamento apos o acidente ou
estaria ela passando por um profundo processo de
negaçao, potencializado pela culpa de ter autorizado o
46
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
processo migratorio e, mais que isso,denaotercuidadoo
su�iciente de seu �ilho para evitar que algo tragico
acontecesse?
Enquanto rememora a cena em que Carla havia
narrado todo o ocorrido a David, Amanda se mantem
cetica: sente vontade de “dizer a Carla que tudo e uma
grande barbaridade” (ibidem, p. 29). Parece acreditar
menos nas capacidades maternais de Carla do que na
historia deteorsobrenaturalquelheconta.Surge,entreas
duas personagens, um atrito baseado nos diferentes
pontos de vista relativos a ideia de ser mae. Amanda
sente-se “indignada com Carla e com toda a loucura de
Carla” (ibidem, p. 54), que considera perigosa e
monstruosa uma criança aparentemente inocente. Carla,
por outro lado, permanece irredutıvel em sua opiniao
sobreonovoDavid.
Com essas formas de representaçao das
personagens femininas, Schweblin evidencia a
possibilidade de existirem diferentes maneiras de se
vivenciar a maternidade, sem que uma ou outra sejam
47
Distanciaderesgateesuasperturbadorasnuances
claramente exemplares.Alemdisso,aocolocarDavidcomo
um monstro aos olhos da propria mae, a autora abre
espaço para que sejam discutidas tambem noçoes
disseminadas acerca da suposta inocencia infantil, como
seraanalisadoadiante.
Aperdadainocênciainfantil
Nas palavras de Rene Spitz, “longe de ser inocente, no
sentido emque o termoeusadoparaosadultos,acriança
da livre expressao a suas pulsoes, sejamelas socialmente
aceitas ou nao. [...] Por isso, o slogan hipocrita da
‘inocencia da infancia’ simplesmente re�lete uma negaçao
dos fatos” (SPITZ, 2004, p. 126). Seguindo esse vies
teorico, sao identi�icaveis, emDistânciaderesgate, indıcios
querefutamanoçaodapurezainerenteacriança.
De acordo com Badinter, durante incontaveis
decadas foi elaborada uma imagem dramatica da infancia
na sociedade ocidental (BADINTER, 1988, p. 54). Segundo
a teologia crista do seculo XVII, o bebe seria a
48
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
representaçao da natureza humana corrompida, podendo
ser salvo apenas mediante uma educaçao catequista
voltada ao cristianismo. Nessa epoca, “a infancia nao
somente nao tem nenhum valor, [...] como e indıcio de
nossa corrupçao, o que nos condena e do que devemos
nos livrar” (ibidem, p. 57). Isso porque, conforme seria
teorizado muitos anos mais tarde a partir da psicanalise,
“desprovida de discernimento e de crıtica, a alma infantil
sedeixaguiarpelassensaçoes”(ibidem,p.61).
Como explica a autora, a noçao mudou
recentemente, acompanhando a revoluçao nos
pensamentos referentes a maternidade. Antes, quando a
criaçao de �ilhos era considerada um fardo frustrante e
vulgar, esforços eram despendidos no sentido de manter
as crianças a uma distancia quenaoexigissededicaçaoem
excesso. Coma disseminaçao da ideiadapredestinaçaoda
mulher a criaçao de descendentes e, junto disso, danoçao
do amor inato pelos �ilhos, a criança passa a ganhar
destaque. Ela “se transformou no mais precioso dos bens:
umserquenaopodesersubstituıdo”(ibidem,p.208)edo
49
Distanciaderesgateesuasperturbadorasnuances
qual depende toda a felicidade e todo o senso de
realizaçaodamae.
Como visto, na novela de Schweblin, manifestam-se
as facetas mais extremas da relaçao maternal: a
superproteçao e a negligencia. Ao mesmo tempo, sao
apresentadas duas personagens infantis que personi�icam
pontos de vista opostos referentes a infancia. Nota-se que
a �ilha meiga esta ligada a mae atenciosa e preocupada,
enquanto o infante obscuro esta ligado a maedeprimidae
revoltada. Quer essa associaçao seja ou nao proposital,
pode-se, emcerto grau, relacionar a intensidade doslaços
familiares a personalidade de cada criança. Tal leitura
concordaria com preceitos winnicottianos, delegando a
mae grande parte da responsabilidade pelas
caracterısticasqueseus�ilhosdesenvolvem.
Por um lado, Nina e descrita comouma criança de
dois anos, simpatica, doce e inocente: ela “sorri, tem um
sorriso divino, tem covinhas nas bochechas, e o nariz se
franze um pouco. Levanta-se, recolhe a toupeira da
espreguiçadeira e corre em nossa direçao” (SCHWEBLIN,
50
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
2016, p. 24), e refere-se a Amanda pelo apelidocarinhoso
“Mami”. A caracterizaçao da menina a partir de elementos
agradaveis e delicados em sua aparencia, a posse de um
animal de pelucia e o uso de diminutivos singelos para se
reportar a propria mae conferem-lhe um ar infantil e
ingenuo. Ela obedece as ordens dadas por Amanda e, no
momento em que entra em contato com os agrotoxicos,
sua primeira reaçao e busca-la para dizer que algo esta
errado. Seus gestos teatrais e seu modo caracterıstico de
falar, confundido as regencias verbais, desaparecem
quandosucumbeaintoxicaçao.
David, por outro lado, �igura desde o inıcio do
relato como um personagem peculiar. Presumivelmente, e
alguns anos mais velho do queNina,emborasuasatitudes
nao condigam de forma alguma comsua idade. Enquanto
guiaAmandaporsuasmemorias,natentativadeencontrar
o ponto exatoemqueelaesua�ilhaforamcontaminadas–
o “ponto exato emque nascemosvermes”(ibidem,p.9)–,
assume uma postura impositiva e assertiva, muitas vezes
dando ordens a sua interlocutora. Alem disso, refere-se a
51
Distanciaderesgateesuasperturbadorasnuances
mae como Carla, e nada mais. Ao que parece, diversos
animais intoxicados se dirigemas redondezas de sua casa
para morrer, sem que haja para isso qualquer explicaçao
plausıvel. A criança enterra-os um apos o outro,
amedrontando a mae, sugerindo uma conexao com o
universo sobrenatural depois de ter passado pelo
processo de migraçao. Segundo seu pai, nao parece “um
menino normal” (ibidem, p. 90) e tem uma presença
incomoda.
Segundo David, sua mae tem a hipotese de que
todososacontecimentosruinsnovilarejo–osanimaisque
morrem sem explicaçao, os bebes que nascem
deformados, as pessoas que adoecem frequentemente –
tiveram inıcio com a migraçao por ela autorizada. David
relata: “Carla acha que tudo é culpa dela, que, quando
naquela tarde me transferiu de um corpo para outro,
transferiu algo mais. Algo pequeno e invisível, que foi
estragando tudo” (ibidem, p. 125). Ele, entretanto, logo
refuta a suposiçao:“nãoéculpadela.Trata-sedealgomuito
pior” (ibidem, p. 126), referindo-se a disseminaçao de
52
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
agrotoxicos nas plantaçoes que cercam a vila. Nao
obstante, antes dacontaminaçaosofrida,Davidfoidescrito
pela mae como uma criança especial: “quando nasceu,
David era um sol” (ibidem, p. 14). Exibia trejeitos infantis,
era amigavel e sorridente. Sob essa otica, as mudanças
comportamentais que passa a exibir depois da troca
seriam, entao, culpa da nova essencia que lhe tomou o
corpo. Por isso, uma leitura viavel seguiria a linha oposta
aquelapropagadapelocristianismodeseculospassados:o
menino teria nascido puro, mas foi corrompido por
acontecimentos externos – causados, possivelmente, por
umadecisaotomadapelamae.
Constata-se, assim, que ha mais de uma
interpretaçao aceitavel para as imagens infantis de
Schweblin. Dividindo-as, pode-se falar de crianças
intrinsecamente boas, deturpadas apenas poreventosque
lhes fogem ao controle; e de crianças naturalmente
perturbadoras – neste caso, David teria continuado o
mesmo apos a migraçao, tendo mudado apenas na mente
delirantedesuamae.
53
54
CAPÍTULOII
Relações entre Distância de resgatee outros textos de
Schweblin
Ainda que a obra que norteia este trabalho seja uma
novela, o corpus literario de Samanta Schweblin e
constituıdo, majoritariamente, de relatos breves. E�
interessante ressaltar isso, pois, a autora mantem, emsua
novela, muitas das caracterısticas encontradascomumente
em sua produçao contıstica. Quando questionada em
entrevista acerca de sua preferencia pelo genero conto, a
autora respondeu que se tratava de uma simples questao
deideias:
55
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
Escrevo contos porque acho que minhas ideias funcionam em contos. Caso algum dia eu tenha uma ideia que funciona em uma novela, escreverei uma novela, sem problemas. Nao quero usar uma ideia queeadequadaparaaum conto, esticando-a para uma novela (PALACIOS, 2012).
Nesse sentido, e interessante ressaltar que,
segundo Schweblin, Distância de resgate surgiu de um
conto que falhou: “qualquer novelista que vem do conto
deve passar por isso: um [contista] sempre trata de
escrever um conto, que e o que gosta, essa coisa brutal,
contundente. E as vezes se saem mal e precisam de mais
150 paginas para o que deviacontarem20”(HENRI�QUEZ,
2018).
E� possıvel identi�icar, no vasto repertorio de
historias curtas da escritora, certas constantes. Como ja
explicitado anteriormente, Lia Cristina Ceron (2018)
identi�ica um padrao na maneira de Schweblin estruturar
as suas narrativas. De modo geral, a contista tornacentral
o elemento perturbador, mantendo uma representaçao
56
RelaçõesentreDistanciaderesgateeoutrostextosdeSchweblin
verossimilhante da realidade. Esse olhar deslocado
promove no leitor oquestionamentodesuasrelaçoescom
aspessoasecomomundo.
Em consonancia com o estabelecido por Ceron,
interessa, neste capıtulo, encontrar similaridades entre os
contos de Schweblin e sua recente novela, buscando
destacar elementos inseridos na narrativa para a criaçao
de uma atmosfera que instigue a crıtica acerca da
realidade em diferentes ambitos. Pensa-se que criar um
panorama dos textos da autora a partir da novela de que
trata esta pesquisa fara com que se entenda mais
profundamente suas preferencias narrativas. Os contos
selecionados fazem parte das coletaneas O núcleo do
distúrbio (2002) e Pássaros na boca (2008), de acordo 15
15 Schweblin tem ainda uma terceira coletânea de contos publicada, intitulada Sete casas vazias (2015). No entanto, por falta de suficientes afinidades com Distância de resgate , optou-se por não abordar seus relatos neste trabalho.
57
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
com o que se julgou fazer sentido dentro do universo de
Distânciaderesgate.
Relaçõesfamiliaresfraturadas:temáticarecorrente
Pode-se a�irmar que ainstituiçaofamiliar,emboranaoseja
uma estrutura estatica e tenha passado por profundas
mudanças ao longo da historiaocidental,mantem-secomo
“celula base das sociedades” e como o seu “valor mais
seguro” (LEANDRO, 2006, p. 71). E� precisamente nesse
ambiente idealmente protegido que Samanta Schweblin
encontra lacunas e instiga re�lexoes. No universo de seus
contos e de sua novela, a famılia aparece como algo
passıvel de causar perturbaçao, nao transmitindo a
segurança esperada. Ao inserir diferentes nucleos
familiares em situaçoes anormais, a autora revela o nao
dito e faz comque temas comocasamento, maternidade e
infanciasejamquestionados.
Na estrutura social vigente, o amor “romantico”
desempenha papel elementar. E� , atualmente, requisito
58
RelaçõesentreDistanciaderesgateeoutrostextosdeSchweblin
obrigatorio para iniciar uma famılia, chegando“acondiçao
de força ‘irresistıvel’, sempre pronta a desembocar no
casamento” (ARAUJO, 2002, p. 72). Embora a uniao
matrimonial nao tenha mais a intensidade moral que por
seculos teve – abalada por “transformaçoes radicais na
intimidade e na vida pessoal dos indivıduos” (ibidem, p.
73) –, elasemantemaindahojecomometaasercumprida
para muitos. O conto de Schweblin intitulado Mulheres
desesperadasretrata essa necessidade elevadaaoextremo,
e as reaçoes violentas de mulheres que falharam em
conseguirsupri-la.
No relato, uma noiva recem-casada e abandonada
por seu marido a beira de uma rodoviadeserta.Ocenario
e vazio e deprimente: no “campo so ha desilusao e um
vestido de noiva” (SCHWEBLIN, 2012, p. 24). A
protagonista – ironicamente nomeada Felicidad – e, nesse
momento, a incorporaçao da imagem arquetıpica da
mulher delicada e vulneravel sem a presença de um
companheiro. Conforme anoitece, ela ouve choros e
lamentos surgindo da escuridao, mas nao pode identi�icar
59
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
exatamente de onde vem e por quem sao proferidos.
Como explica Nene, uma personagem tambem deixada
para tras pelo marido anos antes naquele mesmolugar, o
campo esta repleto de noivas na mesma situaçao emque
se encontramelaeFelicidad:“vozeseprantosdemulheres
queixosas repetem os nomes dos maridos uma e outra
vez” (ibidem, p. 27).Nenedesaprovaoschoroseinsultaas
mulheres no campo, a�irmando ceticamente que os
homens que as desprezaramjamaisvoltarao.Emresposta,
as lamurias, antes indefesas e desamparadas, se
transformam rapidamente em risadas de deboche,
provocaçoesepalavrascolericas.
A atmosfera do conto ganha tensao
progressivamente, a medida que as noivas incorporeas se
tornam mais agressivas. A escuridao da noite potencializa
o efeito perturbador, tendo emvista que as protagonistas
“nao as veem, mas sabem que as mulheres estao ali, a
poucos metros” (ibidem, p. 31). O clima hostil faz comque
Felicidad abandone sua atitude docil e conciliadora,
passando a ofender, ao lado de Nene, as “oponentes”. Ao
60
RelaçõesentreDistanciaderesgateeoutrostextosdeSchweblin
�inal do relato, o coral de insultos e tao alto queatrapalha
a comunicaçao entre as protagonistas, e as mulheres
desesperadas formamuma “massa negra na escuridao do
campo que cada vez mais pareceseaproximar”(ibidem,p.
30). Entao, umnovo carro chega e pressente-se queainda
outra mulher sera deixada. Quem sai do veıculo, no
entanto, e um homem, e a multidao se volta contra ele.
Aproveitando-se da distraçao, Felicidad e Nene invademo
automovel e descobrem, em seu interior, uma esposa
pronta para deixar seu marido na estrada. Quando
conseguem fugir, percebem no horizonte a aproximaçao
de inumeros carros – sao os responsaveis por abandonar
as noivas, que voltam para salvar o companheiro em
perigo.
Com o conto, Schweblin instiga re�lexoes acerca da
disseminada e idealizada sororidade, expondo 16
16 Termoentendidoatualmentecomo“umpactopolıticoentremulheres”, quetem“sentido�iloso�icoparaenfrentaraopressaodegeneroequalquer outra forma de opressao” (LAGARDE, 1997, p. 52). Baseado na compreensaomutuadesituaçoesqueapenasmulheresenfrentam,visaa promoverumarededeapoiofemininaparafacilitarefortaleceralutapor igualdadeemsociedadespatriarcais. Embora o conceito tenha colaborado intimamente para o fortalecimento do movimento feminista em diversos
61
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
comportamentos de violencia e concorrencia entre
pessoas do genero feminino. Isso nao ocorre, no entanto,
entre os personagens masculinos: exibindo maior
organizaçao e irmandade – em oposiçao ao egoısmo e a
disputa femininos, mais fortes do que o ımpeto de ajudar
uma semelhante –, os homens se unempara resgatar um
unico companheiro abandonado. A situaçao retratada
pode ser relacionada aquela vista emDistânciaderesgate,
na medida em que uma disputa implıcita – no que
concerne ao exercıcio correto da maternidade na novelae
a vida conjugal no conto – envolve a relaçaoentreasduas
personagensfemininasprincipais.
EmNaestepe,outrafacetadocasamentotradicional
e retratada de forma anormal. Figura como questao
principal do conto o desejo de ter �ilhos, provavelmente
como consequencia considerada natural da uniao
matrimonial. Ana, a narradora-personagem, e seu marido
Pol vivem na zona rural e expressam constantemente a
âmbitos, é perceptível que Schweblin trata a ideia de sororidade com ironia em Mulheres desesperadas : nem mesmo a situação insólita pela qual as personagens do conto passam é suficiente para que todas as mulheres se unam em nome de uma luta em comum.
62
RelaçõesentreDistanciaderesgateeoutrostextosdeSchweblin
vontade de ter uma criatura da qual possam cuidar. Ana
descreve metodos detalhados para aumentar a fertilidade,
pois esta desesperada e sente que chegou ao limite
(ibidem, p. 37). Nao obstante, ha nisso a grande
perturbaçao e fonte de hesitaçao do conto: aquilo que
desejamter parece afastar-se diametralmente de umbebe
humano.
Isso se torna evidente quando se observa que
somente palavras relacionadas a ideia de captura sao
empregadas para descrever o que fazem todas as noites
na esperança de conseguir uma criatura. Segundo a
narradora, quando escurece na estepe, “tudo deve estar
preparado: as lanternas, as redes” (ibidem, p. 37). Ana e
Pol saem, entao, pelo campo, escondendo-se entre
arbustos e permanecendo a espreita caso algo apareça.
Nesses momentos, Pol “se converte numa especie de
animal de caça” (ibidem, p. 38). Mais tarde, enquanto
discutem com outro casal os metodos utilizados no
processo, uma escopeta e mencionada (ibidem, p. 43). E�
como se o perıodo de gestaçao da criança, geralmente
63
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
representado como um momento amavel e magico, fosse
substituıdo por uma espera animalesca, na qual
predadoresaguardamumapresaparalevarparacasa.
Aquilo que buscam nao e em momento algum
nomeado ou descrito durante o enredo. Os proprios
conjuges protagonistas naosabemexatamenteaaparencia
de seu objeto de desejo: “sempre me perguntei como
serao realmente” (ibidem, p. 38). Assim, alem do
estranhamento gerado por uma maternidade concebida
anormalmente, tem-se, de acordo com Flavio Garcia
(2016), uma inquietaçao –tantodapartedospersonagens
quanto da parte do leitor – causada pela presença do
‘sujeitotacito’,aquelequenuncaenomeadoexplicitamente
no discurso narrativo, ainda que se saiba de sua
existencia”(GARCIA,2016,p.77).
No desfecho do conto, Ana e Pol sao convidados
para jantar na residencia deumcasalvizinhoquetem“um
deles” (op. cit. p. 39). Os an�itrioes, no entanto, sao
esquivos e negam educada, mas veementemente, as
tentativas dos protagonistas de conheceremacriatura.Em
64
RelaçõesentreDistanciaderesgateeoutrostextosdeSchweblin
um ımpeto de vislumbra-la – ou, quiça, rouba-la –, Pol
entra furtivamente no quarto onde ela �ica. Diante da
perspectiva de que a natureza dacoisasejareveladaoude
que ele seja percebido em sua empreitada, a tensao
narrativa– antes apenas sugerida a mesa de jantar,
enquanto os donos da casa se esquivavam de perguntas
demasiado especı�icas – atinge seu grau maximo.
Descobertos,PoleAnafogemrapidamentedacasavizinha,
determinadosaconseguirem“umdeles”.
E� possıvel depreender, a partir do conto,
indagaçoes acerca dos extremos a que pode chegar o
desejo de possuiralgoquepossasercuidadoecontrolado
– o que, como visto, nao e necessariamente o produto de
uma gravidez. Alem disso, tambem e pertinente pensar
sobre a natureza do desejo dos protagonistas: teriameles
vontade inata de atuar como pais ou protetores de uma
criatura, ou seria isto uma construçao – e pressao–social
porelesinternalizada?
No polo tematico oposto, serao analisados a seguir
relatos que tratam da falta de desejo de ter um �ilho. O
65
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
contoConservase narrado por uma mulher emumauniao
amorosa estavel, que “quer umafamılia,poremnaoagora”
(MELLO-GERLACH, 2017). Frente a gravidez acidental, a
protagonista ve-se obrigada a renunciar a projetos
relacionados a sua carreira e a mudar completamente a
vida que leva comseuparceiro.Elanaoconseguesentir-se
conectada aobebe–emborajaconheçaseusexoeotenha
nomeado Teresita – e, a medida que o feto se desenvolve
no utero, sente-se mais angustiada e deprimida,
evidenciando o desejo de reverter a situaçao na qual se
encontra:
no terceiro mes me sinto ainda mais triste [...]. Sofro de insonia [...]. Nao posso entender como em um mundo em que acontecem coisas que aindameparecemmaravilhosas,[...]naosepossa solucionar um assunto tao trivial como uma pequena mudança na organizaçao daquilo a ser feito. Simplesmente nao me conformo (SCHWEBLIN,2012,p.190).
As mençoes a interrupçao voluntaria da gravidez
sao sempreimplıcitas,eissoaproximaouniversodoconto
aquele vivido pelo leitor: um contexto em que o aborto e
ilıcito oumalvisto.Aonaoaceitarascircunstancias,ocasal
66
RelaçõesentreDistanciaderesgateeoutrostextosdeSchweblin
busca alternativas “com obstetras, com curandeiros e ate
comumxama” (ibidem, p. 191). Embora eventualmentese
perceba queainterrupçaodagestaçaonaoeexatamenteo
que a narradora deseja, a procura de soluçoes com
pro�issionais nao ligados a medicina formal pode
fortalecer as ideias da ilegalidade e do desespero. Ao
mesmo tempo, com o desenrolar do enredo,
compreende-se que tal suspensao naoeexatamenteoque
anarradoradeseja.
O caso parece insoluvel ate que os personagens
conhecem o doutor Weisman. Com ele, descobrem ser
possıvel conduzir um processo de reversao da gravidez
por meio de mudanças sistematicas na rotina, na
alimentaçao e nas relaçoes do casal. A soluçao e ideal, ja
que reduz a gestaçao ao seu nıvel inicial, fazendocomque
Teresita volte a ser apenas um feto. Nao se trata de um
aborto pois o intuito nao e fazer com que o bebe em
desenvolvimento morra, mas possibilitar que �ique
pequeno o su�iciente para ser retirado comvida do corpo
da protagonista e reinserido no momento em que a
67
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
gravidez seja desejada. A descriçao dometodoevaga,mas
consiste emfazer comque toda a vida da narradora volte
ao que costumava ser antes – isso incluiria ingerir
medicamentos, nao mais fazer mençao ao bebe, devolver
presentes recebidos e estabelecer uma rotina que nao
envolvesseTeresita.
As mudanças se dao aos poucos, mas sao
perceptıveis. A narradora observa seu corpo
progressivamente desinchar e sente-se cada vez menos
ansiosa e triste. Ao �inal do ultimo mes vivido emreverso,
ha otimismo: “a sensaçao e totalmente oposta aquela que
sentimos ao fazer uma viagem. Nao e a alegria de partir,
mas de �icar. [...] E� a oportunidade deprosseguir”(ibidem,
p. 194). A oposiçao entre a tristeza da gravidez nao
esperada e a felicidade em poder conte-la pode ser
encarada como crıtica a ilegalidade do aborto. Essa
representaçao da gravidez elaborada pelo conto
aproxima-o de debates atuais, pois “tematiza a questao da
maternidade como decisao e desejo” e a “expressao de
68
RelaçõesentreDistanciaderesgateeoutrostextosdeSchweblin
autonomia corporal” (ASTORINO; SAPOROSI; ZICAVO,
2017,p.51).
Dada a naturalidade com que a situaçao da
narradora e tratada, pouca ou nenhuma tensao se
concentra na descriçao do processo de reversao. A
perturbaçaodespontaapenasnoultimodiadotratamento,
quando ela sente nauseas e dores fortıssimas, e teme que
algo tenha dado errado. Diante da possibilidade de que
Teresita nao sobreviva, a personagem mostra-se
verdadeiramente angustiada. Ela nao deseja a morte de
seu bebe; apenas nao quer te-lo naquele momento de sua
vida. No atimo �inal, sente “algo pequeno, do tamanho de
uma amendoa” (ibidem, p. 197) na garganta: a �ilha.
Acomoda o feto sobre a lıngua e se ve incapaz de
prosseguir, pois apenas naquele instante derradeiro,
quando consegue sentir Teresita �isicamente e concebe-la
como algo concreto, conecta-se a ela: de acordo com
Schweblin, “o laço se criano�im,porissodoi-lheadecisao
de postergar; porque, no �im, e capaz desentirasua�ilha”
69
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
(MELLO- GERLACH, 2017). Comumultimo gesto –quefaz
com que o conto forme laço solido com o genero
fantastico – a narradora �inalmente cospe o feto em um
vidrodeconservas.
A questao da maternidade comoescolha tambeme
retratadaemAdaliana,aindaquedeformadiametralmente
diferente: ferramentas para a criaçao de uma atmosfera
perturbadora sao usadas diretamente, e a tensao nao e
apenas uma sugestao, como em Na estepe e Conservas.
Neste caso, a protagonista – como nomeque da tıtulo ao
relato – e violada por seu patrao, Escudero. As descriçoes
do cenario e das circunstancias do abuso sao imprecisas,
mas pode-se inferir que Adaliana tem condiçoes de
trabalho e de vida insalubres. Presumivelmente, ela e
outrasmulheresresidemjuntasnosubsolodeumimovel–
nao se sabe se casa familiar, estabelecimento comercialou
mesmo prostıbulo. Parecem ser todas funcionarias do
lugar,realizandoserviçosdelimpezaemanutençao.
No conto, todas as noites Escudero desce as
escadas e bate a porta de uma escolhida, que devera
70
RelaçõesentreDistanciaderesgateeoutrostextosdeSchweblin
dirigir-se com ele ao andar de cima e sujeitar-se as suas
vontades sexuais.Quandoelegeaprotagonista,noentanto,
“o que Escudero nao sabe, e asmulheressuspeitam,eque
Adaliana esta louca: viram-na pentear-se em frente ao
espelho, viram o delırio em seus olhos ausentes” 17
(SCHWEBLIN, 2002, p. 28). Na relaçao forçada – a qual
“Adaliana resistira quantas horas leve junto ao homem”
(ibidem, p. 29) - e concebido um bebe, que ela devera
carregar emseu ventrecontrasuavontade,porordensdo
patrao. Indignada, Adaliana diariamente tenta “abandonar
seu corpo nos degraus mais altos, deixar-se cair ate em
baixoalheiaador”(ibidem,p.29).
A narraçao singular e uma das grandes fontes de
inquietaçao do conto. No tempo verbal futuro, um
narrador onisciente relata, a partir do que a matrona e
vidente do grupo de mulheres preve que inevitavelmente
acontecera a Adaliana – “nada podera evitaraprevisaoda
parteira” (ibidem, p. 28). Assim, conforme a protagonista
17 Nao ha ediçoes o�iciais deEl núcleo del disturbio (2002) traduzidas para o portugues. Com o intuito de manter todo o trabalho em lıngua vernacula, as citaçoes retiradas desse livro passaram por umatraduçao livredoespanholfeitapelaautoradestapesquisa.
71
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
se perde na depressao e na raiva que a gravidez forçada
lhe traz, mais a tensao se intensi�ica: ela, “por sua parte,
guardara um silencio que se mesclara ao ar e, durante
nove meses, cobrira os espaços com uma umida neblina
espessa” (ibidemp. 29). Emcontrapartida, a matrona reza
para que o destino se prove reversıvel e que o
acontecimentofuturoqueprevepossaserevitado.
A relaçao que a protagonista estabelece com a
maternidade e a outra grande fonte de perturbaçao do
relato, o que permite re�letir sobre a tematica da gravidez
fruto de abusos sexuais e sobre a permissao do aborto
nesses casos. As saudes fısica e mental de Adaliana sao
comprometidas no momento em que descobre estar
gravida–e,depois,quandoseveobrigadaateracriança.
A partir de relatos de vıtimas de violencia sexual
que engravidaram, nao e raro perceber uma
impossibilidade de conexao com o feto, por parte da
mulher violada. Devidoaotraumaeaodesprezopelaideia
de ser mae nas circunstancias descritas, a mulher
comumente pode desenvolver sentimentos negativos em
72
RelaçõesentreDistanciaderesgateeoutrostextosdeSchweblin
relaçao ao “ser que estava sendo gestado, referindo-se a
criança comoum‘monstro ou uma coisa’queseassociava
a experiencia da violencia sofrida e a lembrança do
agressor” (MORAIS; NUNES, 2016, p. 26). Emconsonancia
com isso, Adaliana parece nao identi�icar o produto do
abuso sofrido comoumbebe. Sente-o como“umacriatura
que cresce sem piedade, uma substancia aquosa e debil
que vai se consolidando em seu ventre como uma
enfermidade nefasta” (SCHWEBLIN, 2002, p. 29). Ainda
assim, Escudero e as outras mulheres nao deixam que
nada aconteça ao feto: obrigam a gravida a alimentar-se,
banhar-se, vestir-se e viver contra sua vontade, chegando
ao ponto de amarra-la a uma cama durante os meses
gestacionaisporconsiderarem-naumaameaçaaobebe.
Toda a tensao acumulada durante o conto culmina
no momento em que a protagonista da a luz aquilo que
mais odeia. O parto concretiza o que a vidente esperava e
Adaliana mostra o desprezo diante da ideia de
maternidade levado ao extremo. Sozinha no quarto
instantes depois da criança nascer, ela solta “umgrunhido
73
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
sedento que mais tem a ver com o animal do que com o
humano” (ibidem, p. 30) e come o recem-nascido. Isso
causa uma mudança inesperada na direçao do conto ‒ a
cena �inal volta ao inıcio: unindo as palmas e rezando, a
matrona observa enquanto Escudero desce as escadas e
bate a porta de Adaliana, elegendo-a comosua parceira e
engravidando-anaquelamesmanoite.
Em Conservas e Adaliana, a atençao se volta ao
perıodo gestacional. Ja emPássaros na boca, a concepçao
dobebeeagravideznaosaorelevantes:ofocorecaisobre
a infancia–ou,maisespeci�icamente,sobreademonizaçao
dela. No conto, a criança parece ser inicialmente retratada
de acordo como esperado: �ilha de paisseparados,Sarae
descrita como “uma doçura” (idem, 2012, p. 18) e sua
postura e serena e inocente. A menina, no entanto,
desenvolveu, em algum ponto de sua pre-adolescencia, o
habito anormal de alimentar-se de passaros vivos,
mastigando-os e engolindo-os inteiros. A praticahorroriza
os pais e di�iculta a convivencia com a �ilha. No momento
em que a narrativa tem inıcio, seu pai, o
74
RelaçõesentreDistanciaderesgateeoutrostextosdeSchweblin
narrador-personagem Martın, acaba de tomar
conhecimentodeseusnovoscostumes.
Comodito, ha clara oposiçao entre as condiçoesde
Sara antes e depois de Martın descobrir suaspreferencias
alimentıcias. Ele observa que, “embora [ela] ja tivessesido
mais palida e magra, agora transbordava saude. Suas
pernas e seus braços pareciam mais fortes, como se
andasse fazendo exercıcios durante meses. Seu cabelo
brilhava e tinha umleve rosado nasbochechas”(ibidem,p
19). Ha, alem disso, mudanças sutis de conduta, difıceisde
serem identi�icadas e nomeadas, ainda que evidentes:
“duas palavras eramsu�icientes para entender que algo ia
muito mal com essa menina” (ibidem, p. 19). Conclui-se,
assim, que o novo habito “altera o comportamento (e, em
alguma medida, a propria subjetividade) da menina e
causa uma perturbaçao no entorno, percebida pelas
sensaçoeseaçoesdosoutrospersonagens”(CERON,2018,
p.46).
Martın ve-se obrigado a levar Saraparamorarcom
ele, uma vez que a mae, afetada pela mudança da �ilha,
75
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
renuncia aos seus cuidados e estabelece aimpossibilidade
de lidar coma situaçao:“umdiaamaiscomelaememato.
Eu me mato, masamatoantes”(SCHWEBLIN,2012,p.53).
Ainda que possa gerar incomodo a rejeiçao de umamaea
propria �ilha, o conto nao parece ter como foco o
questionamento de maternidades e paternidades
fraturadas. Mais que isso, Pássaros na boca exibe a
criança/pre-adolescente como ser isento de inocencia,
contestando esse papel que lhe e comumente atribuıdo.
Como visto no capıtulo anterior deste trabalho, a imagem
da infancia como lugar de ingenuidade e discutıvel, na
medida emque a criançanaopossui�iltrosqueaimpeçam
de dar vazao a seus impulsos. Nesse sentido, Sara cede a
eles sem culpa, ignorando ou nao entendendo as
consequenciassociais.
Ela mostra atentar-se a estranheza de seus habitos
apenas quando Martın para de nutri-la, tentando fazer
comque volte aingerirrefeiçoescomuns.Nessemomento,
privada de comida, Sara pergunta a ele se a ama,
“associando este sentimento a necessidade dealimenta-la”
76
RelaçõesentreDistanciaderesgateeoutrostextosdeSchweblin
(CERON, 2018, p. 49). Ele, antes de responder, indaga-se:
“no conjunto, tudo signi�ica que sim,queevidentequesim.
Era minha �ilha, nao?” (SCHWEBLIN, 2012, p. 23). Decide
dizer-lhe que sim, a amava, por considerar que seria “o
correto” a fazer. Na opiniao de Ceron, e valido re�letir
sobre a concepçao de famılia no conto a partir do trecho
em questao, tendo em vista que o pai parece sentir-se
obrigado a amar a �ilha, ainda que nao tenha convicçao
disso.
Em consequencia de suas atitudes nao serem
aceitas socialmente, a menina passa seus dias
enclausuradanacasadopai.EnquantoMartıntrabalha,ela
permanece sentada estaticamente em uma poltrona da
sala, comas pernas juntas e as maosrepousadassobreos
joelhos. Responde as perguntas sucintamente e nao fala
alem do necessario. Ainda que passe fome, permanece
quietaesubmissaavontadedopaidenaoalimenta-la,sem
nunca protestar.Alemdisso,encaraotempotodoojardim,
como um animal preso que nao pode sair e, ao mesmo
77
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
tempo, umcaçador queesperaenquantoespreitasuacaça
voando do lado de fora. O narrador relata sentir“vontade
de sair e deixa-la [...] hermeticamente fechada comoesses
insetos que sao caçados na infancia eguardadosempotes
de vidro ate que o ar acabe”(ibidemp.54).Acomparaçao
com insetos presos contribui para que Sara seja vista
comoalgo entre humano e animal e, alem disso, evidencia
aatmosferadecativeiroquepermeiaorelato.
Assim como emDistância deresgate, emConservas,
em Adaliana e em Pássaros na boca a maxima do amor
paterno/materno incondicional e debatida. De formas
diferentes, ha, nos tres contos, pais que nao se conectam
profundamente com seus �ilhos. A ausencia de laços
afetuosos pode se dar tanto na gestaçao quanto depois,
durante o desenvolvimento da criança – neste caso, o
amor dos progenitores existe, mas encontra uma barreira
e falha em ser inabalavel. Ademais, percebe-se relaçao
entre a novela de Schweblin e Pássaros na boca no que
concerne a infancia: ambos questionam a noçao de que
78
RelaçõesentreDistanciaderesgateeoutrostextosdeSchweblin
pureza e inocencia sao intrınsecas as crianças. Nos dois
casos, o elemento perturbador que caracteriza os infantes
pode ser tanto parte integrante de seus carateres quanto
umhabitoadquiridoaposalgumeventotransformador.
Campo:lugardedescansoehesitação
No mundo �iccional de Schweblin, o cenario
frequentemente tem tanta importancia quanto as açoes
narradas para acriaçaodoefeitoperturbador.Opalcodos
acontecimentos costuma potencializar a sensaçao do
insolito ou mesmogera-la quando osoutroselementosdo
texto aparentemente nao fogema realidade. Dessa forma,
constata-se que, para compreender as inquietaçoes
produzidas pelos relatos, analisar localizaçoes e
ambientaçoes e tao importante quanto explorar tematicas.
Tendo em vista que se busca, neste capıtulo, identi�icar e
categorizar pontos emcomumentreDistânciaderesgatee
demais textos de Schweblin, serao trabalhados aqui
79
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
apenas aspectos do espaço campestre que aparecem na
novela e emoutroscontos.Alemdisso,seraoapontadasas
adjetivaçoes e as descriçoes do entorno dos
acontecimentos que contribuem para a criaçao da
atmosferacaracterısticadosescritosdaautora.
O campo e umapaisagemcomumtantonouniverso
de Schweblin quanto na tradiçao literariaargentina,sendo
constantemente evocado e,aomesmotempo,destituıdode
suas caracterısticas comuns. Ainda que nao �igure de
forma direta, seus contornos sao bem de�inidos e
constituem um imaginario �iccional dos conterraneos da
autora. Em geral, os personagens costumam se dirigir ao
interior para prestar serviços especı�icos ou para fugir da
vida urbana. Nao obstante, o sossego e a hospitalidade
esperados da zona rural nao sao encontrados, fazendo
com que a tradicional oposiçao entre cidade e campo nao
se efetive. De acordo comSchweblin, “o campo, que era o
[lugar] mais idılico e bucolico, ja nao o e” (HENRI�QUEZ,
2018). Ao contrario, o espaço campestre e, em seus
relatos,lugardehesitaçaoeperigo.
80
RelaçõesentreDistanciaderesgateeoutrostextosdeSchweblin
Em Distância de resgate, a protagonista aluga uma
casa de veraneio em um vilarejo do interior para
descansar com sua �ilha, enquanto o marido trabalha na
regiao.Naprimeiramemoriarelatadapelanarradora,elae
Carla se bronzeiam ao redor da piscina enquanto Nina
dorme dentro da residencia. Elementos comumente
ligados a ambientes descontraıdos compoem o cenario:
espreguiçadeiras, sandalias de dedo, biquınis. Acriaçaode
umespaço sereno e, de acordocomSchweblin,proposital:
tem a intençao de abalar a con�iança do leitor, tendo em
conta que “neste estado de relaxamento tambemhamuito
desconhecimento de onde esta realmente [...] o perigo”
(GUZMA� N, 2016). Quando Amanda chega a casa alugada,
examina seu interior e os arredores para enumerar as
ameaças e, a partir disso, calcular a distancia de resgate –
sem,noentanto,identi�icaroverdadeirorisco.
O perigo se espalha silenciosamente por toda a
paisagem em torno do vilarejo e se esconde nas lavouras
aparentemente inofensivas. A presença de culturas de
graos – e consequentemente, dos agrotoxicos usados em
81
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
larga escala para produzi-los – e sutil a ponto de poder
passar despercebida: observando umporta-retratos,Carla
relata a Amanda que os fotografados “sorriam inclinados
sobre seus rastelos e, atras deles, a grande plantaçao de
soja recem-cortada” (SCHWEBLIN, 2016, p. 33);
descrevendo o cenario, anarradoramencionalotesquese
estendem ate o horizonte, “uns com trigo ou girassol,
quase todos com soja” (ibidem p. 49). Ao falar sobre um
pesadelo, Amandaindicaapresençaalarmantedeumgrao
enlatado, claramente cultivado com produtos quımicos
para ser vendido massivamente, emsua cozinha: “umtipo
de ervilhamuitomaisdura,rusticaebarata,[...]quejamais
escolheriaparaalimentarminhafamılia”(ibidem,p.61).
Paradoxalmente, o cenario tambem e descrito de
forma idılica: enquanto a narradora sucumbe lentamente
aos agrotoxicos acidentalmente ingeridos, ve mais adiante
“a soja verdeebrilhantesobasnuvens”(ibidem,p.140).O
campo na narrativa assume, entao, carater ambıguo: e
pacı�ico, com as plantaçoes quilometricas “que se
82
RelaçõesentreDistanciaderesgateeoutrostextosdeSchweblin
estendem pelos lados” (ibidem, p. 76); e hostil, com
substanciasqueimpregnam,alteramematam.
Em Na estepe, ha semelhantes referencias a
agrotoxicos nas lavouras que constituem o cenario.
Segundo a narradora-personagem, seu marido e ela se
deslocaramparaocampoemrazaodeumserviço:“Polvai
ao povoado tres vezes por semana, envia as revistas de
agricultura suas notas sobre insetos e inseticidas” (idem,
2012, p. 37). A presença de produtos quımicos e apenas
sugerida, e nada mais sobre eles e mencionado. A� noite,
quando saem com equipamentos para caçar a criatura, a
imagemde uma “grande mata de arbustos secos” (ibidem,
p. 38) e tecida. Ao que parece, a �loresta opera mudanças
comportamentais em Pol: uma vez entre a folhagem, “se
converte numa especie de animal de caça [...] e pode
permanecer de cocoras, imovel, durante muito tempo”
(ibidem,p.39).
EmMulheresdesesperadas,tambemeconstruıdoum
ambiente pernicioso a ponto de inspirar transformaçoes
de conduta. Inicialmente, Felicidad se mostra vulneravel,
83
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
porem, a medidaqueescureceeasnoivasabandonadasse
tornam mais agressivas, a protagonista, em resposta,
tambem. De certa forma, pode-se considerar que a
nocividade do espaço apenas potencializa aquilo que ja
existia na cidade. O campo, nesse sentido, surge como
terra semlei, postoque,afastadoda“civilizaçao”, permite 18
a manifestaçao de atitudes socialmente reprimidas. Assim,
a disputa entre mulheres – emoposiçao ao sentimento de
empatia mutua exibido pelos personagens masculinos –
�loresceria comforça e sucederiadeformamaisagressiva.
Alem disso, adjetivos remetentes a escuridao, a vastidao e
ao vazio sao recorrentes, e podem ter sido empregados
como intuito de potencializar o sentimento desolidao–e,
portanto,possibilitaraçoesviolentas.
18 Levando em consideraçao que, nos textos quetemporcenarioa zona urbana, os personagens e eventos retratados sao igualmente perturbadores, parece correto a�irmar que nem mesmo a “civilizaçao” escapaasmanifestaçoesdoinsolitonouniversodeSchweblin.
84
85
CAPÍTULOIII
Aquestãodocontoeaquestãodofantástico
Considerando que Distância de resgate e uma produçao
literaria envolta nas mais variadas nuances,torna-sedifıcil
encaixa-la em um genero especı�ico. Embora suas
caracterısticas gerais a delimitem como novela, e possıvel
identi�icar, emsuaconstruçao,traçosqueasrelacionamao
genero conto – ainda mais ao veri�icar que, com exceçao
do relato em questao, Schweblin se estabeleceu
exclusivamente como contista no universo literario. Todas
assuasproduçoespublicadasanteriormenteconsistemem
coletaneas de contos – sao elas O núcleo do distúrbio
86
Aquestãodocontoeaquestãodofantástico
(2002) e Pássaros na boca (2012).Alemdisso, a narrativa
abre espaço para diferentes interpretaçoes que a
aproximam tanto do genero fantastico quanto da �icçao.
Este capıtulo, entao, dedica-se a analisar os aspectos da
obra que fazem com que ela permaneça suspensa entre
categorizaçoesprecisas.
Entrenovelaeconto
No ensaioAlguns aspectos doconto, Julio Cortazar propoe
que existem “certas constantes, certos valores que se
aplicam a todos os contos” (CORTA� ZAR, 2006, p. 149) e
que permitem, assim, de�inir o conto como genero
literario. Para faze-lo, o escritor argentino parte da
recorrente comparaçao entre narrativa breve e romance.
Embora o livro analisado centralmente nesta pesquisa se
enquadre melhor na categoria das novelas, pensa-se que
expor a diferença entrecontoeromance,deacordocomo
autor, auxiliara na identi�icaçao de caracterısticas dos
relatoscurtospresentesemDistânciaderesgate.
87
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
Cortazar assinala primeiramente que, enquanto o
romance desenvolve-se ate o proprio esgotamento, o
conto parte, antes deseuinıcio,danoçaodelimite.Sugere,
a partir disso, uma analogia: o romance estaria para o
cinema assim como o conto estaria para a fotogra�ia. Um
�ilme “e umprincıpioemordemaberta”,umanarrativaque
�lui em longa metragem, enquanto uma foto “pressupoe
uma justa limitaçao previa”, imposta pelo campo reduzido
que a lente consegue fotografar e pelo modo como o
fotografo utiliza essa limitaçao. Dessa forma, um contista,
como um fotografo, teria que recortar um fragmento da
existencia humana de modo a atingir, com ele, uma
realidade muito mais ampla, “como uma visao dinamica
que transcende espiritualmente o campo abrangido pela
camera” (ibidem, p. 151). O cinema, por outro lado – e,
consequentemente, o romance –, ultrapassaria a realidade
com elementos acumulativos e parciais que desconhecem,
apriori,suasfronteiras.
De acordo com o autor, um conto e signi�icativo
quando supera seus proprios limites com uma “explosao
88
Aquestãodocontoeaquestãodofantástico
deenergiaespiritualqueiluminabruscamentealgoquevai
muito alem da pequena e as vezes miseravel historia que
conta” (ibidem, p.153).Noqueconcerneasformascomas
quais esses generos literarios promoverao essa explosao,
Cortazardelineiaaindaoutraanalogia:no“combatequese
trava entreotextoapaixonanteeoleitor,oromanceganha
sempre por pontos, enquanto que o conto deve ganhar
por knock-out” (ibidem, p. 152). Assim, enquanto um
romance acumula progressivamente seus efeitos e tem o
tempo como aliado, o conto deve desde o inıcio desferir
golpes astutos e e�icazes para desarmar rapidamente o
leitorevence-locomumgolpefatal.
Nesse sentido, um conto nao deve ter elementos
gratuitos. Horacio Quiroga, o renomado contista uruguaio,
defende a mesma noçao em seu Decálogo do perfeito
Contista (1999). Uma das dez leis por ele propostas para
ser um grande “boxeador” ‒ mantendo a metafora
cortaziana ‒ no mundo dos relatos breves e:“naoadjetiva
sem necessidade, pois serao inuteis as rendas coloridas
que venhas a pendurar num substantivo debil. Se dizes o
89
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
que e preciso, o substantivo, sozinho, tera uma cor
incomparavel” (QUIROGA, 1999, p. 53). Cortazar, por sua
vez, a�irma que o conto nao se demoranaquiloquepouco
importa etrabalhasempresobapressaodotempoesoba
tensao a ser suscitada no leitor. Essa tensao interna seria
sua chave: “um conto e ruim quando e escrito sem essa
tensao quesedevemanifestardesdeasprimeiraspalavras
oudesdeasprimeirascenas”(CORTA� ZAR,2006,p.152).
Samanta Schweblin parece compartilhar da opiniao
de seus predecessores. Em entrevista, a autora declarou
ter fascinaçao por escritas rapidas e dinamicas. Cita,como
exemplo, a e�icacia da linguagem norte-americana e o
modo como seus escritores a utilizam: ela cre que eles
“tem uma especie de pacto com o leitor que [...] e uma
chave para escrever bem. Algo como: ‘estimado leitor, nao
vamos faze-lo perder tempo’” (SILVA, 2012). Por isso,
Schweblin a�irma que, se ela perdeu tempo descrevendo
qualquer circunstancia em seus textos, e porque era
fundamental que o �izesse. Como Cortazar, a autora
trabalha para criar a tensao interna dos contos – ou da
90
Aquestãodocontoeaquestãodofantástico
novela – com elementos rapidos e sucintos. A�inal, “o
tempo e o espaço do conto tem de estar como que
condensados, submetidos a uma alta pressao espiritual e
formal”(CORTA� ZAR,2006,p.152).
A tensao estrutural dos contos da autora coincide
com a perturbaçao tematica que lhe e essencial ‒ atraıda
pelo incomum, Schweblin sente que, sem o elemento
perturbador, nao pode armar o conto (PALACIOS, 2012).
Para criar esse efeito que lhe e caracterıstico, ela parece
buscar palavras certeiras e construçoes frasais potentes,
tudodemodoconcisoerapido.
Alem da narraçao sintetica que cria e que deve ser
intrınseca ao genero, Schweblin aplica a seus textos a
tensao defendida por Julio Cortazar e uma velocidade
particular. Ela a�irma que sua “geraçao cre que a palavra
‘velocidade’ e uma palavra negativa” (ibidem, 2012) ecom
isso esta em total desacordo, tendo em vista que, emsua
opiniao, escrever velozmente e “contarumfeitodamelhor
forma possıvel no menor tempo, e issoee�icacia,impacto”
(ibidem, 2012). Por isso, nao ha, em seus textos, �loreios
91
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
ou informaçoes desnecessarias ‒ Schweblin e sempre
rapidaparachegaraocernedanarrativa.
Constata-se, entao, que a tensao interna do conto
constitui uma de suas caracterısticas primordiais. Isso e
con�irmado por Massaud Moises em seu Dicionário de
termos literários (1995), quando se dedica a detalhar as
particularidades fundamentaisquediferenciamosgeneros
doconto,doromanceedanovela.
Segundo Moises, a novela, o conto e o romance
compartilhamdas mesmas origens, masdesenvolveram-se
de maneiras divergentes. As diferenças entre cada uma
dessas formas literarias podem se dar por meio da
extensao do texto ou de suas caracterısticas estruturais. O
conto e, por de�iniçao, curto e conciso, com uma unica
celula dramatica, poucas personagens e um intervalo de
temporestrito.Jaanovela,emtermosbasicos,“conteriade
cem a duzentas paginas, ou mais de vinte mil palavras”
(MOISE� S, 1995, p. 361), situando-se, emdimensao, entreo
conto e o romance. Ademais, e identi�icada pelo
predomınio da açao, sem qualquer restriçao cronologica.
92
Aquestãodocontoeaquestãodofantástico
Sua historia nao esta cerceada as paginas: quando acaba
�isicamente, a novela pode se estender em epılogos de
acordo coma imaginaçao do leitor, possibilitando um�inal
aberto.Ela,emsuma,
constitui-se de uma serie deunidadesoucelulas dramaticas encadeadas e portadoras de começo, meioe�im. Deondesemelhauma�ieiradecontos enlaçados. Todavia, cada unidade nao e autonoma: a sua �isionomia propria resulta de participar de um conjunto, de tal forma que, separada dela, nao tem razao de ser (ibidem, p. 363,grifonosso).
Finalmente, o romance, forma de maior extensao,
engloba as facetas do mundo: “todas as metamorfoses do
real, todas as formas do conhecimento” (ibidem, p. 452)
cabem em seu perımetro. Tem multiplas celulas
dramaticas, mas seu �inal e fechado: “termina
completamente na ultima cena” (ibidem, p. 452). Dada a
sua generalidade, o numero de personagens,otempoeos
espaçosdoromancedesconhecemlimites.
As distinçoes estabelecidas por Moises sao
interessantes visto que possibilitam que Distância de
resgate seja melhor classi�icado como novela ‒ o genero
93
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
entre o conto e o romance. Defende-se que a
caracterizaçaodoautorseadequaperfeitamenteaobrade
Schweblin quanto ao encadeamento dos blocos
dramaticos: a narrativa constitui-se de memorias da
narradora relatadas em ordem majoritariamente
cronologica e respeita os limites depaginas(assimcomoa
falta deles no que diz respeitoao�inalaberto‒apartirdo
ultimo suspiro de Amanda, mais de uma interpretaçao
acerca do destino de Nina e possıvel). Entretanto, a
semelhança do conto e diferentemente do descrito por
Moises no que concerne a novela, “o passado anterior ao
episodio que [...] se desenrola, bem como os sucessos
posteriores, nao interessam, porque irrelevantes” (ibidem,
p. 100). As motivaçoes de Amanda para dirigir-se ao
campo com sua �ilha, assim como as consequencias da
migraçao �inal da alma de Nina, nao sao descritas, ao que
seentende,pornaoseremrelevantesparaoenredo.
Devido a sua maior extensao em relaçao ao conto,
cabem, na novela, mais personagens, cenarios e celulas
dramaticas. Julga-se, no entanto, que nesses aspectos,
94
Aquestãodocontoeaquestãodofantástico
Distância de resgatemais se aproxima da narrativa breve:
ha um numero reduzido de personagens relevantes; o
palco dos acontecimentos fundamentalmente nao se
expande (no ambito fısico a narradora �icarestritaapenas
ao hospital e, no campo psicologico, conhece-se apenasos
ambientes guardados nas memorias de Amanda, como a
casa alugada eocampoondeCarlatrabalha).Emborauma
sucessao de eventos preencha os dias lembrados e
descritos pela narradora, permeia o relato apenas uma
questao principal, emtorno da qual gira todo o dialogo: a
necessidade de “encontrar o ponto exato onde nascemos
vermes”(SCHWEBLIN,2016,p.9).
O relato ganha, desta forma, carater hıbrido: ao
mesmo tempo em que se caracteriza como novela por
conta de sua extensao – e das possibilidades por ela
trazidas –, exibe a tensao, a velocidade e a escassez de
recursos narrativos tıpicas do conto. Pensa-se, entao, que,
a autora nao obliterou de todo sua carreira comocontista
paraselançarnouniversodostextosmaisextensos.
95
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
Aiminênciadofantástico
Sabe-se que o genero fantastico e parte fundamental da
tradiçao literaria latino-americana, consagrado por nomes
como Adolfo Bioy Casares, Julio Cortazar e Jorge Luis
Borges. Samanta Schweblin e frequentementeconsiderada
herdeira desse legado, tendo, por isso, seus textos
inseridos pela crıtica na ampla esfera do fantastico. A
autora, entretanto, costuma refutar a alcunha, a�irmando
tratar nos escritos de situaçoes anormais, mas de modo
algumimpossıveis.Emsuaopiniao,eproveitosodeslocaro
veu entre o dito normal e seu oposto, na medida emque
isso faz comque se perceba que o “normal asvezesnaoe
mais queumpactosocial,umespaçofechadoeseguroque
nos permite mover semnuncavislumbrarodesconhecido.
Mas o desconhecido nao e o inventado nemo impossıvel”
(TINOCO, 2013). Ela pensa, alem disso, ser interessante
relatar situaçoes nas quais “o real pode serirrealou[...]o
normalacabasendoanormal”(BIANCO,2016).
96
Aquestãodocontoeaquestãodofantástico
Schweblin discorda, dessa forma, da inclusao de
seus textos na esfera do fantastico ja que, emsua opiniao,
nao costumam referir-se aos temas sobrenaturais
geralmente caracterısticos do genero. Ceron explica que,
segundo a autora, “uma vez que o leitor pressupoe que a
irrupçao do sobrenatural e impossıvel em sua realidade”,
ele sesentiriaemumaposiçaoconfortavel,“enquantoseus
contos, ao prezarem pela verossimilhança, causam um
desconforto, pois remetem a situaçoes que poderiam
ocorreraoleitor”(CERON,2018,p.12).
Ainda assim, acredita-se ser possıvelidenti�icar,nos
textos de Schweblin, elementos que os relacionem ao
fantastico. DeacordocomIntroduçãoàliteraturafantástica
(2012), de Tzvetan Todorov, o cerne do fantastico esta
“num mundo que e exatamente o nosso, aquele que
conhecemos” e no qual “produz-se umacontecimento que
nao pode ser explicado pelas leis deste mesmo mundo
familiar” (TODOROV, 2012, p. 30). Nesse sentido,
acompanham fundamentalmente o genero a hesitaçao, a
sensaçao de incerteza. No instante em que a duvida e
97
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
sanada, perde-se o efeito fantastico e entra-se em outros
domınios: se o leitor decide acreditar que os eventos de
um certo relato sao perfeitamente explicaveis segundo as
leis darealidadeporeleconhecidas,manifesta-seogenero
estranho; por outro lado, se escolhe que esses eventos so
podem ser entendidos em uma nova realidade criada a
partir da narrativa, introduz-se o maravilhoso (ibidem, p.
48).
Para Todorov, por basear-se essencialmente na
manifestaçao de uma duvida, o genero “leva uma vida
cheia de perigos, e pode se desvanecer a qualquer
instante” (ibidem, p. 48) – o quesigni�icaquesuaapariçao
emuma obra pode ter aduraçaodeumunicomomento.O
pesquisador Filipe Furtado (1980) segue outro vies
teorico, alegando que, ainda que uma narrativa possa
reunir caracterısticas de variados generosliterarios,oque
constitui a integridade do fantastico e a manutençao da
ambiguidade entre real e sobrenatural ate o termo do
relato.
98
Aquestãodocontoeaquestãodofantástico
Furtado critica a tentativa de classi�icaçao do
fantastico somente pela incerteza perante uma explicaçao
para os acontecimentos descritos. Isto e, em sua opiniao,
um texto se inclui no genero quando, “para alem de fazer
surgir a ambiguidade, a mantem ao longo da intriga,
comunicando-a as suas estruturas e levando-aare�letir-se
em todos os planos do discurso” (FURTADO, 1980, p. 40).
A hesitaçao, entao, seria mera consequencia dos
mecanismos utilizados para criar a experiencia do
fantastico. Para ele, e mais interessante analisar os
mecanismos utilizados a �im de sugerir e manter a
ambiguidade emumrelato doquevoltaratençaoapenasa
sensaçaodeincertezaemsi.
Furtado admite a importancia da incerteza na
medida emque o leitor deveseidenti�icarcomarealidade
exposta, mas nao deve encontrar uma explicaçao racional
que reorganize a logica utilizada e o reinstale no mundo
real (ibidem, p. 44), ja que isso se trataria apenas de uma
reaçao aos eventos da narrativa. De acordo com o autor,
constituem-sefundamentaisacriaçaodoefeitofantasticoa
99
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
“tematica de ındole sobrenatural” (ibidem, p. 8), 19
pendendo sempre para uma manifestaçao negativa; 20
assim como a falsi�icaçao da realidade, “escamoteando ou
alterando dados necessarios a decisao do destinatario do
enunciado eprocurandoinduzi-loaumacogniçaotaovaga
e insegura quanto possıvel, [...]atravesdedolos,trucagens
eomissoes”(ibidem,p.45).
Infere-se que as visoes dos autores supracitados
analisam diferentes faces do mesmofenomeno. Ainda que
existam pontos de discordancia entre as proposiçoes,
acredita-se que ambas sao interessantesparaaleiturados
textos de Schweblin: a de Todorov, por umlado,priorizaa
hesitaçao do leitor; a de Furtado, por outro, destaca a
estrutura dos relatos fantasticoseconsiderafundamentais
19 Contrariandoa ideiadeTodorovdeque“osobrenaturalnaocaracteriza exatamente as obras [fantasticas], sua extensao e grande demais” (TODOROV,2012,p.40).20 “So o sobrenatural negativoconvema construçaodofantasticopois so por meio dele se realiza inteiramente o mundo alucinante cuja confrontaçaocomumsistemadenaturezadeaparencianormalanarrativa do genero de encenar” (FURTADO, 1980, p. 22). Ainda nas palavras do autor, o sobrenatural negativo e “em termos gerais, relacionado com o conceito vulgar do Mal”, em oposiçao ao positivo, “ligado ao que os codigos axiologicos comuns costumam denominar o Bem” (ibidem, p. 22).
100
Aquestãodocontoeaquestãodofantástico
elementos queosliguemarealidade,postoqueanarrativa
do generoprocuraenvolver-se“emcredibilidade,acentuar
portodasasformasasuaverossimilhança”(ibidem,p.45).
Tanto em Distância de resgate quanto nos contos,
nota-se que Schweblin preza pela verossimilhança na
criaçao de uma atmosfera particularmente perturbadora,
“uma vez que o leitor reconheceria a realidade
representada nos relatos, ao mesmo tempo em que
percebe que ha algo inusitado (mas nao necessariamente
irreal ou sobrenatural) ocorrendo nas situaçoeslimıtrofes
propostas” (CERON, 2018, p.3).Aligaçaocomoreal,desta
forma, intensi�ica a hesitaçao caracterıstica do fantastico,
fazendo comque o leitor – e, por vezes, os personagens–
encontre diferentes explicaçoes possıveis para os eventos
retratados.ConformeDavidRoas,
a�irmara‘verdade’domundorepresentadoe[...] um recurso fundamental para conseguir convencer o leitor da ‘verdade’ do fenomeno fantastico.Porisso,onarradordeveapresentaro mundo do relato da maneira mais realista possıvel(ROAS,2013,p.63).
101
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
Como aludido no primeiro capıtulo deste trabalho,
emDistância de resgate, a primeira cena que a narradora
relata a David age no sentido deconvenceroleitordeque
o mundo ali representado e pacato e seguro. A�inal, o
espaço criado nos relatos que se aproximamdofantastico
“e sempre um ambito no qual tudo deve parecer normal”
(ibidem, p. 63). Entretanto, sabe-se que Amanda relembra
a tarde bucolica passada a beira da piscina com Carla e
Nina, enquanto esta em um hospital. O episodio
rememorado anuncia que algo foi deslocado de seu eixo
comum, visto que, por motivos desconhecidos naquele
momento,anarradoraestainternada.
Roas tambemdefende que predominantementenas
produçoes literarias do seculo XX e, mais tarde, do XXI, o
fantastico deixa de ser um fenomeno exclusivamente
perceptivo para manifestar-se como fenomeno linguıstico
– ou, ainda, ambos ao mesmo tempo (ibidem, p. 70). Isso
signi�ica que o genero deixa de se basear apenas na
percepçao, por parte do leitor, de uma ambiguidade nas
explicaçoes para os eventos pouco usuais narrados em
102
Aquestãodocontoeaquestãodofantástico
uma obra, e passa a ser de�inido a partir de outros
mecanismos: “a literatura fantastica revela as relaçoes
problematicas estabelecidas entre a linguagem e a
realidade, pois tenta representar o impossıvel, isto e, ir
alem da linguagem para transcender a realidade aceita”
(ibidem, p. 73). Assim, mais do que tratar de eventos
nitidamente irreais – como a apariçao de um ser
sobrenatural, por exemplo –, os autores devem usar
“mecanismos linguısticos (metaforas, sinedoques, [...],
expressoes ambıguas) para lidar com o dizer o indizıvel,
intensi�icando a percepçao do fenomeno fantastico como
algo impossıvel” (ibidem, p. 64). Julga-se que issoseaplica
facilmente as narrativas de Schweblin, visto que,
frequentemente, o que perturba e justamente o que o
leitornaoconsegueidenti�icarcomclareza.
De acordo como que Schweblin demonstrapensar,
a resoluçao de seus escritos penderia sempre para o real:
os textos sao, na maior parte, ligados a ambientes e
realidades familiares, embora retratem situaçoes
anormais. Efetivamente, em Distância de resgate, os
103
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
acontecimentos centrais sao entendıveis a partir do
universo de quem le: uma mae e sua �ilha entram em
contato comagrotoxicosemumvilarejoagrıcolaesao,por
isso, internadas. Defende-se, entretanto, que o que
aproxima a novela da experiencia fantastica e o nao dito,
aquilo que causa duvida, o delırio. Seria o menino David
real ou apenas produto da imaginaçao da narradora? A
migraçao de almas teria realmente acontecido ou faria
parte de uma ilusao criada por uma mae arrependida?
Poderiaoleitorcon�iarnaquiloquelheerelatado?
104
Aquestãodocontoeaquestãodofantástico
105
CONCLUSÕES
Este estudo foi motivado pelo desejo de buscar, em
representaçoes da maternidade e da infancianaliteratura,
algo novo e, em certa medida, inquietante. Encontrou-se
em Samanta Schweblin a convergencia de ambos os
interesses: na novelaDistância deresgate, tanto a imagem
das maes quanto a dos �ilhos carregam valores que
instigam o questionamento do universo conhecido pelo
leitorpormeiodeumaatmosferabaseadanaperturbaçao.
Em sua novela, Schweblin retrata personagens que
exercem a maternidade de maneiras opostas – ambas
suscetıveis a falhas e arrependimentos –, reorganizando a
106
Conclusão
tradicional ideia de que, orientada naturalmente por seu
genero, a mulher saberia intrinsecamente comocriarseus
�ilhos de forma exemplar. Alem disso, ao colocar arelaçao
entre progenitora e cria como possıvel catalisadora de
sensaçoes perturbadoras, a autora questiona a ideia da
maternidade como fonte inexoravel de prazer. Isso vai ao
encontro do que diz Elisabeth Badinter: “o amor materno
nao e inerente as mulheres. E� ‘adicional’” (BADINTER,
1988,p.367).
Foram analisados tambem alguns contos de
Schweblin, com o intuito de neles encontrar aspectos que
facilitem o entendimento da maneira como a autora
organiza as tematicas em suas produçoes literarias de
modo a questionar o universo do leitor. Ao detectar
pontos emcomumentre oscontoseanovelaestudada,foi
possıvel constatar que as situaçoes e os personagens
descritosdi�icilmentefazemcrıticasdiretasaproblemasdo
mundo extratextual, deixando-as implıcitas como meras
possibilidades. Como declara a escritora, a ideia principal
do texto “tem que estar na cabeça do leitor” (PALACIOS,
107
Mãesperturbadoras,�ilhosmonstruosos
2012). Assim, ao retratar situaçoes aparentemente
absurdas emcenarios verossımeis – sem,noentanto,criar
eventos com os quais quem os le possa realmente se
identi�icar –, Schweblin incita, no leitor, incomodo
su�iciente para que ele re�lita sobre a realidade que o
cerca.
Alem das similaridades tematicas entre os textos
analisados, tambem notou-se, no relato, aspectos
comumente associados ao genero conto. Sustenta-se que,
apesar deDistância de resgateestar inserido na categoria
das novelas, sua estruturaçao diferenciada, ligada a dos
relatos breves, contribui para a criaçao do incomodo pelo
qualaautoratantopreza.
Em suma, os tres capıtulos deste trabalho foram
elaborados para possibilitar novas interpretaçoes acerca
do inovador conjunto da obra de Schweblin e dos temas
sobre os quais ela habilmente escreve. Ao hipotetizar
sobre a hibridez do genero emqueDistânciaderesgatefoi
inserido e sobre as formas deslocadas de representaçao
de certos setores da sociedade, encontradas
108
Conclusão
frequentemente nos textos de Schweblin, espera-se ter
trazido luz aos questionamentos instigados pela autora.
A�inal, se para Italo Calvino “os classicos servem para
entender quem somos e aonde chegamos” (CALVINO,
2007,p.17),considera-seque,nomesmosentido,asobras
contemporaneas contribuem para o entendimento do
cenario cultural recente e, a partir disso, delinear
questionamentos acerca do presente e do futuro. Desta
forma, uma leitura analıtica de Distância de resgate e
outros textos de Schweblin que seguem a mesma linha
tematica tem o poder de incentivar crıticas acerca das
organizaçoes sociais vigentes – oque,alongoprazoecom
o apoio de diversas outras literaturas, auxiliaria emnovas
percepçoes do papel da mulher como ser autonomo que
independe de “instintos” e determinaçoes sexuais para
de�inir-senasociedade.
109
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