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Raymond Koester. Documento parcial.
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7/18/2019 Introdução ao Novo Testamento
http://slidepdf.com/reader/full/introducao-ao-novo-testamento-56d7248cbbe82 1/28
H EL/vkUT KOESTER
INTRODUÇÃO
AO NOVO TE5TA/v~ENTO
VOLUN~E 2
H
I S T Ó R I A E L I T E R A T U R A
DO CRIST IANIS /v ~O PR I /v ~ IT IVO
PAULUS
7/18/2019 Introdução ao Novo Testamento
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Cãmara Brasileira do Livro, Brasil)
Koester, Helmut, 1926-
Introdução ao NovoTestamento, volume 2:
história e literatura do cristianismo primitivo/Helmut Koester;
[tradução Euclides Luiz Calloni]. -- São Paulo: Pautus, 2005.
Titulo original: Introduction to the New Testament.
Biblioc~ra~a.
ISBN 85-3,1L9-2329-9
1. Bíblia. N.T. - Histõria de acontecimentos contemporãneos
2. Bíblia. N.T. - I. Titulo. li.Título: História e literatura
do cristianismo primitivo.
054018
CDD -225.61
[ndices para catálogo sistemático:
1. Novo Testamento: I ntroduçáo 225.61
)ldede Estaduel de Londrina
Istema de Bibliotecas
II/lllllllllllllllll/llll
000219082
Título original
Introduction to the New Testament:
History and Literature of the Early Christianity
© Walter de Gruyter & Co., 1995, Berlin
Publicado por Aldine Gruyter,
uma divisáo da Walter de Gruyter, Inc.,
200 San MiU River Road, Haw Thome, NY 10532, USA
ISBN 3-11-014592-4
Direção editorial
Paulo Bazoglía
Tradução
Euclides Luiz Calloni
Editoração
PAULUS
Impressão e acabamento
PAULUS
© PAULUS - 2005
Rua Francisco Cruz, 229.04117-091 São Paulo (Brasil)
Fax (1 ] ) 5579-3627 .Tel. (11) 5084-306ó
www.paulus.com.br editorial@paulus.com.br
[~,RN g5-349-2329-9
À MEMÓRIA
DO MEU PROFESSOR RUDOLF BULTMANN
7/18/2019 Introdução ao Novo Testamento
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§ 7
FONTES PARA A H ISTÓRIA
DO CRISTIANISMO PRIMITIVO
1 .
EXAME DAS FONTES E DE SUAS TRADIÇÕES
(a) Formação dos Primeiros Escritos Cristãos
Os primeiros escritos cristãos, inclusive todos os documentos que compõem
o Novo Testamento, são fontes literárias muito problemáticas para a compreen-
são do início do cristianismo, É importante saber por que os materiais escritos
preservados desse período fornecem apenas informações muito vagas. Durante
Bibliografia para §7:Texto
Barbara and Kurt Aland, Johannes Karavidopoulos, Cario M. Martini, and Bruce M. Metzger (eds.), Nestle-Aland:
Novum Testamentum Graece (27th ed.; Stuttgart: Deutsche Bibelgesells¢haft, 1994).
Wayne A. Meeks (ed.), The HarperCollins Study Bible: New Revised Standard Version. With the Apocryphol/Deutero-
canonical Books (San Francisco: HarperCoUins, 1993).
Bibliografia para §7: Ferramentas
Walter Bauer, GriechischKleuts«hes W6rterbuch zu den Schriften des Neuen Testaments und der fr(ihchristlicheñ "
Literotur (6th ed. by Kurt and Barbara Aland; Berlin;de Gruyter, 1988).
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grlch and F.W. Danker (Chicago: University of Chicago Press, 1979).
Concordance to the Novum Testamentum Graece of Nestle-Aland, 26th Edition, and to the Greek New Testoment, 3d
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Sruce M. Metzger (ed.), NRSVExhaustive'Concordonce(Nashville, TN: Nelson, 1991 ).
Paul J. Achtemeier (ed.), Harper's Bible Dictionory (rev. ed.; San Fran¢is¢o: HarperCollins, 1996).
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Daniel H. Harrington, The
New Testament:A Bibliogmphy
(Theologi¢al and Biblical Resources 2;Wilmington, DE:
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Joseph A. Fitzmyer, An
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(Subsidia Bíblica 3; rev. ed.; Rome: Bibli-
cal Institute Press, 1981 ).
Otto Kaiser and Werner Georg Kümmel, Exegetical Method:A 5tudent's Hondbook (rev. ed.; New York: Seabury,
1981);
Bibliografia para §7: Pesquisas
Martin Dibelius, A Fresh Approoch to the New Testament and Ear/y Christian Literature (New Yorlc Scribner's,
1936).
Phillpp Vielhauer, Geschichte der urchristlichen Uteratur (GLB; 2d ed.; 8erlin: de Gtuyter, 1978).
Werner Georg Kümmel, Introduction to the NewTestament (Nashville, TN: Abingdon, 1975).
Bibliografia para §7.1
Hans von Campenhausen, The Forrnation ofthe Chrlstlan Bible (Philadelphia: Fortress, 1972).
Paul Wendland, Die urchristlichen Literaturformen (HNT 1/3; 2d and 3d eds.;Tübingen: Mohr/Siebeck, 1912).
Helmut Koester,'Apocryphal and Canonical Gospels,» HTR 73 (1980) 105-30.
Idem,'Literature, Early Crl~lan.»lDBSup (1976) 551-56.
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2 F O N TE S PA R A A H I S TÓ R I A D O C R I S T I A N I S M O P R I M I T I V O
§ 7
os dois primeiros séculos, a única Sagrada Escritura que o¿ cristãos aceitavam
era a Bíblia de Israel, a "Lei e os Profetas», que só bem mais tarde foi chamada
de Antigo Testamento. Essa Bíblia era usada principalmente em sua tradução
grega, a versão dos Setenta, que fora feita pelos judeus de Alexandria (§5.3b).
É a ela que os primeiros cristãos se referiam quando mencionavam a Escdtura"
de modo geral ou quando empregavam a fórmula de citação: "Está escrito".
Paralelamente a essa "Escritura", havia desde o começo uma tradição oral,
transmitida sob a autoridade do "Scnhor"~Essa segunda autoridade compreendia
as palavras de lesus e histórias curtas sobre ele. As palavras do Senhor não sé
restringiam aos ditos de Jesus de Nazaré, mas incluíam também declarações do
Senhor ressuscitado (§7.4a-c). Algumas tradições ligadas a essa autoridade po-
dem ter sido transmitidas em forma escrita - os primeiros missionários cristãos
e líderes de igrejas não eram absolutamente pessoas iletradas que não sabiam ler
e escrever. A cultura dos períodos helenístico e romano era até certo ponto uma
cultura literária. Isso certamente sé aplica ao povo de Israel,_dc modo especial à
sua sinagoga de língua grega da diáspora judaica, que sé tomou a matriz para a
formação do cristianismo primitivo. Entretanto, tudo o que era escrito ainda razia
parte do âmbito da comunicação oral na pregação, na catequese e na celebração
em comum, pois destinava-se à leitura em voz alta, voltando assim ao meio de
comunicação da expressão oral - «literatura oral". Por isso, os primeiros escritos
cristãos eram coleções de materiais orais escritos para uso eclesiástico, como as
coleções das palavras de Jesus na forma de catecismos e diretrizes da igreja, ou
séries de parábolas e histórias de milagres. Algumas dessas coleçfes foram mais
tarde incluídas em escritos mais extensos, como, por exemplo, as parábolas ini-
cialmente escritas em aramaico e depois traduzidas para o grego e introduzidas
no Evangelho de Marcos (cap. 4) ou as primciras orações eucarísticas diretrizes
da igreja que entraram na composição da Didaqué (§ 10. lc).
Os documentos escritos mais antigos preservados, porém, não são materiais
sobre Jesus, mas as cartas de Paulo; todas escritas na década de 50 do século I d.C.
Essas cartas são a nossa fonte mais antiga e mais direta para o desenvolvimento
das primeiras comunidades cristãs. Elas não são escritos ocasionais apenas, nem
Bibliografia para §7a
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Pseudepigrapha / (Entretiens sur I'antiquit~ classique 18; Geneva:Vandoeuvres, 1972).
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Stanley K. Stowers, Letter Writing in Greco-Roman Antlquity (LEQ Philadelp hia: Westminster, 1986).
§ 7.1 a
EXAME DAS FONTES E DE SUAS TRADIÇC'SES
3
são redi~das para comunicar verdades reli~osas. Essas cartas s~o instrumentos
de política eclesiástica que op«avam a par do veículo político e propagandístico
da comunicação oral durante a ausência do apÓstolo, promovendo a organi~ção
contínua e a ma'nutenção das comunidades cristãs que haviam sido fundadas por
Paulo. Embora essas cartas sejam elaboradas com base em modelos judaicos e
~r greco-romanos, sua retórica é inspirada pelas exigências de situações paulinas
~( específicas e devem ser entendidas no contexto imediato das necessidades e
/i problemas das comunidades que ele fundara.
A partir das últimas décadas do século I d.C., isto é, na terceira geração
do povo cristão, a adoção do meio escrito para a comunicação e transmissão de
tradições antigas se tomou mais evidente, o que não significa que a transmissão
oral deixasse de existir. Numa data já adiantada, aproximadamente 130 d.C.,
Pápias de Hierápolis ainda clava preferência não aos evangelhos escritos, mas à
tradição oral que havia sido transmitida pelos sucessores dos apóstolos. Por outro
lado, o instrumento da política da igreja criado por Paulo exerceu forte impacto
sobre o período seguinte, de modo que o uso do meio literário da carta com
objetivos de propaganda e de organização da igreja se tomou bastante popular.
Além disso, formas escritas das tradições sobre ]esus, usadas como fundamen-
tos de estruturação da igreja e como meio de propagação da-mensagem cristã,
eram em muitos casos mais apropriadas do que materiais orais - não, porém,
em virtude de uma cortfiabilidade maior em materiais escritos. Profetas cristãos
ainda anunciaram a palavra do Senhor com autoridade, ao passo que autores
de livros às vezes tratavam seus materiais e fontes tradicionais com um grau de
liberdade surpreendente. A principal razão para o uso do meio escrito era cul-
tural: na cultura da época, o público letrado esperava naturalmente informações
escritas e livros.
Para produzir essa literatura, os cristãos podiam recorrer às cartas de Paulo
como modelo. Foi portanto o gênero da carta paulina que os alunos de Paulo
imitaram nas assim chamadas epístolas deuteropaulinas: 2 Tessalonicenses, Co-
lossenses, Efésios, as Epístolas Pastorais (1 e 2 T'maóteo e Tito), Laodicenses e 5
Coríntios. Todos esses escritos não somente imitam o esquema da carta paulina,
mas também atribuem o seu conteúdo à autoridade do apóstolo. Em pouco
tempo outros também começaram a escrever sob seus próprios nomes ou em
nome de outros apóstolos, mas ainda seguindo a estrutura das cartas originais
de Paulo. 1 Clemente, escrita de Roma para Corinto no fim do século I, tem o
obietivo de conseguir o que Paulo já fizera anteriormente, ou seja, motivar os
coríntios a resolver suas desavenças internas. O bispo Início de Antioquia, na
viagem para o seu martírio em Roma no começo do século II, voltou a adotar
esse modelo na série de cartas que escreveu para comunidades da Ásia Menor.
A carta paulina também influenciou os autores das duas cartas escritas com o
nome do apóstolo Pedro e talvez das três epístolas joaninas. O profeta loão, ao
escrever o Livro do Apocalipse em seu exílio em Patmos, incluiu nele sete cartas
a igrejas situadas na Ásia Menor, procurando aconselhar essas comunidades con-
turbadas. Depois da metade do século I2, o bispo Dionísio de Corinto escreveu
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" 4 F O N T E S P A R A A H I S T Ó R I A D O C R I S T I A N I S b A O PR I M I T I V O
§ 7
cartas a várias comunidades na Ásia Menor e em Creta para adverti-las sobre
formas de ascetismo heréticas.
.... Em todos esses casos, é evidente que a carta se toruara o principal instru-
mento político com que líderes das comunidades cristãs procuravam moldar as
políticas das congregações cristãs e estruturar, pelo menos até certo ponto, uma
organização da igreja que abrangesse o mundo todo. Existem amplas evidéncias
de que esse procedimento continuou durante o século III. A maior parte da
correspondência de Clemente de Alexa~dria, do bispo Irineu de Lião e do bispo
Dionísio de Alexandria se perdeu ou está preservada apenas em fragmentos. As
cartas do bispo Cipriano de Cartago (metade do século III), porém, chegaram
até nós numa coleção mais completa. Vistas como um todo, as cartas do período
inicial do cristianismo - sejam elas "autênticas» ou "pseudo-epigráíicas" - s~o as
fontes mais importantes da história cristã primitiva.
O seguinte corpus literário importante inclui coleções ou compilações
de vários materiais que convergem para a pessoa de Cristo e que começaram
a ser chamados de "evangelhos" antes da metadedo século II. Eles são fontes
de suma importância, mas apresentam obstáculos consideráveis ao historiador
que quer utilizá-los como informação sobre Jesus de Nazaré e sobre a história
do cristianismo. Adiante (§7.4a), demonstrar-se-á mais detalhadamente que a
tradição inserida nesses evangelhos não começa com ~3formações históricas,
mas com proclamação, confissão, legenda, instrução e oração. Os documentos
escritos mais antigos desse tipo - que não estão preservados, mas podem ser
reconstruídos por meio da análise crítica dos escritos evangélicos posteriores
- foram versões escritas simples de tradições sobre Jesus em várias formas que
correspondiam às necessidades litúrgicas, catequéticas e teológicas das respectivas
igrejas. Com o tempo, esses materiais foram incorporados em composições mais
extensas, cujos modelos literários baseavam-se em vários géneros de literatura
judaica e helenística existentes.~¿ks coleções_de histórias de milagres de ~esus têm
estreita relação com o género da aretologia (§3.4d) e revelam uma cristologia-
que compreende Jesus como protótipo do operador de milagres e do exorcista.
ColeçõeS dos ditog de lesus são influenciadas pelo gênero da literatura sapiencial
judaica e correspondem a uma orientação cristológica, para a qual Jesus é um
mestre de sabedoria ou a manifestação terrena da Sabedoria celest~Um exem-plo remanescente desse gênero .literário está preservado no Evangelho de Tomé,
descoberto entre os escritos da Bibliofeca de Nag Hammadi. Outra coleção de
ditos, o assim chamado Evangelho.-de Ditos Sinótic0s, pode ser reconstruída
com ba~~-n0s-evangelhos canônicos de Mateus e Lucas. A narrativã da-paixão
evoluiu para a celebração d a:~eucaristia com o apoio-dos livros proféticos de
Israel e dos Salmos, que falàm do.servo sofredor de Deus e do justo persegui~
Existe também uma extensa lit~~tura em que Jesus aparece como o revelador
celeste; o escrito mais antigo desse gênero é o Livro do Apocalipse de João. Por
influência da literatura apocalgpti¿'a judaica, inúmeros apocalipses cristãos foram
produzidos; o primeiro deles é o pequeno livro conhecido como "Apocalipse' -:-
Sinótico', assimilado pelo Evangelho de Marcos (Marcos 13; cf. Mateus 24-25).
§ 7 . 1 a E X A M E D A S F O N T E S E D E S U A S T R A D I Ç Õ E S
5
Um pouco mais tarde apareceram o Apocalipse de Pedro, o Pastor de Hermas
e os acréscimos aos livros apocalípticos judaicos conhecidos como 5
Esdras e
6 Esdras. A rica literatura de revelação gnóstica está estreitamente relacionada
e agora totalmente acessível com a descoberta e publicação da Biblioteca de Nag
Hammadi (§lO.5b).
Os Evangelhos do Novo Testamento são produto dessas comunidades cristãs
que se tornaram a matriz para as igrejas ortodoxas posteriores. São composições
em que tradições orais e documentos antigos foram inseridos em escritos que
tomaram comoponto de partida o querigma da cruz da ressurreição de Jesus.
Se, por um lado, a narrativa da paixão é essencial para o surgimento da litera-
tura evangélica, por outro, o modelo literário da biografia (§3.4d) influenciou
de modo crescente seu desenvolvimento posterior. Além dos quatro evangelhos
canônicos, vários fragmentos de evangelhos apócrifos estão preservados (o
Evangelho de Pedro e os Evangelhos Judaico-Cristãos), mas inúmeros esc¢it0s
apócrifos denominados "Evangelho" (Evangelho da Verdade, Evangelho de Filipe )
não pertencem a essa categoria; estes são meditações teológicas ou tratados. O
recurso aos evangelhos para informações históricas sobre Jesus é problemático;
no entanto, eles são fontes importantes para o estudo das primeiras comunida-
des cristãs, que produziram e deram forma aos materiais e tradições que foram
usados pelos autores dos vários evangelhos.
Igualmente problemático é o valor histórico dos Aros dos Apóstolos. Embora
a tentativa de escrever história possa ter exercido certa influência na composição
do Livro dos Atos canônico, predominam interesses teológicos e, além disso,
materiais e elementos aretológicos do romance he enístico. (narrativa de viagem
e história do naufrágio; §3.4c). O modelo do romance helenístico é ainda mais
evidente na produção de inúmeros atos dos apóstolos apócrifos.
Escritos que são essencialmente tratados teológicos apareceram apenas
aos poucos. Entre as cartas de Paulo, ã Epístola aos Ronãanos foi às vezes in-
cluída nessa categoria, mas sua função como instrumento de política da igreja
continua sendo sua característica principal, apesar da influência claramente
visí~¢el da literatura apoiiagética judaica, Um tratado teológico de fato aparece
pela primeira vez várias décadás depois de Paulo, naEpist-ola aos Hebreus; com
sua interpretação alegórica de pã~sagens da Escritura, ela pode ser comparada
aos tratados de H on-de:Al~xandda (§5.3f). Entre os escritos não-canônicos, a
Epístola de Barnab~ pertence a essa categoria. A produção ulterior de tratados
teológicos tem vínculos~ estreitos com o surgimento da literatura apologética
cristã, que continua a tradição dos escritos apologéticos judaicos (§5.3e), mas
também revela~onfätos com o gênero filosófico grego da literatura protréptica.
O credo cristão é u_na elemento novo nessa literatura e lhe empresta sua estrutura
básica; cada í~irm~ç~o do credo recebe uma prova escritural. O tratamento de
uma-declaração especffica do credo, sobre a ressurreição, por exemplo, também
podia ser expandidffe transformar-se num tratado sobre esse tema. Alguns exem-
plos dessa literatura apologética e teológica procedem do século II; escritores do
século III, porém, como Orígenes e Tertuliano, empregaram esse gênero literário
7/18/2019 Introdução ao Novo Testamento
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0 FON TES PARA A H ISTÓRI A DO CRI ST IAN ISMO PR IMI TI VO § 7
mais extensamente. Os apologistas do século II usaram esse esquema apologético
também em escritos polêmicos
(Diálogo com Trifão, o Judeu,
de lustino Mártir,
e Adversus Haereses, de Irineu).
Muito poucos escritos documentam a vida das igrejas cristãs e de seus ser-
viços de culto. Vários deles parecem ser publicações de sermões. 2 Clemente e
talvez também o Evangelho da Verdade, da Biblioteca de Nag Hammadi, poderiam
representar essa vertente. A Homilia de Páscoa, do bispo Melitão de Sardes, foi
composta quase no fim do século II. Relatos de martírios redigidos como cartas
circulares também eram escritos para ser lidos em serviços cultuais. Vários desses
relatos são do século II: o
Martírio de Poli«arpo, o
martírio de
]ustino e Seus
Companheiros, o relato dos Mártires de Lião e Viena e os Aros dos Mártires de
Scili. Finalmente, as diretrizes da igreja devem ser mencionadas aqui. Dessas,
somente a Doutrina dos Apóstolos (Didaqué) pode ser datada com certeza ao
período inicial do cristianismo; a
Didascália
(siríaca), a
Tradição Apostólica
de
Hipólito e Cânones Apostólicos foram escritos depois de 200 d.C.
(b) Cânon do Novo Testamento
(1) O Senhor e as Cartas de Paulo. Durante as primeiras décadas depois da
morte de ]esus, os apóstolos se consideraram imbuídos do espírito de Deus para
pro.clámar a nova mensagem da salvação de Israel tanto para os judeus como
para os gentios, Essa proclamação era aprovada pelas profecias de Israel e pelas
aparições do Cristo ressuscitado, o Senhor. "O Senhor" era portanto a principal
autoridade que assegurava a validade de sua pregação e a fidedignidade da tra-
dição. Em questões controversas, o pregador podia sempre recorrer ao "que o
Senhor havia dito" ou consultar os profetas sobre o que "o Senhor" lhes havia
revelado. Naturalmente, como Escritura, «a Lei e os Profetas" podiam ser toma-
dos como autoridades, e além deles a autorização podia também simplesmente
proceder da posse do Espírito Santo ou derivar da "Natureza", da moralidade
geral ou ainda do julgamento racional. Alguns começaram a recõrrer à autoridade
de apóstolos nomeados individualmente apenas quando a primeira geração de
apóstolos completou seus dias. A primeira evidência disso é o testemunho das
comunidades paulinas, que em pouco tempo começaram a coletar e a distribuir
as cartas de Paulo e a produzir novas cartas com o nome do apõstolo, por fim
integrando-as numa coleção que se tornou o corpus paulino. Conjetura-se que a
Bibliografia
para §7.1 b
Lee M.McDonald,
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§ 7.1 b EXAME DAS FONTES E DE SUAS TRADIÇÕES
7
Epístola aos Efésios estava associada à primeira coletânea dessas cartas, tendo
sido es«fita como carta representativa para ela. Seja como for, temos evidências
claras de que a autoridade de um apóstolo em particular, especificamente Paulo,
instituiu uma autoridade especial para os escritos que tiveram origem no contexto
anterior da atividade desse apóstolo.
(2) Pedro, Tomé e ]oão. Infelizmente, não existem fontes que poderiam
fornecer idéias diretas, como no caso de Paulo, sobre o ministério e o raio de
ação dos outros apóstolos. Chama a atenção, porém, o fato de que em várias
áreas geográficas limitadas estão preservadas tradições e escritos com o nome
de um determinado apóstolo, a quem esses documentos atribuem autoridade.
Inúmeros escritos preservados procedentes da Síria ocidental teriam sído escritos
por Pedro: o Evangelho de Pedro, o Apocalipse de Pedro e o Querigma de Pedro
(e, se não for idêntica a esse escrito, a Do«trina Petri), e também uma fonte das
Pseudoclementinas, conhecida como as Kerygmata Petrou. Afinal, sabemos que
Pedro esteve na cidade de Antioquia, na Síria, fato confirmado pela carta de Pau-
lo aos Gálatas (G1 2,11-14). É portanto bastante provável que os escritos mais
recentes sob a autoridade de Pedro derivem de uma tradição petrina que surgiu
da atividade missionária efetiva do apóstolo nessa área geográfica. Confirma
esse fato o Evangelho de Mateus, certamente um escrito da Síria ocidental, que
contém as famosas palavras de ]esus a Pedro designando-o como a pedra sobre
a qual será edificada a sua igreja (Mt 16,17-19).
A tradição de Tomé, oriunda da Síria oriental, resultou de um padrão se-
melhante, embora seja impossível provar que a lenda da jornada missionária de
Tomé para o leste, inclusive até a própria ~ndia, assente-se sobre bases históricas.
A única coisa certa é a origem sírio-oriental dos Aros de Tomé, escritos no início
do século III. Muito provavelmente, incluem-se aqui dois outros escritos que
aparecem sob autoridade de Tomé na Biblioteca de Nag Hammadi: o
Evangelho
de Tomé e o Livro de Tomé. O primeiro foi composto numa data clue não pode
ser posterior ao começo do século II; quanto ao segundo, nenhuma data lhe pode
ser atribuída com certeza. Se os três escritos procedem da Síria oriental (Edessa),
é possível que tenham como base uma tradição com o nome de Tomé que teve
origem na missão efetiva desse apóstolo nessa região.
A relação da literatura joanina com o apóstolo loão continua enigmática.
É indubitável que loão foi um dos três apóstolos da igreja de lerusalém que,
com Pedro e Tiago, irmão de lesus, eram conhecidos como as «colunas» quando
Paulo visitou lerusalém menos de vinte anos depois da morte de ]esus (GI 2,9).
Na última visita de Paulo a Jerusalém alguns anos depois, porém, Tiago era o
único líder da igreja; loão não e mais mencionado (At 21,18). A resposta de le-
sus à pergunta de loão e Tiago, os filhos de Zebedeu, em Marcos 10,39, implica
que ambos padeceriam a morte como mártires; entretanto, só a morte de Tiago
consta da tradição (At 12,2). O bispo P ápias de Hierápolis (primeira metade do
século II) tinha conhecimento de uma tradição oral dos ditos de lesus relacio-
nada com loão, a quem ele chama de discípulo do Senhor. Muito mais tarde, no
fim do século II, afirma-se que loão morreu de morte natural em Éfeso (Aros de
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8 FONTES PARA A HISTÓR IA DO CRI ST IANI SMO PRIMI TI VO
§ 7
]oão 111-115). Também por essa época," os escritos joaninos, o Evangelho de
João, e pelo menos a primeira Epístola de loão, são conhecidos em Éfeso. No
entanto, é mais provável que o Evangelho de ~oão tenha sido escrito em algum
lugar na Síria ou na Palestina. Além disso, este Evangelho em si é anônimo e não
se atribui a autoria de loão; antes, ele recorre à misteriosa figura do discípulo
amado como autoridade. Não é possível, portanto, demonstrar que houve um
elo histórico real entre o apóstolO loão, filho de Zebedeu, e a literatura joanina.
Por outro lado, é inquestionável que laouve realmente uma tradição literária
que se atribuía a autoridade desse apóstolo. Nela se incluem não somente os
quatro escritos joaninos do Novo Testamento, mas também os
Atos de ]oão e o
Apocryphon de João.
Nos séculos II e III, nomes de apóstolos ou de discípulos específicos de Jesus
foram amplamente empregados para dar autoridade e legitirnidade a diversos
escritos, especialmente em seitas e escolas gnósticas, loão, Pedro, Paulo, Filipe,
Tomé e outros aparecem f reqüentemente, mas também o irmão de lesus, Tiago,
e Maria (Madalena). Em geral, o apóstolo é o receptor de uma revelação especial
que é comunicada no livro publicado com .seu nome. Na maioria dos casos, é
impossível saber se a utilização desses nomes como autoridades literárias se apóia
no uso de tradições anteriormente ligadas ao apóstolo a que um determinado
escrito recorre, embora às vezes esse pode ter sido o caso. Como a formação do
conceito de apostolicidade, que se tomou fundamental para o cânon do Novo
Testamento, aconteceu nas controvérsias constantes com seitas gnósticas, pode-se
presumir que foi exatamente o apeio gnóstico à autoridade apostólica que induziu
os Padres da Igreja a enfatizarem por sua vez a apostolicidade dos escritos orto-
doxos. Mostrar-se-á, porém, que o conceito de apostolicidade teve papel muito
secundário na inclusão dos escritos no cânon do Novo Testamento.
(3) Os Doze Apóstolos. A autoridade dos Doze Apóstolos manifestou-se
num período bastahte adiantado no século I. Paulo conhecia apenas os y.Doze~,
que ele distinguia de "todos os apóstolos" (1Cor 15,5.7). Na época de Paulo,
o termo "apóstolo" não se limitava aos Doze, mas compreendia o grupo bem
maior de tódQs :aqUeles a quem 0Senhor apareceu. Paulo não inclui somente a
si nesse grupo; também mulheres são merecedoras dessa designação (cf. lúnia
em Rm 16,7). Referências gerais aos "Apóstolos", sem indicação de um número
específico, aparecem na Epístola aos Efésios, em Inácio de Antioquia, em 1 Cle-
mente, em Policarpo de Esmima e em 2 Pedro. A restrição do termo "apóstolo"
aos Doze é uma ficção posterior que aparece primeiro nos Evangelhos do Novo
Testamento e recebe maior elaboração no Livro dos Atos, onde eles se tomam
os abonadores da tradição e o protótipo de um presbitério ecumênico. Os "Doze
Apóstolos» são tomados como autoridade paraa composição de uma instrução
da igreja consubstanciada na Doutrina dos Doze Apóstolos (Didaqué), um docu-
mento que em sua forma preservada foi redigido no século II. Multas diretrizes
posteriores também recorreram à autoridade dos (Doze) ApÓstolos
(Constituições
Apostólicas, Cânones Apostólicos etc.). Mas o conceito dos Doze Apóstolos não
influenciaria a formação do cânon do Novo Testamento.
§ 7.1 b
EXAME DAS FONTES E DE SUAS TRADIÇÕES
9
(4) Mar,ião. A força propulsora para a formação do cânon, isto é, para a
seleção de um número limitado de escritos tradicionais de autores cristãos como
Sagrada Escritura autorizada, veio de um teólogo radical da primeira metade
do século II, oriundo da tradição das igrejas paulinas: Marcião (para a vida e
ensinamentos de Marcião, ver (§ 12.3c). Até esse momento, a Sagrada Escritura
indiscutível de todos os cristãos havia sido a Bíblia de Israel, a "Lei e os Profetas",
que os cristãos compartilhavam com a diáspora judaica por meio da tradução
grega dos Setenta. Embora as igrejas cristãs e as sinagogas judaicas já fossem
nessa época organizações separadas, elas ainda invocavam as mesmas Escrituras
como autoridade. O empenho de Marcião estava intrinsecamente ligado à questão
dessa "judeidade" das igrejas cristãs, sintetizada no uso mesmo da Escritura de
Israel como autoridade suprema. Marciã0, porém, havia aprendido pelas cartas de
Paulo que Cristo era o frua da lei. Como essa lei judaica ainda podia ser Escritura
autorizada? Sem dúvida, os gnósticos interpretariam essa lei alegoricamente,
mas Marcião era literalista e não aceitava nenhuma interpretação alegórica.
Ele via toda a Escritura de Israel como testemunho da atividade do Deus justo
que govern.ava o mundo de acordo com o princípio da lei e da punição; mas
a salvação por meio de ~esus viera de um Deus "estrangeiro" muito diferente,
cujo Filho trouxera misericórdia e amor. Só havia uma solução possível: essa
Escritura "~udaica" precisava ser posta de lado, introduzindo em seu lugar uma
nova Sagrada Escritura específica para os cristãos.
Marcião criou essa nova Sagrada Escritura que se tomou obrigatória para
suas igrejas. Ela consistia no Evangelho de Lucas e no corpus das cartas de Paulo
(exceto as Epístolas Pastorais). Seu autor, porém, estava convencido de que esses
escritos não estavam preservados em sua forma original. Por isso, ele produziu
uma edição crítica, purificando-os de todos os elementos que julgava ser acrés-
cimos posteriores, especialmente as referências às Escrituras de Israel. Apesar
de Marcião ser duramente atacado mais tarde por alterar esses escritos, não se
deve esquecer que seus adversários também procuraram corrigir a imagem de
Paulo transmitida nas cartas autênticas do apóstolo, em parte acrescentando as
: Epistotas Pastorais ao eorpus paulirto. ,Mém disso, fazer uma nova edição de um
evangelho era um ato coerente com um procedimento muito difund~do na época:
afinal, os Evangelhos de Lucas e de Mateus são novas edições do Evangelho de
Marcos. Assim, a tarefa editorial de Marcião para produzir o seu novo cânon
escritural não se diferenciava fundamentalmente do modo como os seus contem-
porâneos tratavam esses escritos. O elemento novo na ação de Marcião foi ele
elevar esses escritos cristãos em nova edição à condição de "Escritura Sagrada",
com a simultânea rejeição das escrituras de Israel. O próprio Marcião estava
convencido de que simplesmente estava dando prosseguimento a um processo
que havia sido iniciado pelo grande apóstolo Paulo. A implicação fatal da obra de
Marcião foi a asserção de que o cristianismo não devia ser compreendido como
a continuação legitima da religião e da tradição de Israel.
Pouco depois de 140 d.C., Marcião foi excomungado pela igreja romana;
com isso, ele fundou sua própria igreja, que se expandiu rapidamente e se tomou
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FONTES PARA A HISTÓRIA DO CRISTIANISMO PRIMI TIVO
uma igreja universal, cuja existência como organização separada continuou du-
rante muitos séculos. Remanescentes da igreja de Marcião nos Bálcãs, conhecidos
como "paulícios", foram reorganizados no século X por um homem chamado
"Bogomil" (= "amigo de Deus"). Com sua cosmovisão dualista, os bogomilos
constituíram o movimento sectário mais importante do império bizantino e um
apoio decisivo para os movimentos heréticos medievais na Europa central e
ocidental. Apesar de perseguidos pelas instituições eclesiásticas tanto ortodoxa
grega como católica romana, eles conse~,uiram sobreviver especialmente na Bós-
nia, onde por fim aceitaram a proteção dos conquistadores turcos (1463-1483),
concordando em converter-se ao islamismo - os muçulmanos da Bósnia.
(5) Reação a Marcião. Conhecemos apenas parte da fase inicial da reação a
Marcião. ~ustino Mártir é a testemunha principal. Ele exercia suas atividades em
Roma nessa época e escreveu o primeiro livro conhecido (mas não preservado)
contra Marcião. Em seus extensos escritos conservados, lustino nunca cita as
cartas de Paulo, a parte mais importante do novo cânon de Marcião. Parece que
Justino evitava essas cartas deliberadamente. Ele conhecia, porém, os Evangelhos
de Mateus, de Marcos e de Lucas, chamando-os de "Memórias dos Apóstolos",
e produziu uma harmonia desses três escritos - jamais imaginando que esse es-
forço poderia violar-lhes a inte.gridade. Esses evangelhos eram para ele as únicas
autoridades cristãs possíveis. As vezes ele os cita com a fórmula "está escrito",
que até então fora usada somente para citações das Escrituras de Israel. Essa
promoção dos evangelhos como autoridades escritas a uma posição equiparável
à dignidade das Sagradas Escrituras talvez se deva à influência de Marcião. Em
alguns casos, Justino chama esses escritos de "evangelhos", aplicando assim para
essa literatura um termo que aparentemente só Marcião antes dele havia adotado
para designar livros dessa espécie.
Embora a influência de Marcião seja visível na reavaliação dos escritos da
tradição cristã feita por Justino - negativa enquanto evita as cartas de Paulo e
positiva enquanto valoriza a posição dos evangelhos - Jusüno não tem intenção
de criar um novo cânon cristão. Em vez disso, ele se empenha deliberadamente
em reafirmar a condição de Sagrada Escritura da Lei e os Profetas. Somente esses
escritos são verdadeiramente inspirados (Justino atribui inspiração à tradução
grega da Bíblia Hebraica). Ele reforça a importância dessas Escrituras utilizando
uma nova recensão dos Setenta, cujo objetivo era aproximar a tradução grega
da versão babilônia do texto hebreu (§5.3b).
A questão de um cânon das Escrituras Cristãs, porém, continuou sem
solução durante toda uma geração, até que Irineu enveredou por um caminho
que se afastaria da perplexidade causada pelo desafio de Marcião. Nas últimas
décadas do século II, Irineu era bispo de Lião, no sul da Gália, mas procedia da
tradição das igrejas paulinas da Ásia Menor, onde crescera. Aí, ele também se
famfliarizara com o Evangelho e as Epístolas de João,-que combínou com a me-
mória de outro João, o que havia escrito o Livro do Apocalipse. Ele se orgulha de
ter sido aluno do famoso bispo Policarpo de Esmirna (c. 100-167 d.C.), embora
ainda fosse criança na época. Apesar de ser bispo de uma igreja ocidental, em
§ 7.1 b
EXAME DAS FONTES E DE SUAS TRADtÇÕES 1 1
seus escritos (gregos) ele foi mais um representante da tradição da Ásia Menor
do que de Roma. Na Ásia Menor, as cartas de Paulo ainda eram muito usadas
(ver, porém, as advertências de 2 Pedro 3,15-16) e continuaram selado parte
intocável da tradição cristã, não obstante a grande consideração que os círculos
marcionitas e gnósticos demonstraram por elas. Apesar de rejeitar Marcião,
Irineu não hesitou em fazer das cartas de Paulo a base da nova Escritura Cristã,
a que ele acrescentou os quatro evangelhos.
O novo livro cristão das Sagradas Escrituras assim criado e que Irineu colo-
cou como Novo Testamento ao lado das Escrituras de Israel, agora chamadas de
Antigo Testamento, tinha uma base muito mais ampla do que o cânon de Marcião.
Ele incluía as cartas do
corpus
paulino, com o acréscimo das Epístolas Pastorais,
e também algumas das epístolas "católicas" (isto é, as que foram dirigidas a rodas
as igrejas). Quanto aos evangelhos, Irineu aceitava não apenas um evangelho,
mas os quatro Evangelhos "separados» (ou seja, não numa forma harmonizada)
de Mateus, Marcos, Lucas e loão. Ele defendia a existência de quatro evangelhos
em vez de apenas um, fundamentando-se na especulação cosmológica de que
eles correspondiam às quatro extremidades da terra.
A evidente inclusividade da concepção de Escritura Cristã sustentada por
Irineu tem significado extraordinário. Marcião, como também os gnósticos e
suas Escrituras, multas atribuindo-se autoria apostólica, foram rejeitados; mas
Irineu não adorou um conceito doutrinai estreito como critério para sua seleção.
Todos os escritos que as comunidades cristãs haviam usado desde o começo
foram incluídos, e isso apesar de Irineu saber muito bem que alguns deles,
como Marcos e Lucas, não haviam sido obra de um apóstolo. Por outro lado,
diante da constatação de que um escrito fora composto apenas recentemente,
ele era suprimido do cânon, mesmo que pretendesse autoridade apostólica e
fosse adotado por algumas igrejas. A questão da inspiração não influenciou esse
processo de composição do cânon, porque a pretensão de possuir o Espírito
Santo era tão comum, que esse critério só teria causado confusão. O conceito de
apostolicidade aparece em forma modificada. Uma aplicação rigida do critério
de autoria por um dos Doze Apóstolos teria acarretado a exclusão de todo o
corpus paulino. Para Irineu, portanto, "apostolicidade" inclui aqueles escritos
que haviam alimentado e instruído as igrejas, que haviam dado organização a
essas igrejas e que haviam orientado seu culto desde o começo. Este princípio
está evidente no fato de que somente evangelhos com uma narrativa da paixão
foram aceitos no cânon, porque essa narrativa era e continuou sendo a história
constitutiva da celebração do ritual cristão central, a eucaristia. Ele está também
visível na preservação do corpus paulino com as Epístolas Pastorais, porque estas
apresentaram Paulo não tanto como o grande teólogo, mas como o instrutor da
igreja e o criador de sua organização.
O fato de que as práticas das igrejas da ~sia Menor e da Grécia se adapta-
ram à coletânea de Irineu, e de que Antioquia, Cartago, provávelmente também
Alexandria e mais tarde mesmo Roma confirmaram esse uso, forneceu a base
política da igreja para que a criação de Irineu tivesse sucesso. Não deve ser subes-
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t 2 F O N T ES PA R A A HI S TÓ R I A DO CR I S T I A N I S M O PR I M I T I V O
§ 7
timado o fato, porém, de que esse novo cânon também excluiu inúmeros escritos
e, conseqüentemente, alguns grupos cristãos que os adotavam. Os marcionitas,
vários grupos gnósticos e os cristãos judeus (não ainda, porém, os montanistas)
foram excluídos, apesar do princípio da inclusividade de Irineu e a despeito da
alegação de que seus escritos eram apostólicos e inspirados. Diferenças teoló-
gicas certamente contribuíram para isso, e os argumentos teológicos às vezes
ocupavam lugar de destaque nas controvérsias. Entretanto, as causas subjacentes
precisam ser vistas no âmbito da prática. A rede de bispos, abrangendo todo o
mundo romano desde Antioquia até a África, Roma e a Gália, e mantida por
visitas mútuas, intercâmbio de missionários e uma extensa correspondência,
conseguira estabelecer práticas comuns para o batismo (inclusive a instrução
dos catecúmenos) e para a celebração da eucaristia, códigos morais e rituais, e
numerosas instituições sociais e formas de apoio mútuo. Esse conjunto todo está
expresso na composição do cânon empreendida por Irineu. No geral, considerando
que não existia uma autoridade central, essa foi uma conquista extraordinária.
Não sabemos se esse contexto incluía a maioria de todos os cristãos no fim do
século II. Igrejas marcionitas podiam-se encontrar em toda parte; cristãos judeus
seguidores da lei ritual mosaica espalhavam-se pela Ásia Menor, Síria e Egito.
Inúmeros grupos, escolas e seitas de cristãos gnósticos estavarn presentes em
Roma e também na Asia Menor, Síria e Egito, e rnuitas vezes membros das igrejas
organizadas teriam participado dos conciliábulos dessas instituições.
Havia também um preço a pagar. Uma conseqüência da inclusão das
Epístolas Pastorais no corpus paulino foi a exclusão das mulheres dos oficios
eclesiásticos, enquanto os marcionitas e muitos grupos gnósticos continuaram
a aceitar mulheres em funções de liderança. Mesmo atualmente, multas igrejas
cristãs têm dificuldade em libertar-se dessa herança nefasta. A exclusão do cris-
tianismo judaico e, em geral, a instituição de uma Sagrada Escritura Cristã, em
acréscimo às Escrituras de Israel, com a asseveração de que o Antigo Testamento
só podia ser lido legitimamente a partir da perspectiva do Novo Testamento,
consolidaram a posição do judaísmo e do cristianismo como religiões separadas.
A liderança episcopal na criação de uma igreja "católica" universal também in-
troduziu estruturas hierárquicas na organização local das igrejas, substituindo
as estruturas antigas mais democráticas das igrejas de Paulo e, por exemplo, do
Evangelho de Mateus, Por outro lado, a criação do cânon do Novo Testamento
preservou alguns dos documentos mais valiosos dos primeiros passos do cris-
tianismO, embora a história inicial desse movimento religioso só possa ser bem
compreendida se a profusão de novas descobertas de materiais não-canônicos
for totalmente integrada à pesquisa histórica.
(6) O Cânone de Muratori. Muitos estudiosos aceitam esta relação de escri-
tos canônicos, elaborada em latim, como a lista mais antiga de livros canônicos,
datando aproximadamente do ano 200 d.C. Existem, porém, fortes razões para
duvidar dessa data tão antecipada; é mais provável que essa elaboração tenha
sido feita no século IV. Enquanto a inclusão dos quatro Evangelhos, do corpus
paulino e de algumas epístolas católicas no Novo Testamento é bem aceita no
§ 7.1 b
EXAME DAS FONTES E DE SUAS TRADIçÕES 1 3
fim do século II - não somente Irineu, mas também Tertuliano, Clemente de
Alexandria, Orígenes e Cipriano coniordam com esse conceito - a discussão
da inclusão ou exclusão de escritos específicos, isto é, a delimitação exata do
cânon, não começou antes do século IV. A lista do Cânone de Muratori enumera
os quatro Evangelhos, treze cartas de Paulo (sem a Epístola aos Hebreus), o
Apocalipse de Ioão, o Apocalipse de Pedro, a Epístola de Judas, duas epístolas
de ]oão, uma de Pedro e a Sabedoria de Salomão. Explicitamente rejeitadas são
as cartas de Paulo aos
Laodicenses e
aos
Alexandrinos e
os escritos dos heréticos
(Valentim, Marcião e outros).
(c) Escritos Não-Canônicos do Cristianismo Primitivo
(1) Os Padres Apostólicos.
Além dos escritos do cânon do Novo Testamento,
existem várias outras coletâneas antigas e modernas de escritos do cristianismo
primitivo. Essas coleções incluem tanto os livros aceitos e utilizados pelos Padres
da Igreja como também os reieitados como heréticos. Durante muitos séculos, a
mais importante delas foi a dos Padres Apost61icos, organizada no século XVII.
Na época foi escolhido o título "Padres Apostólicos" (Partes Apostolici) porque
os estudiosos acreditavam que todos o escritos haviam sido compostos no período
apostólico por discípulos dos apóstolos. Caso, porém, se entenda "período apos-
tólico" mais estritamente como o decurso de tempo até o fim da Guerra Judaica,
isto é, de 30 a 70-73 d.C., a datação ao período apístólico não se sustenta para
nenhum desses escritos. Com efeito, mesmo dos escritos do Novo Testamento,
somente as cartas autênticas de Paulo foram compostas nesse período, ao passo
que os evangelhos, as epístolas deuteropaulinas, as epístolas católicas e o Livro do
Apocalipse foram escritos durante as últimas décadas do século I e as primeiras
do século II d.C. Este último período da segunda e terceira gerações do cristia-
nismo é na verdade também a época em que a maioria dos escritos dos Padres
Apostólicos foi composta. Desses escritos, 1 Clemente, a Epístola de Barnabé e
as fontes inseridas na
Didaqué
(incorporada a essa coleção depois de sua desco-
berta em 1885) foram compostas antes do ano 100 d.C., as cartas de Inácio de
Antioquia e uma parte da Epístola de Policarpo logo depois da virada do século,
enquanto
2 Clemente e o Martírio de Policarpo
só foram escritas, ao que parece,
depois da metade do século II. O
Pastor de Hermas
ocupa seu justo lugar nessa
coleção, embora seja dificil determinar sua data exata. A Epístola a Diogneto,
em geral incluída nas edições dos Padres Apostólicos, é um escrito apologético
Bibliografia para
§7.1c (1):Textos
Bihlmeyer,
ApostVdt.
Lightfoot, Apostolic F«ther~
J.B. Lighffoot and J.R. Harmer, The Apostolic Fathers (ed. and ~ev. Michael W. Holmes; Grand Rapids, MI: Baker,
1989).
Kirsopp Lake, The
Apostolic Fathers
(LCL; 2 vols.; Cambridge, MA: Harvard University Press, 1912 and reprints).
Bibliografia para
§7.1 c O ):
Ferramentas
Hendcus Kraft, Clavls Patrum Apostolicorum (Darmstadt: Wissenschaftliche Suchgesellschaft, 1963).
7/18/2019 Introdução ao Novo Testamento
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1 4 F O N T E S PAR A A HI ST Ó R I A DO CR I ST I A N I S M O PR I M I T I VO
§ 7
de um período posterior. Em contraste com os escritos do Novo Testamento,
que estão preservados num grande número de manuscritos e traduções, muito
poucas cópias dos Padres Apostólicos chegaram até nós, em alguns casos apenas
um único.manuscrito (o único manuscrito conhecido da Epístola a Diogneto foi
queimado numa biblioteca municipal de Estrasburgo durante o bombardeio da
cidade na guerra de 1870).
(2)
Coleções Gnósticas e M.aniqueístas.
Grupos cristãos antigos que não
reconheciam o cânon da Igreja Católica~criaram coleções de seus próprios escri-
tos. A mais importante dessas é a Biblioteca de Nag Hammadi, descoberta em
1945-46 no Alto Egito, hoje publicada e traduzida em sua totalidade, É composta
de treze códices encadernados em couro contendo mais de cinqüenta escritos,
predominantemente gnósticos; todos eles haviam sido traduzidos de originais
gregos para o copta. Alguns desses datam já do período em que os Padres Apos-
tólicos foram escritos, como o Evangelho de Tomé, o Diálogo do Salvador, o
Apocryphon de Tiago, o Apocalipse de Adão, a Hipóstase dos Arcontes, o Pri-
meiro e Segundo Apocalipses de Tiago, e
talvez alguns outros. Como um todo,
os escritos dessa recém-descoberta Biblioteca Gnóstico-Copta são um recurso
importante para uma nova compreensão da história do cristianismo primitivo
e de sua literatura.
Os maniqueus se distinguiam por sua elevada cultura literária. Embora
esse movimento se tenha originado apenas no século III d.C., suas coleções
literárias também incluíam alguns escritos cristãos mais antigos, especialmente
um conjunto apócrifo de cinco aros dos apóstolos que foi atribuído a um certo
Leukios Charinos - apesar de que somente algumas partes dos remanescentes
fragmentários dessa literatura (ver §7.1.c[3]) possam derivar dessa coleção
maniqueísta. O Alto Egito produziu uma biblioteca maniqueísta em coptä que
atualmente está em processo de edição e tradução. Inúmeras partes dos escri-
tos maniqueístas foram descobertas entre 1902 e 1914 por várias expedições
alemãs em Turfan, na borda nordeste do deserto Taklamakan, na Ásia Central.
Uma seleção desses escritos, traduzida para o inglês a partir do parto, do persa
Bibliografia para §7.1c (2):Textos
James M. Robinson (ed.),
The Nag Harnmadi Library in English
(3d ed.; San Fran¢is¢o: HarperCollins, 1990).
Hans-Joa¢him Klimkeit,
Gnosis on the Silk Road: Gnosti¢ Texts from Central Asia
(San Franclsco: HarperCollins,
1993).
Layton, Gnostic Scriptutes.
L Gardner, The Kephaloia of the Teocher: The Edited Coptic Manichaeon Texts in Tronslotion with Commentary
(NHMS 37; Leiden: Brill, 1995).
Bibliografia para §7.1 c (2): Estudos
Knut Schãferdiek, "The Manichean Collection aí Apocryphal Acts
ascribed to Leuclus
Charinus," In Sch-
neernelcher, NTAI~oc 2.87-100.
Bibliografia para §7.1 ç (2): Ferramentas
Craig A. Evans, R.L.Webb, and R.L.Wiebe (eds.),
Nog HammadiTexts ond the Bible:A Synopsis and Index
(N3-1"S 18;
Leiden: Brill, 1993).
Bibliografia para §7.1c (2): Bibliografia
David Scholer, Nag Hammodi Bibliography 1970-1994 (NHMS 32; Leiden: Brill, 1997).
EXAME
DAS FONTES E DE SUAS TRADIÇÕES
médio e do turco antigo (uighur), foi publicada recentemente por Hans-Joachim
Klimkeit. Embora todos esses textos tenham sido escritos após o período do
cristianismo primitivo, são importantes para uma compreensão melhor do
gnosticismo cristão primitivo.
(3) Os Apócrifos do Novo Testamento. O corpus conhecido como Apócrifos
do Novo Testamento é uma coleção moderna dos primeiros escritos cristãos. A
intenção da coletânea foi reunir escritos cristãos primitivos atribuídos a auto-
res apostólicos e também evangelhos anônimos, atos de apóstolos, apocalipses
e cartas que não haviam sido incluídos no cânon do Novo Testamento. Esses
apócrifos abrangem escritos que podem ser atribuídos a uma data tão remota
como o século I e tão recente como os séculos IV, V ou mesmo VI. Nenhum
deles jamais recebeu aprovação canônica, pois quase todos tiveram origem em
círculos cristãos que não faziam parte das igrejas católicas estabelecidas. Por
isso, eles estavam sujeitos a reelaborações contínuas e a mudanças causadas pela
comunicação oral e por adaptações intencionais a novas situações eclesiásticas
e políticas.
Os apócrifos chegaram até nós de diferentes maneiras. Muitos ainda eram
lidos na Idade Média e foram publicados pela primeira vez na Renascença; outros
foram conhecidos através de citações e excertos nos Padres da Igreja. A maioria,
porém, teve sua origem em descobertas de manuscritos, em geral fragmentários,
ao longo dos últimos cem anos. As publicações mais recentes de apócrifos contêm
mais que o dobro dos incluídos em edições publicadas no começo do sécult~ XX.
Em muitos casos, o texto está preservado num único manuscrito, e freqüen-
temente não na língua grega original, mas apenas em traduções ou traduções
secundárias para o latim, o copta, o siríaco, o armênio, o georgiano, o etíope ou
o árabe. Com freqüência, o enunciado original e a composição desses escritos só
podem ser reconstruídos por meio da comparação laboriosa de vários fragmentos,
cópias e traduções. Por isso, em geral é muito difícil decidir com algum grau de
certeza questões de autoria, datação e forma original do texto.
Seja ou não possível atribuir a qualquer desses apÓcrifos uma data antiga ou
tenha ele sua origem num período mais recente, esses escritos são testemunhos
importantes da história do cristianismo primitivo. Mesmo nos casos em que uma
data relativamente tardia dera ser levada em conta, multas vezes são incorporadas
tradições cujas origens remontam aos primeiros momentos do cristianismo. Se
Bibliografia para §7.1c (3):Textos
Schneemelcher, NTApoc
J.K. Elliott, The Apocryphal New Testament: A Collection of Apocryphal Christlan Literature in an English Translation
(Oxford: Clarendon, 1993).
Bibliografia para §7.1 c (3):
Estudos
François 8ovon and R Geoltraln (eds.), ~crits opocryphes chrétiens (Bibliothèque de la Pldiade 442; Paris: Galli-
mard, 1997).
Bibliografia para §7.1c (3): Bibliografia
J.H. Charlesworth with J.R. Muetler, The New Testoment Apocrypha anal Pseudepigrophm A Guide to Pub/ications ,
wirh Excurses on Apocalypses
(ATLA Bibliography Sedes 17; Metuchen, N J: Scarecrow, 1987).
7/18/2019 Introdução ao Novo Testamento
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FONTES PARA A HISTÓRIA DO CRISTIANISMO PRIMITIVO
a perspectiva teológica desses apócrifos se desvia da visão dos Padres da Igreja,
ela pode muito bem fornecer esclarecimentos importantes sobre as pereepções
e práticas religiosas dos primeiros cristãos. Seu espectro variado possibilita ver
a grande diversidade da devoção e da prática religiosa cristã primitivas - uma
perspectiva que a orientação polêmica do cânon do Novo Testamento obstrui
ou procura limitar.
(d) Testemunhos Fora do Cris tianismo ~
Testemunhos não-cristãos para os primórdios do cristianismo são poucos e
infelizmente não muito informativos. Há um relato sobre ]esus no Antiguidades
(18.63) do historiador judeu ]osef0, falecido no ano 100 d.C., mas não está
preservado em sua forma original, pois foi totalmente revisto por um escriba
cristão posterior. Reconstruções do texto original do relato de ]osefo foram ten-
tadas, mas continuam incertas. ]osefo (Ant. 20.200) também fala da morte de
Tiago, "irmão de ]esus, que era chamado Cristo", dizendo que ele foi acusado
pelo sumo sacerdote Anás de ter transgredido a lei, e entregue para ser apedre-
jado (provavelmente no ano 62 d.C.) - um relato que parece confiável, pois é
muito menos lendário que uma história narrada por Hegesipo, preservada na
História Eclesiástica de Eusébio (2.23.11.18). Outras informações sobre ]esus
e o cristianismo primitivo procedentes de fontes judaicas, isto é, rabínicas, não
têm valor histórico.
Os testemunhos romanos mais antigos aparecem nas obras de Suetônio,
Tácito e Plínio, o Moço - os três escreveram no começo do século II d.C. Suetônio
(Vida de Cláudio 25.4) faz um breve relato sobre a expulsão de judeus de Roma
durante o reinado de Cláudio (41-54 d.C.), porque provocavam perturbações
constantes "incitados por Cresto" (impulsore Chresto). Com toda probabilida-
de, essa é uma referência a judeus que viviam em Roma e eram seguidores de
Cristo ("Christus'). Em Vida de Nero (16.2), Suetônio diz que os cristãos, que
seguiam uma crença nova e maléfica (male]icus superstitio), foram expulsos de
Roma por Nero. Tácito relata mais detalhadamente que os cristãos, que deri-
varam seu nome de Cristo, crucificado sob Pôncio Pilatos, foram executados
de forma extremamente cruel, por ordem de Nero, depois do grande incêndio
de Roma.Ele acrescenta que foram punidos não tanto por serena suspeitos do
incêndio, mas por causa do ódio que alimentavam contra a humanidade (Ann.
15.44.2-8). Pertence ao mesmo período o primeiro relato mais extenso sobre
os cristãos, escrito por Plínio, o Moço. No ano 112 d.C., Plínio era governador
da Bitínia, na Ásia Menor, e nessa qualidade escreveu uma carta ao imperador
Trajano pedindo orientações sobre o tratamento que deveria dar aos cristãos e
sobre as medidas legais apropriadas a adorar contra eles (Epist. 10.96). Por essa
carta, sabemos que os cristãos se reuniam de manhã cedo, juraram não cometer
Bibliografia para §7.1 d
W.
den Boer,
Scriptorum paganorum I-IVsaec. de Christianis testimonia(2d ed.; Lelden: Brill, 1965).
FF Bruce,Jesus and Chrstan Orgns Outsde the New Testarnent(rev ed.;
London: Hodder
& Stoughton, 1984).
§ 7.1d EXA/v~E DAS FONTES E DE SUAS TRADIÇÕES
1 7
crimes, e que voltariam a se encontrar mais tarde para uma refeição comum;
é interessante também que os únicos dois ministros cristãos que ele menciona
são duas escravas que eram diaconisas. Essas informações romanas têm pouco
valor no que diz respeito à história cristã primitiva. São importantes, porém,
porque revelam uma ponderada tentativa romana oficial no começo do século
II de formular uma política imperial relacionada com o tratamento a esse novo
movimento religioso. A correspondência de Plínio com Trajano e o rescrito de
Adriano a Minúcio Fundano serão analisados mais detalhadamente numa seção
futura (§12.3d). Pouco se pode depreender do relato de Dio Cássio (Epitome
67.14) sobre a execução do cônsul Flávio Clemente e o desterro de sua esposa,
que fora acusada:de ateísmo, e do seu comentáriode que eles pereceram com
outros que se inclinavam para crenças judaicas, É possível que isso se retira à
perseguição dos cristãos promovida por Domiciano.
Informações sobre os cristãos começam a fluir mais profusamente na metade
do século II. Luciano de Samósata relata em grande detalhe a morte do filósofo
cínico Peregrino Proteu, que no passado havia sido cristão. Em seu livro sobre
o pseudoprofeta Alexandre de Abunoteichos, ele inclui cristãos, ateus e epicu-
ristas na mesma categoria. O imperador Marco Aurélio fez algumas observações
negativas sobre os cristãos em suas
Meditações.
Seu professor, o orador romano
Fronto, publicou um discurso contra os cristãos, hoje perdido. Os relatos mais
detalhados sobre os cristãos estão preservados no escrito do platônico Kelsos
(Celso), citado em parte por Orígenes em sua contestação da obra de Celso. Em-
bora interessante, esse material apresenta um testemunho vívido da diversidade
cristã na segunda metade do século II, mas pouco contribui para a história do
início do cristianismo. Ele é mais importante para a controvérsia entre paganismo
e cristianismo que começou no século II d.C.
2 . O T E X T O D O N O V O T E S T A / ~ E N T O
; /
(a) Problemas de Transmissão dos Textos do Novo Testamenta7~
Nem um único autógrafo de qualquer livro do Novo Testamento foi preser-
vado. As cópias mais antigas conservadas foram feitas em torno de 200 d.C., com
exceção de um minúsculo fragmento do Evangelho de loão de um manuscrito
Bibliografia para
§72.:Texto
Barbara and Kurt Aland, Johannes Karavidopoulos, Carlo M. Martini, and Bruce M.Metzger (eds.),Nestle Aland:
Novum Testomentum Groece(27th ed.;Sttrtt<jart: Deutsche Bibelgesellscha~ 1994).
Bibliografia para §73.: Estudos Inforrnações
Frederi¢kG. Kenyon, TheText oftheGreekBbe(3d ed., revA.W Adams; London: Du¢kworth, 1975).
Bruce M. Metzger,The Text of the New Testament: Its Transmission, Corruption, and Restoration(3d ed.; New Yorlc
Oxford University Press, 1992).
Kurt
Aland and
Barbara Aland, The
Text of the New Test«ment: An Introduction to the Criticai Editions ond to
the
Theory and Proctce of Modern Textua Crtcsm(2d ed.;
Grand Rapids, MI: Eerdmans,
1989).
Hans Uetzmann, Textegeschichte und Textkritik, in idem,Kleine Schriften(3 vols.; TU 67, 68, 74; Berlin: Akad-
emle-Verlag,1958-1962) 2.15250.
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1 8
F O N T ES PAR A A H I ST Ó R I A D O C R I ST I AN I SM O PR I M I T I VO
§ 7
escrito na primeira metade do século II d.C. (q~52). Todas as cópias mais antigas
preservadas são papiros (para materiais de escrita, ver §2.6d) e rodas foram
encontradas no Egito, onde a areia seca dodeserto retarda a decomposição de
materiais de escrita. Elas eram manuscritos "unciais', também chamados «maiús-
culos", isto é, eram escritos em letras grandes sem separação entre as palavras.
Manuscritos posteriores são "minúsculos", escritos em letras cursivas pequenas,
ligando várias letras a grupos ou.sílabas. Se o formato preferido para livros na
antiguidade era o rolo, todos os manusSritos do Novo Testamento eram códices
(com exceção de alguns que foram escritos no verso de rolos mais antigos, como
q~l»). O formato do códice possibilitava incluir mais do que apenas um evangelho
ou uma epístola num único manuscrito. De fato, vários manuscritos datados de
antes de 300 d.C. eram coleções de numerosos escritos, como q04», que incluía os
quatro evangelhos e o Livro dos Aros, ou 0~«6, que incluía quase todas as cartas
de Paulo. Os manuscritos mais antigos contendo todo o Novo Testamento foram
escritos no século IV d.C. (Códice Sinaítico e Códice Vaticano). Esses são códices
de pergaminho e, como os papiros anteriores, são também "unciais'. Embora
ainda haja numerosos manuscritos do Novo" Testamento em papiro, datados de
séculos posteriores, o códice em pergaminho passou a ser o formato empregado
com mais freqüência para manuscritos da Bíblia cristã inteira, abrangendo o
Antigo e o Novo Testamentos.
Em alguns aspectos, os problemas da transmissão textual do Novo Testa-
mento são os mesmos que se encontram para a transmissão manuscrita de outros
autores antigos. Em ambos os casos, os erros feitos na cópia de manuscritos são
os mesmos: inversão de letras e omissão de letras individuais, com a conseqüência
do surgimento de uma palavra diferente; haplografia (omissão de letras idênticas
ou de grupos de letras idênticos); ditografia (cópia repetida de uma letra ou de
um grupo de letras); confusão de letras semelhantes; e finalmente "homoioteleu-
ton", isto é, omissão de uma palavra ou de uma linha inteira porque ela termina
com as mesmas letras de uma palavra ou linha precedente - um erro muito fre-
qüente. Existem também mudanças deliberadas. Algumas dessas são puramente
estilísticas, como a substituição de expressões da coiné (fala vernácula) por Um
grego mais literário (aticismo). Outras resultam da comparação com diferentes
manuscritos do mesmo escrito. Citações b~licas nos escritos do Novo Testamento
são com freqüência corrigidos comparando-os com manuscritos do Antigo Tes-
tamento. Textos paralelos dos evangelhos foram absorvidos e incorporados uns
aos outros. Motivos dogmáticos também causaram correções, por exemplo, em
1Ts 3,2, onde Paulo chama Timóteo «companheiro-colaborador (ouwp¥óç) de
Deus"; um escriba alterou essa expressão para "serro (5~áKovoç) de Deus", outro
Kurt Aland, Kurzgefosste Liste der griechischen Hondschriften des Neuen Testoments (ANT 1; 2d ed.; Berlin:
de
Gruyter, 1994).
Idem (ed.), Materialien zur neutestamentlichen Handschriftenkunde (ANT 1; Berlin: de Gruyter, 1969).
Idem, Text und Textwert der griechischen Handschriften des Neue n Testaments (3 vols.; Berlin: de Gruyter, 1987-
1993).
Bart
Ehrman and Michael W. Holmes (eds.), The Text of the New Testament in Contemporary Research: Essays on
the Sratus Questionis: A Volume in Honor of 8ruce It4. Me~zger (SD 46; Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1995).
§ 7 . 2 a
O T E XTO D O N O V O T E STAM E N T O 1 9
manuscrito omite "de Deus", e uma combinação posterior de diferentes leituras
resulta num texto que diz "serro de Deus e meu colaborador". Mesmo depois
do século II d.C., materiais da tradição oral ainda eram acrescentados ao texto
dos evangelhos, como a perícope do operário num dia de sábado em Lueas 6,5
(Códice D) e a história de lesus e da mulher surpreendida em adultério, que em
muitos manuscritos se encontra depois de loão 7,52; e num outro manuscrito,
depois de Lucas 21,38. O acréscimo dogmático mais evidente é a inserção da
fórmula trinitária em 1 Ioão 5,6-7 na tradução latina (a assim chamada
Comina
lohanneum).
Em muitos outros modos, porém, os problemas de crítica textual do Novo
Testamento diferem daqueles de sua disciplina irmã clássica. Os autores clássicos
sãogeralmente preservados em apenas alguns manuscritos, e com freqüência em
apenas um, mas existem centenas de manuscritos do Novo Testamento em grego,
numerosas traduções que derivam de um estágio anterior do desenvolvimento
textual, um grande número de lecionários, e finalmente, a partir do século II d.C.,
um número incontável decitações nas obras dos Padres da Igreja. Além disso,
enquanto os únicos manuscritos preservados de autores clássicos com freqüên-
cia vêm da Idade Média, a tradição manuscrita do Novo Testamento começa já
no fim do século II d.C.; apenas o período de um século, portanto, separa essa
tradição da época em que os autógrafos foram escritos. Pareceria assim que a
crítica textual do Novo Testamento se assenta numa base muito mais vantajosa
do que aquela em que se fixa a tradição textual de autores clássicos.
No entanto, as vantagens que essa rica tradição parece oferecer não devem
ser superestirnadas. Problemas na reconstrução de um texto original são, até certo
ponto, independentes do número de manuscritos preservados, porque a maioria
das corrupções de textos antigos ocorreu durante os primeiros cinqüenta a cem
anos, isto é, antes dos manuscritos subsistentes mais antigos e de uma tradição de
cópia regular. Por outro lado, dificuldades surgem da própria riqueza da tradição
de manuscritos por causa da complexidade das inter-relações de manuscritos,
o que torna impossível a construção de um estema (uma árvore genealógica de
manuscritos). A construção de um estema é o método fundamental na critica
textual de autores clássicos; no momento em que as relações e dependências
de manuscritos subsistentes se tornam claras, é bastante fácil eliminar rodas as
variantes secundárias. Para manuscritos do Novo Testamento, porém, dependên-
cias só podem ser estabelecidas esporadicamente e para um número limitado
de manuscritos, ou somente para variantes individuais ou grupos de leituras
diferentes. Em geral, os vários ramos da transmissão de manuscritos se cruzaram
e mesclaram numa data tão antiga e a tal ponto, que um estema se torna absur-
damente complexo. Isso se aplica também para as traduções, das quais algumas
estão preservadas numa grande quantidade de manuscritos, como a Vulgata.
Em vez de reconstruir um estema, a crítica textual do Novo Testamento
procura classificar famílias de manuscritos. Essas classificações tiveram um certo
sucesso e ajudaram a introduzir alguma ordem na diversidade aparentemente inex-
tricável da transmissão. Depois de algumas tentativas anteriores de estabelecer
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F O NT E S P A R A A H I S T Ó R I A D O C R I S T I A N I S M O P R I M I T I V O
famílias, o sistema de B.E Westcott e EH. Hort, os mais influentes especialistas
da crítica textual (§7.2f), classificou todos os manuscritos seja como represen-
tantes seja como fusões de quatro grandes famílias. As designações adotadas por
Westcott e Hort para essas famílias ainda são úteis como recurso para uma ca-
racterização preliminar de muitos manuscritos ou grupos de manuscritos. Outras
pesquisas, porém, questionaram a validade do seu "Texto Neutro" (ver abaixo) e
acrescentaram o "Texto de Cesaréia" como uma possível família a mais.
1. O Texto Ocidental.
Esta família~subsiste no Códice D dos Evangelhos e
Aros, no Códice D das epístolas, nas traduções do latim e do siríaco arcaicos e
em citações em autores dos séculos II e III (Marcião, lustino, Irineu, Tertuliano,
Hipólito e Cipriano). Apesar-de haver apenas alguns manuscritos gregos repre-
sentando este texto, ele deve ter existido já na metade do século II d.C., e foi
muito usado, especialmente no Ocidente. Entretanto, ele é às vezes considerado
um texto "rústico", não revisto, com leituras principalmente inconsistentes.
2. O Texto Alexandrino. O critério fundamental para esta família é a ocor-
rência de suas leituras especiais nas citações dos Padres da Igreja alexandrinos
desde Clemente e Origenes até Cirilo. Westcott e Hort atribuíram a esta família
apenas alguns manuscritos unciais (como C e L), o minúsculo 33 e as primeiras
traduções coptas. Hoje nela se incluiriam também os códices ~ e B, e ainda A e
alguns outros unciais e vários papiros que Wescott e Hort não conheciam. O texto
alexandrino mais recente era certamente um texto editado, revelando considerável
erudição filolÓgica, mas foi precedido por um texto mais antigo muito próximo
dele, que está em destaque em papiros anteriores, em citações em Clemente e
Orígenes e talvez também em ~ e B.
3. O Texto Neutro.
De acordo com Westcott e Hort, os dois códices da
Bíblia Grega mais antigos subsistentes }~ e B (especialmente o último) foram
testemunhas de um texto que estava livre de contaminações e de revisÕes in-
tencionais. Hoje, porém, os estudiosos classificam esses dois manuscritos com
a família Alexandrina.
4. OTexto deCesaréia. Esta família ainda não era reconhecida por West-
cott e Hort e parece ser a menos certificada. Supõe-se que tenha sua origem no
texto que Orígenes levou de Alexandria quando se mudou para Cesaréia; mas
ele foi contaminado posteriormente, de modo especial por leituras ocidentais.
Suas testemunhas subsistentes são o O uncial, várias minúsculas e as traduções
armênia e georgiana mais antigas.
5. O Texto Coiné ou Bizantino.
Não há dúvida de que esta família de ma-
nuscritos é, no geral, uma mistura de rodas as famílias mais antigas - um fato
que não exclui a subsistência de leituras mais antigas. Ela parece derivar de uma
revisão do texto do Novo Testamento que foi preparada por Luciano de Antio-
quia no fim do século III d.C. Apesar de incluir a imensa maioria de todos os
manuscritos e traduções conservados, ela é em geral considerada a família textual
mais recente e menos fidedigna. De fato, o textus receptus, o "texto recebido"
da Reforma e do período pós-Reforma, baseado exclusivamente em manuscritos
gregos medievais, é mais ou menos idêntico a essa família.
§ 7 . 2 a O T E X T O D O N O V O T E S T A M E N T O 2 1
Qualquer tentativa, porém, de tomar decisões de crítica textual simplesmen-
te com base nas relações familiares de leituras variáveis é insatisfatória, porque
muitos manuscritos contêm textos "misturados", isto é, algumas de suas leituras
pertencem a uma família, outras a uma família diferente. Além disso, algumas
famílias são tão grandes e contêm tantos textos diferentes, que é necessário cons-
truir subfamílias, o que aumenta a complexidade. Outro problema da exuberância
da transmissão é a quantidade, É necessário trabalhar com imensa quantidade
de material para encontrar testemunhas para uma leitura antiga possivelmente
importante em alguns manuscritos tardios que por sua vez são cheios de erros
de escrita e de variantes inúteis. A avaliação das citaçÕes nos Padres da Igreja
também apresenta dificuldades insólitas, embora ela seja de grande importância
para a localização geográfiea de manuscritos e de suas diferentes leituras. O uso
dessas testemunhas, porém, é complicado pelo fato de que com freqüência os
escritos dos Padres da Igreja estão preservados apenas em manuscritos medievais,
em que escribas podem ter corrigido o enunciado de citações bíblicas de acordo
com seus próprios textos. Além disso, para os Padres da Igreja como também para
as traduções antigas, que também seriam valiosas para a localização geográfica
da transmissão do texto grego, edições modernas confiáveis nem sempre estão
disponíveis. Assim, vista como um todo, a riqueza mesma da tradição põe o es-
tudioso diante de tarefas imensas e de muitos obstáculos, que mesmo a pesquisa
por computador não resolverá com rapidez e facilidade.
Considerando, porém, que o registro e a avaliação completos e abrangentes
de todas as diferentes leituras em manuscritos, traduçÕes, citações e lecionários
seriam pelos menos teoricamente possíveis, alguns problemas fundamentais da
crítica textual do Novo Testamento'não podem ser plenamente resolvidos desse
modo. Embora a maior parte do texto do Novo Testamento esteja bastante segura
com base no trabalho de crítica textual que foi realizado até aqui, numerosos
problemas pendentes pedem soluções que não podem simplesmente basear-se
na avaliação de leituras subsistentes e de tipos de texto e de famílias em que
elas ocorrem. O primeiro desses problemas surge do fato de que a transmissão
manuscrita dos escritos do Novo Testamento é muito inconstante. Existem ape-
nas algumas dezenas de manuscritos que contêm o Novo Testamento inteiro, e
somente uma porção muito reduzida desses são unciais dos séculos IV ao X d.C.;
os outros são minúsculos medievais que em geral representam o texto bizantino.
A vasta maioria dos manuscritos conhecidos apresenta apenas uma fração do
Novo Testamento. Entre esses, grande parte são manuscritos dos evangelhos, as
Epístolas Paulinas são representadas muito menos freqüentemente, as Epístolas
Católicas aparecem apenas esporadicamente e o Livro do Apocalipse raramente
é copiado.
O segundo problema é a grande linha divisória do inicio do século IV
d.C. A Grande Perseguição ao cristianismo de 303 a 311-13 d.C. representou a
destruição de um número incontável de manuscritos bíblicos, especialmente de
manuscritos gregos na parte oriental do império romano, onde a perseguição foi
mais implacável e durou mais tempo. Parece que essa destruição de manuscritos
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2 2 F O N T ES PA R A A H I S T Õ R I A D O CR I S T I AN I SM O P R I M I T I V O
§ 7
gregos trouxe como resultado a conservação de alguns tipos de texto mais antigos
apenas em traduções baseadas em textos gregos anteriores, como as traduções
do latim arcaico (Vetus Latina ou Itala), do siríaco arcaico e do copta saídico.
A reconstrução de um original grego a partir de uma tradução, porém, é noto-
riamente difícil, porque traduções oferecem apenas uma certeza relativa com
relação ao texto do original grego. Sabe-se muito bem que os editores modernos
dificilmente levarão a sério uma .variante textual que não esteja preservada em
algum manuscrito grego subsistente, rl)as apenas em traduções antigas, mesmo
não havendo dúvida de que essa variante deve ter existido num texto grego do
século li ou III.
O terceiro problema surge do fato de que temos acesso direto aos textos
gregos do século li tardio e do século III por meio de um número cada vez maior
de papiros - mas todos eles provêm do Egito e não dizem nada sobre tipos de
texto que eram correntes nesse tempo na Síria, na Ásia Menor ou na Grécia.
Além disso, em sua maioria, esses papiros são fragmentários (§7.2b) e em alguns
casos não permitem uma avaliação satisfatória do tipo de texto representado. A
situação se complica ainda mais com uma descoberta surpreendente no estudo
desses papiros antigos: poder-se-ia esperar que todos os papiros egípcios confir-
massem o texto de apenas uma das famílias de manuscritos estabelecidas pelos
peritos em crítica textual, especificamente o texto Alexandrino; esse, porém,
não é o caso. Em várias situações, papiros do século III apresentam o que, da
perspectiva dessas famílias, deve ser designado como "texto misturado». Isso não
necessariamente invalida a hipótese dessas famílias, mas significa simplesmente
que elas derivam de arquétipos que foram criados nas décadas iniciais do século
IV, ao passo que elementos típicos de rodas essas famílias existiam em textos
anteriores, embora as famílias em si ainda não existissem.
O quarto problema é que, por mais valiosas que possam ser as informações
dos papiros antigos, eles não nos dizem nada sobre a história do texto antes do
fim do século li, isto é, o tempo anterior à organização do cânon do Novo Testa-
mento (§7. lb). Não há dúvida de que só foi dada atenção especial ao texto desses
escritos depois que eles se tomaram «Sagrada Escritura" e somente quando os
primeiros grandes comentaristas do Novo Testamento, como Orígenes e Hipólito,
surgiram no século III. Como foram tratados os textos nos 100 a 150 anos que
separam os autógrafos da elevação do seu produto escrito à condição de Sagrada
Escritura? Deve-se observar também que um número muito menor de cópias
estava provavelmente em circulação nas primeiras décadas da transmissão. Se
um escriba se via diante de um texto corrupto ou ilegível e não tinha acesso a
outra cópia do mesmo texto, ele seria forçado a retocar o texto de acordo com
seus próprios critérios. Outro problema surgia quando um escriba encontrava
uma nota marginal no manuscrito que ele estava copiando. Essas marginalia
são em geral palavras ou frases que um escriba anterior havia acidentalmente
esquecido. Elas também podiam ser, porém, acréscimos posteriores como, por
exemplo, a determinação de que as mulheres devem ficar caladas na igreja, que
alguém escreveu na margem de ICor 14, e que um escriba inseriu depois de I Cor
§ 7 . 2 a O T E XTO D O N O V O T E STAM E N T O
23
14,34 e'outro depois de 1Cor 14,40. CorrupçÕes textuais decisivas, mudanças e
revisões de textos antigos gerahnente ocorriam durante os primeiros cem anos de
sua transmissão, isto é, durante o período em que o significado permanente de
um texto ou seu autor ainda não foi reconhecido ou ainda é tema de controvérsia.
Há inúmeros exemplos de alterações e corrupções dos autógrafos dos es-
critos do Novo Testamento durante o período inicial de sua transmissão. Esses
apresentam ao especialista em critica textual problemas que não podem ser
resolvidos com métodos de crítica textual convencionais que Hdam com ma-
nuscritos preservados apenas. Por exemplo, a edição do Evangelho de Marcos
que foi usada por Mateus e Lucas deve ter sido substancialmente diferente do
Evangelho de Marcos como ele é transmitido em todos os manuscritos antigos
(§I0.2b). No Evangelho de Ioão, um redator do início do século li acrescen-
tou diversas passagens (a mais importante é João 6,52-59) e um capítulo final
(cap. 2 I) que possivelmente não devem ter feito parte do texto original de Ioão
(§ 10.3b), embora apareçam em todos os manuscritos preservados. O que todos
os manuscritos transmitem como a Segunda Epístola de Paulo aos C0líntios é
na verdade uma compilação de várias cartas menores que Paulo havia enviado
a Corinto (§9.3d), o mesmo parece acontecer com relação à carta de Paulo aos
filipenses (§9.3e[2]). Até que ponto essas novas edições podiam alterar o texto
original é demonstrado na edição das cartas de Paulo realizada por Marcião
(§7.1b[4]) - observe-se que não era outro o objetivo de Marcião senão o de
restaurar o texto original dos escritos de Paulo Instrutivo é também o caso de
2 Pedro, que, escrito no século li, incorporou toda a Epístola de ludas numa
nova edição (2 Pedro 2; §12.20. A crítica textual por si só não pode resolver, e
em alguns casos não consegue sequer reconhecer, essas corrupções antigas do
original. A restauração do texto original requer em alguns casos o julgamento
critico e até a conjetura do intérprete do escrito do Novo Testamento em ques-
tão e a aplicação de outros métodos como a crítica da fonte e a crítica literária.
(b) Os Papiros
Os papiros, especialmente os que foram escritos desde o século II tardio
até o século IV d.C., ocupam lugar importante entre os manuscritos do Novo
Testamento. Eles são designados por um número precedido por um P gótico (~).
Os primeiros papiros do Novo Testamento foram descobertos no fim do século
XIX e começo do século XX, embora esses fossem principalmente pequenos
fragmentos, em geral medindo apenas alguns centímetros quadrados. Exceção
foi o Papiro de Oxirrinco 4.657 (q9t~) do século III ou IV d.C., contendo grandes
porções de Hebreus 2-5 e 10-12. Papiros mais extensos, em grande número,
Bibliografia para §7.2b
Kurt Aland,"Das Neue Testament auf Papyrus,~ in idem, 5tudien zur Oberlieferung des Neuen Testament$ und
seines Textes
(ANT 2; 8erlin: de Gruyter, 1967) 91-136.
Frederic Kenyon, Our Bible and the Ancient Manuscripts (rev. A.W. Adams, New York: Harper, 1958).
Joseph van Haelst, Catalogue des papyrus litteralres]uifs et chré~iens (Série Papyrologie 1; Paris: Publications de
la 5orbonne, 1976).
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46
F O N T E S P A R A A H I S T Ó R I A D O C R I S T I A N I $ / ~ O P R I / ~ I T I V O
§ 7
tos de textos primitivos subsistentes em cópias inéditas de manuscritos, que em
última análise dependiam dos autógrafos ou, no caso das cartas paulinas, da
publicação dessas cartas pelas igrejas que as haviam recebido. Assim, a tarefa
fundamental e mais difícil da crítica textual do Novo Testamento é a descrição
da história do texto nos séculos I, II e III. Para o século III, os papiros egípcios
fornecem algumas evidências valiosas, mas apenas para essa área geográfica
específica. Para o século II, porém, existem apenas testemunhos indiretos, como
as citações em Justino Mártir, Irineu e~Clemente de Alexandria, as traduções do
latim arcaico e do siríaco arcaico, e as evidências para a edição do Novo Tes-
tamento de Marcião e do Diatéssaron de Taciano (e a reconstrução dos textos
de Taciano e de Marcião é a tarefa mais complexa da crítica textual ). A crítica
textual deve portanto definir critérios que ajudem a compreender esse período
antigo, não controlado e pré-canônico da transmissão. Alguns princípios desse
passo importantíssimo na busca do texto mais antigo do Novo Testamento são
os seguintes:
1. Deve-se ter sempre presente que mesmo a melhor decisão possível com
base nas evidências de manuscrito disponíveis e na identificação mais correta
do arquétipo mais antigo de uma família de manuscritos não nos fornece infor-
mações sobre a transmissão textual durante os primeiros cinqüenta a cem anos
da transmissão de um texto.
2. A melhor leitura de manuscrito possível de obter pode ainda ser a re-
construção de um texto corrompido feita por um escriba, isto é, de corrupções
que com toda probabilidade ocorreram em períodos anteriores de transmissão
do texto, especialmente quando um escrito ainda não estava ao abrigo de status
canônico.
3. Arquétipos das famílias textuais são representados por manuscritos
antigos subsistentes apenas para uma área geográfica limitada, especifica-
mente o Egito, enquanto a reconstrução dos arquétipos de testemunhos mais
distantes geograficamente, como traduções antigas, está repleta de fatores de
incerteza.
4. Deve-se estar preparado para reconhecer uma leitura antiga potencial-
mente valiosa em manuscritos e traduções procedentes de áreas marginais da
transmissão textual. As concordâncias, por exemplo, das traduções do latim
arcaico e do siríaco arcaico devem ser reconhecidas como testemunho de leituras
que existiam já no século II.
5. Um manuscrito relativamente tardio pode ter preservado leituras antigas
valiosas, ao passo que mesmo manuscritos mais antigos podem conter leituras
de pouco valor para a reconstrução do texto primitivo. Um bom exemplo disso
é o minúsculo 1739 do século X, cujo texto é quase idêntico ao do Papiro mais
antigo das epístolas paulinas, de cerca-de 200 d.C. (~94e). Mesmo o julgamento
sobre o caráter geral de um manuscrito posterior não necessariamente determina
o valor de todas as suas variantes.
6. Citações feitas pelos Padres da Igreja são um guia importante para a data
e o local dos textos que estavam realmente em uso nos primeiros séculos.
§ 7 . 2 g
O T E X T O D O N O V O T E $ T A / v ~ E N T O 4 7
7. Incertezas importantes e um amplo espectro de variantes nos testemu-
nhos conservados podem apontar para uma antiga corrupção de um texto de um
tempo anterior à composição de qualquer manuscrito subsistente. Nesses casos,
é muito possível que todas as leituras variantes sejam tentativas diferentes de
corrigir um texto corrompido e que nenhum manuscrito por si só preservou o
texto original.
8. Se é possível reconstruir um texto plausível com a ajuda de todos os
testemunhos disponíveis, não se pode excluir a reconstrução hipotética do texto
mais antigo (conjetura). Essa reconstrução, porém, exige não somente um domí-
nio competente dos métodos de critica textual, mas também um conhecimento
preciso da língua, terminologia e teologia do autor em questão. A crítica textual
e a crítica do conteúdo são componentes inseparáveis da disciplina.
9. O conceito de um texto "original" é problemático em si mesmo. Paulo
pode ter redigido sua Epístola aos Romanos em várias formas, uma para ser en-
viada a Roma, uma segunda forma como missiva a Éfeso e uma terceira versão
para ser distribuída a todos. 2 Coríntios é uma compilação de quatro ou cinco
cartas de Paulo. O texto mais antigo do Evangelho de Marcos usado por Mateus
e Lucas não era idêntico ao texto que aparece mais tarde nos manuscritos mais
antigos do Evangelho de Marcos.
Se tudo o que foi dito, pelos problemas relacionados, sugere que a recons-
trução de um texto "original" dos escritos do Novo Testamento é uma tarefa
desanimadora e talvez impossível, deve-se acrescentar que apenas uma porção
muito pequena do texto do Novo Testamento está sujeita a dúvidas. De modo
gerai, é alto o grau de certeza com relação aos textos mais antigos. Como disci-
plina importante da ciência bíblica, porém, a crítica textual precisa ser reaplicada
constantemente, mesmo nos casos em que uma solução parece ter sido alcançada.
Cada edição impressa do Novo Testamento Grego é uma reconstrução hipotética. )
Além disso, leituras variantes demonstram em muitos casos como certas passagens
foram interpretadas nos primórdios da Igreja e com freqüência apontam para (
dificuldades e problèmas na com.preensã0 de um texto. Assim, a critica textual é
em gerai o primeiro passo para a descoberta e solução de questões relacionadas
com a interpretação dos escritos do Novo Testamento.
3 . CR{T ICA DA FONTE
(a) Considerações Gerais
Uma pequena parcela apenas dos escritos do Novo Testamento e de outras
peças da literatura do cristianismo primitivo pode ser considerada como produto
criativo de um autor individual. O recurso a fontes escritas era disseminado e
determinou consideravelmente o conteúdo e a forma desses escritos. Além dis-
so, muitos livros não são preservados em sua forma original, mas em sua forma
subsistente são produto de redações, edições e compilações secundárias. Essa
situação força o estudante do Novo Testamento a enfrentar mui tos problemas
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F ON TES PAR A A H I ST Ó R I A D O C R I ST I AN E SM O PR I M I T I VO
de crítica da fonte. A análise a seguir esboçará alguns problemas fundamentais
e característicos dessa espécie. Uma abordagem mais completa está disponível
nos livros que tratam da história da literatura cristã primitiva relacionados na
bibliografia para este capítulo.
~. (b) O "Problema Sinótico" e as Fontes dos Evangelhos
"Evangelhos Sinóticos" é ã desi~rmção para os três primeiros evangelhos
do Novo Testamento, Mateus, Marcos e Lucas. Há muito tempo já se perce-
beu que esses três evangelhos apresentam materiais paralelos numa estrutura
semelhante e com freqüência na mesma seqüência de perícopes individuais.
Além disso, a redação das respectivas passagens paralelas em quaisquer dois
ou três desses evangelhos é multas vezes quase a mesma, ou tão próxima, que
certamente se deve concluir pela existência de algum tipo de relação literária.
Por outro lado, ao comparar o Evangelho de João com esses três evangelhos,
existem, sem dúvida, certas semelhanças, mas, exceção feita à narrativa da pai-
xão, o enunciado e a seqüência dos materiais são bastante diferentes, e grandes
porções dos materiais do Quarto Evangelho, especiaimente os longos discursos
Bibliografia para §73b:Textos
Albert Huck, Synopsis of the First Three Gospels with the Addition of the Johonnine Porollels (rev. ed. by Heinrich
Greeven;Tübingen: Mohr/Siebeck, 1981).
Kurt Aland
(ed.),Synopsis Quo~uorEvongeliorum
(lOth ed.;Stu~gart:WOrttembergis¢he Bibelanstalt, 1978).
Idem (ed.), Synopsis o f the Four Gospels: GreekoEngl ish Edition of the Synopsls Quottuor Evongeliorum with the Text
ofthe Revised Version (United Bible Societies, 1972 and later editions).
M.-I~. Boisrnard and A~ Lamouille, Synopsis Graeca Quattuor Evangeliorufn (Leuven: Peeters, 1986).
Burton H.Throckmorton (ed.), Gospel ParaUels: A Comparison of the Synoptic Gospels: With Alternative Readings
from the Manus(ripts and Non-Canonical Parallels (5th ed.; Nashville, TN: Nelson, 1992).
John S. Kloppenborg, Q
Parallels: Synopsis, Criticol Notes & Concordance
(F&F;Sonoma, CA: Polebridge, 1988).
Robert W. Fu nk (ed,), New Gospel Parallels (2 vols.; Philadelphia: Fortress, 1985).
James M. Robinson, Paul Hoffmann, and John ç. Kloppenborg (eds.), The Criticai Edition ofQ:A Synopsls (Leuven:
Peeters, and Minneapolis: Fortress, 2000).
Bibliografia para §7.3b: Estudos
Heinrich-Julius Holtzmann,
Die synoptischen Evan9elien: Ihr Ursprun9 und ihr geschichtlicher Charakter
(Leipzig:
Engelmann, 1863). A apresentação clássica da hip6tese das duas fontes.
Julius Wellhausen, Einleitung in die drelersten Evangelien (2d ed.; Berlin: Reimer, 1911; reprinted in idem, Evan9e-
Uenkommentare;
Berlin: de Gruyter, 1987).
B.H. Streeter, The
Four Gospel~A Study ofOrigins
(London: Macmillan, 1924 and reprints). A reconstrução mais
detalhada das fontes para os Evangelhos Sinóticos.
Wllliam R. Farmer, The Synoptic Problem (Dillsboro, NC:Western North Carolina Press, 1976). Farrner questiona a
hipótese das duas fontes.
James M.Robinson,'LOGOI SOPHON:On the Gattung aí Q,»in idem and
Koester, Trajectories,71-113.
James M. Robinson, Paul Hoffmann, and John S, Kloppenborg eds.), Documenta Q: Reconstruction of Q through
Two Centurles of Gospel Research Excerpted, 5orted and Evaluated
(I.euven: Peeters, 1996-).
John S. Kloppenborg, The Formation of Q: Trajectories in Anclent Wisdom Conections (Studies in Antiquity and
Christianity; Phi adelphla: Fortress, 1987).
Koester, Ancient Christian Gospels, 128-72 (on Q) a nd 216-39 (on the passion na rrative).
Bibliografia para §73b: Bibliografia Histõria dos Estudos
T.R.W. Longstaffand P.A.Thomas, TheSynopticProblem:A Bibliography, 1716-1988 (New Gospel Studies 4; Macon,
GA: Mercer University Press, 1988).
Arthur J. Beilinzoni with J.B.Tyson and W.O. WaJker (eds.), The Two-$ource Hypothesis: A Criticai Appraisal (Macon,
GA: Mercer University Press, 1985).
§ 7 . 3 b o T E X TO D O N O V O TE S TA M EN TO
4 9
de Jesus, não têm paralelos nos Evangelhos Sinóticos. É fácil imprimir os três
primeiros evangelhos lado a lado para demonstrar suas seqüências de perícopes
paralelas, mas a incorporação do Quarto Evangelho a essa "sinopse" representa
uma grande dificuldade.
«-7-. Essas semelhanças dos Evangelhos Sinóticos geraram uma série de hipóteses
sobre suas relações literárias. A hipótese mais antiga, que também concorda com
a venerável tradição eclesiástica, sustentava a prioridade de Mateus. Nesse caso,
Marcos é visto como uma condensação de Mateus, e Lucas como uma composição
posterior baseada tanto em Mateus como em Marcos. A proposição da prioridade
de Mateus foi apresentada numa forma modificada no fim do século XVIII por
Johann Jacob Griesbach. De acordo com Griesbach, Mateus foi antes usado por
Lucas, e Marcos é um resumo de Mateus e de Lueas. Essa "hipótese de Griesbach"
só interessa porque foi reapresentada recentemente pelo pesquisador americano
WiUiam R. Farmer e seus colaboradores, embora com aceitação limitada. Uma
segunda solução é a "hipótese do evangelho primitivo", que propõe a existência,
originalmente, de um único escrito evangélico oniabrangente, disponível no
passado a todos os autores dos nossos evangelhos, mas agora perdido, do qual
os evangelhos subsistentes, inclusive o de João ( ), extraíram excertos de acordo
com as necessidades de suas comunidades. A terceira tentativa de uma explicação
do problema sinótico, conhecida como "hipótese do fragmento», foi proposta
inicialmente por Friedrich Schleiermacher. Ele atirmava que é suficiente pensar
que a forma mais antiga dos escritos evangélicos consistia em várias coleções frag-
mentárias dos materiais sobre Jesus. Esses fragmentos devem ter sido diferentes,
dependendo do interesse do colecionador, um interessando-se apenas pelos ditos
de Jesus, outro pelas histórias de milagres de Jesus. É evidente que a hipótese
de Schleiermacher é de fato uma espécie de hipótese de duas fontes - uma fonte
para ditos, outra para as histórias sobre Jesus - embora ele não analise a possível
dependência de qualquer dos evangelhos sinóticos de outro.
Os estudos de Christian Gottlob Wilke e de Christian Hermann Weisse,
ambos publicados em 1838, demonstraram convincentemente que o Evangelho
de Marcos deve ter sido o evangelho mais antigo e que foi usado tanto por
Mateus como por Lucas. Pouco depois Heinrich lulius Holtzmann aprofundou
essa proposta demonstrando que Mateus e Lucas devem ter usado uma segunda
fonte comum, a assim chamada Fonte dos Ditos Sinóticos (sigla "Q», da palavra
alemã
Quelle;
ver § 10. la[1 ]). Enquanto os dois últimos evangelhos extraíram
sua estrutura e também a maioria dos materiais sobre a vida e atividades de
Jesus do Evangelho de Marcos, a Fonte dos Ditos forneceu-lhes as palavras de
Jesus, que foram então transformadas, de vários modos, em discursos de Jesus.
Essa solução do problema sinótico, conhecida como "hipótese das duas fontes»,
é hoje amplamente aceita, embora algumas objeções ainda sejam levantadas,
especialmente com relação à existência real da Fonte dos Ditos (O).
Os argumentos a favor da hipótese das duas fontes mudaram um pouco
desde que ela foi concebida. O argumento mais forte foi proposto bem no começo
da descoberta da prioridade de Marcos, especificamente, de que Mateus e Lucas
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5 0
FONTES PAPA A HISTÓRIA DO CP, IST IANISMO PRIMIT IVO
§ 7
s~ coincidem na seqüência de suas perícopes nos casos em que Marcos apresenta
a mesma seqüência. Esse argumento ainda é válido. Entretanto, originalmente,
ele se relacionava com o pressuposto de que essa seqüência correspondia ao
curso real dos eventos no ministério de Jesus, fazendo assim do Evangelho de
Marcos o testemunho mais antigo para a vida do Jesus histórico. Essa confiança
sofreu um abalo quando, pouco depois do início do século XX, WiUiam Wrede
demonstrou que a seqüência de eventos de Marcos no ministério de Jesus tem
pouca relação com o ministério histódco de Jesus, sendo de fato um construto
teológico do autor do evangelho mais antigo. Isso fortaleceu o argumento a fa-
vor da prioridade de Marcos. Seja qual for o conhecimento que Mateus e Lucas
possam ter tido, se é que tiveram, do ministério do Jesus histórico, eles adotaram
em suas composições a construção artificial da seqüência de eventos do Evan-
gelho de Marcos; essa conclusão reforça os argumentos de que eles dependem
literariamente de Marcos.
Mais difícil do que a demonstração da prioridade de Marcos é a reconstru-
ção da segunda fonte comum de Mateus e Lucas, o Evangelho dos Ditos Q. Em
alguns casos, as palavras comuns a esses dois evangelhos, não somente ocorrem
numa seqüência muito próxima, mas também revelam muitas semelhanças na
composição e no fraseado. Essa afinidade é especialmente evidente nas porções
paralelas do Sermão da Montanha (Mateus 5-7) e do Sermão da Planície (Lucas
6). Em outras porções dos ditos comuns, porém, podem-se observar diferenças
marcantes tanto no fraseado quanto na seqüência. Deve-se presumir portanto que
"Q" foi realmente a fonte escrita, mas que Mateus ou Lucas, ou ambos, também
usaram essa fonte com bastante liberdade ou que cada um deles tece acesso a
diferentes estágios desse desenvolvimento. Entretanto, o Projeto Internacional
sobre Q, coordenado pelo pesquisador americano James M. Robinson, concluiu
recentemente com sucesso a reconstrução do texto grego dessa segunda fonte
,usada por Mateus e Lucas. O trabalho desse grupo internacional de especialistas
oferece fartas evidências da existência dessa segunda fonte de Mateus e Lucas
como um texto grego - mesmo que alguns dos seus materiais fossem originaria-
mente traduzidos do aramaico.
.~¿--,Á(':. Reconhecer que Mateus e Lucas empregaram as mesmas duas fontes es-
critas, o Evangelho de Marcos e o
Evangelho de Ditos Q,
não resolve todos os
problemas das fontes de Mateus e Lucas. Ao lado dos materiais comuns extraídos
dessas duas fontes, Mateus e Lucas incluem ambos materiais diferentes. Entre
esses estão as narrativas da infância de Mateus 1-2 e de Lucas 1-2, diversas
parábolas em Mateus 13 e materiais apocalípticos especiais em Mateus 24-25,
e em Lucas especialmente boa parte do material incorporado à narrativa de
viagem de Lucas 9,51-18,15. Isso levou à sugestão de duas fontes adicionais,
uma para os materiais especiais de Mateus (identificada com "M") e outra para
os materiais especiais de Lucas (identificada com "L"). Quanto a esta última,
parece haver concordância geral, embora seja mais difícil determinar-lhe o grau
de abrangência (ela continha apenas os materiais especiais de Lucas ou também
perícopes comparáveis a seções do Evangelho de Marcos?). De qualquer modo,
O TEXTO DO NOVO TESTAMENTO
esquadrinhar teorias da fonte em ~aos de detalhes cada vez mais complexos
revela os limites de sua utilidade(Nem no estágio de formação dos evangelhos
nem em seu desenvolvimento posterior é possível explicar todas as características
exclusivamente com o pressuposto de fontes escritas. Antes, a tradição livre e
predominantemente orai que existia no início do processo de transmissão con-
tinuou século II adentro e além dele, e foi~ssim um recurso constante para o
desenvolvimento dos evangelhos escdto~
Importante para o estabelecimenfõ da hipótese do
Evangelho dos Ditos
Q é não somente o julgamento de que Mateus e Lutas devem ter usado alguns
materiais escritos, mas também a determinação do seu gênero e do seu caráter
literário. Isso foi feito com sucesso por James M. Robinson, que reconheceu que o
gênero desse escrito corresponde a um tipo de literatura judaica que ele chamou
de Logoi Sophon, «Palavras dos Sábios". lohn S. Kloppenborg aprofundou a
sugestão de Robinson ao comparar Q com a literatura sapiencial antiga. Outro
representante desse gênero na literatura cristã primitiva é o Evangelho de Tomé
(§ 10.1 b[ 1 ]). A fonte dos materiais especiais de Lucas também pode talvez ser
class~a'cada como um livro desse gênero.
¡O gênero literário de outra fonte escrita primitiva para os evangelhos
subsistentes do Novo Testamento também pode ser reconhecido: uma ou várias
coleções de histórias de milagres de lesus, que foram usadas pelo Evangelho de
Marcos e também pelo Evangelho de ~oão. Esse tipo de literatura enumera os
grandes atos de um deus, herói ou pessoa famosa; sua denominação adequada
é "aretologia» (§3.4d). O conteúdo e a seqüência de várias histórias de milagres
em Marcos e João têm bastante em comum para permitir a conclusão de que
eles usaram diferentes versões da mesma coletânea literária. Essa fonte, que no
Evangelho de João é chamada de Semeia Source ("Fonte dos Sinais"; § 10.3a[5]),
apresenta Jesus como um curador que possui poderes milagrosos, podendo con-
trolar as próprias forças da natureza (ver as narrativas em que Jesus acalma a
tempestade, anda sobre o mar e alimenta as multidões).J
Uma terceira fonte escrita compartilhada pelos evangelhosdo Novo Tes-
tamento é a narrativa da paixão. Versões diferentes dessa fonte foram usadas
pelo Evangelho de Marcos, pelo Evangelho de loão e pelo
Evangelho de Pedro
(§ 10.2a[2]); as narrativas da paixão de Mateus e Lucas são no geral dependentes
do Evangelho de Marcos. O gênero literãrio da paixão é a história do justo sofredor
que ocorre repetidamente na literatura de Israel no período do Segundo Templo
e é em.última análise baseada no "servo sofredor» do Dêutero-Isaías.
//Os Evangelhos do Novo Testamento baseiam-se assim em três diferentes- '
composições cristãs mais antigas, cada uma das quais pertence a um gênero lite-
rário especial, É bem possível que outros materiais evangélicos também derivem
de fontes escritas; entretanto, essas fontes não são «literatura», mas composições
casuais de materiais orais em forma escrita, como coleções de parábolas (Marcos
4), materiais apocalípticos (Marcos 13; outra coleção desses ditos apocalípticos
está preservada na
Didaqué
16) e séries de instruções catequéticas. Em rodas as
instâncias, é necessário reconhecer fontes escritas para avaliar as contribuições
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FONTES PARA A HISTÓRIA DO CRISTIANISh ~O PRIMITIVO
redacionais dos autores dos evangelhos. Em última análise, porém, todos os
materiais preservados nos evangelhos do Novo T,e~amento derivam de tradições
orais (ver abaixo sobre Crítica da Forma, §7.4a~
~~~ (c) Os Aros dos Apóstolos
Lucas, autor do terceiro Evangelho do Novo Testamento e dos Atos dos
Apóstolos, pertence à terceira geração Ao cristianismo (§ 12.3a). Ele dificilmente
foi testemunha ocular dos eventos que descreve e por certo não foi companheiro
de viagem e colaborador do apóstolo Paulo. Não há dúvida de que precisou recor- .
rer a fontes escritas - principalmente Marcos e Q - para compor o seu Evangelho;,:
mas também para a segunda parte da sua obra, os Aros dos Apóstolos, Lucas ficou
na dependência de outras fontes. Enquanto as fontes consultadas para a com-
posição do Evangelho são bastante claras, as relacionadas com o Livro dos Aros
continuam enigmáticas. Para este, os especialistas se empenh .am em identificar
duas fontes escritas diferentes, uma "Fonte Antioquense" para os materiais da
primeira parte (Atos 6-12 e 15), e uma narrativa de viagem, denominada "Fonte
Nós", para a segunda parte do livro (Atos 16-28). Ambas as teorias, porém,
apresentam dificuldades consideráveis. Ainda não se encontrou uma explicação
convincente para o gênero literário de uma suposta Fonte Antioquense. Ela teria
incluído histórias de milagres e também informações de arquivo, um relato de
martírio (o de Estêvão) e até alguns discursos dos apóstolos. A combinação de
todos esses elementos tem explicação melhor como resultado dos esforços lite-
rários de Lucas, que relacionou tradiçÕes parcialmente legendárias com alguns
documentos autênticos e acrescentou discursos em ocasiões apropriadas, criando
assim uma narrativa coerente. A busca de uma fonte antioquense parece por-
tanto um esforço inútil, apesar de ninguém negar que o Livro dos Aros preserva
algumas irLformaçÕes históricas. Essas informações incluiriam, por exemplo, a
lista dos "diáconos" helenísticos (Ar 6), o martírio de Estêvão (Ar 7), a fundação
da igreja de Antioquia (Ar 11) e a lista dos profetas e doutores em Antioquia
(Ar 13). Também a Fonte Nós é problemática porque o «estilo nós" da narrativa
aparece em passagens que são evidentemente composição do autor do Livro
dos Aros; esse estilo por si só não pode, portanto, ser assurnido como critério
de distinção entre fonte e redação. Por outro lado, o aparecimento multas vezes
Bibliografia para §7.3¢ (ver também abaixo §12.3a.3)
Henry J. Cadbuw, The
Moking ofLuke-Acts
(2d ed.; London: SPCK, 1958).
Idem et al.,'The Composition and Purpose of Acts,*in Foakes Jackson and Lake, Seginnings, 2.3-204.
Ernst Haenchen,'Das~~Vir' in der Apostelges¢hichte und das Itinerar,* in idem, Go¢t und Menseh, 227-ó4.
Idem,'Tradition und KomposKion in der Apostelgeschichte,* In idem, Gott und Menseh, 202-26.
Idem,'The Book of Acts as $ource Material for the Hlstory of Early Christiantty,* in Leander Keck and J. Louis
Martyn (eds.),5tudies in Luke-Acts: Essay$ Presented in Honor of Poul 5chuber1: (Nashville,TN: Abingdon, 1966)
258-78.
Peter M. Head,'Ac~ and the Problem of Its Texts,* in B.W.Winter and A.D. Clark (eds.), The Book ofActs in lis
Ancient Literary 5etting, vol. 1: The Book of Acts in t$ First Century 5etting (GrandRapids, MI: Eerdmans, 1993)
415-44.
J. Wehnert, Die Wir-Passagen der Apostelgeschichte: Ein lukonisches Stilmittel aus jü~'scher Tradition (G~t~inger
Theologische Arbeiten 40; G~ttingen:Vandenhoeck & Ruprecht, 1998).
O TEXTO DO NOVO TESTAMENTO
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5 4 FONTES PARA A HISTÓRI A DO CRI ST IANI SMO PRIMI TI VO
§ 7
inesperado da primeira pessoa do plurat ("nós") em relatos sobre as viagens de
Paulo permite a conclusão de que o autor de Atas realmente usou um itinerário
ou relato de viagem que pode ter sido escrito por um companheira de jornada de
Paulo. Ao mesmo tempo, parece que o autor de Atas também empregou "nós"
como expediente estilíítico em seções para as quais ele certamente não utilizou
nenhuma fonte; essa conjetura é mais evidente na narrativa da viagem pelo mar
e do naufrágio (Ar 27-28).
%,~¿, Atas apresenta ainda outro problema literário na medida em que é transmi-
tido em duas versões que multas vezes diferem uma da outra. O texto geralmente
impresso em edições críticas do Novo Testamento é o dos unciais egípcios do
século IV (~, B etc.), cujas leituras são em grande parte idênticas às dos Padres
da Igreja alexandrinos. Outra versão eneontra-se nos representantes do Texto
Ocidental (Códice D e a tradução do Latim Arcaico) com leituras que são sus-
tentadas pelos Padres da Igreja latinos. Essa versão contém inúmeras leituras
e passagens especiais que parecem ser "acréscimos". Entre esses está a famosa
adição da Regra de Ouro ao Mandado Apostólico em Atas 15,29. Quer se con-
sidere ou não o texto Ocidental de Atas como secundário, não há dúvida de que
ele já existia no século II. Uma sugestão interessante vê essa versão como o texto
original de Atas ou então como a segunda edição do livro feita pelo autor. Isso
poderia explicar o fato de que o texto Ocidental apresenta algumas informações
valiosas que estão ausentes na versão Alexandrina, como as que se referem a
lugares (Atas 12,10; 20,15) e tempos (Atas 19,9; 27,5). Ao mesmo tempo, ou-
tras leituras Ocidentais devem ser secundárias, especialmente as tentativas de
adaptar contradições e de acentuar as tendências antijudaicas do livro, É portanto
mais provável que o texto Ocidental de Atas seja uma segunda edição (feita pelo
próprio Lucas?), mas não uma degeneração do texto original.
O problema das fontes do Livro dos Atas está estreitamente relacionado
com a questão do seu gênero literário. Muitos estudiosos supõem que Lucas tinha
intenção de produzir uma obra histórica e que se pode comparar o uso de fontes
feito por ele com procedimentos análogos adotados por escfitores de história
antigos. Típica para obras históricas gregas e latinas~ com essas características é,
por exemplo, a composição de discursos, que os autores inseriam em suas fon-
tes para ressaltar situações particulares e para sublinhar seu significado. Nesse
sentido, pode-se concluir que Atas emprega um expediente literário utilizado
..... pelo histofiad9_r. Também a concepção do livro como um todo, que descreve um
desenvolvimento histórico que começa em lerusalém e termina em Roma, poderia
ser classificada como típica para uma história antiga (§3.4c). Por outro lado, o
uso de inúmeros materiais lendários e histórias de milagres, muitas vezes inclusive
aperfeiçoados pelo autor, levariam à conclusão de que Lucas foi um historiador
muito pouco crítico, mesmo em comparação com os padrões da antiguidade.
Somente informações como o relato sobre os inícios da igreja de Antioquia
(Atas 11) são intrinsecamente condizentes com a intenção da histofiografia. As
ficas informações históricas sobre as Viagens de Paulo também são pertinentes,
mas falta uma descrição das ações organizacionais de Paulo relacionadas com
§ 7 . 3 c O TEXTO DO NOVO TESTAMENTO
5 5
a fundação de igrejas, e a apresentação da atividade do missionário consiste
principalmente em histórias de milagres.
Essas observações resultaram na sugestão de que o modelo literário de Lu-
cas não foi o registro da história, mas o romance antigo (§3.4e). Essa hipótese é
reforçada pela longa narrativa do naufrágio (Atas 27-28). Os Atas dos Apóstolos
tefiam assim uma relação muito estreita com os atas apócrifos, cujos exemplares
mais antigos foram escritos pouco tempo depois da própria obra de Lucas (ver,
por exemplo, Atas de Pedra, Atas de Paulo [§12.3b] e Atas de ]oão [§ 10.3d]).
Esses atas apócrifos também empregam o motivo da viagem, usam acfiticamente
uma fica tradição de histórias de feitos e eventos milagrosos, inserem discursos
freqüentes feitos pelos apóstolos (o que reflete a prática da pregação missionária
dos tempos da composição desses livros) e são quase totalmente desprovidos de
informações historicamente valiosas. Essa hipótese é atraente, mas esquece o fato
de que o Livro dos Atas é apenas a metade de uma obra maior que compreende
o Evangelho de Lucas e os Atas dos Apóstolos.
Uma solução talvez esteja na recente dissertação de Marianne Bortz apre-
sentada na Universidade Harvard. Bonz defende convincentemente que o modelo
literário da obra de Lucas foi a antiga epopéia grega recfiada na obra latina
Eneida, de Virgílio. A epopéia é um esforço político e intensamente carregado
de oferecer a uma comunidade a história da sua fundação. Como a Eneida de
Virgílio está relacionada com eventos lendários da antiga Tróia, onde o seu herói,
Enéias, tem sua origem, assim o herói de Lucas-Atos, Jesus de Nazaré, é apresen-
tado como herdeiro das antigas profecias de Israel. A divina providência dirige
o curso da atividade de Jesus e da atividade dos apóstolos numa história que,
semelhante à história de Enéias, começa num antigo país do Ofiente e termina
gloriosamente em Roma. A seqüência dos eventos demonstra legitimação divina
para uma nova nação que, apesar da adversidade, está destinada a preparar o
cenário para uma nova era da história que é vista como a realização escatológi-
ca da antiga profecia. Na composição de uma epopéia, a inclusão de materiais
lendários é legitima porque realça a sanção divina do curso dos eventos. Se a
epopéia 6 realmente o modelo literário de Lucas, i~ possível avaliar a totalidade
da obra de Lucas como uma unidade autocontida, em que o autor foi capaz de
empregar suas fontes e materiais a despeito do seu valor específico como infor-
mação histórica possivelmente fidedigna. (Para uma análise mais aprofundada
da obra de Lucas, ver §12.3a.)
(d) Composição e Problemas Literários das Cartas de Paulo
Somente as cartas seguramente genuínas de Paulo serão analisadas aqui,
especificamente, Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Filipenses, 1 Tessaloni-
canses e Filêmon (para as epístolas deuteropaulinas, ver § 12. la; 12.2a, b, g).
Bibliografia para §7.3d
Dieter Georgi,
The Opponents of Paul in Second Corinthians: A Study In Religious Propaganda In Late Antlquity
(Philadelphia:
Fortress, 1986).
7/18/2019 Introdução ao Novo Testamento
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62 FONTES PARA A HISTÕRIA DO CRISTIANISMO PRIMITIVO
§ 7
período da Renascença. Uma versão posterior dessa recensão aparece em alguns
manuscritos latinos medievais que contêm cartas adicionais de Início ao apóstolo
]oão, a Maria, mãe de lesus, e uma carta de Maria a Início. Uma edição diferente
das cartas de Início era também conhecida na Idade Média, quando foi traduzida
para o latim, para o inglês e para o armênio. Em grego, porém, essa edição está
preservada somente num manuscrito, o Códice Mediceo Laurentianus de Floren-
ça, escrito no século XI. Esse manuscrito contém também as cartas da "Recensão
Longa", mas difere dela enquanto seis~las sete cartas mencionadas por Eusébio
(falta a carta aos romanos) aparecem numa forma mais breve, sendo por isso
chamado de "Recensão Média». Também a carta aos romanos está preservada
numa forma mais breve num manuscrito grego do martírio de Início, chamado
Martyrium Colbertinum (do qual existem também versões latinas e siríacas).
Essa "Recensão Média» das cartas de Início foi redescoberta no século XVII,
reimpressa várias vezes, e o passar do tempo levou à aceitação generalizada de
que as cartas dessa recensão mencionadas por Eusébio eram as cartas originais
de Início. Em 1845, porém, o pesquisadoringlês Cureton publicou uma nova
recensão, preservada em tradução siríaca e contendo apenas três cartas ainda
mais breves, espechícamente, as cartas aos efésios, aos romanos e a Policarpo.
Subseqüentemente, alguns estudiosos aceitaram somente essas três cartas em
forma breve como inacianas autênticas.
As várias coleções e recensões das cartas de Início formam assim um total
de quatorze canas escritas por ele e duas cartas enviadas para ele. As sete cartas
mencionadas por Eusébio são transmitidas numa versão mais breve e numa mais
longa, e três delas numa recensão ainda mais breve. Os estudos de Theodor Zahn
e I.B. Lighffoot no fim do século XIX demonstraram convincentemente que as seis
cartas da Recensão Média e a carta aos romanos na forma em que ela aparece no
Martyriurn Colbertinum -
isto é, as sete cartas mencionadas por Eusébio - eram
as cartas originais de Início. Em seu comentário, William Schoedel defendeu
essa visão com sucesso contra alguns críticos mais recentes. A Recensão Longa
resultou de controvérsias teológicas na dividida igreja de Antioquia do século
IV, quando ambos os lados recorreram à autoridade de Início. Nessa época, as
cartas originais de Início foram expandidas e outras cartas pseudo-epigráficas
foram acrescentadas à coleção. As cartas originais subsistiram em duas tradi-
ções textuais apenas, uma, a carta aos romanos, no Martyrium Colbertinum, as
outras seis no Códice Mediceo Laurentianus. A ausência da carta aos romanos
no Códice Mediceo talvez se dera ao fato de que a Recensão Média depende
da coleção de Policarpo, que não teve acesso à carta enviada a Roma, ou então
porque ela pode ter sido retirada da coleção; Eusébio sabia da existência dessa
carta. A Recensão Média, conservada no Códice Mediceo Laurentianus, incluiu
também as cartas pseudepigráficas da Recensão Longa. Ela depende portanto da
Recensão Longa, embora preservando ao mesmo tempo seis das cartas em sua
forma original. A versão siríaca, mais breve de três dessas cartas é uma redução
secundária, não das cartas originais, mas da forma dessas cartas que aparece na
Recensão Longa; elas são assim inúteis para a reconstrução do texto original, que
O TEXTO DO NOVO TESTAMENTO
deve basear-se principalmente no texto grego de um único manuscrito medieval
antigo, apoiado por várias traduções e por um papiro grego que contém partes
do texto para Esmirneus 3.1-12.1.
A história da transmissão e expansão das cartas inacianas demonstra clara-
mente o possível destino de uma coleção dos primórdios da literatura cristã que
não foi protegida pelo status canônico. Como a proteção canônica para as cartas do
Novo Testamento só começou no fim do século II, é preciso lembrar que também
as cartas do Novo Testamento podem ter sido submetidas a uma grande revisão e
a acréscimos antes que o cânon do Novo Testamento fosse criado. Isso realmente
aconteceu com o corpus paulino, como conseqüência do acréscimo das Epístolas
Pastorais e da nova edição das cartas de Paulo realizada por Marcião (§ 12.3c).
4 . PROBLEN~AS DE CRIT ICA DA FOR/v~A, DA TRADIÇÃO,
DA NARRAT I VA E DA RET Ó RI CA
(a) A T{adição Sinótica ,
O pai da crítica da forma (Formgeschichte) foi Johann Gottfried Herder
(1744-1803). Ele reconheceu que as formas da língua, por meio das quais o
passado se toma presente, não são uma questão de livre escolha individual, pois
Bibliografia para §7.4
Gerhard Lohfink, The Bible: Now I Get It/A Forrn-Criti«ism Handbook (Garden City, NY: Doubleday, 1979).
Erich Dinkler,'Form Critldsrn of the New Testament,» in Black a nd Row[ey, Peoke's Commentory, 683-85.
Vielhauer, Geschichte,9-57.
J.L. Bailey and L.D. Vander Broek, Literary Forros in the New Testament: A Handbook (Loulsville, KY: Westminster
John Knox, 1992).
Klaus Berger, Formgeschichte des Neuen Testaments(Heidelberg: Quelle & Meyer, 1984).
Georg Strecker, Litemturges«hichte des Neuen Test«ments (Uni-Taschenbücher,no. 1682; G6ttingen: Vanden-
hoeck & Ruprecht, 1992).
Bibliografia para §7.4: Estudos clássicos seminais
André Jolles, Einfache Formen (2d ed. A. çchossig; Halle [Saale]: Niemeyer, 1956; reprint ed.: Darmstadt: Wissen-
schaftllche Buchgesellschaft, 1964).
Eduard Norden, Agnostos Theos: Untersuchungen zur Formengeschichte religiOser Rede (2d ed.; Leipzig:Teubner,
1923; reprint: Darmstadl: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1956).
Alfred Seeberg, Die Didache des Judentums und der Urchristenheit (Leipzig: Deichert, 1908}.
Idem,
Der Katechismus der Urchristenheit
(Leipzig: Deichert, 1903; reprint:Th80 26; MÕnchen: Kaiser, 1966).
Bibliografia para §7.4a
Rudolf Bultmann, The History ofthe Synoptic Tradition (2d ed.; New Yorlc Harper, 1968).
Idem and Karl Kundsin, Forro Criti¢ism (New York: Harper, 1962).
Martin Dibelius, From Trodition to Gospe/(2d ed.; New York: Scribner's, 1934).
Karl
Ludwig Schmidt, Der Rahmen der Geschichte Jesu (Darmstadt: Wlssenschaftliche Buchgesellschaft, 1964).
As obras de Bultmann, Dibelius Schmidt, publicadas de 1919 a 1921, constituem a base do método da
crítica da forma.
Vincent Taylor, The Formation of the.GospelTradition (New Yorlc çt. Martin's, 1953).
Edgar W. McKnight, What Is Forra Criticisrn? (GBSNTS; Philadelphia: Fortress, 1969).
Norman Perrin,
What Is Redaction Criticisrn?
(GBSNTS; Philadelphia: Fortress, 1969).
Helmut Koester,'Formgeschichte/Formenkritik It. Neues Testament,"TRE 11 (1983) 286-99.
Ferdinand Hahn (ed.), ZurForrngeschichte des Evangeliurns (WdF 81; Oarmstadt:Wissenschaftliche Buchgesell-
scha~ 1985).
Klaus 8erger et ai.,
Studien und Texte zur Formgeschichte
(TANZ 7;Tübingen: Francke, 1992).
7/18/2019 Introdução ao Novo Testamento
http://slidepdf.com/reader/full/introducao-ao-novo-testamento-56d7248cbbe82 21/28
6 4 F O N T E S PA R A A H I S T Ó R I A D O C R I S T I A N I S M O PR I M I T I V O
§ 7
a língua não é algo que o indivíduo inventa espontaneamente em cada nova situa-
ção. Pelo contrário, a língua já é dada como uma realidade social; ela pertence
a um povo ou comunidade. Isso se aplica não somente às formas convencionais
de vocabulário e sintaxe, mas também aos gêneros pelos quais palavras e frases
se fixam em certas formas, como o canto, a anedota, o provérbio, a lenda, a
epopéia e o mito. Todas essas formas, por mais fluidas que sejam em si mesmas,
estão sociologicamente presas a padrões institucionalizados de comunicação e
convenções por meio dos quais um& sociedade regula os relacionamentos dõs
seus membros. Todas essas formas são por definição orais, porque a oralidade 6
a situação de vida da comunicação entre membros da mesma sociedade. A ora-
lidade precisa ser compreendida no sentido mais amplo como tudo o que não é
controlado pelos padrões críticos de publicação em forma escrit.a.
As idéias de Herder só ganharam força depois da consolidação da hipótese
das duas fontes. Uma das primeiras conseqüências dessa hipótese foi a convicção
de que o Evangelho de Marcos refletia o curso original da vida e do ministério de
Jesus. A publicação do livro de William Wrede em 1901, O Segredo Messiânico
nos Evangelhos, destruiu essa confiança.-Segundo Wrede, toda a estrutura do
Evangelho de Marcos é resultado de uma reflexão teológica do autore não tem
relação com o curso, real dos eventos n° ministério de Jesu.s. Nos anos seguin-
tes, lulius Wellhausen, em seus comentários sobre Mateus, Marcos e Lucas,
publicados em 1903 e 1904, procurou mostrar como os autores haviam usado
e configurado materiais que foram originariamente transmitidos em forma oral.
Isso possibilitou o surgimento tanto da questão da história da tradição oral como
da questão da critica da redação.
NO ano de publicação da obra de Wrede, 1901, Hermann Gunkel demons-
trou em seu comentário sobre o Livro do Gênesis que esse livro era essencialmente
uma coleção de histórias que originariamente haviam circulado em forma oral.
Essa posição foi apoiada por filólogos clássicos. Em sua obra Formasde Litera-
tura Cristã Primitiva (3a ed. 1912), Paul Wendland afirmou que "o entendimento
do estágio primitivo da tradição oral e de suas características especiais ¿ tim
pressuposto essencial para a compreensão das produções literárias". Em 19 i 3,
outro estudioso dos clássicos, Eduard Norden, publicou sua ainda famosa obra
AFNOZTOZ OEOX, com o subtítulo "Investigações sobre a História das Formas
do Discurso Religioso". A tese desse livro é a de que o Discurso de Paulo no
Areópago, descrito em Atos 17, reflete as formas do estilo oral dos discursos de
propaganda religiosa.
Isso preparou o ambiente para as obras decisivas de crítica da forma de
Rudolf Bultmarm e Martin Dibelius sobre a tradição sinótica. Em sua dissertação
de 1911, "O Estilo da Pregação de Paulo e a Diatribe Estóico-Cínica", Bul~ann
já havia mostrado que o estilo e a retórica das cartas de Paulo eram devedoras à
pregação popular de missionários religiosos e fd0sÓfic0s da antiguidade'Martin
Dibelius havia publicado um livro em 1913 demonstrando que as histórias sobre
João Batista foram compostas com base em tradições orais sobre esse famoso
precursor de Jesus. As obras de 1919 e 1921 de Dibelius e Bultmann se empe-
§ 7 . 4a P R OB L E M A S D E C R Í T I C A D A F O R M A , TR A D I Ç Ã O, N A RR A TI VA E R E T Ó RI C A 6 5
nhavam então em analisar todos os materiais nos primeiros três evangelhos do
Novo Testamento e em explicar como eles se baseavam num período de tradição
oral. Nesse processo, eles identificaram certas "formas" de uso e transmissão
oral que ainda eram reconhecíveis no modo em que foram escritas. Ao mesmo
tempo, materiais evangélicos, para os quais formas de antecedentes orais não
podiam ser identificadas, foram classificados como "redacionais". O método
que três décadas mais tarde se tomou conhecido como "crítica da redação" não
contribuiu com nada de novo; apenas apurou um pouco mais a análise dos ma-
teriais redacionais nos Evangelhos e resultou assim num reconhecimento mais
detalhado das estratégias literárias dos redatores dos Evangelhos.
A transmissão oral inicial dos materiais sobre Jesus não ocorreu por falta
de capacidade dos primeiros cristãos de produzir registros escritos - as cartas
de Paulo mostram que os primeiros missionários cristãos podiam muito bem
comunicar-se por escrito - nem por uma preferência dogmática pelo meio oral
(como no caso do judaísmo rabínico); foram os interesses e as necessidades das
primeiras comunidades cristãs que tornaram a transmissão oral necessária.//Á
tradição de Jesus e sobre Jesus estava viva na propaganda e na pregação missioná-
rias, na vida prática e na liturgia, no ensino e debates das primeiras comunidades
cristãs. Foi nesses contextos que as palavras de Jesus foram criadas e ensinada~
e as histórias sobre ele receberam seus contornos de modo que pudessem ser
narradas e lembradas. A forma e o conteúdo da tradição foram assim moldados
pelas exigências sociológicas e religiosas da pregação do evangelho e da formaçã~
das comunidades cristãs. A lembrança e transmissào de tudo o que 0 própfi~
Jesus fez, ensinou e pre~ou foram marcadas pelas necessidades e pela situação
das comunidades cristãs. Foram aS comunidades, e não o próprio Jesus, que
criaram as formas da tradição que preservou a memória de Jesus. Seguramente,
algumas das primeiras comunidades cristãs ainda pertenciam ao meio cultural
e religioso do povo judeu da Palestina, ao qual o próprio Jesus pertencia. Em
pouco tempo, porém, o cristianismo ultrapassou as fronteiras desse meio e foi
ao encontro do mundo helemstlc0-romano/Sua sltuaçao soclolog:ca, cultural e
religiosa mudou~ isto é, a situação' de vidä (situação hístórico-exàstencial[Sitz
ira Leben] não era mais a mesma que a do Jesus histórico. Uma situação de vida
não-palestina tornou-se assim determinante para a formação da tradição.
Para a crítica da forma, a definição da situação de vida é crucial. A oração
do Senhor, transmitida nos Evangelhos do Novo Testamento em duas formas
diferentes, foi moldada pela situação de Mateus numa comunidade judeo-cristã
fora da Palestina, e de modo diferente pela situação de Lucas na comunidade
helenistica - em nenhum dos casos sua forma depende da situação de vida de
Jesus na GaliléiaA-Iistórias e parábolas exemplares são narradas de acordo com
sua função como parte do sermão cristão para edificação e formação da comuni:
dade. Nessas situações, as parábolas - fossem ou não narradas originalrfiente piar
Jesus - sofreram muitas mudanças, como interpretações alegóricas. As coleçSes
de ditos têm sua situação de vida na parênese e na instrução batismal, as histórias
de milagres a têm na propaganda missionária da igreja. Em cada caso, o termo
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F O N T E S P A R A A H I S T Ó R I A D O C R I S T I A N I S h ~ O P R I / ~ I T I V O
§ 7
"situação de vida" se refere em primeiro lugar à comunidade cristã. Segurameflte,
uma tradição particular pode não ter suas origens nela, mas airtda deve a essa
comunidade a sua existência e forma. Não é possível, portanto, traçar umalinha
teta de uma tradição da comunidade ao próprio Jesus, nem sé pode simplesmente
suprimir acréscimos secundários para ter acesso ao Jesus histórico. Tudo o que
Jesus disse e fez sofreu refraçÕes as mais variadas, como através de um prisma,
no processo de sé transformar numa tradição da comunidade. A situação de vida
original de um dito ou história na vida de Jesus não é mais acessível, porque a
formação de rodas as tradições está profundamente inserida nas situaç5es'de
vida da comunidade. A integração em relatos coerentes, como nos- evangelhos
escritos, é um passo seguinte, em que essas histórias e ditos são incorporados
numa estrutura redacional secundária.
Com o objetivo de definir mais detalhadamente as formas específicas da
tradição, é necessário distinguir entre ditos e narrativas. Naturalmente, os autores
dos evangelhos derivaram esses dois tipos de materiais de tradições que estavam
formadas na vida das primeiras comunidades cristãs. Todos os materiais de nar-
rativas, porém, são formados por essas comunidades, enquanto alguns materiais
na tradição de ditos podem realmente refletir o que Jesus disse, É improvável,
todavia, que preservem a forma exara em que foram enunciados por Jesus,
porque a forma em si dos ditos resulta de rifração ocorrida na situação de vida
da comunidade. Entre os materiais de ditos, predominam os ditos sapienciais
e proféticos. Suas formas têm analogias principalmente nos livros proféticos e
sapienciais das Escrituras de Israel, o que, para sua formação, remete para a
situação de vida das prirneiras comunidades judeo-cristãs.
As parábolas, narrativas parabólicas e histórias exemplares em suas formas
não-alegóricas podem realmente derivar de Jesus; as interpretações das comuni-
dades são demasiadamente óbvias em sua alegorização secundária. A parábola,
original convida os ouvintes a se apropriarem da história, como se fosse a sua
própria, e assim a se tornarem eles mesmos «história". A parábola do «Pai que
tinha dois filhos" (geralmente conhecida como "O Filho Pródigo", Lucas 15,11-
32), por exemplo, inspira o ouvinte a se tomar um ser humano amoroso como o
pai da história; o lugar onde Lutas insere essa parábola sugere uma alegorização
que compreende o pai como uma figura de Deus, que perdoa o pecador que sé
arrepende. A parábola dos «Trabalhadores da vinha", também conhecida como
"O homem que possuía uma vinha" (Mt 20,1-15), dá o exemplo de alguém que
está determinado em seu esforço a deixar que outros participem igualmente de
sua bondade; Mateus transforma essa alegoria numa história q.ue demonstra que
os últimos serão os primeiros (Mt 20,16). A parábola do homem que convida
para o seu jantar ("Parábola do Grande Banquete", Lc 14,16-24) é a história de
uma pessoa que quebra rodas as convenções sociais para alcançar seu objetivo;
em sua forma alegórica («Parábola do Banquete Nupcial", Mt 22,1-14), ela se
torna uma narrativaa respeito de Deus, que pune Israel por matar os profetas
e em seguida convida os gentios para a festa. As parábolas originais encontram
analogias na tradição profética de Israel; a alegorização era típica para a cul-
,
§ 7 . 4 a P R O B L E M A S D E C R I T I C A D A F O R M A , T R A D I Ç Ã O , N A R R A T I V A E R E T Ó R I C A
6 7
tura da época. É portanto muito provável que as parábolas originais reflitam a
pregação profética de Jesus mais diretamente do que qualquer outra parte da
tradição dos ditos.
Regras de conduta e asserções legais relacionadas com o ordenamento da
vida cristã são totalmente criações da comunidade. Em parte, os enunciados legais
derivam diretamente do ambiente judaico das primeiras comunidades cristãs ou
são formulados nas controvérsias com os fariseus e outros grupos judaicos. Essas
situações de vicia são especialmente evidentes na formação dos apotegmas (termo
de Bultmann; Dibelius os chama de "paradigmas"). Apotegmas são cenas curtas
que contêm uma pergunta ou apresentam um problema cuja resposta ou solução
é um dito tradicional (ver, por ex., a questão do jejum, as espigas olhidas num
sábado e a cura do homem com a mão atrofiada, Marcos 2,18-3,6). As questões
podem ser levantadas pelos discípulos, pelos adversários, por lesus mesmo ou
por outras pessoas. Em vários casos, as perguntas feitas por discípulos ou por
adversários são provoeadas por alguma ação de Jesus, como o exorcismo de um
demônio (Lucas 11,14-20). Em sua maioria, esses apotegmas São histórias contro-
versas; outros podem ser classificados como diálogos escolásticos ou instrucionais.
A ocasião para a composição de todos os tipos de apotegmas era-o interesse da
comunidade, que precisava de materiais para fins polêmicos ou para instrução dos
seus membros. Os evangelhos também contêm apotegmas biográficos cuja origem
está no interesse das comunidades pela vida e ministério de Jesus, que assim são
representados em breves cenas paradigmáticas, É preciso distingüir aqui entre
os apotegmas que fornecem uma estrutura secundária para um dito tradicional e
outros em que a cena e o dito foram compostos como peça única (a estes pertence
a história de Maria e Marta, Lucas 10,38-42). Somente no primeiro caso é possível
que um dito tradicional de Jesus, e possivelmente original, tenha sido preservado.
Característicada tradição dos apotegmas é a inserção ou inclusão de ditos livres
adicionais ou de formulações análogas secundárias (cf., por exemplo,
Màrcos
2,23-28 com Mateus 12,1-8), de modo que não é raro encontrar num apotegma
respostas concorrentes entre si para a questão que deu origem à sua formação.
As narrativas tradicionais são predominantemente histórias de milagres.
Uma variante característica dessas histérias é o exorcismo, geralmente narrado
segundo um esquema fixo: a pessoa possuída encontra lesus; o demônio reconhece
o poder do exorcista; Jesus ameaça e expulsa o demônio, freqüentemente com
demonstraçãoi expressão do triunfo; manifestação das testemunhas (por exemplo,
Mc 1,21-28; 5,1-20). Nos milagres de cura, em seguida ao encontro do doente
com lesus, há geralmente um comentário sobre a gravidade da doença~ A cura é
realizada por meio de uma palavra de Jesus (termos mágicos do aramaico são às
vezes preservados, cf. Mc 5,41; 7,34); d~alguma manipulação (Mc 8,23) ou de
--uma combin~ção de ambas; a conclusão registra o êxito da ação e o aplauso dos
presentes. Todas essas características correspondem às formas padronizadas da
narração de exorcismos e das histórias de cura da antiguidade, embora seja notá-
vel que adjurações complexas e longas de demônios e manipulações elaboradas
- muito comuns nessas histórias - não apareçam nos materiais narrativos dos
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F O N TES PA RA A HI ST Ó R I A D O CR I ST I AN ISM O PR IM IT I VO § 7
evangelhos. Milagres com elementos da natureza (por exemplo, da Tempestade
Acalmada, Mc 4,35-41) são relativamente raros na tradição sinótica. Como nos
exorcismos e nos milagres de cura, a brevidade desses relatos é uma característica
surpreendente dessas histórias de milagres na tradição sinótica. Sua forma básica
e esquema narrativo, porém, correspondem quase exatamente aos de histórias
análogas do mundo greco-romano, inclusive aos que se encontram nos aros dos
apóstolos apócrifos.
Inúmeras lendas também" forano inseridas na tradição sinótica. «Lenda" é
uma história que narra um evento particular com detalhes admiráveis ou prodigio-
sos. A tradição sinótica encerra uma única lenda cultual, a da instituição da Ceia
do Senhor. Todas as outras são lendas biográficas (as narrativas do nascimento
e da infância, as histórias sobre loão Batista, a tentação de Jesus, a entrada em
lerusalém). A maioria dessas lendas segue o modelo das narrativas da Bíblia de
Israel. Isso está especialmente evidente no relato da paixão, todo ele baseado
nos motivos bíblicos da história do justo sofredor do Dêutero-Isaias e de vários
salmos. Típico dessas lendas é adotarem floreios descritivos com moderação e
realçarem um único evento. Características novelescas são taras (no entanto, a
história de Emaús em Lucas 24,13-35).
As narrativas do batismo de Jesus, da transfiguração e das aparições do
Senhor ressuscitado são todas histórias de epifania. Elas não devem ser classi-
ficadas com as lendas ou com as histórias de milagres. Seu objetivo principal é
expressar a autorização divina para o comissionamento de uma pessoa humana,
e por isso sua forma corresponde à das histórias de delegação de um profeta em
Israel. Essas histórias de epifania começam com a apresentação da pessoa que
será o receptor da manifestação divina e com a designação de um lugar especial
(deserto, montanha, rio), fazem uma descrição da situação, e continuam com o
relato de uma experiência extraordinária (uma pomba, luz brilhante, o Senhor
ressuscitado), com a voz de Deus ou de Jesus ressuscitado como a auto-revelação
da divindade que autoriza, com uma descrição da impressão recebida pelos pre-
sentes, e terminam com uma ordem, um comissionamento ou uma designação.
As histórias de aparições do Senhor ressuscitado nos evangelhos eram original-
mente análogas à história da vocação de Paulo em Aros 9, que ressalta o envio
de Paulo como apóstolo aos gentios. Somente num estágio posterior as histórias
da ressurreição de Jesus foram interpretadas como provas da ressurreição física.
Seu propósito original - como nas histórias do chamado de um profeta - é a
designação e comissionamento de uma pessoa para uma missão divinamente
autorizada. Esse é também o caso na versão mais antiga subsistente da história
do batismo de Jesus (Me 1,9-11), onde a voz divina, "Tu és meu filho», designa
lesus como mensageiro de Deus; a redação posterior transformou a história
numa apresentação de Jesus às multidões ("Este é o meu filho', Mt 3,17). Os
nomes dos apóstolos são um elemento importante das histórias da ressurreição;
a comunidade que transmite e conta essas histórias estabelece assim sua própria
pretensão de sucessão legítima. Nas histórias mais antigas, esses nomes podem
bem ser históricos, e os relatos podem ter sido feitos primeiro pelo apóstolo, que
§ 7 . 4 a PR O BL EM AS D E C R I T I C A D A F O R M A, T R AD I Ç ÃO , N AR R AT I VA E R ET Ó R I C A
69
"havia visto o Senhor". Um relato de primeira mão está realmente preservado
no caso do próprio Paulo em GI 1,12-17. A diferença entre um relato tão antigo
e o desenvolvimento posterior dessas histórias é bem visível na comparação do
testemunho de Paulo com a história de epifania do seu chamado em Aros 9.
Ambas as descrições se amoldam a uma forma tradicional apropriada, mas o
relato de Paulo ecoa o chamado de Jeremias, ao passo que a versão posterior de
Lucas segue o formato da vocação de Ezequiel.
Os materiais narrativos dos evangelhos nao sao relatos diretos de eventos
observados ou vividos, mas histórias adaptadas às formas de comunicação po-
pulares. A busca de um núcleo histórico está portanto fadada a perder o foco
dessas narrativas e a fracassar. Todas elas foram feitas tendo em vista a missão,
a edificação, o culto, a apologia ou a teologia (especialmente a cristologia) e não
fornecem respostas para a busca de informações históricas confiáveis. Se histó-
rias de epifania (ressurreição) podem ainda preservar o nome original da pessoa
receptora da epifania, por outro lado, detalhes precisos de nomes e lugares são
sempre secundários e freqüentemente introduzidos pela primeira vez no estágio
literário da tradição. Exatamente aqueles elementos e características de narrati-
vas que levam ao clímax da história não derivam de informações historicamente
confiáveis, mas pertencem ao estilo dos gêneros dos vários tipos de narrativa.
Características inesperadas podem às vezes refletir alguma memória histórica,
como a de que lesus foi batizado por João, o líder de uma seita rival que competia
com os discípulos de Jesus (§8.1). É possível, porém, tirar algumas conclusões
históricas da totalidade das narrativas de um determinado gênero. A proeminência
das histórias de exorcismo de Jesus, por exemplo, permite a conclusão de que
o ministério de Jesus de fato se caracterizou por sua atividade de exorcista. Por
outro lado, é sumamente problemático propor que os muitos milagres de curas
e com elementos da natureza relatados na tradição sinótica sugerem que lesus
deve ser classificado como um mago helenístico típico. A propaganda religiosa.(e
política ) na antiguidade sempre apresenta grandes personalidades - sejam elas
deusesou serçshumanos -como curadores poderosos. Numa sociedade onde
nã9 .haja serviços de saúde pública, a enfermidade e a doença eram tão Comuns
que nenhuma mensagem de salvação poderia ter sucesso sem o anúncio de que
0 salvador era um "homem divino" capaz de realizar curas milagrosas.
(b) Tradições Antigas nas Cartas do Novo Testamento
Os materiais incluídos nas cartas do Novo Testamento que não foram cria-
dos pelos autores, mas derivaram das tradições da igreja, estão preservados com
grande riqueza e variedade. Só raramente esses materiais tradicionais são citados
ou identificados explicitamente como tradicionais. Além disso, as passagens que
Bibliografia para §7.4b
Rudolf Bultmann,
Der Stil der paulinischen Predigt und die Kynisch-stoische Diatribe
(FRLANT 13; G~ttingen:Van-
denhoeck & Ruprecht, 1910; reprintc 1984).
Martin Dibettus,'Zur Formgeschichte
des Neuen
Testaments (au erhalb der Evangelien),'ThR NF 3(1931) 207-42.
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7 0 F O N TE S PAR A A H I ST Ó R I A D O CR I S T I A N I S M O PR I M I T I VO
§ 7
se baseiam em materiais tradicionais podem não reproduzi-los em sua forma
original. Sua delimitação e enunciado exatos a partir do contexto em.que a apa:
recem continuam, portanto, um problema evidente. Como indicações externas
do emprego de materiais tradicionais estão em geral ausentes, sua identificação
com uma determinada passagem precisa basear-se em outros critérios, como uma
terminologia que difere do vocabulário normal do autor, uma linguagem métrica
ou poética introduzida numa seção de prosa normal da carta, sentenças ou frases
formulares estereotipadas e finairnent~ a ocorrência de paralelos em outros escritos
onde a dependência literária não pode ser estabelecida. Às vezes também é possível
descobrir que existem contradições entre materiais citados e a opinião do autor.
Fórmulas querigmáticas sobre o sofrimento, a morte ou cruz e a ressurreição
de lesus são usadas com freqüência; a citação de uma das mais antigas encontra-
se em 1Cor 15,3-5. O esquema básico dessas fórmulas foi expandido ainda nos
primórdios por aspectos característicos como a referência à morte de lesus como
expiação (ver Rm 4,25 e o acréscimo típico "por nós": Rm 3,25-26; G1 1,4-5;
1Pd 2,21-25). A expectativa da segunda vinda de lesus em toda sua glória para
o julgamento foi logo combinada com essas fórmulas querigrnáticas (1Ts 1,10).
Uma expectativa teológica um pouco diferente aparece em expressões formulares
que falam do sofrimento e morte de lesus e de sua exaltação e entronização (Hb
1,2b-3; 1Pd 3,18-19 e 4,1 ). Fórmulas confessionais cristãs posteriores combinam
a afirmação da ressurreição com a da exaltação. Chama a atenção, porém, que
muito raramente uma fórmula dessas é repetida literalmente na literatura sub-
sistente. O esquema básico continua o mesmo, mas o enunciado exato permite
grande liberdade de inovação na formulação do detalhe. Existe uma tradição,
mas ela ainda não está sujeita ao controle canônico.
Hinos cristológicos são citados freqüentemente. Eles têm uma forma fácil
de reconhecer, com seqüências de frases relativas e participiais em que o sujeito
é sempre Cristo. O conteúdo desses hinos é informado pela história mítica da
descida de uma figura celeste, da sua atuação e experiências entre os homens e
da sua ascensão e exaltação final. O mais antigo desses hinos está preservado em
FI 2,6-11. Ele segue o modelo do mito de Israel da Sabedoria celeste. De modo
particular, a ap,rçsentação de Cristo como mediador da criação, que introduz
muitos desses hinos, deriva desse mito da Sabedoria (CI 1,15-20; lo 1,1-5,9-
12,14,16). Em muitos casos, somente fragmentos desses hinos são citados (Ef
2,14ss; 1Tm 3,16; 2Cor 9,9; cf. 2Cor 5,19).
Como esses hinos, as doxologias também derivam da tradição litúrgica. Elas
às vezes aparecem na conclusão de epístolas, onde podem ter sido acrescentadas
secundariamente (este é certamente o caso em Rm 16,25-27), mas encontram-se
também no corpo de cartas (Rm 11,36; 1Cor 8,6). Bênçãos no fim de uma carta
Walter Bauer, "Der Wortgottesdienst der ältesten Christen," in idem, Aufsätze und kleine 5chriften (T0bingen:
Mohr/Siebeck, 1967), 155-209.
James M. Robinson,"Die Hodajot-Formel in Gebet und Hymnus des Frühchristentums," in Apophoreta, 194-
235.
Ernst Käsemann,'Sentences of Holy Law in the NewTestament," in idem, New Testament Questione 66-81.
§ 7 . 4 b
P R O BL E / v~ A S D E C RI T I CA DA FO R MA , TR A D IÇ Ã O, N A RR AT I VA E R E T ÓR I CA 7 1
tãmbém podem refletir materiais litúrgicos, como 2Cor 13,13, que liturgias cristãs
ainda hoje adoram. Da liturgia da Eucaristia, Paulo cita as palavras da institui-
ção da ceia do Senhor (1Cor 11,23-27) e a invocação: "Vem, Senhor " (1Cor
16,22; cf. Ap. 22,20). Diferenças no enunciado de várias citações das palavras
da instituição (comparar 1Cor 11,23-25 com Mc 14,22-25) refletem diferenças
na prática litúrgica, É provável que várias passagens das cartas preservaram
materiais litúrgicos do rito batismal, mas é difícil identificar essas passagens com
segurança. A breve confissão "]esus é Senhor" (1Cor 12,3) e o apelo «Ó tu, que
dormes, desperta " (Ef 5,14) parecem proceder de liturgias batismais.
Mesmo seções parenéticas das cartas foram atribuídas à liturgia do batismo;
mas tradições parenéticas não tiveram sua situação de vida exclusiva na instrução
dos catecúmenos. Há duas formas básicas em que materiais parenéticos foram
transmitidos, especificamente, como catálogos de vícios e virtudes e como compo-
sições de grupos de ditos. Catálogos de vícios e virtudes iá haviam sido formados
em círculos judaicos por influência da filosofia helenística e são freqüentemente
usados e interpretados nos primeiros escritos cristãos. Eles ocorrem em contextos
parenéticos como listas simples ( 1 Cor 6,9-10; GI 5,19-24; C13,5-8, 12) ou como
a estrutura subjacente de admoestações mais elaboradas (1Ts 4,3-7; Ef 4,17-5,6;
e multas vezes nas Epístolas Pastorais). A parênese na forma de ditos era típica
da tradição judaica no período helenístico. Uma carta do Novo Testamento, a
Epístola de Tiago, não é senão uma coleção de ditos tradicionais (dos quais alguns
têm paralelos em Mateus 5-7). Grupos de ditos tradicionais multas vezes fazem
parte das seções conclusivas das cartas (Rm 12,9-21; GI 6,1-10; 1Ts 5,14-22).
Esses grupos podem ser dispostos num esquema de "dois caminhos», o caminho
da vida e o caminho da morte. Em outros casos, eles seguem o esquema dos de-
veres familiares, uma forma que deriva da diatribe estóica do mundo helenístico.
Essa relação de deveres familiares trata das obrigações mútuas dos membros de
uma famflia (marido e mulher, pais e filhos, senhores e escravos) e dos deveres
do indivíduo para com os amigos, o governo e os estrangeiros. Eles aparecem
na parênese cristã pela primeira vez nas cartas deuteropaulinas (CI 3,18-4,1; Ef
5,22-6,9; 1Pd 2,13-3,7). As Epístolas Pastorais adotam esse esquema tradicional
para o desenvolvimento da organização da igreja; assim, são mencionados não
somente os deveres dos velhos e dos jovens, mas também as qualificações e obri-
gações dos ocupantes de cargos eclesiásticos, especificamente bispos, presbíteros,
diáconos e viúvas (1Tm 2,1-3,13; 5,1-21; 6,1-2; Tt 1,7-9; 2,1-10).
Palavras de lesus também são usadas na parênese, às vezes citadas expli-
citamente (1Cor 7,10-11; 9,14); em muitos casos, porém, sem um reconheci-
mento especial da autoridade de ~esus (Rm 12,14.17; 14,13-14; 1Ts 5,15; Ef
4,29; um dito de Jesus que não" se encontra em nossos evangelhos é citado em
Atos 20,35). A ausência de uma referência a ~esus no uso de alguns ditos na
parênese é surpreendente, especialmente em 1Pd (2,19-20; 3,9, 14, 16; 4,14) e
na Epístola de Tiago (por exemplo, 4,9,10; 5,12). Serão alguns desses ditos tra-
dicionais que só mais tarde foram atribuídos a Jesus? Materiais apocalípticos são
às vezes citados como palavras do Senhor. Essas são provavelmente afirmações
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§ 7
de profetas cristãos que fizeram predições sobre o futuro em nome do Senhor.
Paulo cita uma «palavra do Senhor" assim em 1Ts 4,15-17; em outra carta ele
se refere à mesma tradição como "mistério" (1Cor 15,51). Referências a esses
mistérios, isto é, revelações sobre o futuro, acessíveis somente aos iniciados,
não são raras. Nas cartas de Paulo, o termo lauoxríptov ("mistério" no singular)
sempre designa um dito ou tradição específicos (Rm 11,25-26a; ver também
2Ts 2,7), enquanto no plural o termo se refere a numerosos desses ditos de
revelação (1Cor 13,2; 14,2). Mesmo~em 1Cor 2,7, o termo parece referir-se a
um dito específico sobre a vinda do Senhor (cf. Mt 13,35), e a estreita relação
entre essas tradições de ditos é hoje evidente na citação seguinte de um dito em
1Cor 2,9 que foi encontrado como dito de Jesus no Evangelho de Tomé (17).
Somente numa época posterior o termo "mistério" se toma idêntico ao termo
"evangelho" (Ef 3,3-8; CI 1,26-28; e a conclusão secundária de Romanos em
16,25-27).
Há também outra atividade dos profetas cristãos que se manifestava
em expressões que se tomaram tradicionais: a formulação de sentenças da lei
sagrada; são pronunciamentos que afirmam o ius talionis (a lei da retribuição)
formulado para a esfera sagrada e religiosa da vida da comunidade. Paulo cita
essas sentenças várias vezes (por exemplo: "Se alguém destrói o templo de Deus,
Deus o destruirá", 1Cor 3,17; ver também 1Cor 14,38; 16,22; Rm 10,11,13).
É evidente que essas declarações de profetas contribuíram para o aumento dos
ditos de Jesus (cf. 1Tm 2,11-13 com Me 8,30).
O uso de materiais tradicionais é evidente finalmente, mas não secundaria-
mente, nas citações e na interpretação de passagens da Escritura. Inúmeras dessas
citações foram extraídas de coleções tradicionais de testemunhos para tópicos
específicos (por exemplo, Rm t 0,18-21; Hb 1,5-13). Em geral, porém, deve-se
presumir que os autores do Novo Testamento, especialmente Paulo, conheciam
todo o contexto das passagens da Escritura, apesar de serem realmente citados
apenas um ou alguns versículos. Além disso, comentários sobre essas passagens
muitas vezes revelam familiaridade com tradições de interpretação escritural
que podem ter vindo de convenções exegéticas pré-cristãs (por exemplo: 1 Cor
10,1-10) ou de interpretações escriturais criadas por adversários, as quais são
criticamente anotadas por Paulo (é o caso em 2Cor 3,7-18).
Como os evangelhos nao sao criações livres de seus autores, mas compi-
lações de fontes e de tradições orais, também as epístolas não devem ser vistas
como produtos das mentes inventivas de pensadores teológicos criativos, mas
como elaborações de vários e diferentes materiais tradicionais que eram cor-
rentes em Israel, no mundo helenístico-romano e especialmente nas primeiras
comunidades cristãs.
(c) Materiais Tradicionais Preservados nos Padres Apost6licos,
nos Apócrifos e nos Apologistas
O que se disse acima também se aplica aos escritos não-canônicos do
cristianismo primitivo. Esses escritos, porém, receberam todos muito menos
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atenção do que o Novo Testamento em si, e por isso grande parte do tesouro de
materiais tradicionais, quase sempre muito valiosos e antigos nesses escritos,
continua praticamente inexplorada. Muitos desses materiais não foram clara-
mente reconhecidos. Na seqüência, abordarei apenas alguns exemplos típicos
dessa rica literatura.
Palavras de Jesus e tradições ligadas a Jesus que são semelhantes aos evange-
lhos canônicos encontram-se em escritos pertencentes ao gênero dos evangelhos
e em outras formas de literatura. Com relação a muitos desses escritos, não se
pode supor que dependam literariamente dos evangelhos canônicos. Antes, as
fontes dessas tradições de Jesus ou são a transmissão oral livre ou então materiais
escritos independentes. 1 Clemente menciona duas pequenas coleções de palavras
de Jesus da tradição oral (1 Clem. 13,2; 46.8). Uma coletânea semelhante de ditos
foi inserida no primeiro capítulo da
Didaqué,
enquanto
2 Clemente
aparentemente
usou uma coleção de ditos de Jesus em parte baseada nos evangelhos canônicos e
em parte em tradições orais não-canônicas. Uma transmissão independente dos
ditos veio à luz recentemente no recém-descoberto Evangelho de Tomé (copta)
que contém principalmente ditos proféticos, ditos sapienciais e parábolas de
Jesus com semelhanças nos evangelhos canônicos, mas foi enriquecido com
numerosos ditos gnósticos no curso de sua história literária. Um fragmento de
um Evangelho Desconhecido (Pap. Oxy. 840) e o fragmento evangélico Papiro
Egerton 2
apresentam palavras de Jesus que foram inseridas em cenas semelhantes
às dos apotegmas sinóticos, mas são um pouco mais elaboradas. O bispo Pápias
de Hierápolis (inícios do século II) coletou ditos de Jesus da tradição oral, in-
clusive lendas e revelações - infelizmente, apenas alguns fragmentos deles estão
preservados. Finalmente, desde o século II ar~ alguns séculos posteriores ainda
se encontram muitos dos assim chamados
ágrafos (agrapha) -
palavras de Jesus
que não se encontram em evangelhos escritos - citados nas obras dos Padres da
Igreja. Embora, em sua grande maioria, esses ágrafos não possam ser conside-
rados palavras autênticas de Jesus, ainda assim são testemunhos importantes da
origem e do desenvolvimento iniciai da tradição dos ditos de Jesus nas primeiras
comunidades cristãs, se novos ditos de Jesus ainda eram criados e podiam cir-
cular livremente, raramente se encontram novas histórias de milagres de Jesus
na tradição extracanônica; por outro lado, histórias de milagres dos apóstolos
se tomaram cada vez mais populares. As lendas, porém, narrando o nascimento
e a infância de Jesus, formaram-se num estágio ainda iniciai. Coleções e edições
dessas histórias resultaram na publicação do Proto-Evangelho de Tiago e do
Evangelho da Infância de Tomé.
Ao mesmo tempo, histórias de epifania sobre
a aparição de Jesus a seus discípulos pareciam circular oralmente e reaparecer
secundariamente no gênero literário das discuss6es de Jesus com seus discípulos
depois da ressurreição (embora estas mal preservem tradições mais antigas). O
fragnlento do Evangelho de Pedro conserva uma versão mais antiga da história
do túmulo vazio na forma de uma história de epifania. Fragmentos da mesma
história podem efetivamente aparecer em Marcos 9,2-9 e Mateus 27,51-53.62-
66; 28,2-4. Início de Antioquia (Smym. 3.2-3) cita uma variante independente
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F O N T ES PAR A A H I ST Ó R I A D O C R I ~ T I AN I SM O PR I M I T I VO
§ 7
usaram os recursos da oratória greco-romana para organizar e posicionar dis-
cursos convincentes. Ambos os métodos focalizam modelos de comunicação e
podem ser compreendidos como extensões ou suplementos da crítica da redação
e da composição, visto que se propõem a localizar os objetivos e as estratégias
dos autores dos livros bíblicos. Esses e outros enfoques inspirados pelo estudo
da literatura geral ou secular (como a crítica da resposta do leitor) são ricos e
complexos e têm multas aplicações possíveis, podendo levar a observações e
conclusões históricas e também pur~nente literárias.
Os últimos anos têm testemunhado aplicações produtivas de crítica da
narrativa aos Evangelhos, aos Atos, às epístolas paulinaí e ao próprio Livro do
Apocalipse. Os Evangelhos e os Aros apresentam as narrativas mais obviamente
desenvolvidas, cujas linhas de enredo, personagens principais e secundários,
temáticas e perspectivas narrativas podem ser analisados com proveito. Mas as
cartas de Paulo também contêm histórias embutidas, especialmente a narrativa
de sua carreira como apóstolo, com seus sucessos, lutas e contratempos. Essa
narrativa nem sempre é expressa explicitamente, mas apesar disso fornece uma
estrutura em que as cartas particulares de Paulo podem ser lidas, comparadas
e classificadas. Isso por sua vez pode levar a observações literárias e históricas
sobre a intenção persuasiva da breve carta de Paulo a Filêmon sobre Onésimo,
por exemplo, quando suas palavras são lidas no contexto da história mais longa
das relações de Paulo com os cristãos de Colossas e da Laodicéia. A análise nar-
rativa (e retórica) pode aguçar nossa percepção da integridade ou da composição
secundária de outras cartas, como 2 Coríntios ou Filipenses, observando como
o enredo se desdobra ou então é interrompido abruptamente.
O enredo e os temas narrativos do Evangelho de Marcos podem ser outro
exemplo. A crítica da forma e da redação se combinaram para identificar o ar-
ranjo secundário ou artificial feito por Marcos de episódios isolados sobre Jesus
realizando milagres, exorcizando demônios, chamando alguns a "segui-lo" e
enfrentando adversários. Examinando esses contextos à luz da análise da nar-
rativa, podemos ver como o autor dispôs os diferentes elementos para compor
uma trama de grande efeito e ironia com um elenco fascinante de personagens
que segue na contramão das expectativas do leitor. O narrador informa o leitor
desde o início sobre a identidade de Jesus como Filho de Deus (1,1; também 1,11;
9,7; cf. 15,39); no entanto, esse fato supostamente importante permanece oculto
à maioria dos demais participantes da história. O narrador insiste na identidade
de Jesus como professor e mestre e no papel dos seus seguidores como alunos
(discípulos), e todavia a história constrói grande parte da sua força dramática
exatamente com o fracasso contínuo desses «alunos" em compreender e aprender
a mensagem central de Jesus. Exorcismos e curas (sinais da missão divina de
Jesus) são muitas vezes apresentados como o conteúdo do seu "ensinamento",
Stanley E. Porter and David Tombs
(eds.),Approaches to New Testament Study(JSNTSup
120; Sheffield: Sheffield
Acadernic Press,
1995).
David L Barr, Tales of the End: A Narrative Commentary on the Book of Revelation (Santa Rosa, CA: Polebridge,
1998).
§ 7 . 4 c PR O BL EM AS D E C R I T I C A D A F O R M A, T R AO I Ç ÀO , N AR R AT I VA E R ET Ó R I C A
7 7
que deslumbra as multidões, enfurece os demônios e mistifica os discípulos.
Inicialmente, o leitor se identifica com Jesus e seus seguidores mais próximos,
mas depois esse envolvimento sofre um questionamento muito sério à medida
que o destino de Jesus se define e que a dúvida e a apreensão dos discípulos os
lançam na incerteza. A última lição bem compreendida é a agonia de obediência
de Jesus à vontade de Deus diante do abandono e da desolação: um final triste
que aponta para um futuro apenas parcialmente resolvido.
A atenção ao fluxo direcional da narrativa de Marcos ajuda a solucionar
alguns problemas não equacionados pelo gênero ou pela análise gramatical. O
final estranhamente truncado de Marcos é um caso clássico: ~ço[3oôwo yáp. O
leitor que ouviu Jesus predizer três vezes a prisão, julgamento e execução do "Fi-
lho do Homem" - sempre seguidas pela insistência de que ele "ressurgirá depois
de três dias" (Mc 8,31; 9,31; 10,33-34) - não entra num estado de abatimento
tão intenso quanto Maria e suas amigas quando encontraram o túmulo vazio,
fugiram "e nada contaram a ninguém, pois tinham medo" (16,8). O leitor, que
supostamente já é membro de uma congregação cristã, sabe que as predições de
Jesus se tomarão (e, de fato, já se tomaram) verdadeiras fora da narrativa que
ele está lendo: o leitor é capaz, na verdade compelido, a preencher o restante da
história. Não obstante, a mensagem também deixa muito claro que a privação
e o sofrimento sem dúvida acompanharão todo seguidor perseverante de Jesus
- todos receberão sua recompensa "cem vezes mais desde agora - com persegui-
çges - e, no mundo futuro, a vida eterna" (Mc 10,30).
As parábolas atribuídas a Jesus nos evangelhos são especialmente propí-
cias ao estudo literário. Essas histórias curtas (especialmente as narradas ou
recontadas por Lucas) muitas vezes revelam uma sofisticação incomum em
mudanças bruscas do enredo, na sagacidade dos personagens, no uso do símbolo
e da hipérbole e no detalhe vívido. As histórias do "Filho Pródigo", do "Bom
Samaritano" e do "Semeador e a Semente" estão profundamente impressas na
consciência literária ocidental. Os especialistas observam como as parábolas e
símiles de Jesusprendem a atenção dos ouvintes com um senso surpreendente do
imediato e em seguida desafiam audaciosamente os pressupostos desses ouvintes
com reviravoltas da sorte inesperadas e às vezes chocantes. Embora a maior
parte se perca, algumas das sementes lançadas frutificarão e produzirão colheita
abundante (Mc 4,3-8 par.); aquele que Deus envia em auxílio dos desesperados
acaba sendo exatamente o tipo de pessoa que a vítima (e os ouvintes dentro da
narrativa) mais despreza (Lc 10,30-35); o filho dissoluto e impaciente que de-
monstra pouco respeito e nenhuma consideração por seu pai idoso é aquele que
é bem recebido em casa com um novilho «evado (Lc 15,11-32).
A análise literária do Livro do Apocalipse enfatiza a construção da obra
como uma experiência litfirgica dramatizada, revestida de uma estrutura epistolar
(ver § 12.1c). O ponto de vista adotado nos cicios de revelações auditivas e vi-
suais é o de um vidente transportado que experimenta o alto drama da adoração
angélica oferecida a Deus em tomo do trono celeste. As repetições, transições
abruptas e contradições aparentes não são sinais de uma combinação inade-
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§ 7
quada de fontes diferentes, mas uma tentativa literária de imaginar e recriar os
efeitos de um evento visionário desorientador. Uma vez mais, porém, a análise
literária não pode ser separada da compreensão sócio-histórica. Apesar de suas
intervenções teatrais complicadas, o livro tem o objetivo claro de impressionar
uma audiência de crentes contemporâneos da Asia imperial romana de fins do
século I quanto à necessidade de perrnanecer fiel a Cristo apesar da ameaça de
sanções políticas e até criminosas.
A análise da retórica também me,ela a sensibilidade literária da narratologia
com as preocupações históricas da crítica da redação e social-científica. O estudo
atual da retórica na literatura do Novo Testamento se baseia em pesquisas das
variedades e propósitos da oratória pública em contextos específicos do mundo
helenístico: forense ou judicial (praticada nos tribunais de justiça); deliberativa
(adotada nas assembléias políticas); e epidítica (voltada para o elogio ou a crí-
tica, própria para alocuções fúnebres ou encomiásticas). Fora dessas situações
sociopolíticas imediatas, os autores podiam compor seus discursos adorando uma
mistura de estilos para alcançar efeitos específicos. Os especialistas mostraram,
por exemplo, como Paulo utilizou tanto a-retórica apo ogética (forense) como
a deliberativa ao escrever para os gálatas em defesa do seu apostolado (como
também em 1 Cor 9), enquanto por sua vez os escritores dos evangelhos pratica-
ram variedades de oratória deliberativa e epidítica para desenvolver e elaborar
chreiai
(anedotas instrutivas) sobre Jesus.
Embora os primeiros escritores cristãos raramente seguissem com alguma
exatidão ou rigidez os padrões ideais desenvolvidos pelas escolas retóricas, eles
(e por extensão seus antigos leitores) parecem à vontade com as convenções re-
tóricas de composição e argumento, que normalmente adotavam uma estrutura
mais ou menos fixa de introdução, narração histórica e várias espécies de provas
e apelos. Quando Pedro e Paulo proferem discursos missionários no contexto
narrativo de Atos, por exemplo, eles se referem coerentemente aos seus feitos
milagrosos (narrados ao longo dos discursos) como parte das provas de sua
autoridade divina. Quando Jesus é acusado de exorcizar demônios com o poder
de Belzebu, o(s) autor(es) do Evangelho de Ditos Q compõe(m) uma versão
elaborada da resposta de Jesus a essa acusação (Lc 11,14-23 par.), combinando
vários elementos originalmente separados para caracterizar e defender Jesus
com argumentos e exemplos do contexto forense e epidítico. De modo gerai
na tradição sinótica, Jesus debate adotando a analogia, o exemplo e a anedota
simbólica (parábola), mas sua prática é excepcional no apelo pouco freqüente a
~ d ã ~ e - c l ü e n ã o a s u a p r ó p r i a .
Como as cartas de Paulo não eram comunicações particulares, mas se
destinavam à leitura pública nas congregações (cf. §g), ele naturalmente e de
acordo com a necessidade recorreu a técnicas de persuasão já estabelecidas em
ambientes deliberativos. O conhecimento dessas técnicas e de outras semelhantes
do âmbito da retórica antiga ajuda o leitor moderno a compreender o estilo de
argumentação de Paulo. O uso paulino do estilo da diatribe estóico-cínica (§4.2a),
especialmente em Romanos, é uma adaptação de técnicas retóricas praticadas
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nas escolas filosóficas para suscitar e refutar possíveis objeções de adversários
ou alunos (cf. Epicteto). Longe de ser um exercício artificial ou meramente
literário, o recurso de Paulo à retórica persuasiva, como a diatribe, deve refletir
suas práticas como pregador missionário e professor. Um bom exemplo do uso
paulino da oratória deliberativa é a defesa que o apóstolo faz da esperança futura
na ressurreição do corpo em 1 Coríntios 15, apresentada a cristãos que hesitaram
em aceitar esse conceito não-helênico (cf. Aros 17,32). O argumento de Paulo
começa com uma breve transição introdutória (exórdio, 1Cor 15,1-2) e segue
com uma narração histórica tanto do resumo do credo culminando na ressurrei-
ção de Cristo (w. 3-7) como da experiência do Senhor ressuscitado vívida pelo
próprio Paulo (w. 8-11); em seguida, ele relaciona um conjunto de provas cujo
objetivo é refutar as idéias dos seus oponentes (w. 12-19, 35-44) e corroborar a
sua posição com exemplos e analogias (w. 20-34.44-57). O argumento termina
com uma exortação-síntese (peroração) no versículo 58: "Assim sabei que a vossa
fadiga não é vã no Senhor "
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