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INDIVIDUALISMO E LIBERALISMO: VALORES FUNDADORES DA SOCIEDADE
MODERNA
João Batista Damasceno (*)
1 – Individualismo
O individualismo é conceito que exprime a afirmação do indivíduo ante a sociedade
e o Estado. Liberdade, propriedade privada e limitação do poder do Estado - eis a tônica do
Individualismo. Há tendência em se vincular ou relacionar capitalismo e individualismo
bem como socialismo e coletivismo. Mas aqui trataremos do conceito expresso por Louis
Dumont in, O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna i[1],
onde ao lado do conceito de um indivíduo que constitui o valor supremo - caracterizando o
individualismo - teremos o indivíduo que se encontra na sociedade como um todo,
caracterizando o holismo. É do indivíduo que não pode ser submetido a ninguém, sendo as
suas regras pessoais que movem a sua existência que trataremos.
O individualismo é o mais ocidental dos valores. Esta primazia do indivíduo
constitui o cerne da herança judaico-cristã. Louis Dumont acentuou como o individualismo
se tornou o valor fundador das sociedades modernas. Quando o indivíduo se encontra na
sociedade como um todo, trata-se de holismo e não individualismo. Neste sentido, os dois
conceitos se opõem. E, em sua obra Louis Dumont apresenta um estudo sobre o
desenvolvimento do conceito moderno de indivíduo e conclui: "se o individualismo deve
aparecer numa sociedade do tipo tradicional, holista, será em oposicão à sociedade e
como uma espécie de suplemento em relação a ela, ou seja, sob a forma de indivíduo-fora-
do-mundo. Será possível pensar que o individualismo começou desse modo no ocidente? É
precisamente isso o que vou tentar mostrar; quaisquer que sejam as diferenças no
conteúdo das representações, o mesmo tipo sociológico que encontramos na Índia - o
indívíduo-fora-do-mundo - está inegavelmente presente no cristianismo e em torno dele no
começo da nossa era."ii[2]
Da compreensão que exprime a afirmação do indivíduo ante a sociedade e o Estado
temos que o individualismo se opõe ao nacionalismo. Louis Dumont nos diz o seguinte:
"Alguém opõe ao individualismo o nacionalismo, sem explicação. Sem dúvida, é
preciso entender que o nacionalismo corresponde a um sentimento de grupo que se
opõe ao sentimento "individualista". Na realidade, nação, no sentido preciso e
moderno do termo, e o nacionalismo - distinto do simples patriotismo - estão
historicamente vinculados ao individualismo como valor. A nação é precisamente o
tipo de sociedade global correspondente ao reino do individualismo como valor.
Não só ela o acompanha historicamente, mas a interdependência entre ambos
impõe-se, de sorte que se pode dizer que a nação é a sociedade global composta de
pessoas que se consideram como indivíduos." iii[3]
Embora seja conceito que permeie a sociedade ocidental, o individualismo não se
revelou de um dia para outro em nosso meio, pois "a configuração individualista de idéias
e valores que nos é familiar não existiu sempre nem aparece de um dia para outro. Fez-se
remontar a origem do "individualismo" a um época mais ou menos remota, segundo, sem
dúvida, a idéia que dele se fazia e a definição que se lhe dava." iv[4]. E mais: "Pode sustentar
que o mundo helenístico estava, no que tange às pessoas instruídas, tão impregnado dessa
mesma concepção que o cristianismo não teria podido triunfar, a longo prazo, nesse meio,
se tivesse oferecido um individualismo de tipo diferente. Eis uma tese muito forte que
parece à primeira vista contradizer concepções bem estabelecidas."v[5]
Temos, assim, um paralelo entre o indivíduo moderno ocidental e o indivíduo
tradicional da antiga sociedade indiana. Segundo Dumont, o termo indivíduo designa duas
coisas ao mesmo tempo: um objeto fora de nós e um valor. O primeiro é um sujeito
empírico que fala, pensa e quer, é o modelo individual da espécie humana, que se encontra
em todas as sociedades. O segundo é o ser moral independente, autônomo, não-social, que
representa a ideologia moderna do homem e da sociedade.
Dumont explica que quando o indivíduo constitui o valor supremo, trata-se de
individualismo. Nesse caso, o indivíduo não pode ser submetido a ninguém, sendo as suas
regras pessoais que movem a sua existência. Quando o indivíduo se encontra na sociedade
como um todo, trata-se de holismo. O modelo indiano de sociedade é holista, a sociedade
moderna ocidental é individualista.
Para Dumont, a sociedade ocidental da Idade Média aproximava-se da sociedade
holista indiana. Na Idade Média, existia uma sociedade cristã governada pela supremacia da
Igreja. Esta era constituída por um sistema hierárquico espiritual, sendo que o Papa era o
representante supremo do poder. A Igreja era o Estado.
Desta forma Dumont nos diz:
"Se tentarmos ver em paralelo a situação cristã medieval e a situação hindu
tradicional a primeira dificuldade está em que, ao passo que na Índia, os brâmanes
contentavam-se com sua supremacia espiritual, a Igreja no ocidente exercia
também um poder temporal, sobretudo na pessoa de seu chefe, o Papa. Vendo as
coisas grosso modo, a Idade Média parece ter conhecido uma dupla autoridade
temporal. Além, disso, uma vez que a instância espiritual não desdenhava revestir-
se de poder temporal, podia-se perguntar até se a temporalidade não desfrutava, de
fato, de uma certa primazia. (...)"vi[6]
Ainda segundo esse autor, com o surgimento do Estado moderno, extingue-se a
harmonia universal do todo com Deus. Para os modernos, o homem basta-se a si mesmo e
está em relação direta com sua razão e com Deus. O indivíduo é um ser autônomo,
integrante de uma comunidade que forma o Estado, tornando-o o poder supremo. E nos diz:
"Para os modernos, sob a influência do individualismo cristão e estóico, aquilo a
que se chama direito natural (por oposição ao direito positivo) não trata de seres
sociais mas de indivíduos, ou seja, de homens que se bastam a si mesmos enquanto
feitos à imagem de Deus e enquanto depositários da razão. Daí resulta que, na
concepção dos juristas, em primeiro lugar, os princípios fundamentais da
constituição do Estado (e da sociedade) devem ser extraídos, ou deduzidos, das
propriedades e qualidades inerentes no homem, considerando como um ser
autônomo, independentemente do todo e qualquer vínculo social ou político."vii[7]
A ideologia do individualismo funda suas bases sobre a igualdade e a liberdade. Ao
desprezarem a hierarquia social, todos os homens tornam-se iguais e livres perante o
Estado. As funções determinadas pela posição social que o indivíduo ocupa são abolidas e,
conseqüentemente, o Estado não consegue administrar a vida social e individual do homem.
Não há referências para se espelhar, a noção de direitos e deveres se desvanece. O homem
moderno abdica de todo sistema de crenças e valores, negligenciando a trajetória de sua
história social para consagrar a satisfação pessoal. Ocorre uma desintegração do indivíduo
em relação à sociedade. Ele vive em função das suas necessidades individuais, de maneira
que a existência do outro varia de acordo com sua necessidade.
2 – Liberalismo
O Liberalismo é conceito que se caracteriza por alguns princípios, dentre os quais o
individualismo e o igualitarismo. Segundo Dumont, "os princípios fundamentais da
constituição do Estado (e da sociedade) devem ser extraídos, ou deduzidos, das
propriedades e qualidades inerentes no homem, considerado como um ser autônomo,
independentemente de todo e qualquer vínculo social ou político."viii[8]
iNotas:
?[1] DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da sociedade
moderna. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1985.ii ?[2] DUMONT, L. Op. Cit., pag. 38/39.
iii[3] DUMONT, L. Op. Cit., pag. 21.iv ?[4] DUMONT, L. Op. Cit., pag. 22.v ?[5] DUMONT, L. Op. Cit., pag. 39.vi ?[6] DUMONT, L. op. Cit., pag. 80.vii ?[7] DUMONT, L., Op. Cit., pag. 87.viii ?[8] DUMONT, L. Op. Cit., pag. 87
Assim, o liberalismo é individualista, defendendo a afirmação do indivíduo ante a
sociedade e o Estado; é igualitário, admitindo e garantindo a igualdade do homem enquanto
pessoa; é universalista, defendendo a homogeneidade moral da espécie humana; é otimista,
admitindo o aperfeiçoamento das instituições sociais de cada sociedade. "O valor infinito
do indivíduo é, ao mesmo tempo, o aviltamento, a desvalorização do mundo tal como
existe..."ix[9] Assim, o liberalismo defende a liberdade como direito intrínseco de todo
indivíduo e toda autoridade é limitada por esse direito.
O liberalismo é uma teoria ou doutrina de liberdade política e de liberdade
econômica. De conformidade com os quesitos anteriores, orienta a ação do Estado e de
qualquer autoridade, visando ao bem comum, sem ferir os direitos individuais.
Não se pode falar em liberalismo sem partir das grandes transformações que
propiciaram o surgimento do mundo moderno que, no individualismo, encontrou seu
fundamento. A valorização do homem – promovida pelo humanismo – aliada aos princípios
da propiciados pelas mudanças nas concepções religiosas, faz surgir o liberalismo que, por
sua vez, prepara o campo fértil para o surgimento da democracia e também para o
desenvolvimento do capitalismo. Antes quase não se valorizava o "indivíduo" pois, na
Idade Média, a cultura era impessoal, segundo Dumont, do tipo holista.
Dentro desse tema, muitos são os aspectos que poderiam sem abordados, partindo-
se desse momento da valorização do homem. Pode-se, portanto, partir da contribuição
daqueles que desencadearam esse processo, dando-lhe impulso e consistência, até chegar ao
ponto de ser (o liberalismo), em certo momento, confundido com o modelo da própria
civilização ocidental. O pensamento de Santo Agostinho é central para este problema e seu
gênio pressentiu o desenvolvimento vindouro.
Quanto à democracia, abandonada e quase esquecida depois da Grécia Clássicax[10],
é do liberalismo que ela evolui na Idade Moderna. Seu aparecimento se dá entre os
puritanos ingleses, devido a necessidade de assegurar a legitimidade de seus representantes
e da organização das suas comunidades.
ix ?[9] DUMONT, L. Op. Cit., pag. 43.x ?[10] HELD, David. Models of Democracy, pag. 15.
Esta nova maneira de gerenciar os assuntos internos das seitas e igreja é estendida
para a esfera política e aos interesses econômicos, firmando cada vez mais essa nova
doutrina que, a partir daí, muito mais que uma filosofia, passa a assumir o caráter de uma
ideologia . Assim, ao mesmo tempo em que se levantam as questões sobre os direitos e
garantias do cidadão, impõe-se a necessidade de discutir e justificar o direito da
propriedade. Direito, igualdade e garantias são elementos de fundamental importância para
a afirmação da propriedade. Seus detentores buscam e passam a influir na administração e
nos assuntos do Estado. Em oposição ao princípio do Direito Divino, o Governo passa a ser
encarado sob novo ângulo, até chegar ao ponto de ser considerado como representante dos
eleitores. Esses eleitores (inicialmente apenas os proprietários) têm interesse em influir no
Governo pois, afinal de contas, são eles que têm algo a perder. E é a partir daí que se
compreende porque a legislação eleitoral se preocupa, no início, com a representação
baseada nas posses.
As grandes transformações empreendidas ao final da Idade Média têm como ponto
de fundamental importância, como já foi dito, a valorização do homem. Humanismo e
Reforma, principalmente, trazem à luz a pessoa humana, que passa a ser o centro do
Universo, em que busca conhecer esses valores, e onde alcança posição de destaque a
discussão do tema da liberdade.
3 - Individualismo e liberalismo
Numa primeira etapa, o ponto de partida foi a reivindicação da liberdade de
consciência, causando uma ruptura com o tradicionalismo imperante na Idade Média. A
justificação pela fé, através da qual cada um se torna responsável perante Deus, sem a
intermediação de sacerdotes ou de santos, abre um novo caminho para se chegar a Deus. A
tradução da Bíblia para o vernáculo, por Lutero (e por outros, em outras línguas, bem como
a sua publicação e popularização com a invenção da imprensa), vem oferecer essa
esperança e essa firmeza, pela qual, cada um, pelo seu próprio entendimento, e estribado
em sua própria fé, pode se dirigir imediata e diretamente a Deus. É o princípio do chamado
"sacerdócio universal dos crentes". Para sua justificação o homem precisa unicamente crer,
fazendo-se participante da "graça divina", a qual vem pela fé, não por ritos cerimoniais, ou
atitudes exteriores, coletivas, ministradas por outros.
Nesse contexto, a principal questão consistia em devolver à consciência a liberdade
de seu entendimento direto com Deus, de forma pessoal, sem necessidade de qualquer
intermediário. Desta forma, "Os puritanos que fundaram as colônias na América do Norte
tinham dado o exemplo do estabelecimento de uma Estado por contato. Assim, os famosos
"Peregrinos" do May-flower concluíram um pacto de estabelecimento antes de fundarem
New Plymouth em 1620, e outros fizeram o mesmo. Vimos os Levellers irem mais longe em
1647 e acentuarem os direitos do homem como homem e, sobretudo, o direito à liberdade
religiosa. Esse direito fora introduzido desde cedo em várias colônias americanas: em
Rhode Island por um alvará de Carlos I (1543), na Carolina do Norte pela Constituição
redigida por Locke( 1669)."xi[11]
A "revolução copernicana" fez enormes estragos na hierarquização medieval. À
semelhança da astronomia, também na sociedade, há uma alteração no eixo gravitacional.
Nesse universo infinito, do qual Deus é o verdadeiro centro, cada ponto é, da sua
perspectiva, uma espécie de centro relativo.
É, portanto, nessa individualização que se revela na busca do "indivíduo espiritual",
em oposição ao simples homem como raça, povo, partido, corporação, família ou qualquer
outra forma de coletivo, buscando as profundezas da subjetividade, que o homem acabará
criando as bases para uma filosofia – ética, teoria jurídica, política – que é o liberalismo.
Uma etapa do liberalismo é o seu caráter político. Toma consciência com as obras
de Locke e Montesquieu e tem o seu primeiro grande momento na Revolução Gloriosa
(Inglaterra, 1688/89). Esse liberalismo político-jurídico, que tem suas raízes na Inglaterra
medieval, confunde-se com o desenvolvimento das garantias constitucionais da liberdade.
É, no entanto, com John Locke que os temas da liberdade e do indivíduo se
corporificam numa doutrina política. Suas obras, sobretudo o Segundo Tratado Sobre o
Governo Civil mostram a "vontade" e a "liberdade" como potências do sujeito, quando "ser
livre é poder fazer ou não fazer o que se quer". Essa liberdade humana aparece como a
responsabilidade de cada um, não pela sua vontade, mas pelos seus atos.
Ao tratar do "estado natural" (também utilizado por Hobbes para justificar o
absolutismo), Locke o faz para justificar a liberdade. Para ele a razão, que é a lei natural,
ensina toda a humanidade, de que sendo todos iguais e independentes, ninguém poderá xi ?[11] DUMONT, L. Op. Cit., pag. 110/111.
prejudicar o outro em sua vida, saúde, liberdade ou posses. A propriedade aparece aí como
um direito decorrente do produto de seu corpo e a obra de suas mãos.
Na justificativa da liberdade e contra a monarquia absoluta, afirma que a sociedade
civil, produto do "consentimento livre" de todos os seus membros, não pode tolerar que
alguém dela faça parte, colocando-se à margem ou acima da lei comum. Surge assim uma
nova ordem política liberal com a supremacia do poder legislativo, porquanto é o delegado
direto dos membros da comunidade. Mas também este não pode afastar-se do bem público.
O legislativo não pode ser ininterrupto, nem os legisladores devem ser executores das leis
votadas, sendo que eles mesmos estão sujeitos a elas. O executivo deve ser um poder
diverso, subordinado ainda assim ao legislativo. Mas o verdadeiro soberano passa a ser o
povo, pois é ele, e não o legislativo, o detentor do verdadeiro poder soberano. O poder é um
depósito confiado aos governantes, em proveito do povo, e não uma submissão irrestrita. Se
os governantes agem de maneira contrária ao fim para o qual haviam recebido a autoridade,
o povo pode retirar aquele depósito, isto é, pode retirar aquela delegação, retomando a
soberania inicial, podendo confiá-la a quem apresente melhores condições para exercer o
poder. Para Locke não há um contrato de submissão, mas apenas uma delegação.
Outro aspecto a considerar diz respeito à separação do domínio temporal do
espiritual. Sendo a Igreja uma sociedade livre e voluntária não pode estar sujeita ou atrelada
ao governo, pois, "não cabe ao magistrado civil o cuidado das almas", em primeiro lugar
porque não parece que Deus jamais tenha delegado autoridade a um homem sobre outro, ou
para induzir outro homem a aceitar sua religião. Em segundo lugar, o cuidado das almas
não pode pertencer ao magistrado civil porque seu poder consiste totalmente em coerção.
Isto porque uma coisa é insistir por meio de argumentos, outra por meio de decretos. Em
terceiro lugar, o cuidado da salvação das almas não pode, de maneira nenhuma, pertencer
ao magistrado civil, pois a limitação às leis de cada país levantaria obstáculos no caminho,
a ponto de os homens deverem a sua felicidade eterna ou miséria, simplesmente ao acidente
de seu nascimento. Recorrendo a Locke, aprende-se que " `Para entender o poder político
corretamente, e derivá-lo de sua origem, devemos considerar o estado em que todos os
homens naturalmente estão, o qual é um estado de perfeita liberdade para regular suas
ações e dispor de suas posses e pessoas do modo como julgarem acertado, dentro dos
limites da lei da natureza, sem pedir licença ou depender da vontade de qualquer outro
homem."xii[12]
O liberalismo atinge outro aspecto, quando seus princípios são aplicados à
economia, o que se deve principalmente a Adam Smith, embora os fisiocratas já
propugnassem por uma liberdade total (da natureza) mas não dispensavam a necessidade de
um Estado forte para garantir as leis da natureza. Não havendo esse controle, e se cada um
seguir apenas o seu interesse, dar-se-ia o que, para Hobbes, seria o caos total, através da
luta de todos contra todos. Aí não haveria lugar para as noções de justo e injusto. Veja-se:
"Portanto, onde não há o seu, isto é, não há propriedade, não pode haver injustiça.
E onde não foi estabelecido um poder coercitivo, isto é, onde não há Estado, não há
propriedade, pois todos os homens têm direito a todas as coisas. Portanto, onde não há
Estado nada pode ser injusto. De modo que a natureza da justiça consiste no cumprimento
dos pactos válidos, mas a validade dos pactos só começa com a instituição de um poder
civil suficiente para obrigar os homens a cumpri-los, e também só aí que começa a haver
propriedade."xiii[13]
A vinculação do liberalismo econômico a uma doutrina política liberal completa o
quadro do liberalismo clássico. Dumont diz que "Com o predomínio do individualismo
contra o holismo, o social nesse sentido foi substituído pelo jurídico, o político e, mais
tarde, o econômico."xiv[14]
Segundo Dumont, "O individualismo subentende, ao mesmo tempo, igualdade e
liberdade. Distingue-se, portanto, com razão, uma teoria igualitária "liberal", a qual
recomenda uma igualdade ideal, igualdade de direitos ou de oportunidades, compatível
com a liberdade máxima de cada um, e uma teoria "socialista" que quer realizar a
igualdade nos fatos, por exemplo, abolindo a propriedade privada."xv[15] E mais: "não basta
a igualdade de princípio, reclama-se uma igualdade "real"'xvi[16]
xii[12] LOCKE, J. O segundo tratado sobre o governo, §4º, pag. 381/382.xiii ?[13] HOBBES, T., Leviatã, pag. 123/124.xiv ?[14] DUMONT, L. Op. Cit., pag. 91
4 - John Locke e o individualismo liberal
O modelo jusnaturalista de Locke parte do estado de natureza que, pela mediação do
contrato social, realiza a passagem para o estado civil. Em sua concepção individualista, os
homens viviam originalmente num estágio pré-social e pré-político, caracterizado pela
liberdade e igualdade, denominado estado de natureza (predominava neste estado uma
relativa paz, concórdia e harmonia). Nesse estado pacífico os homens já eram dotados de
razão e desfrutavam da propriedade que, designava simultaneamente Para Locke, a
propriedade já existe no estado de natureza e, sendo uma instituição anterior à sociedade, é
um direito natural do indivíduo que não pode ser violado pelo Estado. Locke defende que,
o estado de natureza relativamente pacífico, não está isento de inconvenientes, como a
violação da propriedade que, na falta de lei estabelecida, de juiz imparcial e de força
coercitiva para impor a execução das sentenças, coloca os indivíduos singulares em estado
de guerra uns contra os outros. Para ele, o contrato social é um pacto de consentimento em
que os homens concordam livremente em formar a sociedade civil para preservar e
consolidar ainda mais os direitos que possuíam originalmente no estado de natureza. No
estado civil os direitos naturais inalienáveis do ser humano à vida, à liberdade e aos bens
estão melhor protegidos sob o amparo da lei, do árbitro e da força comum de um corpo
político unitário. A passagem do estado de natureza para a sociedade político/civil se opera
quando, através do contrato social, os indivíduos singulares dão seu consentimento
unânime para a entrada no estado civil; após este passo ocorre a escolha pela comunidade
de uma determinada forma de governo cedendo lugar ao “princípio da maioria” mas,
Locke ressalva que “todo o governo não possui outra finalidade além da conservação da
propriedade”.
Para Locke quando o legislativo ou o executivo violam a lei estabelecida e atentam
contra a propriedade, o governo deixa de cumprir o fim a que fora destinado, tornando-se
ilegal e degenerado em tirania, formando a estado de guerra; este estado de guerra imposto
ao povo pelo governo configura a dissolução do estado civil e o retorno ao estado de
natureza, onde a inexistência de um árbitro comum faz de Deus o único juiz, expressão
xv ?[15] DUMONT, L. Op. cit., pag. 91.xvi ?[16] Idem.
utilizada por Locke para indicar que, esgotadas todas as alternativas, o impasse só pode ser
decidido pela força. Veja-se: "... em todos aqueles casos em que não há juiz sobre a Terra,
não tem o povo outro remédio além do apelo aos céus."xvii[17]
É necessário retratar que Locke acha impossível os atuais governantes sobre a Terra
obterem qualquer proveito, ou derivem a menor sombra de autoridade daquilo que é tido
como a fonte de todo poder. Ele acha que o poder de um magistrado de um súdito deve ser
distinguido do poder de um pai sobre o filho, de um senhor sobre seu servo, de um marido
sobre sua esposa e de um nobre sobre seu escravo. Desta forma, o poder político é o direito
de fazer leis com pena de morte, e conseqüentemente todas as penalidades menores para
regular e preservar a propriedade, e o de empregar a força da comunidade da execução de
tais leis e na defesa da comunidade contra a agressão estrangeira, e tudo isso apenas em
prol do bem público.
Um estado de natureza é onde existe perfeita liberdade para ordenar as ações e
regular as posses e as pessoas tal acharem conveniente, nos limites da lei da natureza; neste
estado deve ser recíproco qualquer poder e jurisdição.
O estado de guerra é um estado de inimizadexviii[18] e destruição. Desta forma, aquele
que tenta colocar à outrem sob seu poder absoluto, põe-se por causa disto num estado de
guerra com ele, devendo-se interpretar isto como uma declaração de um desígnio em
relação à sua vida. O estado de natureza e o estado de guerra, estão tão distantes um do
outro como um estado de paz, boa vontade, assistência mútua e preservação está de um
estado de inimizade, malícia, violência e destruição mútua.
É o trabalho que atribui a maior parte do valor à terra, sem o qual dificilmente ela
valeria alguma coisa; assim, embora a natureza tudo nos ofereça em comum, o homem,
sendo senhor de si próprio e proprietário de sua pessoa e das ações ou do trabalho que
executa, teria ainda em si mesmo a base da propriedade. O homem quando nasce, com
direito a perfeita liberdade e gozo incontrolado de todos os direitos e privilégios da lei da
natureza, tem, por natureza, o poder não só de preservar a sua propriedade. É preciso que se
realce "que os tratados de Locke considerados políticos contêm a ata de batismo da
xvii ?[17] LOCKE, J., Op. Cit,. § 167, pag. 535.xviii ?[18] LOCKE, J. Op. Cit., Cap. III.
propriedade privadaxix[19]." Locke acha que a monarquia absoluta, que alguns consideram o
único governo no mundo, é, de fato, incompatível com a sociedade civil, não podendo por
isso ser uma forma qualquer de governo civil, porque o objetivo da sociedade civil consiste
em evitar e remediar os inconvenientes do estado de natureza que resultam necessariamente
de poder cada homem ser juiz em causa própria. Uma vez que a maioria, a partir da
primeira união dos homens em sociedade, detém todo o poder da comunidade naturalmente
em si, pode empregá-lo de tempos em tempos para fazer leis destinadas à comunidade e que
executam por meio de funcionários que ela própria nomeia: nesse caso, a forma de governo
é uma perfeita democracia; pode-se colocar o poder de fazer leis nas mãos de alguns
homens escolhidos, seus herdeiros e sucessores: nesse caso, ter-se-á uma oligarquia; ou
então nas mãos de um único homem e constitui-se nesse caso uma monarquia.
O poder legislativo é o que tem o direito de estabelecer como se deverá utilizar a
força da comunidade no sentido da preservação dela própria e dos seus membros. Os
poderes executivo e federativo de qualquer comunidade sejam realmente distintos em si,
dificilmente podem separar-se e colocar-se ao mesmo tempo em mãos de pessoas distintas.
O pátrio poder consiste somente no que os progenitores possuem sobre os filhos
para os governarem visando ao bem deles até que atinjam o uso da razão ou um estado de
conhecimento no qual se suponha serem capazes de entender a lei, seja a da natureza, seja a
municipal do próprio país, pela qual terão que reger-se – capazes, repito, de sabê-lo tão bem
como outros que vivem como homens livres sob a lei. O poder político é o cada homem
possuía no estado de natureza e cedeu às mãos da sociedade e dessa maneira aos
governantes, que a sociedade instalou sobre si mesma, com o encargo expresso ou tácito de
que seja empregado para o bem e para a preservação de sua propriedade. O poder despótico
é o poder absoluto e arbitrário que o homem tem sobre outro para tirar-lhe a vida sempre
que o queira.
Para falar sobre dissolução do governo deve, em primeiro lugar, distinguir entre a
dissolução da sociedade e a dissolução do governo; outra maneira é dissolver o governo que
consiste em agirem o legislativo ou o príncipe contrariamente ao encargo que receberam.
xix ?[19] DUMONT, L. Op. Cit, pag. 22.
5 - Liberdade e propriedade em Locke
A relação que Locke faz entre “liberdade e propriedade” é que a liberdade faz parte
da propriedade (vida, liberdade e bens), ou seja, sempre liberdade e propriedade devem
estar presentes em um Estado para que este não enfrente problemas, assim vivendo de
modo pacífico; desta forma, a “propriedade privada limitada pelo uso”.
Para Locke, a propriedade já existe no estado de natureza e, sendo uma instituição anterior
à sociedade, é um direito natural do indivíduo que não pode ser violado pelo Estado; desta
forma, o trabalho era o fundamento originário da propriedade.xx[20]
O estado de natureza os homens são dotados de razão e desfrutam da propriedade
que, numa primeira acepção genérica utilizada por Locke, designa simultaneamente a vida,
a liberdade e os bens como direitos naturais do ser humano. "O individualismo subentende,
ao mesmo tempo, igualdade e liberdade."xxi[21]
Em um Estado Civil, o principal objetivo é garantir a propriedade; assim, os direitos
naturais inalienáveis do indivíduo à vida, à liberdade, e à propriedade constituem o cerne do
estado civil; estando melhor protegidos sob o amparo da lei, do árbitro e da força comum
de um corpo político unitário, pois "A ausência de um juiz comum dotado de autoridade
coloca todos os homens em estado de natureza; a força sem direito sobre a pessoa de um
homem causa o estado de guerra, havendo ou não um juiz comum."xxii[22]
O contrato social de Locke é um pacto de consentimento em que os homens
concordam livremente em formar a sociedade civil para preservar e consolidar ainda mais
os direitos que possuíam originalmente no estado de natureza. Desta forma ninguém perde
sua liberdade mas, apenas deixa um líder guiá-lo sendo que, a propriedade possui pontos
intransferíveis como a vida e transferíveis como os bens.
xx ?[20] LOCKE, J. Op. Cit., Cap. V.xxi ?[21] DUMONT, l. Op. Cit., pag. 105.xxii ?[22] LOCKE, J. Op. Cit., § 19, pag. 398.
5 - Liberalismo em Stuart Mill
Para Stuart Mill, o homem tem, até certo ponto, o poder de modificar o seu caráter,
se assim o quiser. Esta afirmação traz no fundo a questão da escolha e da vontade. No seu
pensamento estão presentes duas fidelidades intelectuais, uma para a filosofia empírico-
utilitária e outra para o liberalismo. Ambas se acham entrelaçadas, de maneira tal que uma
exige a presença da outra.
Inspirado em Tocqueville, especialmente em A Democracia na América, Stuart Mill
crê na prioridade do indivíduo na obra de construção da história. Ao escrever sua obra
pensou mais no futuro do que no presente imediato. Seu herói liberal é aquele que pretende
não a força e o poder, mas tão somente a liberdade de ensinar o caminho. Tais homens
serão uma minoria e precisam de um solo bem conservado. Afinal, o gênio não pode
respirar livremente senão em uma atmosfera de liberdade. Sua obra se torna importante pela
análise que faz dos perigos que ameaçam a liberdade. Admite a intervenção do Estado
somente em alguns casos. E isto para impedir um aumento no poder do Estado, o que
nulifica o indivíduo. E quanto à educação, o Estado não deve dirigi-la, mas garanti-la.
Governo e instituições livres são garantias de permanência da liberdade.
A concepção individualista, num certo sentido, coloca o homem antes da sociedade
e vê nesta última, principalmente na sua instância política, um elemento de artificialidade
que não aparece na concepção organicista. Para Mill a tirania da maioria é tão odiosa
quanto a da minoria. Isto porque ambas levariam à elaboração de leis baseadas em
interesses classistas. Um bom sistema representativo é aquele que não permite “que
qualquer interesse seccional se torne forte o suficiente para prevalecer contra a verdade, a
justiça e todos os outros interesses seccionais juntos”.
Para compreendermos o valor que Mill atribui à democracia, é necessário observar
com mais atenção a sua concepção de sociedade e indivíduo. Para eles, a realidade da
economia de mercado constitui-se num paradigma teórico para a construção de seus
modelos de sociedade e de indivíduo. Desta forma, a natureza humana parece-lhes
essencialmente pragmática. O homem é um maximizador do prazer e um minimizador do
sofrimento. A sociedade é o agregado de consciências autocentradas e independentes, cada
qual buscando realizar seus desejos e impulsos.
Com a perspicácia que lhe é característica, Mill aponta para o fato de que uma
sociedade livre, na medida mesmo em que propicia o choque das opiniões e o confronto das
idéias e propostas, cria condições ímpares para que “a justiça e a verdade” subsistam.
6 - Conclusão
Se a configuração individualista de idéias e valores que nos é familiar não existiu
sempre nem apareceu de um dia para outro, "A Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, adotada pela Assembléia Constituinte no verão de 1789 marca, num sentido, o
triunfo do indivíduo"xxiii[23] e o sistema de direitos e garantias contemporâneo é o seu
sucedâneo.
Bibliografia
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xxiii ?[23] DUMONT, L. Op. Cit., pag. 109.
Resumo:
O texto tem por propósito refletir sobre os princípios do individualismo e do liberalismo
a partir da leitura sistemática de alguns clássicos sobre o assunto.
Palavras-chave: Indivíduo, Individualismo liberal, liberdade e propriedade.
(*) O autor é bacharel em Ciências Sociais (IFCS/UFRJ) e em Direito (UFF), mestrando
de Ciência Política do IFCS/UFRJ e ocupa o cargo de Juiz de Direito no Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro.
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