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Com texto de Nabil Bonduki, livro relata as experiências do programa Monumenta, do Iphan.
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Intervenes Urbanas
na Recuperao
de Centros Histricos
M O N U M E N TA | I P H A N
Presidenta da Repblica do BrasilDilma Rousseff
Ministra de Estado da CulturaAna de Hollanda
Presidente do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional Coordenador Nacional do Programa MonumentaLuiz Fernando de Almeida
Diretoria do IphanAndrey Rosenthal SchleeClia Maria CorsinoEstevan Pardi Corra Maria Emlia Nascimento Santos
Coordenador Nacional Adjunto do Programa MonumentaRobson Antnio de Almeida
Coordenao editorialSylvia Maria Braga
EdioCaroline Soudant
Pesquisa, textos, seleo de imagens e legendas Nabil Bonduki
Assistentes de pesquisa Daniela Zilio e Joyce Reis
CopidesqueAna Lcia Lucena
Reviso e preparaoGilka Lemos
Projeto GrficoEdson Fogaa (direitos cedidos pela Unesco)
Capa e diagramacoRonald Neri
Mapas e desenhos Arquivo Monumenta; Cidade Aberta-Arquitetura e Urbanismo Ltda Daniela Zilio (coord.) e Estevo Sabatier
1 e 4 CapasUniversidade Federal de Sergipe. Campus de Laranjeiras, antes e depois da recupera-o, e nova planta do pavimento superior.
www.iphan.gov.br | www.monumenta.gov.br | www.cultura.gov.br
Intervenes Urbanas
na Recuperao
de Centros Histricos
AutorNabil Bonduki
B711 Bonduki, Nabil.
Intervenes urbanas na recuperao de centros histricos / Nabil
Bonduki. Braslia, DF : Iphan / Programa Monumenta, 2010.
376 p. : il. color. ; 23,5 x 31 cm. (Arquitetura ; 3)
ISBN : 978-85-7334-180-5
1. Patrimnio histrico conservao 2. Patrimnio histrico
restaurao. 3. Programa Monumenta. 4. Desenvolvimento social.
5. Desenvolvimento econmico. I. Ttulo. II. Srie.
CDD 720.288
Programa Monumenta/Iphan/Minc - fevereiro/2012.
Sumrio
Apresentao 7
Introduo 8
Captulo 1. Uma nova maneira de reabilitar ncleos histricos 18
Captulo 2. Praas para a vida coletiva 52
Captulo 3. A criao de espaos pblicos em orlas 108
Captulo 4. Reabilitando mercados sem matar sua alma 140
Captulo 5. Redescobrir a cidade inventando um parque 188
Captulo 6. De runas a universidades 228
Captulo 7. Recuperao do casario privado 268
Captulo 8. Habitao social nos ncleos histricos 312
Consideraes finais 362
Referncias bibliogrficas 369
Referncias iconogrficas 373
8Ptio do Campus da Universidade Federal
de Sergipe UFS em Laranjeiras/SE.
Apresentao
9
O Programa Monumenta do Iphan foi certamente uma das iniciativas governamentais no campo da
poltica de patrimnio cultural e da poltica urbana que melhor retrataram as questes, os desafios, os limites,
as possveis solues que se colocam para a gesto do territrio das cidades brasileiras e, particularmente,
de suas reas centrais.
Essa afirmativa j situa o objetivo desta publicao: oferecer um balano das aes do programa e situ-
las, ou melhor, referenci-las a partir do olhar de um urbanista historiador.
uma sorte que essa avaliao tenha sido elaborada pelo professor Nabil Bonduki, um dos profissionais
que mais contribuem para contar a histria da cidade brasileira, com sua sensibilidade aguada tambm pelo
exerccio da gesto pblica.
O Monumenta atuou de maneira inequvoca para o avano das polticas de patrimnio, ao estabelecer
na sua operao algumas prticas at ento inexistentes ou incipientes. Entre elas, o planejamento das
intervenes a partir da construo pactuada de uma estratgia de ao pressupondo o desenvolvimento local
e o estabelecimento de novos instrumentos, dimenses e abrangncia para suas aes como, por exemplo, o
financiamento de imveis privados, a dinamizao de atividades econmicas e as intervenes urbanas.
Se por um lado o programa demonstrou obviamente em escalas distintas e impactos diferenciados
a possibilidade de existncia de aes coordenadas sobre um determinado territrio, por outro apontou
claramente o seu limite e posterior desafio. A formulao de um pacto de polticas desenvolvidas de
forma setorial por diversos agentes pblicos trouxe uma certeza: seus resultados mudaram a perspectiva
socioeconmica de vrias cidades.
A construo de um olhar adequado gesto do territrio implica no rompimento da autorreferncia das
polticas setoriais, constituindo uma resposta positiva para as necessidades urgentes das cidades brasileiras
em que o patrimnio histrico tem exercido um papel agregador. Isso ficou comprovado com a experincia
do Programa Monumenta, cuja continuidade se d com o chamado PAC das cidades histricas.
O balano a seguir apresentado busca justamente colaborar na construo desse olhar e de uma poltica
territorial inovadora que agregue todos os setores e agentes envolvidos. Essa a reflexo a que se prope.
Luiz Fernando de Almeida
Presidente do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional
Coordenador Nacional do Programa Monumenta
Fevereiro 2012
Este livro no tem a pretenso de ser um compndio dos projetos e obras realizadas pelo Monumenta -
Programa de Preservao do Patrimnio Histrico Urbano nem esgotar a anlise das mais de trs centenas
de intervenes realizadas nas 26 cidades conveniadas com o Ministrio da Cultura para participarem do
programa. O inventrio completo das centenas de obras e aes realizadas deve ser objeto de outro esforo
editorial, mais sistemtico e exaustivo, com a preocupao centrada no registro completo de tudo que foi
feito, nos onze anos de implementao do programa.
A proposta apresentar e analisar, de uma maneira qualitativa e crtica, algumas das intervenes
e obras urbanas mais significativas realizadas pelo Monumenta. Busca-se investigar a contribuio do
programa para a preservao dos ncleos histricos e identificar as contradies e inovaes que ele
introduziu para a proteo do patrimnio cultural, em particular, para a sua sustentabilidade. Alm de
analisar a intervenes do ponto de vista dos seus resultados fsicos, pretende-se avaliar tambm seu
impacto sobre a dinmica econmica, social e urbana destas cidades e sobre a qualidade de vida da sua
populao moradora.
O Monumenta no um programa tradicional de restaurao de edifcios e stios urbanos protegidos
embora isto tambm faa parte das suas intervenes tendo, ao longo dos seus onze anos de existncia,
inovado significativamente as polticas de preservao no pas. O programa realizou intervenes na
perspectiva de qualificar os espaos pblicos dos ncleos histricos e de gerar impactos econmicos,
urbanos, sociais e culturais para garantir a sustentabilidade do processo de preservao, ou seja, para criar
bases concretas que pudessem permitir o desenvolvimento destas cidades com respeito ao seu patrimnio, a
ser protegido e incorporado vida urbana.
Nesta perspectiva, o programa atuou para impulsionar aes a serem promovidas por outros agentes e
parceiros, pblicos ou privados, que, atuando em sinergia, poderiam complementar sua interveno e tambm
contribuir para dinamizar o processo de preservao. A concepo do programa e seu desenrolar lanam
questes conceituais relevantes sobre a preservao dos ncleos histricos, como o peso que as atividades
voltadas para o turismo devem exercer; a permanncia de usos e populaes tradicionais; a articulao com
outras polticas urbanas e sociais e o papel do Estado e do mercado na proteo do patrimnio.
Focado em observar este tipo de interveno, o texto se concentra nos projetos urbanos mais significativos
e relevantes financiados pelo Monumenta, no tratando, seno de forma perifrica, de intervenes voltadas
para o restauro de monumentos, igrejas e edifcios pblicos. Para aprofundar esta anlise, selecionar as
intervenes a serem apresentadas e sistematizar sua apresentao, foi elaborada uma estrutura onde cada
captulo trata um tema urbano relevante, em torno dos quais os principais projetos do Monumenta se
organizam. Para cada captulo, foram selecionadas algumas intervenes, que funcionam como referncias
centrais para o aprofundamento do tema, mostrando como ele foi enfrentado pelo Programa.
A identificao e seleo das intervenes mais significativas a serem observadas e analisadas, de acordo
com essa estrutura, foi realizada atravs de consulta com os coordenadores do Programa Monumenta e com
a direo do Iphan, assim como atravs da anlise dos perfis dos projetos realizados pelos 26 municpios
Introduo
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conveniados com o Ministrio da Cultura, para a implementao do Programa Monumenta. Os perfis
dos projetos so os documentos tcnicos realizados pelas Unidades de Execuo do Programa (UEP)
de cada municpio, onde so sistematizadas as informaes sobre as principais caractersticas do ncleo
histrico, apresentada a situao dos bens tombados e da rea urbana protegida, explicitada a estratgia a ser
implementada e definidas as intervenes a serem realizadas.
Com base nestas informaes, vinte e trs cidades, situadas em dezessete estados da federao, foram
visitadas pessoalmente. Estas viagens, realizadas entre 2006 e 2011, significaram uma experincia mpar de
reconhecimento do processo de formao dos ncleos urbanos brasileiros, do conhecimento da situao
do seu patrimnio e da apreenso das intervenes realizadas pelo Monumenta. O contato com os
coordenadores das UEPs e com os representantes dos escritrios locais e superintendentes regionais do
Iphan, que foram as mais importantes fontes de informao sobre projetos e obras realizados, revelaram
os inmeros problemas gerenciais enfrentados para implementar o programa, os expedientes encontrados
para super-los e a experincia adquirida, que indiscutivelmente ser importante num novo programa de
intervenes voltado para as cidades histricas que o governo federal est implementando.
necessrio registrar, entretanto, que uma parte significativa das intervenes analisadas e observadas foram
visitadas quando ainda no estavam finalizadas, encontrando-se em planejamento, projeto ou obra. Apesar disto,
a visita permitiu conhecer suficientemente as propostas, os projetos, o contexto das intervenes e, em vrios
casos, as obras finalizadas ou em estgio final. Em decorrncia, algumas cidades voltaram a ser visitadas, duas e
at trs vezes; em outras, onde no foi possvel retornar, o resultado final das intervenes pode ser observado
por fotografias, relatos dos gestores envolvidos e algumas poucas anlises realizadas por pesquisadores.
As visitas e as inmeras conversas com os gestores do programa foram extremamente teis tanto para
selecionar definitivamente as intervenes a serem analisadas neste livro, como para conhecer de maneira
mais profunda as caractersticas, potencialidades e limitaes do Monumenta, sob o olhar dos seus principais
protagonistas, situados nos locais onde os problemas se manifestam de maneira aguda.
Desta forma, foi possvel identificar as deficincias e os avanos obtidos pelo programa, face s experincias
anteriores, assim como sua insero no processo de gesto municipal, que guarda particular interesse face s
relaes que se estabelecem nas pontas entre as Unidades de Execuo do Programa (UEPs) e os demais atores
que atuam no processo, que pode incluir governo do estado, outros rgos municipais, superintendncias
regionais do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (Iphan) e seus escritrios locais e uma
gama ampla a variada de atores da sociedade civil que, de diferentes maneiras, interferem no Programa.
11
As intervenes urbanas do Monumenta
Este livro dedicado s intervenes urbanas realizadas pelo Programa Monumenta. Trata-se de analisar
projetos e aes que se enquadram numa modalidade de interveno que vai alm dos programas tradicionais
de preservao, voltadas para o restauro de monumentos e edifcios histricos. Enquadram-se nesta categoria
a recuperao de imveis privados; as obras de requalificao de logradouros pblicos e de orlas martimas
ou fluviais; as intervenes em praas e parques; a reabilitao em mercados pblicos; a implantao de campi
universitrios em edifcios arruinados e a reciclagem de imveis histricos visando o desenvolvimento de
projetos de habitao social.
Estas intervenes desempenham um papel estratgico para os ncleos histricos, tanto no que se refere
melhoria da qualidade de vida urbana de seus moradores e usurios, como em relao criao de novas
condies econmicas capazes de gerar um desenvolvimento local. Ambas as caractersticas so importantes
para a sustentabilidade da preservao do patrimnio histrico. Cumprem ainda um papel essencial na
mudana da imagem da cidade, fazendo com que a populao passe a enxergar a relao entre as polticas
de preservao e a sua vida cotidiana e no apenas como a restaurao de edifcios histricos. uma forma
muito eficaz de ampliar a conscincia cidad sobre a necessidade de preservao e de criar um ambiente local
favorvel proteo do patrimnio.
Ao destinar os bens preservados para usos comuns e teis para a populao local como habitao
social, universidades, parques, mercados pblicos, reas de lazer etc. o Programa deu um passo fundamental
para que o patrimnio edificado deixe de ser considerado um elemento alheio aos cidados e passe a ser visto
como um potencial para o desenvolvimento local. Com esta concepo, conseguiu-se superar a ideia, to
difundida, de que os espaos restaurados ou reabilitados apenas poderiam servir para usos costumeiramente
vinculados ao turismo, a eventos culturais (mas no cidadania cultural) e exaltao do prprio patrimnio,
como museus, lojas de artesanato, receptivo de turistas, restaurantes sofisticados etc. No que esta segunda
opo tenha sido excluda; ela apenas deixou de ter a exclusividade e primazia que estava prevista quando o
programa comeou a ser formulado em meados dos anos 1990.
Evidentemente, cada cidade logrou maior ou menor resultado neste sentido. Mas a maioria conseguiu
avanar ao oferecer algum benefcio para seus moradores e usurios tradicionais, no mnimo, o acesso a um
financiamento subsidiado para melhorar a edificao onde moram ou trabalham.
12
A estrutura do livro
Este livro busca mostrar as diferentes perspectivas trazidas por estas intervenes. Com base na observao
e anlise dos projetos realizados, foram definidas as principais intervenes a serem includas em cada
captulo. Estes esto organizados por temas urbanos: praas, orlas martimas e fluviais, mercados, parques,
casario urbano e runas transformadas em universidades e habitao social.
O primeiro captulo, Uma nova forma de reabilitar ncleos histricos introdutrio, apresentando uma sntese
da trajetria da poltica federal de preservao do patrimnio no Brasil e sua vinculao com a concepo
do Programa Monumenta, analisando seus objetivos, indicadores de avaliao, modelo institucional e
implementao. Busca-se mostrar que o programa guarda relao com programas anteriores, mas introduz
uma srie de inovaes relevantes, que so marcadas pela influncia da agncia de financiamento, pela
ampliao do escopo dos projetos que incorporam os imveis privados e espaos pblicos, pela viso do
papel do Estado na preservao e pela crescente articulao com outras polticas pblicas desenvolvida nos
ltimos anos.
O segundo captulo, Praas para a vida coletiva, trata das intervenes urbanas relacionadas com a reforma e
reabilitao de praas, largos e outros espaos pblicos de interesse patrimonial. Nesta anlise, so abordadas
no apenas as reas livres, mas seu papel articulador do tecido urbano e, em especial, dos edifcios histricos
que as contornam, muitos deles tambm objeto de intervenes do programa, como igrejas, edifcios
histricos e conjuntos urbanos.
Trata-se do tipo de interveno urbana mais frequente no Programa Monumenta; praticamente todas as
cidades conveniadas com o Programa Monumenta tm intervenes em praas e largos, que somam, no total
53 projetos. Foram analisados apenas alguns destes projetos, que apresentam particular interesse, como os
realizados no largo do Thberge, na cidade cearense de Ic, que se diferencia por sua enorme dimenso; na
praa da Alfndega em Porto Alegre, que se articula com toda a proposta de reabilitao do centro histrico;
na praa So Francisco, em So Cristvo, indicada como Patrimnio da Humanidade, que integra um raro
traado urbano brasileiro influenciado pelas Ordenaes Filipinas; e a praa Tiradentes em Ouro Preto,
objeto de uma pequena, mas significativa, obra, que limitou o estacionamento de veculos que obstrua a
visibilidade dos monumentos que circundam este que o principal espao pblico do mais importante
ncleo histrico brasileiro.
O terceiro captulo, A criao de espaos pblicos em orlas, dedicado para as intervenes que realizaram o
tratamento urbanstico das frentes para a gua, tanto nas orlas martimas como nas fluviais, tipo de projeto
que foi realizado em dez cidades. Considerando o papel estratgico que as orlas desempenham na vida
urbana dos ncleos histricos, foram abordadas as mltiplas possibilidades que as intervenes propiciaram.
A proposta que gerou o melhor resultado do ponto de vista urbano foi a realizada no porto catarinense
de So Francisco do Sul, o foco principal de anlise neste capitulo. A interveno se estende por cerca de
13
dois quilmetros por um longo calado que liga os vrios edifcios histricos de interesse cultural da cidade,
que foram reabilitados, onde um bom projeto urbanstico se combina que um cenrio natural privilegiado,
gerando um resultado paisagstico excepcional. A anlise mostra como as intervenes que articulam o
espao pblico e as edificaes litorneas valorizam os ncleos histricos.
Particular destaque foi dado ao Museu Nacional do Mar, seja pelo interesse arquitetnico e urbanstico
que ele cria com a orla, seja pela sua potencialidade como equipamento, que atrai milhares de visitantes,
gerando um movimento extremamente importante para uma preservao sustentvel da cidade. O museu
vital para a preservao do patrimnio naval e resgate do saber popular, desenvolvido pelas populaes que
vivem junto gua na construo e decorao de barcos das mais diferentes origens.
Alm da anlise do projeto de So Francisco do Sul, foram observadas outras cidades que realizaram
intervenes relevantes nas orlas como Corumb, Olinda, Lenis e Cachoeira. De uma maneira geral,
foram propostas a retirada das interferncias que obstruam a frente dos rios ou do mar, com a qualificao
urbanstica dos espaos pblicos, troca ou recuperao dos pavimentos, implantao de mobilirio e
reorganizao da relao entre a cidade e a gua.
Buscou-se verificar, ainda, em que medida os projetos realizados garantiram a utilizao destas reas pela
populao local, visto as frentes para a gua serem espaos de particular interesse nas cidades litorneas,
muito valorizadas. Funcionando como ms que atraem a populao e os visitantes, com grande potencial
para o desenvolvimento de atividades ligadas ao lazer e ao turismo, so espaos onde potencialmente tende
a existir conflito entre os usos tradicionais e as novas atividades econmicas.
O quarto captulo, Reabilitando mercados sem matar sua alma, dedicado a apresentar e debater a recuperao
dos mercados pblicos, interveno que foi prevista em dez municpios conveniados com o Programa
Monumenta, o que mostra a importncia deste equipamento nos ncleos histricos.
Os mercados apresentam, de forma admirvel, uma permeabilidade entre o espao pblico aberto e
os ambientes cobertos, parcialmente privados, ocupados geralmente sob concesso do poder pblico. So
espaos semipblicos de forte concentrao popular e que mostram a exuberncia da vida cotidiana de
uma cidade. Neles se desenvolvem atividades e manifestaes que expressam o verdadeiro esprito de uma
comunidade, sobretudo em pequenos ncleos.
Originalmente voltados para o comrcio, os mercados adquiriram grande valor cultural como um
ambiente social onde germinam manifestaes de cultura popular, s vezes relacionadas com as prprias
atividades econmicas ali alojadas. O interesse na sua reabilitao extravasa a interveno fsica, voltando-
se tambm para garantir a manuteno do complexo tecido social e cultural que sobrevive e resiste neste
ambiente agregador.
Frente ao seu acelerado processo de degradao, a reabilitao fsica indispensvel, mas acaba por
contrariar fortes interesses individuais, pois as concesses antigas geram privilgios privados e um
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desvirtuamento das funes originais que no so fceis de eliminar. Por outro lado, como os mercados
so locais de grande vitalidade, a operao necessria para viabilizar as obras nestas reas sempre muito
complexa e difcil, pois as obras no podem interromper as atividades econmicas. Assim, alm da anlise
dos projetos, foram tambm observadas as dificuldades de atuao, como ocorreu na cidade de Penedo,
onde as intervenes no Mercado Municipal e no Pavilho da Farinha se chocaram com interesses privados,
gerando conflitos que levaram a questo para a justia.
A anlise se concentrou ainda nas intervenes realizadas no Mercado da Carne Francisco Bolonha, de
Belm e no Mercado Cultural de Lenis. Buscou-se mostrar a importncia da manuteno das atividades
tradicionais nestes edifcios, cujo exemplo mais eloquente ocorreu em Belm, onde persiste, em torno dos
seus vrios mercados, uma estruturada rede de sociabilidade e de prticas urbanas e sociais cotidianas, que
mantm vivo um processo cultural de forte enraizamento popular. J no caso de Lenis, ao contrrio,
observa-se que a reabilitao foi acompanhada da eliminao do comercio tradicional, transformando o
antigo edifcio num espao cultural, vazio de contedo e sem a alma e a vida que caracterizam os mercados.
No quinto captulo, Redescobrir a cidade inventando um parque, tratada com destaque uma nica interveno,
a Recuperao e tratamento paisagstico do Vale dos Contos e Horto Botnico, projeto que transformou
uma grande rea vazia e abandonada de Ouro Preto, em um parque urbano, projeto-ncora do Programa
Monumenta na cidade. Trata-se da nica interveno do Monumenta que criou um parque, pois a outra com
o mesmo carter, a implantao do Parque Ecolgico no antigo hospcio de So Francisco do Sul, ainda no
se viabilizou.
A interveno em Ouro Preto tem particular interesse, pois permitiu introduzir um equipamento urbano
novo, inexistente nos ncleos coloniais, no tecido urbano tradicional da mais importante cidade histrica
brasileira. No se trata apenas da implantao de uma rea de lazer para a populao local, o que j seria
muito importante. A interveno cria novos percursos urbanos, com a abertura de uma entrada para a
cidade, junto estao rodoviria, que se desdobra, por trilhas, escadarias e plats, numa circulao para
pedestres que liga vrios monumentos de interesse histricos como a Igreja do Pilar, a Casa dos Contos e a
Santa Casa. Neste novo percurso so vislumbrados novos visuais urbanos e elementos inusitados de relao
entre o ambiente construdo e o meio natural.
No sexto captulo, De runas a universidades, so analisadas as intervenes que reciclaram edifcios de
interesse patrimonial em campi de universidades pblicas. Trata-se de uma criativa forma de dinamizar ncleos
histricos que perderam suas atividades econmicas tradicionais e que necessitam de novos estmulos para
impulsionar e dar sustentabilidade a reabilitao de edifcios e espaos urbanos.
Centrado nas intervenes realizadas em Cachoeira, com a transformao do Quarteiro Leite Alves em
um dos campi da Universidade do Recncavo Baiano, e de Laranjeiras, com a implantao de um campus da
Universidade Federal de Sergipe no Quarteiro dos Trapiches, nicas cidades que adotaram esta proposta,
15
a anlise mostra o potencial que tem a articulao entre diferentes polticas pblicas, no caso a expanso
das universidades federais e a preservao do patrimnio arquitetnico, para garantir a sustentabilidade
econmica dos ncleos histricos.
No stimo captulo, A recuperao do casario privado, tratada a modalidade de interveno que adquiriu
enorme importncia ao longo da implementao do programa: a recuperao de imveis privados.
Trata-se da concesso de financiamento a moradores e usurios de edifcios comuns, situados na rea de
interveno, para a reabilitao das fachadas e telhados, alm de melhorias na edificao, como instalaes
eltricas e hidrulicas.
Estas obras so essenciais para reabilitar conjuntos urbanos, garantindo a ambincia e a paisagem
dos ncleos histricos e superando uma conceituao tradicional de preservao, que privilegiava apenas
os monumentos e os edifcios da elite. Com o financiamento subsidiado para melhorar seus edifcios, a
populao local pode receber, pela primeira vez, um benefcio para manter o patrimnio urbano.
A magnitude da interveno, com previso de concesso de financiamento para mais de quinhentos
beneficirios, confere maior importncia para esta iniciativa, que superou a fase de uma experincia piloto.
Todas as cidades conveniadas com o Monumenta, em tese, poderiam ter acesso a este financiamento, com
exceo de Salvador, cujos recursos foram concentrados num projeto exclusivo de habitao social, tratado
no captulo 8.
A reabilitao de imveis privados, embora apie individualmente a reforma de edifcios, considerada
uma interveno urbana, pois gera impacto no espao pblico como um todo, como ocorreu, por exemplo, no
municpio de Natividade, localizado no estado de Tocantins. Esta cidade, cuja experincia foi abordada neste
capitulo, viabilizou uma grande quantidade de contratos de financiamento, beneficiando uma porcentagem
muito significativa de moradores do ncleo histrico e alterando a qualidade do casario urbano como um
todo. Em Porto Alegre, outro caso aprofundado, se viabilizou o financiamento a condomnios verticais no
centro histrico, abrindo a possibilidade de intervenes fundamentais para manter a populao moradora
na regio.
Nesse sentido, a abordagem deste captulo mostra que o financiamento subsidiado uma modalidade
muito adequada para garantir a permanncia de moradores e usos tradicionais nos ncleos histricos,
rompendo o ciclo de excluso que normalmente ocorre como correlato dos programas de reabilitao de
reas centrais.
O ltimo captulo, Habitao social nos ncleos histricos, trata da interveno realizada na 7 Etapa de
Recuperao do centro histrico de Salvador, a nica que objetiva reabilitar integralmente de um bairro
deteriorado, transformando seus imveis em pequenos conjuntos de habitao social.
A relao entre a reabilitao de reas centrais urbanos e a promoo de habitao social um tema da maior
atualidade. Neste captulo, mostrado como o Programa Monumenta se empenhou para compatibilizar a
16
reabilitao do bairro de So Dmaso, situado no corao de uma cidade histrica declarada Patrimnio da
Humanidade pela Unesco, com a manuteno da populao de baixa renda, rompendo com o tradicional
processo de gentrificao, segregao e glamorizao que tem caracterizado este tipo de interveno.
Trata-se de um projeto muito complexo, que implicou numa ampla articulao governamental,
envolvendo, alm dos rgos de preservao, o Ministrio das Cidades e vrios rgos do estado da Bahia,
como a Secretaria de Desenvolvimento Urbano, o Fundo de Previdncia do Estado e a Companhia de
Desenvolvimento Urbano (Conder). A opo pelo uso habitacional no centro de Salvador ganha grande
expresso, pois ocorreu aps dez anos de atuao do governo da Bahia na regio do Pelourinho, voltada para
a excluso da populao moradora e estmulo a atividades de lazer e turismo voltados para grupos sociais
sem vnculos com a regio.
A luta da Associao dos Moradores e Amigos do centro histrico e a ativa participao do Ministrio
Pblico em defesa do direito dos antigos habitantes so enfatizadas neste captulo, mostrando o crescente
papel da sociedade nas questes patrimoniais e abertura do Programa Monumenta para incorporar os
processos participativos e a interlocuo com os atores sociais locais no desenho de suas intervenes.
Como se v, o livro est estruturado de modo a analisar algumas intervenes que foram consideradas
mais estratgicas para aprofundar o tema central que a relao entre o Programa Monumenta e a questo
urbana. No entanto, visando proporcionar uma viso mais geral, foram apresentados, em fotografias e
pequenas legendas, outros projetos relacionados com o tema tratado em cada captulo. Embora sem detalhes,
buscou-se mostrar a amplitude e diversidade das intervenes nas 26 cidades histricas conveniadas com o
MinC para a implementao do programa.
Nas consideraes finais, que fecham este livro, foram debatidos, de maneira exploratria, os
desdobramentos do Programa Monumenta. Estes ganham novos contornos frente s mudanas surgidas neste
perodo, como a incorporao do programa ao Iphan, o aumento da capacidade de investimento pblico e a
integrao com outras polticas pblicas, aspectos que permitem pensar a questo da sustentabilidade de uma
maneira mais ampla do que se tinha em meados dos anos 1990, quando ele foi concebido. Em particular,
o lanamento do PAC das Cidades Histricas abre novas perspectivas para incorporar alguns aspectos do
programa, e aperfeioar outros, no mbito de uma poltica permanente para os ncleos histricos.
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Agradecimentos
Este livro e a pesquisa que possibilitou sua elaborao no poderiam ter sido realizados sem a enorme
colaborao da direo do Iphan e dos gestores do Programa Monumenta, em nvel nacional e local.
O estmulo inicial e permanente do presidente do Iphan, arquiteto Luiz Fernando de Almeida, foi
fundamental para que eu pudesse aceitar o desafio de enfrentar esta empreitada e de no abandon-la
quando a tarefa ficou maior do que o tempo que eu tinha para finaliz-la. Suas opinies tiveram um papel
essencial nas ideias contidas neste livro, tendo contribudo no s para a concepo de sua estrutura como
trazendo informaes e anlises que me ajudaram a entender melhor a concepo do programa em suas
diferentes fases.
A colaborao de um nmero enorme de tcnicos e administradores pblicos envolvidos com o
Programa Monumenta em todo o pas foi fundamental para cumprir esta tarefa. O apoio do corpo tcnico
do Iphan e da Unidade de Gerenciamento Central (UGC) do Programa Monumenta foi indispensvel
para que o trabalho pudesse ser finalizado. Agradeo, particularmente, a colaborao da arquiteta rica
Diogo, coordenadora de financiamento aos imveis privados e de sua equipe, que contriburam para o
entendimento desta importante linha de atuao do programa e para paciente a atualizao dos dados. As
informaes e contatos fornecidos por Robson de Almeida, coordenador nacional adjunto do Programa
Monumenta, Weber Sutti, assessor da presidncia do Iphan, Sylvia Braga, coordenadora editorial do
Monumenta/Iphan e Sylvio Carneiro Farias, da UGC, foram de grande valia, permitindo a realizao da
pesquisa que gerou este livro.
A ateno com que fui recebido pelos tcnicos das Unidades de Execuo do Projeto das vinte e
trs cidades que visitei ao longo da pesquisa, assim como das superintendncias e escritrios locais
do Iphan e outros agentes locais, foi essencial para o conhecimento das intervenes realizadas, apoio
e acompanhamento do trabalho de campo. Agradeo nominalmente cada um deles, correndo o risco
de cometer injustias: Gabriel Rodrigues Gonalves, Eduardo Fucs, Marcio Perroni, Etelvina Rebouas
e Lidiane Alves (UEP de Cachoeira e Lenis); Francisco Santana (superintendncia do Iphan da
Bahia); Valfredo de Assis Ribeiro, Paulo Canuto e Laila Nazem Mourad (UEP Salvador); Jecilda Cruz
Melo (Associao de Moradores e Amigos do centro histrico de Salvador); Tnia Scofield (Secretaria
Estadual de Desenvolvimento Urbano do estado da Bahia); Maria Cristina Duarte (UEP Rio de Janeiro);
Maria Margareth Ribas Lima (Superintendncia Regional do Iphan do Estado do Mato Grosso do
Sul); Tnia Mofreitas Dantas (UEP Corumb); Lgia Urban (Plano Diretor Participativo de Corumb);
Gabriel Simes Gobbi e Paulo Hermnio Guimares (UEP Ouro Preto); Ftima da Conceio Guido
e Fernanda Alves de Brito (UEP Mariana); Aldilene Peres (UEP Congonhas); ngelo Pereira da Costa
e arquiteta Roberta Pauli (UEP So Francisco do Sul); Dalmo Vieira Filho e arquiteta Vanessa Pereira
18
(Superintendncia do Iphan de Santa Catarina); Mrcio da Rosa (Museu Nacional do Mar de So Francisco
do Sul); Luis Srgio Gentil, Gilson Correia de Souza e Tatiana de Carvalho Costa (UEP So Cristvo e
Laranjeiras); Marta Chagas e Eliana Fonseca (Superintendncia Regional do Iphan de Sergipe e Alagoas);
Antonio Carlos Costa Borges e Livana Fon (UEP Penedo); Sandra Spinelli, Auxiliadora Beltro e Ana
Zuleika Rodrigues (UEP Recife); Andr de Pina (UEP Olinda); Otvio Monteiro Daher (UEP Gois);
Nars Nagib Chau (Secretrio da Cultura do Estado de Gois); Salma Saddi, Superintendente Regional
do Iphan do Estado de Gois, Mato Grosso e Tocantins); Simone Camelo Arajo, (UEP Natividade);
Marilusa de Almeida Paiva (UEP Manaus); Antonio Vallinoto (UEP Belm); Flvio Nassar (Projeto
Circuito Landi); Erick Rolim (Escritrio do Iphan Ic); Briane Bicca (UEP Porto Alegre). Selma Maria
Silva, do setor administrativo do Monumenta e Ligia Godoy, do Gabinete da Presidncia do Iphan, foram
indispensveis para viabilizar os aspectos prticos da pesquisa de campo.
Agradeo a disponibilidade dos profissionais que me receberam, concedendo depoimentos muito
esclarecedores que me permitiram conhecer o processo de concepo e implementao do Monumenta:
arquiteto e professor Pedro Taddei, primeiro Coordenador Nacional do Programa Monumenta; Jurema
Machado, representante da Unesco no Brasil; Ana Lcia Paiva Dezolt, do Banco Interamericano
de Desenvolvimento. Sylvia Braga e Luiz Fernando de Almeida, alm de concederem entrevistas,
acompanharam permanentemente a realizao deste texto, com sugestes e ideias que ajudaram a
melhorar o produto final.
A colaborao substantiva e prtica da equipe de Publicaes do Iphan na edio deste livro foi
fundamental. Rogrio Furtado, Denise Felipe, Ana Lcia Lucena e, sobretudo, Sylvia Braga, Caroline
Soudant e Gilka Lemos foram fundamentais para a edio, preparao e reviso do texto final, assim
como Ronald Neri na rdua tarefa de diagramao.
As arquitetas Joyce Reis e Daniela Zilio, em especial, quando ainda estudantes da FAU-USP, foram
competentes auxiliares de pesquisa, contribuindo na sistematizao das informaes, organizao do
material recolhido na pesquisa de campo e seleo das imagens. A leitura atenciosa e sugestes feitas por
rica Diogo, Rossella Rossetto, Flvia Brito do Nascimento e Daniela Zilio, a partir da verso preliminar
do texto, permitiram seu aperfeioamento.
Como se v, este trabalho foi o resultado da colaborao de muitos. No entanto, a responsabilidade
por eventuais equvocos nas informaes e anlises, inevitveis numa publicao desta amplitude,
exclusivamente minha.
Nabil Bonduki
19
1. Uma nova maneira de reabilitar ncleos histricos
St. Salvador. Ville Capitale du Brsil Gravura de Froger
22
O Programa de Preservao do Patrimnio Histrico Urbano Monumenta renovou a forma
de reabilitar os ncleos histricos no pas, enfatizando intervenes em espaos pblicos e imveis
privados, com importantes desdobramentos na formulao de uma poltica nacional de preservao
articulada com o desenvolvimento urbano, econmico e social.
O programa, que comeou a ser pensado em 1995, foi proposto pelo Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID), baseado em sua primeira experincia de apoio reabilitao de centros
histricos, que ocorreu em Quito, depois do terremoto que atingiu a cidade em 1987. Sua concepo
inicial est marcada por uma viso voltada para a sustentabilidade da preservao do patrimnio
histrico e artstico nos ncleos urbanos sob proteo federal, buscando, para isto, uma articulao
com o desenvolvimento de atividades econmicas, especialmente o turismo, que pudessem gerar
recursos para garantir a manuteno do patrimnio. A partir de 2003, sem se afastar de sua concepo
original, mas flexibilizando algumas normas, o programa articulou-se com maior clareza s demais
polticas pblicas do governo federal, o que abriu perspectivas mais amplas para suas intervenes.
Os antecedentes mais distantes do Programa Monumenta remontam ao final dos anos 1960
e comeo dos anos 1970, quando se iniciou uma renovao da poltica federal de preservao que
tinha sido formulada de maneira pioneira no Estado Novo. Durante vrias dcadas, essa poltica
esteve marcada pela participao dos arquitetos modernistas e pela preocupao em proteger os
Uma nova maneira de reabilitar ncleos histricos
23Uma nova maneira de reabilitar ncleos histricos
monumentos arquitetnicos e o acervo artstico oriundos da tradio luso-brasileira. Sua renovao foi
influenciada pelo debate internacional e pelas orientaes emanadas por consultores da Unesco, que
ampliaram a noo de patrimnio cultural, estabeleceram princpios para intervir nos monumentos e
bens preservados e buscaram articular a preservao com o desenvolvimento econmico.
Nos anos 1970, surgiram iniciativas paralelas atuao tradicional do Servio do Patrimnio
Histrico e Artstico Nacional (Sphan), como o Programa das Cidades Histricas (PCH) e o
Centro Nacional de Referncia Cultural (CNRC), que introduziram novas perspectivas na poltica de
preservao, objetivando envolver e responsabilizar o conjunto dos entes federativos (Unio, estados e
municpios), incorporar outras formas de manifestaes culturais, como o patrimnio imaterial e o saber
popular, ao patrimnio cultural brasileiro a ser protegido, at ento restrito vertente luso-brasileira, e
articular a reabilitao dos bens protegidos com o desenvolvimento econmico, em particular o turismo.
O Programa Monumenta, embora de maneira no explcita, relaciona-se a essas diretrizes na
medida em que busca associar o investimento em obras e aes concorrentes criao de processos
de desenvolvimento econmico capazes de garantir usos e atividades nos ncleos histricos e gerar
recursos para sua manuteno. Ele foi concebido no apenas como um programa de recuperao fsica
de monumentos ao tradicional da poltica federal de preservao , mas como um instrumento
capaz de criar referncias para uma prtica de gesto sustentada do patrimnio cultural brasileiro.
s. salvador. oCupao Holandesa.
Gravura em cobre de annimo.
24
O Monumenta investiu cerca de 125 milhes de dlares apoiando uma ampla gama de intervenes
relacionadas tanto a investimento em obras que ultrapassaram o restauro de monumentos para alcanar,
nos permetros protegidos, a recuperao de imveis privados e a qualificao de espaos pblicos quanto
a iniciativas vinculadas documentao, difuso, popularizao e educao patrimonial e ao fortalecimento
institucional dos rgos de proteo. A preocupao em criar uma conscincia sobre a importncia da
preservao e da memria, como um pressuposto para as aes de polticas pblicas, esteve no centro da
concepo do Monumenta.
Enquanto o PCH teve, nos anos 1970, um papel fundamental no estabelecimento de uma estrutura
institucional relacionada ao patrimnio no nvel estadual, o Monumenta formulou um regulamento
operativo bastante detalhado buscando atuar de forma descentralizada, com foco nos municpios sedes dos
ncleos histricos. Embora a ao de alguns estados tenha sido importante para impulsionar o programa,
os municpios conveniados deveriam ser os executores das intervenes e agentes fundamentais na garantia
de sua sustentabilidade, inclusive porque caberia a eles gerir os fundos de preservao um dos principais
instrumentos propostos , que obrigatoriamente precisavam criar.
A atuao do Monumenta, no entanto, est longe de ser linear e homognea. Ao longo dos mais de dez
anos de aperfeioamento do programa, possvel identificar claramente uma tenso conceitual relativa
noo de sustentabilidade que se props como basilar. Essa noo oscila entre uma viso neoliberal, voltada
para atividades econmicas fomentadas pelo mercado, com nfase no turismo e na espetaculosidade do
patrimnio, e uma viso mais associada s prticas e aos usos cotidianos dos moradores e usurios dos
ncleos histricos perspectiva em que o papel do Estado e da sociedade organizada mais importante que
o do mercado.
A polarizao dessas vises permeou as aes do programa ao longo de toda a sua existncia e, necessrio
ressaltar, ambas encontraram espao para se desenvolver, como ser mostrado ao longo dos captulos que
compem este livro. Essa constatao mostra que o programa teve suficiente flexibilidade para abrigar tanto
uma perspectiva identificada com o neoliberalismo, baseada no Estado mnimo, quanto uma viso que
pressupe a maior participao do poder pblico e a articulao com outras polticas pblicas. De uma
maneira geral, pode-se dizer que a primeira perspectiva esteve mais presente no perodo da concepo do
programa e do incio de sua implementao, sendo gradativamente afrouxada.
Neste captulo, as questes histricas e conceituais relacionadas poltica federal de preservao e ao
Programa Monumenta sero aprofundadas, embora se apresente em todos os captulos a reflexo terica,
baseada na anlise das intervenes concretas. medida que as concepes desenvolvidas pelo Monumenta
vm se desdobrando no Programa de Acelerao do Crescimento (PAC) das Cidades Histricas, uma ao
mais permanente de preservao dos ncleos histricos brasileiros, as ideias e anlises expostas neste texto
podero ser teis para apontar caminhos e ajustes em futuros programas e intervenes.
25Uma nova maneira de reabilitar ncleos histricos
O PrOgrama mOnumenta nO cOntextO das POlticas de PreservaO nO Brasil
A concepo bsica do Programa Monumenta foi inovadora em relao s polticas tradicionais de
preservao implementadas no pas. O programa introduziu uma nova mentalidade na maneira de tratar
a reabilitao dos ncleos histricos, indo muito alm da noo que vigorou no pas a partir dos anos
1930, com a criao do Sphan. Segundo a orientao ento adotada, os rgos de proteo ao patrimnio
deveriam exercer uma espcie de tutela paternalista sobre os bens tombados, protegendo-os dos processos
econmicos, da dinmica urbano/imobiliria e da falta de conscincia da populao, em particular da elite
econmica, sobre a importncia da sua preservao.
Neste item, busca-se mostrar que a inovao proposta pelo Programa Monumenta aprofundou uma
viso conceitual que j vinha sendo formulada e incorporada aos rgos de preservao desde os anos 1970.
Coube ao programa desenvolver e colocar em prtica propostas especficas que consolidaram uma nova
maneira de intervir nos ncleos histricos.
as Origens da POltica de PreservaO dO PatrimniO nO Pas
indiscutvel a importncia da ao dos pioneiros preservacionistas para garantir que os monumentos e
os stios histricos, assim como os acervos artsticos mais significativos, fossem preservados. O pas foi um
dos primeiros a criar uma legislao o Decreto-Lei n 25/1937 com o objetivo de proteger, preservar,
divulgar e gerir seu patrimnio histrico e artstico. Como amplamente conhecido, o Sphan, criado em
1937, iniciou oficialmente a proteo ao patrimnio histrico, tendo realizado como sua primeira tarefa
o levantamento dos bens de interesse histrico e cultural nacionais a serem preservados. Embora o projeto
original formulado por Mrio de Andrade estabelecesse uma noo mais ampla do que devia se entender
por patrimnio cultural, lamentavelmente prevaleceu uma viso restrita, voltada para os bens arquitetnicos
e artsticos, chamados por alguns de patrimnio de pedra e cal.
Os critrios utilizados para a seleo dos bens a serem protegidos foram o carter esttico-estilstico, a
excepcionalidade e a autenticidade (momento da construo da obra), valorizando-se a arquitetura tradicional
luso-brasileira produzida no perodo colonial. Conduzida por arquitetos e intelectuais protagonistas do
modernismo e com vnculo, embora s vezes crtico, com o getulismo, o foco principal da poltica de
preservao era a criao de uma identidade nacional que desse uma base cultural para a instituio e
o fortalecimento de um Estado nacional. Lucio Costa, ao teorizar as relaes entre o modernismo e a
identidade, formulou as bases conceituais da poltica do Sphan.
Assim, seguindo princpios estabelecidos pelos modernistas, poucos monumentos e obras artsticas
brasileiros foram considerados dignos de preservao, nessa primeira fase. A maior parte dos bens
26
selecionados eram obras implantadas no perodo colonial, com poucas excees, como os palcios
governamentais. O inventrio realizado refletia a preocupao em criar uma referncia simblica para a
construo de uma identidade nacional, com forte presena do Estado e de seus aliados. Os bens tombados
eram smbolos do poder civil, religioso e econmico, marcados pela monumentalidade e grandiosidade:
igrejas, fortalezas e fortes, casas nobres, solares, sobrados, aquedutos, casas da cmara, engenhos, pontes
e fazendas.
Comandada pelos arquitetos modernos, a concepo de preservao adotada no Brasil seguia fielmente
a Carta de Atenas (1931), que valorizava o monumento e no a conservao do contexto urbano e a
preservao das edificaes comuns. A destruio de traados e contextos urbanos, sobretudo do sculo
XIX e incio do sculo XX, buscava destacar o monumento, criando, em muitas situaes, perspectivas
falsas que inexistiam anteriormente. Apesar da limitao da concepo de patrimnio e de equvocos na
maneira de tratar os conjuntos urbanos, a atuao oficial nesse perodo heroico foi muito relevante, pois
garantiu a preservao de exemplares importantes para a construo da memria nacional, que certamente
teriam desaparecido sem uma proteo estatal.
Sem menosprezar a importncia da ao do Sphan nesse primeiro perodo, necessrio apontar
tambm suas limitaes e equvocos. Um dos principais questionamentos refere-se descontextualizao
urbana dos monumentos, assim como limitao da proteo aos monumentos que reafirmavam uma
leitura especifica da memria nacional. Como afirma Severo (1999):
A preservao arrancava da paisagem tudo aquilo que contradizia o modelo escolhido como formalmente adequado para
o contexto poltico de afirmao da brasilidade. Apesar da discordncia de alguns dos representantes da preservao
do patrimnio, o recurso cenogrfico foi utilizado atravs do incentivo aos historicismos e pastiches, construes que
imitavam o estilo colonial.
Buscando reforar a identidade nacional, que estaria calcada, de acordo com essa viso, na arquitetura
tradicional portuguesa, as edificaes eclticas e neoclssicas do sculo XIX, consideradas alheias cultura
autenticamente brasileira, foram desprezadas e largadas prpria sorte, sem proteo. Isto sem falar do
patrimnio imaterial e de bens culturais ligados s culturas afro-brasileira e indgena e outros alheios
tradio europeia.
Ainda segundo Severo (1999):
[a] deciso de preservar as formas luso-brasileiras e destruir o restante demonstra a importncia conferida ao
monumento histrico como objeto artstico-arquitetnico e no como marco referencial da memria capaz de mobilizar
o pertencimento do grupo [...] plantando assim as bases da espetacularizao dos stios histricos, reconstrudos como
cenrios de lazer, entretenimento e turismo.
27Uma nova maneira de reabilitar ncleos histricos
No entanto, at os anos 1970, a relao entre patrimnio, cultura e turismo ainda no estava colocada
como uma poltica pblica e uma alternativa para o desenvolvimento econmico, o que apenas comea a se
formular a partir do Programa das Cidades Histricas (PCH).
Ao alargar os permetros de interveno e abranger a recuperao de imveis privados e espaos pblicos
que no seriam considerados passveis de proteo segundo os antigos critrios de excepcionalidade e
autenticidade, a concepo do Monumenta sela definitivamente um longo processo de alterao da viso
de patrimnio arquitetnico e urbano que foi moldada nos anos 1930. Essa renovao completa um ciclo
iniciado nos anos 1970, principalmente no que se refere ampliao da noo de patrimnio cultural e
relao entre patrimnio e desenvolvimento econmico.
PreservaO de cOnjuntOs urBanOs e desenvOlvimentO ecOnmicO: nOvas PersPectivas nOs
anOs 1970
Aps o final do Estado Novo, a poltica federal de preservao manteve-se quase sem alteraes at o
incio dos anos 1970, administrada pelo mesmo quadro dirigente e seguindo a mesma orientao (Fonseca,
2005). A atividade do Sphan denominado Departamento do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional
(Dphan) a partir de 1946 no se renovou: tecnificou-se, como afirma Arantes (1987).
Essa estabilidade era sintoma da desimportncia que os governos ps-1945, assim como seus opositores,
deram questo do patrimnio histrico e artstico nacional (Falco, 1984). Longe das prioridades e do
debate poltico e liderado por uma figura amplamente respeitada, Rodrigo Melo Franco de Andrade, o rgo
gozou de uma grande autonomia de ao, ao mesmo tempo que sofria fortes restries para desempenhar suas
funes. A escassez de recursos combinou-se com o rigor tico e carter quase missionrio dos profissionais
atuantes nesse setor, reforando um esprito de corpo que atravessou o sculo e uma perspectiva militante
que se enquadrava bem nos objetivos civilizatrios de uma poltica de preservao.
Prevaleceu assim uma grande inrcia, decorrente de uma srie de fatores, como o carter vitalcio
dos cargos do Conselho Consultivo, a continuidade da viso dos arquitetos modernistas, atravs de seus
discpulos, e a restrio oramentria que levou ao abandono das atividades de pesquisa e de divulgao
(Fonseca, 2005). O Dphan acabou se concentrando na preservao e restaurao de um nmero significativo
de bens de valor histrico e artstico, selecionados segundo os princpios anteriormente apontados, sem
a preocupao com o contexto urbano. Enquanto isso, ocorreu uma crescente degradao de edifcios e
do patrimnio urbano como um todo afetados pela forte urbanizao e valorizao imobiliria , no
se conseguindo sensibilizar e mobilizar a sociedade e os governos para a causa da preservao, aspecto
indispensvel para o sucesso dessa tarefa.
A perspectiva dominante no dava conta de responder aos desafios criados pelo processo de
desenvolvimento do pas, em particular na sua complexa relao com a cultura. No incio dos anos 1970,
28
ela passou a sofrer uma reviso terica e prtica, embora a concepo modernista nunca tenha deixado de
estar presente, de alguma maneira, nas orientaes do rgo de preservao, sobretudo pela fora e coerncia
do seu competente quadro tcnico estvel. As novas perspectivas emergiram tanto por razes de ordem
conceitual como em decorrncia das condies econmicas que marcaram o pas a partir dos anos 1960.
Nesse novo quadro, duas alternativas foram contrapostas s antigas orientaes. A primeira estava associada
ideia da cidade-documento, que valoriza a relao entre o patrimnio, o contexto urbano, a antropologia
e as manifestaes populares; a segunda buscava relacionar o patrimnio com o valor econmico, acabando
quase sempre por apontar o turismo como caminho para garantir a sustentabilidade dos bens protegidos.
A primeira alternativa, do ponto de vista terico, vincula-se transformao conceitual desencadeada
pela Nova Histria francesa que promoveu a aproximao entre a histria e a antropologia, redefinindo
seus objetos, abordagem e fontes de pesquisa e pelos preceitos italianos de gesto do patrimnio, que
consolidaram prticas de interveno culturalistas. As contribuies advindas dessas duas vertentes foram
assimiladas mundialmente nos anos 70 e 80 e o conceito de cidade-documento passou a permear as
propostas de restaurao (Severo, 2004).
Essa perspectiva valorizava o conjunto urbano como uma construo histrica; a cidade oferecia-se para
a leitura do fenmeno urbanizador construdo na longa durao e o papel do restaurador era conservar seu
potencial informativo. O que at ento era percebido como defeito e ameaa autenticidade passou a ser
considerado fonte de compreenso da dinmica histrica.
Um marco importante da consolidao dessa viso a Carta de Veneza, aprovada em 1964 no II
Congresso Internacional de Arquitetos e Tcnicos de Monumentos Histricos, documento que ainda
se mantm como principal referncia internacional das questes ligadas preservao de monumentos
histricos (Kuhl, 2010). A carta atribui valor patrimonial s edificaes simples e comuns que compem os
conjuntos urbanos. Nela se l:
A noo do patrimnio compreende no s a criao arquitetnica isolada, mas tambm a moldura em que ela
inserida. O monumento inseparvel do meio onde se encontra situado e, bem assim, da histria da qual testemunho.
Reconhece-se, consequentemente, um valor monumental tanto aos grandes conjuntos arquitetnicos, quanto s obras
modestas que adquiriram, no decorrer do tempo, significao cultural e humana.
Essa noo, que est muito presente na orientao conceitual e no desenho institucional do Monumenta,
particularmente no que se refere ao financiamento de imveis privados, chegou ao Brasil nos anos 1970,
colocando em destaque a necessidade de valorizar o contexto urbano porque nele estavam expressas a atuao
social e os hbitos cotidianos, que eram to relevantes quanto a ao dos governantes, da elite e da Igreja,
representada pelos monumentos isolados.
A Declarao de Amsterd, de 1975, promulgada pelo Conselho da Europa, refora e amplia essa viso.
Alm de reafirmar que o patrimnio compreende [...] tambm os conjuntos, bairros de cidades e aldeias
29Uma nova maneira de reabilitar ncleos histricos
que apresentam um interesse histrico ou cultural, o documento atribui comunidade um papel ativo
na identificao do patrimnio, que deixaria de ser responsabilidade apenas dos profissionais diretamente
envolvidos nas aes de preservao/restaurao. De acordo com essa Declarao:
A conservao do patrimnio arquitetnico no deve ser tarefa dos especialistas. O apoio da opinio pblica
essencial. A populao deve, baseada em informaes objetivas e completas, participar realmente, desde a elaborao
dos inventrios at a tomada das decises.
Embora essa concepo tenha repercutido no Brasil, convm ressaltar que o envolvimento da sociedade
na gesto pblica e, particularmente, nas questes patrimoniais, era quase inexistente durante o regime
militar, emergindo com fora apenas na redemocratizao e, sobretudo, a partir da Constituio de 1988.
Ainda assim, nos anos 1980 ocorreram manifestaes da sociedade em defesa do patrimnio, com algumas
conquistas, como a permanncia de edifcios eclticos e a consolidao de certos hbitos sociais tradicionais.
Nas palavras de Severo (2004):
Os espaos de convvio at ento caracterizados como higinica e moralmente reprovveis que foram mantidos por essas
campanhas populares se oferecem como casos exemplares para refletirmos sobre as possibilidades da gesto coletiva da
memria social.
Ao promover oficinas participativas como um instrumento para definir os perfis dos projetos de cada
municpio, o Monumenta se insere nessa perspectiva.
A segunda alternativa vincula-se s formulaes da Carta de Quito, aprovada pelos chefes de Estado dos
pases que integravam a OEA, reunidos em 1967 na capital equatoriana. Esse documento trabalha com a
noo de que o patrimnio constitui um valor econmico e deve ser aproveitado para o desenvolvimento:
Os monumentos de interesse arqueolgico, histrico e artstico constituem tambm recursos econmicos da mesma forma
que as riquezas naturais do pas. [...] trata-se de mobilizar os esforos nacionais no sentido de procurar o melhor
aproveitamento dos recursos monumentais de que se disponha, como meio indireto de favorecer o desenvolvimento
econmico do pas.
No documento, o turismo apontado como a atividade que pode, mais claramente, relacionar patrimnio
e valor econmico, sem descaracterizar os bens a serem protegidos:
Os valores propriamente culturais no se desnaturalizam nem se comprometem ao vincular-se com os interesses
tursticos e, longe disso, a maior atrao exercida pelos monumentos e a fluncia crescente de visitantes contribuem
para afirmar a conscincia de sua importncia e significao nacionais.
Essa concepo encontrou campo frtil para se desenvolver no Brasil. O processo de urbanizao e
o modelo de desenvolvimento adotado nos anos 1960 e 1970 geraram novos desafios para a poltica de
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preservao, confrontada com o aprofundamento do capitalismo e uma presena cada vez mais forte do
mercado imobilirio nas transformaes urbanas. Segundo Fonseca (2005):
Na prtica do Sphan surgiram tenses agudas, especialmente na preservao das cidades histricas e nos centros
histricos das grandes cidades. [...] O carter marcantemente cultural do Sphan, nas suas trs primeiras dcadas,
revelava-se inadequado ao novo modelo de desenvolvimento.
No por acaso, as propostas alternativas orientao tradicional do Sphan surgiram por fora do rgo: o
Programa das Cidades Histricas e o Centro Nacional de Referncias Culturais. A recuperao dessas duas
iniciativas relevante para entender a proposta do Monumenta, posto que algumas das suas diretrizes tm
origem no pensamento nelas desenvolvido.
O PrOgrama das cidades Histricas (PcH)
O Programa Integrado de Reconstruo das Cidades Histricas foi criado em 1973 no Ministrio do
Planejamento, com a participao do Iphan e de outros ministrios, como desdobramento de dois encontros
de governadores realizados em Braslia (1970) e em Salvador (1971), que trataram da situao crtica do
patrimnio nacional (Santana, 1995).
Definido como um programa interministerial voltado exclusivamente para os estados do Nordeste,
o PCH objetivava a restaurao de monumentos histricos, condicionada ao aproveitamento para fins
tursticos, que deveria gerar as condies para sua manuteno. Em 1977, o programa foi estendido para
os estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Esprito Santo e, posteriormente, para todos os estados, com
o objetivo de apoiar estudos, projetos e investimentos, visando restaurao de monumentos e conjuntos
de valor histrico e artstico e preservao de expresses culturais significativas.
Das iniciativas inovadoras que emergiram nos anos 1970, o PCH o que se relaciona mais fortemente
com a concepo adotada pelo Programa Monumenta, em relao a trs aspectos principais: a estratgia
de implementao, baseada numa estrutura institucional descentralizada; a realizao de um grande
investimento com recursos federais, voltado para o restauro de monumentos nos ncleos histricos, visando
sua utilizao econmica (em especial o turismo); o apoio a atividades complementares, como a formao
de mo de obra qualificada.
Com o objetivo de estimular os entes federativos a atuar de forma estruturada na preservao do
patrimnio, o PCH implementou, nos anos 1970 e 1980, uma concepo de descentralizao, baseada
nos estados, que foi radicalizada pelo Monumenta no final dos anos 1990, priorizando o trabalho junto
aos municpios.
O PCH estimulou os estados a desenvolverem uma poltica e uma estrutura institucional voltadas para
a preservao. Os projetos a financiar deveriam ser elaborados pelos estados, constituindo uma condio
31Uma nova maneira de reabilitar ncleos histricos
prvia a formulao de um Programa Estadual de Restaurao e Preservao. Nesse programa, deveriam ser
indicados os monumentos a restaurar, o cronograma de execuo, os roteiros tursticos recomendados e as
fontes de recursos para fazer face contrapartida exigida, que devia corresponder, no mnimo, a 20% do
investimento necessrio. Em consequncia, surgiram rgos e legislao voltados proteo do patrimnio
em um grande nmero de estados, com uma ampliao significativa da conscincia patrimonial.
Para financiar o PCH foi criado o Fundo de Desenvolvimento de Programas Integrados (FDPI), alocado
no Ministrio do Planejamento, que coordenava o programa. Participaram ainda o Iphan e os ministrios da
Indstria e do Comrcio, atravs da Embratur, e do Interior, atravs da Sudene. A composio de ministrios
envolvidos mostra bem que se pretendia estabelecer uma forte relao entre patrimnio e desenvolvimento
econmico local, sobretudo no Nordeste.
A prioridade do PCH era a restaurao progressiva de monumentos e conjuntos situados em reas
economicamente debilitadas ou ameaadas de descaracterizao ou destruio pelo crescimento urbano
acelerado, por vizinhana industrial ou atividade de minerao, assim como pelo mau uso de um turismo
predatrio. As intervenes deveriam objetivar o aproveitamento de monumentos passveis de imediata
integrao em roteiros tursticos estabelecidos em funo de estudos previamente elaborados.
O programa financiou projetos que iam muito alm do restauro de monumentos, visando estimular as
atividades econmicas, tursticas e de pesquisa e formao nos ncleos histricos. Eram enquadrveis, por
exemplo: a qualificao de mo de obra; pesquisa, prospeco e cadastramento de bens de valor cultural;
desenvolvimento de tcnicas de preservao e restauro; agenciamento do entorno dos monumentos;
prospeco arqueolgica, arquitetnica e pesquisa documental da obra; instalao de equipamento fixo
necessrio utilizao da edificao; equipamento de proteo contra incndio; publicao de documento
sobre a experincia de restaurao especfica.
Em casos especiais, poderiam ser contemplados ainda: planos de agenciamento de ncleos ou reas
de valor cultural; instalao de equipamento de apoio turstico junto a monumentos, runas e vestgios
arqueolgicos; agenciamento e restaurao das edificaes que definem a ambientao do monumento;
implantao e ampliao de centros de restaurao e preservao, de desenvolvimento de tcnicas
de restaurao de bens mveis e imveis de valor cultural, de formao e treinamento de recursos
humanos em prospeco, pesquisa, projeto e execuo nas reas enumeradas acima e de aprimoramento
de tcnicas artesanais.
O programa buscava estimular os entes federativos subnacionais a se envolver com a preservao, criando
conselhos de preservao e legislao prpria de tombamento, incluindo a proteo s reas de valor cultural
nos Planos Diretores de Desenvolvimento Urbano e concedendo incentivos tributrios para o setor privado
restaurar e conservar imveis residenciais e comerciais de valor cultural. Propunha aos estados a implantao
ou complementao da infraestrutura fsica de acesso, servios pblicos e hospedagem nas cidades histricas.
32
O PCH procurava incentivar o desenvolvimento de um conjunto de aes a serem implementadas pelos
rgos participantes, como sensibilizar as comunidades para a proteo do patrimnio; orientar as entidades
pblicas e privadas a dar utilizao econmica s edificaes e espaos de valor cultural; motivar o empresariado
a participar de projetos que possibilitassem a utilizao dos stios e monumentos para fins tursticos.
Atuando em um grande nmero de municpios, o PCH conseguiu dar uso e destinao econmica a
vrios monumentos protegidos, que, dessa forma, puderam ter garantida sua manuteno sem exigir novos
investimentos. O programa executou no total 1.337 aes de diferentes naturezas, o que supera, em termos
quantitativos, as realizaes do Monumenta. Como exemplos, podem ser citadas a criao da Casa de
Cultura e Centro de Artesanato na Casa de Deteno em Recife, a instalao de hotis nos conventos do
Carmo de Salvador e de Cachoeira e a implantao do Centro de Tradies, assim como a restaurao
do Mercado Pblico, em Laranjeiras. Essas intervenes, que se encaixariam perfeitamente nos perfis de
projetos elaborados pelo Monumenta, possibilitaram um uso para os edifcios histricos.
Tanto do ponto de vista institucional quanto em relao aos projetos passveis de financiamento, o PCH
foi um esforo de reabilitao dos ncleos histricos comparvel ao Programa Monumenta, proposto 25
anos depois. Este, entretanto, avanou muito mais, ampliando o leque das intervenes, que passou a incluir,
alm do restauro de monumentos, obras em espaos pblicos e em imveis privados, objeto de anlise deste
livro. Ademais, a criao dos Fundos Municipais de Preservao, proposta no presente no PCH, muito
importante para a sustentabilidade da poltica local de preservao, garantindo aos municpios recursos
contnuos para aplicar nos ncleos histricos.
importante ressaltar ainda que, nos anos 1980, comeou a ser formulada uma proposta voltada para
a recuperao de imveis privados, iniciativa que antecedeu a realizao desse tipo de interveno pelo
Monumenta. Como desdobramento da experincia do PCH, criou-se em 1982, no mbito do Banco
Nacional da Habitao (BNH), o Programa de Recuperao de reas Habitacionais Deterioradas em
Ncleos Histricos, sobre o qual inexiste informao consolidada, sabendo-se que foi realizado um piloto
em Olinda (Santana, 1995).
Embora o elo de ligao entre esses programas talvez tenha se perdido, no existindo referncia ao
PCH no processo de formulao do Monumenta, h muitos pontos em comum entre as duas proposies.
O Monumenta, no entanto, pde incorporar uma viso do patrimnio cultural que supera a ideia do
patrimnio de pedra e cal ainda dominante no mbito do Iphan nos anos 1970 , considerando as
manifestaes e processos de produo popular como elementos fundamentais para a manuteno da
memria e o desenvolvimento econmico locais. Essa concepo, que no estava formulada quando o PCH
foi implementado, significa outro diferencial importante do Monumenta. Sua origem tambm remonta
segunda metade dos anos 1970, em particular, definio ampla de cultura proposta pelo Centro Nacional
de Referncia Cultural.
33Uma nova maneira de reabilitar ncleos histricos
O centrO naciOnal de referncia cultural (cnrc)
A segunda iniciativa relevante relacionada a uma nova orientao na poltica cultural brasileira foi a
criao, em 1975, do Centro Nacional de Referncia Cultural, cuja abrangncia extrapolou em muito a
questo da preservao do patrimnio. O CNRC nasceu no apenas fora do Iphan, mas em paralelo
prpria estrutura governamental, embora tenha sido fortemente apoiado pelo Ministrio da Indstria e
Comrcio e se relacionado com vrios ministrios e instituies governamentais.
Como afirma Zoy (2005), quando surgiu a ideia de um rgo que pesquisasse sobre a natureza do
bem cultural brasileiro, o grupo do CNRC no falava em patrimnio e em preservao, nem tampouco
em polticas pblicas. Na verdade, o CNRC buscava identificar processos culturais autnticos fazeres
e tecnologias geradas pelo homem simples que pudessem interagir na perspectiva de se integrar ao
desenvolvimento nacional.
Coordenado pelo designer Alosio Magalhes, que se tornou a partir de ento uma figura destacada na
poltica do patrimnio brasileira, esse centro ampliou a noo de bem cultural, incorporando outras formas
de manifestaes. Segundo Magalhes (1985), o objetivo do CNRC era traar um sistema referencial
bsico para a descrio e anlise da dinmica cultural brasileira, tal como caracterizada nas prticas das
diversas artes, cincias e tecnologias.
Magalhes apontava que, nos anos de 1950 e 1960, teriam ocorrido no pas um achatamento de valores,
uma homogeneizao da cultura. Enquanto a cultura oficial se referenciava num passado morto, museificado,
valores exgenos, da modernizao, da tecnologia e do mercado eram absorvidos de maneira acrtica.
Como ressalta Fonseca (2000), interpretando a viso do CNRC:
A reao a esse processo devia ser buscada na cultura, domnio do particular, da diversidade. Mas no na cultura
morta do patrimnio do passado, referncias concretas, porm estticas e distantes da nacionalidade. Era preciso buscar
as razes vivas da identidade nacional exatamente naqueles contextos e bens que o Sphan exclura de sua atividade,
por considerar estranhos aos critrios (histrico, artstico, de excepcionalidade) que presidiam os tombamentos.
Nas palavras de Magalhes (1985):
O Brasil ocupava, entre os pases, uma posio privilegiada em termos de perspectiva de desenvolvimento. Aqui
coexistiriam, naquele momento, o mundo avanado da tecnologia e da indstria e o mundo das tradies populares,
do fazer artesanal. No projeto do CNRC se pretendia cruzar esses dois mundos o recurso s mais modernas
tecnologias para recuperar e proteger as razes autnticas da nacionalidade com o objetivo de fornecer indicadores
para um desenvolvimento apropriado.
Segundo algumas interpretaes, Magalhes buscava desenvolver, a partir do estudo das prticas populares,
um design efetivamente nacional (Zoy, 2005).
34
Em um primeiro momento, o CNRC propunha desenvolver um banco de dados sobre a cultura brasileira,
no com a preocupao de colecionar objetos, mas de referenciar peculiaridades relevantes do que estivesse
sendo produzido em termos de cultura no pas. Pretendia-se captar a dinmica dos processos culturais
para dissemin-los no pas, fazendo com que uma manifestao cultural alimentasse outra. Desse modo,
acreditavam os formuladores do CNRC, seria possvel evitar a descaracterizao e a extino das culturas
locais e promover no pas um desenvolvimento efetivamente autnomo.
As referncias que o CNRC buscava apreender eram as da cultura em sua dinmica (produo, circulao
e consumo) e em sua relao com os contextos socioeconmicos. Para isso, realizou vrias pesquisas que
resgataram processos produtivos fortemente enraizados em contextos culturais especficos, como a tecelagem
manual, a cermica, o tranado indgena e o artesanato de reciclagem de pneus. Segundo Magalhes (1985),
foram objetos do trabalho do centro o trato da matria-prima, as formas de tecnologia pr-industrial, as
formas do fazer popular, a inveno de objetos utilitrios.
O projeto, complexo e ambicioso, mirava processos culturais que estavam fora da escala de valores
considerada pelo Iphan. Buscava, ainda, incluir os sujeitos que produziam esses bens culturais, tanto para
devolver os resultados das pesquisas s populaes interessadas, quanto para incorpor-los enquanto
parceiros para o desenvolvimento de novos produtos. (MEC, 1981)
Embora, como j foi dito, o CNRC no estivesse voltado, originalmente, para a questo patrimonial, sua
atuao trazia uma viso de bem cultural e identidade nacional que acabou tendo um forte desdobramento
na poltica federal de preservao.
Conforme Fonseca (2000):
Orientar um trabalho de preservao a partir da noo de referncia cultural [...] significa buscar formas de se
aproximar do ponto de vista dos sujeitos diretamente envolvidos com a dinmica da produo, circulao e consumo
dos bens culturais. Ou seja, significa, em ltima instncia, reconhecer-lhes o estatuto de legtimos detentores no
apenas de um saber-fazer, como tambm do destino de sua prpria cultura.
No cabe, no mbito deste texto, aprofundar a reflexo conceitual e a rica trajetria de investigao
e de proposio desenvolvidas pelo CNRC na segunda metade dos anos 1970, mas mostrar como as
ideias ento geradas chegaram ao sculo XXI influenciando algumas das aes realizadas no mbito do
Programa Monumenta.
Em 1979, deu-se a incorporao do CNRC e do PCH ao Iphan, que foi transformado em Secretaria
do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (Sphan), rgo normativo, sob a direo do prprio Alosio
Magalhes. Simultaneamente, criou-se um rgo executivo, a Fundao Nacional pr-Memria (FNpM),
marcando definitivamente uma nova fase na poltica federal de preservao. A articulao poltica de Magalhes
com autoridades influentes do governo federal, embora causasse desconfiana entre os que combatiam o regime
militar, trouxe um novo alento para o setor do patrimnio no breve perodo de sua gesto.
35Uma nova maneira de reabilitar ncleos histricos
As experincias de trabalho iniciadas no CNRC foram incorporadas FNpM e contriburam para a
elaborao do documento Diretrizes para Operacionalizao da Poltica Cultural do MEC, de 1981, e para
o reconhecimento dos bens de natureza imaterial como patrimnio cultural brasileiro, finalmente garantidos
pela Constituio de 1988. Em 2000, foi institudo, por decreto, o Registro de Bens Culturais de Natureza
Imaterial, consolidando o processo de ampliao do conceito de patrimnio cultural.
Esse novo olhar est presente em muitas das aes propostas pelo Monumenta, sobretudo nas
denominadas aes concorrentes. Atividades relacionadas com a educao e a valorizao do patrimnio
imaterial receberam recursos do programa em inmeras cidades. O Monumenta tambm apoiou e divulgou
processos tradicionais de criao e produo, como a ourivesaria da cidade de Natividade, no interior de
Tocantins, ou a peixada de Lima Campos, na cidade cearense de Ic. Essa linha de atuao, responsvel pela
recuperao de atividades econmicas relevantes tendo em vista sua preservao ou sua apropriao como
fonte de gerao de renda para as populaes locais , mostra que o Monumenta dialoga amplamente com
a viso do patrimnio cultural brasileiro introduzida por Alosio Magalhes.
da desestruturaO dOs rgOs PatrimOniais nO inciO dOs anOs 1990 PrOPOsta dO
mOnumenta
A sbita morte de Alosio Magalhes em 1982 no alterou substancialmente a orientao que ele havia
formulado para a Sphan e a FNpM. Apesar da crise econmica e perda da capacidade de investimento do
governo federal, essa estrutura institucional se manteve intacta at o final dos anos 1980. Nesse perodo,
vrias instituies culturais como a Cinemateca Brasileira, o Stio Santo Antnio da Bica (de Burle
Marx) e diversos museus incorporaram-se FNpM e, ao longo da dcada, inmeros stios brasileiros,
como a cidade de Olinda, o centro histrico de Salvador, o Santurio de Bom Jesus de Matosinhos, o
Plano Piloto de Braslia e o Parque Nacional de Iguau, foram inscritos como Patrimnio Cultural da
Humanidade pela Unesco.
Com a redemocratizao, em 1985, criou-se o Ministrio da Cultura (MinC), que tinha em sua estrutura
a Sphan, o que, em tese, abriria novas perspectivas de articulao entre a poltica cultural e a preservao do
patrimnio, e se manteve a FNpM. Porm, o vento renovador que ampliou os horizontes do setor na dcada
anterior foi perdendo o mpeto, num momento em que a capacidade de interveno concreta do Estado
brasileiro se reduzia em decorrncia da crise fiscal.
A descentralizao proposta nos anos 1970, que promoveu a disseminao de rgos de preservao nos
estados e principais municpios, consolidou-se, mas as aes se voltaram, sobretudo, para a viabilizao da
relao entre o patrimnio histrico e o desenvolvimento do turismo, salvo poucas experincias isoladas.
Entre estas, vale citar as realizadas em So Paulo e no Rio de Janeiro, que geraram referncias importantes,
desenvolvendo novos conceitos e posturas relacionadas ao patrimnio cultural.
36
A experincia realizada em So Paulo, durante a administrao Luiza Erundina (1989-1992), ganhou
relevncia por desenvolver o conceito da cidadania cultural e ampliar a viso do patrimnio de pedra e
cal, valorizando a memria oral e o patrimnio imaterial.
Tambm fortemente relacionada a conceitos desenvolvidos pelo Monumenta, a experincia na cidade
do Rio de Janeiro, que ocorreu a partir de meados dos anos 1980, destacou-se como um trabalho pioneiro
de articulao entre a preservao do patrimnio cultural e o desenvolvimento urbano. Implementada
pelo Escritrio Tcnico do Corredor Cultural, ligado prefeitura municipal, a proposta carioca partia
do pressuposto de que a participao efetiva da comunidade parte fundamental no processo de
planejamento das aes do Corredor Cultural (Instituto Municipal de Arte e Cultura, 1985).
Nascido da delimitao de um amplo permetro de proteo ao patrimnio da cidade, o Corredor
Cultural visava criar parmetros que permitissem compatibilizar a recuperao, reforma ou construo
de imveis na rea delimitada com a preservao arquitetnica e urbanstica do centro histrico, na regio
de interesse cultural.
O programa foi fundamental para o reconhecimento e valorizao do patrimnio cultural da cidade
e para sua reabilitao, sem que isso significasse o congelamento imobilirio. Ao contrrio, por meio de
uma cartilha e da prestao de assistncia, o Escritrio Tcnico orientava proprietrios e outros agentes
na elaborao de projetos e na busca de alternativas tcnicas na soluo de seus problemas de obras,
elaborao de letreiros, toldos etc. [... visando] esclarecer a populao sobre a importncia de conservar e
manter o expressivo acervo arquitetnico preservado do centro da cidade (Instituto Municipal de Arte
e Cultura, 1985).
Enquanto essas experincias locais mostravam-se inovadoras, no nvel nacional, durante o governo
Collor (1990-1992), chegou-se ao fundo do poo, com o desmonte do setor de cultura do governo
federal: foram extintos a Sphan, seu Conselho Consultivo e a FNpM. O Instituto Brasileiro do Patrimnio
Cultural (IBPC), que os substituiu, ficou reduzido ao corpo tcnico estvel do histrico Sphan, que
resistiu mantendo vivo um dos setores mais antigos do governo federal.
A partir de meados dos anos 1990, a rea do patrimnio comeou a se reestruturar, com a recomposio
do Conselho Consultivo, que ganhou uma representao mais ampla da sociedade, a simblica recuperao
da denominao tradicional do rgo de preservao (Iphan) e a abertura de novas perspectivas de
interveno. Foi nesse contexto que, em 1995, comeou a ser concebido o Programa Monumenta, com
base em uma proposta trazida pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
Antes de apresentar o processo de formulao do novo programa, necessrio recuperar a situao
em que se encontravam os ncleos histricos e a poltica cultural nesse momento crucial em que o
Monumenta foi gestado.
O Iphan calculou que, na segunda metade dos anos 1990, dos oitocentos monumentos nacionais
tombados individualmente (edifcios histricos), somente 20% estavam em boas condies e 5%
37Uma nova maneira de reabilitar ncleos histricos
precisando de pequenos reparos. Os demais apresentavam graves problemas: 10% encontravam-se em
runas, 40% em ms condies e 25% com modificaes inadequadas. A deteriorao sinalizava uma
questo central: a utilizao da maioria dos edifcios histricos no justificaria os gastos de manuteno
necessrios preservao de suas caractersticas histricas e artsticas. Em agosto de 1999, apenas 32%
dos monumentos eram utilizados de forma compatvel com a preservao, enquanto 45% estavam
destinados a usos que os deterioravam, 20% parcialmente ocupados e 3% abandonados.
Segundo Pimentel e Peixoto (2009), os problemas de preservao do patrimnio no perodo que
antecedeu a implementao do programa eram de cinco naturezas: uso inadequado dos edifcios;
modificaes incompatveis com a preservao; desconhecimento pela maioria dos empreiteiros e artesos
das tcnicas apropriadas para trabalhar com edifcios e materiais histricos; precrio conhecimento da
populao brasileira sobre a importncia da proteo; ineficincia do setor pblico para tratar do assunto.
De acordo com essa anlise, a maioria dos edifcios histricos era funcionalmente obsoleta: no
oferecia atrativos para as classes mdia e alta; a ausncia de estacionamento dificultava a instalao de
pontos comerciais; a iluminao era deficiente; a segurana era precria e o acesso, difcil. Nas palavras de
Pimentel e Peixoto (2009):
Conventos eram transformados em depsitos, edifcios e manses eram subdivididos e alugados a locatrios de baixa
renda ou abandonados, igrejas no recebiam mais fiis. As reas urbanas onde estavam localizados estes edifcios
histricos se deterioram e tornaram-se cada vez menos seguras.
Outro aspecto que dificultava uma preservao sustentvel era a ausncia de conscincia patrimonial,
tanto por parte dos proprietrios de imveis na rea protegida como de autoridades locais, empresrios
e mo de obra da construo civil. A populao, de uma maneira geral, revelava falta de conhecimento da
histria e da importncia da manuteno e preservao do patrimnio imvel, conforme se verificou por
meio de pesquisa, de mbito nacional, realizada pelo MinC em 15 regies, 21 cidades e 1800 famlias. Na
populao de baixa renda e escolaridade, o nvel de conhecimento era mnimo.
Muitos proprietrios faziam modificaes incompatveis com a preservao do patrimnio, danificando
ou afetando suas caractersticas originais. Avaliou-se que a maior parte da deteriorao estava relacionada
ao desconhecimento da importncia histrica do patrimnio. Esse problema era agravado pela escassez
de mo de obra especializada e a falta de conhecimentos tcnicos por parte da maioria dos empreiteiros
e artesos. Mesmo quando a inteno preservar, a falta de conhecimento das tcnicas para trabalhar
com edifcios e materiais histricos trouxe resultados danosos preservao (Pimentel e Peixoto, 2009).
Finalmente, constatou-se a ineficincia do setor pblico na manuteno do patrimnio. O pas
praticamente no estava investindo recursos de origem oramentria em preservao e prevalecia uma poltica
cultural baseada em incentivos tributrios, realizada a partir da Lei Federal 8.313/1991, a chamada Lei
Rouanet. Esse mecanismo oferece incentivo s empresas que investirem em cultura, com uma elevada deduo
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dos impostos federais; estados e municpios adotaram ainda incentivos fiscais adicionais. O objetivo era
aumentar os investimentos e promover a manuteno e o uso de edifcios histricos.
A adoo dos incentivos fiscais federais resultou em um aumento de patrocnio empresarial de 15 milhes
de dlares, em 1994, para 197 milhes de dlares, em 1997. No entanto, a maior parte desses recursos
foi destinada a atividades culturais geralmente desvinculadas do investimento no patrimnio imvel. O
incentivo dos demais entes federativos, por sua vez, nem sempre vinculou-se manuteno adequada do
imvel. Assim, embora esse sistema tenha despertado uma maior conscincia da importncia do patrimnio
cultural as empresas privadas passaram a fazer publicidade de seus investimentos no setor , colocava-se
em dvida se este gasto indireto de fundos tributrios seria mais eficiente que a alocao oramentria
direta (Pimentel e Peixoto, 2009).
A formulao do Programa Monumenta, no contexto de forte conteno fiscal que marcou a segunda
metade dos anos 1990, representou a possibilidade de se ampliar fortemente os investimentos pblicos na
preservao e recuperao do patrimnio histrico e artstico nacional, cuja situao era, como vimos, de
crescente deteriorao. O governo brasileiro, ao firmar o acordo com o BID para tomar um emprstimo,
comprometeu-se com uma contrapartida que garantiu aportes de recursos oramentrios para o patrimnio
que, desde os anos 1970, no ocorriam no pas.
O programa, entretanto, foi proposto no mbito de uma viso que pressupunha uma reduo do papel
do Estado, como se essa interveno pudesse ser o ponto final da participao do governo na reabilitao
do patrimnio. No por acaso, o Regulamento Operativo do Programa estabelece que ele alcanar seus
fins quando as reas de Projeto mantiverem suas caractersticas restauradas sem a necessidade de recursos
federais adicionais para sua conservao.
As bases do Programa Monumenta
O Programa Monumenta comeou a ser formulado em 1995, quando o Ministrio da Cultura e a
direo do Banco Interamericano de Desenvolvimento iniciaram entendimentos para viabilizar um programa
de preservao do patrimnio cultural do pas.
Como j mencionado, a ideia original do Monumenta, trazida pelo BID, foi inspirada em experincia
realizada em Quito, capital do Equador. Essa cidade, em 1987, sofreu um abalo ssmico que danificou
gravemente seu centro histrico, inscrito como Patrimnio da Humanidade. A reconstruo de Quito,
aps o terremoto, foi realizada a partir da criao de um rgo vinculado ao municpio e com recursos de
diferentes fontes, o Fondo de Salvamento del Patrimonio Cultural.
Dada a prpria natureza do processo de reconstruo de uma cidade abalada por um terremoto, a
ao desenvolvida pelo Fondo no se limitou ao restauro de monumentos como era comum nas aes
relacionadas preservao patrimonial , mas envolveu uma amplo leque de intervenes: qualificao
39Uma nova maneira de reabilitar ncleos histricos
de espaos pblicos (praas, parques, caladas e ruas); melhorias na infraestrutura urbana e mobilidade
(sinalizao urbana, iluminao, recuperao das baterias sanitrias, reordenamento do trnsito,
melhoria no sistema de transporte coletivo e implantao de estacionamentos); projetos integrados em
reas concentradas; recuperao de reas habitacionais; restauraes e reciclagem de edifcios (Ilustre
Municpio de Quito, 1994).
O resultado das intervenes do Fondo de Salvamento foi considerado excelente, levando o BID a pensar
em possveis desdobramentos. Em 1995, o banco, que participou do processo de reconstruo da capital
equatoriana de uma maneira ampla, props ao Ministrio da Cultura o desenvolvimento de um programa
no Brasil voltado especificamente s cidades histricas, a ser realizado em conjunto com os municpios. A
id
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