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Jefferson Bessa
NNOOSS ÚÚMMIIDDOOSS PPLLAANNOOSS DDAASS MMÃÃOOSS
Castanha Mecânica
NNOOSS ÚÚMMIIDDOOSS PPLLAANNOOSS DDAASS MMÃÃOOSS
JEFFERSON BESSA – POEMAS http://jeffersonbessa.blogspot.com.br/
Jefferson Bessa
NNOOSS ÚÚMMIIDDOOSS PPLLAANNOOSS DDAASS MMÃÃOOSS
Castanha Mecânica
Poesia, 2012
BESSA, Jefferson. Nos Úmidos Planos das Mãos. Castanha Mecânica, 2012.
TODA E QUALQUER REPRODUÇÃO, PARCIAL OU INTEGRAL, DA OBRA É AUTORIZADA PELO AUTOR,
DESDE QUE A AUTORIA SEJA DEVIDAMENTE ATRIBUÍDA. QUE TODA POESIA SEJA LIVRE!
Capa: MARCANTONIO – “Monotipia sobre papel, 20 x 30 cm, 2001”.
Prefácio: ROGEL SAMUEL.
Revisão: JEFFERSON BESSA.
Projeto gráfico e diagramação: FRED CAJU.
CONTATOS COM O AUTOR:
E-MAIL: jedu02@gmail.com
JEFFERSON BESSA – POEMAS: http://jeffersonbessa.blogspot.com.br/
MINHA LETRA É OUTRA: http://poemablogue.blogspot.com.br/
LENDO POESIA: http://jeffersonbessa2.blogspot.com.br/
CONTATOS COM OS COLABORADORES:
MARCANTONIO: marcantoniocs@hotmail.com
ROGEL SAMUEL: rogelsamuel@yahoo.com
FRED CAJU: caju.fred@gmail.com
ESTA COMPILAÇÃO FAZ PARTE DO CATÁLOGO:
Castanha Mecânica
Projeto que visa a livre distribuição e divulgação da poesia através da
organização dos poemas em forma de e-book. A central de
distribuição gratuita da Castanha Mecânica está na página:
http://castanhamecanica.wordpress.com/.
NOS ÚMIDOS PLANOS DAS MÃOS
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SUMÁRIO
Prefácio, por Rogel Samuel — 9 Estrada — 11
O sal do corpo — 12 Flores — 13 Muro — 14
Esquinas — 15 Deitado fico — 17
Ode aos pés — 18 Ando muito lento, muito lento — 19
Quedas — 21 Onde está o silêncio das coisas? — 22
Identidade — 23 Estoque — 24 Buscar — 26
Duna — 28 Enquanto andava na rua — 30
Todo lugar vira outro — 31 Ontem de um verso — 32
Chuva — 33 Dizendo como uma criança — 34
Cheguei há pouco — 35 Salvar — 36
37 — Ontem a chuva veio de trás 38 — Colheita 39 — Pele palavra 41 — Esgotados 42 — Para me chover 43 — Papel escrito 44 — Vou sair. Andar 46 — Ânima 48 — Necessidades 49 — Parede descascada 50 — No mar que nada tem a dizer 51 — Sobre o silêncio, dizia o místico... 52 — Elegia 53 — Caixa 54 — Quem tem nas mãos um poema 55 — Um verbo 57 — O homem e a pasta preta 59 — Que o sol possui tarefas diárias? 60 — Piscar 61 — Pernas cruzadas 62 — Ele me disse ao ouvido 63 — Este será meu cumprimento
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PREFÁCIO
Completo e belo e dele nada mais se pode dizer, nada mais, não se pode apresentar esse livro, essa poesia de fora para o interior, como dizer o que se vai ler: como é difícil, como impossível viajar em seus sentidos, sentimentos, significados, suas veias, seus chãos. Esses poemas não têm apenas significados, mas portam físico, peso e neles não se podem apenas pensar, mas pesar como objetos sólidos, tocar, e mergulhar ali nas suas bordas, assim no prazer do seu corpo, no úmido, ao mesmo tempo um passar, um caminhar na força desses sentidos, desses muros, dessas esquinas — essa poesia tem solidez, concretude específico, quase se pode medir e pesar qual uma lagoa viva e lírios-livros de se ficar em casa, de se desenhar em casa, de se reescrever, reverter, inverter e sair, buscar e lá fora não estar ou resistir.
A poesia de Jefferson Bessa é difícil e bela como a existência, ou a sobrevivência, o viver entre as paredes descascadas do próprio quarto feito prisão, ou no mar que nada tem a dizer (pois é urbano) — o livro não perde a atmosfera elegíaca, elegia sem tristeza, elegia-fenomenologia de um rio vivo, na viva espera das mãos vazias, pois “o prazer que pode ler um verso / vem de comer na verdade da fome”. Esta é a verdade do livro: as mãos vazias. O sentido.
Rogel Samuel
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ESTRADA
Caminha, poema, ainda mais e mais incendeia todas as línguas: Essas grandes que falam Da tua poesia Como de lógica. Leva em suas costas só a bolsa pendurada com o peso da poesia Nos teus braços, deslizando No que envolto Dele é físico. Caminha, poema, a uma viagem sem chegada. Passa sozinho Para ouvir o mundo que ao teu lado Diz nada saber De traços últimos. Limpa os corredores de tua poesia trancando as portas da poeira Dessas vozes altas das verdades Que tua forma queimam Como lâmpadas. Caminha, poema, pelo chão não canses de teus passos lidos Amanhã logo após a chuva Tuas letras ficarão Apenas úmidas
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O SAL DO CORPO
vagarosamente seguir pelo estreito das fendas, dos braços, olhos, orelhas banhar o pescoço e descer ao dorso num risco leve de só ser úmido esquecer-se no gosto de ser aos poucos secar e evaporar ao dedo de teus pés passar pelo teu corpo como uma derradeira gota d’ água
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FLORES
a partir de hoje não lhe trarei flores apesar de inverno, lá fora podemos encontrá-las florescem ainda aquelas resistentes ao frio se lembra daquelas do último verão?! que dentre as que murchavam havia outras que surgiam coloridas?! a vida assim não haverá que se dividir porque em qualquer das estações sempre há flores não se frustre em esperá-las ao invés de lhe trazer flores para ornar de cores sua beleza ou tecer alguma coroa aos deuses ou colorir uma revelação no altar divino, vamos a elas nesta hora fria do dia um frio que nem tão forte é que nos impeça de sair fora de casa nada nos vem como prenda o que nos vem é mais que isso: nada mais nos é do que vê-las. vamos esquecer de ter ou de receber vamos nos despir dos conhecimentos de esperar raridades alheias como hoje esperou por mim pensando que traria uma rara flor a partir de hoje não lhe trarei flores vamos sair, chove muito pouco um chuvisco apenas vamos juntos, sabemos onde nos esperam muitos hibiscos
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MURO
só compreendo um muro vendo o homem primeiro sentado em meio aos montes — em abrigo receoso só compreendo um muro se vejo esse mesmo homem pisando a marcação na vertigem das posses só compreendo um muro pelo medo nostálgico do homem que via o sol se pôr antes da noite só compreendo um muro se a guarda do que é cerco fecha-se atrás das costas e arrasta um deus pesado
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ESQUINAS
a esquina da rua de cima larga e só, esquina grande mas só do outro lado a esquina da rua de baixo curta, breve uma era em medida tão grande como tão pequena era aquela esquina de baixo mas há uma curva em cada uma uma curva sem mesura a de cima continua lá estática grande mas a curva de baixo a pequena a de baixo grande se vê:
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sabemos da verdade que deixamos na curva da esquina de baixo verdade visível grande palpável feita da mesma espessura que se conhece o outro feita do mesmo arco que se desenha a mão na grandeza de tocar
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DEITADO FICO
deitado fico as sensações se esticam como pernas que na poltrona relaxam de tão flexíveis os movimentos crescem agora num pensamento que vem do sul carregando consigo nuvens que irão chover.
borbulha no quarto a chuva que começa
no chão estalam gotas a cama já encharca
o ar úmido tranquiliza a parede se molha se erguem meus braços deitado não sei mais se eu me estico ou o meu pensamento nem me importa saber mas o músculo da sensação continua se alongando deitado fico sobre a cama mergulhado feito o corpo horizontal da água que se banha a si mesmo numa lagoa numa poça d’água
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ODE AOS PÉS
entre os pés e a terra se caminha esqueça, portanto, à porta de casa o cadarço, os sapatos, as meias caso não queira ser levado sem saber a caminhos que nunca sentiu deixe cair por terra os pensamentos que ultrapassam as veredas dos pés. fique descalço como quem fica nu não acredite nos passos posteriores nem nos anteriores aos seus pés todos se cansam rápido do caminho que fora do corpo dizem existir. muito se disse sobre as avenidas no entanto, à medida que se aprende detestável é o percurso que se sabe não se lembre dos passos além não se deixe levar pelos rastros num dia vão verá que a passagem terá sido aquela que nunca pisou, que nunca esteve aos seus pés
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ANDO MUITO LENTO, MUITO LENTO
ando muito lento mais lento que a lentidão
talvez mais lento que o animal mais lento por isso tenho infinitas afinidades
com uma senhora — minha vizinha. quando saímos juntos, andamos tão lentamente,
andamos numa lentidão superior às fraquezas dos ossos. superior até mesmo a qualquer retardamento mental.
nessa lentidão especial é que conversamos caminhamos quase parados
sempre parado, assim fico
sempre parado como quem não sabe se vai ou se fica
sem saber qual é a próxima parada tão parado que não sei nem mesmo onde parar
a rua corre, a cidade cresce
a cidade julga caminhar em velocidade as mensagens voam,
e tudo me faz querer parar
quando olho ao meu redor vejo passar o automóvel
ou a nave mais veloz do mundo sinto-me plantado no chão
empacado como o automóvel mais velho do mundo identifico-me com uma árvore na calçada
com um camelô no meio do caminho com um poste, um assento, uma avenida congestionada
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a cidade se julga muito rápida mas subo e desço as ruas lentamente.
alguma coisa na cidade sonha a rapidez mas nela só há arrastados passos
e caminhamos nas ruas eu e minha vizinha
dirão que o retardo em mim
provém do excesso de cidade. dirão que sou um vencido.
mas minha lentidão é inerente sempre estive lento demorei a nascer
nesta cena me mantenho como um drama sem ato
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QUEDAS
as quedas que se abrem têm no som os ruídos
menos estrondosos que as ruínas dos poderes,
não têm ouro a se perder, nem o que pecar,
não têm desventuras nem mesmo um fim
me ponha nos olhos, queda,
a atenção para crateras que meus pés calçam. cair com os buracos
e desabar como queda d’água. me traga o pulo dos tombos
para andar pelo desenho mal feito das ruas
a outras quedas me largarei — tenho uma queda pelos beijos. vou perder a força no declinar
e me derrubar a todos os lábios e me deitar em todos os braços.
seja hábil, queda, às minhas pernas para faíscas brilharem
quando ao chão derraparem
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ONDE ESTÁ O SILÊNCIO DAS COISAS?
onde está o silêncio das coisas? me disseram que se pode ouvi-lo mas se ouço o silêncio da flor, já não faço falar o silêncio dela? afirmam que há o silêncio dos pássaros mas ninguém atenta ao canto, ao ruído de suas asas? nem as cachoeiras são silenciosas dizem que seu som são lágrimas que escorrem. e o mar? as ondas calmas ou agitadas sempre marulham. porque querer ausentar-se do ruído do mar? mar, mar, mar, mar, mar palavra quando falada lentamente vira o mar guardado em audição. se não ouvíssemos o ruído do mar não teria surgido a palavra mar que salga a voz e molha a língua
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IDENTIDADE
primeiro inventaram a identidade segundo me disseram que eu a perdi terceiro digo a todos que nunca a tive
perdi a identidade, mas só o papel
esta que faz de mim números apenas, por ela se faz numerologia até
se vê meu destino, se vê meu espelho e se sou um todo ou diversas partes. depois de procurar pela casa inteira
confesso que aqui perdi só a de papel deram-me pronta como se fosse eu
essa é a que poderia perder, é a que tive
mas ela — que é a única que sempre existiu — posso ganhar, tirar a segunda via
mas essa outra nunca senti em meu corpo
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ESTOQUE chegou o vendedor e me disse que não havia livro de poema daquele poeta que lhe perguntei lamentamos, senhor, mas não tem mas posso trazer outros livros me disse ainda que os poemas estariam em minhas mãos de imediato viriam das pilhas da distribuidora mas de imediato vi apenas livros na estante acumulados, escondidos nas camadas guardadas de poeira no objetivo das contas de inventário em que se somam horas, dias e anos dentro de espaços em aparelhagem entre folhas de livro atacado ou varejo e assim continuou falando da breve atualização dos acervos no estoque armazenados em curto prazo de tempo. a ele nem respondi, não esperei saber contudo digo que de lá saí com um poema antes só havia perguntado: poema? eu vi, tu viste, ele viu e me deram estoques, reservas enredadas. mas nenhum poema nunca faltará porque existe com ou sem falhas de loja
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antes só havia perguntado: poema? e me trouxeram quantidades necessidades, fornecimentos. mas a porta da livraria se abriu esqueci o vendedor e o livro e lembrei que a poesia não falta por isso, de lá saí com este poema
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BUSCAR hoje ficarei em casa de antemão sei que nada vou achar — não sairei até iria se não buscasse nada, mas hoje insisto em procurar — como
[quando perco algo em casa se tivesse perdido alguma coisa, não hesitaria a sair! ainda que eu não encontrasse e provavelmente não encontraria. mas
[saberia o que buscar pensei em inventar algo para procurar. hoje, contudo, não posso então estou aqui e escrevo isto — e com isto escrito não busco nada afirmo: ao terminar de ler nada encontrará. bastaria ler sem esperar
[nada; assim como eu escrevo isto nem penso mais no que deve ter de agradável ou desagradável em
[não buscar começo a curtir isto que não leva ao fim de nada então fique certo de que não há nada aos pés do que se lê no fim dele não há saída, porque não sairia por nenhuma porta que
[não tivesse entrado não procuro saída surge agora o que não busquei — não é contemplação, nem epifania nem vou buscar saber o que é!
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no entanto, eclode a forma de mim e por ela saio pleno. basta ler: é só não sair para conseguir sair, por isso agora sairei vou à rua
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DUNA
Deste pouco de tinta Espalhada na folha
Se ergue sobre linhas Arqueada de corpo Esta imensa duna.
Aqui vai se compondo Em lento movimento
De letra a letra Abrindo vazios
Assim ocupados Por verso contínuo
De fragilidade Que se firma sempre
Em intermitência.
Por entre grãos A duna sobe. Palavra reta Na superfície
Das várias curvas Então alinhadas No cruzamento
Vertical
No horizonte Curvilíneo,
Percorrendo Lá e aqui
Nos declives. Não há jeito:
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Se move Agora A duna Escrita Aqui.
contudo se vê:
é
pó es va in do se
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ENQUANTO ANDAVA NA RUA
hoje tropecei enquanto andava na rua tombei, quebrei o joelho. mas de que matéria é essa pedra? não é mineral, certo! sobre este chão, caído ainda resisto virado, me viro a olhá-la é de um azul-flutuante semitransparente e fico com esses olhos que vêem com as gotas de sangue jorradas no chão. se a matéria da pedra for eu mesmo? se for do efeito da dor ou de uma coloração alquímica? de sensações bombardeadas ou de manifestação divina? ou pedra somente vista? desejada? ou pensada? De quantas matérias se compõe uma pedra? Para tanto basta ser uma pedra interrogada!
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TODO LUGAR VIRA OUTRO
todo lugar vira outro. quando chego já me retiro. ou quero voltar. ou ir. ou quero chegar. ou ficar. é tão absoluto ficar onde não-fico — solto-me do lugar e na estabilidade de onde não-chego é que chego o sempre transportar ultrapassar portas soltar-me de todas elas subindo rampas pontes e viadutos. subo escadas da minha subida no subir a sempre dar saltos saindo e entrando pelo lugar que é outro. contudo o lugar-outro é tão correto, tão ele mesmo que me retiro e me vou para outro eu e lugares independentes desligo-me faço estar onde não-estou
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ONTEM DE UM VERSO
retomar aquele verso no agora da manhã mas ontem havia sol, hoje está nublado.
talvez não fosse ele pouquíssimo como quando se afirma que um verso é
menos belo que um outro do poema.
fosse pouco, tivesse escrito ou ressurgido o verso-ontem não relembraria o de agora.
era ele mais solar, de alta temperatura. o de agora amanheceu nevoento, quente sem chuva, um outro verso de momento.
talvez seja ele pouquíssimo
tão pouco quanto o pouco da lembrança deixada. e me diz:
“retido no tráfego do corpo” dizia outra coisa? ou era ele assim?
já é um outro.
ânimo do poema de agora só querer ouvir com tímpanos doloridos o que fez do que não se fez,
este aqui é o ontem de um verso
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CHUVA
Quando em verso digo chuva Fala-se da única
Ao largo de outras chuvas
Faz-se ela não de água Mas de som chiado
Na enxurrada de agora De chuva que é voz
Porque já não a faço dizer Com (funde-se) ao verso Então comigo murmura:
Chuva
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DIZENDO COMO UMA CRIANÇA
um homem me disse: o silêncio é como experimentar a morte. ouvi a assertiva feito uma criança. sem qualquer dificuldade afirmei: por isso nunca se sabe do silêncio — a morte alguma vez foi sentida? o que não se sente não é nada o silêncio, nunca o sentimos muito do que se acredita não existe: é como pensar que se sente morto. isso tudo ficou claro para mim e o homem adulto, previsível, disse você parece bastante doido. respondi: sou doido feito criança
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CHEGUEI HÁ POUCO
cheguei há pouco sentei-me sozinho rabisquei umas letras mas no meu corpo persiste um odor em mim mesmo respiro o ar de outro corpo a mistura desperta os corpos sozinho se sente muito pouco e agora com o pouco calor que faz de mim exala o encontro de odores recordo-me dos outros quantos outros odores ao chegar neste quarto já pude sentir em mim. as paredes não lembram nem mesmo agora podem respirar o que há de alheio em mim nesta noite me deitarei com as horas misturadas de hoje. às minhas narinas está o corpo parece ainda transpirar forte como as coisas que não vivem sozinhas
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SALVAR
retirar-se do perigo dos abismos das doenças dos dragões
nada tem a ver com salvar
livrar-se do maldito dos cinismos das crenças dos ladrões
nada tem a ver com salvar
salvar é acariciar o indesejável brincar no meio da rua desejar todos os sexos
ou ainda viver o remédio como
se vive a moléstia comer a hóstia como
se bebe vinho ou ainda
ser preto no branco como sal entre areia escura
salvar é deixar em ruína tudo que é seu tempo.
é deixar em silêncio o som nos tímpanos
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ONTEM A CHUVA VEIO DE TRÁS
ontem a chuva veio de trás a frente se fez diferentemente úmida do leste uma luz diversa descia nada similar aos outros fins-de-tarde na mistura de um laranja-prata iluminou casas, ruas, antenas não havia uma pessoa todo o resto se deixava passar pela luz arrastava-se ao ocre da terra no tempo do verde-azul visto nos montes ao longe não era um crepúsculo não era tarde, nem manhã. da chuva vinda de trás a cor desconhecida por instantes se mostrou outra coisa — sem nome não era alguma coisa era cor — era o que nunca mais se verá só conheço pelo que já disse a luz veio do leste depois da chuva vinda de trás. não havia sequer uma pessoa sem definição acontecia brilhava na visão uma cor que nunca mais se verá
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COLHEITA I
muitos mortos de repente falam as vozes ecoam nas lápides
nos túmulos, nos nomes, nas caixas na data de nascimento e morte
quando eu morrer me ponham
sob a terra como os outros mas acima não ponham nada além
só o verde das gramas que crescem
II
Que a terra me absorva como adubo Que me transforme, extraia de mim
o que me dissolve para fertilizar bem longe das terras sepultadas
e quando assim lá eu estiver
de mim ninguém mais se lembrará contudo as pessoas sem saber
vão me ver vibrar, ao vento, todo verde
NOS ÚMIDOS PLANOS DAS MÃOS
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PELE PALAVRA
Pele palavra temperada quente de lava salobra fria de água Antes de sagrada a palavra amarga ou amada arrasta ou lisa Grava olhos lavra pele lava mãos leve ou pesa da mente passa A silêncio quando dita é contradita no extremo da língua, vira cravo nos dentes como fruto na boca A razão salga açúcar desterrada no céu da boca.
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revirada jorra fricativa e arranha o risco dos píncaros de pensar No tato a palavra sabe pó e minério revira esférica revoa branda sabe tudo e nada Nos pés estala pedra e erva bate grave recaída na terra Não diz nunca não
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ESGOTADOS
bebem sempre da última gota vão ao fundo do copo
ao fundo do que poderia vir até acabar do que restou.
bebem do que virá de todo porvir
de todas as hipóteses
secam o chão a rua, o mar
e tudo paira plano. depois de desertar enchem de vazio
como faz um trator, como as máquinas voadoras
vigiam sufocadas as alturas de dominar
pensam sempre antes
mas sempre no antes do antes esgotam um pensamento
até o pensamento os esgotar. tiram tudo de todas as coisas
depois, deitados, ainda esperam a drenagem do esgotamento. chegam a muitos caminhos
e caminham até o fim até onde o fim se faz parede
JEFFERSON BESSA
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PARA ME CHOVER
permaneço no quarto que não se abre a chuva já começou a cair a rua está úmida, as águas acontecem abriram-se as portas, mas a demora me continua na noite do calor passado sentado ainda no ontem que estou. demorado quarto dentro de paredes arrastadas na distância de banhar-se à espera do lentamente vir do tempo. no espaço desembrulham as camadas pintadas de concreto resistentes ao frescor confinado no intervalo anterior à manhã aguardarei a hora da tarde para me chover
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PAPEL ESCRITO
um papel escrito à minha frente
tem o peso leve do vir ao mundo.
um papel escrito que se completa
grita o som do dia sem pôr o fim.
um papel escrito é esta palavra
rasteira nos úmidos planos da mão.
JEFFERSON BESSA
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VOU SAIR. ANDAR É como entrar numa sala sem ser chamado Ouvir uma voz estrondosa que não diz. Minha vontade sempre me embaça. Fico no além. Assim entrei em tantas salas e saí sem saber o que olhar. Mas também não ficarei na antessala. Não vou esperar. Vou sair. Andar. Entrar nas coisas sem ser chamado não convém. Convir é quando venho com o que me chamou. Vou sair. Andar. Nem ficarei na antessala. Esperar não convém. O movimento, por ora, me convém só ao chão pelo qual caminho. Quero vir junto com as coisas. Para tanto vou andar... andar. É esse
[o caminho. Ficar quieto. Prestar a atenção ao que me chama. Penso se haverá algum vocativo para eu ouvir... Mas não há. Quando me aquietar não haverá nenhum vocativo. É certo. Nenhum vocativo. Chamar é nomear. Não quero nomes apenas. Não haverá só
[chamado, portanto.
NOS ÚMIDOS PLANOS DAS MÃOS
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Andando ouvirei o convite do que me cerca. Do que me cerca, não. Nada me prenderá. Andando ouvirei o convite do que me move.
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ÂNIMA
para ter o que anima não me basta sentir que basto não me basta saber do invisível que me move o invisível que há em mim, sozinho, não me anima. se assim fosse, seria eu um satélite em posição tão longínqua que, sozinho, ficaria vagando num espaço sem poder receber um simples sinal. ficaria girando e girando para, depois de tão tonto, explodir sem ter tido um contato não preciso morrer para perder o que me anima. para morrer me basta estar embrulhado naquilo que pensaria ser só em mim: receber o sinal de mim mesmo (me colocaria em pé: estátua esquecida me colocaria posto: morto encaixotado ficaria numa respiração sufocada dentro de um invólucro dispensável como a alma pensa do corpo ficaria numa embalagem de proteção como aqueles produtos vendidos em lojas para os quais se requer todo cuidado)
NOS ÚMIDOS PLANOS DAS MÃOS
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para ter o que me anima me basta saber que o invisível está no corpo sentido me basta saber que, sozinho, não sinto me animo mesmo com os outros que chegam
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NECESSIDADES
organizaram minhas necessidades sem eu pedir ontem mesmo decidiram por mim
que preciso suprir todas as minhas carências. terei de pô-las umas sobre as outras,
numa sequência hierárquica das necessidades amanhã receberei a tabela do que se deve fazer
minhas prioridades conhecerei amanhã
aparelharam em mim os elementos indispensáveis aceitei sem saber. Entrei num estado de passividade
como quem se desliga e se liga frente a uma tela. amanhã serei os corredores de uma empresa
uma mão invisível me medirá, serei os departamentos passarei como veículo que carrega ou de pé estarei feito uma estante firme com espaço a ser preenchido
seguirei a viver numa sequência de necessidades
como os que abastecem os sentidos como depósitos expostos um sobre o outro numa escala eterna
de ir e vir ao mesmo ponto de querer a mesma coisa. substituíram ordenadamente minhas necessidades organizaram administrativamente minhas vontades
energizaram meu corpo como uma embalagem
NOS ÚMIDOS PLANOS DAS MÃOS
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PAREDE DESCASCADA
move-se o estalido que abre a casca voz no canto inferior da parede
onde o horizonte do quarto se levanta
sem pressa o som se ergue na parede a camada de vida vibra
a tinta se abre, desprende-se do concreto
o ruído crescente de galhos a pequena árvore que irrompe tronco espesso rente à parede
— madeira de casco denso — tremor de fissuras
rebenta a cor, sobre o concreto se movem as linhas no quarto brotam as rachaduras
fraturas cicatrizes
sobem linhas a caminho — rios se desenham
balançam como o vento de fora. não há que ver por dentro
nada há dentro da tinta não há nada atrás da parede
a descasca brilha na quina do quarto logo ali onde se pode ver como fruto como se abrisse pela primeira vez
sem saber ainda o sabor
JEFFERSON BESSA
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NO MAR QUE NADA TEM A DIZER
Deixe-me no mar que nada tem a dizer Deixe enrolar-me
nas ondas que florescem Cá na beira onde meu corpo
se dobra
Por lá não posso estar Mas aqui na ponta do mar
desponta o que bate em mim Em mim que não sou
Mas que sou com o mar o que brota em cada baque seu
neste litoral
NOS ÚMIDOS PLANOS DAS MÃOS
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SOBRE O SILÊNCIO, DIZIA O MÍSTICO...
— Dizer menos para entender mais, dizia o místico, dizendo ainda:
— Silêncio deviam fazer todos os homens O divino em nós se transforma
Quando a boca se cala. contudo a voz do poeta soou
e disse a ele que já queria seguir: — Não há silêncio, a não ser que tenha se esquecido
De que se fala como quem ouve E se ouve e se fala como quem canta.
lá foi ele, e o poeta pensou consigo mesmo: — Coisa mais louca é viver no deserto da Língua
pensando que fora Dela está o oásis divino.
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ELEGIA
já havia morrido quando nasci o rio que atravessou a infância mas ainda assim ficava a olhar a língua escura que ali corria restaram os contos de um dia que nos escorriam em banho as crianças ao pé do rio morto miravam o céu à espera da chuva: seria o encontro das fortes águas arrastaria as mortes flutuantes mas a chuva veio e miramos o rio e ficamos na água azul das alturas movimentamos o céu por vezes na enchente das sílabas de águas as crianças entre o céu e o rio nunca se banharam rio a dentro já havia morrido quando nasci o rio que atravessou a infância
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CAIXA
ganhei uma caixa do presente E de pressentimento me cobriu
porque abri antes de mim abri o que esperei de antemão
Tudo o que soube é o que poderia ser desperto em infinitos raios dentro da caixa me embrulhei
Esperei na antessala nem mesmo soube caminhar antes de mim desembrulhei
Rasgando a sua matéria mas estava sim me fechando nela antes de mim abri a caixa
Me fechei de olhos e espero de mãos vazias
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QUEM TEM NAS MÃOS UM POEMA
quem tem nas mãos um poema não segura um deus, é certo! mas quem o tem aos olhos não deve vê-lo como assistir tv não o leia como comer biscoitos no passatempo vazio de esquecer, nem como quem para fingir a dor ingere remédio de efeito efêmero um poema faz esquecer de vez depois de o ler é para sempre. não se volta, não distrai a hora do tédio de pensar no dia seguinte a marca que se lê não se perde mas lembra no momento de hoje. o prazer que pode ler um verso vem de comer na verdade da fome
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UM VERBO
quero um verbo urgentemente um verbo com um aspecto temporal que não vive num antes mas num depois: um depois que vive do anterior de um futuro não darão origem a este verbo os gramáticos?! não darão origem a este tempo os filósofos?! não me venham com futuro do pretérito! nem com experiência de tempo interior! onde está esse verbo? esse tempo? estão eles aqui os vejo à minha frente acontecem no que aconteceu dentro do que acontecerá (haverá quem diga que não existe nem existirá este verbo. haverá quem diga que seria um mero pretérito do futuro a inversão de um tempo já existente. no entanto, senhores, quem vê pelo estranho do olhar qualquer coisa — a coisa mais simples — se torna apenas uma
[inversão. o que fazer de olhos anteriores a uma anterioridade?! o que fazer de pés que andam nos pretéritos mais que perfeitos pés?!
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poderá resmungar deste tempo quem tem nos passos apenas o estagnado quem praticamente já não anda mais quem no atrás da passagem não me vê num depois que vive do anterior de um futuro) mas já nenhuma falta me faz a existência desse verbo esse tempo vive firme no poema que com ele se escreve
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O HOMEM E A PASTA PRETA I
um homem se sentou à mesa da frente mais um dentre tantos outros: com a pasta preta e sentado não dá conta de que o olho
talvez tenha me olhado para se certificar como de praxe faz em meio à sua função
de examinar documentos que redige
não seria exagerado, mas de relance pude ver o modo como olha é o mesmo de quem olha
um certificado, dá por certo e carimba. existe, sim, um carimbo nos olhos dele
segura o copo com quem agarra uma caneta o leva à boca no jeito de passar e repassar papéis
e bebe tão forte como se na língua tivesse uma norma
II
a pasta preta o acompanha intimamente com ela sobre as pernas e por entre os braços
a coloca tão fixa, numa posição tão certa como uma filha carece de mãos paternas para se erguer e, suspensa, ficar segura.
me observou por um instante — talvez desconfiado de que meu rosto fosse um falso documento.
no entanto, eu não o olhava mais
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me restaram ali o chão e um pensamento. quando me dei pra fora os vi seguindo:
o homem e a pasta preta. andava carregando a alça num balanço de executar. segurava como se estivesse voltando de um parque
voltando de mãos dadas à sua filha. lá vão eles — tão dependentes — um dentro do outro
lacrados e perdidos num mesmo passo
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QUE O SOL POSSUI TAREFAS DIÁRIAS?
que o sol possui tarefas diárias? não poderia acreditar nessa ideia sei bem que eu possuo encargos créditos e carnês e pagamentos minhas tarefas visam a este fim
mas que fim teriam as tarefas do sol?
diriam a tarefa de semear e iluminar mas ele mesmo não sabe o que faz o sol não possui nenhuma tarefa. se um dia o sol se apagar de vez não será por falta de pagamento, por falta de emprego ou dinheiro
se nós temos a nossa empreitada
o sol nada tem a ver com isso se um dia o sol se apagar de vez não será por rescisão de contrato nem pensará no prejuízo humano. deixe-o então ao largo deste fardo
melhor esquecermos e como está sentirmos a luz, sermos amarelos
alaranjarmos nos fins-de-tarde com ele nos apagarmos à noite no verão termos a pele morena suarmos azul, rosa e corarmos
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PISCAR
vejo nos dias a luz se apagando no piscar incessante dos olhos que descansam assim sozinhos a ardência servil de observar, o trabalho de acender a alma descansam na presença de esquecer clarão visto em lentas vezes por entre os cílios se ofusca se acende feito constelação na noite: feito quando os raios escalam o horizonte pelo céu na manhã no aceno de alongar as sombras enquanto tudo se abre e se fecha sei do piscar de olhos na rasura a esboçar o que por mim passa
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PERNAS CRUZADAS
logo que chegou ao bar seu corpo pediu todos os olhares mas num instante o vi falecer embaçar. o corpo que não transpira derrete para se fixar em poses. e assim foi. sentou-se à cadeira de pernas cruzadas e de tão embaraçadas as pernas se fizeram grandes bengalas que assim carregam a beleza que pesa e que arrasta no rosto. ah... mas se este corpo chegasse sem dar ares ao cheiro... se este corpo escorresse a água da pele pelo salão e borrifasse às minhas narinas...
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ELE ME DISSE AO OUVIDO (para um amigo)
depois de ouvir uma homenagem em comemoração a um poeta
saíram os doutos homens da sala julgavam da maior importância
celebrar a morte, a obra do bardo. neles havia o prazer mórbido
da morte viva no tempo dos versos em meio a datas e anos — feito missa.
depois de sair da sala caminhei o trajeto se abriu em vil eternidade e toda a idade da vida e do porvir
não existiu mais enquanto andava. um verso ele me disse ao ouvido li e em silêncio estávamos nós: eu e o poeta sozinhos na rua
festejamos juntos naquela noite.
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ESTE SERÁ MEU CUMPRIMENTO
acabaram meus cigarros dinheiro tenho pouco
nem uma pessoa influente de poder conheço não levarei ninguém a qualquer promoção
portanto, não leia este verso este poema como um meio,
por ele — que sou eu — não chegará a nenhum futuro brilhante nem a ocupar um cargo de bom salário ou daqueles de excelentes aparências.
não tenho nem como trocar favores não tenho nada que lhe possa interessar
se for por isso nem mesmo um minuto vale perder comigo.
não precisa de discrição, afasta-se rápido
finja em qualquer lugar que passo despercebido. muitos conhecidos pensam em me querer
— no mínimo do que tenho. mas não tenho nada, nem o mínimo
nem mesmo um verso rimado não tenho o que oferecer pode pensar que me ver
é avistar um rosto de dia de semana um rosto de olhar cansado o trajeto de uma terça-feira
sim, sou um dia de semana arrastado sem uma ninharia.
melhor, então, é me deixar jogado num canto prometo que a partir de hoje logo que alguém falar comigo
antes de todas as coisas falarei assim direto não tenho nada — será meu cumprimento
JEFFERSON BESSA
“NOS ÚMIDOS PLANOS DAS MÃOS”
Castanha Mecânica, 2012.
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